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1 | 17 0 SNHCT ANAIS ELETRÔNICOS (Re)incorporando categorias nativas aos objetos etnográficos: releitura de uma coleção etnográfica por um antropólogo Ticuna BIANCA LUIZA FREIRE DE CASTRO FRANÇA [email protected] IFMG/Arcos 1. Introdução Este trabalho aborda a revisitação às coleções Ticuna do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional, no ano de 2014, prevista no projeto Memórias étnicas e museus etnográficos: uma releitura sobre o Setor de Etnologia do Museu Nacional/UFRJ, coordenado pelo Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira (PPGAS/Mu- seu Nacional). Dentre as muitas atividades do projeto foi prevista a vinda do, então, aluno da graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e indígena Ticuna, Salomão Inácio Clemente para auxiliar no levantamento docu- mental e exegese dos objetos da coleção formada por João Pacheco de Oliveira em 1981 para o Museu Nacional. Salomão também fez a interpretação dos dese- nhos nos tururís presentes nessa coleção. “[...] Na Amazônia, o líber (ou tapa) é conhecido sob a alcunha de tururi. É emprega- do pelos indígenas na indumentária cotidiana e, sobretudo, a ritual de dança, para fazer painéis decorativos para divisórias das malocas, escabelos, aventais pintados masculinos, tipoias, saquinhos, etc.” (RIBEIRO, Berta G, 1988, p. 189) Estas interpretações seriam anexadas junto à um catálogo que estava sendo confeccionado, como produto previsto no projeto, com a descrição museológica desses objetos somada às categorias nativas obtidas através de Salomão. Retomar esses objetos como documentos, buscou problematizar as cone- xões entre acervos patrimoniais e grupos étnicos, bem como, a importância da preservação contemporânea e para gerações futuras desses objetos e suas infor- mações. Uma comprovação disso, é que após o incêndio de setembro de 2018, mesmo com a perda da materialidade desses objetos seus registros ainda exis- tem digitalmente.

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(Re)incorporando categorias nativas aos objetos etnográficos: releitura de uma coleção etnográfica por um antropólogo Ticuna

BIANCA LUIZA FREIRE DE CASTRO FRANÇ[email protected]/Arcos

1. IntroduçãoEste trabalho aborda a revisitação às coleções Ticuna do Setor de Etnologia

e Etnografia do Museu Nacional, no ano de 2014, prevista no projeto Memórias étnicas e museus etnográficos: uma releitura sobre o Setor de Etnologia do Museu Nacional/UFRJ, coordenado pelo Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira (PPGAS/Mu-seu Nacional).

Dentre as muitas atividades do projeto foi prevista a vinda do, então, aluno da graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e indígena Ticuna, Salomão Inácio Clemente para auxiliar no levantamento docu-mental e exegese dos objetos da coleção formada por João Pacheco de Oliveira em 1981 para o Museu Nacional. Salomão também fez a interpretação dos dese-nhos nos tururís presentes nessa coleção.

“[...] Na Amazônia, o líber (ou tapa) é conhecido sob a alcunha de tururi. É emprega-do pelos indígenas na indumentária cotidiana e, sobretudo, a ritual de dança, para fazer painéis decorativos para divisórias das malocas, escabelos, aventais pintados masculinos, tipoias, saquinhos, etc.” (RIBEIRO, Berta G, 1988, p. 189)

Estas interpretações seriam anexadas junto à um catálogo que estava sendo confeccionado, como produto previsto no projeto, com a descrição museológica desses objetos somada às categorias nativas obtidas através de Salomão.

Retomar esses objetos como documentos, buscou problematizar as cone-xões entre acervos patrimoniais e grupos étnicos, bem como, a importância da preservação contemporânea e para gerações futuras desses objetos e suas infor-mações. Uma comprovação disso, é que após o incêndio de setembro de 2018, mesmo com a perda da materialidade desses objetos seus registros ainda exis-tem digitalmente.

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Diante do exposto, este trabalho visa analisar a pesquisa colaborativa de uma historiadora (em formação) trabalhando em busca de entender a vida social (APPA-DURAI, 2008) desse acervo, e um indígena antropólogo (em formação) que se de-bruça sobre um acervo formado em parte por sua própria família, construindo no-vos sentidos, retomando memórias e a situação etnográfica (OLIVEIRA, 1977; SILVA, 2009) de produção desses objetos. Dessa forma, coloca em evidência e analisa o trabalho colaborativo em museus, que deve ser pensado em uma perspectiva crí-tica, destacando as múltiplas historicidades dos objetos e parceria com os sujeitos indígenas que, até então, não estavam nos museus para além das vitrines.

