reconhecer a imagem, perseguir a história com autoria · ... produzidas pelos próprios objetos e...

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Associação Nacional dos Programas de PósGraduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016 1 RECONHECER A IMAGEM, PERSEGUIR A HISTÓRIA: crítica da visibilidade técnica no cinema de Harun Farocki 1 RECOGNIZING IMAGE, PURSUITING HISTORY: critique of technical visibility in the cinema of Harun Farocki Luís Felipe Duarte Flores 2 Resumo: O artigo se dedica a discutir aspectos da relação entre cinema e história no filme-ensaio Reconhecer e perseguir (2003), do cineasta alemão Harun Farocki. Na obra, o artista utiliza arquivos e voz off para refletir criticamente sobre o devir tecnológico da humanidade. Ao mesmo tempo, sua crítica constitui uma operação reflexiva sobre o funcionamento das imagens técnicas. Farocki faz uso, dentre outros, de um tipo particular das imagens de arquivo, as chamadas imagens operacionais, produzidas pelos próprios objetos e sistemas técnicos. Nossa análise busca compreender os procedimentos formais utilizados na retomada ensaística das diferentes imagens, bem como os sentidos possíveis de sua apropriação. O método do diretor é dividido, assim, em duas figuras com valor heurístico: por um lado, o reconhecimento da imagem, o ato de arrancá-la das instituições do poder, por outro, a busca da história, a ressignificação das imagens em seus relacionamentos complexos com o mundo e o tempo humano. Palavras-Chave: Cinema. História. Técnica. Farocki. Abstract: This paper investigates some aspects of the relationship between cinema and history present in German filmmaker Harun Farocki’s film-essay War at a distance (2003). The artist combines archival footage and voiceover to critically think about humanity’s technological becoming. At the same time, his critique is a reflective operation on the general functioning of technical images. Farocki makes use of a particular kind of footage among others, the so-called operational images, produced by technical systems and objects themselves. The analysis aims to understand the formal procedures that articulate images, as well as the possible meanings of their essayistic appropriation. The director’s method is thus divided in two heuristic figures: on the one hand, image recognition, the act of extracting it from institutions of power, on the other, pursuit of history, the re-signification of the images in their complex relationships with human society and time. Keywords: Cinema. History. Technics. Farocki. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutorando em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG, professor, ensaísta e tradutor, [email protected]

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Associação  Nacional  dos  Programas  de  Pós-­‐Graduação  em  Comunicação  

XXV  Encontro  Anual  da  Compós,  Universidade  Federal  de  Goiás,  Goiânia,  7  a  10  de  junho  de  2016  

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RECONHECER A IMAGEM, PERSEGUIR A HISTÓRIA: crítica da visibilidade técnica no cinema de Harun Farocki 1 RECOGNIZING IMAGE, PURSUITING HISTORY: critique of

technical visibility in the cinema of Harun Farocki Luís Felipe Duarte Flores 2

Resumo: O artigo se dedica a discutir aspectos da relação entre cinema e história no filme-ensaio Reconhecer e perseguir (2003), do cineasta alemão Harun Farocki. Na obra, o artista utiliza arquivos e voz off para refletir criticamente sobre o devir tecnológico da humanidade. Ao mesmo tempo, sua crítica constitui uma operação reflexiva sobre o funcionamento das imagens técnicas. Farocki faz uso, dentre outros, de um tipo particular das imagens de arquivo, as chamadas imagens operacionais, produzidas pelos próprios objetos e sistemas técnicos. Nossa análise busca compreender os procedimentos formais utilizados na retomada ensaística das diferentes imagens, bem como os sentidos possíveis de sua apropriação. O método do diretor é dividido, assim, em duas figuras com valor heurístico: por um lado, o reconhecimento da imagem, o ato de arrancá-la das instituições do poder, por outro, a busca da história, a ressignificação das imagens em seus relacionamentos complexos com o mundo e o tempo humano. Palavras-Chave: Cinema. História. Técnica. Farocki. Abstract: This paper investigates some aspects of the relationship between cinema and history present in German filmmaker Harun Farocki’s film-essay War at a distance (2003). The artist combines archival footage and voiceover to critically think about humanity’s technological becoming. At the same time, his critique is a reflective operation on the general functioning of technical images. Farocki makes use of a particular kind of footage among others, the so-called operational images, produced by technical systems and objects themselves. The analysis aims to understand the formal procedures that articulate images, as well as the possible meanings of their essayistic appropriation. The director’s method is thus divided in two heuristic figures: on the one hand, image recognition, the act of extracting it from institutions of power, on the other, pursuit of history, the re-signification of the images in their complex relationships with human society and time. Keywords: Cinema. History. Technics. Farocki.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutorando em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG, professor, ensaísta e tradutor, [email protected]

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A imagem do real fornecida pelo cinema é infinitamente mais significativa, pois se ela atinge esse aspecto das coisas que escapa a qualquer instrumento – o que se trata de exigência legitima de toda obra de arte – ela só o consegue exatamente porque utiliza instrumentos destinados a penetrar, do modo mais intensivo, no coração da realidade.

(Walter Benjamin)

Ontem é mistério – Mas onde está Hoje?

