reflexoes sobre cotidiano na sala de aula

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10 ANO VI Nº 22 JUL/AGO 2002 Capa Lino de Macedo Ilustrações: Mário Röhnelt Reflexões sobre o cotidiano na sala de aula pat22-10-17.p65 12/4/2005, 15:57 10

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dministrar o cotidiano na sala de aula tornou-seum grande problema para professores e alunos.Indisciplina, dispersão, inconveniência, confu-

sões, dificuldades de todo tipo perturbam a realizaçãodas propostas ou das tarefas pedagógicas. O sentimen-to é de perda de tempo, caos espacial e descuido comobjetos escolares, falta de sentido das tarefas e relaçõesentre pessoas marcadas pela indiferença ou pela negativi-dade. O sentimento é de incompetência, insuficiência edesânimo. Penso que uma das razões para isso é queainda estamos marcados pela imagem de uma escola ide-al, sonho de realização de todos nós, em que alunos,dóceis e gratos aos seus professores, vão lá para apren-der e serem felizes. Graças a isso, os professores podemdedicar-se preferencialmente ao ensino das matérias e àavaliação do que foi aprendido pelos alunos. Pensamosque tudo isso foi talvez possível um dia e ainda se realizahoje em algumas escolas. Porém, para tanto, o preço aser pago pelos alunos é o de conviver e aprender na es-cola de um modo condicionado: se não obedecem àsregras, se não aprendem o mínimo, se não aceitam acultura da escola, então são excluídos e reprovados.

E se a escola tornar-se incondicional, necessária paratodas as crianças? Ou seja, essa imposição é impossívelem uma escola compulsória, que se quer para todas ascrianças e que não pode mais selecionar e garantir apermanência usando a exclusão e a repetência comoestratégias de controle de sua qualidade. No entanto,como garantir o acesso à escola e um percurso nos anosde escolarização básica de modo contínuo e, se possí-vel, significativo? Sabemos que, se o acesso escolar estácada vez mais garantido, o cotidiano em sala de aulamostra o quanto ainda estamos distantes das outras ex-pectativas (percurso até o final, convivência e aprendiza-gem significativas).

Nossa hipótese é de que dar ao cotidiano na sala deaula o mesmo tratamento disciplinar que temos dadoou devemos dar ao ensino e à aprendizagem de lín-guas, matemática, ciências e artes pode ser um cami-nho para a boa realização dessa escola, agora para to-

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Dar ao cotidiano na sala de aulao mesmo tratamento disciplinarque temos dado ou devemos darao ensino e à aprendizagem delínguas, matemática, ciências eartes pode ser um caminho paraa boa realização da escola para todos.Para isso, é necessário desenvolvermoscompetências e habilidadesrelacionadas às categoriase aos modos de ser do realem sua expressão diária.

dos. Para isso, é necessário desenvolvermos competên-cias e habilidades relacionadas às categorias e aos mo-dos de ser do real em sua expressão diária. Por essa ra-zão, pretendemos neste artigo refletir sobre a importân-cia do desenvolvimento de um conjunto de habilidadessobre três pares fundamentais para uma vida cotidianaescolar bem-sucedida: espaço e tempo, objetos e tare-fas, bem como nós mesmos e as outras pessoas.

No espaço e no tempo, estão os objetos com os quaisrealizamos as tarefas escolares e o meio onde convive-mos e vivemos, quaisquer que sejam as formas e os sen-tidos dessas realizações. Para lidar bem com o espaço,temos que desenvolver habilidades, ou seja, coordenarnossas ações de modo significativo e funcionalmentebem-sucedido. Tais ações podem ser as seguintes: guar-dar, encontrar, devolver, dispor, localizar, esquecer. Ondeguardar os objetos (coisas, pensamentos, palavras, de-senhos, sentimentos)? Como se organizar no espaço doscadernos, das carteiras, das mochilas, de nosso corpo epensamento, de nossa sala de aula ou escola? Ondeencontrá-los e devolvê-los depois de usados? Como epor que dispor o espaço de distintas maneiras, direçõesou sentidos? Como tratá-lo como “caixas” pequenas ougrandes que contêm os objetos e, ao mesmo tempo,como campo aberto, livre, reversível, infinito e disponí-vel para todas as possibilidades? Como “esquecer” o queestá fora do espaço durante um certo acontecimento eocupar-se, de modo concentrado e paciente, com aqui-lo que interessa no momento? Como tratar o espaçocomo o que está entre as coisas e, portanto, como umvazio que as separa e as localiza dentro, fora, perto, dis-tante, em cima, embaixo?

