recepção e mediação do patrimônio artístico e cultural

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  • Cursos de Especializao para o quadro do Magistrio da SEESPEnsino Fundamental II e Ensino Mdio

    Rede So Paulo de

    Recepo e mediao do

    patrimnio artstico e cultural d06

  • Rede So Paulo de

    Cursos de Especializao para o quadro do Magistrio da SEESP

    Ensino Fundamental II e Ensino Mdio

    So Paulo

    2012

  • 2012, by Unesp - Universidade estadUal paUlista

    PR-REITORIA DE PS-GRADUAOrua Quirino de andrade, 215Cep 01049-010 so paulo sptel.: (11) 5627-0561www.unesp.br

    SECRETARIA ESTADUAL DA EDUCAO DE SO PAULO (SEESP) praa da repblica, 53 - Centro - Cep 01045-903 - so paulo - sp - brasil - pabx: (11)3218-2000

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    Sumrio

    Introduo ................................................................................. 71. Arte/educao como mediao cultural e social ...................... 9

    1.1 - O contexto histrico: relaes entre museu e educao ................ 111.2 - As regras do jogo: distncia e aproximao .................................. 14

    2. Questes sobre educao patrimonial ..................................... 192.1 - A histria da institucionalizao do patrimnio .......................... 20 2.2 - Revises contemporneas do patrimnio ..................................... 24

    3. As prticas de produo, difuso e mediao na contemporaneidade ........................................... 283.1 - Do modernismo ao ps-modernismo no ensino de arte ............... 29 3.2 - Difuso e mediao na contemporaneidade ................................. 34 Ampliando o conhecimento ................................................................. 38

    4. A recepo e a interpretao das produes artsticas ............. 394.1 - Apreciao artstica ou leitura da obra de arte? ............................ 40 4.2 - A interpretao ............................................................................ 46 Ampliando o conhecimento ................................................................. 49

    5. O arte/educador como mediador ........................................... 51Bibliografia ................................................................................. 58

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    Rejane Galvo Coutinho

    Sou formada em Educao Artstica com habilitao em Artes Plsticas na Universidade Federal de Pernambuco, estado onde nasci e vivi a maior parte de minha vida. Vim para So Paulo para estudar, fiz mestrado e doutorado na Escola de Comunicaes e Artes da Univer-sidade de So Paulo e acabei ficando por aqui. Hoje sou professora do Instituto de Artes da UNESP onde trabalho com formao de professores de Artes Visuais e atualmente coordeno a Ps-Graduao em Artes. Desenvolvo e oriento pesquisas sobre a histria do ensino da arte e sobre as questes contemporneas da arte/educao como mediao cultural, uma coisa tem forte relao com a outra, pois a histria me abre possibilidades de entender melhor o presente e vislumbrar o futuro..

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    Ementa

    A arte/educao como mediao cultural e social. O papel do educador como mediador. As relaes entre as prticas de produo, circulao e recepo. Teorias contemporneas da recepo. Revises e atualizaes sobre o conceito de educao patrimonial. Planejamento e prticas fundamentadas de mediao cultural.

    Palavras-Chave

    Recepo, mediao, patrimnio, artstico, cultural, produes

    Estrutura da Disciplina

    Tema 1 - Arte/educao como mediao cultural e social

    Tema 2 - Questes sobre educao patrimonial

    Tema 3 - As prticas de produo, difuso e mediao na contemporaneidade

    Tema 4 - A recepo e a interpretao das produes artsticas

    Tema 5 - O arte/educador como mediador

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    IntroduoQual o papel do educador na recepo e mediao do patrimnio artstico e cultural? Esta

    a questo que norteia a disciplina e para buscar subsdios para compreender o seu alcance se faz necessrio entender, de imediato, que ela se situa no espao de trnsito entre as aes educacionais e as prticas culturais. Um espao complexo que pressupe movimentos e atra-vessamentos em vrias direes.

    A questo se dirige ao professor de arte, aqui entendido como mediador, em suas aes edu-cativas junto aos estudantes, tanto no ambiente escolar, quanto fora do contexto escolar, nas visitas aos museus, exposies, espetculos e outras manifestaes do mbito cultural.

    O termo recepo, que abre o ttulo da disciplina, no deve ser entendido com o sentido de passividade que tambm lhe prprio - o receber algo ou algum. Quando associamos recepo mediao pressupomos um movimento: da interioridade da recepo s apropriaes e incor-poraes do mundo e dos conhecimentos do mundo provocados por mediaes educacionais.

    O patrimnio artstico e cultural nosso campo de conhecimento, com suas prticas de produo, difuso e recepo. Portanto, no podemos pensar em objetos, obras e manifestaes apenas, mas nos trnsitos entre as diversas prticas inerentes ao campo da arte, inseridas no campo mais amplo da cultura.

    Para organizar nosso estudo em relao a esta complexidade procuramos destacar alguns aspectos inerentes s relaes entre as aes educativas e as prticas culturais, distribudos em temas por semana de estudo. No primeiro tema, preparando o terreno, vamos procurar situar algumas representaes, construdas ao longo da histria, que atravessam e se sobrepem ao contexto, introduzindo tambm algumas regras que pr-definem as relaes no campo da arte.

    No segundo tema o foco so as relaes patrimoniais, as heranas recebidas, seu processo de institucionalizao, buscando compreender os mecanismos de legitimao, para atualizar os sentidos que o legado patrimonial comporta hoje.

    No terceiro tema o foco so as produes contemporneas e para compreender suas prticas necessrio enfrentar os trnsitos entre a modernidade e a ps-modernidade, para situar as prticas de difuso e mediao na contemporaneidade. No tema seguinte, o debate gira em

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    torno dos recursos disposio dos educadores para efetivar uma mediao crtica e compro-metida: dos mtodos de apreciao, processos de leitura, ao entendimento da interpretao como construo de conhecimento no campo da arte.

    E finalmente, no quinto tema, voltamos a questo que abre esta introduo, ao papel do educador como mediador, responsvel por sua formao e pela formao de pblico para as artes.

    importante deixar claro que as referncias deste texto recaem especialmente sobre as artes visuais, campo de experincia da autora. Mas ser permitido e aconselhvel proceder a toda e qualquer transferncia de referncias entre as linguagens, pois os mecanismos das prticas cul-turais e, sobretudo educacionais, so basicamente os mesmos, com suas especficas adequaes.

    Bom trabalho!

    Rejane Galvo Coutinho

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    Arte/educao comomediao cultural e social

    O ttulo deste tema tambm ttulo de um livro1 que busca circunscrever a partir de refle-xes tericas e de experincias, a ideia de que a arte/educao tem um papel de destaque como mediadora nas relaes entre arte e pblico. o que buscaremos tambm fazer nesta disciplina que tem a inteno de problematizar as relaes que atravessam o campo especfico da arte/educao como mediao cultural, pois um dos papeis preponderantes do professor de Arte na contemporaneidade o de mediador cultural.

    Para incio de conversa se faz necessrio situar o que entendemos por mediao cultural. O conceito de mediao no campo da educao comea a fazer sentido a partir das ideias scio construtivistas em contraposio ao iderio da educao tradicional. No entanto, como explica Ana Mae Barbosa:

    1 Arte/Educao como mediao cultural e social (BARBOSA; COUTINHO, 2009).

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    O conceito de educao como mediao vem sendo construdo ao longo dos sculos. Scrates falava da educao como parturio das ideias. Pode-mos, por aproximao, dizer que o professor assistia, mediava o parto. Rousseau, John Dewey, Vygotsky e muitos outros atribuam natureza, ao sujeito ou ao grupo social o encargo da aprendizagem, funcionando o professor como organizador, estimulador, questionador, aglutinador. O professor mediador tudo isso (BARBOSA,; COUTINHO, 2009, p.13).

    Para entendimento do conceito de mediao e, consequentemente, da ideia do profes-sor mediador, a autora convoca importantes pensadores do ato educacional que atuaram em pocas e contextos diversos, tendo em comum uma perspectiva democrtica de educao. Mais prximo de nossa poca e de nosso contexto, Paulo Freire que tambm bebia nessas mesmas fontes, defendia a ideia de que aprendemos uns com os outros mediatizados pelo mundo. A com-plexidade desta aparentemente simples constatao desmonta aquela lgica unidirecional do ato educacional e convoca uma multi-lgica fundada no dilogo. O professor mediador que organiza, estimula, questiona e aglutina em sua ao educativa precisa considerar as relaes de uns com os outros e as vrias camadas contextuais que o mundo nos oferece.

    A arte com todas as suas linguagens e possibilidades pode ser campo frtil de mediao entre nosotros e o mundo. A arte/educao tem enfrentado esta possibilidade desde que passou a considerar a arte como conhecimento culturalmente situado2 como foco do processo de ensinar/aprender arte. A Proposta Triangular traz a arte como cultura para o centro da ao educativa e considera as prticas de produo, de difuso e de recepo em seus contextos e relaes como dimenses da mediao cultural.

    O entendimento da mediao cultural, portanto, est neste texto atrelado ao entendimento mais amplo de arte como cultura, da ao educativa como prtica dialgica e com o compro-misso do educador mediador com as dimenses polticas da prxis educacional. Obviamente, a questo da mediao cultural pode ser entendida por outros pontos de vista e outras bases poltico-conceituais. Os campos das prticas artsticas, de sua difuso e recepo, so atraves-sados por vrias questes calcadas em posicionamentos, por uma srie de representaes que se naturalizaram ao longo do tempo e que hoje merecem reflexes. Ao longo desta disciplina nos debruaremos sobre algumas dessas importantes questes.2 Vide tpico: Arte como Cultura, disciplina 2.

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    1.1 - O contexto histrico: relaes entre museu e educao

    Historicamente o conceito de mediao cultural est fortemente associado a educao patri-monial, e em particular a educao em museus. importante ento buscar entender as relaes entre museu e educao para compreender as bases contextuais desta associao. Ao entrar em contato com o percurso e contexto de constituio do que hoje entendemos como museu, nos deparamos com uma histria, ainda fragmentada em termos de narrativa, mas que acompanha a histria poltica, cultural e social da humanidade. Ao olhar a histria, de imediato percebe-se no processo de institucionalizao dos espaos museais a configurao de algumas represen-taes que se incorporam ideia de museu e ainda hoje esto presentes na cultura ocidental.