Mal especulamos O tempo nos foge

(Emily Dickinson)

1. Introdução

Em 2084 (1984), pequeno ensaio distópico composto por Chris Marker em razão dos

100 anos de sindicalismo na França3, um robô intergaláctico do futuro apresenta na televisão,

um século adiante, os três cenários possíveis da vindoura existência humana. O primeiro

cenário, denominado “a hipótese cinza” apontaria os elementos de uma crise4 da imaginação,

dominada pelo medo e pela incapacidade de inventar um futuro. O segundo cenário seria o da

“hipótese negra” de um mundo tecno-totalitário “no qual a técnica tomou o lugar das

ideologias”. Por fim, o terceiro cenário corresponde à “hipótese azul”, fundada na potência

libertadora do sonho e da imaginação humana.

Três previsões de futuro. Mas o peso da segunda hipótese, inscrito em elementos

visuais como a mise en scène futurista e o robô apresentador, é assumido formalmente

enquanto ameaça concreta dos tempos hodiernos. Com efeito, a paisagem vislumbrada por

Marker se torna cada vez mais real. A experiência radical da tecnologia pelo humano (e do

homem pela técnica), produz, para usar as palavras do filósofo Bernard Stiegler (2009), uma

“temporalidade de desorientação” extrema. A técnica “se revela, ao mesmo tempo, como a

potência do humano e o poder de autodestruição da humanidade” (STIEGLER, 1998, p. 85).

É outro cineasta, o indo-alemão Harun Farocki, certamente herdeiro de Marker e de

outros “diretores tecnólogos”, como Jean-Luc Godard, quem cumpre o papel de um dos

3 Contados a partir da aprovação na França, em 1884, da lei Waldeck-Rousseau, que autorizava a criação dos sindicatos, em contraponto aos pressupostos da repressão social institucionalizados, anteriormente, pela lei Le Chapelier, de 1791. 4 Na narração original, em francês, há um trocadilho entre as palavras grise (cinza) e crise (crise).

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principais semiólogos da vida contemporânea. Ao menos desde a realização de Como se vê

(1986), filme-ensaio sobre as relações entre produção e guerra no contexto da atividade

industrial capitalista, sua obra se dedica a investigar as origens da técnica e os seus

desdobramentos (políticos, econômicos e filosóficos) na sociedade ou na cultura. Em

Imagens do mundo e inscrição da guerra (1989), por exemplo, talvez seu filme mais célebre,

trata-se de problematizar a escritura automática da história e certo estatuto descartável da

visão face à produção excessiva das imagens técnicas na época atual.

Com efeito, Farocki desenvolve uma verdadeira arqueologia do presente ao longo de

sua carreira cinematográfica, permanecendo sempre atento às forças históricas do poder ou

do controle que atravessam a existência humana e convergem, em diferentes níveis, para as

tendências do progresso e da visibilidade técnica (BLÜMLINGER, 2014). Uma das questões

centrais de seu cinema é a das mutações imagéticas desencadeadas pelo desenvolvimento

tecnológico, bem como as consequentes transformações da percepção humana e do mundo

contemporâneo.

Em Reconhecer e perseguir (2003), o cineasta utiliza como matéria primária as

chamadas imagens operacionais – conceito cunhado na esteira de Vilém Flusser e Friedrich

Kittler –, que fariam “parte de um bloco técnico e não [seguiriam] nenhum interesse estético

primário: [...] câmeras de vigilância, reproduções informáticas visuais de scanners da íris ou

programas de rastreamento” (PANTENBURG, 2010, p. 181)5. Imagens que encontrariam um

duplo estatuto de arquivamento e controle no mundo contemporâneo, servindo, por um lado,

como prótese mnemônica para o tempo e a consciência humana em escala “global” e, por

outro, como máquinas de registro e vigilância incessante do correto funcionamento dos

sistemas técnicos6. Pouco afeitas à circulação pública, quase sempre submersas nos fluxos

hegemônicos das instituições, tais imagens se fundariam, acima de tudo, em critérios

5 Conferir, também, TOMAS, 2013. Por exemplo: “A imagem operacional é produto do desenvolvimento de uma nova geração de máquinas inteligentes, capazes de realizar tarefas de maneira independente e automática. Por meio de seus vários papéis, as imagens operacionais registram, mapeiam, interagem com, controlam e regulam os parâmetros de um novo espaço visual produzido por um novo tipo de ‘visão’ não-humana: a visão da máquina. Mas a imagem operacional pertence a uma outra cultura da máquina e a uma geração diferente de máquinas produtoras de imagem. Pois não é necessariamente visível ao olho humano, como são as imagens convencionais” (p. 232). 6 Sobre a constituição de determinadas imagens, especialmente no campo da publicidade, como formas de lei e de censura, conferir excelente palestra do filósofo italiano Emanuele Coccia intitulada “Les images comme forme de loi”, ministrada em 10 de abril de 2014, na EnsAD (École nationale supérieure des Arts Décoratifs, Paris, França). Disponível em: https://vimeo.com/96733898.

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suplementares, como coordenadas geográficas, algoritmos computacionais, equações

matemáticas, esquemas representativos etc.

Se, como afirma Didi-Huberman, o debate “das relações do ‘real’ histórico com a

‘escrita’ que faz a história” não só “não está encerrado, como se foca habitualmente na

questão extrema – o que não quer dizer ‘absoluta’ – da Shoah” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.

