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Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 199 O CONFLITO DE PRINCÍPIOS E AS FALÁCIAS DA LIBERDADE THE CONFLICT OF PRINCIPLES AND THE FALLACIES OF FREEDOM MARCUS ORIONE GONÇALVES CORREIA Recebido para publicação em maio de 2011. RESUMO: Trata-se de texto que cuida dos princípios da igualdade, liberdade e solidariedade e dos equívocos referentes à sua consolidação jurídica em uma sociedade capitalista. PALAVRAS-CHAVE: Liberdade; Igualdade; Solidariedade. ABSTRACT: The text is about the principles of freedom, equality and solidarity and the juridical mistakes about them in a capitalist society. KEY WORDS: Freedom; Equality; Solidarity. É interessante perceber como, não raras vezes, a liberdade e a igualdade são vistas como conceitos antagônicos. A equação, em geral, é a seguinte: liberdade “versus” igualdade. Essa observação não se cinge ao direito, mas atinge os mais diversos campos científicos de observação de ambas (sociologia, filosofia e outros afins). No direito, a questão se acentua, já que a liberdade é, como se dá em qualquer fenômeno jurídico, diminuída na sua real extensão. A explicação é clara: o positivismo jurídico está habituado a realizar recortes, evitando a totalidade 1 . Assim, a liberdade ou a igualdade apenas são representadas por traços no direito, que mais se parecem com caricaturas de uma realidade, muito mais ampla e densa. É fato, já de início, que, no capitalismo, a liberdade é, em si mesma, uma ficção. Na verdade, estamos muito mais limitados nos nossos rumos do que pensamos e mais limitados no agir do que imaginamos. Isso, não obstante, é realçado e mesmo acentuado pela dimensão do direito. Assim, temos, na CLT, jornada limitadora de trabalho o que aparece como conquista da civilização, na medida em que houve a sua diminuição, esta mesma jornada imposta pode ser vista, pelo viés do trabalhador, como algo que restringe a liberdade. No direito civil, cito os limites às nossas ações por cláusulas contratuais, as quais, mais Doutor e Livre-docente pela Faculdade de Direito da USP, onde ministra aulas na graduação no Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social e, em pós-graduação, na área de concentração em Direitos Humanos. Professor da Escola Paulista de Direito Social. Juiz Federal. 1 A respeito do que entendemos por totalidade há uma ótima obra que merece consulta, a saber: KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 2008.

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Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 199 O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADETHE CONFLICT OF PRINCIPLES AND THE FALLACIES OF FREEDOMMARCUS ORIONE GONALVES CORREIA Recebido para publicao em maio de 2011. RESUMO:Trata-sedetextoquecuidadosprincpiosdaigualdade,liberdadeesolidariedadeedos equvocos referentes sua consolidao jurdica em uma sociedade capitalista.PALAVRAS-CHAVE: Liberdade; Igualdade; Solidariedade.ABSTRACT: The text is about the principles of freedom, equality and solidarity and the juridical mistakes about them in a capitalist society.KEY WORDS: Freedom; Equality; Solidarity. interessantepercebercomo,norarasvezes,aliberdadeeaigualdadesovistas como conceitos antagnicos. A equao, em geral, a seguinte: liberdade versus igualdade. Essaobservaonosecingeaodireito,masatingeosmaisdiversoscamposcientficosde observao de ambas (sociologia, filosofia e outros afins).Nodireito,aquestoseacentua,jquealiberdade,comosedemqualquer fenmeno jurdico, diminuda na sua real extenso. A explicao clara: o positivismo jurdico esthabituadoarealizarrecortes,evitandoatotalidade1.Assim,aliberdadeouaigualdade apenas so representadas por traos no direito, que mais se parecem com caricaturas de uma realidade, muito mais ampla e densa.fato,jdeincio,que,nocapitalismo,aliberdade,emsimesma,umafico.Na verdade,estamosmuitomais limitadosnosnossosrumosdoquepensamose mais limitados no agir do que imaginamos. Isso, no obstante, realado e mesmo acentuado pela dimenso dodireito.Assim,temos,naCLT,jornadalimitadoradetrabalhooqueaparececomo conquistadacivilizao,namedidaemquehouveasuadiminuio,estamesmajornada impostapodeservista,pelovisdotrabalhador,comoalgoquerestringealiberdade.No direitocivil,citooslimitessnossasaesporclusulascontratuais,asquais,mais

