relaÇÃo cidade-campo1: manifestaÇÕes do rural … · desta temática na ciência geográfica,...
TRANSCRIPT
1
RELAÇÃO CIDADE-CAMPO1: MANIFESTAÇÕES DO RURAL NO URBANO2
Flávia Aparecida Vieira de Araújo Universidade Federal de Uberlândia – UFU
Beatriz Ribeiro Soares Universidade Federal de Uberlândia – UFU
Resumo A nova dimensão assumida pelas relações sociais, econômicas e culturais estabelecidas entre o campo e a cidade passou a exigir a compreensão de que o urbano e o rural não devem ser mais pensados como recortes territoriais isolados, como tradicionalmente o fora. Diante dos pressupostos de que há uma interação do urbano e do rural em um mesmo local, de que as fronteiras entre eles são cada vez mais tênues e de que o significado dessas realidades deve ser buscado nas práticas sociais dos agentes, surgiu o interesse de se estudar as manifestações do rural em áreas urbanas. O recorte espacial compreende as cidades de Araguari, Uberlândia e Uberaba, localizadas no estado de Minas Gerais. Considera-se que esta pesquisa poderá trazer contribuições para a discussão da relação urbano-rural no âmbito da Geografia e para o entendimento da dinâmica socioespacial das cidades selecionadas para estudo. Palavras-chave: Manifestações. Rural. Urbano. Introdução A discussão da relação cidade-campo implica reconhecer a complexidade e relevância
desta temática na ciência geográfica, já que a distinção e a delimitação entre o rural e o
urbano tornaram-se uma tarefa mais difícil a partir da acentuação das articulações entre
a cidade e o campo. Essa maior acentuação é resultante da revolução técnico-científica,
iniciada a partir da segunda metade do século XX, a qual imprimiu uma nova
complexidade ao estudo, pois intensificou os processos de urbanização e
industrialização; promoveu o desenvolvimento do capitalismo no campo e a
conseqüente modernização da agricultura. Mesmo não tendo ocorrido de forma
homogênea, esses fatores redefiniram os espaços rurais, imprimindo-lhes uma nova
dinâmica; diversificaram os serviços urbanos; intensificaram os fluxos de transportes e
comunicações e reestruturaram a interação das áreas rurais com os espaços urbanos.
Nessa perspectiva, um novo interesse pelo estudo da relação urbano-rural emergiu em
algumas ciências, podendo-se destacar a economia, a sociologia, a antropologia e
também a geografia. Estas disciplinas tentam estabelecer parâmetros para a definição,
2
hoje, de urbano e de rural e a relação que ambos estabelecem. Essa busca torna-se,
portanto, um enorme desafio, visto que houve uma ressignificação dessas
espacialidades. Essa exige que as distinções e singularidades sejam valorizadas frente às
relações, às articulações e às influências mútuas que se estabelecem entre as
espacialidades urbana e rural.
A nova dimensão assumida pelas relações sociais, econômicas e culturais estabelecidas
entre o campo e a cidade, advinda, especialmente, do “relativo” fim da auto-suficiência
das localidades rurais (considerando que dependem de equipamentos e serviços
implantados na cidade), passou a exigir a compreensão de que o urbano e o rural não
devem ser mais pensados como recortes territoriais isolados, como tradicionalmente o
fora. Assim, o desafio de discutir os espaços urbano e rural além das distinções e
oposições existentes deve ser superado, pois a relação que se estabelece entre esses
espaços possui uma forte interdependência e complementaridade.
Na contextualização do atual período, é preciso considerar o papel do processo de
globalização nas transformações espaciais, seja nos níveis social, econômico, político e
cultural. E, dessa maneira, é necessário levar em conta o estreitamento que se observa
entre o rural e o urbano. Moreira (2005, p. 10) adverte que: “Não é mais aceito falar em
um rural exclusivamente agrícola ou de um urbano que não inclua também
possibilidades de construção de identidades rurais”.
No Brasil, as situações urbana e rural são definidas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística), que considera como população urbana as pessoas e os
domicílios localizados nas cidades, nas vilas (sedes distritais) ou mesmo em áreas
urbanas isoladas. A população rural é aquela que se localiza em toda a área fora dos
limites urbanos, ou seja, fora do perímetro urbano, que é delimitado por uma lei
municipal, sendo adotada pelo IBGE para a delimitação dos setores censitários e o
processo de recenseamento.