    A origem dos museus est associada a uma prtica to antiga quanto a humanidade e sempre presente nas crianas, nos jovens e nos adultos ainda hoje: a prtica de colecionar, guar-dar e classificar. Porm, a nome museu vem da Grcia Antiga - mouseion - templo dedicado s musas, com carter religioso, cuja funo era agradar as divindades. As musas so entidades mitolgicas capazes de inspirar a criao artstica ou cientfica. Por esta via, as criaes expos-tas no mouseion tinham mais a funo de agradar as divindades do que serem contempladas pelos homens (SUANO, 1986).

    De sua bela nomeao, os museus carregam o sentido de templo com certo carter religioso, e como templo o que se expe nestes espaos merece a contemplao. Estes sentidos do aos museus o clima de reverncia e de solenidade que se experimenta nas suas dependncias. Primariamente, portanto, os museus no foram espaos institudos para convivncia entre os homens, para estabelecer relaes entre eles e as obras expostas, mas para demarcar outro tipo de relao, diferente das relaes mundanas e comuns, um tipo de relao que aparta os homens da vida cotidiana, da vida terrena e os transporta para extratos espirituais e superiores. Isto ainda hoje perceptvel na arquitetura dos prdios, nos solenes e intimidantes prticos de entrada semelhantes a templos e palcios, encontrados sobretudo nos museus construdos especificamente para este fim nos sculos XVIII e XIX. Em nosso contexto temos como exemplo o Museu Paulista3, mas conhecido como Museu do Ipiranga. O carter ritualstico perceptvel tambm na forma como as obras so expostas, na cenografia e iluminao, muito prximas de espaos de reverncia como santurios e altares. Isto se revela ainda no compor-

    3 http://www.mp.usp.br

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    tamento adequado que incorporamos nestes espaos incutidos pelas normas, no no falar alto, no corpo contido em suas possibilidades de expresso, no andar compassado, na quase suspen-so da respirao.

    Ao longo da Idade Mdia, com o poder da Igreja, os museus foram assumindo a funo de salvaguarda das colees eclesisticas e tambm das ricas colees privadas. Em consequncia dos tesouros ali reunidos, os espaos museais limitavam a visitao pblica e quem frequentava as instituies era o restrito crculo de pesquisadores iniciados. Em meados do sculo XVI, j no Renascimento, surgiram os primeiros catlogos resultante de estudos sobre as colees e acervos (VALENTE, 2003).

    Neste longo perodo, foi se agregando ao conceito de museu de forma paralela e entrelaada as representaes do poder econmico com o poder do conhecimento. Os objetos e colees mantidos pelos acervos representavam o poder da Igreja, dos prncipes, nobres e aristocratas; as pesquisas e seus pesquisadores interessavam aos poucos iniciados que tinham acesso aos signos do poder. At hoje, as instituies museais carregam signos de distino que as asso-ciam ao poder econmico, social e cultural. Entrar em um museu no tarefa fcil, mesmo naquelas instituies que no cobram ingresso, h barreiras simblicas difceis de transpor. A ideia de que o conhecimento ali exposto para uma elite iniciada nos mistrios da arte, de que necessrio ter um conhecimento prvio, ou seja, ser portador de um capital cultural, impede vrias pessoas de transpor as portas dos museus. Por outro lado, a ideia de que aqueles que conseguem transpor as barreiras passam a partilhar os signos de distino impulsionam os visitantes mais audaciosos.

    Outra representao associada a esta relao de poder e saber que os museus carregam a expressa pela necessidade de mediao nestes espaos. A maior parte dos visitantes leigos que consegue transpor as barreiras das instituies busca o apoio de mediadores - guias, monitores, educadores - para lhes traduzir o conhecimento exposto, para lhes indicar o que ver e como ver. A cultura historicamente instituda nestes espaos impe vus de ignorncia queles no iniciados nos tesouros do conhecimento, por essa perspectiva impensvel ver com os prprios olhos e se aproximar dos objetos diretamente. Um dos exemplos mais comuns encontrados ainda hoje daquele visitante que diante de uma imagem que lateja seus olhos pergunta inte-ressado ao educador: O que isto quer dizer? Nesta lgica, no permitido confiar no que se

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    v, no se acredita naquilo que se entende que a imagem expressa. necessria uma traduo legitimada para assegurar ao vidente aquilo que ele exatamente v com seus prprios olhos.

    Aqui nos aproximamos diretamente da relao entre museu e educao quando consegui-mos incluir o pblico dentro do espao do museu. No entanto, importante voltar histria para entender que apenas no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX que as instituies museais comeam paulatinamente a abrir as portas ao grande pblico. Alis, importante entender que a categoria pblico passa a existir como tal a partir do momento em que so gera-das as ofertas culturais. As grandes transformaes sociais, culturais e urbanas advindas com o Iluminismo incidem nas prticas de difuso do conhecimento, e a funo primitiva do museu, antes voltado apenas para a salvaguarda e exposio, passa a incluir a dimenso educativa entre suas preocupaes. As primeiras iniciativas levam em conta a ideia da educao patrimonial e do objeto como fonte primria para a aprendizagem.

    A histria do Museu do Louvre4 ilustra de maneira exemplar o que foi dito acima. A emblemtica construo que hoje abriga o Museu foi no passado fortaleza, depois palcio, abrigou galeria de acervo dos nobres, abrigou por um perodo a Academia de Belas Artes e instituiu a moda dos sales. Foi inaugurado oficialmente como museu em 1793 com acervo de obras confiscadas famlia real e aos aristocratas que fugiram da Revoluo Francesa. H inclusive uma verso de que a constituio do Museu foi uma estratgia para evitar a disperso dos tesouros reais. At meados do sculo XIX, o Louvre oferecia acesso gratuito ao pblico apenas nos fins de semana. Durante a semana as obras eram reservadas para estudo de artistas e pesquisadores. Seu acervo foi enriquecido paulatinamente com obras confiscadas fruto das conquistas napolenicas e, posteriormente, atravs do processo de colonizao que induziu o gosto pelo extico, junto ao desenvolvimento da arqueologia, criando galerias especficas sobre culturas, pocas e temas. Hoje, uma visita ao Museu do Louvre um dos mais prestigiados signos de distino, uma prtica que leva multides a reverenciar uma histria de conquista de valores atravs da arte.

    No final do sculo XIX, quando o Museu do Louvre abriu suas portas diariamente ao pblico, se institui um setor educativo na instituio com preocupao de formao. Em 1928, ou seja, mais de um sculo aps sua inaugurao, se institui um servio de visitas guiadas neste setor, exatamente quando o fluxo de pblico aumenta com a abertura das portas, a expanso 4 http://www.louvre.fr

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    urbana, o desenvolvimento dos meios de comunicao. Exatamente quando os movimentos artsticos questionam os cnones da arte instituda e expandem as experimentaes no campo da arte. Podemos ento ponderar que esse recurso de mediao, as visitas guiadas, vem reforar todo o processo de institucionalizao da cultura francesa da qual o Museu um dos smbolos mximos, de sua histria, de seus valores atravs de uma ao educativa. um caso tpico de mediao cultural atrelada a um projeto poltico hegemnico.

    No Brasil, as primeiras experincias educacionais em museus so localizadas no Museu Nacional do Rio de Janeiro5, na dcada de 1920, associadas ao estudo de Histria, iniciando o que hoje se pode chamar de parceria museu-escola. Nas dcadas de 1930 e 1940, a questo da educao em museus no contexto histrico mereceu ateno das instituies que promoveram encontros e publicaes sobre o assunto, sempre relacionados necessidade de constituio de uma identidade nacional sob a ideologia do Estado Novo. Esta associao foi to fortemente tecida por nosso sistema educacional que hoje, nos currculos de educao bsica, no pode faltar uma visita ao museu histrico mais prximo. No Estado de So Paulo h quase que uma obrigatoriedade de visitar o Museu Paulista, instituio que se constituiu exatamente para este fim no final do sculo XIX, para auxiliar na construo de uma identidade de povo brasileiro, ao reverenciar o local da Independncia e do ser paulista, ao reforar as representaes bandei-rantes e da elite cafeeira. Esta forte associao entre museu e histria, entre museu e local de coisas antigas e mesmo velhas est arraigada no imaginrio do brasileiro. Resta nos perguntar o que vem ocorrendo no processo de mediao para que esta prtica imposta na escolarizao no faa dos brasileiros, e dos paulistanos em particular, melhores frequentadores e apreciado-res de seu patrimnio histrico e cultural.

    1.2 - As regras do jogo: distncia e aproximao:

    Identificamos algumas representaes associadas a museu e educao que permanecem ativas em nosso imaginrio. So representaes que atravessam os processos de mediao em movimentos opostos, por um lado seduzem e induzem aproximaes e por outro revelam distanciamentos. Neste tpico, vamos procurar entender melhor estas polarizaes aparen-temente contraditrias buscando ajuda na sociologia, especialmente nas ideias do socilogo francs Pierre Bourdieu.5 http://www.museunacional.ufrj.br

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    Inicialmente, vamos procurar compreender um pouco da economia das trocas simblicas e a ideia de capital como um recurso suscetvel de gerar interesse por sua acumulao e distribui-o no contexto social e cultural. Bourdieu define capital como uma fora ou poder inscritos na objetividade das coisas. Em seu uso primrio, capital uma representao da capacidade potencial de produzir benefcios financeiros, porm Bourdieu usa o conceito de capital meta-foricamente. Ele analisa a dinmica de quatro tipos de capitais: econmico, cultural, social e simblico. No campo das prticas artsticas, por exemplo, obras de artes se tornam capital econmico quando so criadas, vendidas para colecionadores, revendidas para outros colecio-nadores ou doadas a museus. So convertidas em moeda (capital econmico) e institucionali-zadas em forma de propriedade ou posse.

