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Revista Direito e Práxis E-ISSN: 2179-8966 [email protected] Universidade do Estado do Rio de Janeiro Brasil de Moraes Alfonsin, Betânia A ordem jurídico-urbanística nas trincheiras do Poder Judiciário Revista Direito e Práxis, vol. 7, núm. 14, 2016, pp. 421-453 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350945825016 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Revista Direito e Práxis

E-ISSN: 2179-8966

[email protected]

Universidade do Estado do Rio de

Janeiro

Brasil

de Moraes Alfonsin, Betânia

A ordem jurídico-urbanística nas trincheiras do Poder Judiciário

Revista Direito e Práxis, vol. 7, núm. 14, 2016, pp. 421-453

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350945825016

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RiodeJaneiro,Vol.07,N.14,2016,p.421-453BetâniadeMoraesAlfonsinetal.DOI:10.12957/dep.2016.22951|ISSN:2179-8966

A ordem jurídico-urbanística nas trincheiras doPoderJudiciárioThelegal-urbanorderinthejudicialtrenches

BetâniadeMoraesAlfonsinetal

ArtigodeautoriacoletivadoGrupodePesquisaemDireitoUrbanísticodaFaculdadedeDireitodaFundaçãoEscolaSuperiordoMinistérioPúblico (FMP),coordenadoporBetâniadeMoraesAlfonsin,ProfessoradaFaculdadedeDireitodaFMPeDoutoraemPlanejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ ([email protected]). Equipe depesquisa: Aline Alves Rocha, Graduanda em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS([email protected]);FernandaPeixotoGoldenfum,BacharelaemCiênciasJurídicaseSociaispelaPUCRS,EspecialistaemDireitoMunicipalpelaESDM/FMPeAnalistadaDefensoria Pública do Rio Grande do Sul ([email protected]); LuisaAlmeida Amin, Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela FMP([email protected]); Pedro Prazeres Fraga Pereira, Bacharel em CiênciasJurídicas e Sociais pela FMP e Mestrando em Direito pela UFRGS([email protected]); Stéfanie Berthold, Graduanda em Ciências Jurídicas eSociaispelaFMP([email protected]);eVicentedeAzevedoBastianCortese,BacharelemCiênciasJurídicaseSociaispelaFMPeMestrandoemDireitopelaUFRGS([email protected]).

Artigorecebidoeaceitoemmaiode2016.

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Resumo

OartigoapresentaosresultadosdeumapesquisarealizadajuntoaoTribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul acerca da receptividade da nova ordem

jurídico-urbanística brasileira em demandas julgadas entre 2011 e 2015. Os

achadosindicamqueumapeculiarformadeativismojudicialépraticadapelo

tribunal,jáqueaefetividadedoEstatutodaCidademostrou-semaiorquando

o Poder Público se encontra no polo passivo das ações e menor quando

particulares têmodireitodepropriedadequestionadoem juízo. Talmaneira

seletiva de aplicar a lei implica em um fortalecimento do “modelo

proprietário”emdetrimentodoparadigmaemergente.A investigação revela

que o desconhecimento da nova ordem jurídico-urbanística por parte tanto

dos litigantesquantodosmagistradostambémexplicaabaixaefetividadedo

EstatutodaCidadenastrincheirasdoPoderJudiciário.

Palavras-chave: Nova ordem jurídico-urbanística; Estatuto da Cidade; Poder

Judiciário.

Abstract

This article presents the results of a survey on the receptiveness of the

Brazilian new legal-urbanorder involving the decisions of theRioGrandedo

Sul Court of Appeals between 2011 and 2015. The findings indicate that a

particular form of judicial activism is practiced by the court since the

effectiveness of the City Statute was higher when public authorities are

defendants in the lawsuits and lower when individuals have the right of

ownershipquestioned incourt.Suchselectivewaytoapplythe law impliesa

strengthening of the “proprietary model” to the detriment of the emerging

paradigm. The survey suggests that lack of knowledge about the new legal-

urban order on the part of both litigants and magistrates explains the low

effectivenessoftheCityStatuteinthejudicialtrenches.

Keywords:Newlegal-urbanorder;CityStatute;Judiciary.

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Introdução

A produção de cidades na América Latina, marcada pela convivência de

processos legais e ilegais de acesso à terra, embora tenha sido regida pelo

DireitoCivilaolongodequasetodooséculoXX,experimentouumamudança

nopadrãoderegulação,especialmentenaúltimadécadadoséculopassadoe

naprimeiradécadadoséculoXXI.1

No Brasil, a construção de uma nova ordem jurídico-urbanística

começa em 1988, com a promulgação da Constituição Federal2, e tem seu

marcolegaldetalhadoem2001,comoEstatutodaCidade3.Ocasobrasileiroé

merecedor de pesquisa. O país conquistou um marco legal avançado, que

previu efeitos jurídicos concretos para o desatendimento do princípio da

funçãosocialdapropriedadee introduziuodireitoàcidadenoordenamento

jurídicopátrio.Noentanto,anovaordemjurídico-urbanísticaparececonviver,

ainda hoje, com a antiga ordem civilista, aqui denominada de “modelo

proprietário”, paradigma comprometido com uma concepção de direito de

propriedadedecaráterabsoluto,exclusivo,individualeperpétuo.

Opresenteartigoprocuraenfrentaroproblemadaefetividadedessa

novaordemjurídico-urbanísticanoBrasil,notadamentenoquedizrespeitoao

âmbito do Poder Judiciário. Tal agenda de pesquisa emerge de duas

constatações aparentemente contraditórias: (i) sendo a política urbana de

competência municipal (art. 30, VIII e art. 182 da Constituição Federal), os

poderesExecutivoeLegislativodosmunicípiostêmtratadode incorporar,ao

menosminimamente, asdiretrizese instrumentosdoEstatutodaCidadeem

1Exemplos representativosde talmudança sãoos casosdeColômbiaeBrasil, que vemsendoestudados internacionalmente como experiências emblemáticas da emergência do DireitoUrbanístico na América Latina. Para uma excelente retrospectiva do processo de reformajurídicaede reformaurbananaColômbia,emqueaantigaordemcivilistadeu lugaràLeydeReformaUrbanade1988eàLeydeDesarrolloTerritorialde1997,verMALDONADOCOPELLO,Maria Mercedes. El proceso de construccióndel sistema jurídico colombiano: entre reformaurbana y ordenamiento territorial. In: FERNANDES, Edesio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.).DireitoUrbanístico:estudosbrasileirose internacionais.BeloHorizonte:DelRey,2006,p.25-58.Paraumestudomaisaprofundadodotema,verALFONSIN,Betânia.Apolíticaurbanaemdisputa:desafios para a efetividade de novos instrumentos em uma perspectiva analítica deDireitoUrbanístico Comparado. Tese de Doutorado. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano eRegionaldaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro,2008.2BRASIL.ConstituiçãoFederal,ConstituiçãodaRepúblicaFederativadoBrasil,de05deoutubrode1988.3BRASIL.EstatutodaCidade,LeiFederalnº10.257,de10dejulhode2001.

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seus planos diretores e na legislação urbanística decorrente4; (ii) apesar da

massiva incorporação de novos instrumentos à legislação urbanística

municipal, os conflitos territoriais envolvendo posse e propriedade, muitas

vezes com ordens judiciais de despejo cumpridas de maneira bastante

violenta,sãofrequentesemtodoopaís5.

Considerando tal paradoxo eo papel preponderante do Poder

Judiciárionassituaçõesdedespejosforçados,estapesquisa,realizadaaolongo

de2015,tomouporobjetodeanáliseoacervojurisprudencialdoTribunalde

JustiçadoRioGrandedoSul(TJRS),afimdeverificaremquemedidaoEstatuto

daCidadefoiaplicadoemcasosconcretos,considerandotemas-chavedonovo

paradigma,comoodireitoàcidadeeodireitoàmoradia.Trabalhou-secoma

hipótesedeque,apesardosavanços legislativosrepresentadospeloEstatuto

da Cidade, a jurisprudência do tribunal selecionado revelaria a existência de

uma disputa de fundo em torno da política urbana, na qual o paradigma

civilista teria hegemonia, em desfavor da nova ordem jurídico-urbanística

brasileira.

A investigação demonstrou que tal disputa paradigmática

efetivamenteexiste,masquea formacomooEstatutodaCidadeéaplicado

(ou não) pelo TJRS está longe de ser uniforme e depende de vários outros

fatores envolvidos nos casos concretos. Em muitos casos analisados

identificou-seumaespéciedeativismojudicialbastantesingular,adicionando

complexidadesàsconclusõesdapesquisa.Emboraaanáliseconfirmequehá

umatransiçãoparadigmáticaaindaemcursona regulaçãodapolíticaurbana

no Brasil, percebe-se que o avanço jurisprudencial é lento, assistemático e

evoluide formadistintaconformeapresençadeatorespúblicosouprivados

noscasosconcretos.