Todavia, a análise baseada na posição do domicílio no município gera enormes
controvérsias. Vários estudos revelam que o urbano e o rural não podem ser
interpretados como simples categorias operatórias, mas precisam ser analisados à luz
dos conteúdos e significados das relações sociais, já que práticas tipicamente ligadas ao
modo de vida rural podem se manifestar em áreas consideradas urbanas e vice-versa.
Diante dos pressupostos de que há uma interação do urbano e do rural em um mesmo
local, de que as fronteiras entre eles são cada vez mais tênues e de que o significado
3
dessas realidades deve ser buscado nas práticas sociais dos agentes, surgiu o interesse de
se estudar as manifestações do rural em áreas urbanas (sendo aqui consideradas as
cidades).
O recorte espacial - que compreende as cidades3 selecionadas para a pesquisa - é:
Araguari, Uberlândia e Uberaba. As três cidades se localizam no estado de Minas
Gerais, na mesorregião do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba. De forma mais específica,
estão localizados, respectivamente, nas microrregiões de Uberlândia4 e de Uberaba5
(Figura 1).
A escolha do objeto de estudo é justificada pelo fato de que se pretende fazer uma
análise comparativa acerca da manifestação do rural em três cidades inseridas em
contextos agrícolas semelhantes. Essas, por estarem localizadas em área de cerrado,
foram beneficiadas pelos programas financiados pelo governo federal e estadual, os
quais possuíam como objetivo principal a incorporação de terras relativamente baratas
por meio da intensificação do uso de capital, da correção da acidez dos solos e da
mecanização da produção agrícola. Esta foi possibilitada pela elaboração e execução de
programas governamentais, que promoveram o desenvolvimento dessas áreas.
Figura 1 - Araguari, Uberlândia e Uberaba: localização dos municípios no estado de Minas Gerais (2012) Fonte: http://philgeo.club.fr/Index.html Adaptado por: ARAÚJO, F. A. V. (2012).
4
Não obstante os benefícios advindos de tais programas, deve-se considerar que eles
foram estendidos a uma reduzida parcela da população, sendo destinados a produtores,
propriedades, produtos e regiões específicas.
Neste contexto, é importante considerar que o processo de modernização agrícola e a
inserção do capital agroindustrial nos municípios de Araguari, Uberlândia e Uberaba
não foram diferentes do restante do país, pois as políticas agrícolas foram direcionadas
ao financiamento do cultivo de produtos destinados a abastecer o mercado externo,
principalmente a soja, o milho e a cana-de-açúcar. A tabela 1 permite constatar os
principais produtos agrícolas cultivados nos três municípios, conforme dados da
Produção Agrícola Municipal (IBGE, 2010).
Tabela 1 - Araguari, Uberaba e Uberlândia (MG): produção agrícola municipal (2010)
Produto
Municípios Araguari Uberaba Uberlândia
Área colhida
(ha)
Produção (t)
Área colhida
(ha)
Produção (t)
Área colhida
(ha) Produção (t)
Café (beneficiado) 11.580 27.792 900 1.350 400 600
Cana-de-açúcar 4.000 600.000 46.000 4.370.000 900 72.000
Milho (em grão) 13.000 85.800 47.850 329.500 15.800 134.300
Soja (em grão) 17.500 56.700 80.000 240.000 47.000 143.820
Sorgo 350 438 450 1.170 1.520 3.666
Tomate 445 37.825 255 33.150 105 6.300
Trigo 335 961 773 2.149 - -
Total 47.210 809.516 176.228 4.977.319 65.725 360.686
Nota da tabela: (-) Conforme dados publicados no site do IBGE, o valor é indisponível para a variável Produção (quantidade produzida), pois as unidades de medida diferem para determinados produtos. Nesta tabela, o símbolo também indica ausência de produção no município analisado, para o período selecionado (2010). Fonte: IBGE - Produção Agrícola Municipal (2010). Org.: ARAÚJO, F. A. V. (2012).
A partir da tabela 1, nota-se que nos três municípios selecionados, a cana-de-açúcar, o
milho e a soja figuram como os produtos de maior destaque. Em termos de produção
total (quantidade produzida, em tonelada), nos municípios de Araguari e Uberaba, a
representatividade dos produtos aparece nesta ordem supracitada. No município de
Uberlândia, a soja ocupa o primeiro lugar na produção, acompanhada, sequencialmente,
pelo milho e a cana-de-açúcar.
