pesquisa fapesp 199

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Achado pó alquímico na Royal Society Pesquisadoras brasileiras encontram substância perdida há 350 anos nos arquivos da instituição inglesa ENTREVISTA BRUCE ALBERTS Editor da Science propõe mudanças no ensino de ciência GENÉTICA Pesquisadores lutam contra doença causada pela luz do sol SUÇUARANA Caça e estradas ameaçam diversidade genética CARRO ELÉTRICO Pequena empresa desenvolve primeira bateria brasileira DITADURA Censura a livros atendia mais a critérios morais SETEMBRO DE 2012 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR PESQUISA FAPESP SETEMBRO DE 2012 n.199

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Achado pó alquímico na Royal Society

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Page 1: Pesquisa FAPESP 199

Achado pó alquímico na

Royal SocietyPesquisadoras brasileiras

encontram substância perdida há 350 anos nos arquivos

da instituição inglesa

entReviStA bRuce AlbeRtS Editor da Science propõe mudanças no ensino de ciência

genéticA Pesquisadores lutam contra doença causada pela luz do sol

SuçuARAnA Caça e estradas ameaçam diversidade genética

cARRo elétRico Pequena empresa desenvolve primeira bateria brasileira

ditAduRA Censura a livros atendia mais a critérios morais

setembro de 2012 www.revistapesquisa.fapesp.brPe

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PESQUISA FAPESP 199 | 3

Joias perigosasNão se deixe enganar pela aparência de fio com pedras de

ametista: melhor evitar o convívio com a larva do mosquito

Anopheles homunculus. Junto com A. cruzii, essa espécie

é responsável pela transmissão de malária na região

de Cananeia, litoral sul de São Paulo. Parasitologistas

do Instituto Butantan estão estudando a genética e a

morfologia desses insetos para avaliar diferenças entre

as populações da planície e do morro, que podem afetar

sua eficiência como transmissores da doença. A beleza

da coloração das larvas, a que os pesquisadores não

são imunes quando as encontram dentro de bromélias

na mata atlântica, é o que diferencia as duas espécies.

FotolAb

Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Foto enviada por Camila LorenzLaboratório de Parasitologia, Instituto Butantan

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4 | Setembro De 2012

PolítIcA cIEntíFIcA E tEcnológIcA

34 InvestimentoDispêndios estaduais em P&D revelam fosso entre São Paulo e as outras unidades da federação

38 Mudanças climáticasWorkshop expõe o desafio de converter informação científica em prevenção de desastres

42 Divulgação científicaAgência FAPESP ultrapassa a marca dos 100 mil assinantes

43 Gestão administrativaPesquisadores discutem caminhos para reduzir o peso da burocracia

cIÊncIA

44 Pele frágilCientistas, médicos e moradores de um povoado se unem para controlar uma doença hereditária agravada pelo sol

50 NeurociênciaCélulas cerebrais que controlam a fome também acionam os mecanismos da recompensa

52 Fauna silvestreSuçuaranas se movimentam em zonas de ocupação humana, mas encontram obstáculos nas estradas

56 Fauna do Pré-cambrianoNorte do Paraguai abriga a maior diversidade de fósseis dos primeiros animais com esqueleto do planeta

60 Aquecimento globalEstudo revela que cana-de-açúcar emite menos óxido nitroso, um dos gases causadores do efeito estufa, do que se estimava

18 cAPAPesquisadoras brasileiras descobrem pó alquímico em arquivo da Royal Society

Foto da capa Original da carta enviada por Boutens a Oldenburg

créDIto joanna hoPkinS/royal Society

26 cAPA/EntREVIStAVice-presidente da Royal Society, Martyn Poliakoff, lamenta a falta de conhecimento de inglês de acadêmicos

EntREVIStA

28 bruce AlbertsEditor-chefe da Science propõe mudanças no ensino de ciências

SEtEmbRo 2012

n.199 63 Novos materiaisBrasileiros descobrem nova família de materiais capazes de conduzir eletricidade

64 NobelCidade alemã reúne dezenas de laureados para inspirar novas gerações de cientistas

tEcnologIA

68 controle de doençasUm mosquito transgênico e outro irradiado são as novas armas contra a dengue

72 Energia elétricaBateria de lítio desenvolvida em São Paulo começa a impulsionar caminhonetes

75 Eletrônica orgânicaNovos tipos de lâmpadas e células fotovoltaicas orgânicas são desenvolvidos por centro de pesquisa mineiro

hUmAnIdAdES

78 UrbanismoGlobalização adotada com rapidez por São Paulo degradou a sua constituição urbana e social

82 DitaduraLista de livros censurados revela critérios de apreensão

87 obituárioAmaury de Souza contribuiu para o estabelecimento da ciência política no Brasil

38

SEçÕES

3 Fotolab6 Cartas7 Carta da editora8 Dados e projetos9 Boas práticas10 On-line 11 Wiki12 Estratégias14 Tecnociência88 Memória90 Arte92 Conto94 Resenhas96 Classificados

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6 | Setembro De 2012

Naturalmente, a promessa ou a já exis-tência de vida em Titã foge a quaisquer semelhanças à vida na Terra.Francisco J. b. Sá

Salvador, BA

FicçãoCumprimento Saulo Aride pelo belo con-to “Partícula” (edição 198). Relatei-o em palestra a pais de alunos da escola Nú-cleo Assistencial Joanna de Ângelis, uma exemplar instituição de tempo integral e gratuita, situada no bairro Jardim Brasil, aqui em Botucatu. Parabéns.Francisco habermann

Faculdade de Medicina / Unesp

Botucatu, SP

correçõesNa reportagem “Quebra-cabeça em expan-são” (edição 198), o quadro “As partículas do Modelo Padrão”, na página 48, saiu com uma identificação trocada. Onde está escrito quarks leia-se léptons, e vice-versa.

O autor da foto da entrevista de Bráulio Ferreira de Souza Dias (edição 198) é Renato Araújo/Br, e não Eduardo Cesar.

O autor da foto da seção Fotolab (“O faro da abelha”, edição 198) é José Nas-cimento Jr.

cARtAS [email protected]

Empresa que apoia a ciência brasileira

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

Rockefeller e PirajáA edição de agosto de 2012 tem excelen-tes reportagens de Carlos Haag, sobre a Fundação Rockefeller, e de Neldson Mar-colin, sobre o cientista Pirajá da Silva. Um primeiro ponto controverso da matéria sobre a Rockefeller no Brasil diz respeito à relação entre o regime autoritário de Vargas e a eficácia do trabalho sanitário contra o mosquito. Na verdade, o que pesava não era o regime, mas a cultura brasileira, hierárquica, estratificada desde a Colônia em camadas sociais graníti-cas. Algo surpreendente: a chave para a solução dessa questão está na própria matéria: já na República Velha era estreita a relação entre saúde, nation-building e construção do Estado. Outro ponto con-troverso: a campanha do Nordeste contra o temido gambiae não foi um “suposto e enganoso sucesso”, que teria impedido o desenvolvimento de sistemas de saúde local. A campanha do Nordeste conse-guiu impedir que a devastação mortal da epidemia fosse controlada. A matéria citou a possível existência de “dogmas” da Rockefeller aplicados às políticas de saúde no Brasil. Se houve ideologias e protocolos, no Brasil não viravam dog-mas. As ações concretas eram fruto de negociações, de toma lá dá cá. A matéria sobre Pirajá da Silva é a chave: países com tradições médicas anteriores à vinda da Rockefeller não se adaptaram à tese do “imperialismo e saúde”, defendida até hoje em estudos mal alicerçados. Falta--nos uma história comparativa dos estilos variados de atuação das missões Rocke-feller no estrangeiro, com ou sem dogmas. luiz Antonio de castro Santos

Instituto de Medicina Social/Uerj

Rio de Janeiro, RJ

notícias on-lineParabéns pela nota publicada na seção On-line sobre as pesquisas em Saturno, particularmente na lua Titã. A presença de moléculas orgânicas em choque em lago de metano líquido realmente pode ser um sinal significativo de possíveis formas de vida naquele satélite. Ou, mesmo, de que está próximo um está-gio que propicia a existência de vida.

CElSO lAFERPreSiDente

EDUARDO MOACyR KRIEgERvice-PreSiDente

conSElho SUPERIoR

AlEJANDRO SzANTO DE TOlEDO, CElSO lAFER, EDUARDO MOACyR KRIEgER, FERNANDO FERREIRA COSTA, HORáCIO lAFER PIVA, HERMAN JACOBUS CORNElIS VOORWAlD, JOãO gRANDINO RODAS, MARIA JOSé SOARES MENDES gIANNINI, JOSé DE SOUzA MARTINS, lUIz gONzAgA BEllUzzO, SUEly VIlElA SAMPAIO, yOSHIAKI NAKANO

conSElho técnIco-AdmInIStRAtIVo

JOSé ARANA VARElADiretor PreSiDente

CARlOS HENRIqUE DE BRITO CRUzDiretor científico

JOAqUIM J. DE CAMARgO ENglERDiretor aDminiStrativo

conSElho EdItoRIAlCarlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira

comItÊ cIEntíFIcoluiz Henrique lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo zampieri, Eduardo Cesar leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli

cooRdEnAdoR cIEntíFIcoluiz Henrique lopes dos Santos

dIREtoRA dE REdAção Mariluce Moura

EdItoR chEFE Neldson Marcolin

EdItoRES Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti (Editor especial), Marcos Pivetta (Editor especial), Dinorah Ereno (Editora assistente)

REVISão Márcio guimarães de Araújo, Margô Negro

ARtE laura Daviña (Editora), ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli

FotógRAFoS Eduardo Cesar, léo Ramos

mídIAS ElEtRônIcAS Fabrício Marques (Coordenador) IntERnEt Pesquisa FAPESP onlineMaria guimarães (Editora executiva) Isis Nóbile Diniz (Editora assistente) RádIo Pesquisa BrasilBiancamaria Binazzi (Produtora)

colAboRAdoRES Ana lima, Angélica T. Benatti Alvim, Daniel Bueno, Daniel das Neves, Evanildo da Silveira, gustavo Fioratti, Francisco Bicudo, Igor zolnerkevic, laura Teixeira, larissa Ribeiro, Mayumi Okuyama, Milena Fernandes Maranho, Nelson Provazi, Pedro Hamdan, Sandro Castelli, Sérgio Kalili, Valter Rodrigues (Banco de imagens), Vivian Pizzinga, yuri Vasconcelos

é PRoIbIdA A REPRodUção totAl oU PARcIAl dE tExtoS E FotoS SEm PRéVIA AUtoRIzAção

PARA FAlAR com A REdAção (11) [email protected]

PARA AnUncIAR (11) 3087-4212 [email protected] ASSInAR (11) 3038-1434 [email protected]

tIRAgEm 46.300 exemplaresImPRESSão Editora gráficos Burti ltda.dIStRIbUIção DINAP

gEStão AdmInIStRAtIVA INSTITUTO UNIEMP

PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP

FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da lapa, São Paulo-SP

SECRETARIA DE DESENVOlVIMENTO ECONôMICO,

CIêNCIA E TECNOlOgIA goVERno do EStAdo dE São PAUlo

FUNDAçãO DE AMPARO à PESqUISA DO ESTADO DE SãO PAUlO

ISSN 1519-8774

Page 7: Pesquisa FAPESP 199

PESQUISA FAPESP 199 | 7

as excitantes narrações da ciência

mariluce moura

DIRETORA DE REDAçãO

cARtA dA EdItoRA

o resultado de um estudo científico no cam-po da história da ciência que Pesquisa FA-PESP leva a seus leitores na reportagem

de capa deste mês merece, entre outros possí-veis, o adjetivo excitante. Porque o relato sobre as peripécias que conduziram ao achado de um pó capaz de sugerir a vinculação material entre alquimia e química, na honorável Royal Society inglesa, excita, de cara, a imaginação e a inclinação tão humana por desvendar ou ao menos acompa-nhar narrativas de desvendamento de mistérios.

E tanto mais cresce o interesse numa história assim quando se sabe que a substância, depois de dormitar por cerca de 350 anos num envelope fechado entre documentos nos arquivos da ins-tituição, foi encontrada por duas pesquisadoras brasileiras – nada mais compreensível do que esta torcida entusiasmada por nosso “time”. Trata-se de uma dupla, diga-se, empenhada há muitos anos em examinar determinados períodos da história da ciência para entender como a construção do conhecimento científico se alimenta de afluentes de múltipla natureza, até mesmo daqueles que em nosso olhar contemporâneo afiguram-se tão radicalmente anticientíficos. E, desta vez, elas se-guramente avançaram mais alguns passos impor-tantes em sua remontagem da história da ciência contemporânea. Vale a pena conferir, a partir da página 18, a bela reportagem de nosso editor de humanidades, Carlos Haag, que incluiu no tra-balho de levantamento do assunto um mergulho in loco nos documentos guardados em Londres.

A feitura desta edição envolveu uma outra via-gem, bem menos glamourosa, é certo, um tan-to dolorosa, mas igualmente importante para a composição da revista: o editor especial Carlos Fioravanti e o fotógrafo Eduardo Cesar partiram rumo a Araras, um povoado no interior de Goiás, para acompanhar de perto o trabalho de uma equipe de pesquisadores paulistas, cariocas e goianos no esforço para identificar uma mutação genética responsável pelos casos de xeroderma na população local. Ironicamente, para um lugar muito quente neste período do ano e escaldan-te em janeiro, comenta Fioravanti, a xeroderma

pigmentosum ou XP é uma doença que pode ser tremendamente agravada pela exposição ao sol. E não há ainda medicamentos específicos para tratá-la. O resultado da incursão dos dois pro-fissionais de Pesquisa FAPESP a Araras pode ser visto a partir da página 44.

Entre algumas outras possibilidades de textos a destacar nesta carta – por exemplo, a reporta-gem sobre a ecologia das lindas onças brasileiras chamadas suçuaranas, assinada por Maria Gui-marães (página 52), a reportagem sobre as bate-rias à base de lítio desenvolvidas em São Paulo para impulsionar carros elétricos, assinada por Marcos de Oliveira (página 72), e uma tercei-ra relativa a um novo estudo sobre os critérios seguidos pela ditadura brasileira para censurar livros entre 1970 e 1979 (página 82), cujo autor é Gustavo Fioratti –, vou me deter na entrevista pingue-pongue desta edição.

Diferentemente do mais usual, a entrevista des-te mês não leva ao leitor a fala de uma importante personagem da ciência produzida no Brasil. Em vez disso, oferece-lhe as reflexões do bioquímico norte-americano Bruce Alberts, cujas posições de destaque em instituições acadêmicas dos Esta-dos Unidos, nos últimos 20 anos, terminaram por afastá-lo um tanto da rotina de pesquisador dedicado ao estudo de proteínas e genes e lançá-lo ao trabalho em outro campo que o apaixona: o ensino e a divulgação de ciências. Editor-chefe da Science, ex-presidente da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, professor emé-rito da Universidade da Califórnia, Alberts, 74 anos, esteve no Brasil entre o final de julho e o começo de agosto e, em São Paulo, provocou em 3 de agosto uma impressionante superlotação no auditório da FAPESP, principalmente de jovens pesquisadores, ao falar sobre “Scientific excellen-ce: ways and means of diffusion”. Na entrevista que concedeu no mesmo dia aos editores Marcos Pivetta e Fabrício Marques (a partir da página 28), Alberts detalha suas ideias e todas elas propõem reflexões fundamentais para um país que quer fazer avançar sua ciência e sua cultura científica.

Boa leitura!

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8 | Setembro De 2012

Dados e projetos

tEmátIcoS

Síntese de pequenas bibliotecas empregando organotrifluoroboratos de potássio em reações de Suzuki-miyauraPesquisador responsável: Helio Alexandre StefaniInstituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas/USPProcesso: 2012/00424-2Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016

modelos biológicos de interação planta-patógeno para o entendimento de mecanismos de patogenicidade e adaptação de fitobactérias, respostas de defesa e desenvolvimento de doença em citrosPesquisador responsável: Celso Eduardo BenedettiInstituição: Centro Nacional de Pesquisa em Energia de Materiais /Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)Processo: 2011/20468-1Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2017

Intensificação ecológica de plantações de eucaliptos pela associação com espécies leguminosas arbóreas fixadoras de nitrogênioPesquisador responsável: José

temáticos e Jovem Pesquisador recentesProjetos contratados entre julho e agosto de 2012

leonardo de Moraes gonçalvesInstituição: Escola Superior de Agricultura luiz de queiroz/USPProcesso: 2010/16623-9Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2016

gravitação e cosmologia: questões estruturais e aplicaçõesPesquisador responsável: Elcio AbdallaInstituição: Instituto de Física/USPProcesso: 2011/18729-1Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2017

novos moduladores do controle glicêmico e do desenvolvimento de complicações crônicas no diabetes mellitus: perspectivas preventivas e terapêuticasPesquisador responsável: Ubiratan Fabres MachadoInstituição: Instituto de Ciências Biomédicas/USPProcesso: 2012/04831-1Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2016

Problemas da mecânica quântica e teoria quântica de campos com fundos fortes e em espaços não comutativosPesquisador responsável: Dmitri Maximovitch guitmanInstituição: Instituto de Física/USPProcesso: 2012/00333-7Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016

Estudo da estrutura e função da chaperona hsp90 com ênfase no seu papel em homeostase celularPesquisador responsável: Carlos Henrique Inácio RamosInstituição: Instituto de química/UnicampProcesso: 2012/50161-8Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2017

JoVEm PESQUISAdoR

Estado, partidos políticos e sociedade no brasil contemporâneo Pesquisador responsável: Pedro José Floriano RibeiroInstituição: Centro de Educação e Ciências Humanas/Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)Processo: 2012/05132-0Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016

Exposição in utero a poluição ambiental e ocupacional e sua repercussão para o desencadeamento de inflamação alérgica pulmonar na prole: correlação com mecanismos epigenéticosPesquisadora responsável: Adriana lino dos Santos FrancoInstituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas/USPProcesso: 2011/51711-9Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2014

Padrões de consumo de álcool e outras drogas em baladas: epidemiologia, etnografia e intervençãoPesquisadora responsável: zila Van Der Meer Sanchez DutenhefnerInstituição: Escola Paulista de Medicina/UnifespProcesso: 2011/51658-0Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2016

Afecções ortopédicas não traumáticas de ombro: aspectos genéticos e molecularesPesquisadora responsável: Mariana Ferreira lealInstituição: Escola Paulista de Medicina/UnifespProcesso: 2011/22548-2Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016

São Paulo Excellence chairs (Spec) – Piloto

Estruturação de complexos macromoleculares da parede bacteriana: biossíntese e virulênciaPesquisadora responsável: Andrea Dessen de Souza e SilvaInstituição: Centro Nacional de Pesquisa em Energia de Materiais/Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)Processo: 2011/52067-6Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2016

o brasil no mundoNúmero de artigos, impacto mundial relativo e coautoria internacional das publicações de cientistas brasileiros

Fonte: InCites da Thompson Reuters

1994 2011

Universidades Artigos Impacto relativo –

média mundial

Artigos com coautoria

internacional

Artigos Impacto relativo –

média mundial

Artigos com coautoria

internacional

Brasil 5.212 0,64 33% 34.210 0,65 27%

Universidade de Brasília 77 0,57 30% 827 0,58 30%

Universidade Estadual de Campinas 485 0,55 34% 2.470 0,77 23%

Universidade Estadual Paulista 284 0,47 21% 2.913 0,69 24%

Universidade Fed. de Minas gerais 232 0,55 28% 1.760 0,63 27%

Universidade Fed. do Rio de Janeiro 433 0,67 33% 2.300 1,13 34%

Universidade Fed. do Rio grande do Sul 246 0,71 36% 2.002 0,64 25%

Universidade Fed. de Santa Catarina 87 0,50 36% 994 0,52 28%

Universidade Fed. de São Carlos 103 0,59 26% 770 0,48 24%

Universidade Fed. de São Paulo 205 0,97 30% 1.573 0,68 24%

Universidade de São Paulo 1.298 0,75 32% 7.675 0,87 31%

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PESQUISA FAPESP 199 | 9

A vida secreta dos artigos equivocados e fraudulentos

Pesquisadora de Harvard sob vigilância

boaS PráticaS

Artigos científicos equivocados ou fraudulentos costumam ser removidos exemplarmente dos arquivos das revistas científicas que os publicaram. Mas não é incomum que cópias sobrevivam em bibliotecas e repositórios de universidades e continuem a circular, sendo citadas por pesquisadores desavisados. O pesquisador norte-americano Philip Davis encontrou rastros do que ele chamou de “vida secreta de artigos retratados” ao analisar o destino de 1.779 papers desqualificados pelas revistas que os divulgaram entre 1973 e 2010.

Ele chegou a esse conjunto de artigos proscritos ao pesquisar a base de dados Medline, da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos. O passo seguinte foi procurar registros desses papers em outros portais ou repositórios da internet. Davis conseguiu localizar versões de 321 desses artigos – um em cada cinco da amostra – perdidos em bibliotecas virtuais ou nos arquivos de universidades e departamentos. Em nenhum deles havia qualquer aviso de que o artigo tinha sido desqualificado.

Na quase totalidade dos casos, 95%, a versão encontrada era a da revista científica. Em apenas 4% tratava-se de versões feitas pelo autor antes de submeter o artigo à publicação. O local que abrigava mais artigos retratados era a base de dados PubMed Central, com 43% do total (138 artigos). Noventa e quatro (ou 29%) foram encontrados em domínios acadêmicos, como websites de laboratórios e departamentos, e apenas 10 (3%) estavam em repositórios de instituições. Também foram encontrados 24 artigos (4%)

em sites comerciais – o curioso é que os artigos eram usados para promover suplementos alimentares ou técnicas cirúrgicas. Registros desses artigos foram encontrados na rede social acadêmica Mendeley e eram compartilhados, em média, por 3,4 usuários.

Davis sugere que as revistas científicas deveriam disseminar alertas sobre o status desses artigos em serviços de busca e recuperação, e que as bases de dados acoplem avisos de retratação às referências bibliográficas dos papers. Outra medida seria informar bibliotecas virtuais e ferramentas on-line de organização de bibliografia sobre a punição. Por fim, as publicações científicas deveriam passar a fazer varreduras nas referências bibliográficas de todos os seus

Por determinação do Escritório de Integridade de Pesquisa (ORI) dos Estados Unidos, que investiga fraudes em pesquisa financiada pelo governo federal, Shane Mayac, ex-pesquisadora de pós-doutorado no Centro de Diabetes Joslin, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, Estados Unidos, terá de se submeter à supervisão rigorosa para qualquer trabalho que ela possa fazer com financiamento do governo federal nos próximos três anos (Nature News Blog, 29 de agosto). Shane concordou com as sanções do ORI, aplicadas depois de ela ter sido julgada por má conduta por ter copiado imagens de outras fontes e tê-las publicado, como se fossem suas, em dois artigos sobre células-tronco do sangue,

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um na Nature e outro na Blood. A pesquisadora “nem admite nem nega as conclusões do ORI de má conduta científica”, segundo a nota no Federal Register, boletim do governo dos Estados Unidos, mas tinha comentado antes no blog Retraction Watch que seu artigo na Nature foi retificado apressadamente e sem ter sido consultada. Ela comentou que estava sendo forçada a assumir a culpa por um “sistema disfuncional” de publicação e investigação. O comunicado do ORI menciona a publicação das figuras retiradas de outro artigo, que Shane atribuiu a um erro, e a apropriação indevida de duas figuras de experimentos não relacionados. De acordo com o ORI, trata-se de uma clara falsificação de dados.

artigos, antes que sejam publicados, para evitar que papers retirados voltem a ser citados, diz Davis. O estudo foi divulgado pelo Journal of the Medical Library Association, dos Estados Unidos.

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10 | Setembro De 2012

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Assista ao vídeo:

on-lineW W W . R E V I S T A P E S q U I S A . F A P E S P. B R

}Uma equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) analisou cerca de 160 estudos sobre aneuploidia – a perda ou ganho de cromossomos, pacotes de DNA que abrigam os genes. O resultado, publicado na Frontiers in Cellular Neuroscience em agosto, mostrou que a variação no número de cromossomos atinge linhagens de células-tronco cultivadas no mundo todo. Como o fenômeno não tem mecanismos que o elimine nas células em cultura, é preciso identificar o grau tolerável para que as potenciais terapias não gerem efeitos nocivos.

} Estudo publicado no site da Nature Geoscience em agosto sugere que o carbono gerado em queimadas fica armazenado por décadas e até séculos no solo, sendo liberado para os rios aos poucos. Um grupo da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) encontrou, em amostras de água do rio Paraíba do Sul, uma carga de carbono entre 3 e 16 vezes maior do que pode ser explicado pelas queimadas atuais. Para os pesquisadores, parte do carbono detectado tem origem nas queimadas ocorridas entre 1850 e 1973.

exclusivo no site

Rádio

Sérgio Novaes fala sobre a descoberta de partícula que talvez seja o bóson de Higgs

Vídeo do mês

Macacos-prego que criam e manipulam ferramentas disseminam tradições culturais

nas redes

@marcos belançon Pra quem não sabe, uma boa revista de ciência de verdade no Brasil é a Pesquisa FAPESP

@bruno c. Vellutini Vídeo bem legal sobre a Eta Carinae (Eta Carinae: além do eclipse)

diogo Eberhardt_ Apesar de não acreditar nos trabalhos de modelagem com relação às mudanças climáticas, a reportagem do Carlos Fioravanti ficou muito boa, com diferentes opiniões. Meus parabéns!!! (O cardápio dos próximos anos)

gisele oliveira_ Os infográficos da matéria estão lindos! (Abrindo a Terra)

Fumaça Rocha_ Há muito que aprender com a genética! (Você consegue enrolar a língua?)

iarabauer_ Incrível! Essa equipe da FAPESP é um orgulho para o Brasil e devia ter um programa garantido na TV Cultura e em todos os canais abertos do país. Parabéns pelo trabalho! (Comissão Rondon deu origem à política indigenista)

Célula cerebral de camundongo com um cromossomo a mais

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Page 11: Pesquisa FAPESP 199

PESQUISA FAPESP 199 | 11

frente para o chefe”, compara o físico luís Carlos de Menezes. O que indica o alinhamento para as moléculas é o movimento brusco de retirada do congelador, agravado pelo susto de ter esquecido a cerveja tempo demais. “O gesto, ou o calor da mão, dá essa direção”, explica. Com isso o líquido expande, já que o estado sólido ocupa mais espaço do que o líquido, e muitas vezes a garrafa (ou lata) explode. Para beber uma cerveja bem gelada e líquida, o melhor é retirá-la do congelador evitando qualquer sacudidela ou toque de mão aberta e deixá-la numa superfície estável até que chegue à temperatura acima da de congelamento.

Muita gente já passou pela frustração de tirar uma cerveja do congelador e vê-la solidificar-se diante dos olhos. Para evitar que isso aconteça, muitos pegam a garrafa pela ponta ou a põem debaixo de água corrente e, depois disso, dão uma chacoalhada. Para saber o que fazer, basta entender a física por trás do incidente. A cerveja no congelador esfriará aos poucos e, se a geladeira não vibrar, pode atingir uma temperatura mais baixa que a de congelamento, o sobrerresfriamento. Estáticas no congelador, as moléculas não têm orientação para passar ao estado sólido. “é como se fosse um batalhão, que para saber como se perfilar precisa estar de

Explosão solar

Há quem interprete as explosões solares como uma promessa de aniquilação da Terra. Mas, na realidade, esse é um fenômeno comum: ocorre diariamente quando o Sol está em maior atividade e semanalmente em fase de calmaria.

A explosão solar é uma súbita liberação de energia com segundos de duração que acontece nas manchas solares, chamadas pelos pesquisadores de regiões ativas. Nesses locais há uma concentração de energia armazenada em plasma – composto por partículas, principalmente elétrons, confinadas em uma estrutura magnética. Quando há alguma instabilidade nessa região, ocorre a explosão originando radiação eletromagnética e ejetando partículas para o meio interplanetário.

As explosões solares podem ser fracas ou fortes o suficiente até atingir a Terra. Por exemplo, seus efeitos podem bloquear por momentos a comunicação por rádio ou interromper o funcionamento de satélites como os relacionados ao posicionamento por GPS ou à sincronização de relógios. O fenômeno também tem relação com o ambiente do planeta – mais nuvens de chuva podem se formar em épocas de poucas explosões.