No decorrer deste trabalho serão discutidos os traços característicos

do paradigma civilista, bem como aqueles próprios da nova ordem jurídico-4Paraumaavaliaçãodosnovosplanosdiretoresbrasileirosea incorporaçãodasdiretrizesdaPolítica Urbana e dos novos instrumentos urbanísticos pelas leis municipais ver: SANTOSJÚNIOR,OrlandoAlvesdosSantos;MONTANDON,DanielTodtmann(Orgs.).OsplanosdiretoresmunicipaisPósEstatutodaCidade:balançocríticoeperspectivas.RiodeJaneiro:LetraCapital,2011.5Ver análise de um caso notório e de negativa repercussão internacional emKONZEN, Lucas.Conflictos urbanos y activismo judicial en Brasil: el caso Pinheirinho. In AZUELA, Antonio;CANCINO, Miguel Angelo (Orgs). Jueces y conflictos urbanos en América Latina. IRGLUS:México,2014.p.223-246.

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urbanística(seções1e2);aquestãodoativismojudicialnocontextodoBrasil

(seção 3); a metodologia da pesquisa empírica (seção 4); e o conteúdo dos

acórdãosselecionadosapartirdaspalavras-chaveutilizadas(seções5a9).Ao

final,sãoapresentadasasconclusõesdapesquisa.

1.Oparadigmacivilistaou“modeloproprietário”nodireitobrasileiro

Nodomíniodaregulaçãodosusosdaterra,ahistóriabrasileiraémarcadapor

certo descompasso entre as grandes inovações legislativas e o conjunto de

práticas sociais subjacentes. Tal desarmonia entre textos e contextos, ainda

que carregue múltiplas e distintas explicações ao longo dos diferentes

capítuloshistóricosnacionais,persisteatéosdiasdehoje, tendono instituto

dapropriedadeumexemploprivilegiado.

Uma dessas grandes inovações deu-se com a promulgação da

ConstituiçãoFederal,responsávelporinaugurarumnovoparadigmanaforma

de se compreender juridicamente os contornos do direito de propriedade e,

por consequência, os direitos à cidade e à moradia. Visando destacar o

significado dessa mudança paradigmática, cabe dedicar algumas linhas à

descriçãosumáriadasgenealogiasdasformasderegulaçãodosusosdaterra

no Brasil, anotando seus traços mais marcantes. Ainda que não se trate de

incursão histórica de maior fôlego, este olhar para trás contribui para a

adequada compreensão dos desafios contemporâneos colocados ao Direito

Urbanísticobrasileiro.

Comefeito,pode-sedizerquevingounoBrasil,atémeadosdoséculo

XIX, a velha tradiçãododireito comumeuropeu, comemanações legislativas

quase integralmente provindas do além-mar, ainda que sempre adaptadas e

ressignificadas a partir das particularidades locais. No âmbito do direito de

propriedade as coisas não foram diferentes. Ainda que cercada de

particularidades locaisediferençasdecisivasemrelaçãoàrealidadeeuropeia

medieval6,aexistênciadecaracterísticaspré-modernasnaregulaçãodosusos

6Para uma excelente síntese sobre o direito de propriedade na ordem jurídicamedieval, verGROSSI,Paolo.Históriadapropriedadeeoutrosensaios.RiodeJaneiro:Renovar,2006.

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da terra também se verificou no Brasil. Ao longo da empresa colonial e de

parte importantedoperíodo imperial,apolíticadeterrasnopaís incorporou

um misto de institutos feudais e mercantis carregados de flexibilidade,

precariedade e informalidade, cujos contornos iam se adaptando às

transformaçõesdemográficasesocioeconômicaspelasquaispassavaoBrasil.

Tal processo de modernização vinha acompanhado de mudanças

profundasnosfundamentosdagestãodavidapública,incidindonaformacom

queseconcebiaepraticavaodireito.Esseethospermeadopeloracionalismo

iluminista característico do ideário liberal-republicano que marcava o novo

desenhopolíticodopaísencontroudesdobramentonaconformaçãododireito

de propriedade. A propriedade passa a ser concebida como um direito

absoluto,pleno, tendencialmenteperpétuoeessencialmenteprivado,nãose

sujeitandoalimitaçõesexternas,conferindoaseutitularumaposiçãojurídica

praticamente imune a limitações ou interferências externas 7 .Tal ideário

reconfiguraodireitodepropriedade, “[...] a talpontoqueumdosprincipais

elementosconstitutivosdasnascentesentidadespolíticasburguesaséamais

rígida proteção a eventuais ataques ao ‘sagrado’ e ‘absoluto’ direito de

propriedade – e isso tanto da parte do Estado quanto de outros

particulares”8.Éaessadoutrinaquesedesignapor“modeloproprietário”9.

Se essas concepções de propriedade já ecoavam na produção dos

juristasbrasileirosdoséculoXIX,o reflexonodireitopositivosó se fezsentir

como adventoda Lei de Terras10, ummarco jurídicode inserçãodopaís no

círculo capitalista moderno. O diploma legal transparece ao menos três

objetivos: a contenção de ocupações informais de terras devolutas, a

formalizaçãodaspropriedadespormeiodetitulaçõeseofomentodamãode

obraimigrantenaslavouras.Ébemverdade,porém,queaLeideTerraspouco

alterou as relações de dominação há muito estabelecidas, ainda que tenha

servidopara legitimá-las a partir de novas bases jurídicas.Dopontode vista

jurídico, tais relações, até entãomarcadas pelos laços de cunho pessoal e à

7HESPANHA,AntonioManuel.Direitoluso-brasileironoAntigoRegime.Florianópolis:FundaçãoBoiteux,2005.p.87-89.8FONSECA, RicardoMarcelo. A Lei de Terras e o advento da propriedademoderna no Brasil.AnuarioMexicanodeHistoriadelDerecho,v.17,2005.p.104.9Segue-seaalcunhaempregadaporHESPANHA,AntonioManuel,Op.cit.,p.92.10BRASIL.LeideTerras,Leinº.601,de18desetembrode1850.

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mercêdosdesígniosdacoroa,passamaassumirao longodesteprocessode

modernização formas ditadas pelos proprietários e dependentes do

mercado11.Os ecos desse liberalismo pátrio relativo à propriedade, ainda se

fazem sentir com indesejável constância na práxis jurídico-política referente

aos conflitos urbanos, constituindo o denominado paradigma civilista,

plasmadonasdisposiçõesdoCódigoCivil12.

2.Oparadigmadanovaordemjurídico-urbanísticabrasileira

A Constituição Federal de 1988 é apontada por muitos estudiosos como o

marco fundadordoDireitoUrbanísticobrasileiro, jáquepelaprimeiravezna

história constitucional da República se deu visibilidade à questão urbana.13O

capítulo da Política Urbana foi resultado da Emenda Popular da Reforma

Urbana, frutodeumamploprocessodemobilizaçãodediversasentidadese

movimentossociaisàépocadaAssembleiaNacionalConstituinte.Maisde130

mil assinaturas foram coletadas em todo o país visando incluir vinte e três

artigossobrepolíticadedesenvolvimentourbanonaConstituição.Emfunção

do conteúdo inovador da proposta, a emenda foi mutilada nos debates

constituintes hegemonizados pelo bloco de centro-direita conhecido como

“Centrão”,restandonaConstituiçãoapenasosarts.182e183.14

O teor progressista do capítulo da Política Urbana, no entanto, foi

preservado. Segundo as disposições constitucionais, o tratamento do direito

de propriedade, quando o mesmo recair sobre um imóvel urbano, fica

submetido à disciplina do Plano Diretor do município e deve ser exercido

objetivando o pleno cumprimento das funções sociais da cidade e da

propriedade. Além disto, foram incluídos instrumentos capazes de conferir

efeitos jurídicos ao princípio da função social da propriedade, como o

parcelamento e edificação compulsórios, o Imposto Predial e Territorial

11FONSECA,RicardoMarcelo,Op.cit.,p.122.12BRASIL.CódigoCivil,LeiFederalnº.10.406,de10dejaneirode2002.13Cf., por exemplo, os textos reunidosemMATTOS, LianaPortilho (Org.).Estatuto da CidadeComentado.BeloHorizonte:Mandamentos,2002.14ParaumresgatedoprocessodeconstitucionalizaçãodapolíticaurbananoBrasil,verBASSUL,José Roberto. Estatuto da Cidade: quem ganhou? Quem perdeu? Brasília: Senado Federal,2005.

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Urbanoprogressivonotempoeadesapropriaçãocompagamentoemtítulos

dadívidapúblicadosterrenosnãoedificados,nãoutilizadosousubutilizados.

Por fim,umanovamodalidadedeusucapiãofoi introduzidanoordenamento

jurídico,baseando-senautilizaçãofamiliardoterrenopara finsdemoradiae

reduzindo para cinco anos o prazo prescricional para aquisição do domínio.