5
Na tabela 1, é possível observar que nos três municípios, a área colhida de cana-de-
açúcar é relativamente menor em comparação ao milho e à soja. Isto pode ser explicado
pelo fato de que a produção de cana-de-açúcar demanda uma área menos extensa.
Cumpre destacar que, nos três municípios selecionados, as grandes e médias
propriedades foram as principais beneficiadas pelos programas agrícolas, o que
contribuiu tanto para o aumento da desigualdade na distribuição de renda na agricultura,
quanto para a saída da população do campo (GRAZIANO DA SILVA, 1982).
A população rural, especialmente os pequenos produtores, não podendo atender à nova
demanda por trabalhadores qualificados e não tendo condições de implantar técnicas
modernas em sua produção, viram-se obrigados a vender suas propriedades aos grandes
proprietários e migrar em direção às cidades. Em busca de emprego e melhores
condições de vida, esse processo migratório contribuiu para intensificar o êxodo rural e
determinou não só o crescimento da população urbana, mas também da taxa de
desemprego e demais problemas na cidade.
Esta contextualização é importante, pois a partir dela, pode-se fazer o seguinte
questionamento: Essas pessoas, provenientes do campo e expropriadas pelo processo de
modernização agrícola, mesmo residindo, em sua maior parte, nas áreas periféricas da
cidade e consumindo seus bens e serviços, abandonaram as relações socioespaciais
herdadas do mundo rural?
É importante deixar claro que, nesta pesquisa, o rural será analisado como categoria
analítica, ou seja, a preocupação não é classificar ou designar determinado tipo de
espaço (rural ou urbano). Se o paradigma da classificação fosse considerado como
ponto de partida, o rural estaria sendo encarado como categoria operacional. Assim, o
objetivo é partir de uma definição já estabelecida (neste caso, o espaço urbano) e, no
interior desse espaço, identificar as relações sociais que estão associadas ao modo de
vida rural. Cumpre destacar que a distinção do rural como categoria analítica ou
categoria operacional constitui-se em uma tarefa de substancial importância, pois:
“Dessa ampla possibilidade de emprego resulta a confusão de significados e de estatuto
de categorias que ora designam um tipo de espaço, tal como aparecem no discurso do
senso comum, ora qualificam as relações sociais no interior desses espaços”
(MOREIRA, 2005, p. 8-9). Portanto, nossa análise se pautará em identificar e qualificar
as relações sociais ligadas ao rural no interior do espaço urbano.
6
O aspecto motivador deste estudo é fruto de questionamentos que surgiram a partir da
observação empírica nas cidades selecionadas para estudo. Dentre esses, podem-se citar os
seguintes: de que forma o rural está presente no viver das pessoas que residem nessas
cidades, especialmente nas áreas periféricas, dada sua proximidade com o campo? E ainda,
como o urbano e o rural se interagem no viver dessas pessoas? A busca pela resposta destas
questões é, portanto, o elemento impulsionador para a realização desta pesquisa.
No que tange à sua relevância, considera-se que poderá trazer contribuições para a
discussão da relação urbano-rural no âmbito da Geografia, uma vez que as pesquisas
produzidas sobre esta temática no campo específico da Geografia Urbana são ainda
bastante incipientes, apesar da “curiosidade intelectual” que desperta. Sua importância
também se justifica pela contribuição que representa no entendimento da dinâmica
socioespacial das cidades selecionadas para estudo.
A manifestação do rural em áreas urbanas: algumas considerações
[...] os indivíduos podem expressar o seu vínculo com um determinado território (sua identidade territorial) mesmo estando fora de sua referência espacial. É o caso da manifestação de práticas culturais entendidas como rurais em espaços definidos como urbanos e vice-versa (MOREIRA, 2005, p. 11).
A partir das ideias de Moreira (2005), pode-se considerar que a classificação é
importante no processo de recenseamento, porém, deve-se considerar que, na
conceituação de uma localidade como rural ou urbana, é preciso atentar para a dinâmica
regional do lugar que se investiga, pois a diferenciação entre rural e urbano está no
conteúdo das relações sociais contidas em cada espaço, seja ele o campo ou a cidade.
Nesse sentido, reconhece-se a importância das palavras de Abramovay (2000, p. 27)
quando afirma que “o importante não é apenas saber se um distrito censitário é rural ou
urbano, mas qual é a dinâmica de uma certa região [...]”.