    No entanto, como capital cultural, as obras de artes contribuem para o status de classe no apenas daqueles que as possuem, mas, de maneira ainda mais importante, contribuem para o status daqueles que respondem s obras de artes e consomem obras de arte. Capital cultural pode significar capital econmico, mas no necessariamente. A questo no exatamente de propriedade, mas de apropriao ou de incorporao. Pode no haver a posse fsica do objeto, o que interessa a apropriao de seus sentidos e do que eles representam no contexto no qual o objeto e o indivduo esto inseridos. Porm, na perspectiva sociolgica de Bourdieu e Darbel (2003), a recepo de obras de arte depende da complexidade e sofisticao dos cdigos arts-ticos em relao ao domnio individual dos cdigos sociais. Ou seja, para que haja apropriao de bens simblicos necessrio domnio de cdigos especficos e compreenso dos contextos sociais de tais cdigos. Aqui tem papel importante a educao que possibilita aos indivduos o acesso e domnio de diferentes cdigos culturais. So as qualificaes educacionais, que tambm podem ser descritas como capital educacional (considerado um subconjunto do capi-tal cultural) que incluem a totalidade da educao formal e o nmero de diplomas ou ttulos que uma pessoa possui. Portanto, a educao formal institucionaliza o capital cultural e a arte/educao em particular, ajuda a constituir capital cultural atravs da educao formal e no--formal.

    Sabe-se que o capital cultural tambm herdado e transmitido atravs das famlias enga-jadas com artes, e nestes casos se torna uma vantagem e um diferencial para alguns sujeitos. Quando a escola assume o princpio da igualdade como ponto de partida para suas aes

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    educacionais, no levando em conta as diferenas iniciais, trabalha em prol da conservao das desigualdades. Bourdieu alerta:

    Com efeito, para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavoreci-dos os mais desfavorecidos, necessrio e suficiente que a escola ignore, no mbito dos contedos do ensino que transmite, dos mtodos e tcnicas de transmisso e dos critrios de avaliao, as desigualdades culturais entre as crianas das diferentes classes sociais. Em outras palavras, tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar levado a dar sua sano s desigual-dades iniciais diante da cultura. (BOURDIEU, 2007, p. 53)

    Ao analisar e denunciar os mecanismos de conservao dos capitais culturais pelo sistema educacional, Bourdieu chama ateno dos educadores para a possibilidade de reverso deste mecanismo. Nas suas pesquisas sobre o perfil de frequentadores de museus a partir das polti-cas culturais de democratizao das artes, o autor enfatiza o papel preponderante da educao no comportamento dos consumidores de cultura e mais uma vez nos provoca a pensar:

    A existncia de uma ligao to forte entre a instruo e a frequncia a museus mostra que s a escola pode criar (ou desenvolver, segundo o caso) a aspirao cultura, mesmo cultura menos escolar. Falar de necessidades culturais, sem lembrar que elas so, diferentemente das necessidades pri-mrias, produtos da educao, com efeito, o melhor meio de dissimular (mais uma vez recorrendo ideologia do dom) que as desigualdades frente s obras da cultura erudita no so seno um aspecto e um efeito das desi-gualdades frente escola, que cria a necessidade de cultura ao mesmo tempo em que d e define os meios de satisfaz-la. (BOURDIEU, 2007, p. 60)

    A relao direta entre capital cultural e educao, seja a educao formal ou familiar, ajuda a compreender e desconstruir o crculo fechado e elitista no qual o campo exclusivo da arte se instala. O entendimento de que a necessidade de arte uma construo social, um produto da educao, desmascara a conhecida ideologia do dom, to utilizada no meio educacional como recurso para mascarar as desigualdades de oportunidades.

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    O simples fato de recordar que o que se vive como um dom, ou um privi-lgio das almas de elite, um signo de distino, em realidade o produto de uma histria, uma histria coletiva e uma histria individual, produz um efeito de dessacralizao, de desencantamento ou de desmitificao (BOURDIEU, 2010, p. 32, traduo da autora).

    Ainda na perspectiva de Bourdieu, o capital simblico um tipo de capital que aparente-mente denega seu potencial valor econmico, fazendo valer em lugar disso o poder, como, por exemplo, o poder da arte pela arte. Algumas obras carregam um capital simblico to acentu-ado que tem valor alm de seu custo material. Em meio ao complexo contexto da cultural visual do sculo XX, a obra de Marcel Duchamp, O Grande Vidro6, tem um alto capital simblico que se contrape ao material utilizado. Andy Warhol agregou capital simblico s serigrafias, uma tcnica comercial de reproduo em srie at ento desprezada no campo da arte. As ilustraes de revistas em quadrinhos, geralmente tidas como mais prximas do capital econ-mico, foram utilizadas por artistas da Pop Art agregando um capital simblico diferenciado a estas produes. A arte infantil tem funcionado como capital simblico relacionado a valores humanistas de livre-expresso no sistema educacional das sociedades capitalistas modernas.

    J o capital social se refere a posse de uma rede de relaes mais ou menos institucionali-zadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento, ou em outros termos, vinculao a um grupo; pode ser convertido em capital econmico quando agrega crdito e notabilidade ou ainda quando a rede impulsiona o sujeito na hierarquia do ranking social. Em algumas reas, participar de associaes profissionais constitui capital social, assim como participar de clubes e associaes, como as esportivas e de laser, desde que estas associaes mantenham uma representatividade no contexto

    Ou seja, as relaes entre os distintos capitais no so de modo algum simtricas ou opostas ou preestabelecidas, mas precisam ser compreendidas sempre em relao s foras que fazem mover os campos nos quais esto inseridas, no caso das produes artsticas, o campo da arte.

    A ideia de campo outra contribuio de Bourdieu que ajuda a compreender as relaes dos sistemas de produo, de difuso e de recepo dos bens culturais. Entendido como um

    6 Tambm conhecida como A Noiva Desnuda por seus Celibatrios, pode ser vista no site: http://www.sescsp.

    org.br/sesc/galeria/20mundo/obra05.htm.

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    sistema de posies e de relaes objetivas, o campo, em sentido geral, assume uma existncia temporal, o que implica sempre trabalhar com a dimenso histrica no modo de pensamento relacional. O campo pode ser conceitualizado como espao de jogo historicamente consti-tudo com suas instituies especficas e suas leis de funcionamento prprias. Pode-se dizer que a estrutura de um campo o estado das relaes de foras entre as instituies e/ou os agentes comprometidos no jogo. Alm de um campo de foras, um campo social constitui um campo de lutas destinadas a conservar ou a transformar este campo de foras. Quer dizer, a prpria estrutura do campo, enquanto sistema que est permanentemente em jogo. Se trata da conservao ou da subverso da estrutura de distribuio do capital especfico. No entanto, no podemos esquecer que os agentes comprometidos nestas lutas tem em comum um certo nmero de interesses fundamentais, de cumplicidades bsicas, como em um jogo, h acordos aceitos tacitamente para estar em jogo. Para que um campo funcione necessrio que haja gente disposta a jogar o jogo, que acreditam no valor do jogo. Esta crena condio para entrada no jogo, no uma crena explcita, voluntria, produto de uma eleio deliberada do indivduo, mas uma adeso imediata, uma submisso s regras.

    Bourdieu examinou primeiro o campo das religies e depois transferiu seu sistema para analisar os campos da cultura, especialmente da educao e da arte. Neste processo ele faz uma analogia ponderando que a religio da arte tomou o lugar da religio no mundo contempo-rneo:

    Evidentemente quando se trata de obras em um museu, fcil reconhece--las. Por qu? O museu como uma igreja: um lugar sagrado, a fronteira entre o sagrado e o profano est demarcada. Expondo um urinol ou uma roda de bicicleta em um museu, Duchamp se satisfez em recordar que uma obra de arte uma obra que est exposta em um museu. Por que sabem vocs que uma obra de arte? Porque est exposta em um museu (BOURDIEU, 2010, p. 27-28, traduo da autora).

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    Questes sobre educaopatrimonial

    Para aprofundar nossa reflexo sobre as questes da mediao no campo da arte/educao necessrio buscar compreender os mecanismos que definem e delimitam os objetos a serem mediados, aqui especificamente os objetos patrimoniais. De imediato, o termo patrimnio nos remete aquilo que herdamos do passado, o que recebemos como legado de valor e que merece ser conservado. No entanto, o conceito de patrimnio se constitui nos campos culturais e sociais em contextos especficos que os impregnam de sentidos. O conceito de patrimnio cultural passa historicamente por um processo de institucionalizao que agrega valores que os qualificam de forma diferenciada diante de outros legados. Vamos usar como fundamentos para anlise os conceitos de Bourdieu estudados no tema anterior.

    As perguntas que orientam esta investigao procuram compreender: por que algumas obras e objetos, algumas construes ou stios histricos, ou mesmo algumas prticas culturais,

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    merecem o ttulo de patrimnio cultural e outros acervos no tem este merecimento? Quais os critrios seletivos que definem o que se constitui como patrimnio? Quais processos deter-minam o que se constitui como patrimnio? So questes que gostaramos de aprofundar e que se desdobram neste texto em um tpico histrico contextual e outro de revises crticas, para abrir possibilidades de nos relacionarmos com a diversidade patrimonial na contempo-raneidade.

    2.1 - A histria da institucionalizao do patrimnio1

    A origem do movimento patrimonial est estreitamente relacionado com a viso humanista e universalista de cultura, uma perspectiva que se constitui ao longo da histria ocidental e se consolida no sculo XIX com a expanso do capitalismo, do imperialismo com suas prticas coloniais e com o desenvolvimento dos conhecimentos filosficos, cientficos, tecnolgicos e das redes de comunicao que se estabelecem na geopoltica do mundo reconhecido como civilizado. nessa poca que se produzem estudos e pesquisas no sentido de definir e estabe-lecer critrios e valores para qualificar evolutivamente as culturas.

    Em conseqncia, no final desse sculo e incio do sculo XX que os pases do hemisfrio Norte que se auto-identificam como civilizados, definem e regulam a proteo de seus bens culturais considerados patrimoniais. Os primeiros documentos oficiais surgem com a Liga das Naes em 1919 e so reconhecidos em 1935. As discusses iniciais giram em torno de regras gerais de conduta para proteo de bens patrimoniais dos pases em perodos de guerra, condizente com a situao vivida naquele momento na Europa. Com a criao da Organiza-o das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura UNESCO em 1945, uma srie de convenes estabelecida buscando regular, disciplinar e criar instrumentos jurdicos internacionais para a promoo e proteo dos bens culturais patrimoniais.