Doutor e Livre-docente pela Faculdade de Direito da USP, onde ministra aulas na graduao no Departamento de Direitodo TrabalhoedaSeguridadeSociale,em ps-graduao,nareadeconcentraoemDireitos Humanos. Professor da Escola Paulista de Direito Social. Juiz Federal.1Arespeitodoqueentendemosportotalidadehumatimaobraquemerececonsulta,asaber:KONDER, Leandro. O que dialtica. So Paulo: Brasiliense, 2008. O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADE MARCUS ORIONE GONALVES CORREIA 200 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 aparentemente do que qualquer outra coisa, somos livres para aderir. No direito penal, a bvia imposio da pena como restritiva de nossa liberdade. E assim por diante.Logo, o direito apenas mais um instrumento eficaz de restrio das liberdades. claro que alguns utilitaristas imediatamente iro se lembrar que a liberdade de um comea onde a liberdadedooutrotermina.Portanto,qualquerumcompletamentelivre,desdequeno impinja, em nome de sua liberdade, nus liberdade de outra pessoa.NodeseestranharqueesseraciocniosimplistaremonteaosculoXIXcom observaes de Stuart Mill2, como se percebe a seguir:Oobjectivodesteensaioasseverarumprincpiomuitosimples,quese destinaareger emabsolutoainteracodasociedadecomoindivduono quediz respeitocoacoecontrolo,querosmeiosusadossejamafora fsica, na forma de punies legais, quer a coero moral da opinio pblica. oprincpiodequeonicofimparaoqualaspessoastmjustificao, individual ou colectivamente, para interferir na liberdade de aco de outro, autoproteo. o princpio de que o nico fim em funo do qual o poder podesercorrectamenteexercidosobrequalquermembrodeuma comunidade civilizada, contra a sua vontade, o de prevenir dano a outros. Oseuprpriobem,querfsico,quermoral,nojustificaosuficiente. Umapessoanopodecorrectamenteserforadaafazerouadeixarde fazer algo porque a far feliz ou porque, na opinio dos outros, faz-lo seria sensato ou correcto. Essas so boas razes para a criticar, para debater com ela, para a persuadir, ou para a exortar, mas no para a forar, ou para lhe causaralgummalcasoelaajadeoutromodo.Parajustificartalcoisa, necessrio que se preveja que a conduta de que se deseja demov-la cause ummalaoutrapessoa.Anicapartedacondutadequalquerpessoapela qual ela responde perante a sociedade, a que diz respeito aosoutros. Na partedasuaconduta,queapenasdizrespeitoasi,asuaindependncia , pordireito,absoluta.Sobresi,sobreoseuprpriocorpoeasuaprpria mente, o indivduo soberano. Ou, em resumo:A nica liberdade que merece o nome a liberdade de procurar o nosso prprio bem nossaprpriamaneira,desdequenotentemosprivarosoutrosdoseubem,oucolocar obstculos aos seus esforos para alcanar.Noentanto,nocapitalismo,aapuraodaliberdadeaserpreservadafaceliberdade deoutronopassadesimples ilusoque,nodireito,confirmadaporumaargumentao maisoumenoseficiente,maisoumenosconvincente,consubstanciadanoqueseconhece comoexercciodeponderao.Aliberdade,nessalgica,substitudaimediatamentepela idiadeinteresse.Oqueeraliberdade,nocapitalismo,equivalealiberdade/interesse.A