2. Historicização radical das coleções etnológicas: uma proposta de pesquisa e curadoriaA partir do final dos anos 1990 até as primeiras décadas dos anos 2000, o

Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional (SEE/MN) apostou em uma proposta curatorial de organização museal, científica e antropológica alinhada a ideia de uma “historicização radical” dos objetos e imagens dos povos coloniza-dos (OLIVEIRA, 2008). Tal historicização é proposta pelo antropólogo João Pache-co de Oliveira (PPGAS/ Museu Nacional) atual curador do SEE/MN desde 1999, a fim de uma reconstituição dos

“Jogos de força e das lutas por classificações, dos desvendamentos das muitas his-tórias esquecidas e silenciadas, bem como da explicitação da individualidade dos personagens e a multiplicidade de suas orientações, resgatando também emoções e sentimentos (além de argumentos, estratégias e ideologias) ”. (OLIVEIRA, 2008, p.76)

O trabalho em desenvolvimento, com intenção de preservar e dar acesso ao acervo do setor tem início ainda na década de 1980, com a Prof.ª Maria Heloísa Fe-nelón Costa, então curadora do setor desde 1964, e retomado nos anos 1990/2000 por João Pacheco de Oliveira e sua equipe de técnicos/docentes. A principal marca dessa proposta curatorial é a colaboração de pesquisadores e consultores indíge-nas e não indígenas.

João Pacheco orientou, nessas duas primeiras décadas dos anos 2000, um conjunto de trabalhos acadêmicos (dissertações e teses) de pesquisadores in-dígenas e não indígenas, vinculados ao Museu Nacional. Esses trabalhos contri-buem para o processo de historicização das coleções do setor e também do uso crítico dessas coleções. Dentre eles, podemos citar: Fátima Nascimento (2009), que em sua dissertação procura dar uma visão integrada da formação da coleção etnográfica do Museu Nacional no século XIX, estabelecendo suas implicações na formação da Instituição. Nesse trabalho, a autora demonstra o estabelecimento das relações interinstitucionais pelos membros do Museu Nacional, facilitando a formação dessa coleção. E dá destaque aos meios de divulgação que ajuda-ram na formação dessa coleção. Santos (2011), estuda as relações entre museus, Antropologia e coleções etnográficas a partir da expedição de Roquette-Pinto

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à Serra do Norte, em 1912. A dissertação faz um processo de recuperação das trajetórias dos agentes formadores dessa coleção, trazendo esses agentes para o Museu Nacional e sua história.

Além desses, podemos citar trabalhos conexos, não necessariamente sobre o Museu Nacional, que é o caso de Roca (2010), que em sua tese identifica e analisa as imagens nacionalizadas sobre os indígenas dos atuais territórios brasileiros e argentinos, a partir de dois conjuntos iconográficos elaborados pelo artista-viajan-te alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) em ambos os países. O trabalho traz a questão do compartilhamento do tempo em museus etnográficos a partir dessas imagens que são abordadas enquanto portadoras de relações sociais, tor-nando-se objetos de pesquisa, podendo através das mesmas evidenciar a parti-cipação de atores sociais e esquemas ideológicos e projetos políticos concretos.

Para além das teses e dissertações, podemos citar dentre as atividades rea-lizadas pela atual curadoria do SEE/MN, o Seminário Experiências indígenas com museus e centros culturais. Organizado entre 15 e 17 de setembro de 2009, o seminário coordenado por João Pacheco de Oliveira foi resultado de uma ar-ticulação entre a Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural (SID/ Minc), o Ministério da Cultura e o Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e De-senvolvimento (LACED) do Museu Nacional, e era fruto de uma parceria entre o Museu Nacional e a SID/ Minc como financiadora.

O principal objetivo do seminário foi a criação e a operacionalização de uma rede de articulação entre museus etnográficos e centros culturais indígenas, vol-tada para fortalecer o protagonismo indígena na reflexão e na implementação de propostas de valorização e divulgação dessas culturas. O seminário, além de congregar indígenas de diferentes regiões do Brasil, coincidiu com a exposição Índios: os primeiros brasileiros, de curadoria de João Pacheco de Oliveira (SAN-TOS & OLIVEIRA, 2019).

A exposição realizada pela primeira vez em Recife, em 2006, contou com am-pla participação dos indígenas do Nordeste, cuja itinerância por Fortaleza (2008); Natal (2014); Rio de Janeiro (2010 e 2019); Córdoba, Argentina (2013); Salvador (2016 – 2017); e Brasília (2018) foi visitada por mais de 150 mil pessoas, com am-plo reconhecimento do público acerca dos povos indígenas do Nordeste.

Segundo Santos & Oliveira (2019), a experiência de reconstrução das múlti-plas mostras da exposição e a experiência do seminário, foram importantes espa-ços de gestação de ideias sobre formação de novas coleções, estratégias expo-sitivas e curadoria compartilhada, levando a confrontação dos legados coloniais nos museus a partir de uma perspectiva política da cultura e memória.

Um importante desdobramento disso, é a preparação do livro De acervos coloniais aos museus indígenas: Formas de protagonismo e de construção da ilusão museal, organizado por João Pacheco de Oliveira e Rita de Cássia Melo Santos (DCS/UFPA), publicado somente em 2019, mas, pensado a partir do início da dé-cada de 2010.

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O livro consiste em uma coletânea de artigos divididos em três partes: I. “Os pressupostos metodológicos”, II. “Os museus etnográficos como espaço político: ressignificações e possibilidades”, e III. “As experiências de museus indígenas em face dos desafios contemporâneos”.

Estes trabalhos abordam diversas problemáticas dentro da temática de mu-seus etnográficos, tendo por principal objetivo discutir a herança colonial nos museus e seus acervos, e formas para desconstruir discursos racistas e preconcei-tuosos, construindo espaços de memória e direitos políticos dos povos os quais são tratados nestes acervos. Estão incorporados aos debates temas como cura-doria compartilhada, repatriação digital, colecionismo de remanescentes huma-nos e a promoção de exposições dialógicas a partir de novos horizontes políticos.