Para lidar bem com o tempo, temos que desenvolverhabilidades, hoje mais do que nunca fundamentais:agendar, estimar, antecipar, selecionar ou dar priorida-de, lembrar. As ações graças às quais realizamos tarefasduram um tempo e sucedem-se em uma certa ordem,isto é, compõem narrativas. Porém, para sermos bem-sucedidos nesses acontecimentos, temos que reservar,dispor, organizar um tempo para eles. Tempo que ne-cessita ser calculado, querido. Se o espaço é reversível,se nele podemos ir e vir de muitos modos, o tempo éirreversível, expressa um fluxo contínuo, sem volta oudevolução. Como decidir e antecipar coisas que valem apena? Como não desperdiçar o tempo? Como se orga-nizar e se relacionar com o tempo das máquinas, dacidade, das tarefas com prazo marcado? Se o tempo nãovolta, como selecionar ou dar prioridade ao que mereceser feito? Como não esquecer, isto é, lembrar, atualizaras coisas que foram feitas ou que devem ser feitas? Comose organizar, respeitando a presença eterna e contínuado tempo, mas dividindo-o como se pudesse ser tratadoem termos de hoje, amanhã ou ontem? Como usar otempo das máquinas (do relógio, por exemplo) ou danatureza para regular nossas ações? Como realizar a vidacomo projetos, produtos ou bens que, por querermosdepois, definem e organizam nosso aqui e agora?

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As habilidades relacionadas ao espaço e ao tempo,antes mencionadas, complementam-se indissociavelmen-te com as habilidades que se referem às tarefas ou àsações que realizamos com objetos. Livro, caderno, lápis,quadro-negro, giz, computador, vídeo, calculadora, jo-gos, pincel, tinta, bola, mochila, banheiro, cadeira, mesa,sala, pátio são objetos escolares. Com eles praticamos aleitura, a escrita, o desenho, as contas, a pintura, a músi-ca, o esporte, lavamos as mãos, bebemos, urinamos, bri-gamos, rimos, vivemos nossa vida, aprendemos na esco-la, convivemos com nossos colegas e nos relacionamoscom nossos professores. Os objetos são as tecnologiasdesenvolvidas pela ciência e oferecidas pelas empresasao mercado educacional. Cuidar, preservar, classificar, re-cuperar, escolher, utilizar, limpar, abrir, fechar, guardarsão habilidades fundamentais, pois presidem as relaçõesentre objetos, tarefas e pessoas. Depois de usados, tor-nados obsoletos ou insuficientes, o que fazemos comesses objetos? Temos sido pouco reflexivos e irresponsá-veis com os recursos e os objetos escolares. Não vemossentido nas tarefas escolares que realizamos por seu in-termédio. A atitude do professor para com os objetos es-colares é fundamental, pois ele é uma referência para osalunos. Como ser cuidadoso, habilidoso e gentil com osobjetos escolares? Não basta poder usar os objetos ourecursos pedagógicos, é necessário querer e saber usá-losbem. Como reivindicar objetos de melhor qualidade e emquantidade suficiente para a realização das tarefas?

Os objetos escolares são alguns dos meios ou recur-sos que utilizamos para realizar as tarefas. O que são astarefas escolares? Como restituir seu sentido? Como de-senvolver habilidades para a boa realização de uma tare-fa? Pensamos que algumas dessas habilidades são asseguintes: valorizar, ser responsável, planejar, definir, de-senvolver estratégias ou esquemas de procedimento parasua boa realização, envolver-se, comprometer-se, tornar-

se autônomo, compreender sua razão. Hoje, o grandedesafio no cotidiano da sala de aula é saber propor tare-fas significativas, desafiadoras, realizáveis. Tarefas nasquais a superação dos obstáculos implica aprendizagemdiferenciada e avaliação formativa. Tarefas que requeremobservação, regulação, e que desenvolvem sentimentode domínio e participação. Tarefas compartilhadas, cole-tivas e, ao mesmo tempo, singulares e diversificadas. Ta-refas que comunicam sentido e expressam interesses co-muns, que solicitam tomadas de decisão e argumenta-ção em favor de sua proposição e realização. Tarefas quecolocam situações-problema, cuja execução exala sabore saber. Tarefas que valem a pena.

Para concluir, falta-nos algum comentário sobre o úl-timo par que dá sentido ao cotidiano escolar. Ele se refe-re ao relacionamento que, no dia-a-dia, mantemos comnós mesmos e com as outras pessoas. Como são as rela-ções no miúdo de cada gesto entre crianças, professorese alunos ou colegas? O que elas promovem ou dificul-tam em nossas relações com os aspectos já menciona-dos? Como respeitar e possibilitar que alunos e professo-res possam ter voz, dizer e assumir suas hipóteses, seuspensamentos e seus sentimentos? Como recuperar nos-sa auto-estima, a importância sociocultural de nossa pro-fissão e conquistar melhores condições de trabalho? To-das as crianças agora podem e devem estudar na esco-la. Mas isso só terá sentido se elas desejarem aprender,se não forem indiferentes ou negativas com as pessoasde sua classe. Indisciplina, dispersão e preguiça pertur-bam a realização de tarefas escolares. Inconveniência,desrespeito e maledicência perturbam as relações comas pessoas. Como nos tornarmos mais convenientes ecuidadosos? Como cultivarmos virtudes que nos tornamdignos de nós mesmos e das outras pessoas? Respeitar,compartilhar, cooperar, reconhecer, conviver e cuidar sãohabilidades fundamentais. São elas que qualificam e dãosentido ao nosso cotidiano relacional. Hoje, na escola éonde passamos muitos anos de nossa vida, onde passa-mos uma parte importante de nosso dia. As pessoas denossa escola, além das pessoas de nossa família, de nos-so bairro ou trabalho, são talvez as mais significativas denossa vida. É o pequeno e aparentemente insignificantede cada gesto, palavra ou sentimento que tece as basespara uma relação mais amorosa ou odiosa. Como o pro-fessor organiza e favorece diferentes relações em sala deaula? Como distribui as crianças em uma atividade de