As explosões solares são cíclicas, com picos a cada 11 anos. O próximo deverá ser por volta de 2015, mas o ciclo atual está excepcionalmente calmo – mais fraco do que o anterior. Por causa disso, alguns pesquisadores acreditam que a Terra está para entrar em um período mais frio.

o QUE é, o QUE é?

Wiki

Mande sua pergunta para o e-mail [email protected], pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp

lUíS cARloS dE mEnEzESUniversidade de São Paulo (USP)

Pierre Kaufmann, da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Por que a cerveja às vezes congela quando é retirada do congelador?

Pergunte aos pesquisadores

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Natalia zapella [via e-mail]

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eStratégiaS

A FAPESP sediou, entre os dias 29 e 31 de agosto, o primeiro de sete encontros preparatórios para o Fórum Mundial de Ciência, que será realizado em novembro de 2013 no Rio de Janeiro com o tema “Ciência para o Desenvolvimento global: da Educação para a inovação”. Uma videoconferência de Michael Clegg, professor de genética da Universidade da Califórnia, abriu o encontro preparatório – o furacão Isaac de última hora impediu o seu voo para o Brasil. Clegg falou sobre o papel das redes de academias de ciência e das redes formadas por elas. Um cardápio variado de temas foi discutido, das formas de fazer ciência aos problemas de governança, dos esforços no campo da educação aos desafios enfrentados no século XXI pelas áreas do conhecimento. Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, fez uma apresentação sobre “As diferentes facetas da ciência” e abordou a extrema complexidade da ciência, um modo de conhecimento inspirado pelas ideias. “O lugar das ideias, o lugar das ciências não é só nas universidades,

mas nas empresas também”, disse Brito. Ele mostrou, com exemplos, como há ideias que demoram para ir ao mercado, outras que chegam lá mais rapidamente e existem aquelas que se desenvolvem só pelo prazer do conhecimento. Observou que as relações entre a ciência e suas aplicações têm sempre um caráter sinuoso. luiz Davidovich, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, falou sobre as várias percepções e importância da ciência básica ao longo da história, como a física quântica delineada no início do século XX por jovens cientistas sem nenhum aspecto utilitário, mas que ao longo dos anos foi utilizada em aplicações como lasers, chips e aparelhos de ressonância magnética.

O presidente da FAPESP, Celso lafer, recebeu o título de professor emérito do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP), em cerimônia realizada no dia 15 de agosto. Vinculado ao instituto desde o início de suas atividades, em 2004, lafer é o primeiro professor emérito da unidade. O quadro acadêmico do IRI é formado por cientistas políticos, economistas, historiadores, juristas, administradores e sociólogos vinculados a outros departamentos da universidade. lafer é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP, onde chefiou o Departa mento de Filosofia e Teoria geral

Preparação do Fórum

do Direito. Foi ministro das Relações Exteriores e do Desenvolvimento. Embaixador, comandou a Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas e à Organização Mundial do Comércio em genebra. De acordo com a diretora do IRI, Maria Hermínia Tavares Almeida, lafer não só recebeu o título pelo papel importante que desempenhou na unidade, mas principalmente por se tratar de um fundador da área de relações internacionais no Brasil, cuja obra permitiu estabelecer um pensamento original sobre política exterior. A trajetória de lafer foi apresentada na cerimônia pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

lafer recebe título de professor emérito

Abertura da reunião preparatória: José Arana Varela, diretor-presidente do CTA da FAPESP; Helena Nader, presidente da SBPC; o presidente da FAPESP, Celso lafer; o ministro da Ciência e Tecnologia, Marco Antonio Raupp; Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências; e Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação

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Um painel de especialistas convocado pela National Science Foundation (NSF) recomendou que a agência norte-ameri-cana deixe de investir em seis de seus observatórios astronômicos a partir de 2017. quatro deles estão instalados no estado do Arizona. Outros dois são radio--observatórios – um fica no estado de Virgínia Ocidental, enquanto o segundo é uma coleção de antenas espalhadas por várias localidades. James Ulvestad, dire-

tor da Divisão de Ciências Astronômicas da NSF, disse à revista Nature que espera encontrar novos operadores para os te-lescópios nos próximos 18 meses. Se não der certo, a agência irá considerar o fe-chamento das instalações. A meta é eco-nomizar US$ 20 milhões gastos anual-mente pela NSF e garantir recursos para dois telescópios que serão construídos no Chile. Um deles é o large Synoptic Survey Telescope (lSST). Dotado de um

espelho de 8,4 metros de diâmetro, irá mapear o céu noturno com a ajuda de uma câmera digital de 3 bilhões de pixels. O outro é o Cerro Chajnantor Atacama Telescope, que se debruçará sobre as origens cósmicas de estrelas, planetas e galáxias. “Sem esse corte de despesas, não conseguiremos fazer coisas novas”, disse Michael Turner, diretor do Kavli Institute for Cosmological Physics da Uni-versidade de Chicago.

telescópios ameaçados de fechar

França homenageia pesquisadores brasileiros

O diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, e outros três acadêmicos brasileiros receberam no dia 13 de agosto a Palme Académique, uma das mais importantes condecorações concedidas pelo governo da França. Além de Brito Cruz, foram homenageados os professores Adnei Melges de Andrade, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), Renée zicman, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), e José Celso Freire Junior, da Faculdade de Engenharia de guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista (Unesp). A cerimônia foi conduzida pelo cônsul-geral da França em São Paulo, Sylvain Itté, com participação do presidente da FAPESP, Celso lafer. Criadas em 1808, as Palmes Académiques são concedidas a

personalidades que tenham prestado serviços relevantes à educação francesa ou contribuído para a expansão da cultura francesa. São outorgadas na forma de uma ordem com três graus: Commandeur, Officier e Chevalier. Brito Cruz e Andrade foram nomeados Commandeur, zicman recebeu o grau de Officier e Freire Junior foi nomeado Chevalier. “Os percursos dos condecorados testemunham a intensidade da cooperação entre o Brasil e a França”, afirmou Itté. De acordo com o cônsul, Brito Cruz promoveu a internacionalização ao longo de sua trajetória – especialmente como reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), de 2002 a 2005, e diretor científico da FAPESP – e contribuiu para o estreitamento de relações com a França.

Representação do Cerro Chajnantor Atacama Telescope, no Chile: início de operação em 2017

qualidade das publicações

A Universidade de São Paulo (USP) vai centralizar os serviços de revisão e tradução de artigos de suas revistas científicas. “Vamos contratar empresas com qualidade internacional e passaremos a oferecer o serviço às publicações”, diz Sueli Mara Soares Pinto Ferreira, diretora técnica do Sistema Integrado de Bibliotecas (SIBi) da USP. Atualmente, cada corpo editorial é responsável por contratar seus próprios colaboradores por licitação – um processo demorado e de qualidade desigual. A iniciativa faz parte de um conjunto de

of World Universities. Trata-se da única instituição de fora dos Estados Unidos entre as 20 mais bem colocadas. O ranking, divulgado pelo Cybermetrics lab, da Espanha, afere a presença e relevância das universidades na internet, ou seja, a visibilidade da produção científica e acadêmica disponível na rede.

estratégias para ampliar o impacto das cerca de 200 revistas científicas publicadas por unidades da USP e aumentar a repercussão internacional da produção científica da universidade. Tais ações já vêm rendendo frutos. Em julho, a USP foi classificada na 15ª posição no Webometrics Ranking

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a rede e o software que contribui para a localização de moléculas de medicamentos e outros produtos químicos industriais. “Percebi que, se pudéssemos ligar todos os compostos químicos conhecidos e as reações entre eles numa grande rede, poderíamos criar não só um novo repositório de métodos químicos, mas uma plataforma totalmente nova de conhecimento”, afirma grzybowski. A família de algoritmos utilizada permite também que o sistema aprenda com a incorporação de novos dados gerados em atualizações na base de conhecimento. Os pesquisadores acreditam que a Chematica vai acelerar a descoberta de novas moléculas sintéticas. Detalhes do novo sistema saíram na edição de 6 de agosto da revista Angewandte Chemie.

Está chovendo mais dias e os períodos de forte pluviosidade se tornaram mais comuns na cidade de Manaus nos últimos 40 anos (Acta Amazonica, setembro 2012). A conclusão é baseada em dados meteorológicos obtidos entre 1971 e 2007 por três estações situadas na capital amazonense e em seus arredores e analisados por cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e da Universidade Federal de Campina grande (UFCg). No período analisado, os dias de chuva extrema, com precipitação acima de 50 milímetros (mm), apresentaram um aumento estatisticamente significativo apenas na estação localizada na zona urbana de Manaus.

Mais chuva em Manaus

Tal fato pode estar ligado ao processo de urbanização por que passou a cidade nas últimas décadas. Em 1970, sua população era de pouco menos de 300 mil habitantes e hoje já passou da casa dos 2 milhões. O total anual de chuvas na região, que oscila entre 2.500 e 3.000 mm, também deu sinais de que está em alta. Essa tendência foi verificada nas três estações estudadas. No entanto, o aumento só se mostrou estatisticamente relevante para as medições feitas na estação da Embrapa, localizada 30 quilômetros ao norte da capital amazonense. Nesse ponto houve uma elevação anual de 11,5 mm na quantidade de chuva.

tecnociência

Todos os compostos químicos num só lugar

Reunir o conhecimento de 250 anos de química orgânica em uma rede computacional foi uma tarefa que durou 10 anos para pesquisadores da Universidade Northwestern, dos Estados Unidos. Estruturada de forma semelhante às redes de telecomunicações, ela leva o nome de Chematica e permite acesso a sínteses de moléculas de drogas e outros compostos, combinando rotas químicas. é uma plataforma de conhecimento que mostra cada reação química já realizada e o resultado de cada uma delas. São 7 milhões de produtos químicos conectados com um similar número de reações. Sob a liderança de Bartosz grzybowski, os pesquisadores desenvolveram algoritmos que formam

Capital amazonense: precipitações mais fortes sobretudo na área urbana

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Simulador de mama

Uma prótese de mama, produzida com um material gelatinoso que se assemelha ao tecido biológico, foi desenvolvida para treinamento de médicos radiologistas na realização de biópsia guiada por ultrassom, exame necessário para o diagnóstico de câncer. Chamado de phantom de mama, o simulador tem oito estruturas internas que representam em cores seis diferentes tipos de lesões. O objetivo do simulador, desenvolvido no Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), sob a coordenação do professor Antônio Adilton Carneiro, é

treinar a habilidade do radiologista, que precisa ao mesmo tempo operar o ultrassom e a agulha que irá remover o fragmento de tecido para exame. Antes de ser produzido comercialmente pela Figlabs, empresa abrigada na incubadora Supera, de Ribeirão Preto, o phantom foi testado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP da mesma cidade. “Uma propriedade importante desse simulador é que, no caso de ser perfurado durante o treinamento, ele pode ser reconstruído termicamente”, diz Thiago Almeida, diretor da Figlabs, que apresentou a prótese na I Feira de Inovação da USP realizada em agosto em São Paulo.

A hora em que mais sai gol

de futebol de 2008. O levantamento mostra que a maioria dos gols – 579 tentos, cerca de 56% do total – foi anotada no segundo tempo de jogo (Revista Brasileira de Ciência do Esporte, abril-junho 2012). A quantidade de gols marcados nos 15 minutos finais da partida foi bastante elevada: 221, equivalente a 21% do total. Os 15 minutos iniciais foram o período do jogo em que menos a rede foi balançada. Em todos os períodos, a maior parte dos gols foi originada em jogadas com a bola rolando e a finalização que levou ao gol foi feita por um jogador que estava dentro da área. O desgate físico pode ser uma explicação para a maior ocorrência de gols no segundo tempo da partida, sobretudo em seus instantes finais. Outra possibilidade é que, diante da iminência do final do jogo, as equipes passam a se esforçar mais e acabam fazendo gols.

Protótipo do papel: arranjo de depressões coberto com uma máscara transparente

Estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) analisou quando e em que circunstâncias ocorreram os 1.034 gols marcados pelos 20 times que disputaram 380 jogos na primeira divisão do campeonato brasileiro

Estudo mostra que maioria dos gols do campeonato brasileiro ocorre no segundo tempo de jogo

Uma foto em papel que mostra imagens em três dimensões foi apresentada em agosto no 39º International Conference and Exhibition on Computer graphics and Interactive Techniques (Siggraph 2012), em los Angeles, nos Estados Uni-dos. A nova tecnologia de impressão permite que o papel responda a diferen-tes ângulos de luz e mostre os objetos e pessoas em uma perspectiva tridimen-sional. A novidade foi desenvolvida em parceria com pesquisadores da Univer-sidade da Califórnia em Santa Cruz, lide-rados pelo professor James Davis, e as empresas HP e 3M. Em vez de usar papel fotográfico liso como de costume, os pesquisadores criaram um novo tipo de papel chamado de reflexão em que cada

um dos pixels (pontos que compõem uma imagem digital) tem uma pequena on-dulação com uma superfície espelhada para refletir em todas as direções angu-lares. A tinta sobre essas ondulações controla os ângulos da luz refletida de cada pixel. Assim, de acordo com a ilu-minação sobre a foto, é possível ver sombras e demais efeitos tridimensionais da imagem com a variação de iluminação. Em uma foto de estátua, por exemplo, se a luz partir do lado esquerdo, é pos-sível ver a sombra dela do lado direito.

Papel permite visão de fotos em 3d

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Sequinho num segundo

Animais totalmente molhados conseguem se livrar de até 70% da água que ensopa seus pelos em poucos segundos. Basta chacoalhar seu corpo para os lados, naquele movimento pós-banho que todo dono de cachorro conhece muito bem. O cálculo foi feito por uma equipe de pesquisadores do Instituto de Tecnologia da geórgia, Estados Unidos, que usou câmeras de alta velocidade e um traçador de partículas para caracterizar as sacudidas de 16 espécies de animais (Journal of Royal Society Interface, on-line, 17 de agosto). Bichos grandes, como ursos, tigres e cachorros avantajados, se chacoalham quatro vezes por segundo enquanto os menores, como os camundongos, se sacodem mais de 30 vezes. O esforço para se secar faz com que as gotas de água sejam

arremessadas dos pelos dos animais a uma aceleração de 10 a 70 vezes maior do que a da gravidade, segundo os dados do estudo. A eficiência inata dos bichos em se livrar rapidamente do excesso de água que os encharca diminui o risco de sofrerem hipotermia, uma baixa em sua temperatura corporal. Os pesquisadores acreditam que compreender esse mecanismo pode ser útil para o desenvolvimento de novos tipos de equipamentos, como máquinas de lavar e secar mais eficientes. “No futuro, a capacidade de se secar sozinho e se autolimpar pode se tornar uma característica importante para câmeras e outros equipamentos que operam em ambientes úmidos ou com muita poeira”, diz David Hu, professor de engenharia mecânica e biologia do instituto, um dos autores do trabalho.

laboratório produz etanol a partir de soro de leite

Está surgindo no Rio grande do Sul uma nova fonte de matéria-prima para produção de etanol. é o soro do leite. De cada quilo de queijo produzido sobram, em média, nove litros de soro, um líquido esbranquiçado formado por 95% de água, 4% de lactose e 1% de proteína. Para ser aproveitado pela indústria alimentícia na composição de bebidas lácteas e recheios de biscoitos é preciso transformá-lo em pó, o que gera custos altos principalmente para o pequeno produtor. Se não for utilizado para alimentação, o soro precisa ser tratado como um efluente industrial para não contaminar lagoas e rios. Os experimentos para a bioconversão do soro em etanol têm a coordenação do professor Marco Antônio

Ayub, do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal do Rio grande do Sul (UFRgS). Ele obteve etanol de soro de leite em biorreatores com leveduras do gênero Kluyveromyces que fazem a transformação do material lácteo em biocombustível (Journal of Chemical Technology and Biotechnology, agosto 2012). “A produção atingiu 3,5 gramas de etanol por litro por hora. Ainda é muito baixo em relação à produção do álcool da cana, mas estamos otimizando o sistema”, diz Ayub. Ele acredita que esse tipo de reator servirá para médios e pequenos produtores no futuro para produzir etanol e com ele gerar energia elétrica. “Na Inglaterra existe uma empresa que converte o soro em gás metano para esse fim.”

Se ensopados, animais de pelo se chacoalham e se livram rapidamente de 70% da água que os encharca

líquido esbranquiçado da produção de queijos pode se transformar em álcool

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PESQUISA FAPESP 199 | 17

Sensor em sutura mede temperatura do corpo

Pesquisadores da Universidade de Illinois desenvolveram suturas dotadas de sensores de silício ultrafinos integrados a polímeros ou tiras de seda. Os fios medem com precisão a temperatura do corpo no local de uma ferida. A temperatura alta, por exemplo, é um indicativo de que o organismo está combatendo a infecção. As suturas são feitas através da pele como em um procedimento normal. O trabalho foi divulgado on-line pela revista Small de 14 de agosto. Para desenvolver a sutura, os cientistas norte- -americanos usaram

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Um concorrente do grafeno

Um composto usado há décadas como lubrificante industrial tornou-se um bom candidato a ocupar uma posição de destaque na nova eletrônica. Estudos indicam que, em sua forma bidimensional, o dissulfeto de molibdênio (MoS2) parece possuir muitas das qualidades do grafeno, um dos materiais mais promissores da atualidade, e apresenta ainda uma importante vantagem extra. Com o MoS2 é mais fácil construir transistores que possam ser ligados e desligados, algo muito complicado de se fazer num circuito eletrônico à base de grafeno. Pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT) conseguiram fabricar uma série de

componentes eletrônicos com o dissulfeto de molibdênio, como um inversor de voltagem, um tipo de porta lógica e uma memória (Nano Letters, on-line, 3 de agosto). O novo material é tão fino que se torna transparente e pode ser depositado sobre vários tipos de superfície. “Estamos no momento mais excitante da eletrônica dos últimos 20 ou 30 anos e portas para novos materiais e aparelhos estão sendo abertas”, diz Tomás Palacios, um dos autores do estudo. O primeiro trabalho a explorar as potencialidades do MoS2 em sua forma bidimensional foi publicado no ano passado por pequisadores suíços.

os problemas na voz do professor

Falta de ar ao falar, cansaço, rouquidão nos últimos seis meses e voz mais gros-sa que o normal. Nessa ordem, esses foram os quatro problemas vocais mais encontrados numa amostra de 102 pro-fessores de 11 escolas públicas de Pira-cicaba, no interior paulista, que partici-p a r a m d e u m e s t u d o f e i t o p e l a fonoaudióloga Raquel Pizolato. Esses distúrbios podem estar ligados ao exces-so do emprego da fala devido às carac-terísticas da atividade profissional e a

uma coordenação inadequada da res-piração durante o ato de discursar. Para tentar minorar os problemas, Raquel aplicou um programa de saúde vocal de três meses em 36 professores da amos-tra. Além de palestras sobre como a fala é produzida, os professores passaram por sessões de exercício vocal e rece-beram dicas simples, mas que podem aliviar alguns sintomas. “Falamos da importância de beber água durante a atividade profissional, de descansar a

voz no intervalo de trabalho e do efeito benéfico da ingestão da maçã sobre o aparelho fonador”, diz Raquel, que de-fendeu tese de doutorado sobre a pes-quisa na Universidade Estadual de Cam-pinas (Unicamp). Os participantes também foram orientados a evitar hábi-tos maléficos para a voz, como gritar, pigarrear, usar sprays e pastilhas e beber com frequência líquidos gelados. No final do programa de reeducação, foi consta-tada redução na maioria dos sintomas.

Estrutura em forma de folha plana do MoS2: esperança de novos circuitos eletrônicos

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membranas de silicone, eletrodos e fios de ouro com centenas de nanômetros de espessura, embalados por um design em forma de serpentina, o que permite que ela seja esticada. Os sensores foram feitos a partir de uma placa de silício, transformada em filmes ultrafinos por meio de processos químicos, que são então transferidos para as tiras de polímeros. Na última etapa são colocados os eletrodos metálicos e fios, que ficam encapsulados em um revestimento de epóxi para impedir a fuga de corrente elétrica.

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Original da carta enviada por Boutens a Oldenburg mostrando o pequeno envelope fechado

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Pesquisadoras brasileiras descobrem

pó alquímico em arquivo da Royal Society, sede

da revolução científica e da razão

Carlos Haag, de Londres

Não é fácil abalar a fleuma britânica. Daí a sintomática reação de Keith Moore, diretor dos arquivos da Royal Society, ao ser questionado sobre a importância do achado das pesqui-

sadoras Ana Maria Goldfarb e Márcia Ferraz, do Centro Simão Mathias da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cesima PUC-SP). Com a sobrancelha levantada e cauteloso, Moore respon-deu: “Estava debaixo de nossos narizes, mas em 350 anos ninguém encontrou”. Trata-se de uma pitada de pó amarelado e com odor fortemente pungente, embalado num pequeno envelope co-lado em uma carta de 1675 endereçada ao primei-ro-secretário da Royal Society, Henri Oldenbrug (1515-1677), vinda de Antuérpia e enviada por um apotecário e alquimista chamado Augustin Boutens. Embora não tenha chamado a atenção até agora, é uma valiosa e concreta amostra do Ludus, um material secretíssimo, que, juntamen-te com o alkahest, famigerado solvente universal foi alvo de buscas que movimentaram gerações de alquimistas e mesmo filósofos naturais como Robert Boyle e Isaac Newton.

CAPA

Uma incômoda pitada de magia

Após revelarem, em 2010, num projeto temá-tico apoiado pela FAPESP, a única receita curta e completa conhecida do alkahest (“A agenda se-creta da química”, Pesquisa FAPESP 154), de 1661, a dupla encontrou agora, afirmam, “uma amostra real de ‘Ludus composto’, com o que poderia ser um tipo de alkahest, de que se tem notícia desde o século XVII”. O que é o pó?

Certamente a Royal Society quer que a amostra seja analisada por um de seus fellows, provavel-mente Martyn Poliakoff (ver entrevista na página 26), vice-presidente da instituição. “Apesar da curiosidade pessoal, como pesquisadoras em his-tória da ciência, não pretendemos ir ao laborató-rio procurando saber o que seria pelos moldes de hoje o tal pó, pois estaríamos impondo, de forma anacrônica, nossas ideias a estudiosos do século XVII”, fala Márcia. “O que importa é a descober-ta de mais uma evidência forte de que uma boa porção das ciências antigas, como a alquimia, persiste mesmo após o surgimento de uma nova visão de ciência (e até fizeram parte na formação desta), mantendo-se na agenda das figuras que supostamente promoveram a revolução cientí-fo

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20 | setembRo De 2012

O paradoxo da revolução lentaVárias correntes concorreram para o surgimento da ciência moderna, fruto de passagem lenta que só se encerrou no século XIX

Isaac NewtonExpoente da razão,

era um filósofo

natural que uniu,

como poucos, a

racionalidade com

crenças herméticas

LavoisierVisto como ápice

da nova ciência,

foi resultado de

um processo longo

e de muitas visões,

que resultaram

no laboratório

moderno e padrão

MecanicistasDivisão

entre mundo

inanimado e

matéria viva

Robert BoyleUm hermético

convertido em

mecanicista que

abriu um espaço

na divisão entre

as duas visões

Em comumAntiaristotélicos;

experimentação

e observação

da natureza;

ciência e religião

se apoiavam;

conhecimentos

práticos

Aristotelismo

HerméticosGrupo heterogêneo

de filósofos da natureza,

com alquimistas e

neoplatonistas, cuja

visão de mundo incluía a

magia, o encantamento

SécULO XVI-XVII

fica que originou a química moderna. Há uma história pouco conhecida que conta que essa passagem foi mais suave e coerente e só se encerrou no século XIX”, afirma Ana.

Acima de tudo, confirma o credo das pesquisadoras de que fazer a história da ciência é arregaçar as mangas e enfrentar a poeira secular dos documentos origi-nais para dar vida a eles. Prova disso, para surpresa de Moore, é que o docu-mento passou pelas mãos da historia-dora Marie Boas-Hall, responsável, nos anos 1960, pela imaculada catalogação da correspondência de Oldenburg, por 15 anos o “faz-tudo” da Royal Society. Diante do pequeno envelope, Marie Boas apenas anotou: “Amostra do que parece ser pirita, anexada ao texto”.

“A obra de Marie Boas é impecável, mas, pensando como muitos em sua época, ignorou possíveis interesses al-químicos dos ‘novos cientistas’ e, assim, terminou por não investigar o caráter hermético das cartas de Oldenburg. En-tão, como alguns ainda fazem agora, era importante manter a ideia de uma ‘revo-lução científica’, o que incluía, por vezes, a ‘limpeza’ do passado e, por vezes, in-tervenções pouco recomendáveis”, avalia Ana. “Esse achado amplia a visão de que a filosofia química não morreu com o triunfo da visão mecânica e corpuscular. Saber que ainda se perseguiam materiais como o Ludus e o alkahest comprova isso e inclui mais nomes importantes na lista dos que praticavam essas buscas, mes-mo alguns que se pensava convertidos ao racionalismo e, mais ainda, ao meca-nicismo do século XVII”, explica Pyio Rattansi, professor emérito da Univer-sity College London, que revelou a im-portância do hermetismo e da Bíblia nas obras científicas de Newton, até então visto como “santo padroeiro” da ciência moderna. “Além dele, outros ‘homens de razão’ tinham ‘segundas agendas’ que discretamente continham processos al-químicos”, conta Ana.

essa revisão da história da ciência só veio à tona quando as pesquisado-ras, apesar do “canto de sereia” da

tecnologia, viram a limitação dos catá-logos e das bases de dados digitais e se enfurnaram diretamente nos “fundos fechados” do arquivo, enfrentando a incredulidade inicial dos ingleses. “Tí-nhamos claro que era preciso procurar AntIGUIDADE

SécULO XVIII

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PESQUISA FAPESP 199 | 21

Henri Oldenburg:

secretário da Royal

Society centralizava

toda a informação

para a Instituição

e foi um dos

pioneiros nos

padrões científicos

entender o pensamento dos homens de ciência daquela época. Havia uma es-pécie de dualidade diante de qualquer descoberta ou fato novo: por um lado, ha-via a necessidade de manter sigilo, pois, em especial quando se tratava de mate-riais ou processos de laboratório, muitos eram verdadeiros segredos de Estado; por outro lado, estava uma das máximas (que, aliás, se mantém até hoje) da nova ciência, que defendia o saber elaborado por muitos e ao alcance de todos”, con-ta Ana. “Muitos estão se coçando para pôr as mãos nesse conhecimento e sabe--se lá o que farão para vê-lo publicado”, escreveu Newton a Oldenburg em 1676. Os meandros “rocambolescos” que as pesquisadoras precisaram vencer para encontrar a receita do alkahest é fruto dessa visão.

“Depois das descobertas iniciais de documentos, consideramos que tudo relacionado ao alkahest na Royal Society estava claro e vísivel”, lembra Márcia. Até encontrarem a misteriosa carta de Boutens para Oldenburg. “Já se passaram anos desde que enviei ao senhor uma boa quantidade do Ludus helmontiano, a partir do qual eu produzi o material sulfuroso que anexo abaixo. Confio na sua sabedoria para entender que efei-tos ele produz.” A referência ao mine-ral argiloso chamou a atenção de Ana e Márcia. Afinal, o Ludus era base, junta-mente com o “liquour alkahest”, de uma receita produzida pelo médico belga Van Helmont (1579-1644), que dedicou sua vida a estudar os obscuros trabalhos de Paracelso para produzir o que seria o “remédio para todas as doenças”. Ca-paz de dissolver qualquer substância sem deixar resíduos, reduzindo-a a seus constituintes primários, o alkahest seria fonte de remédios poderosos, em espe-cial contra os “males da pedra”, a litía-se renal, causadora incurável de muitas mortes até o século XIX.