A proposta de formulação desta coletânea, teve suas primeiras elaborações em 2009 motivadas pela realização do seminário Experiências indígenas com mu-seus e centros culturais e também, por conta da montagem da exposição Os Pri-meiros Brasileiros.

Além do seminário e da exposição, na gestação das ideias deste livro, segun-do Santos & Oliveira (2019), participa a relação estabelecida entre o Museu Nacio-nal e o Museu Magüta, que é o primeiro museu indígena do Brasil inaugurado em 1991 pelos indígenas Ticuna em parceria com antropólogos/ pesquisadores do Museu Nacional, com destaque para João Pacheco (OLIVEIRA, 2012). Este museu é exemplo de coletividade e é um espaço de mobilização política contribuindo para a causa Ticuna em várias instâncias, como a formação de professores indí-genas, associações relacionadas à saúde, valorização das mulheres e com atuação decisiva no processo de demarcação de terras. Atualmente, o Museu Magüta está sob a direção da importante liderança, educador e cantor indígena Ticuna Santo Cruz, desde maio de 2018. (FRANÇA, 2018)

A primeira diretoria da entidade foi integrada por João Pacheco de Oliveira, na qualidade de presidente; Maria Jussara Gomes Gruber, vice-presidente; Vera Maria Navarro Paoliello, secretária e Luiz Cesar Bartolomeu, tesoureiro. João Pa-checo de Oliveira atuou como presidente do Magüta até 1992, quando anunciou a decisão da equipe de pesquisadores de abandonar os postos de direção, que deveriam ser escolhidos pelos indígenas em votação. Os pesquisadores perma-neceriam apenas como assessores de projetos específicos (OLIVEIRA, 1999).

Diante do exposto, as teses e dissertações, o seminário, o livro e as relações do SEE/MN com museus etnográficos indígenas, que é o caso do Magüta, fazem parte desse empreendimento científico atribuído a proposta curatorial de histori-cização das coleções que vem se desenvolvendo a longo prazo, iniciada nos anos 1980 com o trabalho de Heloísa Fenelón e retomada na década de 1990, sendo reforçada nos anos 2000.

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3. (Re)visitando as coleções do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional A partir da proposta curatorial do SEE/MN, na primeira década dos anos

2000 iniciou-se um trabalho de requalificação das coleções do setor com o apoio de consultores e pesquisadores indígenas e não indígenas, com objetivo de pro-duzir objetos contextualizadores e explicativos sobre o acervo. O trabalho desen-volvido no setor também envolvia atividades de preservação do acervo como a catalogação, localização, higienização, registro digital e disponibilização virtual e impressa das coleções etnológicas de Ásia-Pacífico, África, coleções dos indíge-nas brasileiros e americanos, e de cultura popular existentes no museu.

Tais atividades foram possíveis devido ao envolvimento do setor em vários projetos em parceria com agências de fomento à pesquisa. Daremos especial atenção para os projetos: Conhecendo as coleções Ticuna do Museu Nacional, de 2013; Memórias étnicas e museus etnográficos: uma releitura sobre o setor de etno-logia do Museu Nacional/UFRJ, de 2014 a 2015; e o projeto Documenta Etnológica de 2016 a 2017, por eu ter participado de forma ativa neles na qualidade de pes-quisadora/bolsista e pelos mesmos terem direto envolvimento com as coleções Ticuna do SEE/MN, que foram meu principal objeto de pesquisa.

Considerado como um ponto inicial para a revisitação das coleções Ticuna do SEE/MN, o projeto Conhecendo as coleções Ticuna do Museu Nacional ocorreu de março a novembro de 2013 em parceria entre o Programa de Extensão da Univer-sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Proext/UniRio) e o SEE/MN, sob su-pervisão do curador João Pacheco de Oliveira e sua equipe de técnicos e docentes.

O projeto era coordenado pela Prof.ª Dr.ª Márcia Chuva (UniRio) e teve parti-cipação dos alunos da Licenciatura em História modalidade EaD da UniRio: Bianca Luiza Freire de Castro França, Priscila Terras e Eduardo dos Santos. Os alunos fo-ram supervisionados pela equipe de técnicos e docentes do SEE/MN. Se juntou à equipe desse projeto a, então, Professora/Tutora Dr.ª Rita de Cássia Melo Santos da disciplina Patrimônio Cultural no curso de Licenciatura em História EAD da UniRio (atualmente professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (DCS/ UFPA).

O projeto teve por objetivos promover e experimentar situações que en-volvessem diferentes sujeitos, agentes e públicos, promovendo impactos trans-formadores em todos os envolvidos, por meio da troca de conhecimentos e memórias acerca das coleções Ticuna contidas no Museu Nacional; e formar pro-fissionais aptos a atuarem em campos diversificados de trabalho, especialmente nas instituições de memória e patrimônio, como museus, secretarias de cultura, instituições de preservação do patrimônio cultural de forma ética, crítica e auto reflexiva. Durante o projeto foram realizadas atividades de rotina da reserva téc-nica junto ao acervo como: levantamento, catalogação e preservação das cole-ções Ticuna; atendimento ao público (pesquisadores e alunos); embalo e preparo de peças para a montagem da exposição Os Primeiros Brasileiros, em Córdoba (Argentina), em junho 2013.