Todavia,muitas das disposições contidas no capítulo da Política Urbana não

eram autoaplicáveis e demandavam a aprovação de uma lei federal

regulamentandoamatéria.

Por isso,a lutadomovimentopela reformaurbanacontinuouapósa

promulgação da Constituição Federal, visando fazer com que o Congresso

NacionalexaminasseeaprovasseoprojetodeleidoEstatutodaCidade,oque

sóveioaocorrerem2001.Pelaradicalmudançapromovidanotratamentodo

direito de propriedade urbana no Brasil e na regulação da política urbana,

representando uma verdadeira ruptura paradigmática, o Estatuto da Cidade

consolidouuma“novaordemjurídico-urbanística”,termocunhadoporEdésio

Fernandes e amplamente utilizado pelos doutrinadores do Direito

Urbanístico.15

AsrazõespelasquaisoEstatutodaCidademarcaaemergênciadeuma

nova ordem jurídico-urbanística passam pelas características deste diploma

legal: a) ruptura com o modelo civilista anterior à Constituição de 1988 e

abandono do “modelo proprietário” no qual o direito de propriedade é

exercido pelo proprietário com exclusividade e com prevalência da função

econômicadobem;b)submissãodapropriedadeurbana,tantopúblicaquanto

privada,aoprincípiodafunçãosocialdapropriedade;c)urbanismoassumido

como uma função pública e a cidade percebida como um bem coletivo; d)

indicaçãode instrumentos jurídicos, tributárioseurbanísticosparagarantira

efetividade de princípios e diretrizes da política urbana; e) Plano Diretor

reconhecido como lei ordenadora da política urbana, a ser elaborado com

ampla participação popular e competente para fixar critérios e instrumentos

paraqueosterrenosurbanosatendamasuafunçãosocial;f)democratização

da gestão da política urbana; g) emergência de diversos direitos difusos e

15FERNANDES, Edesio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre atrajetóriadoDireitoUrbanísticonoBrasil.In:MATTOS,LianaPortilho(Org.).EstatutodaCidadeComentado.BeloHorizonte:Mandamentos,2002.p.31-64.

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coletivos. Quanto à última característica, destacam-se o direito à cidade

sustentávelcomodireitocoletivodoshabitantesdascidades,entendidocomo

umfeixededireitosurbanosligadosàinfraestruturaeaosserviços,aliadoao

direito à preservação do meio ambiente; o direito à regularização fundiária

quegarantaodireitoàmoradiadigna,atravésdausucapiãourbanacoletivaou

individuale/oudaconcessãodeusoespecialparafinsdemoradia,conformea

ocupação tenha se dado em área privada ou pública, respectivamente; e o

direitoà justadistribuiçãodosônusebenefíciosdoprocessodeurbanização,

com recuperação pela coletividade da valorização imobiliária decorrente dos

investimentosdoPoderPúblico.

Considerando que antes da promulgação do Estatuto da Cidade os

municípiosexerciamapolíticaurbanatendopormarco legaloCódigoCivil,a

lei que fixa a pedra angular do Direito Privado, o giro paradigmático em

direção ao Direito Público é notável. A propriedade deixa de ser assunto de

interessedaórbitadoproprietárioparatornar-seumtemadedebatecoletivo,

visandooplenoatendimentodasfunçõessociaisdacidade.

Ainda que os comandos tanto dos arts.182 e 183 da Constituição

Federal quanto do Estatuto da Cidade estejam dirigidos prioritariamente ao

PoderExecutivomunicipal(jáqueomunicípioéoentefederativocompetente

paraaexecuçãodaPolíticaUrbana)eaoPoderLegislativomunicipal(jáqueas

Câmaras de Vereadores devem aprovar o Plano Diretor), também o Poder

Judiciário deve observá-los. Da nova ordem jurídico-urbanística brasileira

também resta claro que, ao analisar questões relacionadas à propriedade

urbana (seja ela pública ou privada), deve o julgador atentar para o que

estabelece a lei do plano diretor de cadamunicípio, que estabelece como a

propriedadeurbanaatenderáasuafunçãosocial.

Em períodos de transição paradigmática, como o que atravessa o

direito de propriedade urbana no Brasil, com a emergência da nova ordem

jurídico urbanística, é bastante comum que movimentos de avanços

institucionais, políticos, sociais e jurisprudenciais caminhem lado a lado com

eventuais recuos, reveladores da influência exercida, ainda, pelo antigo

paradigma.É justamenteafimdeverificaremquemomentodetaltransição

encontra-se o TJRS que se decidiu analisar a sua jurisprudência. Antes de

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apresentar a metodologia seguida na pesquisa, entretanto, é necessário

abordar, aindaque sucintamente,aquestãodoativismo judicialnocontexto

brasileiro.

3.Aquestãodoativismojudicial

O ativismo judicial é definido, nas palavras de Luís Roberto Barroso, como

“uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos

valores e fins constitucionais, commaior interferêncianoespaçode atuação

dosoutrosdoisPoderes”16.Emseguida,deixandoclaroquenãopretendelistar

exaustivamenteoscasosemqueseobservaareferidaconduta,Barrosoafirma

queestesincluem:

(i) a aplicação direta da Constituição a situações nãoexpressamente contempladas em seu texto eindependentementedemanifestaçãodo legisladorordinário; (ii)a declaração de inconstitucionalidade de atos normativosemanadosdolegislador,combaseemcritériosmenosrígidosqueos de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) aimposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público,notadamenteemmatériadepolíticaspúblicas.17

No mesmo sentido, Lucas Konzen utiliza definição que muito se

aproximadavisãoarticuladaporBarroso,quandose refereao fenômenodo

ativismo como um dos resultados da nova ordem jurídico-urbanística na

atuaçãojurisdicionaldoEstadobrasileiro:

[…]fenômenodoativismojudicialarespeitodosdireitossociais,sobretudo saúde e educação, o qual se relaciona com osurgimento de novas doutrinas sobre a eficácia jurídica dasnormas constitucionais. É dizer, um esforço de criaçãojurisprudencialdeinterpretaçõesinovadorasdodireitopositivo.18

16 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidadedemocrática.(Syn)thesis,,v.5,n.1,p.23-32,2012.p.25-26.17BARROSO,LuísRoberto,Opcit.,p.25-26.18KONZEN,Lucas,Op.cit.,p.225.

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A referênciaa tais textos servepara ilustraro significadoatualmente

dominante no Brasil (e no mundo do direito continental de maneira geral)

acerca do ativismo judicial. A judicialização de matérias que guardavam

originariamente natureza exclusivamente política (advinda no Brasil das

mudanças impostas pela nova ordem constitucional que seguiu a

redemocratização), inserida no novo paradigma dogmático e político do

constitucionalismo ocidental de fins do século XX servem para explicar essa

compreensão.Comefeito,talinovaçãolevouàcrisedaconcepçãoclássicada

separaçãodepoderes,namedidaemqueoPoderJudiciárioassumiuopapel

deprotagonistanaconcretizaçãodosconteúdosdaConstituiçãoecontrolador

doslimitesdaliberdadedeconformaçãodoPoderLegislativo.19

É natural, portanto, que a atuação desmedida do Judiciário no

desempenhodesuasnovas funções,ofensivaàesferadeatuaçãodosoutros

Poderes (ativista, portanto) seja identificada comoumaexacerbaçãodeuma

atuação que se pretende proativa e progressista, como são as posturas

comissivasdefinidaspelosautoresreferidos.

O conceito de ativismo judicial que se pretende adotar aqui, no

entanto,diferedaqueleadotadodemaneiracorrente,talcomopelosautores

referidos.Issoporqueahipótesequeinformaapresentepesquisapressupõea

existência de instrumentos legais consolidados pelo Estatuto da Cidade, que

regulamenta de maneira exaustiva as disposições normativas relativas à

PolíticaUrbanadefinidapelaConstituiçãoFederal.

Aoutrapremissaquecompõeahipóteseaquiapresentada,ademais,é

aquela segundo a qual o Poder Judiciário serve de instrumento ao

conservadorismo civilista, em ofensa, precisamente, não só às disposições

normativasdeordemconstitucional,mastambém(oquemaisimportaparaa

adjetivação de sua postura como ativista) à liberdade de atuação do Poder

Legislativo,quesofrecomonãoreconhecimentodesuaproduçãonormativae

oesvaziamentodesuasfunçõeseprerrogativas.

Assim, não se pretende demonstrar um exemplo de ativismo judicial

decorrente de “uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na

19Cf.BARROSO,LuísRoberto.Neoconstitucionalismoeconstitucionalizaçãododireito:otriunfotardio do direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Administrativo, v. 240, p. 1-42,2005.

