reflexões sobre a cor

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Cor e olharCor e linguagem

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Reflexes sobre a cor

O GRUPO DE PESQUISAS CROMTICAS formado por alunos e professores de Universidades de So Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Busca uma anlise ampla do fenmeno cromtico a partir do estudo de artistas, filsofos, antroplogos, e cientistas. O grupo parte do entendimento de que a cor constitui uma linguagem, e como tal, requer aprendizado e reflexo. A cor faz parte de modo indissocivel do mundo, da natureza que nos rodeia, da arquitetura etc. Tais processos, de uso e percepo da cor, no ocorrem de modo fixo, inaltervel, mas trazem consigo marcas prprias de cada poca e dos diferentes meios socioculturais. No que concerne ao campo das artes plsticas, a presena da cor se faz constante nas obras que compem a histria da arte; fato que sugere que o estudo da cor como tema pode tanto responder indagaes sobre uma tradio cultural quanto fundamentar novas experimentaes, inclusive aquelas que fazem uso de novas tecnologias. Contudo, percebe-se que, mesmo no interior do campo das artes, so relativamente poucos os estudos que se dedicam cor como um objeto de estudo. A proposta de abertura de um espao de debate - cujo cerne das discusses gira em torno de diferentes percepes e concepes da cor -, situado em um espao de grande circulao da comunidade acadmica, como a USP, em So Paulo, favorece o fluxo de ideias entre pessoas oriundas de diversos campos de conhecimento, resultando na possibilidade promissora de troca e intercmbio de informaes. Importa, neste sentido, ressaltar a pertinncia do tema deste projeto como uma ferramenta de extenso do conhecimento construdo no campo das artes plsticas para setores mais amplos da sociedade. Assim, entende-se que a cor configura um universo de pesquisa que, sob determinado ponto-de-vista, capaz de interligar diferentes reas do conhecimento.ndice

Apresentao

Cor e linguagem, uma gramtica das cores. Marco Giannotti I. Cor e olhar

Cor e olhar, uma anlise das cores fisiolgicas na pintura. Marco Giannotti Cor- luz e arte moderna: concretude e espiritualizao. Paloma Carvalho Santos II. Cor e superfcieCor e superfcie na pintura. Marcela Rangel Cor e colagem, a fragmentao do espao. Virginia Aita Sobre a estampa a cores, dilogos entre desenho gravura, pintura. Claudio Mubarac Preto e negro, variaes cromticas na pintura. Marcela Rangel III.Cor e espaoCor e espao: o lugar da pintura. Tais Cabral, Cor na arquitetura. Joo Carlos Cesar A potica da cor em Barragn. Monica Queiroz IV. O corpo da corO corpo e a cor:Experimentaes cromticas nas artes performativas. Fabola Salles MarianoA presena da cor no advento do Blide de Hlio Oiticica. Angela Varela V.Cor: tcnica e potica Cor e tcnica :sobre a materialidade da cor na pintura. Eurico Lopes Cor e fotografia: dos processos histricos s poticas contemporneas. Maura Grimaldi Cor e cinema, do Tecnicolor s novas mdias. Guto Araujo O deserto vermelho no cinema de Antonioni. Yanet Aguilera Bill Viola e a reminiscncia da cor no vdeo. Guto Araujo Cor e musica, escalas e contrapontos. Teresa Midori Takeuchi e Joceli Domingas de Oliveira Cor e novas tecnologias, a revoluo digital. Luciano Deszo e Vitor Iwasso.APRESENTAO

Surpreendente seria que o som no sugerisse a cor, que as cores no pudessem dar ideias de uma melodia e que os sons e cores no pudessem traduzir ideias. Baudelaire

Reflexes sobre a cor abrange ensaios de autores distintos sobre o fenmeno cromtico na arte moderna e contempornea em suas diversas manifestaes. Devido a seu aspecto complexo, a cor requer um estudo multidisciplinar. J ao procurar verter parcialmente a Doutrina das Cores de Goethe em 1993 do alemo para o portugus, contei com o auxlio fundamental de Marcio Suzuki, professor de filosofia na Universidade de So Paulo. Vale lembrar que o termo Doutrina busca contemplar tanto o aspecto prtico como terico na interpretao da cor.

Em 2009 surgiu o grupo de estudos cromticos do departamento de Artes Plsticas da USP, onde sou professor desde 1998. Participam deste grupo alunos de graduao e ps graduao, bem como professores de universidades de So Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre. Muitos destes escritos foram realizados por estudantes de arte que mantm uma atividade artstica, potica com a cor.

O livro resulta destes seminrios, cujo objetivo inicial era uma reavaliao do texto de Goethe, sob uma tica contempornea. Alis, esta obra, muito criticada quando foi publicada em 1810, tornou-se a partir do sculo XX cada vez mais reconhecida mundo afora. J no final do sculo dezenove, estudos em fisiologia humana evidenciaram que a cor no apenas um fenmeno fsico exterior e objetivo, mas tambm algo fisiolgico, ou seja, produto da interao entre a nossa retina e o crebro. A pintura impressionista surge desta motivao. Se por um lado a empreitada de Goethe em buscar uma teoria geral para explicar o fenmeno cromtico se mostra impossvel atualmente, por outro lado, o poeta no deixa de levar em considerao as diferentes prticas da cor, de modo que este fenmeno aparece para um qumico de maneira distinta do que para o pintor etc. no h efetivamente, um nico ponto de partida para o estudo da cor.

Por outro lado, a diviso inicial entre cores fisiolgicas, fsicas e qumicas presentes no livro de Goethe permite refletir sobre concepes cromticas distintas ao longo da histria. Se no impressionismo predomina a interpretao fisiolgica da cor, a interpretao das cores fsicas segundo Goethe muito instigante para entender como os pintores modernistas passaram utilizar a cor como elemento autnomo, calcado na superfcie da tela. Por fim, as cores qumicas nos ajudam a compreender a volta ao uso do pigmento puro em artistas como Yves Klein e Hlio Oiticica na dcada de sessenta. De uma maneira geral, todos os artigos oscilam entre uma anlise calcada em obras especificas e consideraes histricas mais abrangentes.

Os processos de uso e percepo da cor no ocorrem de modo fixo, inaltervel, mas trazem consigo marcas prprias de cada poca e dos diferentes meios culturais. A cor deste modo constitui uma linguagem, e como tal, requer aprendizado e reflexo. Este livro busca assim realizar uma anlise ampla da cor a partir do estudo de artistas, filsofos, antroplogos, e cientistas. A cor configura deste modo um universo de pesquisa que capaz de interligar diferentes reas do conhecimento. Pela sua diversidade, este livro permite vrios caminhos a serem trilhados sem respeitar uma linha evolutiva.

As observaes que surgem da prtica artstica no podem se resumir a um manual escolar, principalmente em uma poca onde a transmisso dos segredos dos antigos mestres se torna rarefeita. Contudo, cada linguagem artstica discutida aqui revela uma escolha, uma postura do artista em relao ao mundo, onde o uso de determinados materiais conferem cor um sentido nico. muito difcil conceber o fenmeno cromtico sem se reportar ao uso particular que cada artista faz no interior de sua obra. Porm, a maneira de se utilizar as cores tambm est relacionada a um movimento esttico de uma determinada poca. O dilogo sobre experincias plsticas pode ampliar o campo da atuao artstica para alm da criao da obra de arte.

As tabelas cromticas presentes nos livros de Itten e Albers se tornaram moeda corrente no ensino sobre a cor, de fato, so fascinantes a primeira vista, mas logo aps o impacto imediato, tem-se a sensao de um enorme vazio contido por trs de to belos matizes. Por um lado pretendem ser objetivas na medida em que so calculadas cientificamente, por outro lado, so de algum modo tambm estreis. Basta compar-las com as aquarelas de Paul Klee, por exemplo, para notarmos como so desprovidas de vida.

Entretanto, inegvel que estes exerccios prticos acabaram por influenciar a dimenso potica deste artistas. Tanto Albers como Itten salientam na introduo de seus textos que o estudo da cor apenas um instrumento que por si s e no faz de um estudante um artista. Itten chega a dizer que Doutrinas e teorias so mais indicados para situaes de fraqueza. Em situaes de fora os problemas so resolvidos intuitivamente. Ele afirma que devemos utilizar seu estudo como uma carruagem, um meio de transporte para desenvolver o trabalho de cada um. Albers por sua vez sabia exatamente do alcance restrito seus experimentos, ao dizer que nenhum sistema por si s capaz de desenvolver a sensibilidade para a cor. Embora suas experincias sirvam como uma introduo prtica para nos familiarizarmos com as ambiguidades cromticas, a interao entre as cores s se efetiva atravs do uso da nossa imaginao. Ou seja, embora teis para os alunos, so de pouco uso para o artista. Neste sentido, vale lembrar da desconfiana de Wittgenstein sobre os tratados e teorias gerais sobre as cores. Mas, fundamental poder se libertar deste jogo mecnico entre contrastes de cores. O artista, que joga com a liberdade, pode us-los como quiser, mas o estudante est sempre sujeito a se perder entre as nuanas cromticas.

A cor um fenmeno complexo que ocorre em situaes espaciais diversas.

Em que medida o que sabemos sobre as cores no varia conforme a maneira como elas se apresentam no espao? A cor muda de aspecto no s conforme os estilos artsticos, mas tambm na medida em que aparece em materiais ou suportes distintos. Na arte moderna (e especialmente na arte contempornea) muito comum que as obras nos levem cada vez mais a jogar com a experincia temporal do prprio observador.