    Ao percorrer a seqncia de ttulos das convenes promulgadas pela UNESCO2, de 1952 a 2005, tm-se um panorama do teor das questes que pautaram as discusses institucionais sobre patrimnio cultural no perodo. Por exemplo, s em 1970 a preocupao com o trfico

    1 O texto deste tpico tem como base ideias contidas no texto de minha autoria A cultura ante as culturas na es-

    cola e na vida, publicado em Horizontes culturais: lugares de aprender, p. 39-50.

    2 Informaes disponveis no endereo http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/international-instruments-

    -clt/#c154809.

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    ilcito de bens culturais entre pases e continentes foi regulamentada, um grave problema tratado juridicamente depois que deixou de ser prtica corrente de potncias dominantes sob povos dominados durante sculos de prticas coloniais. Apenas em 2001 houve o reconheci-mento oficial da diversidade cultural dos povos atravs de uma declarao que em 2005 se for-mulou como uma conveno de proteo e promoo da diversidade das expresses culturais, e as questes referentes ao patrimnio imaterial foram reguladas na conveno de 2003.

    Diante desta histria importante entender quais so os critrios e valores defendidos e promovidos pela concepo humanista e universalista de cultura para suas aes patrimoniais. Busca-se privilegiar as produes mais virtuosas, hericas, singulares e tidas como essenciais para elevar espiritualmente a humanidade. Neste sentido, um patrimnio cultural definido por sua antiguidade, pela excelncia cultural e tangibilidade diante de sua cultura particular e por seu carter de documento universal para a humanidade, critrios que se modificam nos diferentes contextos e pocas, como veremos mais adiante. Pode-se dizer tambm que resultante de um processo de seleo cultural natural no tempo histrico, ou seja, a sua pere-nidade comprova a sua dimenso identitria em relao cultura por sua resistncia fsica e principalmente simblica.

    Assim, segundo os documentos oficias, o patrimnio cultural pode ser definido como um bem material ou imaterial, herana do passado para o presente e o futuro, com valores e carac-tersticas que contribuem para a permanncia e identidade da cultura a que pertence. Dos bens materiais tem-se desde conjuntos urbanos ou locais e stios dotados de expressivo valor hist-rico ou arqueolgico, a casas, palcios, igrejas, praas, ou esculturas, pinturas e artefatos de um modo geral. Consideram-se bens imateriais a literatura, msica, linguagem e manifestaes coletivas e/ou festivas, como costumes e fazeres. Recentemente no Brasil, por exemplo, foram tombados como bens imateriais o acaraj na Bahia e o frevo em Pernambuco.

    O processo de institucionalizao patrimonial regido por critrios pautados pela legisla-o internacional de acordo com a esfera a que diz respeito. Portanto, um bem cultural patri-monial pode ser tombado e reconhecido por diferentes instncias: municipais, estaduais, fede-rais e internacionais. Alis, bom saber que em princpio todo cidado de forma individual

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    ou coletiva pode requerer o tombamento de bens materiais e imateriais, para tal necessrio encaminhar um processo para o rgo3 mais prximo que legisla a questo.

    O processo de institucionalizao dos patrimnios no Brasil ocorreu paralelo ao movi-mento internacional no incio do sculo XX. O projeto de criao, em 1937, do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - IPHAN, envolveu a intelectualidade modernista e teve como base um anteprojeto idealizado por Mrio de Andrade a pedido do ento Minis-tro da Educao e Sade, Gustavo Capanema. Na dcada de 1930, Mrio de Andrade atuava tambm como pesquisador e etngrafo, alm de gestor de cultura na Cidade de So Paulo, onde organizou e dirigiu o Departamento de Cultura. Seus trabalhos em prol do reconheci-mento e preservao de todas as formas de manifestaes culturais deram incio a um processo que s recentemente se efetivou oficialmente. Como um turista aprendiz4 realizou viagens de pesquisa etnogrficas ao Norte e Nordeste do Brasil recolhendo importantes registros mate-riais e imateriais. Pois, j naquela poca ele defendia a preservao no s dos grandes monu-mentos, da arte erudita ou pura e de peas arqueolgicas, mas seu olhar de etngrafo inclua como patrimnio a arte e os artefatos da cultura popular e dos povos amerndios, assim como os bens imateriais: costumes, cantos, lendas e fazeres, reconhecendo e valorizando a diversi-dade de nossa formao cultural. O legado das pesquisas de Mrio de Andrade continua hoje inspirando outros pesquisadores da cultura brasileira e pode tambm ser ponto de partida e alimento para projetos educacionais trans-disciplinares, como se qualifica sua prpria ao5.

    Na sua atuao como gestor e educador cultural a frente do Departamento de Cultura (1935-1937), Mrio de Andrade buscou quebrar o crculo vicioso da elitizao promovendo 3 nvel internacional a UNESCO que legisla o assunto. No plano federal temos o Instituto do Patrimnio Histri-

    co e Artstico Nacional (IPHAN). No Estado de So Paulo, ligado a Secretaria de Cultura existe a Unidade de Preservao

    do Patrimnio Museolgico (UPPM) e o Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e Turstico

    (CONDEPHAAT) que legisla sobre a questo. Ligada a Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de So Paulo temos o

    Departamento do Patrimnio Histrico (DPH) e o Conselho Municipal de Preservao do Patrimnio Histrico, Cultural e

    Ambiental da Cidade de So Paulo (CONPRESP).

    4 OTuristaAprendizfoinomedadoporMriodeAndradeaodirioescritoemsuaprimeiraviagemetnogrfica

    ao Norte do pas em 1927 e posteriormente publicado com estabelecimento de textos, introduo e notas por Tle Porto

    Ancona Lopez.

    5 Para pesquisa, alm das obras completas de Mrio de Andrade e de vrias obras publicadas sobre ele e sua

    produo, o Instituto de Estudos Brasileiros da USP www.ieb.usp.br mantm a disposio dos pesquisadores grande

    partedoseuacervobibliogrficoedemanuscritos,almdesuascoleesdeobrasdearteseobjetosdaculturapopular,

    entre outros. O Centro Cultural So Paulo em sua biblioteca e arquivos guardam tambm os resultados das Misses Fol-

    clricas organizadas por Mrio de Andrade na dcada de 1930.

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    aes educativas de difuso e recepo de bens culturais, como o projeto das aulas-concertos da orquestra sinfnica no Teatro Municipal com uma programao especialmente selecionada e material de apoio didtico informativo e explicativo, ou seja, estabelecendo um processo de mediao em msica especialmente pensada para o pblico escolar.

    Antes de So Paulo ter seus museus de arte, Mrio idealizou um Museu Popular que no chegou a ser realizado, porm o projeto sugeria que o museu fosse constitudo por reprodues, colocando as colees dos grandes museus europeus ao alcance de todos. Independente da discusso que se possa ter hoje sobre a qualidade das reprodues e a insubstituvel presena diante de obras originais, o que importante refletir o carter de extenso e de educao con-tidos na proposta de museu de Mrio de Andrade. Para ele ... o verdadeiro museu no ensina a repetir o passado, porm a tirar dele tudo o quanto ele nos d dinamicamente para avanar em cultura dentro de ns, e em transformao dentro do progresso social (ANDRADE apud LOURENO, 2002). Ele pensava h poca em museu com a funo de disseminar conheci-mentos para segmentos da populao que no tinham acesso a estes conhecimentos, da mesma forma que estamos aqui hoje refletindo sobre a democratizao cultural a despeito do processo de elitizao que se incrustou nas instituies representativas de nossa cultura, procurando reverter este processo, como sugere tambm Ana Mae Barbosa em consonncia com as ideias de Pierre Bourdieu:

    hora dos museus abandonarem seu comportamento sacralizado e assu-mirem sua parceria com escolas, porque somente as escolas podem dar aos alunos de classe pobre a ocasio e auto-segurana para entrar em um museu. Os museus so lugares para a educao concreta sobre a herana cultural que deveria pertencer a todos, no somente a uma classe econ-mica e social privilegiada. Os museus so lugares ideais para o contato com padres de avaliao de arte atravs da sua histria, que prepara um consu-midor de arte crtico no s para a arte de ontem e de hoje, mas tambm para as manifestaes artsticas do futuro. (BARBOSA, 1998, p. 19)

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    2.2 - Revises contemporneas do patrimnio

    A origem do termo patrimnio decorre do grego pater, que significa pai e est tambm na origem de termos como ptria, patritico, patro, patriarcal e outros que carregam sentidos de legado, de algo que nos antecede e nos dado, de modelos de conduta, de valores a preservar e, sobretudo a respeitar. um campo semntico carregado de sentidos de conservao, opostos aos sentidos de transformao, de troca, de renovao que uma concepo contempornea de cultura demanda.

    Ao trazer para a contemporaneidade os critrios que pautam a definio institucional de patrimnio cultural apresentados no tpico anterior - antiguidade, excelncia cultural e tan-gibilidade - percebe-se o quanto estes critrios so relativizados em funo dos diversos con-textos e valores culturais locais, desfazendo o mito da universalidade que os mantm. O movi-mento de revalorizao da cultura contempornea muitas vezes usa os recursos das heranas patrimoniais disponveis, alterando as configuraes do passado em funo de necessidades do presente, de constituio de novas representaes e/ou de adequaes s demandas do desenvolvimento urbano e social.

    Um bom exemplo deste movimento de transmutao o processo de constituio do que conhecido desde 1993, como o Museu da Cidade de So Paulo6. Um Museu sem uma sede fixa, constitudo por doze edificaes e espaos com distintos valores histricos dispersos na malha urbana da grande cidade de So Paulo. Um Museu sem um conceito preestabelecido, mas que se prope a organizar e dar visibilidade a uma histria esfacelada e multifacetada. Fazem parte deste acervo as: Casa do Bandeirante, Casa do Sertanista, Capela do Morumbi, Stio Morrinhos, Casa do Tatuap, Stio da Ressaca, Monumento Independncia, Casa do Grito, Casa Modernista, alm do Solar da Marquesa de Santos, Beco do Pinto e Casa n 1 que formam o conjunto administrativo localizado no Centro da cidade ao lado do Pteo do Colgio.