133), é preciso também levar em conta aqueles índices sensíveis marcados por outras forças

ou fenômenos históricos. Nesse sentido, o fato das imagens operacionais diferirem

substancialmente do que se costuma designar stricto sensu por imagens de arquivo – em

especial quanto à inscrição de traços ou de intenções humanas nas suas formas – não

proscreve a priori o seu entendimento ou tratamento arqueológico. Com efeito, podem haver

vários modelos teóricos envolvidos na formulação de um conceito de arquivo, como mostram

as difundidas teses de Freud e Derrida.

É preciso recordar que “a imagem não é nem nada, nem tudo” (DIDI-HUBERMAN,

2012, p. 145), que o arquivo não é nem “puro e simples ‘reflexo’ do acontecimento, nem a

sua pura e simples ‘prova’. Pois ele deve ser sempre elaborado mediante recortes incessantes,

mediante uma montagem cruzada com outros arquivos” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 131),

com outras imagens. No fundo, tudo depende do “trabalho de elaboração” empenhado pelo

historiador ou dos procedimentos específicos de montagem utilizados pelo cineasta. “O

arquivo [...] só se torna significante ao ser pacientemente elaborado” (DIDI-HUBERMAN,

2012, p. 124). Veremos, assim, de que modo Farocki retoma essas imagens de arquivo

particulares, feitas com um mínimo de percepção ou de intenção estética, de modo a extraí-

las dos seus fluxos (in)sensíveis habituais e colocá-las em perspectiva crítica com relação a

outras imagens, no tecido dos rastros ou fantasmas que compõem a história humana.

2. Reconhecer a imagem

A partir de 2001, especialmente interessado na questão do “processamento de imagens,

no qual a imagem de vídeo é traduzida numa imagem digital”, Farocki se volta para as

transmissões televisivas da guerra das forças aliadas contra o Iraque, em 1991. Ele observa: naqueles dias, um novo gênero de imagem apareceu na televisão: captada pela cabeça de um míssil lançado contra seu alvo – quando o míssil atinge o alvo, a transmissão é encerrada. Eram imagens de armas inteligentes, dizia-se. Dez anos depois, nem as imagens nem as armas haviam sido devidamente examinadas (FAROCKI, 2010, p. 86).

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O trabalho do cineasta parte, portanto, da constatação de uma cegueira analítica em

relação às tecnologias de guerra à distância, não obstante o “progresso” e a difusão crescentes

das mesmas. A princípio, Farocki realiza três instalações em torno do tema, intituladas

Olho/Máquina I, II e III (2001-2003). Elas investigam, grosso modo, como as ligações

veladas entre a indústria e a guerra afetam os modos de percepção ou de existência dos entes

humanos. A investigação seria condensada e aprofundada no filme Reconhecer e perseguir

(2003), que retoma imagens e ideias das instalações a fim de questionar a zona de indistinção

entre real e virtual, presença e ausência, vivido e representado nas tecnologias da visão

militar, rupturas acentuadas pela circulação volumosa das imagens sintéticas e operacionais

na mídia internacional durante a Guerra do Golfo. “A visão é […] uma visada: não serve para

representar objetos, mas para agir sobre eles, para apontá-los. A função do olho é a da arma”

(CHAMAYOU, 2013, p. 130).

Em Reconhecer e perseguir, portanto, os materiais imagéticos produzidos pelas

máquinas de guerra são retomados, por Farocki, como rastros fundamentais para o

pensamento histórico sobre os processos humanos de produção e destruição, de violência e

trabalho7. Para isso, contudo, é preciso arrancá-los dos fluxos hegemônicos da televisão e do

poder, nos quais se encontram capturados, de peso e de hábito, pelas grandes forças e

estruturas comunicacionais.

7 Desnecessário lembrar da afinidade com as ideias de Paul Virilio, especialmente na sua célebre obra Guerra e cinema, que aborda as conexões entre a evolução histórica do cinema e da tecnologia militar. Virilio escreveria também um livro de crônicas dedicadas à Guerra do Golfo, Desert screen.

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FIGURA 1 – Imagens operacionais da Guerra do Golfo FONTE – Sequência de abertura do filme Reconhecer e perseguir (Harun Farocki, 2003)

Na sequência de abertura (FIG. 1), vemos uma série de seis imagens operacionais da

Guerra do Golfo, que se repetirão ao longo de todo o filme, “imagens aéreas com a mira no

centro, transmitidas pelas pontas dos projéteis, filmadas por câmeras lançadas ao alvo”8. As

mesmas imagens, aponta Thomas Voltzenlogel, “ocuparam [por muito tempo] as telas

televisivas no mundo inteiro, e até hoje são mostradas pelos noticiários” (VOLTZENLOGEL,

2014). Mais ainda, elas reforçam duplamente certa visão de história dos vencedores, da qual

falava Walter Benjamin (1994), seja enquanto “documentos de poder, [...] signo visual do

poderio militar” (VOLTZENLOGEL, 2014), estranhos monumentos de glorificação do

progresso; seja enquanto elementos de convergência discursiva com os fluxos hegemônicos

da indústria midiática.

Sabe-se que o dispositivo televisivo tradicional é marcado pela forte presença da voz

over do jornalista, destinada, grosso modo, a oferecer um acompanhamento “explicativo” ao

espectador e delimitar sua compreensão sobre os fatos mostrados. Portanto, é bastante 8 Assim explica a narração. Em Olho/máquina, Farocki diferencia essas mesmas imagens daquelas utilizadas pela propaganda militar.