“Segundo Van Helmont, era possível, por exemplo, fazer um remédio contra o cálculo urinário pela dissolução do Lu-dus com o alkahest. Não tanto pelo mi-neral, mas pela capacidade do alkahest em transformá-lo em fonte de cura. Tudo era fruto de um pensamento milenaris-ta: o solvente seria um presente de Deus quando o mundo se aproximasse do fim”, explica o historiador Paulo Porto, pro-fessor do Instituto de Química da Uni-versidade de São Paulo (USP). O Ludus

funcionaria como a cápsula plástica que, hoje, envolve as pílulas, permitindo a difusão gradual do medicamento no or-ganismo. O dilema dos alquimistas era justamente garantir que a solvência do alkahest acontecesse aos poucos, não matando o paciente ao tentar curá-lo. “Desde os anos 1640, o objetivo central da ciência inglesa era prolongar a vida das pessoas e o alkahest preparado com Ludus helmontiano seria o remédio indi-cado para isso”, diz Paulo. Para muitos contemporâneos, o rei Charles II criara a Royal Society, acima de tudo, para re-unir as maiores cabeças da época a fim de que produzissem “o grande remédio”.

por isso, a carta levantou suspeitas nas pesquisadoras. Como entender que após procurarem por anos o

“grande remédio” não houvesse registros nas atas da Royal Society da chegada de uma amostra de seus componentes? Tu-do indicava que estávamos diante de um ‘segredo’ valioso para os fellows da insti-tuição”, diz Márcia. Era preciso, então, entender melhor a relação de Oldenburg e Boutens. A primeira pista foi uma carta de setembro de 1667, escrita para Boy-le logo após o secretário sair da prisão, onde foi encarcerado pelos seus conta-tos “excessivos” com o exterior. Logo se

Pesquisadoras viram limitação dos catálogos digitais e se enfurnaram nos arquivos secretos, apesar da incredulidade inicial dos ingleses

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descobriu que a correspondência inten-sa era parte de seu trabalho. Oldenburg trocava cartas com quem pudesse ter ou conhecer informações sobre ciência, in-cluindo algum segredo sobre a “Arte”. E os vários espiões espalhados pela Europa o informavam de qualquer experiência.

Sintomaticamente, a carta para Boyle foi a primeira coisa que fez após sair da prisão. “O senhor menciona uma cai-xa que, creio, foi endereçada a mim. É Ludus da Antuérpia. Sinta-se livre para abri-la e depois enviá-la a mim, com sua opinião se é o Ludus genuíno.” Várias cartas mais tarde, com o mesmo teor de súplica humilde, não foram suficientes

A sedução epistolar vai adiante. “Gos-taria que o senhor soubesse como os in-gleses admiram operações químicas fei-tas por homens de bom senso que são livres dos preconceitos vulgares impos-tos pelo mundo por algumas pessoas que pretendem falar dogmaticamente sem nenhuma experimentação crítica pre-liminar, como o excelente senhor Boyle achou necessário fazer em seu Sceptical Chymist (1661)”, continua. “Sabemos que há Ludus helmontiano em abundância na sua região: peço ardentemente que nos envie para Londres por mar.” Em dezembro, chegou a resposta de Boutens: “Vou enviar mais de 70 quilos do Ludus com a descrição do método que utilizo para fazer o remédio”. O pagamento da empobrecida Royal Society foi feito em livros, cobiçados por alquimistas. A car-ta foi recebida com grande entusiasmo pelos membros da Royal Society, assim como outra carta escrita por Boutens al-guns meses depois descrevendo os luga-res onde era possível encontrar o Ludus. Essa correspondência, no entanto, não teve continuidade e apenas em junho de 1675 aparece uma nova carta de Boutens justamente aquela em que está afixada a amostra do “pó secretíssimo”.

o ldenburg, porém, não respondeu à carta. De início, as pesquisadoras atribuíram a atitude nada típica

do secretário ao excesso de trabalho. Mas descobriram outra razão. Francis Mer-curius, filho de Van Helmont, estava no mesmo período na Inglaterra e, sabida-mente, tinha conhecimento dos muitos segredos do pai... até mesmo amostras de seus materiais. Junior, como era co-nhecido, aproximou-se rapidamente de grandes estudiosos ingleses. Através de Henri More, tornou-se mentor de Lady Anne Conway, vítima de terríveis enxa-quecas que o próprio Harvey não conse-guiu curar. Por sua vez o circulo de Lady Conway incluía, além de Henry More e Ralph Cudworth, líderes dos Platonistas de Cambridge, e também um experiente homem de laboratório como Ezekiel Fox-croft que, por sua vez, era íntimo amigo e colaborador do grande Newton. “O que os unia era a preocupação com o ceti-cismo radical da época, que tentaram combater com a aceitação ‘racional’ de profecias bíblicas mescladas com visões milenaristas. Para justificar o novo uni-verso científico cético, assumiram o ideal

1 Salão de pesquisa da Royal Society, com as pesquisadoras brasileiras sentadas

2 Interior dos arquivos da instituição

3 Decreto de criação da Royal Society com a efígie do rei charles II

para Boyle atender a seu pedido e pare-ce que Oldenburg nunca pôs as mãos na preciosa caixa. Os arquivos foram reve-lando aos poucos os elos do secretário e Boutens, o alquimista da Antuérpia. Em novembro de 1667, Oldenburg escreveu ao alquimista: “Soube por um amigo de Paris (certamente um de seus espiões) de sua grande predisposição para a curiosi-dade e sua inclinação especial pela sólida filosofia que se fundamenta na observa-ção e nos experimentos que estamos ten-tando estabelecer aqui na Royal Society. Também fui informado de suas tentativas infatigáveis de descobrir os segredos da natureza pelo bom caminho da química”.

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“Tais revelações ampliam o espectro da ligação complexa do círculo inglês com a ciência nascente, e debates como aquele entre empiristas e racionalistas começam a perder sentido”, acredita Rattansi. Segundo o professor, os acha-dos obrigam a uma revisão das origens intelectuais da ciência dos séculos XVI e XVII. “A ciência aristotélica estava de-sacreditada como estéril. Houve então uma cisão entre a ‘filosofia mecanicista’, baseada em Galileu e Descartes, e grupos heterogêneos de ‘filósofos da natureza’, em especial neoplatonistas e herméticos. As diferenças entre os grupos não eram tão acentuadas: eles eram antiaristotéli-cos; defendiam a observação, a experi-mentação e a experiência em detrimen-to da razão abstrata; preconizavam que ciência e religião apoiavam-se uma na outra; ambos sonhavam em elevar e es-palhar o conhecimento sobre a natureza para fins práticos”, analisa o professor.

Para Rattansi, achados obrigam a uma revisão das origens intelectuais da ciência dos séculos XVI e XVII

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de que viviam tempos como os descritos nos livros de Daniel e Revelação”, obser-va Rattansi. Para Daniel, o conhecimento aumentaria à medida que a humanidade se aproximasse de seu final. Isso era a realidade cotidiana do século XVII e es-tava presente no forte diálogo de Junior com Lady Conway. E os dois acabaram se convertendo à seita dos quakers, no-tórios milenaristas adeptos desses ideais.

Além disso e como seria de espe-rar, Junior levou para a Inglaterra não apenas as receitas do pai, mas também amostras de seus materiais secretíssi-mos, entre estes pedaços do precioso Ludus. Um desses pedaços foi dado por

ele a Foxcroft, que o repassa a Newton, que, por sua vez, o repassa ao naturalista John Woodward. “Newton me deu um pedaço do material trazido da Alemanha pelo jovem Helmont como o verdadeiro Ludus de seu pai, que, na minha visão não é em nada diferente do achado aqui mesmo na Inglaterra”, anotou descren-te. O interesse de Newton no Ludus e outros materiais semelhantes, como o alkahest, era profundo e isso agora apa-rece de forma visível. E a caixa enviada a Oldenburg anos antes? “Boyle a tomou para si, entregando a Locke, que era um de seus homens favoritos no laborató-rio, para que ele analisasse”, conta Ana.

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mas enquanto um grupo entendia que por trás de todas as mudan-ças na natureza havia o mecanis-

mo da matéria em movimento, os outros viam essas alterações como o jogo de simpatias e antipatias secretas, agindo a distância. “Para os mecanicistas ha-via uma divisão entre o mundo inani-mado da matéria e aquele da alma e da inteligência. Já os herméticos criam que tudo possuía vida e entendimento. Em resumo: as crenças se dividiam entre os que tinham uma cosmovisão mágica e encantada, plena de acontecimentos prodigiosos, enquanto os mecanicistas optaram pela visão de um mundo sóbrio, desencantado e preocupado principal-mente com o curso cotidiano da nature-za.” As novas descobertas mostram, de forma mais contundente, semelhanças entre as duas vertentes e obrigam a re-lativizar esse quadro, explica Rattansi.

Pouco antes da Revolução Gloriosa, a ciência hermética tomou conta da In-glaterra, por conter o ideal de uma no-va filosofia natural como parte de um grande projeto reformista, o que explica a harmonia inicial entre correntes pode-rosas da revolução e os herméticos, e os puritanos foram em parte responsáveis pela divulgação dessa visão encantada e reformadora. Em tempos de guerra, fome e miséria, uma corrente que preconizava a realização de feitos para melhorar a vi-da cotidiana, a agricultura, a educação e a saúde de todos tinha grande apelo po-

pular. Logo, alguns grupos começaram a pregar reformas intensas, como o de Samuel Hartlib e seu Colégio Invisível, apoiado nas máximas do tcheco Jan Co-menius, que foi convidado a ir à Ingla-terra, onde escreveu extensamente sobre educação com ideias que combinavam, às vezes, alquimia e filosofia natural. Entre as propostas estava a criação de universi-dades em todas as cidades. Mesmo Boyle e outros que viriam a fundar a Royal So-ciety, simpatizantes da causa de Come-nius, começaram a temer pela ordem e estabilidade nesse clima de sectarismo.

A Inglaterra passou a ser invadida des-ta vez pelas novas doutrinas “sóbrias” de

1 Fachada da Royal Society, em Londres

2 Hall do segundo andar com a porta da biblioteca

3 Selo da instituição com a frase Nullius in verba: não se confia apenas nas palavras, mas nos experimentos

Descartes e de Gassendi, com um núme-ro notável de conversões à ciência meca-nicista, que passou a ser apreciada como a mais apropriada, uma grande síntese entre teologia e filosofia natural: se o uni-verso era como uma máquina, a doutrina aponta para o seu criador. “Na Inglaterra do século XVII era usual o estudo da filo-sofia natural se harmonizar com a visão mística e teológica do mundo. Daí a reve-rência de Newton, mas não apenas dele, como sabemos agora, à prisca sapientia, o conhecimento dos clássicos que ele e outros acreditavam ser verdades revela-das por Deus aos primeiros habitantes da Terra”, diz Rattansi.

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Assim, continua o professor, os achados das pesquisadoras reforçam essa perspec-tiva revisionista da revolução científica, pois, mesmo após a aceitação das expli-cações mecanicistas, os problemas que chamavam a atenção de figuras racionais como Newton e Boyle eram os mesmos que preocupavam os herméticos: a trans-mutação e o alkahest; a ação do pó de sim-patia; a influência das constelações sobre os homens e o uso de fórmulas magistrais com fins medicinais. “O que se encontra nos arquivos da Royal Society são lem-branças salutares das muitas correntes que concorreram para a revolução científica do século XVII. São lembranças de em que medida criadores da ciência moderna, como Newton, ainda usavam a tradição hermética junto à nova filosofia natural.”

“Os problemas médicos sempre lide-raram os interesses, e os médicos sempre foram uma comunidade abrangente. As pessoas que olhavam para um contexto

maior, como Isaac Newton, sempre existi-ram em menor número, mesmo nos sécu-los XVII, XVIII e XIX. Por exemplo, em 1820, havia apenas 100 pessoas nessa ilha para realizar pesquisa. A ciência não era vista como algo que pudesse resolver os problemas da tecnologia ou da medicina, por isso não havia investimento em capi-tal humano para trabalhar nessas áreas”, lembra o historiador da ciência Frank James, presidente da Royal Institution.

“Está claro que o trabalho de Newton relacionado à força e à gravitação está as-sociado às experiências com a alquimia, exatamente porque esses conceitos não estavam contemplados no pensamento filosófico daquele período. E esse é o motivo que faz com que outros autores tenham problema com as ideias de New-ton, posto que eles não necessariamente reconhecem como legítimas as origens de seus postulados. Somente Newton sabia da validade de seus estudos por-que muito se baseava nos seus trabalhos como alquimista”, analisa James. “New-ton só fez as descobertas que realizou ao lançar mão de todas as maneiras de conhecimento, o que permitiu que visse o que pensadores ‘racionais’ não conse-guiram enxergar”, concorda Rattansi.

o historiador Michael Hunter, do Birbeck College, em Londres, vê “exagero nessas afirmações”. “Al-

guns membros individuais podem até ter se aventurado na alquimia ou na busca por curas milagrosas, mas deixavam is-so de lado quando se reuniam na Royal Society, que marginalizava buscar mági-cas em detrimento do estudo da filosofia natural, da qual a instituição foi a maior propagadora publicamente”, fala Hunter. “É preciso lembrar que a Royal Society funcionava como uma entidade corpo-rativa e teve um papel fundamental em estabelecer as fronteiras do que era ou não ciência”, observa. Segundo ele, nos artigos do Philosofical Transactions tais alquimias eram tratadas de forma tan-gencial, quando se falava delas. Era um ponto de honra para o seu editor, Henri Oldenburg, que rejeitava “magias”. “En-contramos raramente investigações de laboratório ligadas à alquimia, até mes-mo porque o público intelectual da época rejeitava coisas sobrenaturais e entrar nessa seara significaria sujar a reputação de quem o fizesse”, analisa Hunter. Vale lembrar, no entanto, que as pesquisadoras

encontraram também um documento, de punho e letra de Oldenburg, listando “as experiências feitas na Royal Society da Inglaterra durante a presidência de Sir Murray”, entre as quais se encontra a que foi realizada com o alkahest.

Seja como for, o ponto mais importante nessa história que, hoje, pode passar de-sapercebido é a padronização dos modos de pensar e operar no laboratório. “Num mundo em que a alquimia trabalhava com teorias e receituários sigilosos, cada gru-po de estudiosos tinha diferentes formas de pensar e operar sobre a matéria. O tra-balho da Royal Society e de Oldenburg, então, pode ser visto como uma forma de reunir esses grupos dispersos e estabe-lecer padrões de trabalho no laboratório que pudessem ser repetidos como reza a ciência moderna”, diz Ana.

Isso está presente na correspondência do secretário com o médico herméti-co veneziano Francesco Travagino. Ol-denburg descobre que o amigo italiano convertera mercúrio comum em prata pura e desejava ter a receita. Ao enviá--la, Travagino lamenta ser incapaz de repetir o feito. A resposta de Oldenburg revela os anseios da época em encon-trar um rumo moderno para a ciência do laboratório: para ele, uma das maiores dificuldades em qualquer procedimen-to era ter como um dos raros parâme-tros a origem do material. “Assim como Boyle, Oldenburg pensava em estabe-lecer padrões claramente definidos de forma que o experimento pudesse ser reproduzido e universalmente aceito”, observa Márcia. As cartas revelam que o primeiro secretário da Royal Society, talvez, tenha sido bem mais do que um intelligencer trocando ideias com gran-des figuras como Boyle. Um imigrante sempre visto com desconfiança e ciente de sua posição como secretário, Olden-burg preferiu compartir suas ideias e possível experiência de laboratório com outros membros dessa sociedade. Com isso teria obtido, em troca, posto oficial e um salário mais digno.

Partimos, então, para um novo misté-rio, relacionado à possível ingestão de sigilosos preparados herméticos, com consequências muitas vezes dramáticas, envolvendo novamente várias figuras do cenário inglês. Uma história ainda sob investigação, mas que as pesquisadoras prometem será muito bem fundamen-tada em documentos. n

Os arquivos da Royal Society são lembranças salutares das muitas correntes que se uniram à revolução científica do século XVII

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tradição de reunir saberes

ENTREVISTA y

Vice-presidente da Royal Society, Martyn Poliakoff,

elogia cientistas brasileiros e a FAPESP, mas lamenta

a falta de conhecimento de inglês de acadêmicos

antes de a entrevista começar, o químico Martyn Poliakoff, ainda não confirmado como o analista do pó descoberto pelas

pesquisadoras brasileiras Ana Goldfarb e Márcia Ferraz (ver página 18), preferiu manter a fleuma britânica dizendo que “não estava informado” sobre o assunto e que não era “especialista nessas ques-tões”. Vice-presidente da Royal Society, ele é também seu secretário de Relações Exteriores, cargo de que a instituição se orgulha de ter “inventado” em 1723, antecipando em seis décadas a criação da mesma posição no governo britânico. Em “retaliação” ao seu silêncio, não foi feita nenhuma pergunta, como é comum na mídia, sobre seu famigerado cabelo, que diz manter “porque assim todos me conhecem”. Amigos do cientista usaram um fio da cabeleira para nele escrever a menor tabela periódica do planeta, pai-xão de Poliakoff e tema da série Perio-dic table of videos (www.periodicvideos.com), que ele mantém no YouTube, com filmetes curtos sobre os elementos que já foram vistos por quase meio milhão de pessoas em 200 países, incluindo o Brasil, que ele acaba de visitar.

Após participar da 34ª Reunião da Sociedade Brasileira de Química, em Florianópolis, em maio, ele partiu para o Rio, onde filmou no Jardim Botânico (sobre a química das árvores brasileiras), no Cristo Redentor (sobre pedra-sabão) e na praia de Copacabana (sobre areia). “Fiquei desolado ao visitar uma impor-tante universidade brasileira e desco-brir que eles estavam sem poder usar um

equipamento de pesquisa porque faltava um componente dos mais triviais, um parafuso qualquer. Algo precisa ser feito rapidamente para que coisas assim não aconteçam”, fala. “É importante identifi-car áreas de países que têm uma contri-buição única a dar, como, por exemplo, a vegetação brasileira. Algumas plantas têm componentes químicos com grande potencial medicinal e exigem equipa-mentos simples para extraí-los”, avisa.

É uma surpresa se descobrir alquimia na Royal Society? Não. Há químicos modernos que tentam misturas a partir da urina e coisas assim, o que é quase alquimia. Quando cientis-tas vão de uma linha de pensamento para outra, é preciso levar em consideração o ponto de partida. Se pensar no ponto in-telectual do qual Newton partiu, ele não começou no vácuo, mas pegou o conheci-mento que existia e o desenvolveu a partir daí. Do mesmo modo, cientistas modernos não iniciam seu posicionamento na ciência com as mesmas visões religiosas que eram correntes no século XVII. Uma das gran-des revoluções que celebramos na Royal Society é que ela desenvolveu uma críti-ca entre pares, ou seja, quando se sugere algo, você usa a opinião dos outros para ver se conseguem destruir sua ideia. Cria--se um debate científico. As pessoas esta-vam preparadas para aceitar o que tinham aprendido do passado, fossem os escritos da Bíblia, de Aristóteles, ou os escritos de antigos alquimistas. A revolução do pensa-mento foi que decidiram que podiam fazer seus próprios experimentos e interpretar

os resultados que se podia ver, em vez de dizer: “Aristóteles falou que isto está des-cendo porque algo o está empurrando para baixo” ou coisas do gênero. Se as pessoas não estivessem observando os planetas e seus movimentos por centenas de anos, Newton não teria informações por onde começar. E não importa se estavam fazen-do isso para entender o Universo ou para ler a sorte das pessoas ou o que quer que fosse. Desde que suas observações fossem razoáveis, a razão pela qual faziam aquilo não importa. Existe uma analogia moderna muito boa, a de pessoas estarem usando amostras de museus de história natural para estudar coisas como DNA e genética e todo tipo de coisas assim, mesmo com as amostras tendo sido coletadas antes que se soubesse da existência do DNA. Nos tempos da fundação da Royal Society havia muito poucas pessoas interessadas nessas questões e se era obrigado a falar com gente na Alemanha, ou na Holanda, ou qualquer outro lugar, porque só havia meia dúzia de pessoas na Inglaterra que se interessava por assuntos da ciência. Tal-vez, até menos.

Há muitos que rejeitam esse passado. Isso é um problema, porque estou cer-to de que, daqui a 100 anos, pessoas vão considerar coisas que fazemos hoje em ciência como bobagens. Meus avós nas-ceram numa época em que mulheres não votavam. Hoje isso parece absurdo, mas na época era normal. Mesmo para mim é difícil entender como as pessoas daquela época podiam ter crenças tão profundas, pois tenho a cabeça do meu tempo.

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Martyn Poliakoff: “quando estive no Brasil me senti, pela primeira vez, cidadão do mundo, e não de apenas um país”

Essas pessoas viam a ciência como forma de melhorar a vida de todos. E agora?Creio que ainda buscamos isso. Segui-mos diversos caminhos para produzir fertilizantes, alimentos, para fornecer roupas e a maioria dos materiais de construção de que precisamos, e com o aumento da população mundial essas coisas são mais e mais necessárias. O que eu acredito firmemente é que, com esse crescimento populacional e parti-cularmente com o fato de que há muitas pessoas muito pobres, preci samos en-contrar meios de prover mais benefícios para a humanidade a partir da mesma quantidade de minerais, plutônio, e as-sim por diante, para que possamos satis-fazer essas necessidades. Isso é o bom do trabalho acadêmico, que se parece com o dos jornalistas, que ficam entu-siasmados com uma história e depois, quando partem para outra matéria, fi-cam ainda mais excitados. O único modo de fazer pesquisa é manter sempre esse entusiasmo.

Como vê a ciência feita no Brasil e de que maneira o país poderia fazer par-cerias com a Royal Society?Fico bastante tocado com o entusiasmo dos cientistas brasileiros, mas igualmen-te impressionado com o nível baixo de proficiência deles em inglês, o que difi-culta o nosso diálogo com os acadêmi-cos do seu país. Mas essa paixão pela ciência é inegável, ainda mais quando recebe um bom apoio governamental de organizações como a FAPESP. No estado de São Paulo há um engajamento muito positivo em comparação ao que se faz em muitos outros países, algo importante ante as oportunidades fantásticas com a biodiversidade e os recursos naturais com que se pode criar uma ciência nova. Penso que a Royal Society pode catalisar as interações entre brasileiros e os in-gleses. O Brasil é um país jovem, cienti-ficamente falando, apesar de ser um dos mais velhos, historicamente, no Novo Mundo. Mas podemos mostrar a jovens que vêm de instituições recentes como fazemos ciência aqui, para que usem uma abordagem similar, mas focada em

novos problemas na ciência brasileira. A Royal Society se encontra numa po-sição única para juntar as pessoas para dis cutir os problemas enfrentados por nossa sociedade. Temos a tradição e o status para reunir pessoas que talvez não o fizessem, e assim podemos trazer as melhores mentes no mundo para discutir o que for importante, os problemas de nosso tempo, e eu sei que não só vamos continuar a fazê-lo, como o faremos de forma mais eficiente no futuro. Cheguei no Brasil uma semana antes da Rio+20 e durante as discussões com os brasileiros reforcei a sensação de que, pela primeira vez, me senti cidadão do mundo, não de um país em particular.

O que é o seu grupo de “química verde”? Comecei com um estudo de fluidos super-críticos, que podem ser usados como sol-ventes mais limpos em reações químicas, bem antes de se falar em “química verde”, na década de 1980, e vi uma grande ja nela

de oportunidades. Creio que o Brasil é um campo perfeito para ela. A ênfase é na criação de uma forma “mais limpa” de química, que não cause os mesmos pro-blemas ambientais, para que se preserve o ambiente. Ao mesmo tempo, ela exami-na como se pode usar biomassa e esses materiais “limpos” para gerar substân-cias químicas. Temos um bom exemplo na Braskem. Especialmente em países desenvolvidos, como o Reino Unido, a química tem uma imagem muito ruim. É possível mostrar uma química que po-de beneficiar a todos. Tenho a impressão de que, apesar de a ciência manter uma visão progressista nos últimos 350 anos, isso não impede as pessoas de repetir o que se faz há milhares de anos: os mais velhos dizerem que as coisas eram melho-res na sua infância. Eu, ao contrário, acho que as perspectivas que a ciência traz são muito melhores. Temos que ser otimistas, porque, se falharmos, não há futuro para a humanidade. n carlos haagjo

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Ensinar ciência é preciso

Nos últimos 20 anos, o bioquímico Bruce Alberts tem ocupado posições de destaque em instituições acadêmicas dos Estados Unidos que o afastaram um pouco da rotina de pesquisador acostumado a estudar proteínas e genes e canalizaram seus esforços para outra de suas paixões: o ensino e a divulgação de ciências. O início dessa guinada profissional foi em 1993,

EntREVIStA

marcos Pivetta e Fabrício marques

quando aceitou o convite para assumir a presidência da Aca-demia Nacional de Ciências (NAS, na sigla em inglês) em Wa-shington. O novo emprego obrigou-o a fechar seu laboratório na Universidade da Califórnia em San Francisco (UCSF), onde estava desde 1976. Em princípio, a temporada na capital ame-ricana deveria durar seis anos. Mas o fascínio pelo trabalho à frente da NAS levou-o a permanecer no cargo por 12 anos. Alberts foi um dos responsáveis pela criação e implementa-ção em 1996 dos National Science Education Standards, um conjunto de diretrizes para o ensino de ciências adotado pela escola primária e secundária dos Estados Unidos. “Ensinamos ciência na escola como se fosse um dogma. Não explicamos de onde vêm os fatos e as ideias. O aluno é estimulado apenas a memorizar palavras”, afirma o bioquímico.

Em 2005 Alberts deixou a chefia da NAS e voltou à UCSF na condição de professor emérito. Três anos mais tarde um outro convite empurrou-o novamente para Washington, onde assumiu o cargo de editor-chefe de uma das mais respeita-das revistas científicas, a semanal Science. Dessa vez ele não trocou em definitivo a costa oeste pela vizinhança da Casa Branca. Desde 2008 passa em geral uma semana por mês no escritório central da Science na capital americana e faz o resto do trabalho em San Francisco, por e-mail.

IdAdE 74 anos

ESPEcIAlIdAdE Bioquímica e política para ensino de ciência

FoRmAção Universidade Harvard (graduação e doutorado)

InStItUIção Professor emérito da Universidade da Califórnia em San Francisco e editor-chefe da revista Science

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O bioquímico, que também exerce a função de enviado para assuntos de ciên-cia do presidente Barack Obama, esteve no Brasil entre o final de julho e o início de agosto. Participou de um congresso no Rio de Janeiro, visitou universidades e deu palestras ao público. Em São Paulo fez uma concorrida apresentação na se-de da FAPESP. Nesta entrevista Alberts fala do trabalho na Science, do ensino de ciências e dos desafios da excelência em pesquisa.

O que torna um artigo científico inte-ressante para ser publicado na Science?Há tipos extremamente diferentes de bons papers [artigos científicos]. Eu, por exemplo, publiquei a maior parte dos meus trabalhos em bio-química no Journal of Biolo-gical Chemistry porque eram artigos que mostravam, pas-so a passo, a purificação de proteínas. Há muita ciência importante que não é apro-priada para Science ou Na-ture. Os artigos para essas grandes revistas são raros, devem ser o resultado final de uma soma de passos e in-teressar a um grande número de cientistas. Devo ter publi-cado uns 200 papers e talvez uns três ou quatro na Nature ou Science. Acho que todos os outros papers eram bons, mas eram um passo rumo ao conhecimento. A biologia é complexa. Você progride ca-racterizando uma proteína de cada vez. Quando você publica, não sabe como essas coisas vão se somar e resultar em algo. Os papers da Science e da Nature devem ter apelo para muitas pessoas e tratar de algum conceito fundamental – e não apenas da descoberta de uma nova proteína. Na Science aceitamos 5% dos papers que são submetidos. Há muitas pessoas que nos submetem papers totalmente inapro-priados. Há muita pressão para publicar em revistas de alto impacto.