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concretizaçãodosvaloresefinsconstitucionais”,oude“umesforçodecriação

jurisprudencial de interpretações inovadoras do direito positivo”, mas, pelo

contrário, um ativismo judicial decorrente do apego à antiga ordem civilista,

em detrimento da inovação realizada no plano do direito positivo em

harmoniacomaordemconstitucionalvigente.

É importante referir, quanto a isso, que a adoção do conceito de

ativismo judicial na designação de uma postura conservadora e omissiva do

PoderJudiciário(conservadoraporquetendenteàmanutençãodeumestado

decoisas;omissivaporquerealizadaapartirdeumnãofazer–nocaso,coma

nãoaplicaçãodalegislaçãoespecíficaexistente)nãoéinovadora.Emverdade,

pormaisestranhaquepossaparecerà luzdocontextodoconstitucionalismo

atual,éexatamenteessaanaturezadasprimeirasmanifestaçõesdeativismo

judicialreconhecidaspeladoutrina20.

Oquesepretendedemonstrarapartirdaanálisedajurisprudênciado

tribunal selecionado, portanto, é a não recepção pelo Poder Judiciário do

Estatuto da Cidade, especialmente no que tange aos direitos à cidade e à

moradia.Talopçãoérealizadaemfavordautilizaçãodeumparadigmacivilista

na resolução de conflitos, inviabilizando, por sua vez, a concretização da

políticaurbanaconsolidadanotextoconstitucionalemaniatandooLegislativo

atravésdaneutralizaçãodesuaproduçãonormativa.

4.Metodologiadapesquisa

A investigação realizada trabalhou com ométodo de abordagem hipotético-

dedutivo,jáqueotrabalhoorientou-seporumahipótesedepesquisabastante

20Essa informação é trazida pelo próprio Barroso em seu artigo, ao citar o casoDred Scott v.Sanford(1857),querepresentaaprimeiravez,desdeocélebreMarburyv.Madison(1803),emqueaSupremaCorteestadunidensefoideencontroaumatodeoutropoder(dessavez,umatonormativodoCongressodosEUA).Cf.BARROSO,LuísRoberto,2012,Op.cit.,p.27.Nocaso,aCorte deixou de aplicar oMissouri Compromise, que vedava a escravidão em algumas partesdesteestado,demaneiraa rejeitaroapelodeDredScott,umhomemnegroescravizadoquepretendiater,combaseemtallei,asualiberdadereconhecida.Ofundamentolegalparatanto,foi adita incapacidadeadprocessumdonegro. Tratou-se,pois,dousodeumargumentodenatureza processual com o objetivo de negar vigência à lei existente, ofendendo a esfera deatuação do Poder Legislativo. Cf. RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema e o direitoconstitucionalamericano.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,1992,p.66;eUSSupremeCourt,DredScottv.Sandford,60U.S.393,1856.

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clara.A jurisprudênciadoTJRSseriacapazderevelarumafiliaçãodotribunal

aoparadigmacivilistaemdetrimentodoparadigmada“novaordemjurídico-

urbanística” ao analisar e julgar situações envolvendo conflitos urbanos e

instrumentos previstos na legislação. Além disso, ainda que eventualmente

provocado pelas partes a analisar a incidência de princípios, diretrizes e

instrumentos de política urbana estabelecidos pela Constituição Federal,

Estatuto da Cidade, planos diretores e leis municipais capazes de assegurar

efetividade à nova ordem, o TJRS optaria, majoritariamente, por aplicar a

ordemcivilistaconsubstanciadapeloCódigoCivileCódigodeProcessoCivilna

análisedoscasosconcretos21.

Ométodohipotético-dedutivopressupõeanecessidadedeverificara

conformidade dos pressupostos teóricos, fatos e achados científicos com a

hipótesepreliminarmenteadotadapelainvestigação.Assim,ahipótesepoderá

ser corroborada, refutada ou, finalmente, alterada, dado que os achados

científicossãosempreprovisórios;tratam-sedeconjecturasenãopodemser

vistos como absolutos ou indiscutíveis22. Coerentemente com o método de

abordagem adotado, a hipótese originalmente formulada foi parcialmente

alterada pela pesquisa jurisprudencial realizada, o que será detalhado nas

conclusões.

Comométodo de procedimento, adotou-se o estudo de caso, posto

que a jurisprudência analisada nesta investigação restringe-se a um único

TribunaldeJustiça,odoEstadodoRioGrandedoSul,bemcomofoirecortada

temporalmente, abarcando somente os acórdãos de 2011 a 2015. A

justificativa para a escolha metodológica deste tribunal relaciona-se não

apenas ao local de inserção geográfica do Grupo de Pesquisa em Direito

UrbanísticodaFMP,mastambémacertosensocomumjurídicoquepregaser

o TJRS um dos tribunais mais progressistas do Brasil. Quanto ao marco

temporal,optou-seporanalisarajurisprudênciadotribunalapósumadécada

devigênciadoEstatutodaCidade,visandoafastarapossibilidadedealegação

21BoapartedosacórdãosanalisadosnestainvestigaçãoobservaaindaoCódigodeProcessoCivilde1973.Recentemente,porém,ocorreuaipromulgaçãodonovoCódigodeProcessoCivil de2015.Cf.BRASIL.CódigodeProcessoCivil de 1973. Leinº5.869,de11de janeirode1973;eBRASIL.CódigodeProcessoCivilde2015.Leinº.13.105,de16demarçode2015.22Sobreametodologiacf.POPPER,Karl.Alógicadapesquisacientífica.SãoPaulo:Cultrix,1993;Conjecturas e refutações: o progresso do conhecimento científico. Brasília: Editora da UNB,1994.

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dequeosdesembargadoresdoTJRSpoderiamaindanãoconhecero teorda

novalei.Tallinhadeargumentaçãoseriaindefensável,vistoque,entre2001e

2011,dezanossepassaram,temposuficienteparaqueoEstatutodaCidade

fosseconhecidoeassimiladoemsuaspotencialidadesinovadoras.

Em relação às palavras-chave adotadas para fins de pesquisa

jurisprudencial,foramselecionadascategoriasreputadascomocentraisparao

DireitoUrbanístico,relacionadasaocapítulodaPolíticaUrbanadaConstituição

Federal, bem como às diretrizes preconizadas pelo Estatuto da Cidade e aos

instrumentosdanovaordemjurídico-urbanísticabrasileira.Aspalavras-chave

pesquisadasnosistemadebuscadoTJRSforamasseguintes:“funçãosocialda

propriedadeurbana”,“funçõessociaisdacidade”,“direitoàcidade”,“direitoà

moradia”,“planodiretor”e“usucapiãourbanaespecial”.

Os resultados da análise dos julgados selecionados a partir dessas

palavras-chave foram um tanto surpreendentes, levando a conclusões com

grande poder explicativo acerca do que ocorre nas trincheiras do Poder

Judiciário.Nasseçõesqueseseguem,passa-seàdiscussãodecadaumadessas

categorias, anotando-se sua importância para o Direito Urbanístico;ao

detalhamentodapesquisajurisprudencialrealizadaemrelaçãoacadaumadas

palavras-chave; e, finalmente, à análise dos acórdãos identificados como

representativosdaposiçãomajoritáriadoTJRSsobrecadaumdessestemas.

5.Pesquisacomapalavra-chave“planodiretor”

Osplanosdiretoresrevestem-sedeumaimportânciacentralnapolíticaurbana

brasileira.Conformejásublinhado

[...] desde a Constituição Federal de 1988, os planos diretores,tidoscomotradicionais instrumentosdeordenamento territorialdos municípios brasileiros, alteraram significativamente o seupapel.Istoporqueocapítulo“DaPolíticaUrbana”daConstituiçãoFederal outorgou a execução de tal política aos municípios eestabeleceu que a função social da propriedade urbana écumpridaquandoamesmaatendeàsexigênciasfundamentaisdeordenação da cidade expressas pelo Plano Diretor. Embora adisposição, a princípio, possa parecer inócua, acarreta imensaresponsabilidade aos municípios, que passam a ser os

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responsáveis pelo planejamento urbano da cidade e pordeterminarasregrasparauso,parcelamentoeocupaçãodecadaporção do território urbano, de tal forma a fazer com que acidadecomoumtodoatendatambémàssuasfunçõessociais23.

Trata-se, portanto, de uma categoria estratégica na verificação da

maneira como o TJRS vem analisando os casos em que instrumentos do

Estatuto da Cidade são debatidos. A pesquisa em relação à palavra-chave

“planodiretor”,buscadadeformaisolada,resultaem1.230acórdãos.Quando

“plano diretor” é combinado a “Estatuto da Cidade”, o resultado chega a21

acórdãos que interessam diretamente à presente investigação. Deste total

foramexcluídosaquelesquetratavamdematériaprocessualequefugiamdo

marcotemporalfocadonainvestigação,restandoselecionados10acórdãos.