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Foi por esse projeto que tive os primeiros contatos com o SEE/MN, a rotina de uma reserva técnica, o trabalho de pesquisa em acervos e os meus primeiros contatos com o acervo Ticuna, a história desse povo indígena e diálogos com João Pacheco de Oliveira.

Dentro das atividades do projeto comecei a realizar o levantamento das co-leções Ticuna presentes no setor, dando especial atenção às coleções formadas pelo etnólogo alemão Curt Nimuendajú, em 1941 e 1942. Esse levantamento ini-cial consistia em uma listagem dos 381 objetos coletados e pesquisa arquivística e bibliográfica sobre a coleção e seu coletor.

A partir desse levantamento, foi possível a escrita do artigo Relações de Al-teridade e Identidade nas Coleções Museológicas: Conhecendo a Coleção Curt Ni-muendajú/ Ticuna do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista publicado na revista Raízes e Rumos. O artigo apresenta o trabalho com as coleções no projeto e aborda as relações de identidade e alteridade construídas nas coleções muse-ológicas, propondo uma discussão sobre o papel dos museus enquanto lugar de memória e acumulação de símbolos, emoções e sentidos a múltiplos atores sociais. E foi com ele, que comecei a problematizar sobre a multiplicidade de nar-rativas possíveis dentro dos acervos etnológicos a partir das coleções Ticuna do Museu Nacional, e a relação do SEE/MN e sua curadoria com o Museu Magüta e o povo Ticuna.

O projeto Conhecendo as coleções Ticuna do Museu Nacional deu subsídios para continuação do trabalho com as coleções Ticuna do SEE/MN nos anos se-guintes, através de outro projeto com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

Em 2014, o projeto Memórias étnicas e museus etnográficos: releitura sobre o Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional/UFRJ, sob a coordenação de João Pacheco de Oliveira, buscou novas leituras para as coleções Ticuna do Museu Nacional, com especial recorte para a coleção formada pelo próprio antropólogo, em 1981. O projeto contava ainda com a minha participação, enquanto bolsista de iniciação científica da FAPERJ e estudante de História; e participação de Salomão Inácio Clemente (entre 20 de novembro e 10 de dezembro de 2014) como estagi-ário e estudante do curso de Bacharel em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM); e supervisão do corpo técnico e docente do setor.

O projeto previa levantamento bibliográfico e arquivístico, contando com consulta aos Livros de Tombo Geral do acervo; às fichas de catalogação e rela-tórios técnicos. As atividades previstas incluíram: a) A identificação e contextu-alização das coleções Ticuna do setor, gerando uma base de dados digitalizada em planilha eletrônica com dados das coleções formadas por: Curt Nimuendajú (1941 e 1942); Roberto Cardoso de Oliveira (1959 e 1962); João Pacheco de Oli-veira (1981); Mariza de Carvalho Soares (1975); e Jussara Gruber (1980 e 1983); c) A localização, exegese e fotografia das peças referentes à coleção formada por João Pacheco de Oliveira.

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Salomão participou do processo de exegese das peças pertencentes à coleção formada por João Pacheco de Oliveira, bem como, da interpretação das pinturas presentes nos tururís. O trabalho de Salomão consistiu também na correção de verbetes e expressões das descrições dos objetos nos Livros de Tombo e no auxí-lio ao processo de fotografia das peças. Sua vinda e a escolha da coleção formada por João Pacheco de Oliveira justifica-se pelo fato de Salomão ser filho de Santo Cruz, atual diretor do Museu Magüta.

Santo Cruz esteve presente durante todo o processo de pesquisa que deu origem à coleção formada por João Pacheco de Oliveira, quando o antropólogo esteve em campo no Alto Solimões em 1981. E esteve presente, também, durante os processos de demarcação de terras Ticuna na década de 1980, a fundação do Museu Magüta em 1988 e sua posterior refundação em 1991 (OLIVEIRA,2012). Durante os dez anos entre o primeiro projeto de formação de coleção até a con-solidação do Museu Magüta, Santo Cruz contribuiu e dialogou de modo bastante próximo à João Pacheco de Oliveira.

Durante esse período processou-se entre os Ticuna um fortalecimento de sua cultura material como símbolo do seu povo. Salomão participa desse proces-so por meio de memórias herdadas (POLLAK, 1989) - elementos não vivenciados pelos sujeitos diretamente, que são transmitidos por meio da memória dos fami-liares e do grupo social no qual o sujeito está inserido.

A minha participação consistiu no levantamento das coleções em planilha eletrônica (Excel) com dados sobre coletor, descrição do objeto, forma de aqui-sição, data de coleta, data de entrada no Museu Nacional e observações diversas acerca dos objetos. Esses dados foram obtidos através de consulta aos Livros de Tombo. Depois foi feita a comparação do levantamento com o acervo propria-mente dito, essa parte continuou com auxílio de Salomão que fez o reconheci-mento dos objetos e a interpretação dos usos nativos destes, colocando essas categorias nativas ao lado das museológicas. Foi feita a fotografia dos objetos identificados nos armários da reserva técnica e seu registro em um catálogo sim-ples que foi entregue como produto final à FAPERJ.