Estes ensaios podem ser compreendidos, portanto, como um caleidoscpio, onde cada texto representa uma tomada de posio distinta que interfere na maneira como o fenmeno cromtico pode ser interpretado. Os tpicos no podem ser vistos numa ordem progressiva, so antes questes que podem ser desenvolvidas ad infinitum. As cores se infiltram de maneira sinuosa no nosso olhar, nas janelas, nos objetos, nos costumes. Entender a cor hoje em dia implica em tomar pontos de vistas diversos. No h, efetivamente, um critrio nico para descrev-las. As cores podem ser interpretadas das mais variadas maneiras, na verdade, quanto mais as estudamos, mais temos a sensao de nos distanciar delas. Reflexes sobre a Cor so diferentes pontos de vista que podem ser lanados sobre o fenmeno cromtico, em contextos diversos, a partir de suas diferentes prticas. Marco Giannotti COR E LINGUAGEM uma gramtica das cores

Marco Giannotti

Nunca se reflete suficientemente sobre o fato de que a linguagem apenas simblica, figurada, e de que jamais exprime diretamente os objetos, mas somente por reflexos. Goethe

J um senso comum afirmar que a linguagem interfere na percepo e identificao dos objetos cromticos ao longo da histria. Porm, nosso objetivo neste ensaio consiste em analisar como a cor no sculo XX passa a ser entendida como um linguagem especifica, sujeita a regras prprias, independente de sua utilizao mimtica. Desde o sculo XVI perdura um debate interminvel sobre a primazia da linguagem escrita sobre a linguagem visual, bem como do desenho diante o colorido. At o sculo dezoito, se uma obra representava uma paisagem, cabia ao observador narrar os fatos observados: a histria dos personagens, o que esto fazendo naquele lugar especfico, os objetos ao seu redor etc. O quadro era descrito como um espetculo da natureza que se desenrola diante dos nossos olhos. O aspecto formal da composio - a disposio das cores, as relaes espaciais, as propores - tendia a ser ocultado pela descrio realista do motivo. A obra era analisada em funo da sua capacidade de suscitar um contedo claro e distinto. Os critrios de avaliao de um quadro eram literais, a pintura era julgada conforme os critrios estabelecidos pelo escritor. Da a famosa mxima de Horcio: a pintura como poesia (Ut pictura poesis). Contudo, a partir do sc. XVIII as palavras passam a se distanciar das coisas representadas , elas so interpretadas como signos que formam uma linguagem, formas de representao. Elas no so mais vistas apenas como meios de invocar simplesmente as coisas do mundo sensvel, revelam uma singularidade tal que devemos pensar a respeito da sua prpria natureza. Este movimento, que abrangeu todas as artes, pode ser entendido de uma maneira bastante genrica como o fim do perodo clssico. Escritores comearam a pensar nas particularidades da escrita, pintores, sobre a relao entre desenho e cor, msicos, sobre a singularidade de cada som. Neste momento, Lessing escreve em seu Laocoonte (1766) a respeito da diferena entre artes temporais e espaciais, ou seja, advoga a independncia da pintura (arte espacial) frente poesia (arte temporal), quebrando a submisso da pintura narrativa. O pressuposto clssico de que os pintores tenham que descrever determinadas aes tambm colocado em cheque. quando o artista se v livre das convenes clssicas que ele pode pensar na especificidade do seu meio de expresso: o fato de uma pintura ser feita sempre em uma superfcie bidimensional, de que seus instrumentos bsicos so desenho e cor. Os pintores sempre tiveram conscincia de trabalhar sobre uma superfcie, mas a relao entre o espao virtual e o espao real, bem como o compromisso com a storia, a dimenso narrativa, faziam com que este problema fosse colocado de outra maneira. A superfcie da tela no mais vista como um meio transparente (a janela renascentista que evoca um espao virtual), mas como um terreno de experimentao contnua. Ver cor e superfcieO crculo cromtico

notvel como a utilizao de esquemas geomtricos cromticos nos tratados sobre a cor partir sec. XVIII antecipa o abstracionismo do sculo XX. Em seguida, tentaremos mostrar como tais esquemas abstratos aos poucos escapam do seu uso cientfico e passam a se firmar como um modo exemplar para se refletir sobre a cor. Durante vinte anos Goethe debate as teorias ticas de Newton acusando-o de empregar uma linguagem matemtica que jamais se adequaria ao fenmeno cromtico: nmeros no descrevem um fenmeno repete ele ao longo deste anos. Entretanto, o crculo cromtico newtoniano perdura em sua Doutrina das Cores. Se, por um lado, Newton recorre ao crculo para provar uma experincia cientifica em que o branco surge da sntese das outras cores, Goethe, ao negar esta hiptese, interpreta-o como um fenmeno primordial, ou seja, como o prprio fundamento da sua Doutrina. Assim como o im polar, positivo e negativo, e revela uma lei at ento considerada pelo autor como oculta na natureza, o crculo demonstra uma lgica na sua disposio cromtica. Para o poeta intil buscar uma teoria por trs dos fenmenos, pois eles mesmos exibem os conceitos, e, ao invs de provar uma teoria cientifica, tm um estatuto esttico e espiritual.

Crculo cromtico. J. W.Goethe, 1806 (fig.01)

No crculo cromtico acima feito a base da aquarela podemos notar como Goethe se esfora em relacionar as manchas cromticas com nossas faculdades: razo, fantasia, entendimento e sensibilidade, e, em seguida, com os conceitos de belo, nobre, necessrio, comum, bom. A aquarela, pela sua natureza tcnica, faz com que a cor, ao ser diluda, desafie o contorno ditado pelo desenho. Willian Turner, que chega homenagear Goethe em um de seus quadros, busca elevar esta tcnica a uma categoria artstica autnoma, no mais sendo vista como um estudo preliminar.

Ao longo do sec. XIX, surge uma esttica cientifica que busca juntar a psicologia experimental, a fisiologia e a filologia na busca de um linguagem primordial. Surge uma gramtica das artes que busca modos de representao mais sintticos e abstratos. Dotada de um coeficiente, a cor entra em um sistema de relaes combinatrias puras que a retira definitivamente de sua relao primordial com a mimesis, realizando uma das leis fundamentais da fisiologia, segundo a qual nos percebemos relaes e no realidades.

Na arte moderna os pintores progressivamente se distanciam do estudo da natureza, eles no buscam mais representar a cor local e registrar uma impresso visual no quadro, mas antes trabalhar com as opes cromticas que o pigmento oferece na prpria palheta do pintor. Para que este salto se efetue, o artista antes teve que abrir mo de conceitos clssicos como a representao mimtica da natureza, em busca de uma realidade interior. A cor passa a ser vista como expresso de uma subjetividade artstica. O processo da emancipao da cor na pintura coincide com o pice do Romantismo, que fez com que a beleza da arte consistisse no na adequao a um modelo ou a um cnone externo de beleza, mas na beleza da expresso, isto na ntima coerncia das figuras artsticas com o sentimento que as anima e suscita. Como diz Baudelaire, o Romantismo no est na escolha do tema, nem na verdade exata, mas na maneira de sentir . A exaltao do romantismo conduz Baudelaire a valorizar a obra de Delacroix, que imprime em suas pinturas um colorido altamente emocional, em relao ao seu oponente Ingres, que por sua vez privilegia o desenho e os valores neoclssicos (bem como a conteno dos sentimentos). Segundo Gombrich, os artistas j conheciam o potencial expressivo das formas e cores antes da teoria expressionista (por exemplo, em Lorenzo Lotto), mas um fato incontestvel que ela se torna uma questo dominante para os artistas modernos.

Se no romantismo a cor adquire uma tonalidade interior, no impressionismo, medida em que a pintura entendida como um registro de uma percepo visual, as cores so compreendidas na maneira em que aparecem para o sujeito. O dilema entre uma dimenso subjetiva e outra mais objetiva torna-se evidente na dvida de Czanne. A valorizao do aspecto expressivo das cores mescla-se ao processo de descoberta do mundo interior do artista. Em uma carta a Joaquim Gasquet, Czanne nos diz: perder a conscincia, descer com a pintura s razes sombrias presentes nas coisas e voltar a subir com as cores para impregn-las de luz .9 Por outro lado, para no cair no desvario cromtico, fundamental colocar as cores em ordem numa composio. A mudana decisiva na carreira do artista ocorreu no incio da dcada de 1870, quando Czanne, sob a proteo de Pissarro, passou de uma pintura sombria, com tons carregados e contrastes frequentemente violentos (influenciados por Delacroix), para uma fatura impressionista, mais delicada, luminosa e agradvel. Com essa mudana, Czanne libertou-se da turbulncia das paixes em seu trabalho. As cores para o artista no esto na natureza, so antes abstraes do nosso esprito. Neste processo de distanciamento em relao a realidade exterior " o artista se identifica muitas vezes com um ser maldito, capaz de tudo criar ou destruir no momento seguinte. Esse processo est descrito com preciso em um conto clebre de Balzac, Le Chef douvre Inconnu - alis, um dos contos preferidos de Czanne. Frenhofen um pintor que acaba enlouquecendo ao retratar um pequeno p feminino no meio de um amontoado de manchas, a pintura se transforma em uma muralha abstrata, no h profundidade, apenas tinta aplicada na superfcie da tela.

Na arte moderna, a matria pictrica torna-se expressiva, e a escolha de determinadas tcnicas j um ato expressivo. Para Van Gogh, pintar era uma verdadeira catarse, um jorro, uma purgao de sentimentos; no , contudo, um ato meramente sentimental: a presena da massa corprea da pintura anula qualquer devaneio, sua presena material garante esta ambiguidade necessria, uma tenso permanente entre a cor como pigmento e simultaneamente como emoo. Por isso que ele nos diz que a pintura o que permitia o adiamento de um colapso iminente. Contudo, nos momentos insanos, o pintor chegava a ingerir a prpria tinta.

Ao final do sculo XIX, a introduo de corantes qumicos produziu uma enorme transformao na palheta do pintor, que passa a conter cada vez mais cores artificiais. As cores aplicadas na pintura se distanciam cada vez mais das coisas percebidas como coloridas, so signos que se separam das cores percebidas natureza.Se no h mais uma medida exterior como a mimesis para guiar a prtica, como encontrar novas regras para que os artistas no entrem em devaneio? A procura por uma composio cromtica mais rigorosa fez com que o artistas se apoiassem em teorias cromticas como a de Goethe, Chevreul, Ostwald. De fato, os pintores abstratos iniciais adotaram uma srie de crculos cromticos, o que permitiu a eles refletir sobre a cor como uma linguagem autnoma. O prprio conceito mimtico passa a ser entendido no como a representao de uma natureza exterior, mas a busca por certas medidas ideais que revelariam uma natureza oculta, ideal, suprema. No surpreendente que o uso desta linguagem se baseasse em um simbolismo, e que esta linguagem tenha se tornado to hermtica. Ivan Kleiun, no manifesto suprematista de 1919 afirma que nossas composies cromticas esto sujeitas somente as leis cromticas e no s leis da natureza. O que era visto como teoria torna-se motivo para uma inspirao potica.

DELAUNAY, ROBERT. Formes circulaires, 1930. leo sobre tela,128.9 x 194.9 cm (fig. 2)

Um dia, em torno de 1913, abordava o problema da essncia da pintura, a tcnica mesma da cor. Chamvamos de pintura pura, enquanto fazia experincias com discos simultneos. O disco primitivo consistiu em um tela com cores opostas que no tinham outra significao alm do que estava visvel: cores em contraste dispostas em um crculo. Robert Delaunay.

A experincia tica se torna mais abstrata na medida em que o artista, ao invs de olhar para a natureza na busca de estmulos externos, usa arbitrariamente as cores dispostas em sua palheta e busca expressar um estado interior. As cores so vistas na sua dimenso fisiolgica, nos efeitos que produzem internamente na retina do observador. neste momento que a obra de Goethe passa a ser discutida seriamente entre os artistas. Ao invs de descrever um comportamento fsico da luz, o crculo cromtico se torna um recurso para explorar as dimenses fisiolgicas, psquicas e espirituais da cor. Para Kandinsky, a abstrao seria o contrrio de uma postura intelectualista e sim uma busca das camadas ocultas do psiquismo: S num estgio avanado da evoluo do homem que se amplia o crculo das caractersticas que incluem diferentes objetos e seres. Nesse estgio tais objetos e seres adquirem um valor interno e, finalmente uma ressonncia interna. O mesmo ocorre com a cor que, num estgio mais rudimentar da alma, s capaz de produzir um efeito superficial, que desaparece apenas terminado o estmulo...Num estgio posterior de evoluo, porm tal efeito elementar d origem a outro, mais penetrante, que provoca um abalo interior. Nesse caso, verifica-se o segundo resultado bsico da observao da cor, ou seja, seu efeito psquico, que provoca uma vibrao espiritual. E a primeira fora psquica elementar torna-se ento um meio atravs do qual a cor chega alma Este estado interior precisa no entanto ser objetivado, h um ocultamento do esprito na matria. A forma a expresso exterior de um contedo interior.