A publicação de papers em revistas de alto impacto pode ser uma boa ma-neira de avaliar a excelência de uma pesquisa?Para mim, usar o fator de impacto das revistas como um critério de medida é

ridículo. Ele mede o impacto da revista. Precisamos de algo que dê uma ideia do impacto dos papers. É sempre pos-sível publicar um artigo que nunca será citado por alguém numa revista com alto fator de impacto. Gostaria que as pessoas olhassem mais para o número de downloads de um artigo. Ele dá uma noção muito mais rápida do interesse provocado por um trabalho. É muito fácil medir isso hoje em dia. Além dis-so, os índices de citação de artigos em alguns campos do conhecimento, como câncer e imunologia, podem ser altos, as pessoas citam umas às outras, mas a maioria dos trabalhos publicados é um lixo. Todo paper tem o seu lugar ade-quado para ser publicado dependendo

do seu conteúdo. Na Inglaterra há hoje professores de biologia lendo as revistas científicas e separando o que eles acham que é valioso. Apoio esse tipo de inicia-tiva. Não se deve preocupar muito com a revista onde se publica. Precisamos de maneiras mais eficientes de reconhecer bons artigos. Eu apoio o sistema ado-tado nos Estados Unidos. Quando um pesquisador está para ser promovido ou em via de ser avaliado, pedem para ele separar os cinco trabalhos mais im-portantes que fez. Essa é sua contribui-ção à ciência. Ninguém pede todos os trabalhos do candidato. Dessa forma, tenho condições de ler os cinco traba-lhos e avaliar o candidato. Mas não é possível fazer isso se me entregam 80

artigos. Nesse caso, tudo o que posso fazer é ver onde os artigos foram pu-blicados. Harold Varmus [Prêmio No-bel de Medicina de 1989] está tentando mudar essa mentalidade nos National Institutes of Health (NIH). O Instituto Howard Hughes e vários outros já uti-lizam essa outra forma de avaliar. Acho que é muito importante pensarmos em como avaliamos na ciência. Tenho um amigo físico da Academia Francesa de Ciências que está na China dando aulas e que ficou surpreso em ver que as pes-soas lá estão publicando muitos papers, mas os trabalhos são de pouco valor. Eles fazem isso porque há pressão para publicar muitos trabalhos. Não estão in-teressados em fazer boa ciência, mas em

ter o maior número possível de papers publicados. Que-rem publicar muito. Ficam fazendo sempre a mesma coisa, mudam um detalhe no trabalho, mencionam coi-sas sem importância. Seria bom o Brasil ter um sistema mais sofisticado para medir a produção científica, algo que faça sentido. Não façam o que a China faz.

Qual é a sua impressão da ciência brasileira?Já estive várias vezes no Rio de Janeiro. Mas, antes des-ta visita, só tinha estado em São Paulo 40 anos atrás. Es-tive no Rio agora num con-gresso de biologia celular por cerca de uma semana e visitei a Universidade Fede-

ral do Rio de Janeiro (UFRJ). Em São Paulo estive na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universi-dade de São Paulo (USP). Conheço tam-bém a produção científica brasileira de artigos na Science e em outras revistas. A ciência brasileira está realmente cres-cendo já há algum tempo. A Embrapa, por exemplo, é famosa mundialmente por desenvolvimentos na área de agri-cultura. No setor de energia, o Brasil é o melhor na produção de etanol de cana-de-açúcar. Em muitos aspectos, o país está indo muito bem. A produção de vacinas na Fiocruz, no Rio de Janei-ro, onde estão construindo uma nova fábrica, é realmente impressionante. Felizmente, vocês têm bons líderes na

todo aluno de doutorado deveria escrever um resumo de sua tese que sua avó entendesse

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PESQUISA FAPESP 199 | 31

ciência ocupando posições importan-tes. Encontrei reitores de universidades que me impressionaram. Vocês têm um bom sistema de pesquisa. Estive na Ín-dia, por exemplo, onde os reitores das universidades estaduais são apontados pelo governador, que muda a cada cinco anos. Eles não são escolhidos de manei-ra correta. Claro que há problemas no Brasil. Os pesquisadores conseguem um emprego e ficam na mesma univer-sidade para sempre, às vezes sem um sistema de avaliação. Fiquei sabendo que a Unicamp encontrou uma fórmu-la de contornar esse problema. É uma universidade nova, que pode contra-tar pessoas por curtos períodos, como 12 horas por semana. De todo modo, o Brasil tem uma grande capacidade, as instalações estão sendo aprimoradas e muitas coisas estão acontecendo. Há muita cooperação entre os laboratórios e os jovens estudantes são entusiasma-dos pela ciência.

Depois de um debate de meses sobre o risco de fomentar o bioterrorismo, Nature e Science publicaram recen-temente os artigos de dois grupos de pesquisadores que haviam criado ver-sões modificadas do vírus da chamada gripe aviária (H5N1) que poderiam ser transmitidas pelo ar de um mamífero a outro. O senhor acha que a publicação dos papers foi uma boa solução para o impasse?Nesse caso acho que foi. Não acredi-to que o vírus seja assim tão perigoso. Houve muita confusão no início de tu-do. Foi um teste de estresse para o sis-

tema de publicação e vimos que ele não funcionou. Agora temos que encontrar um sistema melhor. Nesse caso havia dois problemas. Um era fácil de resolver. Era preciso passar algum tempo com os autores dos trabalhos para entendê-los melhor. O outro é que não seria real-mente possível evitar que a informação se tornasse pública. O vírus era originá-rio da Indonésia e havia cientistas desse país que tinham a informação sobre a mutação relatada nos papers. Precisa-mos pensar num sistema internacional que cuide desse tipo de situação. Espero que alguém esteja fazendo isso. Tenho certeza de que no futuro, daqui a cinco anos, haverá um caso sério desse mes-mo tipo. Precisamos estar prontos para isso. O pessoal dos NIH, da Academia Nacional de Ciências, os que lidam com terrorismo, todos acreditam que isso um dia vai acontecer.

Qual sua opinião sobre as publicações que adotam o sistema de accesso aberto e gratuito a todos os artigos científicos?Há vários modelos de publicação. Há o chamado gold open access. Nesse sis-tema o pesquisador paga pelo custo de publicação do artigo numa revista e o acesso ao trabalho é imediato e gratuito a todos. O problema é que os cientistas de alguns países, como os da África do Sul, não podem pagar para publicar seus artigos. Então esse modelo não vai ser bom sempre nem para todos os casos. Esse sistema também não funciona para Nature, Science e outras revistas muito seletivas. Se adotássemos esse mode-lo, o custo para publicar um artigo na

Science seria algo como US$ 20 mil. Na revista temos de analisar 20 artigos para escolher apenas um. Isso tem um custo. Temos 23 cientistas de alto nível, que são editores da Science e trabalham na análise dos artigos. Alguém tem de pa-gar o salário deles. Há, no entanto, um outro modelo que, acho, a Science po-derá apoiar. É o green open access. Por esse sistema, todos os artigos se tornam gratuitos e abertos seis meses após a pu-blicação. O Wellcome Trust da Inglater-ra está apoiando esse modelo, que nos permite vender assinaturas para as bi-bliotecas e não ter de cobrar dos autores para publicar. Além disso, haveria ainda maneiras de tornar o acesso imediato e gratuito para os países em desenvolvi-mento. Quando era presidente da Aca-demia Nacional de Ciências, foi isso o que fizemos.

O que o senhor achou do boicote que alguns cientistas defenderam contra a editora científica Elsevier?O problema da Elsevier é que você tem duas alternativas: compra acesso a todas as revistas ou a nenhuma delas. Para ter as revistas que você quer, tem de com-prar junto as que você não quer e aí fica caro. Isso não é razoável. A questão é a seguinte: se instituirmos modelos como o gold ou green open access, muitas revistas desaparecerão. Elas são tão pobres que ninguém se dará ao trabalho de esperar seis meses para lê-las no caso do green access. Elas serão substituídas por re-vistas como a PLoS One. Tenho certeza de que a Elsevier tem muitas revistas nessa situação.

Palestra de Bruce Alberts na FAPESP: formas de medir o impacto da ciência

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32 | Setembro De 2012

Por que o senhor vai deixar a Science em março do próximo ano?Tinha um acordo para ficar um período de cinco anos. Devo sair em março ou abril assim que tivermos um substituto. Estou ficando velho. Não quero ficar mais cinco anos na Science. Moro em San Francisco e tenho de ficar uma semana por mês em Washington [para editar a revista]. Fora isso, há muito trabalho por e-mail.

Mudando de assunto, o senhor acha que os cientistas são bons comunicadores da ciência?Alguns são. Mas eu e muitas pessoas re-clamamos que eles escrevem resumos dos seus trabalhos que ninguém entende. Sou um biólogo e leio resumos de arti-gos de biologia que eu não entendo, onde encontro pala-vras com três letras que eles não explicam o que é. Isso é desapontador. Os cientistas são tão estreitos e não per-cebem que ninguém entende todas as palavras. Temos de fazer um trabalho melhor e aprimorar a educação cien-tífica. A ideia não é minha, mas eu apoio a proposta de que todo aluno de doutorado tenha de escrever um resumo de duas páginas de sua tese que sua avó possa entender antes de ser aprovado. Essa ideia é sensacional. Os cien-tistas precisam sair do seu mundo. Estão fazendo isso em algumas universidades, como na de Manchester, no Reino Unido. Harvard não está fazendo isso... Não acho que o em-preendimento científico possa sobrevi-ver se a comunicação não for boa. O pú-blico tem de entender o que é a ciência para poder apoiá-la. Ensinamos ciên-cia na escola como se fosse um dogma. Não explicamos de onde vêm os fatos e as ideias. O aluno é estimulado apenas a memorizar palavras. Tenho tentado mudar na revista Science como vemos a educação científica, redefini-la. Nos-so primeiro objetivo é fazer as pessoas entenderem a ciência, mostrar de onde vem o conhecimento, fazê-las pensar como um cientista e aprender a procu-rar por uma evidência científica. Isso é importante para todos. É, por exemplo, importante para as pessoas entenderem

o que os cientistas estão dizendo sobre o aquecimento global. De onde vem esse conhecimento? Na Academia Nacional de Ciências publicamos a cada 10 anos um livro sobre a evolução da ciência e o criacionismo. Ficamos surpresos ao descobrir que adultos com formação uni-versitária não viam nenhuma diferença entre os dogmas da ciência, entre o que os cientistas acreditam, e os dogmas dos pastores, dos que acreditam no criacio-nismo. As pessoas achavam que podiam escolher qualquer um dos dois tipos de dogma, o da ciência ou o do criacionis-mo. As pessoas não entendiam como era feita a ciência, como se testava o conhe-cimento. Elas nunca aprenderam isso. Mudar isso será uma tarefa enorme.

Qual é o tamanho da ameaça do cria-cionismo nos Estados Unidos?É um problema que nunca desapare-ce. Os Estados Unidos são um país sur-preendentemente religioso comparado a outras nações. As pessoas vão à igreja todo domingo e ouvem os pregadores falarem como o mundo foi criado em dias e coisas assim. O problema real é que eles tentam impedir o ensino de ciências nas escolas. Mesmo nos lugares onde os criacionistas não podem im-pedir legalmente o ensino de ciências, os professores se sentem intimidados, às vezes pelos pais dos alunos. Temos de continuar de olho nisso. As mudan-ças climáticas têm sido tratadas como se fosse o criacionismo. Isso é ridículo.

Não entendo isso. O criacionismo afeta sua visão pessoal, é muito emocional. As mudanças climáticas não afetam esses mesmos sentimentos.

Quem são os responsáveis por essa si-tuação?Nos Estados Unidos, todo mundo que faz faculdade frequenta uma ou duas disciplinas de ciência. Essa é a última chance para as pessoas aprenderem sobre o tema. Mas a ciência não é en-sinada da forma que defendo. Em úl-tima instância, não se ensina a natu-reza da ciência. Por isso criamos na revista Science um concurso para en-corajar inovação e excelência no ensi-no de ciências na universidade. Todo

mês publicamos o artigo de um grupo vencedor na se-ção IBI (Inquiry-Based Ins-truction). Espero que esse tipo de iniciativa se espa-lhe por outros lugares e seja imitado.

Por que o americano médio não acredita que as mudan-ças climáticas sejam resulta-do das atividades humanas?O leitor americano está su-jeito a todo tipo de propa-ganda de grandes compa-nhias petrolíferas e de outros setores. Ele está realmente confuso. Fiquei surpreso que não havia nada de importan-te no fim daquele escândalo que envolveu o vazamento dos e-mails de cientistas da Inglaterra, no chamado cli-

magate. Há muito dinheiro de pessoas ricas nos Estados Unidos que tentam convencer o público de que as mudanças climáticas são uma invenção dos cientis-tas. Isso não tem nada a ver com a ques-tão. É como a propaganda que faz você comprar uma sopa ou roupa que você não quer. Eles são muito inteligentes. No caso das mudanças climáticas, con-seguiram vender essa ideia de que elas não existem para os americanos. Mas acho que isso está mudando. Esse caso mostra a vulnerabilidade da sociedade quando as pessoas não entendem como é feita a ciência. É por isso que sou a fa-vor da educação científica. As crianças crescem num mundo complexo. Todo mundo quer obter o voto delas ou fazê-

Ensinamos ciência na escola como se fosse um dogma. não explicamos de onde vêm os fatos e as ideias

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PESQUISA FAPESP 199 | 33

-las comprar algo. Vejo a educação em ciência como o centro do progresso da civilização em todo o mundo.

Alguns estudiosos das mudanças climá-ticas disseram que era difícil comunicar ao público os resultados das pesquisas. A seu ver, não houve também uma falha dos próprios cientistas?As mudanças climáticas são um proble-ma de longo prazo. As pessoas tendem a pensar no que estarão fazendo no próxi-mo ano, não daqui a 50 anos. Os políticos também pensam em questões de cur-to prazo, sempre de olho nas próximas eleições. Temos de aprender a ser mais efetivos na comunicação para que a ver-dade seja entendida. Nem todo cientista é capaz de comunicar os re-sultados das pesquisas. Mas certamente precisamos dos que sabem fazer isso. Preci-samos que a imprensa seja engajada. Mas o problema é que ela sempre tem que ouvir os dois lados. Então aparece um especialista que acredita nas mudanças climáticas e outro que não acredita. Mas o peso dessas posições é en-ganador, pois quase todos os cientistas estão convencidos de que as mudanças climá-ticas são reais. A imprensa poderia ouvir os dois lados para discutir o que fazer para evitar as mudanças climáti-cas, mas não para discutir se elas existem.

Além de publicarem arti-gos de pesquisadores, Science e Natu-re também produzem reportagens sobre ciência. Qual a importância das seções jornalísticas nessas revistas?Acho que essa é melhor parte das re-vistas. O jornalismo desempenha um papel crítico. Temos 100 mil assinantes na Science e muitos deles não são cien-tistas. Esse público não consegue ler a parte de trás da revista [onde estão os artigos mais técnicos dos cientistas], mas consegue ler a parte da frente [onde estão as seções jornalísticas]. A maioria dos cientistas também não consegue ler papers que não são de sua área de atuação. Por isso publicamos notícias, problemas da ciência, o que está ocor-rendo em termos de política científica.

Essas questões são importantes para uma comunidade científica. Acho que temos de ter muito mais gente lendo essa parte da Science. Com os iPhones, tablets e o mundo da publicação ele-trônica, podemos atingir esse objetivo. Temos aplicativos de leitura para esses dispositivos. Poderíamos ter um sistema de assinaturas baratas das páginas ini-ciais da Science para pessoas dos países em desenvolvimento que tivessem esse tipo de aparelho. Precisamos de inicia-tivas assim em todo o mundo

Desde 2009 o senhor é um enviado es-pecial do presidente Obama para as-suntos de ciência. O que o senhor faz nessa função?

Ninguém sabia o que o cargo queria di-zer. É um posto sem remuneração. Eles pagam o meu transporte. Fui mandado primeiramente para a Indonésia. Estive lá quatro vezes. Basicamente, o que eu faço é conectar os cientistas desses paí-ses e levar a eles algumas boas práticas da ciência. A Indonésia fornece poucas bolsas de pesquisa e há zero de com-petição interna pelo financiamento em ciência. Junto com o Banco Mundial e a Academia de Ciências da Indonésia, es-tamos apoiando a criação de uma agência nacional para financiar a pesquisa. Hoje o dinheiro que há para ciência vai dire-tamente para os institutos de pesquisa e os jovens pesquisadores, com novas ideias, não têm chance de competir por

essa verba. Também promovemos work-shops em que juntamos jovens cientistas americanos e os futuros líderes da ciên-cia da Indonésia.

Por que o senhor foi mandado especi-ficamente para a Indonésia?O programa foi criado para países de maioria muçulmana, com os quais que-ríamos construir um novo tipo de relação.

O senhor gosta de dar uma palestra in-titulada “Aprendendo com o fracasso”. O senhor acha que os cientistas estão preparados para aprender com os erros?Todo nós fracassamos. A maioria dos ex-perimentos dos cientistas não dá certo. Essa questão tem novamente a ver com o

entendimento que as pessoas têm sobre como a ciência é feita. Meu ponto central é que, na vida, todo mundo er-ra. As pessoas bem-sucedidas aprendem com os fracassos, não cometem o mesmo er-ro duas vezes e tentam fazer as coisas de um jeito melhor. Quando nos tornamos mais velhos, ficamos mais sábios porque já erramos muito e aprendemos com nossos er-ros. Acho que essa é uma boa maneira de pensar. Nos Es-tados Unidos, as pessoas ini-ciam três ou quatro negócios que não dão certo até que en-contram o sucesso na quinta empreitada. Fracassar não é uma vergonha. Um bom fra-casso pode ser útil, pode não ser uma coisa ruim. Em ou-

tros países o fracasso pode não ser en-carado dessa forma.

Por que o senhor costuma dizer que aprendeu muito ao escrever o seu livro--texto The molecular biology of the cell? Ao escrever um livro, ocorre a mesma coisa que acontece quando se ensina. Você tem de ler muito, pensar e sair do seu dia a dia. Essa experiência foi mui-to importante para as minhas pesqui-sas. Os cientistas às vezes têm um foco muito estreito e não aproveitam todas as oportunidades da carreira. Mas é preciso haver um equilíbrio entre ensinar e fazer pesquisa. Acho que quatro horas de aula por semana é razoável. Assim você tem tempo para fazer pesquisa. n

o jornalismo é a melhor parte da Science e desempenha um papel crítico na revista

Page 34: Pesquisa FAPESP 199

34 z setembro De 2012

Dispêndios estaduais em pesquisa e desenvolvimento revelam

fosso entre São Paulo e as outras unidades da federação

política c&t inveStimento y

Um país, dois modelos

os investimentos dos estados brasilei-ros em pesquisa e desenvolvimento (P&D) cresceram nos últimos anos, mas persiste um forte contraste en-tre a realidade de São Paulo, que

ostenta um constante e significativo volume de dispêndios em P&D em suas três universidades estaduais, e as demais unidades da federação, com sistemas universitários menos desenvolvidos sustentados por investimentos ainda modestos. Um levantamento divulgado pelos Indicadores Nacionais de Ciência e Tecnologia, do Ministé-rio da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), é revelador desse fosso. A compilação de dados comparou os dispêndios em P&D de instituições estaduais de ensino superior. Dos R$ 4,5 bilhões investidos pelo conjunto de estados brasileiros em 2010, São Paulo respondeu por quase R$ 3,9 bilhões, ou 86% do total. “São Paulo é um estado que investe muito em ciência e tecnologia quando comparado com o restante do país”, observa Mar-co Antonio Zago, pró-reitor de Pesquisa da Uni-versidade de São Paulo (USP). “Isso é resultado de uma política de estado que teve início há muito tempo, e não da estratégia de um governador”, afirma. Em segundo lugar no levantamento apa-

rece o Rio de Janeiro, com dispêndios estaduais em P&D das instituições de ensino superior na casa dos R$ 208 milhões em 2010, seguido pelo Paraná (R$ 183 milhões), Bahia (R$ 68 milhões) e Santa Catarina (R$ 46,9 milhões).

Um total de 9,57% do Imposto sobre Circula-ção de Mercadorias e Serviços (ICMS) arreca-dado em São Paulo é destinado para a manuten-ção das três universidades estaduais e se distri-bui de acordo com o tamanho de cada uma das instituições, sendo 2,344% para a Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2,195% para a Uni-versidade Estadual de Campinas (Unicamp) e 5,029% para a USP. “Esses recursos, gerenciados de forma autônoma, garantiram uma base muito forte para as universidades estaduais, propiciando laboratórios de qualidade, docentes em regime de dedicação exclusiva e técnicos de pesquisa”, afirma Zago, que faz uma ressalva: “Embora essa distribuição seja feita segundo o tamanho da ins-tituição e não de forma competitiva, os recursos da FAPESP, investidos em projetos de pesquisa e bolsas, cumprem essa finalidade. Os pesquisa-dores têm de submeter projetos e são avaliados. E os projetos de qualidade é que são contempla-dos”, afirma o pró-reitor. Em 2010, o desembolso

Fabrício Marques

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pESQUiSa FapESp 199 z 35

no EStado dE São paUlo (em R$)

o engajamento dos estados em p&d

a contribuição de São paulo

por EStado (em milhões de R$)

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3,8 bilhões

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2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

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2

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estimativa dos dispêndios em pesquisa e desenvolvimento (P&D) das instituições estaduais de ensino superior em 2010

*Faculdade de medicina de são José do rio preto

fonte InDIcaDores nacIonaIs De cIêncIa e tecnologIa/mctI

evolução dos dispêndios em P&D das instituições estaduais de ensino superior (em bilhões de R$)

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RJ208

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36 z setembro De 2012

da FAPESP com bolsas e apoio à pesquisa foi de R$ 780 milhões, pouco mais de R$ 100 milhões superior ao patamar de 2009.

A USP, que é a universidade latino-americana mais bem colocada em rankings internacionais, respondeu sozinha por quase a metade de todos os recursos investidos em P&D nos sistemas uni-versitários estaduais, de acordo com os Indica-dores do MCTI. Foram R$ 2,2 bilhões em 2010. Já a Unicamp alcançou R$ 1 bilhão, enquanto a Unesp recebeu R$ 655 milhões. A Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto aparece na tabela do MCTI com R$ 7,7 milhões aplica-dos em 2010. A metodologia adotada pelo MCTI abrange os gastos com pós-graduação, atividade das universidades identificada com pesquisa. O cálculo é feito relacionando-se os recursos exe-cutados pelas instituições com o número de do-centes envolvidos com pós-graduação. Despesas com ensino, técnicos, manutenção de instalações e aposentadorias ficaram fora da conta do minis-tério, pois não são consideradas dispêndios em P&D. Pesquisa e desenvolvimento, na definição da Organização para a Cooperação e Desenvol-vimento Econômico (OCDE), é a categoria “que se refere ao trabalho criativo realizado de forma sistemática com o objetivo de aumentar o estoque de conhecimento e usá-lo para desenvolver novas aplicações”. Os dispêndios em P&D são a parcela dos recursos investidos em ciência e tecnologia que, por meio da pesquisa básica e aplicada, ajuda a capacitar os países para a inovação.

continUidadEA pró-reitora de Pesquisa da Unesp, Maria José Giannini, observa que uma das vantagens do mo-delo de São Paulo é a sua garantia de continui-dade. “Evidentemente há muitos pesquisadores altamente competentes em universidades fede-rais, mas é comum que o trabalho deles seja im-pactado pelo contingenciamento de verbas para a pesquisa. Nas universidades estaduais paulistas nós temos amplas condições de estimular os pes-quisadores a apresentarem projetos e buscarem recursos, pois a FAPESP sempre prestigia quem tem mérito”, diz ela. Segundo dados da Unesp, nos últimos quatro anos o número de projetos regulares e temáticos aprovados na FAPESP do-brou em relação ao quadriênio anterior. O total de recursos captados pela Unesp em 2011 foi de R$ 151 milhões, diante de R$ 70 milhões em 2007. No caso da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o aumento na captação de recursos foi de 230% no quadriênio.

Ronaldo Pilli, pró-reitor de Pesquisa da Unicamp, enfatiza que as universidades estaduais paulistas têm cumprido um papel importante ao fornecer quadros para o desenvolvimento do país. “Não causa surpresa que os números mostrem uma predomi-

nância de investimentos em São Paulo. Mas seria bem-vindo que as empresas ampliassem sua participação no setor de pesquisa e desenvolvimento, pois uma base de recursos humanos nós temos a oferecer”, afirma.

Ainda assim, São Paulo é um ca-so único de estado brasileiro em que o investimento em P&D das empre-sas supera os investimentos públi-cos (62% do total, de acordo com os Indicadores de ciência, tecnologia e inovação em São Paulo, publicado em 2011 pela FAPESP). Da mesma for-ma, o dispêndio público estadual em P&D em São Paulo, de R$ 3,7 bilhões em 2008, supera o do governo federal no estado (R$ 2 bilhões). Essa composição é bem diferente da observada no Brasil, em que os inves-timentos federais em P&D são majoritários (veja quadro na página ao lado).

No caso da Unicamp, Pilli destaca o papel da FAPESP, responsável por 40% dos recursos para a pesquisa captados pela universidade. “Aumentamos a captação de recursos para pesquisa de R$ 220 milhões em 2007 para R$ 350 milhões em 2011. Os recursos da Fundação cresceram de R$ 80 milhões em 2007 para R$ 131 milhões no ano passado. No mesmo período, os recursos do CNPq foram redu-zidos e os da Capes cresceram de R$ 52 milhões para R$ 61 milhões”, afirma.

A predominância do investimento paulista não ofusca o fato de que vários estados ampliaram seus investimentos em ciência e tecnologia num pas-sado recente. Em 2008 o Rio de Janeiro ampliou para 2% o quinhão da arrecadação de impostos destinado ao orçamento da Fundação Estadual

Vários estados ampliaram o investimento em ciência e tecnologia no passado recente

Dispêndio total em P&D em relação ao respectivo Pib – brasil, estado

de São Paulo e países selecionados – 2010 ou ano mais recente

Panorama internacional

FontE ocDe, mctI, InDIcaDores Fapesp % Pib

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São Paulo

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0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5

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pESQUiSa FapESp 199 z 37

de Amparo à Pesquisa, a Faperj. “Com isso, e tam-bém graças ao aumento da arrecadação do estado, o orçamento da Faperj saltou de R$ 100 milhões para R$ 300 milhões”, diz o secretário estadual de Ciência e Tecnologia, Luiz Edmundo Costa Leite. Segundo o levantamento do MCTI, os dis-pêndios em P&D do governo do Rio em suas duas universidades, a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf ) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), foram de R$ 208 milhões

em 2010, mais do que o dobro do que os R$ 100 milhões contabilizados em 2005. A Uerj se destaca, com dois terços dos dispêndios em 2010. O número de docentes da Uerj, cerca de 1.800, chega perto do contingente de professores da Unicamp, ainda que o número de alunos de pós-graduação (2.800) seja uma décima parte do registrado na univer-sidade paulista. “Com o aumento da arrecadação do estado, houve um esforço para recuperar a ca-pacidade das universidades estaduais”, diz Leite.

articUlaçãoA maioria das universidades públicas do Rio de Janeiro é federal, como a Federal do Rio de Janei-ro (UFRJ), a Federal Fluminense (UFF), a Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e a Federal do

Estado do Rio (Unirio). “Mas as federais e as es-taduais atuam articuladas. E a Faperj investe boa parte de seus recursos em projetos das universi-dades federais. Temos apenas um edital, voltado para equipar laboratórios, que é aberto apenas para as estaduais”, diz o secretário. Ele afirma que uma circunstância histórica moldou o sistema universi-tário fluminense da forma como ele é conhecido. “O Rio de Janeiro foi a capital do país por 200 anos e várias universidades foram criadas pelo governo fe-

deral. Outras instituições de pesquisa de grande tradição também surgiram no Rio, como a Fundação Oswal-do Cruz. Já em São Paulo, o crescimento do sistema de pesquisa dependeu de um esforço do estado e, com seu crescimento econômico, as universidades estaduais se consolidaram”, compara.