2 Sobre a liberdade. Ed. 70: Lisboa, 2006, p. 40 e 43. O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADE MARCUS ORIONE GONALVES CORREIA Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 201 noo de interesse, por sua vez, est intimamente relacionada com a de poder. Prevalecem as liberdades,isto,osinteressesdosquedetmopoder.Logo,nocapitalismo,liberdadeo mesmoqueinteresse/poder.Noexercciodeponderao,comoveremosmaisadiante,isso fica bastante claro.Portanto,qualquervisoutilitaristaequalquerteoriadodano,aindaquesofisticadas porargumentosdenovosutilitaristas,semprerecainoslimitesdaprpriaidiadeutilidade. Nopassadesimplesexercciohedonista,quesempreencontroubalizanosdesejosda humanidade (piorada com o tempo pela criao de necessidades e utilidades que no ns no teis ou necessrias no mundo dos fatos).Resta, ento, um exerccio insano, dentro da ordem capitalista, de buscar uma liberdade que no seja essa.Algunsliberaisigualitriosacreditamqueacharamaresposta,emespecialpelaadoo deteoriasdacapacidade.Seremoslivresnamedidaemqueformoscapazes.Assim,a liberdadeestligadaaumarededeinstrumentosquenostornacapazes,emespecial,de acessarariquezaexistente.Logo,hquesehabilitaraspessoasparaquealcancemcertas capacidades. Feito isso, elas estaro aptas a obter liberdades.Noentanto,emummundoemquesepropalaaescassezdosrecursosdoque duvidamos, mas que premissa adotada por esses mesmos liberais igualitrios-, nem mesmo o mais hbil dos homens ter certeza de que sua habilidade ser suficiente para a aquisio de capacidades que tornem possvel o seu acesso riqueza material e, da, a sua liberdade.No direito, isso se revela sobremaneira em algumas hipteses. Os direitos sociais so o exemploclarodautilizaodeinstrumentalparaqueascapacidadespossamsupostamente ser obtidas e da inverso que essa noo produz.Veja-se,porexemplo,casosdebenefciosprevidencirioseassistenciaisqueso condicionadosapresentaodecertificadoescolar.Tolhe-sealiberdadedealgum, apresentando-lhe alguma condicionante, para que, supostamente, em instante posterior essa pessoa possa ser livre j que, com formao escolar, passa a ser capaz.Iluso!Nosepergunta,porexemplo,quetipodeescolafrequentadaporessapessoaou quanto essa escola forma cidados capazes. Nada disso pertence ao direito, diria o positivista. Na realidade, a equao imediata de uma diminuio da liberdade, por certa condicionante O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADE MARCUS ORIONE GONALVES CORREIA 202 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 dedireitosocial,evidenciandoarestriodeliberdadedealgumquetemmenosvoz,no podendo expressar se pretende aquela restrio imposta por quem tem o poder de faz-lo.Volto ao incio de nossas reflexes.Aigualdadepassaaserdimensomenor.Nosepodefazercomquealgumdesigual possa escolher se pretende ou no, para perceber certo benefcio social, se submeter s regras dealgummaispoderosoqueporeleescolheu.Nemsevenhacomafalciadequealei obradetodos,namedidaemqueolegislativo,queimpingiuascondies,escolhidoem eleio popular. claro que aqui no podemos nos sentir confortveis com tais frases feitas edepoucocontedonomundodosfatos.Omundoreal,aquelequepalpitalfora,mostra queospodereshojenososenoarremedodavontadepopular.claroquepoderiadizer um positivista jurdico: nada disso importa, j que o que interessa a observncia dos aspectos formais para a concretizao da democracia e eles estariam subjacentes ao caso em anlise. Seaconversaforpararporaqui,melhornemcomearmosadesafiarasquestes,jque, umavezpostoalgonalei,nadamaisnosinteressa.Combasenesseargumento,nohaveria qualquer possibilidade de evoluo do direito se que ele evolui3.Ora, se os prprios interessados esto alijados do processo de escolhas, no h como se admitirqueserolivrescomaimposiodecondiesquealgunsacreditamquelhesfaro livres. A lgica de capacidades para a construo de liberdades, assim, no se encontra infensa acrticas:quecapacidades?Decididasporquem?Parafazerconstruirquetipodemundo? Alis, aqui estamos diante de qualquer crtica que se possa fazer meritocracia.Casonoseobserveascrticasanteriores,noestamosjogandoumjogodeiguais.E liberdade, sem igualdade, no significa coisa alguma.Aqui, entende-se por que alguns preferem fazer uma leitura dicotmica da igualdade em relao liberdade. Ao se colocar em lados opostos igualdade e liberdade, fica muito mais fcil lgica capitalista a sua prpria consolidao. Um capitalismo, em que igualdade e liberdade, eacrescentoaqui,solidariedade,fossempostasladoalado,certamenteseriamuitodifcil seno impossvel - de concretizar.