A partir desses dados levantados, foi possível no ano seguinte, 2015, dar continuidade à pesquisa arquivística e bibliográfica (consultei fichas de cataloga-ção do SEE/MN, os Livros de Tombo, documentos administrativos, relatórios de projetos de pesquisa e correspondências institucionais) sobre o processo de for-mação de uma coleção de objetos Ticuna para o Museu Nacional, em 1981, pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira. Este tema, foi abordado em minha mo-nografia de conclusão de curso, apresentada à Escola de História da UniRio em dezembro de 2015. Com o título: De mercadoria a Patrimônio Nacional: formação de uma coleção Ticuna no contexto da antropologia brasileira (1979 - 1981), a mo-nografia foi orientada pela Prof.ª Dr.ª Rita de Cássia Melo Santos.

Essa monografia investigava a formação de coleção por João Pacheco de Oli-veira em 1981, durante trabalho de campo para o subprojeto “Corpus Etnográfico

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do Alto Solimões”, para o SEE/MN. E propunha analisar a produção e circulação de objetos indígenas e o conceito de arte e tecnologia atribuídos a estes objetos. Problematizava a (re)abertura dos museus para a participação dos indígenas nos processos de musealização e nas novas práticas museológicas e a revisitação de coleções etnográficas pelos indígenas.

Entre outubro de 2016 e março de 2017, participei já graduada e na condição de bolsista auxiliar de pesquisa do projeto Documenta Etnológica. Atendendo ao Edital MinC/UFPE Povos originários do Brasil, este projeto propôs uma etapa do trabalho com o acervo do SEE/MN, voltado especialmente para a qualificação de certos conjuntos de coleções indígenas; para sua disponibilização virtual tanto em inventários gerais, quanto em formatos editados como livretos de introdução ou exposições virtuais.

Coordenado pelo Prof. Dr. Edmundo Pereira (PPGAS/Museu Nacional), com curadoria de João Pacheco de Oliveira e participação da equipe de técnicos e docentes do SEE/MN, e pesquisadores/consultores indígenas e não indígenas o projeto elegeu três coleções representativas do histórico de colecionamento do museu, que traduziam e materializavam processos longos de interação entre po-vos indígenas, pesquisadores e colecionadores de objetos múltiplos; acesso pri-vilegiado e testemunho de processos históricos passados por grupos indígenas (tecnológicos, estéticos e políticos); e de formas de aproximação e entendimento científico. Tais coleções são: as coleções Ticuna, com aproximadamente 1000 pe-ças; as coleções Karajá, com aproximadamente 1200 peças; e as coleções Guarani, com aproximadamente 400 objetos.

O trabalho com estas coleções permitiu a recuperação de processos de co-lecionamento que vão dos viajantes do século XIX, passando pelas Comissões Militares, do início do século XX, à formação e consolidação da Etnologia como campo científico no Brasil.

Participei ativamente da pesquisa arquivística e bibliográfica sobre as cole-ções Ticuna do SEE/MN, com ênfase nas coleções formadas ao longo do século XX por Curt Nimuendajú (1941 e 1942); Roberto Cardoso de Oliveira (1959 e 1962); Mariza de Carvalho Soares (1975); Jussara Gruber (1979 e 1980) e João Pa-checo de Oliveira (1981). Nesta pesquisa, pude recuperar os processos de forma-ção dessas coleções e as trajetórias de seus coletores. Tal tema foi abordado em minha dissertação de mestrado defendida em dezembro de 2018 no Programa de Pós-graduação em Preservação de Acervos de Ciência e Tecnologia do Museu de Astronomia e Ciências Afins (PPACT/MAST).

A dissertação com título “Mil peças”: coleções Ticuna do Museu Nacional no contexto da Antropologia (séculos XX - XXI) orientada pela Prof.ª Dr.ª Heloísa Ma-ria Bertol Domingues (MAST) e coorientada por João Pacheco de Oliveira, aborda a formação de coleções de objetos dos indígenas Ticuna para o Museu Nacional do Rio de Janeiro, no contexto da Antropologia do século XX. Divulga e analisa os dados levantados sobre as coleções Ticuna do Museu Nacional formadas nos

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séculos XIX e XX, contextualizando e analisando a formação dessas coleções, res-gatando informações sobre seus coletores e aspectos quantitativos e qualitativos das mesmas. Analisa a coleta, guarda e exibição de objetos Ticuna, em especial as máscaras rituais e os tururís, no contexto da Antropologia do século XX e dos trabalhos que vinham sendo realizados no SEE/MN no XXI, traçando uma traje-tória, da aldeia ao museu, para esses objetos, a partir do conceito de semióforo (POMIAN, 2010).

Esta dissertação se trata de um dos últimos registros das coleções Ticuna do Museu Nacional antes do incêndio de setembro de 2018 e por sua importância, foi recomendada pela banca de aprovação, composta pela Prof.ª Drª. Christina Helena da Motta Barboza (MAST); Prof.ª Dr.ª Magali Romero Sá (COC/ Fiocruz); Prof.ª Drª. Maria Esther Alvarez Valente (MAST); e Prof.ª Drª. Rita de Cássia Melo Santos (DCS/ UFPA), sua publicação como livro.