Minas Gerais tem uma trajetória parecida com a do Rio. Em 2010, o estado investiu R$ 10,2 mi-lhões em pesquisa e desenvolvimento em duas instituições, a Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). O montante, embora ainda modesto, mais do que triplicou em relação aos R$ 2,9 milhões contabilizados em 2007, o primeiro ano com registro de investimentos se-gundo o MCTI. O secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Minas Gerais, Narcio Rodrigues, explica que esse crescimento é fruto da decisão, tomada em 2007, de fazer valer a regra legal de investir 1% da arrecadação tribu-tária em ciência, por meio da Fundação de Ampa-ro à Pesquisa de Minas Gerais. “Nossa estratégia tem sido a de garantir que não haja retrocesso no cumprimento dessa norma e de alavancar os recursos fazendo parcerias com o governo federal e a iniciativa privada, que participam com con-trapartidas”, afirma Rodrigues. Ele explica que as universidades estaduais são apenas duas por-que, no passado, a tarefa de promover o sistema universitário mineiro foi abraçada pelo governo federal. “Nosso sistema tem 14 instituições de ensino superior, sendo 12 federais, mas funciona-mos como um sistema articulado”, diz. A maior delas é a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Nossas universidades têm forte atua-ção no desenvolvimento regional. A Unimontes, que é a principal instituição estadual, é bastante ativa na região mais pobre de Minas Gerais. Esse sistema regionalizado é importante para o desen-volvimento do estado, mas, claro, o ideal seria mesclá-lo com o vigente em São Paulo, onde o governo estadual abraçou a missão de promover a educação superior e consolidou instituições de peso nacional”, diz Narcio Rodrigues. n

no estado de São paulo, esforço em p&d das empresas supera o total de investimentos públicos

composição do dispêndio público em Pesquisa e Desenvolvimento no estado

de São Paulo, no brasil, e no brasil sem o estado de São Paulo – em %

Dispêndios federais e estaduais em P&D

FontE InDIcaDores De c,t e I em são paulo, 2010

São Paulo brasil brasil sem São Paulo

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60

40

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38 z Setembro De 2012

Workshop sobre extremos do clima expõe o desafio de

converter informação científica em prevenção de desastres

MUDANçAS ClIMáTICAS y

Risco calculado

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PESQUISA FAPESP 199 z 39

Inundação em parque de diversões de Nova Orleans após a passagem do furacão Katrina, em 2005: tragédia despertou a consciência norte-americana

é praticamente certo – a certeza, no caso, chega a 99% – que vá ocorrer até 2100 um aumento na frequên-cia de dias e noites quentes em diferentes regiões do planeta. Já em relação à intensidade das chuvas, que efetivamente recrudesceram em diversas áreas,

ainda há dúvidas se o fenômeno é global – os dados disponí-veis indicam que as previsões nessa direção têm um grau de confiança de 66%. Divulgado em março passado, o Relatório Especial sobre Gestão dos Riscos de Extremos Climáticos e Desastres (SREX, na sigla em inglês) apontou essas tendên-cias, entre várias outras, com base no conhecimento científi-co recente compilado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Seus resultados foram discu-tidos numa reunião realizada no auditório Moise Safra, no Centro de Convenções Albert Einstein, em São Paulo, entre os dias 16 e 17 de agosto, na qual pesquisadores de vários paí-ses também debateram estratégias para o gerenciamento dos impactos e para levar o conhecimento aos tomadores de deci-são. O workshop “Gestão dos riscos dos extremos climáticos e desastres na América Central e na América do Sul – o que podemos aprender com o Relatório Especial do IPCC sobre extremos?”, foi promovido pela FAPESP e pelo Instituto Na-cional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

“Ficou claro nas discussões que a interface dos cientistas com gestores e comunidades locais é um ponto crítico. Há muito ruído nessa comunicação”, disse à Agência FAPESP o climatologista José Marengo, coordenador do workshop e membro do comitê organizador do SREX. Talvez a recomen-dação mais importante extraída dos debates tenha sido essa: é preciso estabelecer novos canais de diálogo entre cientistas e autoridades para enfrentar os riscos de desastres resultantes de eventos climáticos extremos e reduzir os prejuízos que eles causam. A necessidade de participação mais ativa dos governos em decisões relacionadas a questões como vulnerabilidade às mudanças climáticas e estratégias de adaptação também foi destacada pelos pesquisadores presentes no workshop. “Os governos se mostram pouco preparados e continuam sen-do pegos de surpresa por eventos meteorológicos que estão aumentando em frequência e intensidade, como mostram os relatórios, e deverão aumentar ainda mais no futuro”, disse Marengo, que é coordenador do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Inpe e lidera um projeto temático, no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), acerca do impacto dos extremos do clima nos ecossistemas e na saúde humana no Brasil.

Segundo o pesquisador, frequentemente existem recur-sos para mapeamento de risco e remoção de população em áreas vulneráveis, mas o dinheiro acaba sendo transferido para outras áreas. “Isso mostra uma falha no nosso diálo-go com os governos locais. Não é segredo que o clima está mudando e todos os anos pessoas morrem por conta de de-sastres que poderiam ser evitados se esses recursos fossem aplicados”, afirmou.b

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40 z Setembro De 2012

Previsões do relatório SREX para 2100 e seu grau de confiança (em %)

Aumento na frequência e na magnitude

dos extremos de temperatura, em relação

a dias quentes, e redução dos extremos

para os dias frios

Tendência de eventos extremos em

regiões costeiras deve intensificar-se

em decorrência do aumento do nível

médio do mar

A forma como a informação científica alcança a sociedade frequentemente é di-versa da imaginada pelos pesquisadores. “Apareceram nos nossos debates discus-sões, por exemplo, sobre termos como ‘incerteza’, que é derivado da área de modelagem climática e cujo conceito nós cientistas compreendemos, mas que ainda não foi traduzido adequadamente para o público”, disse Marengo. Outra confusão envolve o próprio conceito de desastre. “Não são as chuvas que matam as pessoas. É a combinação delas com famílias morando em encostas e em re-sidências precárias. Não dá para acabar com as chuvas intensas, mas, com plane-jamento, é possível reduzir o número de mortes”, afirmou o pesquisador. A per-cepção da sociedade sobre as mudanças climáticas obedece a uma lógica às vezes distinta da dos cientistas. Marengo cita como exemplo o furacão Katrina, que devastou o sul dos Estados Unidos em 2005 e inundou a cidade de Nova Or-leans. “Não há como afirmar que o Katri-na, analisado de forma isolada, seja resul-tado das mudanças globais. Mas foi esse evento que despertou a população norte--americana para o problema”, afirmou.

EScASSEz dE dAdoSUma das principais conclusões do rela-tório SREX, que foi elaborado pelo IPCC a pedido do governo da Noruega e da Estratégia Internacional para a Redu-ção de Desastres (Eird), da Organiza-ção das Nações Unidas (ONU), é que vem ocorrendo um aumento na frequên-cia de eventos climáticos extremos no

mundo nas últimas décadas em razão das mudanças climáticas. Com base nas evidências presentes, o relatório indica que é altamente provável um aumento na frequência de dias e noites quentes nos próximos anos em diferentes regiões do planeta. Mas é incerto se alguns fenôme-nos climáticos extremos tendem a ocor-rer em escala global, devido à escassez de dados. O documento aponta dúvidas em relação ao aumento da frequência de chuvas intensas em todo o mundo, indi-cando regiões que apresentam aumento e outras onde ocorreu redução do evento climático. Também faltam evidências de que ciclones tropicais tenham se tornado

mulheres e crianças são as principais vítimas de furacões. Elas representam até 89% das mortes ligadas a esses fenômenos

mais frequentes, embora as chuvas rela-cionadas com esses fenômenos, de fato, estejam mais intensas. Da mesma forma, é possível que secas atinjam com mais frequência e intensidade certas regiões do planeta, como o Nordeste brasileiro ou o México, mas não representem um fenômeno generalizado no planeta.

Para os pesquisadores que produzi-ram o relatório, um dos principais desa-fios foi afinar os discursos entre especia-listas de diversas áreas. “Foi o primeiro esforço para trocar conhecimento de maneira multidisciplinar”, disse a médi-ca e professora da Universidad Nacional Autónoma de México (Unam), Úrsula Oswald Spring, que participou da ela-boração do SREX e esteve no workshop de São Paulo. “Sem construir uma lin-guagem comum, não é possível avançar nas soluções dos problemas colocados pelas mudanças climáticas.”

Apesar das incertezas sobre a extensão e a frequência dos fenômenos climáticos extremos no futuro, seu impacto, hoje, já é palpável. Dados apresentados por Úrsula Spring mostraram que mulheres e crian-ças são as maiores vítimas de furacões, terremotos, tsunamis, inundações e outros eventos extremos, climáticos ou não. Elas representam de 68% a 89% das mortes que ocorrem nesses fenômenos no mundo to-do. As mulheres são 72% das pessoas que vivem em condições de extrema pobreza, o que as torna mais vulneráveis em situa-ções de desastres. “O papel das mulheres é o de cuidar, então salvam filhos, pais e animais e não enxergam o risco que cor-rem”, disse Úrsula, que pesquisa o tema

cAlor NívEl Do MAr

Projeções de eventos extremos do clima

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PESQUISA FAPESP 199 z 41

Frequência de chuvas pesadas e volume

de precipitação resultante de tempestades

devem crescer em muitas áreas

há 10 anos. O prejuízo também é muito maior em países pobres: 95% das mortes por desastres naturais ocorrem em países em desenvolvimento. “Para que grandes desastres ocorram é necessário que a po-pulação esteja vulnerável e exposta”, afir-mou o professor da Universidad Católica do Chile, Sebastián Vicuña.

dESlIzAmEntoSO climatologista Carlos Nobre, que é secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Mi-nistério da Ciência, Tecnologia e Ino-vação (MCTI), membro da coordena-ção do Programa FAPESP de Pesqui-sa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e do IPCC, enumerou estu-dos publicados por pesquisadores do estado de São Paulo que tratam dos ris-cos causados pela maior frequência de chuvas intensas. Um deles apontou um aumento do número de áreas suscetí-veis a alagamentos e que apresentam risco maior de deslizamentos de terra na capital paulista. Outro estudo demons-trou que, com a urbanização, as áreas de chuva intensa se expandem e aumenta o risco de contaminação por leptospiro-se – doença transmitida principalmente pela urina de roedores. Já uma pesquisa feita no Departamento de Ecologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, em parceria com o Inpe, mostrou que Campinas e Ribeirão Preto são as duas regiões no estado de São Paulo mais vulneráveis às mudanças climáticas. A concentração populacional em Campinas potencializa as consequên-

cias de uma enchente. Já no caso de Ri-beirão Preto, a região deverá registrar temperaturas mais altas nas próximas décadas. “Podemos discernir em algumas regiões os impactos socioeconômicos causados pela aceleração dos eventos climáticos, que estão associados a maior vulnerabilidade das populações em razão da crescente urbanização do mundo e, em particular, das cidades da América Latina, onde esse processo ocorreu nas últimas décadas de forma caótica”, disse Nobre à Agência FAPESP. No Brasil, os recursos para reconstrução de regiões assoladas por desastres causados por eventos climáticos extremos tiveram uma evolução muito rápida nos últimos 10 anos e ultrapassaram o patamar de R$ 1,6 bilhão em 2011, apontou Nobre. Se há incertezas sobre a tendência de aumento da frequência de chuva em escala global, no caso de São Paulo não restam dúvidas de que as chuvas intensas têm aumen-tado muito na cidade nos últimos 50 ou 70 anos, observou Nobre. “Hoje temos três vezes mais chuvas intensas do que há 70 anos. E as evidências de que esse

tipo de evento ocorre com maior fre-quência na capital paulista estão muito bem documentadas”, afirmou.

Os resultados do relatório SREX serão aproveitados e atualizados nos próximos relatórios que o IPCC divulgará em 2013. Segundo Marengo, ainda há uma escas-sez de estudos sobre vulnerabilidade às mudanças climáticas em regiões bra-sileiras. Para produzir o SREX, pôs-se de lado a norma não escrita de que um bom estudo científico é apenas aquele publicado em revistas especializadas de língua inglesa. “Conseguimos atingir um nível bom em algumas publicações bra-sileiras, mas ainda falta mais literatura científica publicada no país”, afirmou o pesquisador. Os pesquisadores detecta-ram a necessidade de aumentar o finan-ciamento de estudos sobre mudanças climáticas, com apoio de instituições governamentais e não governamentais. Os grupos recomendaram ainda o for-talecimento das instituições locais de gerenciamento de risco. “Não é preciso criar novas instituições, mas fortalecer as que já existem”, afirmou Marengo. n

Reconstrução de regiões atingidas por eventos climáticos extremos no brasil custou R$ 1,6 bilhão em 2011

chUvAs cIcloNEs EstIAGEM66% 66% 33%

Chuvas relacionadas a ciclones tropicais

devem intensificar-se, embora não haja

evidências de mudanças na localização

e intensidade dos ciclones

Secas devem se intensificar em algumas

regiões e áreas, como o Nordeste brasileiro

e regiões do México

3 4 5

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42 z Setembro De 2012

Agência FAPESP ultrapassa a marca

dos 100 mil assinantes

a Agência FAPESP alcançou no dia 13 de agosto a marca dos 100 mil assinantes de seu boletim eletrô-

nico. Lançada em 24 de junho de 2003 pela Fundação como um serviço noti-cioso, eletrônico e gratuito, a agência se tornou referência para pesquisadores, estudantes e veículos de comunicação, com a publicação de reportagens sobre resultados de pesquisas, entrevistas com cientistas e notícias dos campos da ciên-cia, tecnologia e inovação no Brasil. “A FAPESP tem como uma das suas respon-sabilidades legais e estatutárias divulgar o resultado das pesquisas que financia. Quando a Fundação foi criada, os meios de comunicação eram distintos do que são hoje. Há uma mudança muito signi-ficativa trazida pela revolução digital e a agência, ao atingir um público tão ex-pressivo, é uma mostra dessa mudança”, disse Celso Lafer, presidente da FAPESP.

A Agência FAPESP envia boletins de segunda a sexta-feira a assinantes que se cadastraram por meio da internet (www.agencia.fapesp.br/assine). As reportagens e notícias divulgadas pela agência são reproduzidas ou ajudam a pautar veícu-los de comunicação como O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, Exame, UOL e Terra. Os boletins também são re-cebidos por jornalistas de publicações de todas as regiões brasileiras. Em 2011, 482 veículos de todo o país reproduziram conteúdos da Agência FAPESP, com mais de 5,7 mil publicações.

“A marca de 100 mil assinantes revela que a Agência FAPESP presta um serviço de qualidade e utilidade reconhecido pela comunidade científica. Além de informar a comunidade, a agência contribui para a divulgação científica pautando temas e

COMUNICAçãO y

difusão científica ampliada

A evolução do número de assinantes

Evolução do número de veículos de comunicação que reproduziram o conteúdo da agência

Evolução das reproduções do conteúdo da agência

matérias relevantes na mídia impressa e eletrônica nacional”, disse Carlos Hen-rique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP.

Apesar de se dedicar principalmente à divulgação de pesquisas feitas no es-tado de São Paulo e apoiadas pela FA-PESP, a agência conta com leitores em todos os estados brasileiros. As cidades com maior número de assinantes são São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Ribeirão Preto, Belo Horizonte, Brasília, São Carlos, Curitiba e Salvador. Também tem um expressivo número de leitores no exterior, entre brasileiros que vivem em outros países ou estrangeiros que as-sinam a edição em inglês do boletim. No exterior, os países com mais leitores da edição em português são Estados Uni-dos, Portugal, França, Alemanha e Ca-nadá. Já a edição em inglês é mais lida nos Estados Unidos, Reino Unido, Índia, Alemanha e França.

“Ter uma base ativa e operante de 100 mil assinantes mostra o acerto da ideia original e, sobretudo, do desenvolvimen-to e da prática efetiva desta ideia que a equipe da agência mantém de forma criativa e original”, disse Carlos Vogt, di-retor da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas. Foi Vogt quem teve a ideia de lançar, em 2003, um veículo eletrô-nico de divulgação científica, quando era presidente da FAPESP. O modelo da agência, observou ele, inspirou outras ini-ciativas. “É o caso da Agência DiCYT, da Universidade de Salamanca, na Espanha, que foi montada em cima do modelo da Agência FAPESP.” n

TRAJETóRIA E IMPACTO DA AGêNCIA FAPESP

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482

206

1.879

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2007

2008

2009

2010

2011

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49.122

56.434

63.694

69.560

81.296

86.889

93.979

23.063

10.000

100.000

Page 43: Pesquisa FAPESP 199

Cientistas discutem caminhos para

reduzir o peso da burocracia

Pesquisadores dedicados apenas a fazer ciência, sem a necessidade de gastar tempo com a administração

de projetos de pesquisa. Esse tema este-ve à frente do II Simpósio de Gestão de Projetos Aplicada à Pesquisa Científica realizado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, nos dias 8 e 9 de agosto. “No Brasil valores e ambições crescem conti-nuamente, o que é ótimo porque a ciência está mais organizada e competitiva. En-tretanto, o tamanho das equipes, muitas vezes com pesquisadores de várias enti-dades, e a complexidade da operação exi-

Tempo para a pesquisa

gESTãO ADMINISTRATIVA y

gem um apoio institucional ao cientista, como se vê nas melhores universidades estrangeiras”, disse o professor Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor cientí-fico da FAPESP, no simpósio.

Operar um projeto exige muitas ativi-dades, desde guardar recibos até geren-ciar a propriedade intelectual, o que toma tempo do pesquisador. “Ele precisa fazer ciência, publicar papers, além de orientar estudantes. Para isso, é necessário uma espécie de escudo contra o tempo gasto na burocracia”, disse Brito. “Hoje há pes-quisadores que gerenciam auxílios com

valores em torno de US$ 1 milhão.” Por is-so, há três anos a FAPESP solicita o apoio das instituições, como fazem os Grants Management Offices das boas universi-dades estrangeiras. “Na FAPESP estamos fazendo entrevistas com dirigentes de instituições de projetos Cepid [Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão], que po-derão receber até R$ 4 milhões por ano da Fundação. Queremos nos certificar de que na instituição exista uma estrutura que proteja o tempo do pesquisador das tarefas burocráticas. Tal apoio é condição para que a FAPESP aprove a concessão do auxílio”, afirmou Brito.

“Não temos na universidade aprendi-zado de gestão de projetos”, disse o pro-fessor Jorge Kalil, diretor do Instituto Butantan, em sua apresentação. Para Bri-to, a gestão de projetos deve ser feita por pessoas capazes de entender a lógica da ciência, um desafio que deve ocupar tam-bém as faculdades de administração. n

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44 z Setembro De 2012

Pesquisadores, médicos e moradores

de um povoado se mobilizam para

controlar uma doença hereditária

agravada pela exposição à luz do dia

luta contra

carlos Fioravanti (texto) e Eduardo cesar (fotos),

de Araras, goiás

o sol

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PESQUISA FAPESP 199 z 45

djalma Jardim parece feliz, depois de uma longa depressão que o impedia de sair de casa. Hoje, animado, ele con-versa com os amigos e cuida de sua

sorveteria nova, com uma varanda ampla, no povoado de Araras, a 260 quilômetros de Goiâ-nia. Ele prefere os dias ensolarados, que trazem mais pessoas em busca de sorvetes de milho, abacate ou graviola, mas sabe que ele próprio não pode tomar sol. Djalma tem uma doença genética hereditária conhecida como xeroder-ma pigmentosum, que atinge principalmente as partes do corpo mais expostas à luz do sol.

Seu rosto está bastante transformado. Uma prótese externa ocupa o lugar do lábio superior, do nariz, de parte das maçãs do rosto e do olho direito, que tiveram de ser retirados. Aos 37 anos, Djalma tem um carro, mas durante anos, para se proteger do sol, andava de bicicleta coberto da

cabeça aos pés com uma espécie de cabine de papel pardo com uma abertura para ver à frente.

Ironicamente, em um lugar muito quente nes-ta época do ano e escaldante em janeiro vive a provavelmente maior concentração mundial de pessoas bastante sensíveis à radiação ultravioleta do sol. Dos cerca de mil moradores de Araras, 22 – com idade entre 9 e 78 anos – sabem que têm xeroderma pigmentosum ou XP. Alguns apre-sentam apenas a pele ressecada e com manchas, enquanto outros tiveram de implantar próteses no rosto e falam com dificuldade. Alguns se cui-dam, evitando o sol, enquanto outros renegam a doença, sob a alegação de que não podem deixar de trabalhar durante o dia em suas terras. Quase todos ali vivem da agricultura ou da pecuária.

Durante três dias, no início de agosto, pesqui-sadores de São Paulo e do Rio de Janeiro se reu-niram com biólogos da Universidade Federal de

Pioneiros no povoado de Araras: da esquerda para a direita, o português lucas Freire; Joaquim Freire (filho de Lucas) e Verônica gomes; Joaquina Freire Machado e Teófilo Machado da Mãe de Deus (filho de Joaquim) com as três filhas, Darcy Machado dos Santos, Maria Verônica e Adda Maria da Mãe de Deus

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Goiás (UFG) e da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, com médicos dos dois principais hos-pitais de Goiânia e com os moradores de Araras. Em conjunto, planejaram os exames que devem permitir a identificação da mutação responsá-vel pela xeroderma nos moradores de Araras e ajustes no atendimento médico a essas pessoas.

“Aqui em Goiás este é um problema de saúde pública”, afirmou Carlos Menck, geneticista do Instituto de Ciências Biomédicas da Universi-dade de São Paulo (USP), em uma apresentação para biólogos e médicos no início de agosto na UFG. “Gostaria de convidar vocês a trabalharem com esse problema. O que fizermos pode ajudar muito as pessoas com XP.” Da plateia, a médica dermatologista Sulamita Chaibub, à frente de uma equipe multidisciplinar do Hospital Geral de Goiânia que atualmente trata de 25 pessoas com XP, pediu: “Mandem mais pacientes para nós, por favor”.

A XP é uma doença rara, para a qual não há medicamentos específicos, causada por mutações prejudiciais em genes que, quando normais, in-duzem a produção de proteínas que corrigem os danos provocados no DNA pela radiação ultra-violeta do sol ou de lâmpadas. Sem essas proteí-nas, o DNA acumula danos que podem originar tumores. As pessoas com alterações nesses genes de reparo apresentam risco mil vezes maior de terem câncer de pele e maior propensão para ou-tros tipos de câncer, lesões oculares e problemas neurológicos que as pessoas sem essas mutações.

Por todo o país, o total de casos diagnostica-dos não chega a uma centena, mas estimativas preliminares, com base na prevalência de outros países, indicam que mil pessoas no país podem ter a doença, facilmente confundida com outras – no início do século passado era vista como uma forma de hanseníase e hoje pode passar como alergia ao sol ou câncer de pele. “Como os regis-tros são escassos, o alcance desse problema na população ainda é desconhecido e subestimado”, diz Januário Bispo Cabral Neto, geneticista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que esteve em Araras pela primeira vez em agosto.

moçAmbIQUE, UmA oRIgEm comUmMenck acredita que está na pista da provável mu-tação, que parece ser diferente das já conhecidas, e ainda este ano ele pretende iniciar o sequen-ciamento de um conjunto de genes de 18 mora-dores de Araras em busca de alterações nos oito genes de reparo de DNA já associados à doença. “A caracterização de uma mutação pode ajudar a identificar o problema precocemente, dando diretrizes sobre como as pessoas e as famílias de-vem ser acompanhadas, para evitar que a doença se agrave”, diz a médica Maria Isabel Achatz, do Hospital do Câncer A.C. Camargo, em São Paulo.

Maria Isabel e Karina Santiago rastrearam as mutações responsáveis pela doença em dois ge-nes, XPA e XPC, de 21 pessoas com XP de nove estados (Amazonas, Acre, Ceará, Paraíba, Ser-gipe, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul). Elas identificaram uma mutação nova no gene XPC e ou-tra bastante frequente, que uma equipe de pesquisadores franceses havia en-contrado em 18 moradores de descen-dência negra da ilha Mayotte, no sul da África. Os resultados coincidentes su-gerem que os membros de uma mesma família com essa mutação podem ter migrado de Moçambique para a ilha e para o Brasil – uma conclusão ins-tigante, já que os casos de xeroderma em negros no Brasil são bastante raros.

“Ao menos um dos oito genes com mutações que causam XP deve ter vindo com os escravos de Moçambique”, diz Menck. Com sua equipe, ele identificou a mutação responsável pela doença em três famílias brasileiras, mas, reconhece, “o ganho para os pacientes, em termos de tratamento, foi muito pequeno, infe-lizmente”. A seu ver, talvez o benefício para os moradores de Araras seja maior, ao indicar a origem genética e a evolução possível da doença. Historicamente, o povoado começou a se formar por volta de 1705 com a chegada das famílias Frei-re, Jardim e Gonçalves, que compraram terras na região, pertencente ao município de Faina. “Dona Clementina, uma matriarca do povoado, dizia que o avô dela, Augusto Gomes, tinha a ‘pele ruim’, indicando que os primeiros casos de xeroderma podem ter surgido há pelo menos 150 anos, prova-velmente por meio de casamentos entre primos”, diz ele. Clementina Gomes Jardim morreu aos 102 anos, em 2010, sem a doença transmitida para al-guns de seus filhos e netos.

Em 1963 chegaram mais seis famílias, vindas de Hidrolândia, município a 240 quilômetros de

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A doença pode ter surgido no interior de goiás há pelo menos 150 anos, por meio de casamentos entre primos

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PESQUISA FAPESP 199 z 47

distância. Aos 71 anos, magro, baixo, sorriso largo, Lázaro Alexandre da Silva chegou nesse ano e se lembra de ter visto familiares com o que cha-mavam de câncer de pele. Ele próprio tem uma forma leve de xeroderma, que lhe deixou man-chas escuras nos dois pés, entre os tornozelos: “Difícil curar”, ele diz.

Aparentemente Lázaro Silva não se abate: quem tem doenças que afetam a aparência nor-malmente convive com a discriminação, mas em Araras as pessoas com XP, mesmo em estágio avançado, são tratadas com naturalidade, tra-balham e convivem com os amigos e familiares. Todo dia ele acorda antes das seis da manhã pa-ra ordenhar as vacas, atualmente 16, que nesta época de seca lhe rendem 20 litros de leite. Sua esposa, Divina Rosa da Silva, baixa, encorpada, de intensos olhos azuis, às vezes assume o lugar do marido, sobe na charrete e leva o leite do dia ao laticínio do povoado. Ela sabe: “O sol não faz bem para ele. Quando ele está muito no sol, tem tonteira. Ele tem pressão baixa”.

FUgIndo do SolPara evitar o sol e adiar o aparecimento dos sin-tomas, as pessoas com XP usam – ou deveriam usar – roupas longas, de preferência com alta ca-pacidade para filtrar a radiação ultravioleta, bonés ou chapéus largos, óculos escuros e protetores solares com fator de proteção solar mínimo de 60. A equipe de Menck, em colaboração com uma empresa de cosméticos, comparou a eficiência de 17 produtos comerciais, com fator de proteção

de 1,5 a 60, e concluiu que em geral os proteto-res solares são eficientes para proteger contra os efeitos indesejados da radiação ultravioleta.

O acesso aos cremes, porém, nem sempre é fácil. “Muitos pacientes chegam aqui em esta-do grave porque não têm dinheiro para com-prar protetor solar”, conta Maria Isabel. “Seria fundamental que o fornecimento de filtro solar fosse gratuito para todos que têm xeroderma pigmentosum no Serviço Único de Saúde (SUS). O custo seria muito menor do que o tratamento de um melanoma.”

Outro problema é que, mesmo para as pessoas com risco menor de câncer de pele, os cremes podem perder eficácia quando não são aplicados ou reaplicados na quantidade ou na periodici-dade adequada ou quando não cobrem todas as áreas do corpo que deveriam proteger, alertou o dermatologista Fernando Stengel, presidente da Fundação Argentina de Câncer de Pele, em um congresso internacional sobre câncer de pele realizado em São Paulo no início de agosto.

Como medidas simples de proteção contra o sol podem ajudar a adiar o aparecimento ou o agravamento da doença, pesquisadores e mora-dores de Araras começaram a pensar como insta-lar filmes para filtrar a luz ultravioleta nos vidros das janelas da escola, das igrejas (uma católica e outra evangélica) ou da perua da prefeitura em que as pessoas com XP vão toda semana para Goiânia para os exames médicos de rotina. Na sorveteria, conversaram também sobre a pos-sibilidade de deter o sol por meio de toldos nas

O produtor de leite lázaro Silva, 71 anos: desde 1963 na região

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48 z Setembro De 2012

varandas ou de corredores cobertos de plantas entre as casas, a escola e as igrejas.

Na França, as crianças e jovens com XP – cha-madas de crianças da Lua por causa de seus há-bitos noturnos – têm direito a solicitar a insta-lação de filtros antiultravioleta nas janelas das escolas ou das faculdades. Há leis específicas que asseguram o atendimento médico em hos-pitais públicos aos portadores do cartão do Se-guro Social, o equivalente à Previdência Social no Brasil. “Conseguimos do Seguro Social que cada criança com XP receba € 1.300 [R$ 3.300] por ano para comprar roupas, óculos, máscaras e filtros antiultravioleta”, diz Alain Sarasin, ge-neticista do Instituto Gustave Roussy, próximo a Paris, e uma das maiores autoridades mundiais no estudo de mecanismos de reparo de DNA. Na ilha Mayotte, onde sua equipe identificou uma mutação responsável pela doença, ele observou que as crianças com XP são agrupadas em uma mesma escola com professores especiais em sa-las com ar-condicionado e proteção contra o sol.