A viagem para pases mediterrneos em busca da luz mescla-se a uma viagem interior de formao: Goethe inicia sua investigao sobre a cor aps ter descoberto o colorido da pintura italiana, Paul Klee, aps uma viagem a Tunsia, se encontra na cor: a cor me possui, bem o sei escreve em seu dirio. um momento feliz, eu e a cor somos um s. Sou pintor. Exmio violinista, Klee, cria uma linguagem extremamente original, uma espcie de ideograma, onde a palavra graphein: letra, nota musical e desenho ao mesmo tempo.Paul Klee, Aquarela, 1918 (fig.03)

Neste poema-pintura de Klee, a letra surge a partir de um solo cromtico, a aquarela adquire uma dimenso sinestsica, a escrita possui sonoridade, timbre e matiz simultaneamente. Ao invs de imitar, o artista busca criar um segunda natureza. A utilizao das cores um uma grade geomtrica por sua vez advm dos esquemas cromticos descritos acima, onde a cor chega a articular uma gramtica prpria. A presena de um cinza bem no meio da composio nos faz pensar ainda nos recursos acromticos que sero utilizados posteriormente por Jasper Johns, discutidos um pouco mais adiante.

Os artistas franceses, advindos de uma tradio mais emprica, impressionista da cor, tomam o livro de Chevreul como guia, um tratado menos metafsico e mais pautado na observao da mistura tica advinda da tapearia, quando, por exemplo, fios vermelhos e verdes produzem uma sensao fisiolgica de cinza. Se por um lado os neoimpressionistas, em particular Seurat, iro buscar cada vez mais uma fundamentao cientifica para este fenmeno, os fauves procuram uma dimenso expressionista, interior da cor, e assumem uma postura mais as reticente frente teoria. Como afirma um dos seu percussores, Matisse, uma das grandes conquistas modernas foi ter encontrado o segredo da expresso pela cor. Cor e forma articulam uma nova linguagem.

Gramtica das cores

Quando digo, por exemplo, que tal ou tal ponto no campo azul, no digo apenas isso, mas igualmente que esse ponto no verde, nem vermelho, nem amarelo. Apliquei de uma s vez toda a escala cromtica. Pela mesma razo um ponto no pode ter, ao mesmo tempo cores diferentes. Wittgenstein

As cores subjetivas ou fisiolgicas so as mais importantes da Doutrina das Cores e o ponto de partida para a anlise e compreenso de toda as cores resultantes. Mas justamente neste ponto crucial que Wittgenstein discorda de Goethe, pois este conceito se baseia em uma experincia fenomenolgica primordial, ou seja, na busca de um fenmeno anterior a todos os outros, que, paradoxalmente, nos leva a uma contemplao das ideias. Ao invs de buscar um conceito nico sinttico para as cores, Wittgenstein analisa as relaes conceituais que elas estabelecem entre si ao formarem uma gramtica ou uma linguagem. Um azul, por exemplo, s pode ser compreendido na medida em que sabemos que no se trata de um amarelo ou laranja, etc. Este sistema cromtico varia de cultura para cultura, de modo que as cores s podem ser interpretadas a partir de suas diferentes prticas que se inserem num determinado contexto. Torna-se impossvel deste modo aplicar uma teoria geral para um fenmeno to instvel como a cor. Para Wittgenstein, os problemas fenomenolgicos perduram revelia de uma fenomenologia. Goethe como Wittgenstein escreve aforismas sobre a cor. como se a prpria linguagem no pudesse dar conta integralmente do fenmeno cromtico. Quanto se faz um aforisma abre-se espao para o que no est dito. Goethe, em sua Doutrina das Cores, oscila entre uma linguagem de natureza cientifica e outra mais potica e fenomenolgica, de modo que temos a impresso que nenhuma linguagem capaz de dar conta integralmente dos fenmenos cromticos. Isto porque as cores podem ser vistas tanto sob a tica fsica, como sob a artstica, potica.

O que acontece quando a nossa percepo de uma cor desafiada pela palavra? Os fenmenos visuais so codificados como uma linguagem, e a compreenso de uma obra parece implicar um entendimento prvio dos cdigos de cada cultura. A pintura efetivamente parece cada vez mais falar de si mesma, de seus esquemas de representao, de suas regras espaciais, das maneiras como podemos captar um fenmeno cromtico.

Jasper Johns False Start. 1959, leo sobre tela, 170.8 x 137.2 cm (fig.04) Jubilee, 1959. leo e colagem sobre tela. 170.8 x 137.2 cm (fig.05)

Jasper Johns joga com as ambiguidades semnticas de cada linguagem, questiona a cada instante a maneira como estamos predispostos a olhar uma obra de arte. Isto aparece quando nossas expectativas so de certa forma frustradas. Do ponto de vista cromtico, embora esta atitude inovadora de criar uma ambiguidade visual j esteja presente em suas primeiras obras (onde uma bandeira tanto uma bandeira como uma pintura), False Start o primeiro quadro onde Johns joga radicalmente com as diferentes maneiras que podemos perceber as cores. Nesta obra, as manchas cromticas entram em conflito com as palavras aplicadas sobre elas: Johns denomina de amarelo uma superfcie azul, uma mancha vermelha tem o nome de laranja e assim por diante. A presena da cor na nossa sensao no mais corresponde ao significado da palavra aplicada. A identidade da cor posta em xeque, pois dois critrios de identificao da cor so utilizados simultaneamente, um se contrapondo ao outro: o conceito que define o que so as cores entra em choque com a nossa percepo, que parece aturdida, desqualificada. O titulo do trabalho False Start justamente reitera esta experincia, visto que um falso comeo remete a uma largada queimada em uma corrida de cavalos, preciso assim recomear o jogo. Johns foi profundamente influenciado pela critica que Duchamp faz da maneira como vemos um objeto de arte. A pintura explicita a maneira como nos preparamos para v-la: o ato de ver uma obra de arte transformado em um ato de voyeurismo. Olhar no uma experincia neutra: uma cumplicidade, pois ilumina o objeto. O contemplador um observador (...) Olhar uma transgresso, mas a transgresso um jogo criador. De certa forma, toda pintura explicita seus esquemas conceituais que moldam o nosso olhar. Jasper Johns, refazendo no plano sensvel a crtica de Wittgenstein a uma interpretao fenomenolgica das cores, nos mostra que no h mais um critrio nico para identificar as cores. Os critrios para distinguir um fenmeno visual esto imbricados com o uso da nossa linguagem, do que entendemos pela palavra vermelho, de como podemos distinguir um amarelo-alaranjado de um laranja-avermelhado, enfim, como o fenmeno cromtico pressupe uma gramtica das cores. Cores e formas deixam de ser o repertrio nico do artista, que se volta cada vez mais para os limites do fenmeno visual, j que a linguagem passa a interferir no modo como percebemos as coisas. A sua critica autonomia da imagem pura retiniana se baseia no fato que nossa percepo pressupe uma articulao com a linguagem. Nota-se deste modo uma critica radical pintura como algo que se realiza exclusivamente na retina do observador. Johns um dos artistas que coloca novos limites para o uso da cor, quando a utiliza de forma cada vez mais objetiva e impessoal. No de se estranhar que suas pinturas tenham uma grande quantidade de cinza, uma cor a seus olhos interessante porque evita toda qualidade emocional e dramtica. Ao buscar uma pintura literal, a fim de conduzir o espectador a regies mais verbais do que retinianas, Johns evoca a atitude de Duchamp de buscar, atravs dos ttulos que atribui as obras, uma cor invisvel.Porm, na medida em que a cor se torna um fenmeno cada vez mais mediado por outras formas de linguagem, no corremos o risco de perder este componente irredutvel da representao? possvel resgatar atualmente uma experincia expressiva da cor? Ser possvel ainda dizer que a cor o sensvel na, ou melhor, da pintura, componente irredutvel da representao escapando da hegemonia da linguagem, experincia pura de um visvel silencioso que constitui a imagem como tal?

Johns, Periscope (Hart Crane). 1963

leo sobre tela (170.2 x 121.9 cm), coleo do artista. (fig.06)

Duchamp explicita a maneira como deciframos uma imagem utilizando critrios lingusticos: os ttulos so escolhidos de tal maneira que impedem de situar meus quadros numa regio familiar que o automatismo do pensamento no deixaria de suscitar a fim de subtrair a inquietao. O principio que reinou durante quinhentos anos, ou seja, o que afirma a separao (ou uma relao hierrquica) entre a representao plstica (que implica semelhana) e a referncia lingustica (que a exclui), se quebra na medida em que passam a ocupar o mesmo campo visual, de modo que h uma justaposio de figuras com a sintaxe dos signos. Nesta rede inextricvel de imagens e palavras, muitas vezes uma palavra pode tomar o lugar de um objeto na realidade assim como uma imagem pode tomar o lugar de uma palavra numa proposio. A experincia esttica da cor parece se diluir no mundo contemporneo, onde prticas diferentes de utilizao das cores parecem se misturar. Tcnicas diversas como a colagem, aquarela, mbiles, tintas automotivas, pigmentao etc. passam a apresentar a cor de diferentes modos.

O emprego da cor torna-se mediado por um conceito especfico, percebemos cores de diferentes modos, pois a interpretao do fenmeno cromtico est condicionada a uma determinada prtica e a uma potica: Jasper Johns usa a encustica, tcnica que mistura o pigmento com a cera, para mostrar a opacidade da linguagem. Mark Rothko utiliza a tmpera a fim de garantir a presena luminosa do pigmento, pois a cor parece se desprender desta fina poeira e comea a habitar o espao. Jackson Pollock aplica uma tinta veloz, automotiva, para poder implodir a pincelada em um gesto para alm da tela. Yves Klein, Hlio Oiticica e mais recentemente Anish Kapoor procuram questionar os limites do objeto e do espao ao trabalhar com a cor como um pigmento que se transforma em luz. Se no pensarmos neste jogo de resistncia entre as cores e o seu meio material, corremos o perigo de lidar com a cor como algo exclusivamente tico, um jogo virtual de cores. Devemos evitar tratar a cor como uma relao abstrata, onde x cor se relaciona com y cor.