4. Memórias étnicas e museus etnográficos: uma releitura sobre o Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional/ UFRJVoltando ao trabalho colaborativo com Salomão no projeto Memórias ét-

nicas e museus etnográficos: releitura sobre o Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional/UFRJ, é preciso frisar o caráter inaugural deste projeto dentro dos trabalhos com colaboração de consultores indígenas no SEE/MN. A ideia de somar categorias e interpretações nativas aos objetos museológicos, problema-tizando os significados que uma pessoa indígena aponta a partir de suas memó-rias, herdadas (POLLAK, 1989) ou empíricas, era algo novo que não estava sendo trabalhado pelos outros pesquisadores envolvidos com o SEE/MN. O trabalho de historicização dos acervos ainda não passava pela colaboração da narrativa indí-gena acerca dos objetos produzidos por seu povo e musealizados. E se torna uma continuação da problematização sobre a multiplicidade de narrativas possíveis dentro dos acervos etnológicos iniciada em 2013.

E quais são os significados atribuídos por Salomão aos objetos Ticuna do SEE/MN a partir das memórias herdadas de seu povo? Salomão traz os usos na-tivos e o emprego social desses objetos indígenas que foram musealizados. Traz os ritos, as lendas e os mitos por traz desses objetos e seus usos cotidianos pelos Ticuna. São novas narrativas possíveis vocalizadas através desses objetos.

A coleção formada em 1981, é um dos produtos do subprojeto Corpus Et-nográfico do Alto Solimões, que sob coordenação do antropólogo, integrava o projeto Etnografia e Emprego Social da Tecnologia do SEE/MN em convênio com a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), de 1979 a 1981, e era coordenado pela Prof. ª Heloísa Fenelón. Tinha por objetivo aperfeiçoar as atividades do setor e transformá-lo em um grande centro de pesquisas etnográficas. Esta coleção é composta por 118 objetos de variados tipos: colares, anéis, pulseiras, bolsas, redes, tururís e uma máscara ritual, e foi descrita nos relatórios técnicos por João

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Pacheco, como peculiar por ser composta de objetos de caráter mercadológico, produzidos pelos artesãos Ticuna para vender aos “brancos”.

O trabalho com a reincorporação de categorias nativas consistiu na consulta à descrição museológica dos objetos no Livro de Tombo somada ao registro da descrição nativa desses objetos com o nome nativo do objeto (em Ticuna) e o emprego social deste entre os Ticuna. Por exemplo, em um cesto (pacará), a des-crição museológica, no Livro de Tombo constava como: “Cesto Pacará. Adquirido em Letícia.– Ticuna/ Alto Solimões. Coletor João Pacheco de Oliveira – Coleta: fev. /1981”. A descrição nativa feita por Salomão foi: “Cesto (pacará) serve para guar-dar objetos, roupas e também farinha. ”

Outro exemplo que pode ser citado, é da interpretação do uso cerimonial de anéis de coco pelos Ticuna. No Livro de Tombo constava: “Anel de coco de murumuru com chapa de metal. Artesã: Luzia Joaneiro. Nação: Saúva – Ticuna / Alto Solimões. Coletor: João Pacheco de Oliveira – Coleta: fev/1981.”. O significa-do trazido por Salomão é: “Anel serve para saber quem é comprometido (a).” Ou ainda, o uso por gênero de pulseiras, que no Livro de Tombo constam: “Pulseira de criança. Artesão: Martim José Saraiva. Vendaval. Nação: onça. Feita de coco de tucumã – Ticuna / Alto Solimões. Coletor: João Pacheco de Oliveira – Coleta: fev/1981.”. E Salomão descreve como: “Pulseira é usada somente pelas meninas para identificar a sua feminilidade e para dar sorte.”. No levantamento realizado, ambas descrições foram colocadas lado a lado para fins de documentação.

Durante o trabalho de levantamento e exegese da coleção formada por João Pacheco de Oliveira, um momento foi muito importante para a problematização de alguns objetos: a interpretação dos desenhos nos tururís. Este trabalho de in-terpretação veio de um episódio no qual João Pacheco comentou com Salomão sobre um tururí que ficava na Exposição da Sala de Etnologia do Museu Nacional e que tinha um desenho de um homem armado (FRANÇA, 2018). Quando mos-trada a foto para Salomão, ele esclareceu que se tratava, na verdade, do mito Ticuna para explicar a formação das crateras lunares (manchas na lua).

“Este desenho no tururí conta a história do surgimento da lua. Antigamente, a noite somete as estrelas eram encarregadas de iluminar o céu. Mas elas não davam conta de iluminar todo o céu e a noite continuava muito escura.

Uma família Ticuna tinha um casal de filhos adolescentes. O menino se apaixonou pela irmã e à noite tentava se deitar com ela. Porém, mesmo não sabendo quem tentava se deitar com ela toda noite, ela não permitia.

Uma noite, ela preparou tintura de jenipapo para descobrir quem tentava se deitar com ela. Quando o rapaz investiu, ela passou a tintura em seu rosto no meio da es-curidão noturna. Ele assustado correu rapidamente.