“A xeroderma pode ser controlada, sim, desde que as pessoas não tenham contato com a luz do sol”, assegura Maria Isabel, dando o exemplo de um menino que mora em São Paulo e tinha 4 anos quando ela o atendeu pela primeira vez. Hoje com 7 anos, o menino tem apenas manchas leves no rosto. Segundo ela, o menino está sempre coberto por roupas, bonés e luvas, por insistência da mãe, e estuda em uma escola pública cuja diretora con-cordou em fazer bloqueios para a radiação ultra-violeta. “As pessoas com XP têm de ser cuidadas desde cedo”, reforça Sulamita.

O controle da doença implica atendimento mé-dico, odontológico e psicológico e aconselhamen-to genético sobre o risco de os casais terem filhos com essa doença. “O casamento entre primos, que era bastante comum em Araras, aumenta o risco de ter filhos com XP”, diz Menck. “Quando o ca-sal tem a mutação, embora não tenha a doença, a probabilidade de ter um filho com XP é de 25%.” Ele acredita na possibilidade de usar protetores solares mais eficientes, capazes de corrigir as le-sões no DNA, ou de corrigir os genes defeituosos por meio de terapia genética.

“Um de nossos problemas é que tudo é muito lento”, observa Gleice Machado, diretora da es-cola, dona da mercearia do povoado e presidente da Associação Brasileira de Xeroderma Pigmen-toso (ABRAXP), criada em 2010. “A liberação de verba para as obras de cobertura da quadra de

esportes foi assinada há 15 dias pelo governador, depois de seis meses de aprovada.”

Foi Gleice quem fez a doença ser identificada corretamente, ao entrar com o filho Alisson no consultório de Sulamita Chaibub no Hospital Geral de Goiânia em 2009. Dois anos antes Sula-mita tinha examinado o menino de pele branca e cabelos ruivos e não detectara nenhum sinal de xeroderma, mas agora os sinais eram mais cla-ros. A médica começou a dar o diagnóstico: “Ele tem...” A mãe se antecipou: “Xeroderma?!” A mé-dica perguntou se Gleice conhecia outras pessoas com XP, e ela contou que havia muitas em Araras.

AlíVIo E AngúStIAUma série de reportagens de Renato Alves pu-blicadas no Correio Braziliense logo depois, em outubro de 2009, ressaltou o abandono em que viviam os moradores de Araras com XP e mobili-zou o Ministério Público, que cobrou mais aten-ção dos hospitais de Goiânia para essas pessoas. As notícias motivaram o farmacêutico Evandro Tokarski, proprietário de uma farmácia vizinha ao Hospital Geral de Goiânia, a preparar gratui-tamente protetores solares para os moradores de Araras e a senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO) a apresentar um projeto de lei prevendo a con-cessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez para as pessoas com XP.

As reportagens chegaram a Menck, que traba-lhava havia 34 anos em laboratório com células humanas com XP. Em julho de 2010, ao visitarem Araras pela primeira vez, ele e o biólogo André Schuch, então em sua equipe, mediram a radia-ção ultravioleta que incidia nas casas, na escola, no pátio da igreja. Ao verem quão intensa era de fato a luminosidade no povoado e ouvirem as

O centro do povoado de mil

moradores: muito quente no meio

do ano e escaldante em janeiro

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PESQUISA FAPESP 199 z 49

explicações de Menck, os habitantes do povoa-do começaram a ver a lógica do mal que durante décadas perseguira tios, primos e irmãos, antes visto como uma maldição ou uma doença conta-giosa ou transmitida por via venérea. Os relatos indicam que o alívio por finalmente elucidarem a origem do problema se confundiu com a angús-tia de não saber como lidar com o que tinham e implicava radicais mudanças no estilo de vida.

“lUtA contínUA” Em fevereiro de 2011 Gleice publicou o livro Nas asas da esperança – A história de dor e resistência da comunidade de Araras, que motivou uma equi-pe da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Goiás a produzir o filme Sol inimigo, lançado em 28 de junho deste ano do Festival de Cinema de Goiás, uma cidade próxima. O filme contém de-poimentos contundentes, como o de Djalma Jar-dim, “tenho fé e vontade de viver”, e de Avelino Gonçalves da Silva, “o câncer está me comendo”. Gleice conta que o filme tem ajudado a convencer quem não imaginava quão devastadora a doença pode ser, mas o atendimento médico em Goiânia ainda é frágil: “Se muda um atendente no hospi-tal, começa tudo de novo. É uma luta contínua”.

Januário Cabral, da UFRJ, observa: “O des-conhecimento do problema traz complicações desnecessárias para os pacientes, pais, professo-res e médicos”. Em 1998 ele conheceu Ana Clara Guimarães Recchione, que vinha de uma longa batalha com professores e médicos. No início dos anos 1990, em Cabo Frio, litoral do Rio, Ana Clara verificou que a filha, nascida em 1989, e o filho, em 1992, quando saíam ao sol, voltavam com intensas irritações na pele, que duravam dias. Vendo que a situação poderia se repetir, du-

Moradores de Araras na noite do sábado, 11 de agosto, sob a luz de uma das igrejas: Djalma Jardim é o primeiro à direita e gleice Machado, a quarta

rante muitos anos ela não dormia à noite e fazia os filhos ficarem acordados para que dormissem durante o dia e assim evitassem os danos do sol. Quando os filhos tiveram de ir à escola, ela os cobria com chapelões, dos quais pendiam panos que os protegiam do sol. Os professores olhavam desconfiados quando ela dizia que os filhos não podiam tomar sol. Pesquisando na internet, Ana Clara suspeitou que poderia ser xeroderma pig-mentosum, mas os médicos não concordavam.

“Não foi falha dos médicos, porque ninguém na família tinha XP, e a mãe protegia tanto as crianças, não deixava pegar sol de jeito nenhum, que elas tinham só um ressecamento na pele e não dava para dizer que era XP”, conta Cabral, a quem chegou o pedido de ajuda que a mulher havia espalhado pela internet. Cabral e Sarasin, que estava no Rio, receberam a mãe no hospital universitário, ao lado da médica que a atendia, colheram amostras de pele das crianças, cultiva-ram as células em laboratório, testaram a sensibi-lidade à radiação ultravioleta e, um mês depois, confirmaram as suspeitas da mãe. Em Araras, Cabral conversou com Gleice e saiu de lá com re-comendações, planos e frascos de protetor solar que ela pediu para ele entregar para Ana Clara. n

Projetos1. Genes de reparo de DNA: análise funcional e evolução – nº 2003/13255-5; 2. Caracterização de mutações germinativas presentes nos genes XPA e XPC em pacientes brasileiros clinicamente diagnosticados com xeroderma pigmentoso – nº 2009/16895-1. Modalidades: 1. Projeto Temático; 2. Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa. Coordenadores: Carlos Frederico Martins Menck – ICB/USP; Maria Isabel Alves de Souza Waddington Achatz – Fundação Antonio Prudente, Hospital A. C. Camargo. Investimento: 1. R$ 1.442.484,59 (FAPESP); 2. R$ 198.003,24 (FAPESP).

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50 z SETEMBRO DE 2012

Células na base do cérebro

controlam a fome e acionam os

mecanismos neurais da recompensa

um grupo de apenas 5 mil neurônios loca-lizados na base do cérebro, em uma re-gião chamada hipotálamo, não controla somente a fome e a saciedade. Especia-

lizados na produção de dois dos comunicadores químicos cerebrais – o neuropeptídeo Y (NPY) e o peptídeo relacionado ao agouti (AgRP) –, esses neurônios atuam também sobre os mecanismos cerebrais de recompensa, que coordenam as sen-sações de prazer. O duplo papel dessas células foi observado por um grupo de pesquisadores bra-sileiros e norte-americanos e descrito em junho na revista Nature Neuroscience. “Foi a primeira vez que se registrou a influência dessas células sobre outras funções do sistema nervoso central”, conta o médico Marcelo Dietrich, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e primeiro autor do artigo.

Dietrich suspeitava havia algum tempo de que os neurônios produtores de NPY e AgRP pudes-sem manter conexões com outras áreas cerebrais por causa dos efeitos colaterais provocados por medicamentos inibidores de apetite. Compostos como a sibutramina, retirada do mercado em vários países e vendida com retenção de receita no Brasil, reduzem a fome por induzir efeitos semelhantes ao da desativação desses neurô-nios.Mas também originam uma série de altera-ções no organismo, como a melhora do humor – a sibutramina foi desenvolvida para ser usada como antidepressivo – e o aumento do risco de

DESENVOlVIMENTO NEUROlógICO y

da saciedade e outros prazeres

problemas cardiovasculares. “Imaginávamos que os neurônios produtores de NPY e AgRP não estariam isolados ou associados apenas à fome”, conta Dietrich. “Pensamos que também pudessem desempenhar algum papel em funções cognitivas mais sofisticadas e decidimos ver se estavam envolvidos nos mecanismos de recom-pensa”, diz o pesquisador, que atualmente passa uma temporada no laboratório de Tamas Hor-vath na Universidade Yale, nos Estados Unidos.

A fim de testar possíveis conexões desses neu-rônios com os de outras regiões cerebrais, Die-trich realizou uma série de experimentos com roedores geneticamente alterados para apresentar menor atividade dos neurônios do apetite. “As células não eram eliminadas, mas funcionavam de maneira deficiente, minimizando assim a sen-sação de fome”, explica.

A consequência esperada era que outros me-canismos associados àquele grupo de neurônios também se mostrassem menos ativos. Mas não foi o que ocorreu. Inicialmente os camundongos foram soltos em uma caixa de acrílico em que foi colocado um pequeno cilindro de plástico para avaliar como se comportavam. Como os roedores são curiosos e gostam de conhecer tudo o que é novo no ambiente, o grau de exploração serve como termômetro de ativação dos mecanismos de recompensa. Os pesquisadores imaginavam que eles fossem se interessar pouco pelo objeto novo, uma vez que seus neurônios da fome não In

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Francisco bicudo

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estavam funcionando bem. Mas obser-varam o oposto. Mal entraram na caixa, os roedores caminhavam freneticamen-te de um lado para o outro, explorando as novidades e tomando informações sobre o ambiente até então desconhe-cido. Esse era o primeiro indício de que os mecanismos de recompensa estavam respondendo de forma acentuada.

Numa segunda etapa, o pesquisador repetiu os testes aplicando nos animais uma injeção de cocaína, que sabidamen-te ativa as vias neurológicas de recom-pensa. Quanto maior a dose, mais os camundongos se movimentavam pelo ambiente. Por fim, Dietrich estabele-ceu um roteiro em que determinava a injeção de cocaína durante cinco dias, matinha os animais em abstinência por quatro dias, e depois voltava a aplicar a droga. “O cérebro desenvolve uma espé-cie de memória dos efeitos da cocaína, cria dependência e responde de forma ainda mais intensa ao final dos testes”, lembra o pesquisador.

Dietrich, então, sofisticou um pouco mais o teste para verificar se a inibição da atividade dos neurônios produtores de NPY e AgRP aumentava a busca por situações prazerosas. Desta vez ele colo-cou os animais em uma caixa que, de um lado, dava acesso a outra caixa conten-do água com cocaína e, de outro, estava conectada a uma terceira caixa com um recipiente com água pura. Num primei-ro momento, ele colocou os animais na

caixa central e os deixou explorar as ou-tras duas – os animais visitaram as duas caixas mais ou menos o mesmo núme-ro de vezes. Depois, Dietrich fechou o acesso à caixa com água pura e deixou os animais visitarem apenas aquela em que havia cocaína. Numa etapa seguin-te, fez o inverso. Bloqueou o acesso à cocaína, permitindo as visitas só à caixa com água pura. Por fim, os camundon-gos voltaram a ter acesso às duas caixas. Desta vez, porém, as visitas ao ambien-te com cocaína foram duas vezes mais frequentes do que à caixa só com água. Foi a confirmação da busca pelo prazer.

QUEStão dE IdAdE“Observamos que os neurônios produ-tores de NPY e AgRP estão conectados aos neurônios que produzem dopamina, o neurotransmissor do prazer”, expli-ca Dietrich. “Mas essa relação se dá de forma inversa, quando os neurônios do apetite são inibidos, os produtores de dopamina se tornam mais ativos, acen-tuando o funcionamento dos mecanis-mos de recompensa”, conta.

Mas restava uma dúvida. Os testes haviam sido feitos com camundongos transgênicos adultos que haviam nascido sem a proteína que ativa os neurônios da fome e os pesquisadores haviam obser-vado que, quanto mais velho o animal, menor o efeito.

Para avaliar a influência da idade, foi preciso mudar de estratégia. Eles inati-

varam os neurônios da fome em animais com idades diferentes (5, 10, 15 e 20 dias de vida e depois de adulto) e repetiram os testes. Os resultados confirmaram: a inativação dos neurônios da fome nos filhotes mais novos intensificava a ação do mecanismo de recompensa.

Para Dietrich, essa é uma evidência de que é na primeira semana de vida dos roedores que essas células se conectam com as de outras áreas cerebrais. Nos seres humanos, esse estágio do desen-volvimento cerebral corresponde ao do terceiro trimestre da gestação. “Modifi-car o funcionamento desses neurônios no começo do desenvolvimento talvez gere consequências que só apareçam bem mais tarde na vida, aumentando a suscetibilidade à adição por drogas”, suspeita o pesquisador, que começou a investigar essa função do hipotálamo durante o doutorado na UFRGS, sob a orientação de Diogo Onofre de Souza.

Dietrich pretende ainda compreender a influência da alimentação de recém--nascidos sobre o mecanismo de busca de prazer. “Queremos entender como as células que regulam o apetite reagem quando as mães, em vez de amamentar, dão papinha e outros alimentos em subs-tituição ao leite materno”, conta. “No limite, queremos ser capazes de um dia conseguir sugerir quais são os nutrientes e a quantidade de calorias recomendá-veis para que essas conexões se formem de maneira adequada.” n

Rede complexa

Inibir a ação dos neurônios do apetite em

camundongos recém-nascidos aumenta a

atividade das células produtoras de dopamina

Essa alteração deixa sequelas: eleva

a produção de dopamina, a ação do sistema

de recompensa e o consumo de drogas

Neurônios da fome influenciam indiretamente a ação do sistema de recompensa

neurônios da fome

Cérebro de camundongo recém-nascido Cérebro de camundongo adulto

neurônios da fome

neurônios produtores de dopamina

neurônios produtores de dopamina

neurônios do sistema de recompensa

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52 z Setembro De 2012

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PESQUISA FAPESP 199 z 53

Felinos conseguem se movimentar

em zonas de ocupação humana, mas

encontram obstáculos nas estradas

As rotas das suçuaranas

análises genéticas estão revelando um pouco da história e da ecologia da suçuarana, ou onça-parda (Puma concolor), um dos maiores felinos do Brasil, atrás apenas da onça-pintada.

Esses discretos animais são altamente adaptáveis e vivem mesmo em zonas com pouca floresta. Mas enfrentam problemas com a caça e nas estradas, conforme vem mostrando o trabalho paralelo de duas pesquisadoras que nunca se encontraram pessoalmente: Camila Castilho, atualmente na Universidade de São Paulo (USP), e Renata Miotto, agora na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), também da USP, em Piracicaba.

As duas estudaram aspectos genéticos de popu-lações locais de suçuaranas, chegando em grande parte a resultados semelhantes, conforme mos-tram o artigo de Renata na Conservation Gene-tics em 2011, e de Camila publicado este ano na Genetics and Molecular Biology. O primeiro as-pecto importante é que há pouca diferenciação genética nas áreas estudadas, sinal de uma po-pulação não fragmentada. Isso indica que esses animais conseguem percorrer grandes distâncias e manter o fluxo de material genético, apesar de não haver continuidade de floresta. É bem diferente do que acontece com a onça-pintada, que se aventura pouco fora das áreas de mata e acaba ficando isolada em fragmentos e gerando

maria guimarães

FAUNA SIlVESTRE y

populações diferenciadas, conforme já mostra-ram outros estudos.

Na prática, a onça-parda forma populações contínuas ao longo de áreas extensas. No caso de Camila, que desenvolveu o trabalho durante o doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a área englobava boa parte de Santa Catarina, uma parte do sul do Pa-raná e algumas amostras no extremo norte do Rio Grande do Sul, um total de mais de 140 mil qui-lômetros quadrados (km2). O estudo de Renata, à época doutoranda na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), era mais circunscrito, mas nada diminuto: cerca de 1.700 km2 do interior paulista que incluem 15 municípios, entre eles Ribeirão Preto, Rio Claro e São Carlos.

O outro achado semelhante entre os dois estu-dos mostra que recentemente, em algum ponto do último século, houve uma drástica redução nos números das suçuaranas, que os geneticistas de populações chamam de gargalo populacional. Ao passar por um desses gargalos, a população perde parte da sua diversidade genética, o que em certos casos pode gerar problemas. “A perda de genes é aleatória e é possível que nada im-portante se vá”, explica Camila, “mas é maior a probabilidade de acontecer um azar”. Um azar seria o animal não poder contar com algum gene essencial para enfrentar a alterações no ambiente.

A onça-parda (Puma concolor), um dos maiores predadores das Américas, ainda é pouco conhecida pela ciência brasileira

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54 z Setembro De 2012

Uma coisa é certa quando se detecta um gargalo: aconteceu algum desequilíbrio na população, seja uma redução importante em tamanho ou, mais raramente, uma alteração drástica na proporção entre machos e fêmeas.

cAnAVIAlÉ aí que começam as diferenças entre os dois estudos. O interior de São Paulo, onde Renata trabalha, está recoberto de cana-de-açúcar. “A maior parte foi plantada nos anos 1960 e 1970, em razão do Proálcool [Programa Nacional do Álcool]”, diz a pesquisadora. “Os dados genéti-cos indicam que o gargalo pode ter acontecido nessa época.” Nesse caso, muitas suçuaranas te-riam morrido nesse período de intenso desma-tamento, e depois aos poucos a população teria voltado a aumentar, à medida que suas presas se adaptaram a viver nos canaviais. “A dieta das on-ças na região consiste principalmente em tatus, cervos, capivaras e outros roedores”, conta. São animais que aparentemente vêm se adaptando bem à agricultura, alguns deles consumidores de cana-de-açúcar. Com alimento abundante,

Por onde elas andamApesar de ser uma única espécie distribuída por uma ampla área geográfica, as onças-pardas enfrentam desafios distintos conforme a região

as suçuaranas podem facilmente viver na re-gião, sem representar problemas para os donos das plantações.

O grande problema que esses animais enfren-tam hoje são as estradas movimentadas, pratica-mente intransponíveis para pedestres – sejam eles humanos ou felinos –, que cortam o estado. Isso pode bloquear as rotas das suçuaranas e, com o tempo, reduzir a variabilidade genética.

Além de limitar o trânsito das suçuaranas, atro-pelamentos são uma causa importante de mor-talidade. “Os machos jovens, que se dispersam para longe da área onde nasceram, são as prin-cipais vítimas”, diz Renata. Entre os 23 animais atropelados de sua amostragem, 16 são machos. A suçuarana Anhanguera, apelidada em 2009 com o nome da estrada em que foi atropelada, no interior paulista, era justamente um macho jovem. “Essa mortalidade diferencial pode alterar a razão sexual, o que pode ser detectado como um gargalo.” Isso acontece porque são eles os emissários do material genético, já que se mudam para uma zona distante onde afinal se estabele-cem e acasalam.

REgIão SUlO modelo indica uma

capacidade de atingir

grandes distâncias,

mesmo onde a mata

é ausente. Conflitos

com fazendeiros são o

maior problema por ali

6,6%dos animais analisados na região Sul eram aparentados

– estradas n área urbana n silvicultura n canavial

n vegetação nativa pastagem

maiormenor

MOBIlIDADE

São PAUloPelo nordeste

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à movimentação

das suçuaranas

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Page 55: Pesquisa FAPESP 199

PESQUISA FAPESP 199 z 55

As fêmeas permanecem mais próximas ao local onde nasceram, conforme Renata mostrou em cinco anos de monitoramento na Estação Eco-lógica de Jataí, no município de Luis Antônio, perto de Ribeirão Preto. Ao longo desse período ela percorreu trilhas e coletou fezes frescas, de onde extraiu material genético. Os dados, publi-cados este ano na Biotropica, mostram que todas as onças residentes são fêmeas.

gAdoNa Região Sul, Camila deparou com uma rela-ção mais conflituosa entre os seres humanos e o leão-baio, como o felino é conhecido em terras catarinenses. Ali se criam vários tipos de gado – vacas, cabras, ovelhas – de forma extensiva, com os animais sempre soltos no pasto. Além das pa-cas, cutias e veados, os animais domésticos aca-bam virando boas refeições para as suçuaranas, que em seguida precisam enfrentar o fazendeiro armado. “Embora a caça seja ilegal, sabemos que acontece muito nessa região”, conta Camila, que aos poucos venceu as resistências e conseguiu que os donos das fazendas lhe cedessem amostras dos leões-baios caçados, para extração de material genético. A zona de estudo da pesquisadora se concentrou no sul de Santa Catarina, onde as fa-zendas se estendem por campos de altitude com resquícios de floresta – os capões – em meio ao pasto. É nesses capões, e nas matas ao longo de rios, que as suçuaranas se refugiam e onde por vezes encontram uma cabra ou bezerro também em busca de abrigo.

Assim como em São Paulo, os dados de Cami-la mostram que o gargalo populacional aconte-ceu no último século, coincidindo com a ampla derrubada da floresta de araucárias que carac-terizava a região. Atualmente, a caça parece ser responsável pela maior parte da mortalidade por ali, e não a falta de hábitat. “Conectividade não parece ser um problema”, comenta Camila. Por meio de modelos ecológicos que analisam a pai-sagem ela sugere, em artigo de 2011 na Mamma-lian Biology, que não há impedimento para que esses animais se locomovam por toda a sua área de estudo, que abrange boa parte da Região Sul. Um dado genético que corrobora essa ideia é o baixo parentesco entre os indivíduos que conse-guiu analisar. “Apenas 6,6% dos indivíduos que analisamos eram aparentados”, conta. Para ela, é preciso conscientizar os fazendeiros da impor-tância ecológica dos grandes predadores e buscar soluções, como a construção de currais onde o gado possa passar a noite.

Mesmo nunca tendo conversado, as duas pes-quisadoras continuam a seguir caminhos pa-ralelos. Ambas, atualmente no pós-doutorado, deixaram a genética de lado para se concentrar na análise da paisagem. “São abordagens com-

Artigo científico

MEléNDEz, J. et al. The remarkable solar twin HIP 56948: a prime target in the quest for other Earths. Astronomy & Astrophysics. No prelo, 2012.

Em algum ponto do último século houve uma drástica redução no número das suçuaranas

plementares”, explica Camila. Diante das infor-mações fornecidas pela distribuição da variação genética, surgiram novas perguntas que as leva-ram a buscar entender o ambiente por onde as onças-pardas circulam em busca de detectar os problemas que elas enfrentam e propor soluções para manter populações viáveis desse grande fe-lino encontrado em quase toda a América, exceto em boa parte da Argentina e na metade leste da América do Norte.

Agora ambas trabalham em São Paulo: Rena-ta está construindo um banco de dados sobre a cobertura vegetal e a ocupação da mesma região que examinou até o momento, incluindo um ma-peamento detalhado da malha viária e do fluxo

de veículos, que em conjunto com os dados genéticos formarão um modelo de dispersão. Ao mesmo tempo compila dados de atrope-lamentos e, com ajuda da Polícia Florestal, aumenta sua coleção de amostras genéticas. “A partir des-ses modelos, quero avaliar as rotas preferenciais no deslocamento das onças para definir o que se pode fazer em termos de manejo da pai-sagem”, explica. Camila concentra seu projeto no mosaico das serras da Bocaina e da Mantiqueira, no nordeste paulista, que inclui a re-gião de São José dos Campos. Nessa região, avaliará o hábitat disponível e as possibilidades de locomoção das suçuaranas. “Vou criar valores de permeabilidade para detectar as

áreas prioritárias em termos de conservação.” Em conjunto, os dois projetos podem contri-

buir para reduzir o desequilíbrio que existe entre a América do Norte e a do Sul no que diz respeito ao conhecimento a respeito desse imponente pre-dador. Talvez também cheguem a propostas de práticas pecuárias que melhorem a convivência entre fazendeiros e predadores, e a passarelas ou túneis para travessia de suçuaranas. n

Artigos científicosCASTILHO, C. S. et al. Genetic structure and conservation of Mountain Lions in the South-Brazilian Atlantic Rain Forest. Genetics and Molecular Biology. v. 35 (1), p. 65-73. 2012.

CASTILHO, C. S. et al. Landscape genetics of mountain lions (Puma concolor) in southern Brazil. Mammalian Biology. v. 76 (4), p. 476-83. 2011.

MIOTTO, R. A. et al. Monitoring a puma (Puma concolor) population in a fragmented landscape in Southeast Brazil. Biotropica. v. 44 (1), p. 98-104. 2012.

MIOTTO, R. A. et al. Genetic diversity and population structure of pumas (Puma concolor) in southeastern Brazil: implications for conservation in a human-dominated landscape. Conservation Genecits. v. 12 (6), p. 1.447-55. 2011.

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Fauna do Pré-cambriano y

norte do Paraguai pode abrigar

a maior diversidade de fósseis dos

primeiros animais com esqueleto

A vida protegida por armaduras

Ricardo Zorzetto

Nos arredores de Puerto Vallemí, um povoado com 9 mil moradores no norte do Paraguai, está instalada a única empresa produtora de cimento do país. Ali, a poucos quilômetros da

cidade, a Indústria Nacional del Cemento escava há décadas um paredão rochoso de 640 metros de altura do qual sai boa parte do calcário usado na construção civil paraguaia e a poeira branca que cobre a cidade nos dias de vento forte. Vas-culhando as escavações da mineradora e cavou-cando barrancos nas estradas da região, o geólogo brasileiro Lucas Warren encontrou recentemente o que chama de “mina de ouro da paleontologia”.

As rochas que trouxe de lá e hoje ocupam uma grande mesa de sua sala no Instituto de Geociên-cias da Universidade de São Paulo (USP) estão incrustadas com pequenas estruturas alongadas – elas têm, em média, 1 centímetro de compri-mento – que lembram minhocas aprisionadas em um bloco de lama endurecido pelo sol. Mas são algo muito mais raro, encontrado em pou-quíssimas regiões do mundo. São fósseis do que provavelmente foram os primeiros seres vivos com esqueleto que surgiram no planeta.

cloudinA

coRumbellA

Éden marinhoconheça o ambiente em que surgiram os primeiros seres macroscópicos com esqueleto

5 cm

1,5 m

águAEra límpida, calma,

quente, rica em gás

carbônico e com pouca

profundidade

fundocoberto por uma

esteira gelatinosa de

cianobactérias, servia

para a ancoragem

TRombóliTocianobactérias

depositavam carbonato

de cálcio, que se

solidificava em morros

subsTRAToTrabalhado pelas

correntes, o carbonato

de cálcio produzia uma

areia muito branca e fina

Page 57: Pesquisa FAPESP 199

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Especialista em sedimentologia e paleonto-logia, Lucas estima a idade dos fósseis em 550 milhões de anos, a mesma das rochas de Puerto Vallemí. O geólogo Eric Tohver, pesquisador da University of Western Australia que colabora com a equipe da USP, tenta atualmente datar as rochas contendo os fósseis por técnicas mais precisas. Se a idade for confirmada, esses fósseis estarão entre os mais antigos de animais com esqueleto biomineralizado, ao lado dos achados na Namíbia, sudoeste da África, que viveram há 549 milhões de anos – fósseis encontrados mais recentemente na China sugerem que esse tipo de animal possa ter existido até mesmo antes, mas a identificação deles ainda é incerta.

São poucas, cinco ou seis, as espécies conhe-cidas dos primeiros seres visíveis a olho nu que produziam esqueleto. E, segundo os registros fósseis, elas existiram por pouco tempo, de 550 milhões a 542 milhões de anos de atrás. Em Puer-to Vallemí, Lucas e o geólogo paraguaio Alberto Cáceres encontraram exemplares de duas espé-cies já conhecidas e ao menos mais uma ainda não descrita pela ciência. Também identificaram vestígios de seres vivos de corpo mole que vive-

ram na mesma época e deixaram marcas seme-lhantes a rastros impressas nas rochas.