Namaiorpartedosacórdãosanalisadosoprincipaltemadebatido,em

sededeAçõesCivisPúblicas, diz respeitoà ausênciadeparticipaçãopopular

duranteoprocessodeelaboraçãodoplanodiretor,violandooprocedimento

estabelecidopeloEstatutodaCidadee inobservandoumdospilaresdanova

ordem jurídico-urbanística brasileira que é a gestão democrática da política

urbana. Neste tipo de ação, o TJRS tem adotado uma posição claramente

identificadacomoparadigmaestabelecidopeloEstatutodaCidade,anulando

os planos diretores aprovados sem participação popular e condenando os

municípios a retomar o processo de elaboração dos mesmos tomando as

providências necessárias para garantir a participação como, por exemplo, a

realizaçãodeaudiênciaspúblicas.

EmblemáticodestaposiçãodoTJRSéoacórdãoexaradonaApelação

Cível70057716334.Nocaso,oMunicípiodeSapirangaapeloudizendoquejá

tinha tomado providências e realizado as audiências públicas exigidas pelo

EstatutodaCidade,masnãotinhaculpasepoucaspessoascompareceram.O

que chama atenção nesta decisão é o fato de que todos os dispositivos do

Estatuto da Cidade relacionados à matéria foram colacionados no voto do

relatore,maisdoqueisso,osargumentosdoentemunicipalforamafastados,

adotando-seoparecerdoMinistérioPúblicoquedizia,inverbis:

23ALFONSIN, Betânia deMoraes. Planejamento urbano e plano diretor no contexto de gestãodemocráticapós-EstatutodaCidade.RevistaBrasileiradeDireitoUrbanístico,v.1,n.1,p.33-49,2015.p.36.

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No presente caso, ao que tudo indica, não foi atendida anecessáriaparticipaçãodopúbliconoprocessodeelaboraçãodoplanoaprovadopelaCâmara.Pela documentação acostada, percebe-se que foram realizadasduasaudiênciaspúblicas,nosdias03e10dedezembrode2010,ambas na sede da Câmara de Vereadores, situada no centro dacidade [...] À primeira, compareceram 77 pessoas, número queincluipessoaldaprefeitura,enquantoqueasegundacontoucomapresençade50participantes. Tais números são insignificantespara ummunicípio de quase 75.000 habitantes. Por outro lado,nãofoirealizadaqualqueraudiênciaououtrotipodeconsultanosbairrosmaisafastados.Sabe-se que o tema plano diretor é extremamente complexo eque o povo brasileiro ainda não está acostumado a participarativamente das questões públicas. Mas não tendo a requeridademonstradoasformasutilizadasparadivulgaçãodasaudiências,nãohácomopresumirquefoidadaamplaepréviapublicidadeaoato.24

Valedestacarcomoaexigênciadeparticipaçãopopularéaferidacom

radicalidade, mencionando o relator que “os depoimentos das testemunhas

são consistentes e enfáticos, demonstrando que os grupos de trabalho, que

deveriam auxiliar na elaboração do Plano Diretor, foram criados apenas em

caráter formal”25.Finalmente, cabe salientar que voto do relator censura a

realização de audiências públicas meramente homologatórias, salientando

que“aparticipaçãopopularnasaudiênciaspúblicasfoireduzida,semvotações,

com apenas aprovação de um projeto global previamente digitado”26. Além

disto,foimantidaamultadiária,fixadapelajuízadeprimeirograu,enquantoo

município não cumprisse com a obrigação de reelaborar o Plano Diretor

observandoplenamenteoEstatutodaCidade.

Assimcomonesteacórdão, emváriosoutros, envolvendomunicípios

atémesmodemédioporte,amesmaorientação jurisprudencial foiadotada,

fixando o entendimento de ser necessária a observância da participação

popularnaelaboraçãodoplanodiretor.Aanálise,portanto,levaacrerquea

novaordemjurídico-urbanísticaéacatadapeloTJRSnestescasos.Observa-se,

noentanto,queoréuéumentepúblico,nocaso,ummunicípio.Oachadode

24RIOGRANDEDOSUL.TribunaldeJustiçadoRioGrandedoSul.2ªCâmaraCível.ApelaçãoCível70057716334.Relator:JoãoBarcelosdeSouzaJúnior.PortoAlegre,16deabrilde2014.25RIOGRANDEDOSUL.TribunaldeJustiçadoRioGrandedoSul.2ªCâmaraCível.Op.cit.26RIOGRANDEDOSUL.TribunaldeJustiçadoRioGrandedoSul.2ªCâmaraCível.Op.cit.

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pesquisa deve ser levado em consideração nas conclusões da investigação,

emboradevasercotejado,paratanto,comoutroscasosemqueosdetentores

do título de propriedade não são entes estatais, a exemplo de conflitos

territoriais envolvendo posse e propriedadeem ações de usucapião especial

urbanaparafinsdemoradia.

6. Pesquisa com as palavras-chave “direito à cidade” e “função social da

cidade”

O direito à cidade é o núcleo internacionalmente reconhecido do Direito

Urbanístico, é um direito coletivo dos habitantes da cidade que engloba

direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, urbanísticos e

ambientais,objetivandoadistribuiçãoequitativa,universal,justa,democrática

e sustentável dos recursos oferecidos pelas cidades 27 .Faz-se presente na

ConstituiçãoFederal (arts.182e183),noEstatutodaCidade(art.2º, I)eem

diversasleisurbanísticas.Afunçãosocialdacidade,porsuavez,interessaaos

habitantesdacidadecomomeiodeconcretizarodireitoàcidade,exigindoa

adoção de políticas de desenvolvimento urbano a fim de ordenar o espaço

garantindo qualidade de vida aos habitantes da cidade (art. 182, caput, da

ConstituiçãoFederal).

Pesquisou-se acórdãos do TJRS, de 2011 a 2015, que contivessem a

palavra-chave “direito à cidade”, e, de forma surpreendente, não foram

encontradas decisões que abordassem esta temática. Constatou-se, com a

pesquisa, que a ausência de acórdãos reflete a provável ausência de

judicializaçãododireitoàcidade,categoriaqueestánocentrodanovaordem

jurídico-urbanística. A omissão na atuação de órgãos como a Defensoria

Pública e oMinistério Público, que têma função institucional de defender a

ordem urbanística, incentiva, inadvertidamente, este tribunal a manter o

2727A Carta Mundial pelo Direito à Cidade é documento chave no processo de mobilizaçãointernacionalpelo reconhecimento,pelasNaçõesUnidas,dodireitoàcidadecomoumdireitohumano. Embora proposta pormovimentos sociais, foi capaz de incluir o direito à cidade nocentrodaagendaurbanaaserdebatidapelaConferênciaHABITATIII,queserealizaemQuito,em outubro de 2016. Cf. CARTA MUNDIAL PELO DIREITO À CIDADE. Disponível emhttp://www.forumreformaurbana.org.br/biblioteca/59-biblioteca/manifestos-e-cartas/211-carta-mundial-pelo-direito-a-cidade.Acessoem:22demar.2016.

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“modeloproprietário”,queprivilegiaosdireitosdosproprietários,aoinvésde

exigir o cumprimento de seus deveres, olvidando-se que toda a propriedade

devecumprirasuafunçãosocial.

Por outro lado, concluiu-se que a jurisprudência vem, pontualmente,

aplicando a nova ordem jurídico-urbanística em detrimento do paradigma

civilista para discutir, por exemplo, questões ligadas às funções sociais da

cidade, e reconhecendo, pouco a pouco, essa inovadora categoria à qual o

direitoàcidadeestáintimamentearticulado.Pesquisou-se,portanto,acórdãos

destetribunalqueapresentassemapalavra-chave“funçãosocialdacidade”.A

busca resultou em 41 acórdãos, sendo que apenas 11 efetivamente

abordavam a temática da função social da cidade, como é o caso da Ação

DiretadeInconstitucionalidade7005393006128.Escolheu-seestejulgadopara

fins de análise por ser o mais recente emais relevante dentre aqueles que

mencionamatemáticadafunçãosocialdacidade.

Nestejulgamento,realizadopeloÓrgãoEspecialdoTJRS,foideclarada

a inconstitucionalidade de Lei Complementar doMunicípio de Porto Alegre,

por ter sido editada sem participação popular, exigida constitucionalmente,

para deliberar sobre proposta de alteração do plano diretor, em especial,

sobredesafetaçãodeáreasverdesparausohabitacionale transformaçãode

Áreas de Proteção de Ambiente Natural e Áreas de Ocupação Rarefeita em

Áreas Especiais de Interesse Social,não observando o art. 177, §5º, da

ConstituiçãoEstadual,29eosarts.1º,caput,e§único,e29,XII,daConstituição

Federal. O Município afirmou que a participação popular foi promovida

quando o Projeto de Lei foi encaminhado ao Conselho Municipal do Plano

Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental. Ocorre que a participação

desteConselhonãoéaúnicaformadeparticipaçãodemocrática,portratar-se

deórgãoconsultivo,constituídoporindicaçõesdamunicipalidadeesistemade

representação popular, sendo indispensável a realização de audiências,

discussõesouconsultaspúblicas,sobpenadeviolaroprincípioconstitucional

daparticipaçãopopularnoplanejamentourbano(arts.29,XII,30,VIII,e182,

28RIOGRANDEDOSUL.TribunaldeJustiçadoRioGrandedoSul.ÓrgãoEspecial.AçãoDiretadeInconstitucionalidade70053930061.Relator: JoãoBarcelosdeSouzaJunior. Julgadoem18demaio2015.29RIOGRANDEDOSUL.ConstituiçãoEstadual,ConstituiçãodoEstadodoRioGrandedoSul,de03deoutubrode1989.