3Essaviso de queodireito apenasforma,quepromoveareduodaexatadimensodetudo quepalpitana vida, mais bem entendida a partir da leitura de E.B. Pasukanis (A teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1981). Para melhor compreenso do autor anterior, sugerimos a leitura do texto deMrcio Bilharinho NavesdenominadoMarxismoe direitoumestudosobrePachukanis.SoPaulo: Boitempo editorial, 2008. O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADE MARCUS ORIONE GONALVES CORREIA Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 203 Nodireito,porexemplo,certamentequeospostuladosquefundamentamqualquer lgicadeponderaonoteriamcondiesdevigorar.Alis,aponderaodeprincpiosa claraexpressodequeodireitosomentesedondeumaliberdade,semigualdadee solidariedade consideradas em conjunto, supere outra liberdade.Alis,aquigostariaderessaltarquetodaponderaodeprincpios,narealidade, escondeumnicoconflitoexistentenosistema(tantocapitalista,quantojurdico):uma coliso de liberdades e de igualdades.Semprequeescolhoporumasoluoponderadaemdetrimentodeoutra,impinjo restries a liberdades e a igualdades. Na verdade, o conflito sempre subjacente um conflito de liberdades, diretamente ligado ao de igualdades.Nodireito,asoluonacolisoserinexoravelmentetendenteaoreforodalgicada liberdadedepropriedade.Quandomuito,aaparnciaqueissonoocorre,sobafalaciosa observao de que a dignidade da pessoa humana no o permitiria4.Um exemplo prosaico.Se a jurisprudncia permite a revista ntima do trabalhador, como, por exemplo, se deu processono.TST-RR-1307440-75.2003.5.09.0001,ficaclaroqueponderaonenhumahouve, jqueapropriedadeapareceucomoumaespciedebemintangvel.Narealidade,nose realizou,ali,nenhumaponderao,jquerestouclaroqueodireitodepropriedadedo empregador(asuatotalliberdade)defazerarevistantimanostrabalhadoresabsoluto.O poderdiretivodoempregadorrespaldaria,nalgicadapropriedade,queasualiberdade maior, e que a do trabalhador, menor. A igualdade, certamente, est completamente afastada dailaorealizadanoTribunalSuperiordoTrabalho.Nemsedigaqueestamosdiantede decisoquepadecedetcnicaquandoconsideradaalgicadeponderao.Naverdade, encontramo-nos diante daquilo que efetivamente ocorre no mundo do direito. assim que se processamascoisas:quandohinteresse,sefazacoliso;quandonoh,esconde-seo conflito. Alis, mais comum que o direito forje conflitos, para a sua aparente soluo, do que seja o efetivo promotor da soluo dos reais conflitos da sociedade.

4 Nem todo o esforo de criao de uma teoria normativa a suportar a idia contrria me dissuade dessa percepo. Assim, por exemplo, o esforo por Robert Alexy (In Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virglio Afonso da Silva. So Paulo: Ed. Malheiros, 2008). Com o devido respeito que o autor merece, parece inconsistente a sua tentativa de criarumateorianormativa,buscandoaumentaraseguranajurdicanoexercciodeponderaodeprincpios, quando, na realidade, o direito promove uma luta de poderes, que se utiliza da fundamentao ponderada apenas para dar uma justificativa tese vencedora, tudo isso baseado num suposto exerccio de racionalidade. O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADE MARCUS ORIONE GONALVES CORREIA 204 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 Noentanto,aindaquefossediferente,quesetirasseocarterabsolutododireitode propriedadenahipteseanterior,enosepermitissearevistantima,nadaobstariaquede outraforma,maisrazovel,aliberdadedotrabalhadorfosseatentada.Assim,sefosse consideradaumaverdadeiraponderao,semqualquercarterabsolutodapropriedade (quenoassumiria,pois,ostatusderegraquenosesubmeteaojuzodeponderao, apenasparausarateoriapreferida),aindaassimprejuzosoutrosliberdadedos trabalhadores seriam mais factveis do que se imagina.Veja-seentreodireitodepropriedadedoempregador,porexistiremoutrosmeios menosinvasivoseigualmenteeficazes,eodireitointimidadedoempregado,poderiase optar, v.g., pela utilizao de cmeras. Ora, a