    O que teria levado o Departamento do Patrimnio Histrico da cidade de So Paulo a constituir em pleno final do sculo XX este Museu agregando equipamentos to dspares? Cada uma das distintas unidades carrega uma histria que revela processos de constituio de representaes significativas para a Cidade e para sua identidade, processos que revelam 6 http://www.museudacidade.sp.gov.br/museu.php

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    transmutaes de usos e de adequaes ao espao urbano.

    Por exemplo, o que hoje se conhece como Capela do Morumbi no tem documentos nem evidncias que confirmem que algum dia aquela edificao foi realmente uma capela. Os documentos de 1825 atestam apenas que as runas de taipa de pilo faziam parte de uma propriedade de produo de ch. A partir de interpretaes, em 1940, as runas foram alvo de uma transmutao em capela sob projeto do arquiteto modernista Gregrio Warchavchik. O local adquire assim um novo valor histrico que agrega um capital simblico ao local da edificao, que faz parte de um capital econmico, uma grande expanso imobiliria na regio. Em 1979 o edifcio passa por mais uma revitalizao quando foi adaptado para receber ati-vidades culturais. Mais recentemente o espao se qualifica como espao de exposio de arte contempornea, recebendo instalaes de importantes artistas, como a conhecida instalao de Leonilson em 1993, remontada em 2011.

    O caso da Casa Bandeirante tambm exemplo de constituio recente de identidade histrica. A construo apresentada como exemplar de uma habitao rural paulista dos sculos XVII e XVIII. Os registros do local fazem referncia a vrios proprietrios ao longo dos sculos e a edificao foi identificada como potencial patrimnio por Mrio de Andrade na dcada de 1930. Hoje, a Casa Bandeirante revela as vrias camadas de mutaes da cidade de So Paulo e ao mesmo tempo, a partir dela se reconstitui parte significativa da memria da Cidade. O processo de re-significao da casa em patrimnio tem incio em 1953 com uma reforma para as comemoraes do IV Centenrio de So Paulo, em 1955 aberta ao pblico como museu evocativo da poca das bandeiras, com acervo de objetos do cotidiano e de processos de produo, recolhido no interior do Estado, em Minas Gerais e no Vale do Paraba. Como revela o prprio texto de apresentao no site7, a Casa faz parte de um passado histrico idealizado, espao de crtica e contextualizao de mitos e documento arquitetnico preservado. Para se configurar como potencial espao de crtica e contextualizao, descons-truindo e transpondo o mito idealizado, necessrio recursos de mediao tambm crticos e contextuais e no simplesmente afirmativos e reprodutivos.

    Ao longo da histria de constituio dos bens culturais patrimoniais, vrias tendncias nas polticas de acesso ao patrimnio foram se firmando e se amalgamando. Do ponto de vista da educao, importante identificar as diferentes nfases para saber lidar com os processos 7 http://www.museudacidade.sp.gov.br/casadobandeirante.php

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    de mediao implcitos nos contextos. Segundo Imanol Aguirre Arriaga (2008) a primeira tendncia se caracteriza pela nfase na conservao, influncia do positivismo cientfico na catalogao dos bens culturais que alcanou seu pice no final do sculo XIX e incio do XX. Como a prpria conservao implica, um dos aspectos marcantes desta tendncia a preser-vao de valores a partir dos objetos selecionados para os representar. Do processo resulta uma conformao e legitimao dos valores (gosto, estilo, etc.) burgus, consolidando esta classe social. As reas de conhecimento que se ocupam do patrimnio sob esta perspectiva so a histria da arte e a restaurao.

    Posteriormente, a difuso adquire tanta importncia quanto a conservao. O que rege esta tendncia a ideia de que para se consolidar, necessrio uma sensibilidade social e coletiva favorvel aos valores patrimoniais, ou seja, no possvel amar aquilo que no se conhece e no se conservar aquilo que no se ama (AGUIRRE ARRIAGA, 2008, p. 81, traduo da autora). Mais recentemente, a nfase no valor formativo do patrimnio vem ganhando espao atravs de prticas de mediao sob a bandeira da democratizao do acesso cultural. Os espaos museais, por exemplo, deixam de ser pensados apenas como espaos de conservao e difuso para serem espaos geradores de cultura. Esta tendncia se intensifica nas ltimas dcadas do sculo XX quando se instituem departamentos, servios, ou setores de educao na maior parte dos museus e centros culturais. A prpria ideia de centro cultural se expande neste perodo, quando surgem, aqui no Brasil, vrios centros irradiadores de cultura ligados a instituies financeiras, por exemplo.

    Imanol Aguirre Arriaga (2008) aponta ainda que h outras tendncias, no to evidentes nas polticas culturais, mas no menos significativas. Aliada s polticas de conservao se une a perspectiva de concepo da cultura como elemento aglutinador de identidades coletivas, quando se usa os bens culturais com fins polticos e ideolgicos. Esta tendncia vai agregar, por exemplo, aos nomes de vrios museus o termo nacional. Ou, no caso citado da Casa Bandeirante, quando se evoca a partir de uma edificao exemplar de sculos passados uma homenagem aos episdios das bandeiras, to discutvel processo de conquista de territrios no perodo colonial brasileiro.

    Alm das tendncias de ordem identitria e ideolgica, h tambm interesses tursticos e econmicos associados s polticas patrimoniais. a ocasio de se associar capital simblico

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    com capital econmico, forjando a valorizao de certos stios ou fatos histricos que no teriam de outra forma uma representatividade nos contextos local ou nacional. o caso da criao da Capela do Morumbi, que relatamos acima, para a valorizao da expanso imobi-liria do local.

    As dinmicas sociais vo demarcando tanto os limites dos bens culturais quanto seus usos. Sejam por razes de ordem econmica e turstica, sejam por motivaes ideolgicas ou polti-cas, no h localidade, regio ou pas que no disponha de um catlogo patrimonial onde se rene o mais significativo, valioso ou digno de reconhecimento cultural.

    Como educadores, importa compreender os mecanismos que agem no campo da cultura para tentar instaurar processos de mediao crticos que faam com que o patrimnio revele sentidos para os sujeitos de hoje. Importa tomar os usurios do patrimnio cultural como comunidades de aprendizagem, capazes de dotar de sentidos os objetos e artefatos culturais.

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    As prticas de produo, difuso e mediao na contemporaneidade

    As mudanas de paradigmas no campo da arte na contemporaneidade implicam mudan-as tambm nos modos de circulao das produes artsticas que incidem nos modos de mediao. Para se pensar em estratgias de mediao para as produes contemporneas, importante entrar em sintonia com as transformaes atualmente em curso no campo social e cultural, captar o que j mudou e o que continua a mudar. Nicolas Bourriaud (2009, p. 16), escritor e crtico de arte contempornea francs, coloca deste modo a questo ao se referir a arte produzida nas ltimas dcadas: Como entender os comportamentos artsticos manifes-tados nas exposies dos anos 1990, e seus respectivos modos de pensar, a no ser partindo da mesma situao dos artistas?.

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    A tarefa entender a situao da arte atual, entendendo o contexto em que atuam seus pro-dutores, para estabelecer processos de mediao mais pertinentes. Ana Mae Barbosa (1995) alerta que ser contemporneo de si mesmo o mnimo que se pode exigir de um arte/educa-dor.

    Vamos primeiramente enfrentar as mudanas de paradigmas no campo da arte e seus efei-tos no campo da arte/educao, tendo como referncia as consideraes de Arthur Efland, pesquisador norte-americano que vem contribuindo com atualizaes para o ensino de artes. Na sequencia, a partir das mudanas de paradigmas, vamos refletir sobre as questes da difuso e mediao na contemporaneidade.

    3.1 - Do modernismo ao ps-modernismo no ensino de arte

    Retomando as questes estudadas na segunda disciplina do Curso, quando adentramos as histrias e metodologias do ensino de artes, poderamos nomear este tpico de: da arte como expresso arte como cultura. Voltamos a insistir nesta passagem de tempos e de concep-es, porque acreditamos que esta uma passagem ainda em curso. Os trnsitos conceituais e tericos, as radicais mudanas dos paradigmas positivistas para paradigmas contextualistas implicam em mudanas profundas no modo de estabelecer relaes com o mundo e com os conhecimentos. difcil se desvencilhar das crenas modernistas, da ideia de progresso e melhoria das condies de vida que implicariam em uma sociedade melhor e mais evoluda. Em vez de levar desejada emancipao, o tal progresso do mundo moderno tem induzido mais explorao e mais desigualdades. Mesmo sem identificar as razes de tal descontrole, o desconforto que todos sentem tem gerado inmeras formas de melancolia.

    No campo da arte, o alto modernismo tentou elevar as produes artsticas para alm de suas condies de produo, instaurando o lema da arte pela arte, fechando o campo da arte sobre si mesmo, excluindo ou ignorando o mundo a sua volta, at que se proclamou a morte da arte como pice do hermetismo desta operao. No entanto, antes da anunciada morte, o modernismo alargou o campo das produes artsticas instaurando novas possibilidades em direes muitas vezes conflitantes, como identifica Bourriaud (2009, p. 16):

    Assim, o sculo XX foi palco de uma luta entre trs vises de mundo: uma concepo racionalista-modernista derivada do sculo XVIII, uma

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    filosofia da espontaneidade e da liberao atravs do irracional (dadasmo, surrealismo, situacionismo) e ambas se opondo s foras autoritrias ou utilitaristas que pretendiam moldar as relaes humanas e submeter os indivduos.

    H repercusso das trs vises identificadas pelo autor como tendncias de ensino de arte na modernidade, entre estas, as Artes Aplicadas ou Artes Industriais fincada no racionalismo, a Educao pela Arte e a espontaneidade expressivista e, finalmente a Educao Artstica com sua tendncia tecnicista.

    Diante de to diversas nomeaes e concepes que o campo do ensino de arte comporta, se faz necessrio situar a transio do modernismo para, o que alguns tericos nomeiam de ps-modernismo, pois esta passagem complexa e afeta profundamente as propostas educa-cionais.

    Arthur Efland (2008, p. 179-180) fez um quadro com contrastes entre vises de arte moderna e ps-moderna aproximando essa discusso do ensino de artes. Reproduzimos na pgina seguinte um quadro-resumo para ajudar a nos situar neste processo reflexivo.