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daConstituiçãoFederal,177,§5º,daConstituiçãoEstadual;e2º,II,e40,§4º,

doEstatutodaCidade).

OdebateentreosmembrosdoÓrgãoEspecial foisobreaeficáciada

decisãosobreainconstitucionalidade,sedesdeoajuizamentodaação,apartir

do julgamentooudo trânsitoem julgado. Entendendoqueamodulaçãodos

efeitos para o ajuizamento da ação resultaria em uma decisão de difícil

execução, foi decidido, pormaioria, que seria eficaz a partir do julgamento,

para preservaras situações fático-jurídicas criadas e consolidadas pela lei

declarada inconstitucional. A discussão acerca das funções sociais da cidade

restourestritaàdicçãolegaldotermonaConstituiçãoFederalenoEstatutoda

Cidade, não havendo, no acórdão analisado, maior desenvolvimento do seu

conteúdo.Detodaforma,odebateexigiuqueosmembrosdoÓrgãoEspecial

semanifestassem sobre a temática, o que demonstrou desconhecimento de

muitosmagistradossobreoDireitoUrbanístico.

7.Pesquisacompalavra-chave“funçãosocialdapropriedadeurbana”

Odireitoàpropriedadenãopodeservistocomoumdireitoapenasindividual,

tendoemvistaacaracterísticaintrínsecaimpostapelaConstituiçãoFederalde

quedevecumprirumafunçãosocial.30Porém,apesardetalentendimento,na

análisedecomooTJRSinterpretaasnormas–tantoasconstitucionaisquanto

asespeciaisdoEstatutodaCidade–percebe-sequeosefeitosjurídicosqueo

princípio da função social da propriedade deveria gerar nos casos concretos

muitas vezes não se verificam pela interpretação equivocada das normas

existentesedevidoàhegemoniado“modeloproprietário”.31

Utilizando a palavra-chave “função social da propriedade urbana” a

primeira busca elencou 3.210 acórdãos. Eliminando os relativos ao IPTU

progressivoeoutrosqueversavamsobre temasestranhosàanálise, abusca

30SILVA,JoséAfonsoda.DireitoUrbanísticoBrasileiro.4.ed.SãoPaulo:Malheiros,2006.31ALFONSIN, Jacques Távora.Das legalidades injustas às (i)legalidades justas: estudos sobredireitos humanos, sua defesa por assessoria jurídica popular em favor de vítimas dodescumprimentodafunçãosocialdapropriedade.PortoAlegre:ArmazémDigital,2013.

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depurada elencou 41 acórdãos, dos quais apenas quatro fazem referência à

novaordemjurídico-urbanísticaemsuafundamentação.

Dois desses acórdãos merecem uma análise mais detalhada. A

ApelaçãoCível70065098865 foi escolhida tendoemvistapriorizarnão sóas

disposiçõesdoCódigoCivil,mastambémdaConstituiçãoFederaledoEstatuto

daCidade,enfatizandoodireitoàmoradiaaoinvésdodireitoàpropriedade.O

casotratadeumaaçãodeusucapiãoespecialparafinsdemoradiareferentea

um imóvel pertencente auma incorporadora imobiliária. Coma sentençade

procedência, a empresa alegou em apelação que a autora não preenchia os

requisitosparaausucapiãopretendida.Porém,oTJRSmanteveasentençae

embasouadecisãonaConstituiçãoFederal,noCódigoCivil enoEstatutoda

Cidade, explicando que tal modalidade de usucapião visa sancionar o

proprietário que não cumpre a função social da propriedade. Chama a

atenção,ainda,ofatodorelatordoacórdãodefenderqueodireitoàmoradia

deve se sobrepor ao mero direito à propriedade, por se tratar de direito

fundamentalimplicitamenteligadoàdignidadedapessoahumana:

OdireitoàmoradiaprevistonaConstituiçãoFederaléessencialàefetivação do princípio da dignidade da pessoa humana e doacessoàterraurbanaerural,bemcomoaotrabalho.Aoladodaalimentação, a habitação figura no rol das necessidades maisbásicas do ser humano. Para cada indivíduo desenvolver suascapacidadeseatéseintegrarsocialmente,éfundamentalpossuirmoradia.Trata-se de questão relacionada à própria sobrevivência, poisdificilmente se conseguiria viver por muito tempo exposto aosfenômenos naturais, sem qualquer abrigo. O provimento dessanecessidade passa evidentemente pelo espaço físico, pelo"pedaçodeterra",masemrazãodoprocessodecivilizaçãoacabasempreporrequerermaisdoqueisso.32

JáoAgravoInternoemAgravodeInstrumento70047281241priorizou

odireitodoproprietárioemdetrimentododireitoàmoradia.Trata-sedecaso

envolvendoumareintegraçãodeposseemfacedeumaocupaçãotratadapelo

tribunalcomo“invasãocoletivaurbana”.Nostermosdaementadojulgado,os

magistrados entenderam que segurança jurídica exige reconhecer a

“prevalênciadodireitodopossuidor,emdetrimentododireitodosinvasores,

32RIOGRANDEDOSUL. Tribunal de JustiçadoRioGrandedo Sul. 17ªCâmaraCível.ApelaçãoCível70065098865.Relator:GiovanniConti.Julgadoem13ago.2015.

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namedidaemquepresentesos requisitosdoart. 927doCPC, aindaqueos

esbulhadoresnãotenhamoutrolocalpararesidir”.33Osjulgadores,aocotejara

pretensãodoproprietáriodereaveracoisaeadosocupantesdepermanecer

noimóvelparafinsdemoradia,revelamumdesprezopeloprincípiodafunção

socialdepropriedade.

8.Pesquisacompalavra-chave“usucapiãoespecialurbana”

A usucapião especial urbana para fins de moradia é um dos principais

instrumentos garantidores da segurança da posse de milhares de famílias

brasileiras.Concebidoparadarefetividadeà função socialdapropriedade,o

instrumento opera umaprescrição aquisitiva pela qual o posseiro que deu à

terraumafunçãosocial (moradia)adquireapropriedadedeformaoriginária,

jáqueoproprietárionãoseopôsàposse.Emboraoinstrumentoexistadesde

apromulgaçãodaConstituiçãoFederal(art.183),aoregulamentá-looEstatuto

da Cidade (arts. 9º a 14) introduziu a modalidade de usucapião coletiva,

legitimando as composses de famílias de baixa renda em áreas de ocupação

irregularconsolidada.

Utilizando-senabuscaotermo“usucapiãoespecialurbana”tem-se91

acórdãos, sendo que o Estatuto da Cidade é referido em 13. Apenas nove

detêm-se sobre a questão do cumprimento dos requisitos para que seja

reconhecidaaaquisiçãopelaposse.Destetotal,quatroforamdesconsiderados

naanálise,poistratamdequestõesprocessuaisincidentais.

Umdosrequisitosprevistosparaausucapiãoespecialurbanarefere-se

ao tamanho do imóvel. Neste sentido, aomenos três acórdãos sustentam a

impossibilidadedequeausucapiãoespecialurbanasedênoscasosemqueos

imóveisocupadostenhamáreasuperiora250m²,mesmoquandoopossuidor

pretendaterreconhecidaaaquisiçãodapropriedadepelousodeáreainferior

33RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 18ª Câmara Cível. AgravoInternoemAgravodeInstrumento70047281241.Relator:NelsonJoséGonzaga.Julgadoem29mar.2012.

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aototaldolote34.Percebe-seareticênciadotribunaleminterpretaroEstatuto

daCidadedemaneirasistemáticaecondizentecomoobjetivodeassegurara

posseàquelesquefaçamcumprirafunçãosocialdeimóveisurbanos.