utilizao de cmeras, diriam alguns, permite um menornusintimidadedoempregadoemantmintactoodireitodepropriedade. Aparentemente o tom conciliatrio dos princpios conseguiria um bom termo para o conflito preservando ambos os interesses. Tudo isso temperado, claro, pelo postulado referencial da dignidade da pessoa humana.Noentanto,emboraalgunsnoqueiramadmitir,aintimidadedotrabalhadorestar devassadaporcmerasqueovigiamdiariamente.Omesmoexemplosednocontroleda utilizao do computador.Emsntese,comooambientedotrabalhoouocomputadorsodepropriedadedo empregador,essesmeiosdeproduoqueserodeterminantesdasoluo(capital constante) e no a fora de trabalho (capital varivel)5.Logo,percebe-sequequalquersoluoirconspirar,emcertamedida(maiorou menor),contraadignidadedotrabalhador.Noobstante,diriamalguns,nohcomono faz-lo, sob pena de o direito de propriedade do empregador no poder nunca ser protegido. Essa a falsa percepo de tudo. Na realidade, trocaramos, diriam alguns, o carter absoluto do direitodepropriedade,pelocarterabsolutodosdireitosdostrabalhadores.Comootom conciliatrio, isso no seria possvel. Falcia atrs de falcia, para sustentar o insustentvel, ouapenasparasustentaroquequasetodojuristaquersustentar:apreservaodo

5Apartedocapital,portanto,queseconverteemmeiosdeproduo,isto,emmatria-prima,materiais acessrios e meios de trabalho no muda a magnitude do seu valor no processo de produo. Chamo-o, por isso, parteconstantedocapital,ousimplesmentecapitalconstante.Aparteconvertidaemforadetrabalho,ao contrrio, muda de valor no processo de produo. Reproduz o prprio equivalente e, alm disso, proporciona um excedente, a mais-valia, que pode variar, ser maior ou menor. Esta parte do capital transforma-se continuamente demagnitudeconstanteemmagnitudevarivel.Porisso,chamo-apartevariveldocapital,ousimplesmente capitalvarivel(MARX,Karl.Ocapitalcrticadaeconomiapoltica(26.ed.).RiodeJaneiro:Ed.Civilizao brasileira, 2008, p. 244. Vol. II. Livro I). O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADE MARCUS ORIONE GONALVES CORREIA Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 205 capitalismo nico espao em que o direito e seu discurso oportunista apresentam condies de frutificar.Nalgicadosdireitosfundamentais,algumaafrontadignidadedapessoahumana quenoentradiretamentenoconflito,maspostuladoquepautaasoluosempreser admitida, para esses que so, em verdade, tenazes guardies do atual sistema.Ouseja:nomundododireito,tudotendesoluopatrimonial.Emumafinalopo, admite-se,emcertoscasos,atmesmoaindenizaopelodanocausadoadireito fundamental. No caso dos direitos sociais, os valores so risveis. H, em determinadas reas, julgados que no admitem que o valor do dano moral para pessoa pobre seja elevado, j que implicaria indevido enriquecimento ilcito. Ou seja, situaes envolvendo, por exemplo, danos a personalidade de pessoas pobres so menos valiosas do que as que se envolvem os ricos. A liberdadedealguns,aindaquenareduzidaperspectivapatrimonial,menordoqueade outros.Issosomentepossvelporquesetratadeliberdadedesprovidadadimensoda igualdade.Emltimaanlise,qualquerponderaorevelaqueointeressequedeterminaa soluo e no uma suposta e elevada considerao dos princpios em jogo. No entanto, para o direito manter-se ntegro, necessrio pensarmos que se trata do contrrio.Osexemplosdadosapartirdosdireitossociaissooquemelhorevidenciamodano provocadoporessarupturaentreliberdadeeigualdade/solidariedade.Noentanto,issose encontra presente tambm em reas do direito que lidam com direitos individuais.Veja-se, v.g., o que se d com o princpio da insignificncia no direito penal. Trata-se de juzoderazoabilidadequeimplicamaisdiretamenteodireitofundamentalindividual.Em direitoprocessualcivil,veja-sequeomesmopode-sedarnojuzoapreciativodeumatutela antecipada, a partir de seus requisitos prprios. Da mesma forma, o fenmeno anterior pode ocorreremdireitoadministrativo,quandoseanalisaointeressepblicoparadiferentes