É imprescindível considerar que essa diferenciação é uma tarefa complexa, já que em
áreas periféricas das cidades, o rural e o urbano se interagem no viver das pessoas,
formando um espaço híbrido. O conceito de espaço híbrido, utilizado pela primeira vez
por Bruno Latour e apropriado por Rua (2006), é uma referência às relações
estabelecidas entre a sociedade e a natureza. Nesse sentido, esse autor considera o
espaço como uma variedade de híbridos, que não mais permite a percepção da distinção
pura entre o rural e o urbano, se é que essa “pureza” de distinção algum dia existiu.
7
Essa ideia de hibridação é também considerada por Haesbaert (2001, p. 1.770), que
afirma: “o mais comum é que as pessoas e os grupos sociais desenvolvam,
concomitantemente, vínculos identitários com mais de um território ou com territórios
de características muito mais híbridas, multiterritorializando-se”.
A compreensão do espaço não pode ser dada apenas pelas tradicionais concepções de
urbano e rural, já que há uma combinação desigual de ambos em cada localidade, sem
que essa combinação leve à destruição do rural, que é visto como o espaço residual e
subalterno pela abordagem do continuum. Marques (2002, p. 100) deixa clara a
diferença entre as duas abordagens existentes acerca da análise do rural e urbano: De uma maneira geral, as definições elaboradas sobre o campo e a cidade podem ser relacionadas a duas grandes abordagens: a dicotômica e a de continuum. Na primeira, o campo é pensado como meio social distinto que se opõe à cidade. Ou seja, a ênfase recai sobre as diferenças existentes entre os espaços. Na segunda, defende-se que o avanço do processo de urbanização é responsável por mudanças significativas na sociedade em geral, atingindo também o espaço rural e aproximando-o da realidade urbana (grifos da autora).
No Brasil, a abordagem do continuum é compartilhada por alguns autores, que
conforme Rua (2005), defendem a ideia de “urbanização do rural”. O autor destaca
como principais representantes dessa corrente de pensamento Milton Santos, Octávio
Ianni e José Graziano da Silva. Lefebvre (1999, p. 17), mostrando-se favorável a essa
vertente, afirma que: “o tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos da vida
agrária”.
Há ainda a abordagem que enfatiza o rural, por meio da ideia de “novas ruralidades”.
Como adeptos dessa abordagem, podem-se destacar os estudos de Maria José Carneiro,
Roberto José Moreira, José Eli da Veiga, Ricardo Abramovay, Sérgio Schneider e
Maria de Nazareth Baudel Wanderley (RUA, 2005).
É importante deixar claro que, nesta pesquisa, esta é a abordagem selecionada para
reflexão, pois considera-se que o rural não foi totalmente destruído pelo urbano e que,
mesmo no espaço urbano, pode haver a manifestação de ruralidades, ou seja, de práticas
ligadas ao modo de vida rural.
Outra questão que merece ser refletida é como as relações cotidianas são construídas
nas áreas periféricas das cidades. Portanto, é preciso investigar se tais relações são
baseadas em uma intensa ligação com a terra, pois, apesar dos moradores serem
contados como urbanos, suas relações podem estar fortemente atreladas aos espaços
rurais, nos quais:
8
[...] as relações cotidianas são construídas tendo como base uma intensa ligação com a terra. O sustento da família é assegurado pelo trabalho sobre ela produzido, seja por intermédio dos produtos cultivados (para venda ou consumo), seja por intermédio da criação de animais (pastagem e outras fontes de alimento). A terra não é mero chão, mas a garantia de sobrevivência (BAGLI, 2006, p. 87).
Nos espaços urbanos a terra possui uma outra dimensão, já que não é nela que o
trabalho ocorre, mas sim sobre ela. Assim, as relações se realizam por intermédio
daquilo que sobre a terra está construído - como as casas, prédios, ruas, lojas, dentre
outros - e pela funcionalidade que possuem.
Considerando a diversidade e complexidade das relações, conforme nos aponta
Alentejano (2003), pode-se pensar na existência de quintais nas áreas periféricas das
cidades, onde há a plantação de alimentos de primeira necessidade e a criação de
animais utilizados na alimentação, conforme nos aponta Maia (2000), que realizou um
estudo sobre as permanências e transformações dos costumes rurais em João Pessoa/PB.
A autora aponta que: [...] “identificamos, nesse cenário urbano, resíduos de tempos
lentos atrelados ao tempo acelerado pela sociedade de consumo” (MAIA, 2000, p. 121).