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significativo que, na retomada ensaística desse material de arquivo, Farocki preserve uma

camada de silêncio, de incerteza, de incompletude, substituindo os comentários por reflexões

lacunares e questões indeterminadas. Esse procedimento fílmico funciona no sentido de

extrair as imagens dos lugares onde estariam capturadas, da temporalidade predominante dos

fluxos televisuais e jornalísticos, a fim de reintroduzir nelas uma dimensão de tempo e

mudança, isto é, uma brecha para a história. Por isso, é necessário subtrair “os discursos que

acompanham certo tipo de imagem midiática” (VOLTZENLOGEL, 2014) e deslocar a

organização sensível de sua circulação9.

A tarefa que se impõe, portanto, é a de (dar a) re-conhecer certas imagens estratégicas

capturadas pelos dispositivos e sistemas do poder, de modo a produzir fragmentos e

constelações possíveis. Nos concentremos, por ora, nesse primeiro gesto, embora sabendo

que ele é inseparável da ressignificação dos fragmentos recuperados por meio da fabricação

de novos fluxos sensíveis, inteligíveis, temporais. Esse segundo aspecto do método analítico

de Farocki será explorado, com maior profundidade, em um segundo momento deste ensaio.

Se Reconhecer e perseguir apresenta, predominantemente, sequências ligadas aos

fenômenos da guerra e do trabalho, cabe sublinhar que as imagens mostradas são, no mínimo,

pouco convencionais para a produção de uma obra de arte. Em atitude recorrente ao longo de

sua carreira, Farocki prefere voltar sua atenção para “conjuntos de imagens que não tinham,

de início, vocação para serem tornadas públicas” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 207), como

as gravações de câmeras acopladas em objetos bélicos, os mecanismos de treinamento e de

simulação militar, os segmentos propagandísticos dos mísseis teleguiados, os programas de

processamento das imagens operacionais, os modelos gráficos direcionados para a guerra ou

para a fábrica, as imagens autogeridas dos robôs industriais, os registros incessantes das

câmeras de vigilância, as filmagens da cadeia de produção eletrônica (de mísseis e

automóveis), etc. Em suma, elementos visuais desprovidos de real visibilidade, situados nas

entranhas dos sistemas técnicos e excluídos da linha de transmissão privado-privado da

comunicação contemporânea, esta que sobrepuja, cada vez mais, a própria possibilidade de

existência de um espaço público.

Para Didi-Huberman, “a maior ilusão produzida por [certo] ‘aparelho de Estado’ é que

nada se passa no mundo se não se passar na televisão” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 206).

9 Gesto que possibilitaria, talvez, outras formas de partilha do sensível, no sentido das aproximações entre estética e política desenvolvidas pelo filósofo francês Jacques Rancière.

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Algo próximo da zona de pós-história da qual falava Vilém Flusser, onde “nada progride e

onde nada, simplesmente, se passa” (FLUSSER apud DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 207).

Aquilo que não vemos, isto é, que não aparece na rede fechada dos fluxos e dos discursos

midiáticos, não participa da história senão como arcano, recalque, estratagema. Utilizando

procedimentos ensaísticos como os planos de comparação e a narração em off, Farocki busca

reposicionar essas imagens em combinações ou constelações explosivas, revelando o

funcionamento dos sistemas e convenções dos quais fazem parte.

Em um momento central de Reconhecer e perseguir, enquanto as cenas do ataque ao

Iraque se repetem, a narradora afirma que “os Estados Unidos publicaram muitas dessas

imagens, fazendo com que a gestão da guerra e o relato do conflito se confundissem”.

Posteriormente, quase no final do filme, a voz off problematiza o fato de que as imagens

divulgadas dos ataques não mostram nenhum ser humano em seu campo visual, mas apenas

os supostos alvos militares. “Dizem que existem imagens da Guerra do Golfo que mostram

pessoas no alvo, mas não há provas. Essas imagens são produzidas e controladas pelos

militares”. Dentre os muitos desdobramentos dessa reflexão, cabe observar a consciência de

que as instituições – o governo, o exército, a televisão – estabelecem, elas próprias,

ordenações complexas sobre aquilo que será ou não mostrado “abertamente” em seus fluxos,

mascarando, assim, os seus modos convencionais de funcionamento.

Não importa, por exemplo, o quanto os noticiários repisem o sucesso das operações de

combate, cujos alvos seriam de caráter exclusivamente “político” ou militar, descobriremos,

posteriormente, que vários dos espaços atingidos eram construções civis (hospitais, escolas,

pontes, bairros residenciais), destroçados acidentalmente pelos “ataques cirúrgicos”

(VOLTZENLOGEL, 2014) dos mísseis teleguiados. A “história dos vencedores” não passa

de uma versão da história articulada e oferecida pelas forças hegemônicas, cuja vitória não se

restringe, é certo, apenas ao momento do conflito10. Nesse sentido, é contra toda uma

temporalidade da opressão, da injustiça acumulada, dos indivíduos apagados, que Farocki se

levanta ao contrabandear imagens do inimigo e restituí-las à esfera pública. Um cinema da

profanação, um “contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha

separado e dividido” (AGAMBEN, 2009, p. 45). Didi-Huberman reflete:

10 Pensamos, sobretudo, na seguinte formulação de Walter Benjamin, em sua sexta tese sobre a história: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.