Pode parecer pouco, mas não é. Encontrar re-gistros de duas ou mais dessas espécies vivendo no mesmo período e na mesma região é muito in-comum. Antes de Vallemí, essa convivência havia sido observada na Namíbia, no Canadá, no Brasil, na China, em Omã e na Rússia. “A qualidade dos fósseis encontrados no Paraguai e a variedade de espécies tornam essa coleção uma das mais com-pletas e representativas da fauna daquele perío-do”, comenta o paleontólogo Thomas Fairchild, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, que, com Lucas, Mírian Pacheco, Claudio Riccomini, Marcelo Simões e outros colaboradores, descre-veu os fósseis de Puerto Vallemí.

Lucas encontrou esses fósseis em uma área delimitada a oeste pelo rio Paraguai e a norte pelo rio Apa, na fronteira com Mato Grosso do Sul, onde os geólogos Paulo Boggiani e Claudio Gaucher já haviam achado um fóssil de um desses animais. Muitas das amostras coletadas por Lucas – algumas ocupam duas mãos abertas – têm cen-tenas de esqueletos fossilizados, aprisionados em uma camada de quase 1 centímetro de espessura.

coRumbellAanimal do grupo dos

cnidários, ao qual

pertencem as medusas

e as águas-vivas,

secretava um esqueleto

composto principalmente

por material orgânico

com forma de pirâmide

invertida

cloudinAProvável membro dos

anelídeos, o grupo

do qual fazem parte

minhocas e vermes

marinhos chamados

poliquetas, produzia

esqueleto mineral à base

de carbonato de cálcio

3 cm

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58 z sEtEMbrO DE 2012

Ele não buscava fósseis quando chegou à região. Nas primeiras expedições em 2006, no início do doutorado sob a orientação de Boggiani, Lucas planejava mapear a evolução da bacia sedimen-tar da região que se estende por Mato Grosso do Sul, Bolívia, norte da Argentina e parte do Chile. As rochas de lá indicavam que essa região havia sido ocupada pelo mar. Há 550 milhões de anos, os continentes tinham uma conformação bem diferente da atual. O imenso bloco continental sobre o qual se assentam a Amazônia e o Paraguai estava isolado do restante da América do Sul, nu-ma posição mais austral (ver mapa ao lado). Esse trecho do continente sul-americano formava um mar raso, de águas límpidas e hipersalinas.

Foi nesse cenário que os seres com esqueleto de Puerto Vallemí provavelmente viveram. A forma como estão preservados nas rochas

indica que viviam ancorados nos sedimentos do fundo, uma esteira esverdeada de cianobactérias que, ao fazer fotossíntese, retiravam gás carbônico da água e o transformavam em carbonato de cálcio.

A maior parte dos fósseis dessa região per-tence a animais de dois gêneros: Corumbella e Cloudina. Os primeiros foram descritos em 1982 pela equipe do geólogo alemão Detlef Walde, da Universidade de Brasília. Rochas coletadas na região de Corumbá, Mato Grosso do Sul, con-tinham fósseis de esqueletos com a forma de uma pirâmide invertida. Os maiores exemplares dessa espécie, denominada Corumbella werneri, alcançavam 10 centímetros de comprimento – no Paraguai eles chegam a 5. Apesar de a espécie ter sido identificada há três décadas, a compo-sição do seu esqueleto ainda não é bem conhe-cida. Analisando exemplares de Corumbella, a paleobióloga Mírian Pacheco e Juliana Basso, do IGc, e colaboradores da Univap e do Instituto de Química e do Laboratório de Astrobiologia da USP, constataram recentemente que o esqueleto desses fósseis tem uma concentração importante de material orgânico – possivelmente à base de quitina, o polissacarídeo do esqueleto dos insetos.

Lucas, Mírian e Fairchild também encontra-ram poros e papilas microscópicas no esqueleto desses animais. Descritas em artigo publicado em agosto deste ano na Geology, essas caracte-rísticas indicam que o esqueleto foi produzido por um cnidário, o grupo ao qual pertencem me-dusas, anêmonas e águas-vivas. São animais com corpo mole bastante simples – basicamente uma cavidade digestiva e uma oral, em alguns casos rodeada por tentáculos com células urticantes.

Até onde se sabe, a distribuição de Corumbella é restrita. Além de Corumbá e de Puerto Vallemí, exemplares desse gênero só foram encontrados na Califórnia. Já os animais do gênero Cloudina eram mais cosmopolitas. Os primeiros exempla-

res, que teriam vivido há 549 milhões de anos, foram identificados em 1972 na Namíbia. Poste-riormente sua presença foi confirmada em quase uma dúzia de países, e agora no Paraguai.

Menores, os fósseis de Cloudina não passam de 3 centímetros. Seu esqueleto lembra casqui-nhas de sorvete ou copos de café empilhados. É composto por camadas de carbonato de cálcio, depositadas à medida que o animal que habitava seu interior crescia. Mais rígido e de origem ex-clusivamente mineral, o que facilita a fossilização, esse esqueleto parece ter garantido mobilidade o suficiente para o animal – de corpo mais com-plexo, provavelmente um anelídeo, grupo a que pertencem as minhocas e os poliquetas (vermes marinhos) atuais – serpentear ao sabor das ondas.

Não se sabe ao certo por que a capacidade de produzir esqueleto surgiu no reino animal, pro-vavelmente mais de uma vez, mas três hipóteses

mapa da minaa região de Puerto Vallemí, onde foram coletados os fósseis no Paraguai, estava sob as águas há 550 milhões de anos

o imenso bloco continental sobre o qual hoje se assentam parte do brasil e o

Paraguai se encontrava em uma posição mais austral e próximo à laurentia,

antigo continente que originou a américa do norte

São Francisco

oeste africano

Paraná

Kalahari

Rio de La Plata

oceano cLymene

antártidaíndia

austrália

Laurentia

amazônia

região da coleta

dos fósseis

chilEParaguai

uruguai

brasil

bolíVia

provável área

ocupada pelo

antigo mar

hoje

há 550 milhões de Anos

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pesQuisA fApesp 199 z 59

tentam explicar. Uma delas sugere que a capa-cidade de produzir esqueleto mineral seria uma forma de eliminar do organismo níveis elevados do carbonato de cálcio extraído da água do mar. Ou seja, seria um mecanismo de desintoxicação. Há também quem pense que o esqueleto, uma vez surgido ao acaso, teria representado uma vanta-gem adaptativa por dar a sustentação necessária para esses animais alcançarem alimentos dispo-níveis acima da camada de sedimentos. “Estar 1 centímetro acima do fundo pode ter permitido ex-plorar uma região sem competidores”, diz Lucas.

Mas ele, Fairchild e os outros pesquisadores do IGc apostam numa terceira possibilidade: o es-queleto, surgido ao acaso, funcionaria como uma armadura que aumenta a chance de sobreviver ao ataque de predadores. A razão que os leva a acre-ditar nessa hipótese é a coexistência de seres com estratégias distintas de produção de esqueleto – os

exemplares de Cloudina, que extraem a matéria--prima da água, e os de Corumbella, que sintetizam em grande parte a partir de compostos orgânicos.

A predação, aliás, era uma forma de intera-ção completamente nova. A vida surgiu na Terra há 3,5 bilhões de anos. Os primeiros

seres vivos, as bactérias, tinham apenas uma cé-lula, uma espécie de bolsa minúscula contendo material genético e proteínas. E pelos 3 bilhões de anos seguintes pouca coisa mudou. Alguns seres unicelulares passaram a viver em colônias, em que cada grupo de células executava funções di-ferentes. Mas, juntas, não formavam um organis-mo. Só entre 580 milhões e 560 milhões de anos atrás é que começaram a aparecer os primeiros organismos multicelulares, de corpo gelatinoso organizado em tecidos e formas incomuns (disco ou pena), conhecidos como biota de Ediacara.

Foi nessa época que apareceram os primeiros seres vivos capazes de se deslocar sobre os se-dimentos no fundo dos mares”, conta Fairchild. Até então eles viviam fixos e fabricavam o pró-prio alimento usando a luz solar e os nutrientes disponíveis no ambiente. “Antes do surgimento do esqueleto, a vida era paz e amor”, brinca.

Seja qual for a razão da origem do esqueleto, o fato é que essa estrutura parece ter influencia-do radicalmente a vida no planeta. Assim que os primeiros seres com armadura desapareceram, há 542 milhões de anos, floresceu uma imensa variedade de seres vivos com corpos cada vez mais complexos, precursores de todos os organis-mos que vivem hoje. Essa mudança é a chamada explosão de vida do Cambriano. “Quem quiser entender melhor o que aconteceu nessa fase de transformação da vida no planeta”, diz Lucas, “não vai poder ignorar os fósseis de Vallemí”. n

Projetos1. Isótopos Estáveis (C, O e Sr) do Grupo Itapucumi e correlações com o Grupo Corumbá (Ediacarano) – nº 2010/02677-0; 2. Tectônica e sedimentação do Grupo Itapucumi no contexto das plataformas carbonáticas ediacaranas: abordagem geoquímica, geocronológica, paleomagnética e bioestratigráfica – nº 2010/19584-4. Modalidade: 1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; 2. Pós-doutorado no país. Coordenadores: 1. Paulo Cesar Boggiani – IGc/USP; 2. Lucas Warren – IGc/USP. Investimento: 1. R$ 88.107,25 (FAPESP); 2. R$ 150.870,57 (FAPESP).

artigos científicosWARREN, L.V. et al. The dawn of animal skeletogenesis: Ultrastructural analysis of the Ediacaran metazoan Corumbella werneri. Geology. v. 40. p. 691-94. ago. 2012.

WARREN, L.V. et al. Corumbella and in situ Cloudina in association with thrombolites in the Ediacaran Itapucumi Group, Paraguay. Terra Nova. v. 23 (6), p. 382-89. dec. 2011.

PACHECO, M.L.A.F. et al. Taphonomic Analysis and Geometric Modelling for the Reconstitution of the Ediacaran Metazoan Corumbella werneri Hahn et al. 1982 (Tamengo Formation, Corumbá Basin, Brazil). Journal of Taphonomy. v. 9. p. 269-283. 2011.

1 Trombólito coletado em Vallemí

2 impressão em rocha deixada por Cloudina

3 restos de exemplar de Corumbella

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60 z Setembro De 2012

Emissões do pior gás causador do efeito estufa pela

cana-de-açúcar são menores do que se estimava

canavial mais limpo

as emissões diretas de gases causado-res do efeito estufa na plantação de cana-de-açúcar são bem inferiores às estimadas na literatura científica in-

ternacional. Esse é o principal resultado de um estudo de campo feito por um grupo de cientistas de diferentes universidades e centros de pesqui-sa nacionais em canaviais paulistas. O foco do levantamento, publicado no periódico Global Change Biology Bioenergy, foi a emissão de óxido nitroso (N2O), considerado o mais deletério gás de efeito estufa, quase 300 vezes mais prejudicial ao ambiente do que o dióxido de carbono (CO2) e com grande persistência na atmosfera. A fonte de geração de óxido nitroso em canaviais são os fertilizantes nitrogenados usados pelos agricul-tores para fazer a planta crescer. Os resultados dos pesquisadores são importantes porque, caso as emissões de óxido nitroso fossem muito ele-vadas, o etanol feito a partir da cana teria seus benefícios ambientais questionados. O Brasil é o maior produtor mundial da planta, com um volume anual de 596 milhões de toneladas.

“O objetivo do nosso trabalho foi traçado em razão de uma publicação de 2008 do cientista holandês Paul Crutzen, prêmio Nobel de Quími-ca de 1995, em que ele afirma que os fatores de emissão de óxido nitroso em culturas destinadas à produção de biocombustíveis seriam superiores a 3%, podendo chegar a 5%, afetando diretamente o clima do planeta”, diz a engenheira agrônoma Janaína Braga do Carmo, coordenadora da pes-quisa e professora do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Car-

AqUECIMENTO glOBAl y

Yuri Vasconcelos

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los (UFSCar), em Sorocaba, no interior paulista. Outro prognóstico, feito por especialistas do Pai-nel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), apontava um fator de emissão mais baixo, em torno de 1%.

“Nosso estudo foi o primeiro feito a partir de medidas de campo, e não baseado em modelos matemáticos ou estimativas indiretas, e mostrou que as emissões de óxido nitroso nos canaviais paulistas situam-se muito mais próximas do que foi estimado pelo IPCC – ou seja, num nível bem inferior ao prognosticado por Crutzen”, diz Janaí-na, ressaltando que o estudo do prêmio Nobel não foi referente apenas ao etanol produzido no Brasil, mas sim a uma visão global da produção mundial do combustível, incluindo o etanol de milho e de outras culturas. O fator de emissão é uma medida que expressa a porcentagem de nitrogênio perdi-da para a atmosfera na forma de óxido nitroso em relação à quantidade de nitrogênio adicionado ao solo via fertilizante nitrogenado. O óxido nitroso é liberado no ar por microrganismos presentes no solo por meio de dois processos conhecidos como nitrificação e desnitrificação.

A pesquisa revelou que o fator de emissão em plantações que receberam apenas fertilizantes nitrogenados é de 0,68% – ou seja, de cada 100 quilos de nitrogênio usados na adubação da la-voura, 680 gramas foram transformados em óxi-do nitroso e “vazaram” para a atmosfera. Mas esse valor sobe para 3% em áreas onde também é usada vinhaça como fertilizante e grande vo-lume de palha acumulada no solo após a colhei-ta. A vinhaça, um resíduo da produção sucroal-

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FAtoRES dE EmISSão

FAtoRES dE conSUmo

Sobe e desceFatores de emissão e consumo de carbono e outros gases do efeito estufa na plantação de cana-de-açúcar

FolhAS

RAIzmIcRoRgAnISmoS

RESPIRAção

Com liberação de CO2 e consumo

de oxigênio (O2) pelas folhas

FotoSSíntESE

Com absorção de dióxido

de carbono (CO2) pelas folhas

RESPIRAção do Solo

Raiz e microrganismos liberam

carbono (CO2)

dESnItRIFIcAção

é o processo de transformação

do fertilizante nitrogenado (NO3-

Nitrato) em óxido nitroso (N2O)

AbSoRção dE mEtAno

Bactérias consomem e oxidam

o metano (CH4) para obtenção

de energia (carbono) durante a

decomposição da matéria orgânica

co2co2

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62 z Setembro De 2012

vinhaça ou torta de filtro e adubada ape-nas com fertilizante nitrogenado. “Nosso trabalho mostrou que, com esse tipo de tratamento, as emissões de óxido nitroso são pequenas. Se as estimativas previstas na literatura estivessem certas, o prejuí-zo ambiental causado pelo óxido nitroso não seria compensado pelo consumo de carbono ocasionado pela fotossíntese e pela elevada eficiência energética da cana”, diz Janaína. Além de avaliar o fa-tor de emissão de N2O, os pesquisadores também calcularam as emissões totais de três dos principais gases do efeito es-tufa: óxido nitroso, dióxido de carbono e metano. Para comparar o efeito dessas emissões entre os experimentos e os di-versos tratamentos, eles converteram as emissões desses três gases em equiva-lentes de CO2, que é uma medida usada para cotejar as emissões de vários gases de efeito estufa baseada no potencial de aquecimento global de cada um – o do óxido nitroso, por exemplo, é 296 vezes maior que o dióxido de carbono. O CO2

equivalente de uma determinada fon-te emissora, portanto, é o resultado da multiplicação das toneladas emitidas de gases de efeito estufa (GEE).

Nas duas plantações, cana-planta e cana-soca, os valores mais altos de CO2 equivalente estavam associados ao uso de vinhaça. Em cana-planta, os níveis críticos de emissão de CO2 equivalente (1.380 quilos por hectare por ano) foram atingidos quando se usou ureia, torta de filtro e vinhaça. Em cana-soca, o pior ce-nário foi aquele em que se usou vinhaça e 21 toneladas de palha acumulada no solo por hectare. Nessa situação, geraram-se 3 mil quilos de CO2 equivalente por hec-tare por ano. n

Projetos1. N2O, CO2 e CH4 Emissions from agro-biofuel production in São Paulo State, Brazil – nº 2008/55989-9; 2. Nitrogen nutrition of sugarcane with fertilizers or diazotrophic bacteria – nº 2008/56147-1. Modalidade: 1. Projeto Jovem Pesquisador do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen); 2. Projeto Temático do Bioen. Coordenadores: 1. Janaina Braga do Carmo – UFSCar; 2. Heitor Cantarella – IAC. Investimento: 1. R$ 237.330,83 e US$ 67.054,00 (FAPESP); 2. R$ 957.280,37 e US$ 75.853,15 (FAPESP)

Artigo científicoCARMO, J.B. et al. Infield greenhouse gas emissions from sugarcane soils in Brazil: effects from synthetic and organic fertilizer application and crop trash accumulation. Global Change Biology Bioenergy. On-line, 26 jul. 2012.

Impacto menor na atmosferaAs diferenças de emissões entre as estimativas e o estudo no campo

FERTIlIzAçãO NITROgENADA

FERTIlIzAçãO NITROgENADA

5%a3%

1% 0,68%

3%

Estimativa de Paul Crutzen

Resultado no campo

Resultado no campo

Estimativa de

especialistas do IPCC

normalmente adiciona 60 quilos de ni-trogênio, na forma de ureia, por hectare. Em Piracicaba, a 165 quilômetros de São Paulo, o foco foram lavouras de cana--soca, fase posterior ao primeiro corte da planta, quando não há necessidade de preparo do solo e são aplicados de 100 a 150 quilos de fertilizante nitroge-nado por hectare, normalmente sulfa-to de amônio ou nitrato de amônio. Em Jaú, além da ureia, os blocos receberam vinhaça, torta de filtro – um resíduo da indústria canavieira composto por ba-gaço moído e lodo – ou os dois juntos; em Piracicaba, estudou-se o efeito da palha no solo. Os quatro tratamentos estudados nesse município receberam quantidades diferentes de palha, com 0, 7, 14 e 21 toneladas por hectare e, para cada um, verificou-se o nível de emissão com e sem aplicação de vinhaça.

“Nossos cálculos indicam que o valor mais alto do fator de emissão de N2O en-tre todos os experimentos e tratamentos (3,03%) foi observado em cana-soca (Pi-racicaba) tratada com vinhaça e contendo a maior quantidade de palha na super-fície do solo, 21 toneladas por hectare”, apontou o estudo. “Em cana-planta, os tratamentos com vinhaça mais fertilizan-te sintético tiveram o mais elevado fator de emissão (2,65%). Sem vinhaça, o valor cai para 1,1%.” O menor fator de emissão, de 0,68%, foi encontrado no experimento com cana-soca no tratamento sem palha,

FontE janaina Do carmo/ufScar

FERTIlIzAçãO COM VINHAçA

cooleira, é largamente empregada como fertilizante nos canaviais, em razão de seus altos teores de potássio, enquanto a palha forma uma camada protetora que reduz a erosão e as perdas de água no solo. “Nosso estudo mostra que pre-cisamos desenvolver métodos de manejo para diminuir as emissões associadas ao uso da vinhaça e da palha”, diz Janaína.

dIFEREnçA no tRAtAmEnto O trabalho coordenado por Janaína in-tegra o Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e teve a partici-pação de pesquisadores da Universida-de de Maryland, nos Estados Unidos, do Instituto Agronômico (IAC), do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), do Cen-tro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena/USP), da Embrapa Meio Ambiente, da Universi-dade Federal Rural de Pernambuco (UFR-PE) e da Agência Paulista de Tecnologia.

No total, os pesquisadores quantifica-ram as emissões de gases de efeito estufa em oito diferentes tratamentos em ca-naviais, cada um com um tipo de adu-bação diferente. No município de Jaú, a 300 quilômetros da capital, os expe-rimentos foram feitos em plantações de cana-planta, nome dado à primeira safra do plantio quando ocorre o preparo do solo para abertura dos sulcos onde serão colocados os colmos – um tipo de cau-le da cana. Na cana-planta, o agricultor

dESdE 2008 Em 2012

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PESQUISA FAPESP 199 z 63

• gERMâNIO • NIóBIO • CARBONO

Brasileiros descobrem nova família de materiais capazes

de conduzir eletricidade sem perda de energia

os engenheiros de materiais Antonio Jefferson Machado e Carlos Alberto Moreira dos Santos, ambos da Escola de

Engenharia de Lorena, da Universidade de São Paulo (USP), transformam radi-calmente as propriedades elétricas de um composto metálico ao inserir, entre os átomos que formam sua rede cristali-na, átomos de elementos químicos mais leves como boro, carbono e nitrogênio. Por meio dessa técnica, conhecida co-mo dopagem intersticial, eles já criaram desde 2003 quase 30 novos materiais supercondutores de eletricidade.

A descoberta do mais promissor des-ses supercondutores foi anunciada em junho deste ano em artigo publicado no Journal of Applied Physics. Nele, os pes-quisadores de Lorena, em parceria com o engenheiro de materiais Ausdinir Bor-tolozo, da Universidade Federal de Itaju-bá, e os físicos Renato Jardim, da USP, e Flávio Gandra, da Universidade Estadual de Campinas, descrevem o que acontece quando se adiciona uma pitada de áto-mos de carbono durante o processo de fabricação de um composto metálico já bem conhecido, feito de nióbio e germâ-nio, o Nb5Ge3, que desde 1977 interessa-va pouco à ciência dos materiais por se tornar supercondutor a uma temperatura considerada baixa demais, inferior a -272 graus Celsius (°C). “O comportamen-to elétrico do material dopado mudou completamente”, diz Machado, que já tem resultados preliminares de outras dopagens bem-sucedidas do Nb5Ge3, usando outros seis elementos químicos.

O material dopado com carbono é su-percondutor à temperatura de -258°C, a mais alta já obtida pelos brasileiros e

NOVOS MATERIAIS y

o valor das impurezas

Supercondutor à brasileira: composto à base de germânio (vermelho) e nióbio (azul) passa a conduzir eletricidade sem resistência ao incorporar átomos de carbono (preto)

considerada interessante pela indús-tria. Apesar de gélida, essa temperatura está 11 graus acima do ponto de ebuli-ção do hélio líquido (-269,15°C), que é normalmente usado para refrigerar os metais supercondutores em suas apli-cações tecnológicas, por exemplo, nos equipamentos que fazem imagens por ressonância magnética.

RESIStÊncIA nUlAUm material supercondutor é aquele em que a resistência elétrica desapa-rece abaixo de certa temperatura. Isso significa que uma corrente elétrica pode fluir pelo material sem perder energia na forma de calor. A supercondutividade foi observada pela primeira vez em 1911, pelo físico holandês Heike Onnes, e de lá para cá foram descobertos diversos materiais supercondutores, a maioria metálicos, funcionando a temperaturas baixíssimas, poucas dezenas de graus acima do zero absoluto (-273°C).

Apesar de relativamente alta, a tem-peratura alcançada pelos brasileiros não

Artigo científico

BORTOLOZO, A. D. et al. Interstitial doping induced superconductivity at 15.3K in Nb5Ge3 compound. Journal of Applied Physics. 2012.

chega perto do recorde mundial, estabe-lecido por outra classe de materiais, à base de óxidos de cobre, que surgiu nos laboratórios a partir de 1987, com tem-peraturas supercondutoras superiores a -196°C. Esses materiais de natureza cerâmica, entretanto, são quebradiços e heterogêneos, o que impede sua pro-dução em larga escala. Por isso, ainda se busca um material supercondutor a temperaturas mais altas, mas maleável e homogêneo como os metais.

Segundo o físico Zachary Fisk, da Uni-versidade da Califórnia, em Irvine, a des-coberta dos brasileiros abre a possibili-dade de usar a dopagem intersticial para buscar as tão sonhadas ligas metálicas supercondutoras a temperaturas mais altas. “É um desenvolvimento empol-gante”, comenta. n

Igor zolnerkevic

MolécUlAs trANsForMADAs

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64 z Setembro De 2012

Cidade alemã à beira do lago

Constance reúne dezenas

de laureados para inspirar

novas gerações de cientistas

Desde 1951, a pequena cidade turística de Lindau à beira do lago Constance, no sul da Alemanha, é palco de um encontro anual de alguns dias que coloca lado a

lado ganhadores do Nobel e jovens cientistas, em início de carreira. Em 2012, a 62ª edição do evento ocorreu entre 1º e 6 de julho e reuniu 27 laureados com o maior prêmio da ciência, a maioria físicos, e 592 alunos de 69 países, inclusive brasileiros. O objetivo do encontro é promover a troca de ex-periências entre alguns dos mais famosos e bem--sucedidos pesquisadores e as novas gerações de investigadores que estão chegando aos laboratórios.

Neste ano a reportagem de Pesquisa FAPESP acompanhou os três primeiros dias da reunião, or-ganizada pelo Conselho dos Encontros do Nobel em Lindau e pela Fundação para os Encontros do No-bel em Lindau, com apoio de entidades acadêmicas de todo o mundo. Das conversas e entrevistas com os laureados, duas foram destacadas para a revista.

A primeira é com o astrofísico americano-aus-traliano Brian P. Schmidt, da Universidade Na-cional da Austrália, ganhador do Nobel de Física do ano passado ao lado de Saul Perlmutter, da Universidade da Califórnia, e Adam G. Riess, da Universidade Johns Hopkins e do Instituto de Ciência do Telescópio Espacial. Por meio de observações de estrelas supernovas distantes, a trinca de pesquisadores mostrou que o Universo

NOBEl y

Encontro premiado

está se expandindo de forma acelerada. Em sua palestra em Lindau, Schmidt, de 45 anos, falou das dificuldades que os físicos enfrentam para tentar entender os componentes do Universo. A chamada matéria bariônica, os átomos e molé-culas conhecidos, responderia por 4% do Cosmo. A misteriosa matéria escura, por 23% e a ainda mais desconhecida energia escura – que pode ser a força responsável pela aceleração da expansão do Universo – por 73%. Nesta entrevista o astrofísico comenta as possibilidades atuais de comprovar a existência desses dois ingredientes do Cosmo.

A segunda entrevista é com o mexicano Mario Molina, ganhador do Nobel de Química em 1995 conjuntamente com Paul Crutzen e Sherwood Rowland. Os três pesquisadores iniciaram estu-dos na década de 1970 com os gases clorofluor-cabonos (CFC) que levaram à constatação de que esses compostos, usados por décadas em siste-mas de refrigeração e hoje proibidos, destruíam a camada de ozônio da atmosfera. Essa camada é a responsável por proteger a Terra dos efeitos nocivos dos raios ultravioleta vindos do Sol. Hoje professor da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), Molina, de 69 anos, fala sobre os riscos das mudanças climáticas.

marcos Pivetta, de lindau*

* o jornalista Marcos Pivetta viajou a lindau a convite do

serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (Daad)

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PESQUISA FAPESP 199 z 65

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Para brian Schmidt, a matéria escura talvez possa ser medida em laboratório. mas a energia escura é um caso mais complicado

Juntas, a energia escura e a matéria escura re-presentam 96% do Universo, segundo o Modelo Padrão da cosmologia. O que pode ser feito para tentar desvendar esses dois componentes miste-riosos do Cosmo sobre os quais pouco se sabe?A primeira coisa que temos de fazer é continuar

testando a teoria. Estamos fazendo cada vez mais e melhores testes e, até agora, ela parece funcionar. Se continuarmos testando a teoria, é até possível que ela seja refuta-da. Mas seria muito interessante comprovar a existência da matéria escura num experimento de labo-ratório. Se descobrirmos o que é essa partícula de matéria escura e medir quanto dela existe, teremos um proje to de trabalho. Realmente acho que isso seja possível. Há uma boa possibilidade de que isso acon-teça no próximo ano ou talvez daqui a 10 anos. Não sabemos.

E a energia escura?A energia escura é um problema de ordem muito mais fundamen-tal. Nunca poderemos medi-la num laboratório. Não se trata de uma partícula que possa ser detectada.

Em busca de 96% do UniversoPrecisamos ter um pensamento profundo so-bre por que ela existe e por que há essa quan-tidade de energia no Universo. Não temos uma base teórica para explicá-la. Apenas sabemos que ela existe em razão da gravidade. Ou seja, precisamos de um insight teórico fundamental. Há um problema fundamental entre o que diz a teoria quântica de campos e como a gravidade funciona no Universo. Algo está desconectado. Na minha visão, precisamos entender essa ques-tão. Se desvendarmos isso, talvez consigamos descobrir como a gravidade e a teoria quân-tica de campos trabalham juntas ou ao menos entender por que a teoria quântica de campos está dando a resposta errada. Esse é o cerne da questão para mim.