A cor no pode ser abstrada da tcnica empregada bem como do seu contexto espacial. Um amarelo pintado com tmpera radicalmente diferente do mesmo pigmento utilizado na encustica. Uma pintura um jogo permanente entre os significados mltiplos de seus elementos. As cores ainda podem revelar um olhar subjetivo, uma forma de interpretar o mundo ao redor, mas, a fim de resgatar este seu potencial, preciso entender a cor como um fenmeno complexo, que muda de caracterstica conforme sua utilizao. O processo de nomeao cromtica est intimamente ligado ao processo da manufatura de objetos cromticos, sendo que estes muitas vezes adquirem nomenclaturas distintas ao longo da histria. Por outro lado, a alquimia fazia com que os prprios matrias se transmutassem, necessitando, logo, de outros nomes. Ver cor e tcnica

Um pintor contemporneo que contrape uma gramtica das cores frente antiga storia Brice Marden. As cores aparecem como uma revelao em seus quadros: Conturbatio, Cogitatio, Interrogatio, Humiliatio, Meritatio (ttulo de uma srie de pinturas de 1978) so os diversos momentos representados que fazem parte do ciclo da anunciao Virgem, da sua surpresa e hesitao ao instante da submisso a uma ordem divina. Durante o Renascimento a diferena de atitude da Virgem frente ao anjo era facilmente reconhecida por um homem razoavelmente culto. Entretanto, atualmente, se no fosse o livro de Baxandall, no seriamos capazes de captar a sutileza de cada gesto. As pinturas de Marden so como um mistrio revelado a um olhar iniciado, h nelas um jogo sutil de cores que s pode ser percebido com tempo. Os pigmentos so misturados com uma base de leo e cera, de modo que a cor deve vencer a opacidade da cera para aparecer. Contudo, justamente por esta dificuldade, seus quadros apresentam em alto grau uma emoo contida. Neste caso, a variao de escala e matiz cromtico em cada pintura produz significaes diversas, o observador saber destrinchar o sentido de cada uma destas telas se estiver mais familiarizado com as teorias cromticas do que com a bblia. A semelhana visual entre estas pinturas e os estudos de passagem cromticas feitas por Goethe h cento e cinquenta anos chega a ser notvel.Goethe, passagem do amarelo ao vermelho, aquarela, 1796, Weimar Stiftung,

Brice Marden, Meritatio, 1978, pintura a leo a cera sobre tela. Brice Marden, Homage to Art 14, 1974, grafite, papel e cera. 3022 3/4. (fig. 07)

Nomear e ver

Ao invs de condenar estas imperfeies s palavras, devemos atribu-las a nosso entendimento, visto que as palavras se colocam entre nosso esprito de verdade das coisas. Leibniz

A interpretao da cor como um fenmeno visual que se articula com uma linguagem no impede uma discusso questes propriamente fenomenolgicas. Neste sentido as cores aparecem ora como fenmenos espaciais, ora como temporais. Chamamos muitas vezes de uma mesma cor dois fenmenos distintos, por outro lado, um s fenmeno pode ter muitos nomes.

Por que vemos em geral uma ma sempre vermelha (ou verde) apesar de suas variaes de luminosidade? A constncia cromtica explicita o quanto estamos condicionados a ver o que conhecemos. Por outro lado, se buscarmos efetivamente comparar o que estamos vendo com o que nomeamos h um enorme o descompasso. Sabe-se que a percepo da cor tardia nas crianas e est atrelada a prpria educao dos sentidos, sempre mediada pela linguagem. Um esquim tem mais acuidade em perceber as diferentes nuances de branco, e sua linguagem tem mais termos para este fim, pois saber discernir a neve recente da neve mais antiga pode ajuda-lo na sua sobrevivncia. Do mesmo modo os ndios da Amrica do Sul criaram mais termos para o verde e azul, associando-os a diferentes formas e texturas de plantas. Neste sentido, cabe indagar por que temos ainda esta crena mtica sobre a existncia de cores puras. Quem tem medo do vermelho, azul e amarelo o titulo de um quadro de Barnet Newman que explicita esta crena.

Do mesmo modo, teimamos em ver as sete cores no arco Iris, enquanto seu espectro cromtico infinito. Newton escolheu sete cores para o seu crculo cromtico muito mais por questes cabalsticas do que por questes propriamente cientificas. E no entanto, a concepo espectral da cor se imps progressivamente e suas consequncias sobre a classificao e provavelmente sobre a denominao da cor so profundas. A ordem espectral pouco a pouco substitui a antiga ordem simblica que predominou durante a idade media.Mursi (fig. 08 e 09)

Para combater estes preconceitos basta ampliar nossos horizontes e verificar que a noo de cor no explicitada por um vocbulo prprio em todas as linguagens: a cor apreendida, em muitas culturas, paralelamente a outros parmetros sensoriais, em particular tteis, gustativos, olfativos ou at mesmo auditivos. Wittgenstein por sua vez nos alerta que um dos grandes desafios da filosofia desfazer as iluses fomentadas por nossa linguagem.

Uma tribo africana como os Mursi no utilizam o conceito de cor pura. Essa tribo, dependente da coleta do sangue do gado, utiliza como padro conceitual a pele de vaca, de forma que ao invs de dizerem que a montanha verde, eles a atribuem um termo que remete a pele estriada do gado. Logo, quando esto falando a respeito da pele de vaca, sempre utilizam termos bsicos, mas quando discorrem sobre outros fenmenos, muitas vezes utilizam dois termos e a partir dai, conseguem diversas gradaes que lhes permitem descrever o mundo sensvel.

Sob esta tica questionvel a empreitada feita na dcada de sessenta por Berlin e Kay, que utilizaram tabelas de cores padronizadas (Munsell) a fim de estabelecer um padro geral de desenvolvimento na percepo da cor entre as sociedades mais primitivas, que vai do par binrio branco e preto, em seguida o vermelho e assim por diante.O fenmeno cromtico um conceito culturalmente construdo, sendo que no caso dos Mursi, por exemplo, nem podemos afirmar que estamos empregando o conceito adequado. No h nenhuma viso, nenhuma linguagem pura, imediata e transparente, ao contrrio do que algumas posies cientificas pretendem postular.

Ao invs de buscar uma linguagem primordial, grande sonho iluminista de uma babel cromtica, devemos antes nos ater na diversidade com que a linguagem se metamorfoseia no mundo da cor no espao histrico e cultural, sempre nos colocando novos problemas fenomenolgicos. O emprego de determinados termos como por exemplo o cerleo, varia de contexto bem como de poca, podendo designar alm do azul, o amarelo e o verde.

Os Maoris tem cerca de 3.000 nomes de cor, isto no significa que tenham uma acuidade particular, mas que justamente no identificam os mesmos termos em situaes distintas, eles tem uma apreenso mais concreta, menos abstrata deste fenmeno. No entanto, para o mundo ocidental a abstrao se tornou uma constante no principio de identificao cromtica, seja no emprego de cores puras, seja na tentativa de catalogar e sistematizar este fenmeno. Portanto, determinadas polaridades, ou antagonismos cromticos, s podem ser compreendidos no interior da gramtica de uma cultura especifica: em muitas civilizaes o antagonismo entre verde e vermelho ou entre azul e amarelo simplesmente no existe. Desde a Antiguidade se discute em que medida os termos utilizados na linguagem podem corresponder efetivamente a vasta gama do espectro visvel.

Se, como vimos acima, Jasper Johns e Brice Marden utilizaram a cera em suas pinturas com o intuito de acentuar a imbricao entre cor e tcnica, de tal forma que a opacidade presente na encustica torna a apreenso da cor menos imediata, Bruce Nauman confere materialidade a cor na sua articulao com a linguagem. O signo se desprende da frase e adquire um corpo prprio. Estamos longe de uma obra que busca uma percepo meramente visual: a palavra HOT-quente em ingls- claramente associa cor a calor, visto que a cor vermelha associada as cores quentes, por outro lado, a palavra est sendo polida com a cera derretida, quente. Mas, por que acreditamos que o vermelho uma cor quente, embora sua frequncia seja menor do que a da cor azul, que considerada fria? Na chama de uma vela a parte mais intensa justamente a parte azul. A viso da imagem Hot produz um serie de associaes tteis, de forma que a apreenso da obra se faz quando o observador passa a trabalhar sinestesicamente com estas sensaes que vo alm da imagem visual. A obra feita no ato de polir bem como no ato de sentir o calor produzido pela palavra. O texto nestas imagens produzidas em 1966 adquire uma dimenso ttil ou at mesmo gustativa, quando vemos o artista passar geleia sobre palavras feitas nos biscoitos. Como afirma o artista: Quando a linguagem comea a se quebrar aos poucos, ela se torna instigante e comunica da maneira mais simples: somos forados a notar o sons e as partes poticas das palavras .

Bruce Nauman, Waxing Hot, 1966 e Eating My Words from Eleven Color Photographs 1966-67/70 ARS, N Y and DACS, London 2006 Whitney Museum of American Art, New York (fig. 10)sem titulo, Mira Schendel, 1965 (fig. 11)

Uma arte de palavras e quase palavras onde o signo grfico veste e desveste vela e desvela...Uma arte onde a cor pode ser o nome da cor. Haroldo de Campos

No meio de uma floresta de grafismos, uma palavra em alemo aparece calcada no centro desta monotipia. Rot significa vermelho e est desenhado com a cor vermelha. Mesmo aquele que no sabe alemo induzido a esta resposta. Para Mira Schendel, que falava alemo, italiano e portugus com sotaque, s o desenho se caracterizava como ursprache, linguagem primordial que remonta ao graphein, desenho e grafia ao mesmo tempo. Mira nos faz pensar no seu antecessor suo Paul Klee, que traz para a arte moderna o desenho e a grafia unidos em uma intima aventura. A monotipia embaralha a palavra frente ao gesto grfico, que sempre feito de maneira invertida, como num espelho. O gesto rpido e deve ser produzido com a mesma velocidade do que a palavra enunciada. Para Mira, o principio era o verbo. Escrever e desenhar, ver e nomear so atividades simultneas.Referncias BibliogrficasCRARY. J. Suspensions of perception. MIT Press , 2001

GAGE, John. Colour and Culture. Thames and Hudson . 1993. ____Color and Meaning Thames and Hudson 1999 .

LE RIDER, Jacques Le Rider. Du scepticisme linguistique lanalyse des jeux de langageJUDD. Donald.On some aspects of colour in generalNAUMAN, Bruce. Bruce Naumans Word. Writings and interviews. Edited By Janet Kraynak MIT Press, 2005

RICHIR, M. Phnomenologie des Couleurs.

TURTON, D. La catgorisation de la Couleur en Mursi . Traduo de. Serge Tornay presente em seu livro apud Voir et Nommer les couleurs. Laboratoire de Ethnologie et Sociologie Comparative, Nanterre, 1978.COR E OLHAR

uma anlise das cores fisiolgicas na pintura

Marco Giannotti

No vs que o olho abraa a beleza do mundo inteiro?... a janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a priso do corpo que, sem esse poder, seria um tormento... admirvel necessidade! Quem acreditaria que um espao to reduzido seria capaz de absorver as ima- gens do universo? .. O esprito do pintor deve fazer-se semelhante a um espelho que adota a cor do que olha e se enche de tantas imagens quanta coisa tiver diante de si .