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O que fazer para restituir alguma coisa à esfera pública para além dos limites impostos por esse aparelho? É preciso instituir os restos: tomar nas instituições o que elas não querem mostrar – o rebotalho, o refugo, as imagens esquecidas ou censuradas – para retorná-las a quem de direito, que dizer, ao “público”, à comunidade, aos cidadãos (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 206).

Assim, para fabricar contrapontos a essa temporalidade hegemônica, o cineasta se vale

sobretudo da reapropriação ensaística de certas imagens mascaradas pelas forças da história,

seja por meio do excesso – como nas sequências da guerra analisadas –, seja por meio do

apagamento. Com efeito, a hipermnésia decorrente dos excessos da retenção tecnológica –

isto é, da chamada memória terciária – pode ser tomada como dimensão radical do

esquecimento no mundo contemporâneo (STIEGLER, 2011). Godard, principal referência

cinematográfica de Farocki, já perguntava, em Elogio do amor, de 2001: “Não é estranho

como a história foi substituída pela tecnologia?”. No mesmo filme, uma resposta possível:

“Os americanos não possuem um passado de verdade [...]. Não possuem memória própria.

Suas máquinas, sim. Mas não eles, pessoalmente. Então eles compram o passado dos outros.

Especialmente daqueles que resistem”. Dos bósnios, dos palestinos, dos iraquianos.

Além da Guerra do Golfo, pensamos em todo um espectro de imagens operacionais

que, como afirma a voz narradora, “não se dedicam a dizer algo sobre o sistema de produção,

mas fazem parte integrante desse processo. Tais imagens deveriam revelar uma outra visão

do mundo que estão a mostrar”. Ao retomar os registros das fábricas, por exemplo, as

conexões dialéticas da montagem e as camadas de reflexões narrativas oferecem diferentes

graus de legibilidade sobre o funcionamento obscuro do maquinário do progresso.

Nas sequências dos modelos de rastreamento dos mísseis, por sua vez, o esforço é de

destrinchar certa noção de história envolvida nos próprios esquemas gráficos, cujas

representações apagam ou reduzem os traços humanos para privilegiar os elementos técnicos.

Em ambos os casos, as imagens são contrabandeadas dos circuitos fechados da visibilidade

tecnológica, a fim de devolvê-las ao direito público e abrir sua compreensão analítica

enquanto rastros da escritura de uma história pós-humana.

3. Perseguir a história

Desnaturalizar as formas convencionais da indústria midiática exige um meticuloso

trabalho na imagem, que passa, fundamentalmente, pela operação cinematográfica da

montagem. Assim, não é nada gratuita a escolha das imagens de trabalho como o principal

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material de contraste ao trabalho ensaístico-reflexivo das imagens de guerra. Ainda na

sequência de abertura, após as imagens da Guerra do Golfo, surge um operário a manejar

uma máquina na linha de produção da fábrica, acompanhado pela seguinte frase da narradora:

“uma relíquia da era mecânica”. Depois, junto a um trecho retirado do material de divulgação

do míssil teleguiado Taurus, a narradora acrescenta: “a era eletrônica criou o míssil”. O

trabalho do filme será o de perseguir – de maneira sutil, desprovida de ênfase – os

desdobramentos históricos dessa passagem entre eras e contextos tecnológicos, na medida em

que, como afirma Vilém Flusser (2013, p. 37), “as fábricas são lugares onde sempre são

produzidas novas formas de homens: primeiro, o homem-mão, depois, o homem-ferramenta,

em seguida, o homem-máquina e, finalmente, o homem-aparelhos-eletrônicos. Repetindo:

essa é a história da humanidade”11.

De um modo geral, Farocki busca restituir à esfera pública os rastros de uma história

interdita, retraçando as origens da técnica – no caso, industrial e militar – para evidenciar

suas ambivalências ou bifurcações históricas. Um gesto fundamentalmente arqueológico, que

“convoca, a partir de situações precisas, agenciamentos sociais dos quais Farocki revela as

funções e o funcionamento, seguindo-os no fio do desenvolvimento histórico e inscrevendo-

os [...] na evolução da técnica” (BELLOUR, 2015, p. 70). Cabe proceder, assim, pelos rastros

improváveis da imagem, localizados de maneira incerta no limiar da presença e da ausência,

e desconstruir, com eles, uma certa visão oficial (e “normativa”) do desenvolvimento e do

tempo tecnológico. Os avanços da ciência, da indústria, da computação, do próprio cinema,

monumentos apoteóticos de uma cultura do progresso, são mapeados pelas suas imagens

operacionais, destinadas não mais ao olho humano, ao espectador doméstico, ao registro

histórico ou artístico, mas aos objetos e operadores dos sistemas técnicos.

11 Vale dizer que a influência de Flusser sobre o pensamento de Harun Farocki sobre a imagem é decisiva, sendo que o cineasta chegou fazer um filme na companhia do filósofo, Schlagworte - Schlagbilder. Ein Gespräch mit Vilém Flusser (1986), no qual ambos se debruçam sobre a capa do jornal alemão Bild para analisar os modos de composição das imagens e dos textos nela contidos.