Dos acórdãos que não fazem referência ao Estatuto da Cidade, dois

chamam a atenção por destacarem o princípio da função social da

propriedade. Na Apelação Cível 70043753961, foi reformada a sentença de

primeiro grau que julgou procedente uma ação reivindicatória, acolhendo a

exceção de usucapião especial urbana arguida pela defesa, na forma da

Constituição Federal e do art. 1.240 do Código Civil.No caso, o objeto de

disputa era um apartamento localizado em um edifício abandonado que se

encontrava ocupado. O acórdão cita parecer do Ministério Público que fez

referência à função social da propriedade, que estaria sendo descumprida

pelosproprietários.Éoqueselênovotodarelatora:

Há contradições relevantes da parte dos autores a formar aconvicçãodeque:1)oprédionãofoiesvaziadoparaumareforma,massimplesmentedesativado(descumprindoafunçãosocialquecumpre à propriedade desempenhar); […] 4)caracterizou-se oabandonodoprédio,atalpontodeosautoresmencionaremmaisde uma “invasão” e não lograramapresentar prova documentalsegura nem mesmo prova testemunhal acerca de quandoocorreramesuascircunstâncias[...].35

Já a Apelação Cível 70054589924impressionapelodesconhecimento

dosmagistradosquantoaoconceitodafunçãosocialdapropriedade.Nocaso,

o colegiado manteve, de forma unânime, a decisão de primeiro grau que

determinara a imissão de posse de um apartamento, afastando a tese

defensivadademandadaemexceçãodeusucapiãoespecialurbana.Nocaso,o

princípio da função social da propriedade não é compreendido na sua

dimensão social,mas,muitopelo contrário,numaperspectivaprivatista. Isto

é,aoinvésdesertomadocomoumprincípiodelimitaçãododireitoindividual

34RIOGRANDEDOSUL. Tribunal de JustiçadoRioGrandedo Sul. 20ªCâmaraCível.ApelaçãoCível70062599519.Relator:CarlosCiniMarchionatti.Julgadoem17dez.2014;RIOGRANDEDOSUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 18ª Câmara Cível. Apelação Cível70043395045.Relator:Nelson José Gonzaga. Julgado em 22ago. 2013;RIO GRANDE DO SUL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 18ª Câmara Cível. Apelação Cível70043903145.Relator:NelsonJoséGonzaga.Julgadoem15set.2011.35RIOGRANDEDOSUL. Tribunal de JustiçadoRioGrandedo Sul. 17ªCâmaraCível.ApelaçãoCível70043753961.Relatora:LiegePuricelliPires.Julgadoem12abril.2012.

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àpropriedade,emfavordointeressepúblicoquantoaomododeusodebens

imóveis, o princípio é visto como exemplo de garantia do cidadão contra o

Estado. Em resposta ao tópico da demandada em que o pedido de

manutençãonapossedo imóvelera justificadopelo fatodeosdemandantes

nãoteremcumpridoafunçãosocial,orelatorreferiu:

Emquepeseosargumentosdosapelantes,dequeapropriedadeurbanadeve serprotegidapeloEstado,atendendoa sua funçãosocial,oreferidoprincípionãopermiteasupressãodainstituiçãodapropriedadeprivada.A função social da propriedade constitui, pois, uma garantia àpessoa, que não pode ser privada do seu patrimônio de formaarbitrária. Porém, tratando-se de bem particular, com posseprecária por parte dos requeridos, nos termos dessafundamentação,afastoapretensão36.

Em síntese, é possível perceber a reticência do TJRS em utilizar o

EstatutodaCidadecomofundamentolegalemdiscussõesqueversemsobrea

modalidadedausucapiãoespecialurbana.Nessesentido,importareferirqueé

significativa a interpretação dada pelo tribunal no tocante ao tamanho dos

imóveis aos quais se aplica a usucapião especial urbana e a dificuldade no

manejodeconceitoselementaresdanovaordemjurídico-urbanística,talqual

oprincípiodafunçãosocialdapropriedade.

9.Pesquisacompalavra-chave“direitoàmoradia”

Odireitoàmoradiaadequadafoiconsagradopelacomunidade internacional,

especialmente pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais (PIDESC), adotado pela Organização das Nações Unidas em 196637.

Como objetivo de conceituar o direito àmoradia adequada previsto no art.

11.1doPIDESC,oComitêdeDireitosEconômicos,SociaiseCulturaislançouo

ComentárioGeralnº4,demonstrandoqueestedireitodeveser interpretado

deformaampla,nosentidodegarantirquetodasaspessoastenhamacessoa

36RIOGRANDEDOSUL. Tribunal de JustiçadoRioGrandedo Sul. 19ªCâmaraCível.ApelaçãoCível70054589924.Relator:EduardoJoãoLimaCosta.Julgadoem18jun.2013.37 Ver o Decreto que internalizou o PIDESC. BRASIL. Pacto Internacional sobre DireitosEconômicos,SociaiseCulturais.Decretonº.591,de06dejulhode1992.

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um lar e a uma comunidade seguros para viver em paz, com dignidade e

saúde.Ainda,oComitêexplicitouseteelementosquedevemser respeitados

para que a moradia seja qualificada como adequada: a) segurança legal da

posse;b)disponibilidadedeserviços,materiais,facilidadeseinfraestrutura;c)

custoacessível;d)habitabilidade;e)localização;ef)adequaçãocultural38.

Alémdisso,posteriormente,oComitêeditouoComentárioGeralnº7,

assegurandoatodasaspessoas,seassimoptarem,odireitodepermanecerno

local onde fixaram habitação, ainda que irregularmente. Nos casos

excepcionais de remoção, que se justificam apenas em razão de relevante

interesse coletivo, os Estados têm o dever de tomar certas precauções e

providências,demodoaobservarosdireitosfundamentais,garantiracessoa

remédios legais contra o despejo ou deslocamento forçado e indenizar

eventuais danos que os atingidos venhama sofrer39.Oportuno ressaltar que

este Comentário “incumbiu os governos de garantir alternativa de moradia

àqueles que sofreram despejo, sejam legais ou ilegais”40, de forma que,

concomitantemente ao processo de remoção, elabore-se um plano de

reassentamento.Alémdeprover o auxílio necessário àmudança, os Estados

restam obrigados a assegurar uma nova moradia aos atingidos antes da

execuçãodaremoção.

Neste contexto, o direito à moradia integra o rol de direitos sociais

fundamentaisestabelecidosnaConstituiçãoFederal, incumbindoaoEstadoa

sua promoção, viabilização e proteção. 41 Já no tocante à normativa

infraconstitucional, foi o Estatuto da Cidade que integrou expressamente o

direito à moradia ao direito à cidade sustentável, prevendo diversos

instrumentosurbanísticosa seremutilizadospeloPoderPúblicocomvistasà

sua concretização evidenciando que não há como falar em ordenação das

cidades, função social da propriedade, e, em última análise, em direito à

cidade,semfalaremmoradiaadequada.

38ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.ComentárioGeraln.4,de13dedezembrode1991.39ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.ComentárioGeraln.7,de20demaiode1997.40CARMONA,PauloAfonso.Cursodedireitourbanístico.SãoPaulo:Juspodivm,2015.P.281.41AindaqueaConstituiçãoFederalde1988contemple implicitamenteodireitoàmoradiaemdiversos dispositivos, a moradia passou a integrar o rol do art. 6º por força da EmendaConstitucionaln.26/2000.

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Em relação aos resultados da pesquisa jurisprudencial, inicialmente,

buscou-se apenas o termo “direito à moradia”, o que resultou em2.430

acórdãos,sendopouquíssimosrelacionadosàaplicaçãoounãodoEstatutoda

Cidade. A maior parte versava sobre a impenhorabilidade de imóveis

residenciais, considerados bens de família. Em face disso, pesquisou-se o

termocombinadocom“planodiretor”,encontrando-seseteacórdãos.

Para uma análise mais detalhada, selecionou-se a Apelação Cível

70041790338, interposta contra sentença que julgou procedente ação

demolitóriaajuizadapeloMunicípiodeTrêsCoroas,condenandoademandada

ao cumprimento de obrigação de fazer, consistente na demolição de sua

edificação,onderesidiacomsuafilhaeseusnetos.Novoto,orelatormantém

adecisãodeprimeirograu,sustentandoqueoimóvelestálocalizadoemÁrea

de Preservação Permanente (APP), não tendo respeitado o estabelecido no

Plano Diretor e no Código de Obras Municipal, assim como as Leis de

ParcelamentodoSoloeoCódigoFlorestal.Alega,ainda,queaedificaçãoestá

situada em área de risco, não podendo prevalecer, nesse caso, o direito à

moradia 42 . Note-se, primeiramente, que a referida decisão ignora a

possibilidadede regularizaçãodemoradia localizadaemáreadepreservação

permanenteprevistanoart.54daLeidoProgramaMinhaCasa,MinhaVida.43

Ademais, ignora o direito à moradia adequada, uma vez que, ao impor à

família da apelante a demolição damoradia, deixa de obrigar oMunicípio a

garantir os direitos fundamentais das pessoas atingidas pela remoção,

inclusiveodeproporcionarmoradiadignaemoutrolocal.