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    Tpico Modernismo Ps-ModernismoNatureza da arte A arte um objeto esteticamente

    nico, que deve ser estudado isoladamente de seu contexto especfico

    A arte uma forma de produo cultural que deve ser estudada dentro de seu contexto.

    Viso de Progresso Como todos os empreendimentos humanos, a arte engendra progresso. Progresso uma grande narrativa desdobrando-se no tempo. O estudo deveria organizar-se em torno desta narrativa.

    No h progresso, apenas trocas, com avanos numa rea s custas de outras reas. O estudo deveria organizar-se em torno de narrativas mltiplas.

    Vanguarda O progresso possvel graas atividade de uma elite cultural. A educao deveria possibilitar s pessoas apreciarem as contribuies dessa elite sociedade.

    A autoridade autoproclamada das elites est aberta a questionamentos. O estudo deveria dar destaque crtica, dando possibilidade aos alunos de levantarem questes pertinentes.

    Tendncias Estilsticas

    Estilos abstratos e no-represen-tacionais so preferidos em detrimento de estilos realistas. Os estudantes devem ser encorajados a experimentar com estilos abstratos e conceituais.

    O realismo aceito mais uma vez. Estilos eclticos so evidentes. Os estudantes tm a permisso de escolher entre os vrios estilos e us-los isoladamente ou em conjunto.

    Universalismo versus Pluralismo

    Toda variao esttica pode ser reduzida ao mesmo conjunto universal de elementos e princpios, e estes devem ser centrais ao ensino da arte.

    O pluralismo estilstico deve ser estudado para possibilitar que os alunos reconheam e interpretem diferentes representaes da realidade.

    Contrastes entre Modernismo e Ps-modernismo (EFLAND, 2008)

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    A Natureza da Arte - a primeira questo fundamental para definio da abordagem que se pode dar s ao educativas, sejam elas do ensino formal ou no-formal. A viso moder-nista exige que os objetos artsticos tenham caractersticas de exclusividade, um grau de exce-lncia definido, tanto pela sua originalidade, quanto pela pureza de sua composio formal (EFLAND, 2008, p. 177). O espectro de obras e objetos passveis de constiturem um curr-culo so pr-definidos pelo campo da arte, que por esta perspectiva se v como autnomo em relao aos contextos culturais. O isolamento das produes artsticas em museus onde so legitimadas, onde as referncias contextuais so apagadas, uma operao de suspenso que promove o distanciamento dessas produes da experincia de vida. Uma mediao que no problematiza essa perspectiva vai reforar o distanciamento, visto que no se tem elementos contextuais para identificao e aproximao dos sujeitos com as obras.

    A viso ps-moderna sobre a natureza da arte amplia o espectro de produes passveis de constiturem um currculo, no s as grandes obras, a arte instituda, mas todas as produes da cultura popular, da cultura de massa, da indstria cultural fazem parte de uma rede que se articula. Todo contexto cultural, em todas as pocas, do passado ao presente, comporta culturas visuais, culturas musicais, culturas cnicas e dramticas que no foram eleitas para o crculo restrito da arte legitimada, mas que mantm estreitas relaes entre elas, entre produtores e consumidores, forjando comportamentos, alimentado processos de subjetivao e impondo ideologias.

    Se por um lado esta viso ps-moderna amplia e aproxima, conectando as produes com a vida, por outro torna o trabalho do arte/educador e mediador bem mais complexo. A primeira dificuldade est na questo da seleo do que merece ser estudado, do que interessa, dentre uma pluralidade difana de formas e produes artsticas. A complexidade vai demandar tambm do educador e dos estudantes um extenso processo de pesquisa e o exerccio do pensamento relacional e histrico. Apesar da aparente dificuldade, este um dos maiores ganhos e saltos de qualidade do processo, pois a contemporaneidade demanda pensamentos em redes articuladas.

    Uma mediao baseada nesta viso vai buscar articular os objetos com suas condies de produo, assim como, dos contextos que os iluminam e dos contextos dos sujeitos que inte-ragem com as produes. So vrias camadas contextuais em movimento, se articulando, se sobrepondo, se complementando e tambm provocando atritos. Os significados e sentidos

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    individuais e coletivos resultantes de uma mediao sob esta perspectiva abre amplas possibi-lidades de conhecer o mundo e a si mesmo.

    A Viso de Progresso - esta mudana de paradigma fundamental, pois vai incidir dire-tamente na grande narrativa da histria da arte que pauta muitos currculos. Entender que a Histria da Arte (com maiscula) uma construo histrica e social, fincada no paradigma do progresso, concebida para reforar a hegemonia dos valores do hemisfrio norte, construda pelo gnero masculino, ajuda a desconstruir um discurso que aponta para o sentido evolutivo do progresso, ou seja, para o entendimento de que as produes posteriores so melhores do que as anteriores. Os clssicos compndios de histria da arte incluem pouqussimos exem-plos, entre suas anlises, da arte do hemisfrio sul, de povos no europeus e de mulheres, por exemplo. A possibilidade de compreender as produes culturais a partir de mltiplas narrati-vas, ou seja, estimulando a produo de narrativas diversas a partir de diversos pontos de vista, enriquece a compreenso das produes e dos sentidos que elas podem concentrar.

    A Vanguarda - a ideia de vanguarda no campo da arte uma construo eminentemente modernista, ligada aos movimentos de expanso dos limites e possibilidades do campo de bata-lha e de suas expresses. A possibilidade de compreender o papel social dos vanguardistas como foras de subverso no campo de lutas das instituies artsticas, ajuda a desconstruir as auras criadas em torno de alguns personagens mitificados. importante perceber como a arte/educao modernista contribuiu e ainda contribui para reforar os mitos de uma vanguarda revolucionria, assim como, para estimular que se aceitem as novas ideias por elas proclama-das. Um processo de convencimento imposto pela legitimao do mito, no por compreenso dos processos implicados. O exerccio da compreenso crtica a proposta para reverter este processo de reproduo e de legitimao.

    As Tendncias Estilsticas - a super valorizao da abstrao pelo modernismo resultante da ideia de progresso na evoluo do campo da arte, como vimos acima. Na ps-modernidade h uma retomada de vrios estilos anteriores que so revisitados sob outras perspectivas. O realismo, por exemplo, que havia sido banido do campo artstico modernista, retomado com sentidos de crticas sociais e culturais. Hoje a grande dificuldade para quem pretende situar a arte contempornea buscar encerra-la em estilos ou movimentos. O interessante buscar justamente identificar as diversas aluses e apropriaes operadas pelos produtores contem-

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    porneos. Sem as exigncias de exclusividade e de originalidade, a arte contempornea opera com ressignificaes, com apropriaes, com releituras, no h mais espao para definies estilsticas.

    O Universalismo versus Pluralismo - finalmente enfrenta-se a superao da ideia de uni-versalidade impregnada pelo modelo hegemnico ocidental e europeu. O esforo para reduzir a arte a uns poucos elementos e princpios aplicveis a toda arte de qualquer lugar, exemplo modernista tipicamente ocidental (EFLAND, 2008, p. 179). Foram estabelecidas no sculo XX vrias gramticas das linguagens: visuais, musicais, cnicas, que pretendiam pautar, tanto as produes, quanto as leituras e interpretaes. Ao situar as produes artsticas em seus contextos, valorizam-se as particularidades culturais favorecendo a pluralidade de leituras e interpretaes.

    Diante das questes apontadas por Arthur Efland e comentadas acima, resta o exerccio contnuo de ateno e reflexo por parte dos educadores para compreender que no se trata da morte da modernidade, mas da superao de sua verso idealista e teleolgica, uma questo de superao de certezas e de no prevalncia de modelos universalizantes. A arte [na moderni-dade] devia preparar ou anunciar um mundo futuro: hoje [na ps-modernidade] ela apresenta modelos de universos possveis (BOURRIAUD, 2009, p. 18).

    3.2 - Difuso e mediao na contemporaneidade

    Aqui vamos tecer relaes entre as mudanas de paradigmas analisadas no tpico anterior e os processos de difuso e mediao das produes culturais. Antes importante distinguir a difuso, que implica nos meios e nas mdias de transferncia de informao, e a mediao, que uma operao mais complexa de traduo que interfere na construo de sentidos da informao. As duas operaes esto necessariamente ligadas, pois h sempre uma parte de mediao nos processos de difuso, j que as mdias tambm interferem na construo de sen-tidos e h sempre difuso nos processos de mediao.

    importante situar que a questo da difuso e da mediao podem ser estudadas a partir do campo das cincias da comunicao, e que, em relao aos bens culturais, estas prticas envol-vem vrias mdias no processo de transferncia da informao. No entanto, interessa neste texto, trazer a questo para o campo da educao e da arte e, sobretudo, analisar as operaes

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    levadas a cabo pelos mediadores humanos, em nosso caso, os educadores, pois eles atuam, tanto nas instncias de difuso, quanto nas de mediao.

    Segundo Bernard Darras (2009, p. 37), professor e pesquisador francs que trabalha sob a perspectiva da semitica pragmtica cognitiva e dos estudos culturais:

    A mediao da cultura (das culturas) ganha existncia no cruzamento de quatro entidades: o objeto cultural mediado; as representaes, crenas e conhecimentos do destinatrio da mediao; as representaes, crenas, conhecimentos e expertises do mediador e o mundo cultural de referncia.

    A mediao que acontece neste cruzamento tingida pelos valores sociais que a determi-nam, pelas concepes de arte e de cultura que pautam as aes. Por esta tica percebe-se que a mediao uma complexa operao e que nela subjazem as representaes valores e crenas dos envolvidos, assim como as expertises dos mediadores.

    Pensar em representaes e crenas no campo da arte o que estamos propondo desde a primeira disciplina deste Curso, buscando nos situar diante de nossos referenciais, de nossa histria, de nossa formao, de nossas prticas. Importa identificar as nossas representaes e crenas, pois elas orientam nossas aes educativas.

    Voltando a mediao cultural, Darras (2009, p. 37) distingui duas grandes abordagens. A primeira a mediao diretiva, que:

    Em sua forma mais pobre, fornece s um sistema interpretativo, impondo um nico tipo de compreenso do objeto cultural. Em sua forma mais rica, produz sistemas interpretativos que tentam se articular, ou no, e trabalhar em conjunto.