Leonardo da Vinci

Perspectivas

Uma obra de arte aparece conforme estamos preparados para v-la, e isso depende dos critrios que utilizamos para decifr-la. Pretendemos aqui analisar como a cor adquire um papel crescente na construo do espao pictrico moderno a partir do Renascimento. Uma breve analise histrica deste processo merece ser feita para esclarecer as transformaes que ocorreram na interpretao do fenmeno cromtico a partir da viso e refletem por sua vez uma investigao constante a respeito da percepo humana.

A identificao entre a pintura e o olhar durante o Renascimento Italiano tamanha que Brunelleschi baseia a perspectiva a partir do ponto de vista do observador e o plano da imagem, determinando assim o ponto de fuga. Este espelhamento entre o ponto de vista e o ponto de fuga, contudo, se efetiva atravs da geometria, a construo do espao se faz mediante a linha. O quadro visto como uma interseco da pirmide visual: segue-se dai que todas as propriedades pictricas so proporcionais aos objetos vistos. H uma ruptura com o espao hiertico e simblico da idade media. Neste caso, por exemplo, a figura de Cristo pode ser menor do que a figura de um cachorro, dependendo da posio em que ocupam no espao visualizado. Este processo de racionalizao da viso humana passa por uma concepo em que o olhar no entendido como um processo divino, mas humano, cujas distores devem ser corrigidas pela razo e pela cincia. O espao deixa de ser concebido a partir da sua essncia simblica, mas da sua aparncia, o espao divino passa a ser um espao existente no nas alturas, mas no interior da conscincia humana. Alberti ressalta que a figura humana (atravs do seu olhar) que proporciona a medida de qualquer coisa que o artista procura representar. A tela concebida como algo transparente que desvela um mundo virtual. A perspectiva formulada por Bruneleschi e divulgada por Alberti em seu tratado sobre a pintura em meados do sc. XV determina teoricamente os preceitos desta construo matemtica de um modelo perceptivo. Tal modelo, contudo, tem um aspecto utpico, projetivo. Pierre Francastel sempre ressaltou este aspecto imaginrio das tcnicas artsticas ao lembrar que os artistas do Renascimento projetaram uma cidade ideal que s iria ser efetivamente construda posteriormente.

O que uma janela, seno um espao arquitetnico, mediante o qual o olhar se lana sobre o exterior? A visualizao da percepo um fenmeno tipicamente urbano. A arquitetura amplia o espao da pintura, que deixava de representar a relao exclusiva do sagrado e do profano, para estabelecer uma viso mltipla, que explorava indiferentemente a proximidade e a distncia, o homem e a paisagem.

Em seu clebre livro A perspectiva como forma simblica Erwin Panofsky questiona a existncia de uma perspectiva anterior ao Renascimento. Embora os tratados de tica da antiguidade tivessem pleno conhecimento dos fenmenos ticos de distoro retiniana e de angulo visual, embora o afrescos presentes em Pompia revelem um domnio de recursos pictricos que possam sugerir uma profundidade visual, Panofsky alega que a concepo do espao ainda no se pautava na ideia de um infinito continuo, pois o espao era sobretudo concebido a partir dos corpos existentes. Entretanto, tal concepo, por assim dizer mais topolgica e finita, mais prxima da nossa percepo cotidiana do nosso espao circundante. Embora a perspectiva se paute na viso do sujeito, este antes o modelo ideal de um observador monocular e esttico.

Para que a perspectiva passe a ter validade preciso que a sua formulao matemtica seja entendida como modelo de toda percepo, de modo que a grandeza visual passe a ser determinada no pelo angulo visual mas pela distncia dos objetos. A perspectiva entendida assim como forma simblica, ou seja, como significante de ordem inteligvel que passa a determinar os signos concretamente. Isto s acontece quando o homem passa a ter uma nova interpretao do espao distinta da antiguidade, onde no h ainda uma concepo de extenso tridimensional continua, ou do vazio como uma entidade positiva: a totalidade do mundo ainda permanece como uma realidade descontinua. Com efeito, durante o Renascimento surge uma nova concepo do mundo e do espao. Segundo John White, o espao construdo no Renascimento matematicamente rigoroso, mas artificial e sem base natural, j a "perspectiva sinttica" formulada na antiguidade era mais emprica e mais prxima da nossa experincia visual, pois leva em conta o efeito de curvatura que as linhas retas sofrem na imagem retiniana. A identificao crescente da realidade pictrica com a realidade tridimensional no indica por sua vez uma busca iniludvel pelo trompe loeil, pois nota-se o esforo em harmonizar a composio em relao superfcie pictrica. Por outro lado, as qualidades ilusrias agora parecem perdidas para ns, pois as figuras presentes nos quadros do sc. XIV parecem agora um tanto artificiais, entretanto, para um olhar renascentista como o de Lorenzo Ghiberti, estas figuras pintadas pareciam adquirir a volumetria semelhante a das esttuas.Tavoletta de Brunelleschi 1410- 14135 (fig. 01)Leonardo da Vinci, adorao dos magos, 1481. (fig. 02)

Na perspectiva linear, contudo, a cor no um fator determinante na construo do espao. A noo clssica de que a cor secundria para a captao da forma corrente no Renascimento, e mesmo nos tratados que no opem um ao outro, como o de Cennino Cennine de 1390, comum um aprendizado que parte do desenho, passando pelo chiaroscuro, para se chegar ao colorido. A cor vista em funo da luz, e seu uso deve partir do contraste do claro com o escuro. Segundo Alberti, o pintor deve mostrar toda sua tcnica na aplicao do preto e do branco. J no alto Renascimento italiano a perspectiva linear no considerada suficiente para dar conta do espao virtual, outros esquemas espaciais passam a ser utilizados, de modo que o espelhamento entre o ponto de fuga e o ponto de vista j no to rgido. O desenvolvimento no sculo XV de uma interpretao antagnica entre o disegno e colore aos poucos substituda pelo reconhecimento de que a cor desempenhava uma funo na percepo da luz atravs de uma gradao tonal e por uma revalorizao do aspecto simblico da cor presente na arte medieval.

A oposio entre o desenho florentino e o cor veneziana se dissolve quando surge uma tendncia em empregar a cor como um fator espacial: a perspectiva area de Leonardo da Vinci exemplifica este processo. O azul do cu interpretado como fenmeno atmosfrico e no como cor intrnseca. Leonardo tenta integrar um conhecimento terico dos tratados medievais sobre a supremacia da luz e dos problemas pticos- fisiolgicos com estudo emprico da natureza. Ele aconselhava o pintor a comparar suas cores com a cor natural do motivo. Suas nuances cromticas por sua vez acabam cada vez mais confinadas ao jogo do claro e do escuro (chiaroscuro), descrita no seu tratado como uma cincia de grande relevncia.. Ele aconselhava o pintor a comparar suas cores com a cor natural do motivo. Leonardo afirma que o azul sustenta a perspectiva e manifesta a espacialidade atmosfrica: O azul a cor do ar. As coisas mais distantes parecem mais azuladas, devido grande quantidade de ar que se encontra entre a vista e o objeto (...). O sentido de realidade fsica da pintura renascentista baseia-se na conjugao das perspectivas area e linear. (...) Sem a perspectiva das cores, a perspectiva linear no suficiente em seu movimento para determinar as distncias.

Roger de Piles, no seu Dialogo sobre o Colorido de 1672, justamente aponta para o fato de que durante todos estes trezentos anos de renascimento da pintura sdificilmente poderia se reconhecer uma meia dzia de pintores que tenham utilizado bem a cor, e, no entanto, podera-se listar pelos menos trinta grandes artesos. A razo para isso que o desenho tem regras baseadas na proporo, ou na anatomia, que so praticadas de forma sistemtica, enquanto que a colorao tem dificilmente regras conhecidas, e mesmo que alguns estudos tenham sido feitos de acordo com os diferentes assuntos tratados, nenhum conjunto preciso de regras foi estabelecido.

A pintura holandesa por sua vez sempre se distanciou do paradigma italiano da perspectiva, pois a construo do espao pictrico se fazia empiricamente. A luz, neste caso, no considerada uma simples linha geomtrica, pois a partir dela que surge o fenmeno cromtico. Com o desenvolvimento das teorias ticas do sc. XVII o rgo visual passa a ser considerado um instrumento independente - um jogo de lentes - que pode ser utilizado em vrias direes. Os artistas abrem mo deste espelhamento rgido que a perspectiva impunha entre o ponto de vista e o ponto de fuga. A verdadeira viso aquela proporcionada pela geometria da luz e das lentes, de sorte que instrumentos como o telescpio ou a cmera escura captam o que nossos olhos no podem ver. Essa deciso reforada com a difuso da tica e diptrica de Kepler, que definira o olho como instrumento e mecanismo tico e a viso como formao de uma pintura (pictura) que representa a imagem das coisas (imago rerum) na superfcie cncava da retina, independentemente do observador.

Desde a Antigidade se acreditava que a luz branca era indivisvel, de modo que as cores s apareciam quando a luz interagia com a sombra (Skieron) ou ausncia de luz. Newton pela primeira vez desafia esta concepo ao demonstrar que a luz branca pode ser decomposta em raios que so percebidos como cores distintas de acordo com o grau de refrao. Ou seja, h uma inverso total na maneira de se interpretar as cores, pois o que simples (a luz) passa a ser entendido como composto. Newton no clebre experimentum crucis (1666), demonstra como a cor surge a partir da refrao da luz branca em um prisma. Embora Newton procure determinar objetivamente o fenmeno cromtico a partir do seu grau de refrao, ele nunca questionou o fato de que as cores aparecem no olho de forma subjetiva. Newton Experimentum Crucis,1666 (fig. 03)

Newton descrimina os raios cromticos a partir do experimentum crucis, que s pode ser realizado em um quarto escuro. Ao invs de observar os fenmenos da natureza ao ar livre, Newton constri um aparato mediante o qual ele pode controlar a apario do fenmeno cromtico. contra tal tomada de posio cientificista frente ao fenmeno que Goethe se coloca.