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FIGURA 2 – Planos de comparação: míssil e gestos dos operários FONTE – Filme Reconhecer e perseguir (Harun Farocki, 2013)

Utilizando um procedimento recorrente em seu trabalho – e reflexo da sua vasta

experiência com montagem em vídeo – Farocki introduz um plano de comparação composto

por duas “telas” mostradas simultaneamente e situadas em diagonais opostas do quadro

fílmico (FIG. 2). Em uma delas, o míssil Taurus continua a voar telefericamente, como que

guiado pelas batidas delirantes da música eletrônica. Na tela do outro canto, decorrem

imagens do trabalho, primeiro dos pés de uma operária e, a seguir, do mesmo homem que

anteriormente manejava a máquina. Bem no começo desse quadro duplo12, no qual a música

do material de divulgação continua a tocar em segundo plano, a narração lança uma

expressão que condensa todo o pensamento visual da sequência inicial: “deve haver uma

relação entre produção e destruição”.

Essa afirmação, aparentemente simples, adquire profundidade por meio do elaborado

trabalho visual realizado pelo filme. A relação proposta – produção e destruição – se coloca

através de camadas, passando pelo estatuto da imagem e pela sua tradição. Mais do que

pensar nas conexões possíveis entre o trabalho e a destruição no nível da realidade

(supostamente) material e concreta do mundo, é preciso perguntar até que ponto esse trabalho

não se inscreve na própria história das imagens (técnicas), da representação (midiática), da

substituição (espetacular). Haveria, nos seus processos de fabricação e recepção, um

princípio latente de aniquilação, de morte, de esquecimento? Como afirma Didi-Huberman:

12 Para Bellour (2013, p. 71), “o quadro duplo possui […] como tal uma virtude própria para as confrontações entre o velho e o novo”.

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à maneira de Aby Warburg, que passou a vida obcecado com a dialética daquilo que ele chamava de monstra e astra – uma dialética que, de acordo com ele, guardava inteiramente a “tragédia da cultura” – e de Theodor Adorno, constantemente preocupado com a dialética da razão autodestrutiva, Harun Farocki coloca sem cessar uma terrível questão [...]: por que, em que e como a produção de imagens participa da destruição dos seres humanos?” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 46).

Colocar essa questão de maneira profunda exige escavar as camadas movediças do

tempo – passado, presente e futuro – acumuladas na superfície das imagens técnicas.

Portanto, deve-se tomar esses elementos de arquivo como substratos lacunares, índices,

fragmentos da leitura e da escritura da história13. E, vice-versa, entender que a história só é

possível levando-se em conta os seus componentes e pontos de vista não-humanos14. A

própria condição da historicidade, afirma Bernard Stiegler, é a constituição de uma camada

epifilogenética, cujos rastros são acumulados na matéria inorgânica organizada composta

pelos objetos tecnológicos. “A história das possibilidades do rastro como unidade de um

duplo movimento de protensão e retenção” (DERRIDA, 206, p. 104) escaparia, assim, do

circuito metafísico da presença e da ausência, permitindo a compreensão da temporalidade

como um fenômeno determinado por diferentes agentes ou rastros, inclusive involuntários.

Vale repetir: o duplo gesto de Farocki em Reconhecer e perseguir é, por um lado,

libertar os rastros de natureza tecno-imagética de seu fluxo habitual de sentidos, de sua norma

histórica e, por outro, perseguir as vibrações desses rastros liberados, rumo à possibilidade de

uma escritura crítica da história. Durante todo o filme, ele busca não somente tornar visível

aquilo que não era, mas, sobretudo, associar esses restos sensíveis na mesa de montagem,

como uma estranha tábua de semelhanças e colisões, “uma forma de ver o mundo e de

percorrê-lo segundo pontos de vista heterogêneos associados uns aos outros” (DIDI-

HUBERMAN, 2010, p. 7). A combinação dos diferentes tipos de registro – tecnologias de

guerra, robôs industriais, câmeras de vigilância, comerciais de armamentos, modelos gráfico-

computacionais, imagens de arquivo, etc. – segue um poderoso princípio de sideração

dialética, no qual os signos ou temas convocados são continuamente deslocados, arrancados

das armadilhas institucionais nas quais estavam capturados.

13 Sabemos, desde Benjamin, que os rastros (ou vestígios) são índices para a escritura ou leitura da história, algo próximo da legibilidade dos traços mnemônicos em Freud. Cf. JANZ, 2012, p. 21. Em Archive fever, Jacques Derrida também retoma o discurso freudiano para desconstruir o conceito tradicional de arquivo com base em suas relações originárias com a história e a consciência. 14 Afinal, como afirma Jacques Derrida (1998, p. 11) “não existe arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica da repetição, e sem certa exterioridade. Não existe arquivo sem fora”.

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Com efeito, o cineasta realiza uma crítica complexa de certa utopia do progresso

tecnológico, do progresso científico desenfreado, cujo culto político já era objeto de forte

suspeita por parte de Walter Benjamin. O filósofo alemão analisou, em mais de um ensaio, as

relações de imbricação entre guerra e desenvolvimento tecnológico, entre barbárie e cultura: Léon Daudet, filho de Alphonse, ele próprio um escritor importante, líder do Partido Monarquista francês, publicou certa vez em sua Action Française um relato sobre o Salão do Automóvel, cuja síntese, embora talvez não nessas palavras, era: "L’automobile c’est la guerre". O que estava na raiz dessa surpreendente associação de palavras era a ideia de uma aceleração dos instrumentos técnicos, seus ritmos, suas fontes de energia, etc., que não encontram em nossa vida pessoal nenhuma utilização completa e adequada e, no entanto, lutam por justificar-se. Na medida em que renunciam a todas as interações harmônicas, esses instrumentos se justificam pela guerra, que prova com suas devastações que a realidade social não está madura para transformar a técnica em seu órgão e que a técnica não é suficientemente forte para dominar as forças elementares da sociedade (BENJAMIN, 1994, p. 61)15.