Também foi selecionada uma decisão mais recente, o Agravo de

Instrumento70065581704,interpostonobojodeumaaçãodemolitória.Salta

aos olhos o desconhecimento do tribunal quanto à possibilidade de

regularização de habitações precárias construídas em APPs. Entenderam os

magistrados pela impossibilidade de regularização das construções

clandestinas, impondo a sua demolição. Restou expresso na decisão que o

42RIOGRANDEDOSUL. Tribunal de JustiçadoRioGrandedo Sul. 21ªCâmaraCível.ApelaçãoCível70041790338.Relator:FranciscoJoséMoesch.Julgadoem17ago.2011.43Emtese,nasAPPsnãopoderiahaverocupaçãohumana.Cf.BRASIL.LeidasÁreasdeProteçãoPermanente.LeiFederalnº.12.651,de25demaiode2012.Noentanto,passou-seaadmitir,por interesse social,queosmunicípiospromovama regularização fundiáriadeassentamentoshumanosconsolidadosdebaixarendaemAPPs.Cf.BRASIL.LeidoProgramaMinhaCasa,MinhaVida.Leinº.11.977,de07dejulhode2009.

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direitoàmoradianãoéabsoluto,masantessesubordinaàsregraspostasnas

leisdeproteçãoambientalenasposturasmunicipais,que,nocaso,nãoforam

atendidas.44

Daanálisedasdecisões,percebeu-sequeoTJRSignoraapossibilidade

deregularizaçãofundiáriaemAPPseque,mesmocomopassardosanos,não

houveaatualizaçãodajurisprudência.Naprática,talentendimentoacabapor

violarodireitohumanoàmoradiaadequada.

Consideraçõesfinais

Apesquisajurisprudencialconduzàconclusãodeque,aindaqueoEstatutoda

Cidade tenha sido promulgado há 15 anos, a regulação da política urbana

brasileira atravessa uma fase que pode ser caracterizada como de transição

paradigmática. As trincheiras do Poder Judiciário são um campo privilegiado

paraaavaliaçãodoestágioemqueseencontrataldisputaparadigmática.

Daanáliserealizadanapresenteinvestigaçãoconclui-seaindaque:

a) A recepção da nova ordem jurídico-urbanística pelo

TJRS,emboraexista,étímidaetranspareceumaclarahegemoniado

“modelo proprietário”, que pode ser percebida por opções feitas

pelosmagistradosao julgaroscasosconcretosemqueassituações

objetodeanálisesãoreguladasaomesmotempopeloCódigoCivile

pelo Estatuto da Cidade. A tendência, na maior parte dos casos

analisados, é a de citar os dispositivos do Código Civil ou da

Constituição Federal, desprezando a regulação do Estatuto da

Cidade.Taltendênciaficaclara,porexemplo,nasdiscussõessobreo

atendimento da função social da propriedade em conflitos

envolvendoposseenamaiorpartedasaçõesdeusucapiãoespecial

urbana;

b) A“fuga”doEstatutodaCidadenafundamentaçãodos

acórdãos implica em uma invisibilização da nova ordem jurídico

44RIOGRANDEDOSUL. Tribunalde JustiçadoRioGrandedoSul. 3ªCâmaraCível. Agravo deInstrumento70065581704,Relator:NelsonAntônioMonteiroPacheco.Julgadoem13jul.2015.

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urbanística,noquepoderia ser caracterizadocomoumaespéciede

“ativismo judicial às avessas”, jáque,majoritariamente, asdecisões

negamdensidadejurídicaaoEstatutodaCidade,legislaçãovigentee,

na maior parte das vezes, de evidente aplicabilidade aos casos

analisados;

c) Essa peculiar forma de ativismo judicial revela uma

“naturalização”do“modeloproprietário”,seguidapela ideiadeque

a concretização de direitos sociais deve se dar exclusivamente por

meiodaatuaçãodoPoderExecutivo.Exemplificativamente,constata-

sequeareceptividadedoEstatutodaCidadeémaiorquandonopolo

passivoencontra-seoPoderPúblico, como fica clarodaanálisedos

casosemqueplanosdiretoresforamaprovadossemarealizaçãode

audiências públicas, Nestes casos em que o resultado da prestação

jurisdicional constitui obrigações endereçadas ao Poder Público,a

posturatípicadoTJRSédeacataranovaordemjurídico-urbanísticae

condenarosmunicípios.Note-se, noentanto, que, nesta situação,o

“modeloproprietário”nãoestásendopropriamentequestionado;

d) A ausência de acórdãos referindo categorias como

“direitoàcidade”éaltamentereveladoradodesconhecimentodesse

direito coletivo dos habitantes das cidades não só pelos

desembargadores do TJRS, mas também dos operadores jurídicos

quepromovemadefesadecomunidadesdebaixarendaemconflitos

territoriais ou emoutras demandas envolvendoos direitos urbanos

abarcados pelo direito à cidade. Se não há decisões envolvendo

“direitoàcidade”,pode-seinferirquehápoucaspetiçõesreferindoo

tema e que, portanto, a Defensoria Pública e o Ministério Público

tambémseomitemnapromoçãodanovaordemjurídico-urbanística;

e) A escassez de debates envolvendo o Direito

Urbanístico também é, possivelmente, fruto da escassa oferta de

conteúdosdeDireitoUrbanísticonasdisciplinasdoscursos jurídicos

nopaís.Semformaçãonaárea,osmagistradosquechegamaoTJRS

aplicama legislação civil que conhecem.O currículo das faculdades

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de Direito tem, certamente em boamedida, responsabilidade pela

hegemoniado“modeloproprietário”noâmbitodoPoderJudiciário;

f) Umreflexoda lentidãocomqueoparadigmadanova

ordem jurídico-urbanística difunde-se no seio do Poder Judiciário

podeseridentificadonacatalogaçãodoscasosenvolvendoquestões

urbanísticaspeloDepartamentodeBibliotecaedeJurisprudênciado

TJRS. Para fins de classificação dos acórdãos envolvendo Direito

Urbanístico, as decisões são catalogadas como “Direito Público não

especificado”ou, emalguns casos, como “DireitoAdministrativo”.O

expediente revela uma marginalização e invisibilização do Direito

Urbanístico na jurisprudência do TJRS, distorcendo resultados e

dificultandoarealizaçãodeinvestigaçõescientíficas.

Finalmente,conclui-sequeanovaordemjurídico-urbanísticabrasileira

aindatemumlargocaminhoapercorreratéviraserreconhecida,judicializada

e efetivamente aplicada nas trincheiras do Poder Judiciário. Essa conclusão

derivada constataçãodequeas transiçõesparadigmáticasprofundasnão se

dão com a mera aprovação de uma lei, mas que dependem,

fundamentalmente, de mudanças em uma cultura jurídica ainda bastante

influenciadapelo“modeloproprietário”.A transiçãodeummodelocentrado

no direito de propriedade para um modelo centrado na função social da

propriedadepromoveumarupturajurídica,social,econômicaeculturalmuito

profunda,limitandoospoderesdosproprietárioseaumentandoospoderesdo

PoderPúbliconaconduçãodeumapolíticaurbanavoltadaparaagarantiade

umacidadeparatodosetodas.

Uma triste comparação histórica pode ilustrar as resistências

encontradaspelanovaordem jurídico-urbanísticaparasuaplenaefetividade.

Como se sabe, a aboliçãodaescravaturanoBrasil foi levadaa cabopela Lei

Áurea em 1888, mas não faltaram proprietários de escravos a reclamar a

violaçãodeseus“direitosadquiridos”e,aindahoje,maisdecemanosdepois,

osfiscaisdoMinistériodoTrabalholocalizamtrabalhoescravoemfazendasdo

interiordoBrasil. Talveza rupturaparadigmáticaqueanovaordem jurídico-

urbanística promove em relação ao “modelo proprietário” seja de idêntica

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envergadura, o que explicaria a resistência enfrentada pela nova ordem nas

instâncias judiciais. Esta é uma importante agenda de pesquisa no Brasil,

inclusiveparaqueseefetiveatuteladodireitoàcidade,centrodanovaordem

jurídico-urbanística.

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RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.18ª Câmara

Cível.AgravoInternoemAgravodeInstrumento70047281241.Relator:Nelson

JoséGonzaga.Julgadoem29mar.2012.

RIOGRANDEDO SUL. Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul. 18ª Câmara

Cível.ApelaçãoCível70043395045.Relator:NelsonJoséGonzaga.Julgadoem

22ago.2013;

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RIOGRANDEDO SUL. Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul. 21ª Câmara

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17ago.2011.

RIOGRANDEDOSUL.TribunaldeJustiçadoRioGrandedoSul.2ªCâmaraCível.

ApelaçãoCível70057716334.Relator: JoãoBarcelosdeSouza Júnior. Julgado

em16deabril2014.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 3ª Câmara

Cível.AgravodeInstrumento70065581704,Relator:NelsonAntônioMonteiro

Pacheco.Julgadoem13jul.2015.

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