As cores passam a ser compreendidas de uma maneira sistemtica na sua vinculao com um olhar gil em percorrer o mundo. H alguns anos atrs o artista David Hockney criou uma polmica entre os historiadores de arte ao afirmar que a verossimilhana notvel presente nos quadros a partir do sculo XV estaria vinculada ao desenvolvimento de dispositivos ticos. Polmica parte, importa antes perceber a transformao de uma viso de mundo, que de fato faz com que o homem entenda a percepo como um fenmeno humano, no divino, que pode ser corrigido racionalmente mediante esses instrumentos.Joahnes Vermeer, Mulher segurando uma balana,1662-1663 Dutch painter Johannes Vermeer. It is housed in the National Gallery of Art of Washington, D.C. (fig. 04)

Um quadro de Vermeer como a Mulher segurando uma balana,1662-1663, por exemplo, explora claramente esta potncia do olhar em captar os objetos. Vale a pena observar como nosso olhar incentivado a percorrer minuciosamente cada detalhe do quadro, que aparece como uma perola perdida. O ponto de fuga aparece aqui antes para compor os planos da viso do que sugerir uma profundidade infinita. A luz presente em seus quadros reflete a teoria ptica da poca, que imaginava a luz no como uma propriedade passiva e sim como uma fora ativa que se deslocava em raios de superfcies luminosas em direo inteligncia organizadora do olho. Deste modo, embora a transparncia da pintura de Vermeer se contraponha s pinturas de Rembrandt, que torna o mundo turvo com suas pinceladas, a luz em ambos parece emanar dos objetos e das figuras e ir de encontro ao olhar. A Doutrina das Cores

4 Goethe ao realizar sua pesquisa sobre as cores, decifrar para o fenmeno cromtico. fig. (05)

Aps viagem Itlia em 1791, onde se encanta com o colorido presente nas pinturas e no clima mediterrneo, o jovem Goethe pede prismas emprestados afim de se iniciar no estudo da cor. Um dia, ao olhar casualmente em direo a uma parede branca atravs de um prisma, no vendo cor alguma, diz imediatamente a si mesmo que a teoria de Newton estava errada. A ideia de que a luz branca fosse composta de luzes mais escuras, ou mesmo por raios, lhe parecia to absurda que jamais questionou a indivisibilidade da luz. Ele estava interessado nas condies necessrias para que o fenmeno das cores se manifestasse. Para ele, no basta dizer que a cor surge da luz, mas como aparece junto sombra. Goethe diz no pargrafo [69] da Doutrina das Cores (1810) que a prpria cor algo sombreado (ein Schattiges). O grau de opacidade o que indica a quantidade de luz e sombra particular a cada cor: uma luz obscurecida excita o amarelo no olho, enquanto a escurido, quando clareada, produz o azul. As cores so essencialmente polares e contm em si uma ao (luz) e uma paixo (sombra). As diferentes propores de luz e sombra distinguem uma cor da outra. O azul a cor mais negativa porque contm mais sombra; o amarelo a mais positiva, j que a cor mais prxima da luz. Goethe questiona os experimentos de Newton e afirma que as cores s existem na medida em que so produzidas pela nossa retina, que desempenha um papel ativo na produo de cores, ela no absorve simplesmente os raios cromticos: as cores so feitas no olho e para o olho. A cor no pode ser simplesmente causada pela luz, devendo ser pensada na sua relao com o rgo especfico da viso, como afirma Goethe: Esto numa pista falsa, na medida em que procuram em Newton a causa essencial da luz em uma modificao original e particular dela, enquanto ela reside na modificao particular e original da retina." Em sua batalha campal contra Newton, ele prope ento uma interpretao das cores a partir do rgo da viso, que no pode ser identificado apenas como um conjunto de prismas e lentes, pois o olho um rgo vivo. A investigao ao ar livre, onde o olhar reencontra a natureza, parece fascin-lo. Na verdade, ele j estava procurando distinguir as condies ou esferas em que este fenmeno aparece. Aps ter definido, na introduo de seu livro que a cor um fenmeno elementar da natureza para o sentido da viso, Goethe nos diz que h trs formas de manifestao da cor. Em primeiro lugar na medida em que pertencem ao olho e dependem da sua capacidade e agir e reagir. Em segundo lugar, na medida em que as percebemos atravs de meios incolores ou com o auxlio destes. Por fim, so dignas de nota na medida em que podemos pens-las como fazendo parte do objeto. Chamamos as primeiras de fisiolgicas, as segundas de fsicas e as terceiras de qumicas. As primeiras so constantemente fugidias, as segundas so passageiras, embora tenham certa permanncia. As ltimas tm uma longa durao. O que distingue um fenmeno cromtico de outro sua permanncia na viso.

No entanto, se o mundo necessariamente se espelha no sujeito, nem tudo o que olho produz se reflete no mundo: veja bem, no h nada exterior a ns que no esteja ao mesmo tempo em ns, assim como o mundo exterior, o olho possui suas cores. Somente por meio dessa cincia pode-se separar nitidamente o objetivo do subjetivo. Portanto, comecei a tratar apenas das cores pertencentes ao olho, a fim que distingamos bem se as cores realmente existem no exterior ou se apenas uma cor aparente, que o exterior engendrou por si mesmo. a atividade da retina que diferencia o fenmeno cromtico. As cores so aes (tat) e paixes da luz (leiden). Se a atividade da retina maior, tm-se cores subjetivas (fisiolgicas); se ela sofre um estmulo externo por mais tempo, sua ao menor, e as cores so consideradas mais objetivas (qumicas). As cores subjetivas ou fisiolgicas so as mais importantes da Doutrina e o ponto de partida para a anlise e compreenso de todas as cores resultantes.

Ao se posicionar contra Newton, Goethe afirma que a luz branca no pode ser decomposta, de modo que as cores s existem na medida em que a luz branca interage com a sombra ( Skieron). Ele retoma assim a concepo clssica da luz branca indivisvel. J Schopenhauer em seu Tratado sobre a viso e as cores (1815) ir tentar conciliar estes dois pontos de vistas aparentemente irreconciliveis, procurando quantificar objetivamente o grau de atividade da retina segundo as regras de refrao. Ele procura conciliar uma teoria quantificvel da cor presente em Newton com uma interpretao fisiolgica da cor como atividade da retina provinda de Goethe. Transfere para o olho as determinaes numricas que Newton atribua aos diferentes graus de refrao dos raios luminosos. A divergncia de Goethe em relao a Newton no se reduz assim a uma disputa pessoal, pois acabou envolvendo toda uma polmica entre o idealismo alemo e os fsicos newtonianos. Na verdade, o que estava por trs dessa dissenso o confronto de dois modos completamente distintos de pensar a natureza. O idealismo alemo recusa a tica mecanicista, j que interpreta tanto a natureza quanto a arte a partir da ideia de organismo, de uma finalidade interna. Porm, embora Newton procure determinar objetivamente o fenmeno cromtico a partir do seu grau de refrao, ele nunca questionou o fato de que as cores tivessem uma dimenso subjetiva. Se esta polmica se tornou irrelevante para a fsica, abre-se contudo, uma nova perspectiva para a interpretao das cores.

Logo, a polmica se torna sem sentido na medida em que no precisamos mais de um critrio nico de identificao das cores: o conceito fsico de refrao da luz no exclui necessariamente a interpretao da cor como um fenmeno fisiolgico.

Ao julgar a cor como um fenmeno fisiolgico Goethe foi durante anos criticado pelos cientistas que se apoiavam em Newton. Contudo, A partir de 1957, vrias experincias demonstraram (principalmente com Edwin Land) a existncia de iluses de cor no sentido de Goethe, iluses que demonstravam uma verdade neurolgica - que as cores no esto l no mundo, nem so (como sustentava a teoria clssica) um correlato automtico do comprimento de onda, mas so construdas pelo crebro. Segundo John Gage a teoria cromtica na tradio ocidental pode ser dividida em duas fases. At o sculo dezessete, a nfase primordial era dada condio objetiva da cor no mundo, qual seria sua natureza, e como ela se organizava em um sistema coerente de relaes. A partir de Newton, por outro lado, a nfase se torna cada vez mais subjetiva, centrando-se sobretudo numa interpretao da cor como fenmeno gerado e articulado pela nossa viso e percepo. A Doutrina das Cores e o Tratado sobre a viso e as cores representam dois momentos fundamentais desta mudana de ponte de vista.

Goethe inaugura ainda um estudo inovador sobre o Daltonismo no capitulo dedicado s cores patolgicas, ou seja mediante o estudo de uma viso distinta, atenta para a dimenso subjetiva do fenmeno cromtico. Durante o Iluminismo vrios estudos sobre a cegueira so um tema recorrente para analisar a viso subjetiva, nada mais antagnico do que um olhar cego em contraponto ao olhar com a hiperacuidade quase divina do Renascimento, capaz de discernir objetos a uma longa distncia.

A partir do sculo XVII a cor torna-se um elemento fundamental para a diferenciao espacial, tendendo a ser vista como instrumento que ativa a nossa percepo, de modo a dar uma sensao de profundidade. As cores so utilizadas a fim de aproximar (vermelho) ou distanciar (azul) os diferentes planos de percepo. Cada vez mais o que visto passa a ser filtrado atravs da cor. No temos mais objetos isolados pelo desenho como nos quadros que se baseavam exclusivamente na perspectiva para criar um espao virtual. At ento todas as figuras representadas, no importando a distncia, tendiam a apresentar o mesmo grau de nitidez. A pintura de Chardin no mais uma representao da substncia - ou da natureza - como se diz depois da Renascena, mas uma representao do ato de perceber essa substncia. Neste sentido, Baxandall nos mostra como a variao de nitidez de cada objeto revela a percepo do artista e no somente a construo dos vrios planos de um espao como no sfumato presente em alguns quadros do Maneirismo. Trata-se de uma nova forma de se abordar o espao, pois no se busca atravs da perspectiva um espao ideal, mas de afirmar a viso particular de cada artista. O olhar passa a refletir o mundo, no h ciso entre realidade interna e externa.

O pintor joga com os diferentes pontos de vista das figuras representadas bem como do observador em relao a elas, Para incentivar um olhar de longa durao, temas como os jogos de entretenimento do uma dimenso temporal ao olhar concentrado, absorto no jogo. medida que os pintores passam a abor- dar temas mais prosaicos como a natureza morta, a pintura rejeita sua subordinao literatura. Graas a Chardin que Diderot entrev um outro regime para a pintura: o programa do quadro no estabelecido a priori, visto que a execuo se reduz neste caso a explicitao de um contedo, de uma histria. H algo mais a apreender em um quadro do que a ilustrao de uma ideia ou um tema: uma nova sensao de cores, uma nova fisionomia de objetos culturais ou naturais, um saber visual e um prazer do visvel inexprimvel em palavras. Diderot busca descrever sua obra e, na falta de compreender tudo, fala de mgica. No salo de 1767 Diderot afirma: As composies de Chardin chamam a ateno tanto do ignorante como do especialista. de um vigor cromtico inacreditvel, de uma harmonia geral, um efeito picante e verdadeiro, belas massas, uma magia de fazer desesperadora, um mistura de variedade e de ordem. Distancie-se, aproxime-se, a mesma iluso (note a reao perspectiva - que pressupe um observador esttico), nada de confuso, nada de simetria, nenhuma papillotage (embrulho), o olho se recria a todo instante, pois h calma e repouso. Paramos-nos diante de um Chardin como que por instinto, como um viajante fatigado de seu percurso ao sentar-se sem estar ciente do lugar que lhe oferece a vegetao, silencio, sombra e gua fresca. Anos mais tarde Matisse nos diz que procura propiciar em suas pinturas a mesma sensao para um observador fatigado do trabalho.