A particularidade da crítica farockiana é que ela se faz pelas imagens e por meio das

imagens, continuamente submetidas a variações sutis e deslocamentos operados pelo ritmo da

montagem, pelos planos de comparação ou pela narração em off. Os comentários cirúrgicos e

as construções dialéticas contribuem para instaurar um ponto de vista de “suspeita”, como na

primeira sequência da fábrica, na qual a narradora aponta a superação do humano pela

máquina, ou nas sequências da indústria automobilística, nas quais o homem é mostrado

como um elemento totalmente supérfluo, diante dos robôs capazes de tomar decisões

inteligentes. Para seguir com Didi-Huberman: uma crítica das imagens não pode dispensar o uso, a prática e a produção de imagens críticas. Não importa o quão terrível é a violência que instrumentaliza as imagens, estas não estão completamente ao lado do inimigo. Desse ponto de vista, Harun Farocki constrói outras imagens que, ao confrontar as imagens do inimigo, estão destinadas a fazer parte do bem comum (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 46).

Nesse sentido, trata-se de perseguir “as convergências entre guerra, economia e política

no interior do espaço social” (BLÜMLINGER, 2010, p. 156), isto é, subverter o modus

operandi dos próprios mecanismos automatizados responsáveis por organizar a “civilização

(pós) industrial e suas técnicas” (BLÜMLINGER, 2010, p. 156). O filme mostra bem que um

mesmo princípio teleológico – justamente a expressão que dá nome à obra – pode estar

envolvido de forma ambivalente em atividades diversas, seja a inteligência artificial de um

15 Não custa recordar que Theodor Adorno, um dos principais interlocutores de Benjamin, retoma, embora sem os devidos créditos, várias das ideias benjaminianas acerca da proximidade do progresso e da destruição. Por exemplo, Adorno (2006) afirma que “a maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão” (p. 40) e que “a racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia” (p. 100).

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míssil de guerra, o funcionamento de um robô de usina ou a vigilância das fábricas, das ruas,

das prisões16. Não basta comparar a visibilidade industrial ao maquinário militar. É preciso,

ao mesmo tempo, retraçar as origens da tecnologia de guerra, perseguir os seus traços

escondidos sob o programa numérico das imagens eletrônicas.

Observemos, por exemplo, a sequência que reforça o pertencimento histórico da bomba

atômica à era industrial (FIG. 3). Primeiro, um pequeno trecho de vídeo didático mostra a

trajetória e a explosão de um míssil nuclear. Em seguida, a mão de um operário insere peças

na máquina – a imagem da abertura é retomada – enquanto a narradora sugere: “Se fizermos

uma ligação entre guerra e produção, a bomba atômica pertence mesmo à era industrial. O

máximo de energia, o máximo de efeito”. Novamente, a imagem do cogumelo de fumaça

gerado pelo míssil nuclear é mostrada, seguida por um plano de comparação bastante sutil,

com duas imagens do mesmo operário a utilizar máquinas ligeiramente diferentes em seu

trabalho. De fato, pode-se perceber que a cena do canto superior esquerdo possui um ritmo de

produção mais veloz17, algo que a narração não tarda em formular: “antes de ser suprimido, o

trabalho da mão-de-obra é simplificado e acelerado”.

FIGURA 3 – Bomba atômica e era industrial FONTE – Filme Reconhecer e perseguir (Harun Farocki, 2013)

16 Temas tratados em filmes como Imagens da prisão (2000), filme ensaístico composto, dentre outros materiais, por uma vasta coleção de imagens produzidas pelas câmeras de vigilância das prisões; Achei que estava vendo condenados (2000), videoinstalação baseada no filme da prisão; e Contra-música (2004), que estuda as imagens operacionais utilizadas em sistemas de controle da vida urbana. 17 Durante cerca de 6”, o operário “de cima” introduz 7 peças na sua máquina, enquanto o outro coloca apenas 4.

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Agora, os dois planos são mostrados em sequência, desacelerados para enfatizar os

gestos, e separados apenas pelo letreiro que diz “o mesmo [gesto], depois de simplificado”18.

A sequência prossegue com a exibição de outras imagens dos trabalhadores nas (outras)

fábricas, enquanto a narração reflete sobre a transição da era industrial, marcada pelas

limitações (sensório-motoras) da mão e do olhar humanos, para a era eletrônica, na qual as

máquinas se tornam autônomas e superam a figura do operário. Assistimos, no fim da

sequência, à performance triunfal do sistema Optomat, que “coloca as peças desarrumadas na

posição desejada, comparando a forma e a posição com os modelos instalados”, sem

nenhuma intervenção de operadores humanos. “Com uma mudança no programa, qualquer

posição ou forma pode ser identificada”, procedimento que se assemelha, é claro, às técnicas

de reconhecimento bélico, cujos sistemas são retomados justamente na sequência seguinte,

acerca dos programas militares utilizados na detecção de minas terrestres.