conflitos envolvendo atos administrativos.Arealidadeumas.Quandoaregrainsculpeasoluo,jofazpreservandoa liberdadedequemtemmaispoder.Quandooprincpioouostermosabertosdeixamas questesnodefinidas,emoutraesfera,hadiminuiodaliberdadedosquepossuem O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADE MARCUS ORIONE GONALVES CORREIA 206 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 menos poder. Na realidade, o Estado e sua preferncia inata pela classe que vive da mais valia j so conhecidos de alguns6.Assim, embora nesse estgio da evoluo do mundo, no possamos prescindir do Estado para realizar a proteo pelos direitos sociais outra situao contraditria, tpica da dialtica -,numaanlisemaisprofunda,hnecessidadedequesesupereoEstadoparaquea sociedade civil possa tomar o seu devido lugar na gesto de seus interesses. Enquanto isso no ocorre, o Estado grande interventor no na liberdade dos que detm poder e vivem da mais valia, mas da liberdade dos quais extrada a mais valia.Diantedessequadro,nadamaisnormaldoqueautilizaodaponderaocomo aparnciadeconciliaodeinteressesdistintosemumadisputalegtimadamesmaforma comotodasascantilenasconciliatriasdosinteressesnosconflitosexistentes,coisascomo arbitragem, conciliao promovida judicialmente e outras tantas.Nessediscurso,osprincpiosaparecemdeformaidlica,comooquehdemaispuro, uma depurao ltima do sistema. Os conflitos de princpios, em verdade, escondem conflitos deinteresses.Noentanto,comonobomqueissofiqueclaro,denovoodireitooperao milagredefazeralimpeza.Separaosconflitosdequalquernoodeinteressesemesmoda moral,tornando-oscategoriasjurdicasinfensasaoquehdemaisimpurodadisputa, tornandopossvelqueagramticadodireitoopereeevitequeasoluosefaadaforma comodeveserrealizada,ouseja,noseiodeondefoigestadooconflitonoestamosnos referindo, aqui, de forma simplista, s solues dados pelos prprios grupos, artificializada em formasmodernas,comoadajustiarestaurativaoudaopopelaviaconciliatria,por exemplo.Na ponderao, ao dar preferncia por um princpio em detrimento de outro, buscando trazer ao preterido o menor prejuzo possvel, nada mais houve do que um arremedo de busca de soluo de interesses, que, na realidade, contrapem liberdades de partes diferentes.Bastaverificararespeitooexemplojmencionadoanteriormentereferentedeciso da Justia do Trabalho em relao revista ntima.

6SofrequentesarespeitoadvertnciasdeMarxnessesentidoemtodasuaobra.Noentanto,parece-nos interessante, por exemplo, o realce dado ao Estado no processo de acumulao primitiva, sem o qual o capitalismo no teria evoludo: a burguesia nascente precisava e empregava a fora do Estado, para regular` o salrio, isto , comprimi-lo dentro dos limites convenientes produo de mais-valia, para prolongar a jornada de trabalho e para manteroprpriotrabalhadornumgrauadequadodedependncia.Temosaum fatorfundamentaldachamada acumulao primitiva (MARX, Karl. Ob. Cit., p. 851. Vol. II. Livro I). A superao do Estado, como fase definitiva de implantao do comunismo, vem, alis, bem explicada por V. I. Lenin em sua obra O estado e a revoluo o que ensina o marxismo sobre o estado e o papel do proletariado na revoluo. So Paulo: Ed. Expresso Popular, 2007. O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADE MARCUS ORIONE GONALVES CORREIA Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 207 Emoutrosmomentos,oprprioJudiciriosequerdatenoliberdadeindividual, fazendo gerar regra onde ela no existe com operao lgica, para a sua construo, muito prximadoprincpio.Alis,chegaaserparadoxalqueinstrumentostipicamenteliberais sejamcontrrios,norarasvezes,liberdadedosprpriosindivduos.Aqui,veja-se,por exemplo, casos envolvendo transfuso de sangue e pessoas que sejam testemunhas de Jeov. Sob a alegao de que o direito vida (um princpio? Uma regra?) precede todos os demais, os juzespreterematuteladaliberdadereligiosa.Assim,autoriza-seatransfusodeforma incontinentesobaalegaodocarterabsolutododireito(princpio?Regra?)vida.Diriam