Olhar e impressoMonet, Impression soleil levant, 1874. (fig. 06)

Com o Impressionismo a percepo passa progressivamente a se tornar o prprio motivo do quadro. A extino dos universos clssico e romntico trouxe, para a pintura, a perda dos contextos coerentes e coesos dos quais ela derivava e se alimentava. Os artistas buscam novos motivos diante de situaes novas, para os quais no possua referncias seguras. A fim de reencontrar a natureza os artistas impressionistas precisam abrir mo do olhar treinado pela academia. Surge um mpeto comum entre os jovens artistas para a observao direta da natureza, vista sob a tica e o temperamento do artista. Em vrios quadros impressionistas podemos notar espectadores que se deleitavam com o revigoramento dos sentidos propiciados pela paisagem.

Cultiva-se desde o Realismo o olhar ingnuo e puro de uma criana que descobre o espetculo do mundo pouco a pouco. O perodo da primazia da viso sobre os outros sentidos se inicia no sculo XIX com a modernizao das cidades, quando as grandes estruturas de ferro e vidro viabilizam largas janelas e vitrines que passam a mostra o interior dos aposentos. O mundo se torna um grande espetculo a ser vivenciado nas grandes avenidas, nas exposies internacionais, nas bibliotecas, nas lojas de departamento, nos circos e nos jardins de inverno

As transformaes tcnicas tambm fazem com que o homem veja o mundo de outra forma, ao utilizar, ao invs do cavalo, o trem. Vitor Hugo deixou um relato clssico de sua primeira viagem 1835: Um movimento magnfico, indescritvel, tendo de ser experimentado diretamente. A rapidez inacreditvel. As flores beira da estrada deixam de ser flores. E passam a ser manchas, ou melhor, listras vermelhas ou brancas. No existem mais pontos, tudo listrado. As espigas de trigo so grandes cabeleiras amarelas, as verduras so longas tran- as verdes; cidades, campanrios e rvores danam e se mesclam furiosamente no horizonte, vez ou outra, uma sombra, uma forma, um espectro erguido, aparece e desaparece como clares de raio ao lado da porta; um guarda cancela de uniforme. Pessoas dizem no vago; faltam trs lguas, chegaremos a dez minutos

Os estudos sobre a fisiologia da viso sobre os cones e bastonetes evidenciavam a instabilidade de nossa percepo, de modo que a cor interpretada referia-se a uma sensao e no a um objeto. Em 1855, Hermann Helmholtz afirma que nunca percebemos os objetos externos diretamente, pelo contrrio, percebemos apenas seus efeitos no nosso sistema nervoso. A perspectiva perde definitivamente a sua funo, j que o objetivo dos artistas no mais retratar os objetos em um espao virtual: O espao profundo, a retina no . E a pintura no deve interpretar o que est diante dos olhos, mas aquilo que est na retina daquele que olha. No se distingue nem mesmo as coisas e o ambiente espacial luminoso onde se encontram: as cores no so iluminadas, so o fator luminoso, portanto so elementos construtivos do quadro. Livre do desenho diretor a pintura transforma o prprio suporte; o vidro em que o mundo se v seletivamente substitudo pela superfcie da prpria pintura. H tambm o impacto de obras advindas do oriente com novos paradigmas visuais como a gravura japonesa, que apresenta estampas com cores chapadas e vibrantes. Ver cor e superfcie

Monet considerado o impressionista exemplar. Ele abandona cedo os estudos, a erudio e o debate no lhe pareciam ajudar a resolver os problemas da pintura. Suas obras buscam captar o instantneo como experincia, onde a impresso de um momento to relevante como a do momento seguinte, o objeto representado est sempre mudando de aspecto conforme as variaes atmosfricas e cromticas. A aparncia remete srie total das aparncias e no a uma realidade oculta, no esconde a essncia, mas a revela. A impresso surge de um impacto emocional original, no apenas de uma sensao retiniana, mas da sensao vivida.

A apreenso da realidade eminentemente sensorial: ela se faz pelos olhos, pela lngua, pelos ouvidos, pelo nariz, pelas mos. Mas tudo aquilo que recebem os sentidos est filtrado pelos estados segundos da conscincia. Por isso surge a necessidade dos parasos artificiais: as drogas, o enfraquecimento fsico, a febrilidade, a msica de Wagner, prpria a criar uma embriaguez prodigiosa. Baudelaire o homem que no esquece nunca de si. Ele se olha ver, olha para se ver olhar; a sua conscincia da rvore, da casa que contempla e as coisas s lhe parecem atravs dela, mais plidas, menores, menos tocantes, como se ele percebesse atravs de uma luneta. As variaes cromticas podem suavizar as paixes. Em o Pintor da Vida Moderna ele dedica um capitulo especial a maquiagem das mulheres, que por meio das nuances cromticas pode atenuar a passagem do tempo no rosto de uma mulher.Czanne Rideau, cruchon et compotier (1893-1894). (fig. 07)

A natureza morta por sua vez deixa de ser um gnero inferior e passa a ser explorada sistematicamente. Schapiro, em um artigo sobre as maas de Czanne, sabiamente nos mostra como a natureza morta artificial, um microcosmo ao alcance da mo humana. interessante notar como todas as grandes transformaes formais que aparecem na pintura do sc. XVIII at o cubismo muitas vezes aparecem no interior desta segunda natureza. A fim de se dedicar exclusivamente aos estudos dos fenmenos naturais, Czanne teve de abrir mo do seu romantismo e partir para um estudo obsessivo das aparncias, buscando capt-las atravs de pequenas pinceladas justapostas de modo metdico. Ele descobre que, sem se apoiar em certos sistemas de projeo, a realidade fugaz. Poderamos dizer que foi pioneiro ao questionar a pintura impressionista ao buscar ir alm da representao do instante efmero. A percepo entendida como processo construtivo que envolve atividades cerebrais e no apenas a sensao. Em 1904, ele escreve a Emile Bernard Eis algo indiscutvel, estou seguro disso: uma sensao tica produzida em nosso rgo visual que nos faz classificar em termos de tons de luz, meios tons, ou quartos de tons, os planos representados por sensaes cromticas. Czanne o aconselhou a ver na natureza o cone o cilindro e a esfera, algo que est na verdade na nossa mente, pois na natureza, efetivamente, no h linhas retas. Do mesmo modo, a cor para Czanne o lugar onde o nosso crebro e o universo se juntam. Desenho e cor so aplicados na pintura como realidades distintas. Em 1905, chegando ao fim da vida, ele afirma: A sensao da cor que proporciona a luz so a razo para abstraes que no permitem que cubra integralmente a tela. Ele estava ciente da natureza distorcida e fragmentada da imagem, que se completa por um mecanismo fisiolgico de compensao tica, na medida em que o crebro produz uma iluso de continuidade dos diversos momentos perceptivos, deste modo, ele alcana a profundidade que tanto almejou. Mediante a introduo de um verde no cu, de um azul na terra etc. suspende-se as definies locais e, portanto, os limites estveis ou as formas dos objetos Ao pensar a pintura no mais como um processo mimtico, mas como processo construtivo, Czanne da um passo definitivo em direo a arte moderna. inicia-se o eterno conflito entre desenho e cor, como afirma Matisse alguns anos mais tarde, cor ao invs de subsumir ao controle da linha a pincelada passa a criar massas cromticas que desafiam o esboo previamente traado.Seurat , Tour Eiffel , 1889 (fig. 08)

No neo-impressionismo o olhar do pintor torna-se exemplar para o observador: no toa que Signac escreve sobre LEducation de LOeil. As regras agora so institudas pelo olhar do artista, que cria um mundo novo a partir dos efeitos luminosos que produz na tela e que se refletem no olho do observador: A cor pela cor, sem outro pretexto! . Busca-se compreender suas leis de interao, criar uma metodologia de ordenao das cores, criar uma gramtica, a fim de instrumentalizar a operao construtiva do pintor: observao das leis sobre as cores, uso exclusivo de cores puras, renunciar a mistura tantas vezes utilizada, equilbrio metdico de elementos; eis a o progresso que os impressionistas deixaram por fazer aos pintores inquietos com sua pesquisa. Esta tarefa se transforma no mtodo pontilhista. Para os neo-impressionistas a cor deve ser pura, pois sua sntese se d doravante na retina do observador. A superfcie do quadro torna-se seu espelho, uma vez que a interao das cores feita a partir de contrastes simultneos entre cores complementares. de importncia fundamental: Que a analise da viso esteja presente no procedimento tcnico, que, decompondo a sensao visual, reconhea-se que ela no uma simples impresso, mas tem uma estrutura e se desenvolve atravs de um processo, que o quadro seja construdo com a matria-cor e que esta tenha um carter funcional, como os elementos de sustentao de uma arquitetura, que o quadro no seja mais considerado como uma tela onde se projeta a imagem, e sim como um campo de foras em interao que formam ou organizam a imagem. Eles procuravam essencialmente snteses cromticas no nosso olhar. Para este fim, buscavam cores puras, mas a relao entre as cores era medida unicamente pelo efeito que produziam na nossa retina. Paradoxalmente, os pontos de cores, utilizados de maneira sistemtica, acabavam produzindo no seu conjunto uma tonalidade cinza.

O princpio da mistura tica, decisivo para o neoimpressionismo, est claramente exposto por Rood, um dos tericos cuja obra foi objeto de estudo de Seurat. O fsico explica dois modos opostos e governados por diferentes leis de se obter uma determinada cor: o principio aditivo baseado na mistura de luze o princpio subtrativo baseado na mistura de pigmentos. Ver cor e fotografiaA cor expressivaPara o artista a criao comea na viso. Ver j uma operao criadora que exige um esforo. Tudo o que vemos na vida corrente sofre mais ou menos a deformao que os hbitos adquiridos provocam, e o fato talvez mais sensvel numa poca como a nossa, em que o cinema, a publicidade e as revistas nos impem quotidianamente uma profuso de imagens j feitas, que so, de certo modo, no mbito da viso o que o preconceito no mbito da inteligncia.

A grande conquista da arte moderna foi a expresso pela cor. Matisse.

Em Gauguin, Munch e Van Gogh, e em seguida com o fauvismo podemos perceber um processo de objetivao da pintura como pintura, tinta aplicada na tela e no um gesto que nos levaria diretamente ao seu referente. Ao contrrio do pontilhismo que, paradoxalmente, acaba neutralizando a composio cromtica atravs da mistura tica, estes artistas buscam uma pincelada que carrega a cor pura, e que, ao interagir com as coloraes vizinhas, passa a modular as formas. As cores afirmam sua presena na tela, e no precisam mais necessariamente respeitar as regras da mistura tica. Os artistas se distanciam da teoria cientifica na aplicao da cor como tinta, o que os levam a se interessar muito mais pelo pigmento, sntese subtrativa, do que pela teoria ondulatria, sntese aditiva. Paralelamente a um processo terico de entender a cor atravs da percepo, seu uso pratico tende a mostrar as qualidades extrnsecas da cor-pigmento-matria, principalmente quando a pintura deixa de ser interpretada como um correlato da viso.