    Esta abordagem a que mais se aproxima da difuso, da transmisso de informaes e tende a fundamentar-se na perspectiva modernista, sobretudo em sua forma mais pobre, como qualifica Darras.

    A segunda abordagem a mediao construtivista, por diversos meios interrogativos, problemticos, prticos, interativos, ela contribui para o surgimento da construo de um ou vrios processos interpretativos pelo destinatrio da mediao (DARRAS, 2009, p. 38) e,

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    acrescente-se, da mesma forma que pelo mediador. uma abordagem fundamentada no di-logo, em consonncia com as perspectivas no exclusivistas da ps-modernidade.

    Sejam diretivas ou construtivistas, as mediaes revelam os projetos de difuso das experi-ncias e conhecimentos da cultura e da arte. Por exemplo, qualquer que seja o acervo sob sua proteo, o museu como difusor um grande mediador que afeta autoritariamente os pro-cessos de mediao. Em relao ao mbito da educao patrimonial, Darras (2009) distingui tambm trs modos de difuso e de mediao:

    O primeiro modo de acesso s obras do tipo inato. Fundamenta-se na crena da uni-versalidade da sensibilidade a partir da exposio s obras de modo direto, valorizando a inte-ligibilidade e conhecimento dos sujeitos. uma mediao elementar que se limita a favorecer o encontro. Uma atitude proselitista e acrtica e no hesita em fazer a promoo dos valores elitistas que presidem a constituio das obras e das colees (DARRAS, 2009, p. 44).

    O segundo modo de difuso reivindica a elevao dos espritos e o refinamento da sen-sibilidade pela frequentao. So as mediaes que tem como pressuposto a concepo de edu-cao pela arte. uma atitude missionria (e um pouco colonialista) e tenta cooptar para suas teses humanistas todo o pblico, e particularmente os mais deserdados e os menos humani-zados ou civilizados, por meio do encontro com as obras da alta cultura (DARRAS, 2009, p. 44). No primeiro e segundo modo, os mediadores, em sua maioria, ignoram os paradoxos da ideia de democratizao do elitismo e so frequentemente os encarregados de um processo de legitimao manipuladora.

    O terceiro modo de difuso tem como projeto a democratizao do domnio da arte e da alta cultura, pois considera que as grandes obras pertencem a todos e no devem se manter restrita elite que as produziu e possui. uma atitude crtica, pois entende que a constitui-o do patrimnio no neutra. Para se efetivar uma mediao nesta perspectiva necessrio refletir sobre os prprios processos de mediao, em direo a uma metamediao.

    Elas tem, portanto, a possibilidade de adotar todas em justaposio, mas tambm, e sobretudo, de confront-las. Com fins dialticos ou dialgicos e com interpretantes dialticos ou dialgicos, elas exploram os antnimos, as oposies, as contradies e as alternncias para nutrir e esclarecer os

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    debates, como tambm para proceder desconstruo e reconstruo dos componentes da paisagem cultural.

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    As mediaes dialticas e dialgicas contribuem para o desenvolvimento da capacidade de pensar o fenmeno cultural na sua complexidade, explo-rando as contradies das representaes e crenas da instituio cultural, mas tambm as contradies de seus pblicos. (DARRAS, 2009, p. 45)

    O prprio campo da arte na contemporaneidade vem provocando debates nesta direo. A arte contempornea tem convocado o observador a participar de forma ativa em processos de mediao que se inserem na constituio das prprias produes. H uma tendncia a explo-rar novos modelos de sociabilidade e de interatividade que convocam o pblico a assumir outras atitudes diante da arte, diferente dos comportamentos j instalados. Ao buscar explicar a dimenso relacional da arte, Bourriaud (2009, p. 36-37) pondera:

    A transitividade, to antiga quanto o mundo, constitui uma propriedade concreta da obra de arte. Sem ela, a obra seria apenas um objeto morto, esmagado pela contemplao. Delacroix j escrevia em seu dirio que um quadro bom condensava momentaneamente uma emoo que o olhar do espectador deveria reviver e prolongar. Essa noo de transitividade intro-duz no domnio esttico a desordem formal inerente ao dilogo; ela nega a existncia de um lugar da arte especfico em favor de uma discursividade sempre inacabada e de um desejo jamais saciado de disseminao. Jean--Luc Godard, alis, insurgia-se contra essa concepo fechada da prtica artstica, explicando que uma imagem precisa de dois. Se essa proposio parece retomar Duchamp ao dizer que so os espectadores que fazem os qua-dros, ela vai alm ao postular o dilogo como a prpria origem do processo de constituio da imagem: desde seu ponto de partida j preciso negociar, pressupor o Outro Assim, toda obra de arte pode ser definida como um objeto relacional. Como o lugar geomtrico de uma negociao com in-meros correspondentes e destinatrios.

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    Hoje, o campo da crtica de arte, assim como o campo da comunicao, da educao e, sobretudo da arte/educao, convocam o sujeito a participar de forma ativa e interativa das produes culturais. As convergncias de proposies assentam-se na necessidade de construir uma sociedade de fato democrtica, com foco nas relaes inter-humanas e menos hierrqui-cas.

    Ampliando o conhecimento

    O texto de Arthur Efland usado como referncia neste tema foi originalmente resultado do encontro organizado em 1999, por Ana Mae Barbosa e Lilian Amaral, no SESC Vila Mariana, O prazer e a compreenso da arte. Alm da publicao citada como referncia, o texto pode ser acessado no link: http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/arte/text_2.htm onde podem ser encontrados tambm textos de outros palestrantes do encontro.

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    A recepo e a interpretao das produes artsticas

    No momento em que a arte como conhecimento passa a ser foco do ensino de arte, quando a aproximao com os objetos artsticos desejada e estimulada no meio educacional, as habi-lidades para interpretar obras de arte passam a integrar as preocupaes dos educadores. Uma preocupao que implica obviamente nas competncias dos prprios educadores para estabe-lecer estratgias de interpretao. Expresses como: apreciao, leitura e interpretao passam a integrar o vocabulrio do arte/educador, muitas vezes de forma indistinta, como sinnimos do processo de recepo da arte.

    sobre esta questo que trataremos neste tema, uma questo intrinsecamente relacionada ao processo de mediao e, portanto, cerne da disciplina. Primeiro vamos buscar situar como os conceitos de apreciao e de leitura passam a integrar o campo da arte/educao, identi-ficando as diferenas conceituais que cada um carrega e que implicam em posicionamentos

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    diferenciados na relao com a arte. Em seguida, o foco a interpretao e suas diferentes abordagens e implicaes no processo de mediao.

    4.1 - Apreciao artstica ou leitura da obra de arte?

    Retomamos aqui a citao de Nicolas Bourriaud que encerra o tema anterior - toda obra de arte pode ser definida como um objeto relacional - para compreender que difcil estudar aprecia-o ou leitura desvinculada do processo de criao artstica. As pesquisas atuais compreendem um processo vinculado ao outro. No entanto, de forma operativa, vamos buscar uma distino entre estas aes, como pares polares complementares, tal como: o ponto de vista do especta-dor e o ponto de vista do criador. Entretanto, preciso restabelecer um equilbrio que contem-ple (ou integre) as duas dimenses complementares e no excludentes. Para isto, nos apoiamos nos recentes estudos sobre a construo do conhecimento e, sobretudo, nos estudos e teorias sobre a percepo ativa estudados em disciplina anterior deste Curso.

    No ttulo do tpico colocamos a questo da apreciao e da leitura como uma opo a ser tomada pelo educador. O que se quer realar com a questo so as operaes distintas. Para efeito de anlise trataremos inicialmente da questo da apreciao artstica, buscando entender como foi formulada pelos primeiros tericos e quais as concepes que orientam as formu-laes. Na sequncia consideramos a questo da leitura, como ela compreendida e proposta hoje no campo da arte/educao.

    De imediato, vamos refletir sobre os significados que se agregam a ideia de apreciao, com recurso de um dicionrio, no caso o Houaiss, pois o termo carrega sentidos valorativos, tanto na linguagem cotidiana, quanto em alguns campos do conhecimento. O ato ou efeito de apre-ciar resulta em atribuir valor a algum ou algo. Apreciao, portanto implica em um juzo, em emitir uma opinio, seja moral ou seja tcnica. Implica tambm em uma avaliao, ou estima de valor, seja material ou simblico. So sentidos que remetem a ideia de julgamento. A apre-ciao dos autos do processo, no campo do Direito; a apreciao de uma tese pela comisso julgadora, no campo acadmico, etc.

    A apreciao implica ainda a ateno dedicada a algo que proporcione prazer, emoo, fruio esttica, como a apreciao de um bom vinho, de um filme, de uma obra de arte. Sentido espe-cfico, que interessa a nossa discusso, e que no descarta os sentidos valorativos apresentados

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    antes. Na rubrica filosfica, apreciao uma considerao valorativa a respeito do grau de per-fectibilidade tica, esttica, ontolgica, etc. alcanado por determinado ser ou objeto, em contraste com qualquer descrio ou explicao de sua realidade objetiva. Pode-se deduzir ento, que em todas as acepes pressupe-se padres de valor para pautar as apreciaes.

    Ana Mae Barbosa discute os sentidos de apreciao no seu livro A imagem no ensino da arte (2009, p. 40-42), e argumenta que no so diferentes significados, mas diferentes implica-es ou significaes que se encontram implicitamente associadas ao ato ou efeito de apreciar. Segundo a autora, as proposies inicias dos anos 1960, trouxeram para o mbito do ensino de arte esta dimenso, entendendo a apreciao como estima de valor e usaram como parmetro para a valorao a Histria da Arte oficial, reduzindo a apreciao ao sentido de desfrute ou gozo daquilo j legitimado no discurso hegemnico.

    A ideia de apreciao como entendimento, como possibilidade de analisar e at reconhe-cer a obra de arte como um bom exemplo, ou seja, julg-la, segundo Ana Mae Barbosa, foi ampliada nos anos 1970 atravs de pesquisas e da influncia dos estudos crticos na Inglaterra.