Na manhã seguinte, ela olhou no rosto de todos os rapazes que passavam e nenhum estava com o rosto pintado de jenipapo. Porém, ela soube que seu irmão estava de-saparecido e desconfiou de seu sumiço.

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O irmão com vergonha de ser descoberto correu como um raio até a meia noite, e subiu como luz brilhante para o céu, transformando-se na lua, para não descobrirem que ele tentava se deitar com a própria irmã. Por isso, hoje vemos manchas em algu-mas partes da lua, são as manchas de jenipapo. ”

A partir disso, surgiu a ideia de Salomão interpretar os desenhos dos 13 turu-rís presentes na coleção formada por João Pacheco. Tais interpretações seriam anexadas ao catálogo que seria confeccionado. Um exemplo de tururí interpre-tado por Salomão foi o com desenhos de flores, ave e macaco. Na descrição no Livro de Tombo constava: “Tururí com desenhos de flores, ave e macaco. Artesão: Pancho Jagurú. De Belém do Solimões (lado católico). Nação Arara. Feito para venda – Ticuna / Alto Solimões. Coletor: João Pacheco de Oliveira – Coleta: fev. /1981. Setor de Etnologia Museu Nacional/ UFRJ. ”

Ao interpretar o mito que era contado no desenho, Salomão fez a seguinte descrição nativa:

“As flores, ave e macaco tem um significado positivo, na história Ticuna: significam harmonia, prosperidade e conquista. Cada um desses animais tem sua função na terra: o macaco tem função de proteger as flores, a ave de florescê-las, e as flores, por sua vez, tem a função de trazer mais vida para a terra. “

Os tururís interpretados por Salomão, através de seus desenhos (suportes vi-síveis ou observáveis), transmitiam um significado, dessa forma, não eram apenas objetos visíveis, mas referiam-se a um destinatário externo como um significado invisível que é suposto por ele – o que seria significado pelos estudiosos dos ob-jetos como um semióforo (POMIAN, 2010).

Para o indígena, contudo, esse objeto constitui uma entidade real no intelec-to daquele que o observa e interpreta. Quando Salomão interpreta os desenhos nos tururís, até certo ponto, depende do seu conteúdo e estados de circunstân-cias internas, ou seja, de suas experiências e categorias de vivência enquanto indígena Ticuna naquele momento.

Mas, não apenas quando interpretado por Salomão, este é um semióforo. Por aqueles que o preservam, o Museu Nacional, também é um semióforo, um objeto visível cheio de significado, que por isso é preservado. Portanto, um mes-mo objeto em vários contextos recebe classificações e significados diferentes.

5. Considerações FinaisAnalisar o trabalho de revisitação das coleções Ticuna do Museu Nacional,

seis anos depois e após o incêndio de setembro de 2018, quando desses objetos restaram os registros em trabalhos acadêmicos e arquivos digitais não é uma tarefa fácil, mas importante para pensar as possibilidades de pesquisa e trabalho com acervos etnográficos.

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Este trabalho, possibilitou a análise da história do SEE/MN e o levantamento das boas práticas que estavam sendo realizadas para a preservação e acesso ao acervo geral. O trabalho com as coleções Ticuna possibilitou a análise do contex-to sócio histórico de formação, mas também o registro e memória destes objetos, do povo que os produziu, dos cientistas que os coletaram, da instituição para qual trabalharam e da ciência que produziram ao longo do tempo.

Os Ticuna configuram o povo indígena mais numeroso da região Amazônica e possuem sua história marcada pela violência de seringueiros, pescadores e ma-deireiros na região do Alto Solimões. O acervo do SEE/MN abarcava grande parte da História e representação cultural desses indígenas e também documentava as tecnologias empregadas ao produzirem tais objetos

Estes objetos formaram um dos mais significativos conjuntos de artefatos do Museu Nacional, não só quantitativamente, mas qualitativamente, reunindo itens da cultura material dos Ticuna em um vasto período da história do grupo. As primeiras exposições e mostras permanentes do museu já registravam a presença de objetos Ticuna, ao lado de outras etnias habitantes das regiões próximas às vias fluviais de penetração da Amazônia.

As coleções de objetos dos indígenas Ticuna possuíam um vulto numérico beirando as mil peças (FRANÇA, 2018), somavam entradas de peças da segunda metade do século XIX até a década de 1980. Essas coleções foram formadas pelas atividades de viajantes, naturalistas, etnólogos e antropólogos, sendo oriundas, também, de outras instituições; de ações militares; de projetos de intervenção no espaço; e de doações do Império. Prevalece, no século XX, a atuação dos an-tropólogos e pesquisadores, vinculados ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional.

A revisitação marcou uma atividade inaugural com coleções no Museu Na-cional: a parceria com um indígena que traz categorias nativas para leitura e registro dos objetos de sua etnia existentes no museu. O trabalho colaborativo com Salomão, enquanto indígena Ticuna e antropólogo em formação, é muito singular por que essa experiência de revisitação nativa das coleções etnográficas do SEE/MN não foi replicada, até o momento. E um desdobramento interessan-te, é que após essa experiência Salomão passou a trabalhar com acervos, numa perspectiva antropológica. Salomão, hoje mestrando do curso de Pós-graduação em Antropologia Social da UFAM, trabalha com pesquisa em acervos de forma ativa no Museu Magüta.