Nesta pesquisa - ainda em andamento - considera-se necessário identificar esses
elementos. Os laços de vizinhança e o sentimento de pertencimento a uma comunidade
são características reconhecidas como sendo típicas do rural e podem estar presentes nas
relações das pessoas que residem nas cidades, especialmente daqueles que foram
expropriados do campo e residem em áreas periféricas. A maior proximidade entre as
pessoas a partir das relações de vizinhança é uma característica associada ao modo de
vida rural, o que não significa que essas relações estão ausentes nas cidades pequenas,
médias e até mesmo as grandes.
A identificação que as pessoas possuem com o local em que residem leva-nos a pensar
na territorialidade, a qual pode se tornar um fator de distinção entre o rural e o urbano,
já que essa territorialidade é mais intensa no modo de vida rural, conforme nos aponta
Alentejano (2003, p. 31), ao afirmar que “é a intensidade da territorialidade que
distingue o rural do urbano, podendo-se afirmar que o urbano representa relações mais
globais, mais descoladas do território, enquanto o rural reflete uma maior
territorialidade, uma vinculação local mais intensa”.
Essa territorialidade intensa, apesar de ser um atributo das áreas rurais pode também ser
encontrada no espaço urbano. A territorialidade presente na vida dos moradores das
cidades é um aspecto que nos permite identificar a presença de valores rurais nas relações
9
sociais que estabelecem e, mais importante, um fator que nos permite relativizar a
classificação que os considera como urbanos, levando-nos a pensar na interação urbano-
rural presente na cidade. Ao deixarem seu território (do campo) e migrarem para a cidade,
eles podem (re)produzir territorialidades próprias de seu espaço de origem.
Apesar do reconhecimento da polarização exercida pela cidade, que concentra poder
político, capital, pessoas e informações e que projeta um modo de viver, pensar e agir
urbano, ela não consegue suprimir as práticas culturais ligadas ao modo de vida rural,
como as relações de proximidade, vizinhança e socialização reproduzidas na escala
local, discutidas por Santos (1996, p. 272). Em seu dizer, constata-se que: A ordem global busca impor, a todos os lugares, uma única racionalidade. E os lugares respondem ao mundo segundo os modos de sua própria racionalidade [...]. A ordem global funda as escalas superiores ou externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros são a razão técnica e operacional, o cálculo de função, a linguagem matemática. A ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contigüidade.
A partir da análise das ideias do autor, pode-se perceber que, apesar do processo de
globalização impor uma ordem e lógica dominantes, ele não consegue produzir uma
homogeneização dos espaços, pois há resistências por parte dos sujeitos sociais. Esses
procuram adotar estratégias de sobrevivência na ordem capitalista que se instaura em
todos os lugares.
Nesse sentido, deve-se reconhecer que, apesar das relações estabelecidas entre o rural e
o urbano, a intensidade e proximidade que marcam essas relações - proporcionadas pela
ordem capitalista global - não levam a uma necessária homogeneização desses espaços,
na qual o rural é descaracterizado e destruído pelo urbano. As características comuns
que, inegavelmente, existem entre essas duas espacialidades não significam a
constituição de realidades semelhantes, como acreditam os autores da abordagem
pautada na ideia de continuum. As diferenças existem e continuarão a existir, já que
tanto o rural quanto o urbano possuem suas especificidades. Todavia, essas diferenças
não podem ser utilizadas como um instrumento de dicotomização, pois as realidades
rural e urbana encontram-se cada vez mais próximas.
Considerações finais A pesquisa ainda encontra-se em andamento, porém, a partir das leituras já realizadas
sobre a temática, considera-se que acreditar que essas realidades estão distantes e
10
opostas é tão arriscado quanto pensar que o urbano eliminou ou está por eliminar o
rural. O processo de globalização integrou o campo e a cidade e, conseqüentemente, o
rural e o urbano, trazendo um desafio aos pesquisadores que estudam a temática que
aborda a relação entre eles.
O desafio desta pesquisa - ainda em andamento - e de outras que abordam essa temática
consiste na tentativa de compreensão do processo de “criação de novas identidades
territoriais”, que se constituem em novas territorialidades dotadas de um hibridismo que
mescla o urbano e o rural.