alguns que a operao pelo Judicirio que foi feita incorretamente, j que no se processou segundoosmelhorescnonestericossobreotema.Noentanto,oquevaleomundodos fatos e no essas elucubraes que beiram busca do celestial...Percebe-sedosexemplosdadosque,sejanaperspectivadosdireitosindividuais,seja dosdireitossociais,aliberdade,quandooperadanouniversododireito,tendeasersempre restringida.Noumarestrionecessariamentesaudvelsequeraospostuladostpicosde umasociedadecapitalista,onde,emmenoroumaiorgrau,sempreseadvoganoes tipicamente liberais (para ns, isso vale inclusive para o Welfare State).Sejaqualforahiptese,ocertoqueaponderaoescondeafalciadequeops-positivismo consegue entregar segurana jurdica, j que solidamente construda e autorizada por uma fundamentada teoria normativa.Veja-se que o problema, claro, no apenas da ponderao, mas do direito em geral (includa, aqui, a situao da regra). No entanto, enquanto, na regra, o direito atenta contra a liberdade necessariamente por ato imediato do legislador, no princpio, o atentado se faz por atoimediatodoJudicirio.Naverdade,novemosgravidademaioroumenoremumaou outra hiptese o que levantado com base na rasteira alegao de que o Judicirio no tem legitimidade popular e o Legislativo o tem. Como cremos que, na democracia burguesa, no h verdadeira liberdade, nada disso nos seduz.Porltimo,emboraentendamosqueodireitojamaisconseguirsuperartais dificuldades, dada a sua prpria essncia, possvel, queles que acreditam na sua capacidade detransformaosocial,passaraadotaroseudiscursoedot-lodeumaqualidade argumentativa que busque a maior eficincia. (O que, alis, me parece uma armadilha mais do quetudo).Emboraaquinohajagarantiadesucessoe,emgeral,acreditoquenohaver sucesso -, existir sempre a possibilidade de que algumas vantagens individuais sejam obtidas por aqueles que estejam em condies de inferioridade no mundo. Assim, estamos diante um O CONFLITO DE PRINCPIOS E AS FALCIAS DA LIBERDADE MARCUS ORIONE GONALVES CORREIA 208 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 vaziodiscursivoquesubstitudoporoutrodiscurso,tambmvazioanossover,equeem geral expropriadopela lgicadosdireitosfundamentais.claroque,comosetratadeuma armadilha, o terreno em que se joga o jogo pertence ao outro, que ter todas as armas sua disposio.Osjuristasmaisprogressistas,equepretendemum mundomelhor,quedevem avaliar o risco de fazer tal jogo. Pessoalmente, acredito pouco na presteza dessa escolha.No entanto, se essa hiptese for acolhida pelo jurista, para que o hermeneuta seja bem-sucedido,indispensvelqueevitequeocotejo,nojogointensodasdisputasdedireitos fundamentais,sednoapenasnoplanodeumaliberdadeisoladaevaziadecontedo. necessrioquealiberdadesejapensadanaperspectivadaigualdadeedasolidariedade. Somente assim, os mais fracos, talvez e uma vez ou outra, sejam contemplados nesse exerccio de poder a que se chama de ponderao de princpios.Afinal de contas, at em enredo de escola de samba fica claro que as duas coisas devem caminhar no mesmo compasso:Liberdade, liberdade,abre as asas sobre ns,e que a voz da igualdadeseja sempre a nossa voz.(G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense, RJ, samba enredo de 1989).RefernciasALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virglio Afonso da Silva. So Paulo: Ed. Malheiros, 2008.LENIN,V.I..Oestadoearevoluooqueensinaomarxismosobreoestadoeopapeldoproletariadona revoluo. So Paulo: Ed. Expresso Popular, 2007.KONDER, Leandro. O que dialtica. So Paulo: Brasiliense, 2008.MARX, Karl. O capital crtica da economia poltica. (26. ed.). Rio de Janeiro: Ed. Civilizao brasileira, 2008, p. 244. Vol. II. Livros I e II.MILL, Stuart. Sobre a liberdade. Ed. 70: Lisboa, 2006.NAVES, Mrcio Bilharinho. Marxismo e direito um estudo sobre Pachukanis. So Paulo: Boitempo editorial, 2008.PASUKANIS. E.B. Pasukanis.A teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1981.