O trabalho colaborativo em museus deve ser pensado em uma perspectiva crítica, destacando as múltiplas historicidades dos objetos e parceria com os su-jeitos indígenas que, até então, não estavam nos museus para além das vitrines.

A partir da revisitação e dos levantamentos bibliográficos e arquivísticos, foi possível traçar um trânsito/ vida social (APPADURAI, 2008) para os objetos da coleção formada por João Pacheco, da aldeia para o museu e o inverso, das ca-tegorias museológicas para as nativas. Estes objetos serviram para a construção

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e afirmação de uma identidade e memória Ticuna, na década de 1980, mas, tam-bém, no começo dos anos 2000 em um novo contexto com novas demandas políticas e culturais.

Ao serem musealizados, estes objetos recebem outras categorias e passam a ser considerados patrimônio cultural em reservas técnicas e vitrines no Museu Nacional. A revisitação possibilita o acesso dos povos objetificados nas narrativas museológicas de enfim tornarem-se sujeitos dos sentidos atribuídos a esses ob-jetos. Por isso, tal associação dos indígenas às práticas interpretativas de coleções promove a desconstrução da visão museológica e reconstrói uma nova percep-ção, na qual os objetos são suporte de um discurso identitário. Daí a importância da análise e replicação desse trabalho sempre que possível, não só no Museu Nacional, mas nos museus etnográficos pelo Brasil.

6. BibliografiaAPPADURAI, Arjun (Org.). A Vida Social das Coisas: As mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói (RJ): EdUFF, 2008.

FRANÇA, Bianca Luiza Freire de Castro. “Mil peças”: coleções Ticuna do Museu Nacional no contexto da Antropologia (séculos XX - XXI). 2018. Dissertação (mestrado) – Curso de Preservação de Acervos de Ciência e Tecnologia, PPACT, Museu de Astronomia e Ciências Afins, Rio de Janeiro, 2018.

___________________________________; SANTOS, Rita de Cassia Melo. C. Trajetórias de um tururí Ticuna: de itens de comércio a dispositivos de memória e identidade étnicas. Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 31, p. 64-76, 2018. Disponível em:< http://revista.arquivonacional.gov.br/index.php/revistaa-cervo/article/view/869>. Acesso em: 12/07/2020

__________________________________. Do comércio a Patrimônio Nacional: forma-ção de uma coleção Ticuna no contexto da Antropologia brasileira (1979 - 1981). 2015. Monografia de Licenciatura em História - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

__________________________________. Relações de Alteridade e Identidade nas cole-ções museológicas: conhecendo a coleção Curt Nimuendajú/ Ticuna do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Raízes e Rumos, Rio de Janeiro, v. 1, p. 10 -17, 2013.

NASCIMENTO, Fátima Regina. A formação da coleção de indústria humana no Museu Nacional, século XIX. 2009. (Tese Doutorado em Antropologia) - UFRJ, Rio de Janeiro. 2009.

OLIVEIRA, João Pacheco de; SANTOS, Rita de Cássia Melo (Orgs.). De acervos coloniais aos museus indígenas: formas de protagonismo e de construção da ilusão museal. João Pessoa: Editora da UFPB, 2019. Disponível:< http://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/book/597>. Acesso em: 12/07/2020

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OLIVEIRA, João Pacheco. As facções e a ordem política em uma reserva Ticuna. 1977. Dissertação (Mestrado em Antropologia). UnB, Brasília, 1977.

____________________. A refundação do Museu Magüta: etnografia de um prota-gonismo indígena. In: MAGALHÃES, Aline Montenegro & BEZERRA, Rafael Za-morano (Orgs.). Coleções e colecionadores. A polissemia das práticas. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2012. Disponível em:< http://jpoantropologia.com.br/pt/wp-content/uploads/2018/06/refundacao_maguta_JPO.pdf>. Acesso em: 12/07/2020

____________________. O retrato de um menino Bororo: narrativas sobre o destino dos índios e o horizonte político dos museus, século XIX e XXI. Pará: Tempo, p. 73-99, 2008. Disponível em:< https://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a06.pdf>. Acesso em: 12/07/2020

____________________. Uma trajetória em Antropologia (depoimento). O ofício do etnógrafo e a responsabilidade social do cientista. In: Id. (Orgs). Ensaios em An-tropologia Histórica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. p. 211-263.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 03-15, jun. 1989. Disponível em:< http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>. Acesso em: 12/07/2020

POMIAN, Krzystof. História cultural, história de los semióforos. Xalapa: AL FIN LIEBRE EDICIONES DIGITALES, 2010. Disponível em: <http://www.alfinliebre.blo-gspot.com.br/ >. Acesso em: 25 de maio de 2020.

ROCA, Andrea Cláucia Marcela. Os Sertões e o Deserto: Imagens da Naciona-lização dos Índios no Brasil e na Argentina na Obra do Artista Viajante J. M. Rugendas. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010

SANTOS, Rita de Cassia Melo. No “coração do Brasil”: Roquette Pinto e a ex-pedição à Serra do Norte (1912). 2011. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), PPGAS/Museu Nacional - UFRJ, Rio de Janeiro, 2011.

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