    Imanol Aguirre Arriaga dedica um captulo de seu livro Teoras y prcticas en educacin artstica (2005, p. 141-172) s investigaes sobre a apreciao artstica e seu valor na edu-cao. Para o autor, as pesquisas sobre a questo da resposta arte tm duas origens: o esta-belecimento cultural de uma nova instituio artstica no campo da arte - a crtica de arte; e uma preocupao positivista para fazer da considerao esttica e do gosto, um efeito ponde-rvel mediante instrumentos objetivos de anlise e confrontao de resultados. No mbito do ensino de artes a questo passou ao centro dos debates entre os anos de 1960 e 1970, com as avaliaes sobre o vazio deixado pelas propostas curriculares centradas apenas no fazer arts-tico e no na reflexo sobre eles.

    No Brasil, as pesquisas e publicaes de Ana Mae Barbosa, desde a dcada de 1970 (Teo-rias e prticas da educao artstica) e 1980 (Conflitos e acertos) vm chamando ateno dos arte/educadores para a necessidade de reflexo sobre a arte. Porm, especialmente no final da dcada de 1980 com a sistematizao da Proposta Triangular que a questo da apreciao passa a fazer parte da agenda dos professores.

    No mbito internacional, tambm na dcada de 1980 que se iniciam pesquisas sobre esta

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    questo como resposta a necessidade dos educadores. As pesquisas enfocam temas, tais como: a aprendizagem da apreciao no contexto escolar; a pertinncia e eficcia dos mtodos de apreciao; a incidncia da apreciao nos processos cognitivos; a incidncia da apreciao sob a criatividade; possibilidades e mtodos de avaliao, entre outros.

    importante identificar a contribuio de alguns modelos reconhecidos da crtica de arte, j que representam o pensamento dominante no campo da arte, para a generalizao da apre-ciao artstica no campo educacional, pois seus estilos crticos aparecem latentes em muitas propostas de apreciao (AGUIRRE ARRIAGA, 2005, p. 143-144).

    A perspectiva mimtica - o modelo descritivo que parte da considerao da arte como imitao do mundo e valora as obras por esta perspectiva. Foco maior no tema e ttulo.

    A perspectiva expressiva - nasce junto com a perspectiva terica que ressalta a funo expressiva da arte, ignorando os aspectos de confrontao formal com o modelo representado, apia a crtica no subjetivismo das sensaes e na busca de motivaes expressivas que impul-sionam o artista na gnese da obra.

    A perspectiva formal - o relevante a organizao material e perceptual da obra, inde-pendentemente de seu significado expressivo ou de sua adequao representativa ao modelo, buscando e comentando a unidade orgnica das obras, a relao entre as partes e entre estas e o conjunto. Esta perspectiva crtica (junto com a expressiva) uma das que mais influncia tem em boa parte do ensino de arte.

    A perspectiva pragmtica - analisa os fins, os objetivos e propsitos que do significado a obra de arte, sejam estes a satisfao sensorial, a transmisso de valores, a designao de verda-des, a busca de conhecimento ou qualquer outro. Esta perspectiva tambm atua em determi-nadas orientaes interpretativas educacionais, sobretudo, naquelas que buscam o motivo da interpretao, mais alm dos elementos presentes na prpria obra de arte.

    A histria da arte junto com a esttica tem dado grande suporte ao exerccio da apreciao, no entanto, so disciplinas fechadas que no se preocupam com a divulgao do resultado de suas pesquisas para o grande pblico. Tem sido exatamente o ensino de arte que tem procu-rado trabalhar na transmisso dessas informaes e na formao de apreciadores encontrando--se, portanto, atrelado a estes campos tericos.

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    No de estranhar que este movimento de formao tem acompanhado o movimento artstico, ou seja, as tendncias em voga, as pesquisas estticas e prticas artsticas, mudando ao sabor das tendncias, trabalhando atrelada aos campos tericos da arte, legitimando as tendn-cias hegemnicas dominantes. Poderamos dizer que esta educao no isenta, no trabalha em prol do cultivo, por exemplo, de uma percepo esttica crtica.

    Alguns filsofos se destacaram na misso de discutir as condies da experincia esttica desvinculada de todo sentido religioso. Talvez o mais importante dentre eles tenha sido Kant. Nesta tradio outros focaram suas discusses filosficas com preocupaes educativas como Benedetto Croce, John Dewey, Thomas Munro e Suzanne Langer.

    No campo do ensino de arte, as primeiras pesquisas que tratam da questo da apreciao artstica tm em Dewey um alicerce para suas formulaes. Os primeiros modelos qualitati-vos formulados tinham como premissa evitar juzos impulsivos de obras de arte no contexto escolar. Um exemplo o procedimento proposto por D. W. Ecker e usado por Elliot Eisner, que consiste em:

    Permitir que os estudantes comuniquem livremente seus sentimentos, atitudes e res-postas imediatas em frente a uma obra de arte (prpria ou de artistas);

    Fazer com que os estudantes percebam que existem diferenas no modo como as pes-soas respondem a um mesmo estmulo artstico, como conseqncia das diversas experincias e aprendizagens;

    Permitir que eles estabeleam diferenas entre sentimentos psicolgicos (baseados nas sensaes) e juzos de valor (baseados em argumentos);

    Incentivar sua experincia com obras de arte contemporneas e histricas desenvol-vendo sua capacidade de imitir juzos artsticos independentes e justificados, tanto positivos, quanto negativos (AGUIRRE ARRIAGA, 2005, p. 148, traduo da autora).

    O modelo do professor e pesquisador norte-americano, Edmund Feldman foi um dos mais eficientes integradores da crtica na educao em arte. Foi tambm um dos mais utilizados nas escolas norte-americanas. Ele afirmava que o que um professor de arte faz tanto na aprecia-o artstica como nas instrues em ateli essencialmente crtica de arte. Isto , o professor

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    de arte descreve, analisa, interpreta e avalia trabalhos de arte durante o processo de instruo (FELDMAN apud AGUIRRE ARRIAGA, 2005, p.150, traduo da autora).

    Ana Mae Barbosa, no livro A imagem no ensino da arte (2009, p. 45-53), divulga a pro-posta de Feldman como mtodo comparativo de anlise de obras de arte, pois ele sempre prope a leitura de duas ou mais obras para que o estudante tire concluses da leitura com-parada de problemas visuais, de forma similar ou contrastante. Segundo Ana Mae (2009, p. 45-46):

    O desenvolvimento crtico para a arte o ncleo fundamental de sua teoria. Para ele, a capacidade crtica se desenvolve atravs do ato de ver, associado a princpios estticos, ticos e histricos, ao longo de quatro pro-cessos, distinguveis, mas interligados: prestar ateno ao que v, descrio; observar o comportamento do que se v, anlise; dar significado obra de arte, interpretao; decidir acerca do valor de um objeto de arte, julgamento.

    Ana Mae Barbosa inclui ainda uma traduo de uma aula proposta por Feldman em seu livro Becoming human through art: aesthetic experience in the school, publicado em 1970, onde percebe-se o quanto sua proposio organiza-se de maneira articulada, atravs de problema-tizaes e comparaes, buscando integrar as dimenses da apreciao e da produo, com o entorno ou contexto do aluno.

    Para Feldman, a apreciao deve implicar os aprendizes no uso da crtica como meio para introduzir-se na natureza da arte (sua tcnica, sua forma, seu contedo e a herana cultural). Ensinar a fazer arte ou ensinar a apreciar arte requer, por isso, uma participao ativa de estu-dantes e professores, mediante um processo de dilogo crtico.

    Feldman props uma metodologia para apreciao crtica, como resumiu Ana Mae no pargrafo citado, que consta de um processo no qual os estudantes so convidados a debater de modo crtico, sobre as obras de arte que estudam, de acordo com quatro processos de apro-ximao com as obras. Descrio: inventrio do que se acha visvel na obra. Anlise: a relao entre os elementos visuais e os princpios que os organizam. Interpretao: a identificao de temas e idias no trabalho com o objetivo de encontrar significados. Juzo: tomar decises sobre o xito, o valor ou fracasso do objeto artstico. Nesta fase interessante comparar os

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    trabalhos estudados com outros.

    O mtodo de Feldman avana na direo da crtica ao propor o dilogo como modo ope-racional e a comparao de obras como procedimento. No entanto, ainda refora o sentido de julgamento e avaliao contidos na ideia de apreciao, ao propor o juzo como processo final. A partir de quais critrios estaria o educador, junto com seus estudantes, aptos a julgar o xito ou fracasso de uma produo artstica? Obviamente, para ultrapassar o lugar comum das pre-ferncias de gosto (que so por sua vez construtos sociais e culturais) se faz necessrio o apoio das crticas legitimadas pelos tericos da histria, da esttica e crtica de arte.

    A designao leitura da obra de arte uma contribuio brasileira para este debate. Usada por Ana Mae Barbosa na sistematizao da Proposta Triangular, o termo leitura vem substituir a ideia de apreciao, justamente para instalar uma perspectiva poltica educacional crtica e no reprodutiva. O termo leitura foi tomado de emprstimo ao movimento de crtica liter-ria norte-americano, conhecido como Reader Response, agregando a ele o princpio de leitura como interpretao cultural de Paulo Freire.

    No texto Arte-educao ps-colonialista no Brasil: aprendizagem triangular (1998, p. 30-51), Ana Mae Barbosa retoma e atualiza a Proposta Triangular, explicitando o processo de apropriao contido na sistematizao desta proposta. Sobre a leitura ela explica:

    O movimento Reader Response no despreza os elementos formais, mas no os prioriza como os estruturalistas o fizeram; valoriza o objeto, mas no o cultua, como os deconstrutivistas; exalta a cognio, mas na mesma medida considera a importncia do emocional na compreenso da obra de arte. O leitor e o objeto constroem a resposta obra numa piagetiana interpretao do ato cognitivo e, mais ainda, vigotsquiana interpretao de compreenso do mundo. ()

    Da a nfase na leitura: leitura de palavras, gestos, aes, imagens, necessi-dades, desejos, expectativas, enfim, leitura de ns mesmos e do mundo em que vivemos. Num pas onde os polticos ganham eleies atravs da tele-viso, a alfabetizao para a leitura fundamental, e a leitura da imagem artstica, humanizadora. (BARBOSA, 1998, p. 35)

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    A dimenso da leitura introduz no debate a ideia de que a resposta a uma obra de arte implica sempre numa possvel interpretao de uma obra de arte.