Se o tempo não volta, comoselecionar ou dar prioridade

ao que merece ser feito?

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grupo? Como faz suas intervenções? Como olha, vê, sen-te e fala com cada criança? Como coordena valores eregras que disciplinam a vida em comum? Como lidacom problemas de relacionamento?

Voltemos às considerações iniciais de nosso texto. Sãomuitas as queixas que professores e alunos fazem de suavida na escola. Muitos estão insatisfeitos, apesar de reco-nhecerem sua importância para nossa formação. Nossa hi-pótese é de que um dos caminhos para a superação dissoé desenvolvermos competências e habilidades relacionadasao cotidiano escolar. Acreditamos que, se tratarmos o dia-a-dia dessa instituição com a mesma seriedade e com o mes-mo rigor com que investimos no aprendizado das matériasescolares; se soubermos coordenar o ensino dos conteú-dos das disciplinas com o desenvolvimento de competênci-as e habilidades relacionadas à vida cotidiana, então, quemsabe, nosso trabalho ganhará mais sentido.

Imaginemos, para terminar, uma situação tão comumhoje na escola e duas atitudes frente a ela. Um professorprepara uma aula, mas só consegue trabalhar metadeda matéria, pois a outra parte do tempo foi gasta tentan-do obter a atenção dos alunos, resolvendo problemasrelacionais, organizando coisas, explicando assuntos não-vinculados ao tema, esperando as crianças voltarem dobanheiro ou encontrarem os materiais ou os recursos pararealizar as tarefas propostas. Podemos reagir a essa situa-ção, no mínimo, de dois modos. De um lado, com umsentimento de fracasso, de crítica às crianças e às suasfamílias, de desinteresse e desgosto pela profissão esco-lhida, de desânimo pela violência social, de indisciplina einconveniência das pessoas, de desestímulo pela insufi-ciência e pela obsolescência dos recursos pedagógicosdisponíveis, de crítica negativa às novas políticas educa-cionais. Em uma palavra, nessa perspectiva, o professorsente que só pôde dar meia aula e que gastou ou des-perdiçou metade de seu tempo fazendo coisas desagra-

dáveis, sem sentido, que lhe impedem de trabalhar eque frustram suas expectativas. De outro lado, o profes-sor pode supor que nessa aula trabalhou dois temasfundamentais para a promoção do desenvolvimento deseus alunos. Um desses temas refere-se à orientação deestudos, ao planejamento das atividades, à discussãosobre atitudes, valores e normas de convivência em salade aula, à melhor utilização do espaço e do tempo, aocuidado e à habilidade no uso dos recursos e dastecnologias. O outro tema refere-se ao ensino e à aprendi-zagem dos aspectos estudados. Nesse segundo caso, aaula inteira foi gasta trabalhando-se dois conteúdos fun-damentais e indissociáveis.

Como ajudar os alunos a lidarem melhor com as ca-tegorias e os modos de realização de seu cotidiano?Como sair da queixa, do desânimo, e atribuir aos te-mas, objeto de reflexão deste texto, o mesmo estatutodas matérias disciplinares? O que estudar e discutir so-bre esses temas? Como observar melhor nossas própri-as dificuldades, preconceitos e insuficiências em relaçãoa eles? Como aprender e compartilhar com nossos cole-gas estratégias – melhores ou diferentes – de enfrenta-mento desses problemas? Como convencer nossos alu-nos de que há formas melhores e mais saudáveis devida? Como rever padrões, assumir nossos erros e nos-sas limitações? Como realizar e compartilhar projetos quevalem a pena? Como construir sentido para nossa vidae aceitá-la em sua complexidade e precariedade?

Lino de Macedo é professortitular de Psicologia do Desenvolvimentodo Instituto de Psicologia da USP.E-mail: [email protected]

Como construir sentido paranossa vida e aceitá-la em sua

complexidade e precariedade?

Para Saber Mais

PERRENOUD, P.; THURLER, M.; MACEDO,L.; MACHADO, N.; ALESSANDRINI, C. Ascompetências para ensinar no século XXI:a formação dos professores e o desafio daavaliação. Porto Alegre: Artmed, 2002.

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