Cada cor passa a valer por si mesma, como tinta aplicada na tela, tendo, portanto, uma natureza distinta das cores percebidas, que existem apenas quando sintetizadas na retina. Elas passam antes a expressar um sentimento interno do artista em relao ao tema retratado. Por isso, que estes artistas so considerados figura primordiais para o expressionismo, movimento que se consolida na Alemanha no comeo do sculo vinte e com o fauvismo em Paris durante o mesmo perodo.

O espelhamento entre a retina e a superfcie da tela posto em xeque neste instante, na medida em que estes artistas no buscam reproduzir nos quadros as mesmas sensaes cromticas que observavam. A figura e o espao circundante so construdos a partir de diversos planos cromticos, pincelada e cor se fundem num gesto expressivo. Neste caso, as cores efetivamente desempenham um papel ativo no quadro, j que a interao entre os campos cromticos proporciona uma sensao expansiva da cor, desempenhando assim um papel fundamental na construo do espao pictrico.

Com estes artistas a pincelada e a cor se fundem num gesto expressivo. Neste caso, as cores efetivamente desempenham um papel ativo no quadro, j que a interao entre os campos cromticos proporciona uma sensao expansiva da cor, desempenhando assim um papel fundamental na construo do espao pictrico. Posteriormente, seguindo o caminho aberto por Gauguin e Van Gogh Matisse ir explorar aspecto decorativo advindo do oriente, onde, ao contrario da perspectiva, o arabesco e a cor passam a modular o espao a partir da superfcie.

Matisse, 1905 La raie verte (Portrait de Madame Matisse) leo sobre 40.5 x 32.5 cm Statens Museum for Kunst, Copenhagen (fig.09)

Neste quadro Matisse nos mostra que um retrato uma mulher no precisa ser pintado a fim de proporcionar uma sensao de sua pele, e o artista pode utilizar grandes superfcies com cores gritantes como o verde ao lado do vermelho e fazer uma pintura equilibrada do ponto de vista do contraste entre as cores. Sua atitude causou grande choque no grande publico, que passou a chamar Matisse e seu grupo de "bestas" ( fauves) Na arte moderna a pintura viso passa a ser entendida no mais como registro de uma impresso, mas como um processo cognoscitivo. percepo, e no apenas um mecanismo, mediado pela cultura, pela palavra, pela memria. Cores e formas so entendidas como uma operao construtiva que se distancia de um referente visual previamente estabelecido, tornando-se essencialmente uma operao mental que se recria a cada instante na pintura.

O olhar fragmentado

Pablo Picasso, retrato de Daniel-Henry Kahnweiler, 1910. (fig. 10)

O que tinham visto os cubistas em Czanne? Em primeiro lugar, a construo do quadro, a ideia de que o quadro no , como diziam os impressionistas, uma fatia da natureza servida com arte ou uma janela aberta para o mundo exterior, mas que o quadro , em primeiro lugar uma superfcie de certa dimenso na qual o pintor quer nos entregar suas sensaes. ... Ou seja, eles pintavam desde aquela poca, ao menos parcialmente o que se sabe do objeto e no somente o que se v. Kahnweiler

Picasso estuda um objeto como o cirurgio disseca um cadver. Apollinaire

Com o cubismo temos um a concepo que a pintura uma como realidade concreta e material em detrimento da representao e da aparncia: a pintura no visa mais a impresso do objeto, mas em si um processo de construo do objeto. Em seu belo ensaio intitulado a Ascenso do Cubismo de 1915, Kahnweiler afirma que o cubismo se apoiava na utilizao de formas a priori (cilindro, esfera e o cone de Czanne) sem o qual no existiria para ns uma percepo visual, um mundo fsico. O cubismo recorre a nossa capacidade de sintetizar as percepes internamente a partir dos dados sensveis.Entretanto, se o cubismo analtico aparentemente rompe com o naturalismo ao multiplicar os pontos de vista lanados sob o objeto, ele no capaz de abrir mo do quadro como representao do mundo. A pintura cubista inicial ainda nos remete a uma metfora visual, uma forma de viso do objeto exterior. Da a utilizao tardia do chiaroscuro como resqucio de uma iluminao natural que confere aos objetos uma aparncia tridimensional. Ser a partir da colagem que o cubismo sinttico poder, paulatinamente, abrir mo do naturalismo ainda restante na fase anterior. ver cor e colagem

Embora a palheta se torne mais homognea no perodo cubista analtico, o espao construdo pela tnue variao dos planos cromticos. Os diversos matizes de cinza e marrom animam o espao atravs da sobreposio de planos. O cubismo efetua, segundo Braque, uma explorao que parte da crtica da cor local e leva a ciso entre forma e cor: quanto ao tom local, antes se desenhava um objeto e ele implicitamente tinha sua cor, no ? Pois bem, ns percebemos que a cor agia independentemente da forma. A ao independente da cor a conduz cada vez mais para o espao real, a cor entendida cada vez mais como matria: notei quanto a cor depende da matria. Eis um exemplo: molhe dois tecidos brancos com matrias diferente na mesma tinta, as suas cores sero diferentes. evidente que esta dependncia que liga a cor matria ainda mais sensvel na pintura. E o que me agradava muito era precisamente esta materialidade que me era dada pelos diversos materiais que eu introduzia nos meus quadros.

Posteriormente, com o Cubismo sinttico e a colagem, a cor se transforma numa entidade cada vez mais autnoma. A relao entre os diversos planos cromticos torna-se cada vez mais importante para a construo do espao, uma vez que a linha que contornava as figuras no perodo anterior no modula mais a figura a partir do claro-escuro, o trao passa a vagar livremente pelos diversos campos de cor.

atravs da cor que os suprematistas russos conseguem liberar-se da forma do objeto representado. Partindo do branco sobre branco Malvitch inicia a pesquisa sobre os monocromos. A tela se torna um quadrado que recorta a cor no espao. O Cubismo e o Futurismo a seu ver ainda estavam atrelados ao tema do objeto. A cor vermelha por si mais dinmica do que a falsa sensao de movimento que os futuristas tentavam criar: O galope de um cavalo pode ser transmitido com um nico tom de lpis. Mas impossvel transmitir o movimento do vermelho, do verde ou das massas azuis com um nico lpis. A cor seria o nico caminho para se chegar ao que ele chamava de quarta dimenso, o tempo. Deste modo, artistas como Malvitch passam considerar o tempo como um valor consciente na percepo do espao de uma obra.

Os pintores modernos percebem efetivamente que no existe uma correlao fixa entre a pintura (de duas dimenses) e o mundo percebido. Existem certos mecanismos visuais tais como constncia cromtica, viso seletiva, que no podem ser projetados diretamente em uma superfcie plana. A pintura afirma assim sua autonomia no incio deste sculo. A tela torna-se um terreno livre para as experincias cromticas. O pintor moderno no procura reproduzir nos quadros as mesmas cores que v. A pintura uma realidade vivente e autnoma e no apenas uma representao. A cor ganha sua autonomia quando pensada como um fenmeno vivo que existe por si mesmo, e no como um simples meio de representar o mundo sensvel. No h mais a ideia de um espao estabelecido a priori. A construo do espao pictrico mediada tanto pelo trabalho do artista como pela experincia do olhar do observador. Antes do que uma simples tela projetada, a viso representa a possibilidade de apreendermos as coisas ao nosso redor. Ela no pode ser mais entendida segundo um modelo esttico: a viso uma ao.O olhar se torna mvel e ubquo e a cor comea a ser pensada revelia de um ponto de vista fixo ou at mesmo de uma figura desenhada previamente. Torna-se possvel experimentar diferentes abordagens espaciais da cor.

A viso passa a ser entendida como processo (e no apenas um mecanismo) mediado pela cultura, pela palavra, pela memria. neste momento que artistas como Marcel Duchamp realizam uma crtica do olhar retiniano, pautado na concepo de um olhar puramente visual, e questionam qual ser o lugar que uma obra de arte deve ocupar no mundo moderno. Cores e formas so entendidas como uma operao construtiva que se distancia de um referente visual previamente estabelecido, tornando-se essencialmente uma operao mental. Segundo Duchamp, finalmente a pintura est pronta novamente para suscitar outro tipos de associaes no apenas visuais.

As cores assim parecem progressivamente se objetivar no mundo e escapar do olho. Este processo que vem desde a Renascena se distingue por trs fases (ou recortes ideais) distintas: no primeiro momento, quando o olhar regido pelas leis da perspectiva, o ponto de vista se espelha no ponto de fuga virtual, na medida em que ambos criam a iluso de um espao tridimensional. As cores neste caso, em maior ou menor grau, so sempre monitoradas por um desenho previamente dado. No segundo momento, o olho visto como um instrumento ptico mvel e a retina como um rgo capaz de produzir as cores. A superfcie da tela passa a espelhar a retina, visto que ambas produzem cores em um espao bidimensional, seja na superfcie da tela, seja na prpria retina. Neste instante, as cores ganham mais autonomia, na medida em que passam a sugerir um espao a partir de suas relaes. Em seguida, quando o vnculo entre a visualidade pictrica e o mundo percebido se quebra, as cores passam a ser entendidas como elementos construtivos capazes de estabelecer novas relaes espaciais revelia de um mundo previamente representado. Esta conquista do espao comea com a afirmao da autonomia da pintura frente o mundo percebido, neste sentido, a pintura tende a se firmar como tinta aplicada na superfcie da tela. No que os artistas no soubessem que toda pintura feita sobre um plano bidimensional, a pintura sempre jogou com esta ambiguidade entre um mundo representado em duas dimenses e o espao percebido em trs dimenses, mas na medida em que a pintura vista como uma pintura, e no um correlato ptico da viso, os pintores modernos tendem a salientar oque uma pintura tem de particular, ou seja, o fato de situar-se apenas em dois planos.

Este breve recorte temporal deve ser entendido como um prembulo necessrio para entender as novas possibilidades que se abriram a partir de ento para o uso da cor. preciso salientar que este processo de objetivao da cor que, como veremos (ver cor e superficie), acentua-se ainda mais neste sculo, paradoxalmente cada vez mais exige do espectador sua cumplicidade fisiolgica, para no falar subjetiva. Talvez fosse mais correto dizer que as pinturas refletem cada vez mais uma conscincia crtica do artista sobre as potencialidades espaciais da cor. Este processo no pode ser entendido em hiptese alguma como uma teleologia da cor, cada momento em si deve ser compreendido como um recorte que contm sua forma de saber. Mas na medida em que a arte cada vez mais questiona a si mesma, natural que uma percepo crtica da cor se torne cada vez mais presente nas obras.

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