Notas _________________ 1 É importante deixar claro que serão utilizadas as expressões relação cidade-campo e relação urbano-rural como respectivos sinônimos de relação campo-cidade e relação rural-urbano. Isso se justifica pelo fato de que alguns autores utilizam as primeiras expressões, enquanto outros as segundas. Não obstante essa diferença nas composições, a partir das leituras realizadas percebe-se que as expressões possuem os mesmos significados. Assim, as expressões relação cidade-campo e relação urbano-rural serão utilizadas por uma postura metodológica e pela opção de se privilegiar uma visão de análise que parte da cidade, destacando a visão da Geografia Urbana sobre o modo de vida rural presente nas cidades. Tal fato justifica-se pelo fato de que se percebe uma falta de análises acerca dessa temática por parte de pesquisadores da Geografia Urbana, já que a maior parte dos trabalhos produzidos são realizados por pesquisadores da Geografia Agrária/Geografia Rural, Sociologia, entre outros. 2 O presente artigo é parte das análises realizadas na pesquisa de doutorado que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Geografia, sob orientação da Profª. Drª. Beatriz Ribeiro Soares. A pesquisa encontra-se em andamento, por isso será realizada uma discussão teórica sobre a temática neste trabalho, já que ainda não há ainda resultados prontos a serem apresentados. 3 É importante destacar que o recorte espacial selecionado na pesquisa é a cidade. Todavia, para algumas análises será necessário considerar o município como um todo, como, por exemplo, quando ocorrer a contextualização das cidades selecionadas no âmbito do processo de modernização agrícola. Esse ocorreu na área rural dos municípios, porém, transformou as relações socioespaciais não apenas dessa área, mas também da cidade (sede do município). 4 Os municípios que compõem a microrregião de Uberlândia são: Araguari, Araporã, Canápolis, Cascalho Rico, Centralina, Indianópolis, Monte Alegre de Minas, Prata, Tupaciguara e Uberlândia (IBGE, 2012). 5 Os municípios que compõem a microrregião de Uberaba são: Água Comprida, Campo Florido, Conceição das Alagoas, Conquista, Delta, Uberaba e Veríssimo (IBGE, 2012).
Referências ABRAMOVAY, Ricardo. Funções e medidas da ruralidade no desenvolvimento contemporâneo. Texto para Discussão 702. Rio de Janeiro: IPEA, 2000. p. 1-37. ALENTEJANO, Paulo R. As relações campo-cidade no Brasil do século XXI. Terra Livre, São Paulo, v. 2, n. 21, p. 25-39, ano 18, jul./dez. 2003. BAGLI, Priscila. Rural e urbano nos municípios de Presidente Prudente, Álvares Machado e Mirante do Paranapanema: dos mitos pretéritos às recentes
11
transformações. 2006. 206 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Departamento de Geografia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2006. __________. Rural e urbano: harmonia e conflito na cadência da contradição. In: SPOSITO, M. E. B.; WHITACKER, A. M (org.). Cidade e campo: relações e contradições entre urbano e rural. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 81-109. GRAZIANO DA SILVA, José. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. HAESBAERT, Rogério. Da desterritorialização à multiterritorialidade. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. 9., 2001. Rio de Janeiro: ANPUR, 2001, p. 1769-1777. Anais... INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Produção Agrícola Municipal: 2010. Disponível em: <htpp://www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: jun. 2012. __________. Municípios que compõem as microrregiões de Araguari, Uberaba e Uberlândia. Disponível em: <htpp://www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: jun. 2012. LEFEBVRE, Henri. De lo rural a lo urbano. 3. ed. Barcelona: Península, 1978. __________. A cidade do capital. Tradução de Maria Helena Rauta Ramos e Marilena Jamur. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. MAIA, Doralice Sátyro. Tempos lentos na cidade: permanências e transformações dos costumes rurais em João Pessoa-PB. 2000. 360 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. MARQUES, Marta Inez Medeiros. O conceito de espaço rural em questão. Terra Livre, São Paulo, n. 19, p. 95-112. 2002. MOREIRA, Roberto José (Org.). Identidades sociais: ruralidades no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. RUA, João. A ressignificação do rural e as relações cidade-campo: uma contribuição geográfica. Revista da ANPEGE, Fortaleza, n. 2, ano 2, p. 45-66, 2005. __________. Urbanidades no rural: o devir de novas territorialidades. Campo-território: Revista de Geografia Agrária, Uberlândia, v. 1, n. 1, p. 82-106, fev. 2006. Disponível em: <http://www.campoterritorio.ig.ufu.br>. Acesso em: jun. 2012. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996.