De um modo geral, toda a montagem de Reconhecer e perseguir se faz pela alternância

dialética – não apenas derivante, mas sobretudo explosiva – entre as sequências de guerra e

de trabalho. Como afirma Elton Corbanezi: A produção dos meios de destruição tornou-se, paradoxalmente, um fator obrigatório da não-guerra. Círculo vicioso de tensão da Guerra Pura, o qual Farocki demonstra em seu documentário Reconhecer e perseguir (2003) a partir da ideia da guerra que estimula o desenvolvimento da técnica; círculo fechado entre a produção e a destruição, as quais significam, respectivamente, a produção da destruição e a destruição da produção (CORBANEZI, 2008, p. 50).

Cabe ao cinema, portanto, interromper esse “círculo fechado”, instaurar um

espaçamento ou intervalo que possa servir de brecha à restituição (pela imagem) de uma

imagem mais ampla ou profunda da história. À maneira do materialismo histórico de

Benjamin, o cineasta deve “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1994, p. 225),

resistir aos modos hegemônicos de escritura do tempo e fabricar contrapontos às narrativas da

história oficial. Como nos exemplos analisados anteriormente, são várias as combinações

organizadas por Farocki para arrancar os fragmentos da clausura e perseguir uma dimensão

histórica através do corpo fabril-militar do progresso tecnológico.

Depois da sequência de abertura, um simulador de lançamento de bombas, criado na

Alemanha em 1943, é seguido por outro simulador, contemporâneo, cujas imagens projetam

18 Cabe lembrar, aqui, dos sugestivos títulos do segundo e do terceiro tópicos das “Notas sobre o gesto”, do filósofo italiano Giorgio Agamben (2008, p. 11): “No cinema, uma sociedade que perdeu seus gestos procura reapropriar-se daquilo que perdeu e, ao mesmo tempo, registrar a perda” e “O elemento do cinema é o gesto e não a imagem”.

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sutilmente um presente-futuro (hoje, é bem conhecida a proximidade dos simuladores de

guerra com o universo das imagens sintéticas dos videogames19). Em outra sequência, logo

após assistirmos novamente às imagens da Guerra do Golfo, a narradora recorda que “já

existiam armas de longo alcance na Segunda Guerra Mundial, cuja trajetória era

telecomandada a partir de um avião de apoio, ou que podiam corrigir a sua rota

automaticamente”.

Em outro momento, ainda, após as cenas focadas no trabalho robotizado, na produção

de um míssil teleguiado e no sistema de reconhecimento de alvos, vemos a sequência sobre

uma das primeiras tecnologias de bombas integradas a um sistema de filmagem, na

Alemanha nazista de 1942. Bastante precário, esse aparato transmitia imagens captadas por

uma câmera na ponta do míssil a um avião de escolta, onde elas eram exibidas em monitor

televisivo. “A transmissão por televisão possibilita a aproximação visual ao alvo, mantendo

simultaneamente uma certa distância”. Sem perder de vista as reflexões sobre as imagens da

Guerra do Golfo mencionadas, cabe observar, junto à narradora, que “o desenvolvimento da

bomba equipada com uma câmera e, sobretudo, a diminuição do tamanho da câmera deram

um grande impulso à indústria televisiva”. Novamente, trata-se do ciclo de retroalimentação

entre produção e destruição, no qual o funcionamento da guerra estimula o desenvolvimento

das tecnologias tidas como produtivas, e vice-versa.

É importante reforçar que Farocki é, sobretudo, um refinado semiólogo visual, e grande

parte do seu trabalho fílmico consiste em iluminar correspondências insuspeitadas entre

gestos, figuras ou fragmentos nas imagens selecionadas. Por meio de procedimentos como a

montagem dialética das imagens e a construção de uma narração complexa, ele conecta os

processos de fabricação e funcionamento de um míssil teleguiado, por exemplo, aos modos

de operação de um modelo de produção automobilística. Seu método cinematográfico de

criação e pensamento se aproxima, talvez, da desconstrução do mecanismo da violência

convocada pelo filósofo Grégoire Chamayou (2015, p. 24) em seu recente estudo sobre os

drones: “No lugar de indagar se o fim justifica os meios, importa indagar-se o que a escolha

desses meios, por si mesma, tende a impor. Às justificativas morais da violência armada,

preferir uma analítica, tanto técnica como política, das armas”.

19 Objetos que serão explorados com maior profundidade, pelo próprio Farocki, em obras Jogos sérios (2010), que mostra os soldados do exército americano em treinamento de simulação militar, intercalando-os com as imagens dos próprios simuladores; e Paralelo (2014), obra composta quase que completamente por imagens extraídas de videogames, acompanhadas por importantes comentários ensaísticos.

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Nesse sentido, Reconhecer e perseguir contribui para profanar certa concepção de

história hegemônica, além de produzir ele mesmo “documentos históricos, de uma história

recente da máquina de visão, da imagem da máquina e, particularmente, da emergência da

imagem operacional no contexto de uma cultura da vigilância” (TOMAS, 2013, p. 219). É

com essa dupla tarefa cinematográfica que Harun Farocki luta inutilmente contra as teclas, ao

desconstruir certas imagens do mundo automatizado, remontá-las com a paciência do

trabalho manual, e devolvê-las, transformadas, à possibilidade do pensamento crítico e do

viver em comum.

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