Como se pode comprovar em laboratório a exis-tência da matéria escura?Há três maneiras de obter esse resultado. Pode-ríamos criar a matéria escura no Grande Colisor de Hádrons (LHC), do Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern). Nesse caso, não detectaríamos realmente a matéria, meio que a veríamos deixando o detector e percebe ríamos que algo estava faltando. Outra maneira é por meio de uma detecção direta da matéria es cura. Resfriaríamos uma caixa de um material o mais próximo possível do zero absoluto e a enterra-

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66 z Setembro De 2012

ríamos uns três quilômetros abaixo da terra, onde nada pudesse atingi-la. As partículas e a matéria escura se dirigem para a Terra, então, talvez, alguma possa atingi-la. Se isso ocorrer, a caixa emite um pin [um som]. Esse pin é um fónon [uma partícula de som, que é um tipo de energia vibracional] que passa pelo detector. Alguns cientistas já fizeram isso por três anos. Até agora não houve nenhuma detecção. Mas esses experimentos vão continuar, ficar maiores e podem detectar a matéria escura. Há também um terceiro jeito de comprovar a matéria escura. Achamos que a matéria escura pode interagir com ela mesma e acabar gerando raios gama ou algo parecido que pode ser detectado pelos astrofísicos. Há alguma emissão de raios gama no meio de nossa galáxia que não entendemos. Ela pode estar relacionada com a matéria escu-ra ou não. Ainda não temos informações sobre essa questão.

Não há forma de comprovar por ora a presença da energia escura no Universo?Não vejo nenhuma forma fácil de detectar a energia escura. Já melhoramos nossas observa-ções do Universo num fator de 10. Não há ne-nhum indício de que a visão de Einstein sobre o Universo esteja errada, nem mesmo um vis-lumbre de que ele esteja errado [Einstein con-jecturou que havia uma força oposta à gravidade que faria o Univer so se expandir, mas rejeitou posteriormente essa ideia, hoje reabilitada pe-las evidências mais recentes]. Mas isso não quer dizer que ele não esteja errado. As medições vão melhorar mais ainda nos próximos anos, nova-mente num fator de 10. Quando isso acontecer, não vamos conseguir melhorar mais.

Teremos então notícias relevantes sobre a ma-téria escura mais cedo do que sobre a energia escura?Esse é o meu palpite.

Uma pergunta que não tem a ver com astrofí-sica. Por que o senhor virou produtor de vinho na Austrália?Eu tenho um vinhedo, que plantei no ano 2000, e uma vinícola, a Maipenrai, localizada no distrito de Camberra. Produzo cerca de 3 mil garrafas de Pinot Noir por ano. Eu as vendo na Austrá-lia. Esse é meio que o meu trabalho fora da área de astronomia, para impedi-la que assuma o controle da minha vida. Não gosto de chamar essa atividade de hobby. Afinal, pago impostos por fazer vinho. Gasto muito dinheiro e tem-po. Acredite em mim. É muito mais do que um hobby. É uma terapia. É muito prazeroso fazer isso. Eu e minha família fazemos todo o traba-lho na vinícola.

o risco das mudanças climáticasDepois de sua palestra sobre os riscos das mu-danças climáticas, o físico Ivar Giaever, ganha-dor do Nobel de 1973, fez uma apresentação na qual negou que as atividades humanas tenham algo a ver com esse processo. O que o senhor achou da fala de seu colega?Infelizmente, ele ganhou um Nobel numa área da física que não tem nada a ver com as mudanças climáticas [o prêmio foi por trabalhos a respeito do tunelamento em sólidos]. Como demonstrou em sua palestra, ele não sabe essencialmente nada sobre as mudanças climáticas. Cometeu enormes erros. É uma pena. Gostaria de ter tido a chan-ce de sentar e conversar com ele, de fazê-lo ver que, para aprender uma nova área da ciência, não basta entrar na internet, pegar alguns números em poucos minutos e dar uma palestra. É preciso inventariar toda a literatura científica, o que ele invariavelmente não fez. Foi embaraçoso ver um Nobel numa posição tão ridícula. A situação ilus-tra um problema que acontece com quem ganha o Nobel. Somos perguntados sobre tudo: religião, política etc. É preciso deixar claro que, às vezes, falamos como pessoas, não como ganhadores do Nobel. O senhor Giaever está muito distante do seu campo de atuação na física. A questão das mudanças climáticas está bem estabelecida na literatura científica.

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O peso do homem nas mudanças climáticas é mais do que evidente a seu ver?É como um jogo de roleta. De acordo com o últi-mo relatório do IPCC, temos uma probabi lidade de mais de 90% de que as mudanças vão ocorrer. É bastante óbvio que elas já estão ocorrendo. Há

uma grande probabilidade de que a origem das mudanças sejam as atividades humanas. É difícil fazer previsões do que deve acontecer daqui a 10 ou 20 anos. Há muitos elementos cujo papel não sabe-mos, como o das nuvens. Talvez as coisas sejam até piores do que pensamos. Daí é que vem a im-portância do conceito de risco. É muito provável que será mais cus-toso não fazermos nada. Além da questão econômica, há problemas sociais. É uma irresponsabilida-de com as futuras gerações não fazermos nada. A vida deles será mais difícil. A ciência do clima é um sistema complexo. Não temos 100% de certeza sobre as mudan-ças. Mas temos informação sufi-ciente para agir. Temos de passar a informação de que há um risco real. Temos de contar histórias para que o público entenda a si-tuação, mas sem exageros ou in-

venções. É como quando o médico diz para você que encontrou um tumor. Pode ser câncer ou não. Mas ninguém deixa de fazer um teste para saber se é câncer mesmo, ainda que, estatistica-mente, o risco seja de 20%. Não temos certeza sobre as mudanças, mas há um risco real. E só temos um planeta.

O que o senhor acha de propostas, como a de-fendida por seu colega Paul Crutzen, de injetar compostos na atmosfera para resfriá-la?

É válido que a comunidade científica estude um plano B, que tente aprender mais sobre o sistema. Não há nenhum dano se você apenas estuda essa questão. A injeção de enxofre, pro-posta por Crutzen, já acontece naturalmente quando os vulcões entram em erupção. No ca-so de um vulcão, demora uma semana para os efeitos da emissão sumirem. Talvez pudésse-mos injetar continuamente enxofre e, se essa medida não funcionar, tudo voltaria à situação anterior em um ou dois anos. Mas essa opção é arriscada. É muito mais sábio reduzir as emis-sões de carbono.

O senhor também ficou decepcionado com os resultados da conferência Rio+20?Infelizmente, não pude ir à reunião, mas enviei um vídeo. O consenso geral é de que não se che-gou a nenhum comprometimento. Espero que isso seja um reflexo de uma situação temporária. Foi um sinal de que a sociedade precisa fazer mui-to mais. Temos algumas questões que parecem interferir na discussão da preservação do meio ambiente, de um desenvolvimento sustentável, como a crise econômica, que espero que esteja chegando ao fim. Não se pode trabalhar com a ideia de que ou se mantém a economia, ou se mantém o ambiente. Se não mantivermos o am-biente, o custo será muito mais alto. Mas há for-tes grupos com interesses nessa questão. Os que vão perder mais fazem mais barulho. Há tam-bém a pressão política. Os Estados Unidos ainda são uma grande barreira. O Partido Republicano questiona a ciência do aquecimento global e a ciência em geral. É algo tão irracional que acho que essa situação é temporária, não tem como se prolongar por muito mais tempo.

É possível um acordo em breve?Acho que podemos chegar a um acordo, mas não no contexto atual. Vamos ter de esperar alguns anos. A política interna dos Estados Unidos é um empecilho. O Congresso americano não ratifica-ria um compromisso internacional. Os Estados Unidos são uma economia muito forte. Hoje a China emite mais gases de efeito estufa, mas cumulativamente os americanos são os maiores emissores. Eles têm de participar de um acordo internacional. A Califórnia está fazendo algo, a Europa também. O Brasil tem diretrizes interes-santes na questão dos biocombustíveis. Como disse na minha palestra, é bastante claro que eventos extremos já estão acontecendo e devem se intensificar. Quando a sociedade se der conta de que as mudanças já estão nos afetando ago-ra, de que esse não é um problema apenas para a geração dos nossos netos, haverá uma grande motivação. Com a melhora da economia mun-dial, espero que essa situação mude. n

mario molina diz que as causas do problema não são 100% conhecidas, mas há informação suficiente para agir

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Buraco (azul) na camada de ozônio: Molina foi um dos descobridores do papel dos gases CFC que causam o fenômeno 2

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Um mosquito transgênico e outro irradiado

são as novas armas contra a dengue

tEcnologIA CONTROlE DE DOENçAS y

a transformação dos insetos

Evanildo da Silveira

Reduzir a população do mosquito transmissor da dengue, única forma atualmente disponível para controlar a doença, é o objetivo de dois projetos desenvolvidos por pesquisadores brasileiros, um em Piracicaba, no interior de São Paulo, e outro em

Juazeiro, na Bahia. A meta de ambos é a mesma: produzir em laboratório, em larga escala, machos da espécie Aedes aegyp-ti – que transmite o vírus causador da dengue – incapazes de gerar filhotes saudáveis e depois soltá-los no ambiente para competir pelas fêmeas com os congêneres selvagens. Mas as estratégias para atingir esse fim são diferentes. Enquanto em São Paulo os insetos são bombardeados com radiação gama para torná-los estéreis, na Bahia optou-se pela transgenia (ver Pesquisa FAPESP nº 180). Eles recebem um gene modifica-do que produz uma proteína fatal para a prole resultante do cruzamento com as fêmeas normais existentes no ambiente. A ideia por trás dessas estratégias é liberar em massa os mos-quitos transgênicos e irradiados, ambos incapazes de procriar em áreas infestadas pelo Aedes aegypti.

A dengue é um dos principais problemas mundiais de saúde pública. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), todos os anos 50 milhões de pessoas contraem a doença, das quais 550 mil são internadas nos hospitais e 20 mil morrem. A liberação contínua e em número suficiente desses insetos in-férteis deve ajudar a amenizar o problema, reduzindo a popu-lação nativa do Aedes a um nível abaixo do necessário para a transmissão da doença. Em maior número, eles terão vantagens

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competitivas com os machos selvagens férteis, que terão menos chances se acasalar e gerar filhotes. Não há risco ao soltá-los no ambiente, porque so-mente as fêmeas transmitem o vírus da dengue.

O mais recente dos dois projetos é resultado de uma parceria entre o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), da Universidade de São Paulo (USP), de Piracicaba, e a empresa Bioagri, um grupo privado de laboratórios de análises. O professor Valter Arthur, do Departamento de Radiobiologia e Ambiente do Cena, conta que a ideia do trabalho surgiu há pouco mais de quatro meses, durante uma conversa com Márcio Adriani Gava, diretor técnico da Bioagri. “Ele me procu-rou porque queria fazer um curso de doutorado sob minha orientação”, diz. “Como eu sabia que no laboratório da Bioagri estavam criando mos-quitos para teste de eficiência de inseticidas e nós aqui trabalhamos com irradiação de insetos há mais de 30 anos, propus a parceria.”

A intenção foi aproveitar a experiência e as instalações da unidade da Bioagri, no município de Charqueada, a 20 quilômetros de Piracicaba, para a criação de mosquitos, e os conhecimen-tos e equipamentos do Cena. “Há 15 anos cria-mos insetos, que são utilizados por fabricantes de inseticidas e larvicidas para testar a eficácia

de seus produtos”, conta Gava. “Além do Aedes aegypti, mantemos criação do Culex quinquefa-ciatus e do Anopheles aquasalis.” Na fábrica de Charqueada são produzidos em média 3 mil in-divíduos de cada espécie por mês.

O Cena, por sua vez, desde 1968 possui irradia-dores de raios gama. A máquina utilizada é cilín-drica, com pouco mais de 2 metros de altura e cerca de 80 centímetros de diâmetro, toda revestida de chumbo. No interior dela há pastilhas de cobal-to-60, que emitem os raios gama dentro de uma câmara também interna de 17 por 13 centímetros, onde são instaladas as amostras, como mosquitos, frutas ou sementes. No Cena, o equipamento é usado para esterilizar insetos e em pesquisas nas áreas de conservação e desinfecção de alimentos, tratamento quarentenário de pragas de produtos agrícolas e de sementes para aumento de produção.

O processo que leva ao Aedes estéril começa na Bioagri. Em seus criatórios, populações do mosquito são mantidas em gaiolas para acasala-mento e postura dos ovos. Para isso há pequenos recipientes com água e um papel na borda, onde acontece a postura. Três vezes por semana os pa-péis com os ovos são retirados e colocados numa bandeja com água em outras gaiolas. Depois de três a quatro dias eles eclodem, transformando-se

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IntERVEnçãocRIAção REPRodUçãolIbERAção

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em larvas. Após mais oito dias, em média, as lar-vas se transformam em pupas, que são recolhidas e separadas conforme o sexo. Para isso, elas são colocadas num aparelho, formado por duas placas de acrílico, paralelas. Como as pupas das fêmeas são maiores, elas não passam pelo espaço entre as duas placas. As dos machos são recolhidas num recipiente com água, que depois é colocado no irradiador do Cena para que recebam a radiação.

doSE IdEAlSegundo Arthur, o ideal seria irradiar os adultos, que já estão com o aparelho reprodutor e outros órgãos completamente formados para diminuir os efeitos da radiação. Mas seria muito difícil e complicado colocar 5 ou 10 mil insetos vivos num pequeno recipiente. Por isso, optou-se pelas pu-pas, que correspondem à fase mais próxima do animal adulto. “No início do projeto, o objetivo foi determinar a dose ideal de radiação”, diz Arthur. “Ela teria que ter uma quantidade de energia que não matasse os mosquitos, mas que provocasse mudanças em seu sistema biológico, tornando-os inférteis. Além disso, o macho estéril teria que manter as mesmas características dos que estão no ambiente, para poder disputar as fêmeas em condição de igualdade. Ele teria que copular com a fêmea e ela colocar ovos que não eclodissem.”

Para isso, os pesquisadores testaram doses de radiação de 10, 20, 30, 40, 100 e assim por diante até 150 grays (Gy). Gray é uma unidade do Sis-tema Internacional de Medida, que representa a quantidade de radiação absorvida (ou dose) por unidade de massa. No experimento no Cena, a cada dose foram utilizadas uma média de 300 a 500 pupas, que depois voltavam para as gaiolas para completar seu crescimento. Com a dife-rença de que deveriam gerar machos inférteis. “Constatamos que a quantidade de energia ideal, mais eficiente para nossos objetivos, foi de 30 Gy”, explica Arthur. “É uma dose relativamente pequena. Para comparar, são necessários cerca de 5 mil Gy para matar uma borboleta.”

Arthur faz questão de deixar claro que insetos, frutas ou outros produtos irradiados não apre-sentam nenhum risco de contaminação para a saúde das pessoas ou para o ambiente. “Muitos confundem material irradiado com contaminado ou radiativo”, diz. “Uma coisa não tem nada a ver com a outra. O material irradiado apenas recebe energia, que interage com a matéria e depois se dissipa. Ele não fica contaminado com material radiativo das pastilhas de cobalto-60. O mesmo acontece com uma pessoa que se submete a um exame de raios X. Ela recebe a radiação, mas não fica contaminada.”

criação de mosquitos em laboratórioComparação entre as duas formas de produzir o Aedes aegypti para combater a dengue

Tetraciclina

IndIVídUoS tRAnSgÊnIcoS

Importados da Inglaterra, se reproduzem e geram descendentes trangênicos

IndIVídUoS noRmAIS

Insetos são mantidos em gaiolas para copular e fazer a postura de ovos

lARVAS tRAnSgÊnIcAS

Para não morrer recebem o antibiótico tetraciclina

PUPAS noRmAIS

Os ovos são coletados e em oito dias as larvas se transformam em pupas

PUPAS tRAnSgÊnIcAS

Apenas as pupas machos são separadas, as fêmeas são descartadas

PUPAS IRRAdIAdAS

Menores, as pupas dos machos são separadas e levadas ao irradiador

AdUltoS tRAnSgÊnIcoS

Ao se transformarem em adultos, eles são liberados no ambiente

AdUltoS IRRAdIAdoS

As pupas se transformam em adultos estéreis que podem ser liberados

lARVAS tRAnSgÊnIcAS

Na cópula com as fêmeas normais, os ovos eclodem mas as larvas morrem

dEScEndEntES IRRAdIAdoS

No ambiente, a cópula com fêmeas normais resulta em ovos inférteis

FontE margareth caPurro/uSP, valter arthur/uSP, bioagri/biofábrica moScameD

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Antes de liberar o mosquito estéril no ambiente, os pesquisadores vão verificar se ele é competitivo em relação aos selvagens

a população de Aedes na cidade. Será um grande experimento, que ainda aguarda a aprovação da CTNBio.

O projeto de Piracicaba ainda es-tá um pouco distante dessa fase. De acordo com Gava, antes da liberação em massa dos mosquitos irradiados na natureza serão necessários testes de campo. “Precisamos verificar co-mo ocorrerá a dispersão do Aedes estéril no ambiente e qual a compe-titividade dele com a linhagem sel-vagem”, completou. Por enquanto, o projeto está sendo desenvolvido pelo Cena e a Bioagri, sem nenhum investimento de outra instituição. “Estima-se que serão necessários R$ 500 mil para a viabilizar o do pro-jeto, com a construção de um labora-tório para criação em grande escala do Aedes”, calcula Arthur.

Apesar de diferentes, as tecnolo-gias de Piracicaba e Juazeiro podem

se complementar e trazer um importante avanço no controle do Aedes e, consequentemente, da dengue. Outra vantagem dessa forma de controle é a redução do uso de produtos químicos, insetici-das e larvicidas, o que traz benefícios ambientais e para a saúde humana. Estudos semelhantes são realizados em todo o mundo. Segundo Arthur, a técnica de esterilizar o Aedes com radiação é iné-dita no Brasil, mas existem vários trabalhos de outros países publicados em revistas científicas, mostrando a eficiência desse método de controle. Quanto aos transgênicos da Oxitec, eles já foram testados em outros países. Em 2010, por exemplo, 3 milhões de machos geneticamente modificados foram liberados nas Ilhas Cayman, no Caribe. Os resultados foram semelhantes aos de Juazeiro: supressão de 80% da população selvagem na área da soltura. Números parecidos foram obtidos na Malásia, o que estimulou outras nações a se interessar pelas experiências, entre elas Índia, Tailândia, Estados Unidos e Vietnã. n

Na Bioagri, gaiolas com telas de tecido são utilizadas como criatório para os mosquitos

Os mosquitos transgênicos usados no projeto de Juazeiro também não oferecem risco ao am-biente nem à população da cidade. É o que ga-rantem os pesquisadores envolvidos no trabalho e a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que, em dezembro de 2010, aprovou o experimento. Desenvolvidas numa parceria en-tre o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, a organização social Biofábrica Moscamed e a empresa Oxford Insect Tecnologies (Oxitec), da Inglaterra, as pesquisas estão mais adiantadas que as de Piracicaba. Lá os Aedes aegypti modifi-cados geneticamente já foram soltos no ambiente.

cREScEm com AntIbIótIcoSegundo o professor aposentado da USP, Aldo Malavasi, fundador e diretor da Moscamed, res-ponsável pela criação dos insetos, de fevereiro de 2011 a julho de 2012 foram liberados cerca de 15 milhões de machos transgênicos da linhagem OX513A, desenvolvida pela Oxitec. “Eles foram soltos nos distritos de Itaberaba e Mandacaru de Juazeiro”, conta. “Três outras áreas acabam de entrar no projeto, para se confirmar a possi-bilidade de eliminação do Aedes nesses locais.” Até agora os resultados têm sido animadores. “A população de mosquitos foi reduzida de 80% a 90%”, conta a bióloga Margareth Capurro, pro-fessora do ICB, coordenadora do projeto. “Isso significa que a quantidade está abaixo do nível ne-cessário para a transmissão do vírus da dengue.”

Para não morrerem no laboratório ainda na fase de pupa, os machos transgênicos desenvolvidos pela Oxitec, que receberam o gene que produz a proteína letal, crescem e se desenvolvem em contato com o antibiótico tetraciclina. Sem esse antídoto, que reprime a síntese da substância mortal, não haveria sobreviventes para serem soltos na natureza. No ambiente em que são li-berados, eles copulam com fêmeas selvagens e os descendentes desses acasalamentos herdam a proteína letal. “Como na natureza não tem te-traciclina, esses filhotes morrem ainda na fase de larva ou pupa”, explica Margareth. “Por isso, com o tempo, a população dos mosquitos diminui.”

Os bons resultados iniciais do mosquito trans-gênico vão levar o projeto a novas etapas. Segundo Malavasi, o próximo passo do trabalho na Bahia é testar os mosquitos transgênicos numa cidade de porte médio. “Foi escolhida, de comum acordo com a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, que financiará o projeto, a cidade de Jacobina na região noroeste do estado, com 80 mil habitantes e alta incidência de dengue”, diz. “Por meio da nossa nova unidade de produção, inaugurada no dia 7 de julho, construída com recursos da Secre-taria de Ciência, Tecnologia e Inovação do estado, conseguiremos produzir 4 milhões de machos por semana, quantidade suficiente para reduzir

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72 z Setembro De 2012

Equipamento à base de lítio

desenvolvido em São Paulo começa

a impulsionar caminhonetes

ENERgIA EléTRICA y

A vez das baterias

baterias de lítio estão por toda a parte, com celulares e notebooks, os aparelhos mais comuns que possuem esse tipo de dispositivo. Ao acumular e liberar

energia elétrica nesses apetrechos eletrônicos, elas tornam mais fácil e divertida a vida de todos. Em formato maior e com mais potência, essas baterias são o principal componente dos mais recentes carros elétricos, como o Leaf, da Nissan, já em testes em dois táxis na cidade de São Paulo, ou híbridos com motor a gasolina, como o Volt, da GM. São veículos que quase não emitem poluentes e por isso têm um forte apelo ambiental ao se tornarem uma fonte de energia limpa em relação aos motores movidos a derivados de petróleo.

Produzido por mais de uma dezena de em-presas no mundo, esse tipo de bateria teve o primeiro protótipo feito no país apresenta-do em julho pela Electrocell, uma pequena empresa instalada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), na Cidade Universitária, em São Paulo. Logo em seguida, ele foi instalado em uma pequena caminhonete, que leva o nome de Aris, capaz de transportar 350 quilos de carga. A cami-nhonete, que é silenciosa, faz parte de um projeto da CPFL, empresa distribuidora de energia no interior paulista, e foi executado pela Edra, indústria de carros especiais com sede em Rio Claro (SP). Inicialmente dotado de baterias chinesas, o veículo que ganhou um equivalente brasileiro agora poderá se tornar

marcos de oliveira

viável comercialmente para nichos específi-cos, como para a própria CPFL, na entrega de correspondências, no transporte de equi-pamentos eletrônicos ou na distribuição de ingredientes em restaurantes.

“Já identificamos os parceiros de toda a cadeia de tecnologia automotiva”, diz Flávio Eduardo Lopes, diretor da Edra. Montar uma fábrica de caminhonetes elétricas exigirá um investimento de R$ 10 milhões para produzir mil unidades por ano. “Com essa produção e levando em conta que a bateria custa metade do preço do veículo, é possível dizer que cada Aris saia por cerca de R$ 60 mil”, diz Lopes. “Ele é viável, embora mais caro que os veículos flex similares, porque cada bateria deve durar 10 anos, equivalente a rodar cerca de 300 mil qui-lômetros.” Capaz de atingir a velocidade máxi-ma de 80 quilômetros por hora e ter autonomia sem precisar reabastecer por 100 quilômetros, o Aris leva até sete horas para ser recarregado em uma tomada comum de 220 volts.

Um número maior de veículos elétricos no total da frota planetária é esperado de forma lenta mas progressiva. Nos Estados Unidos, segundo um estudo sobre a industrialização da bateria de íon de lítio do Center on Glo-balization, Governance & Competitiveness da Universidade Duke, publicado em outubro de 2010, mais da metade das vendas de veículos novos no mercado norte-americano deverá ser, em 2020, de carros e utilitários híbridos ou elétricos. Na conclusão do documento, os

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O mercado para o uso dessas baterias em sistemas elétricos é outro foco da Electrocell. Nesses sistemas chamados de redes elétricas inteligentes, mais co-nhecidas como smart-grids, o consu-midor, principalmente empresas, terá papel importante no monitoramento e gerenciamento da energia elétrica con-sumida. Cada consumidor poderá gerar e distribuir a própria energia com sis-temas solares ou eólicos, por exemplo, e a eletricidade poderá ser acumulada em baterias de lítio. As baterias também poderão ser carregadas em horários de menor consumo, como nas madruga-das, para uso da eletricidade mais ba-rata durante o horário de pico entre 19 horas e 22 horas, quando a tarifa é mais cara. Para funcionarem plenamente, os smart-grids ainda dependem de legisla-ção específica no Brasil.

Aris com a bateria brasileira em rua da Cidade Universitária, em São Paulo

7 hoRASé o tempo que o aris leva para recarregar a bateria em uma tomada de 220 volts

pesquisadores liderados por Marcy Lowe afirmam que a indústria automobilística está deixando os motores a gasolina para investir na motorização elétrica e que a chave para essa mudança são as baterias avançadas de lítio. “Os Estados Unidos devem ser capazes de produzir baterias de íon de lítio para se manterem compe-titivos”, alerta o documento.

O mercado mundial de baterias esta-rá aquecido em breve, segundo indicam projeções da consultoria alemã Roland Berger. De acordo com o relato do início deste ano, o mercado de baterias de íon de lítio para uso automotivo deve superar os US$ 9 bilhões em 2015. Na área estrita das baterias avançadas, próprias para uso em sistemas e equipamentos elétricos, o mercado deve chegar a US$ 7,6 bilhões em 2017, segundo a consultoria ameri-cana Pike Research.

o mercado mundial de baterias avançadas deve chegar a US$ 7,6 bilhões em 2017

Segundo o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), vinculado ao Mi-nistério da Ciência e Tecnologia (MCT), que apresentou em dezembro de 2011 o estudo Redes elétricas inteligentes: con-texto nacional, já estão catalogados 178 projetos de smart-grids no país, em pro-gramas de pesquisa e desenvolvimento coordenados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Eles englobam desde sistemas de medição inteligente de energia elétrica até geração e distribui-ção de eletricidade em microrredes, por exemplo, circunscritas a uma empresa que tenha sistemas eólicos ou solares. Os 178 projetos já totalizam investimentos de R$ 411 milhões. Em dados coletados e analisados pelo CGEE, China, Coreia do Sul, Reino Unido e Estados Unidos lide-ram as projeções financeiras estimadas para os projetos de modernização das respectivas redes de energia. No total, até 2030, deverão ser investidos US$ 178 bilhões nessas redes inteligentes.

Para participar do mercado de smart--grids e dos carros elétricos nacionais, a Electrocell está projetando construir uma fábrica em 2013 para produzir as baterias de íon de lítio. “Estamos nego-ciando os investimentos com empresas de capital de risco e bancos de investi-mento”, revela Gilberto Janólio, enge-nheiro e sócio da Electrocell. A empresa

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iniciou suas atividades em 2000, com um projeto sobre células a combustível, um tipo de bateria que produz eletricidade com hidrogênio, financiado pelo Progra-ma Pesquisa Inovativa em Pequenas Em-presas (Pipe) da FAPESP (ver Pesquisa FAPESP nº 92 e nº 173).

o desenvolvimento da bateria no Brasil foi um desafio para a Elec-trocell, que levou um ano e meio

para deixá-la pronta. “Foi um desenvol-vimento de engenharia de integração em que definimos o controle e o equilíbrio da carga elétrica de cada elemento da bateria e a disposição de todo o conjunto, tudo em sintonia com o software de con-trole do carro, além do desenvolvimento de engenharia de choque e vibração”, diz Janólio. “Outro fator importante foi o desenvolvimento de um sistema de ventilação próprio para o clima quente do país”, diz Volkmar Ett, outro sócio da Electrocell. Para produzir as baterias, a empresa se aliou à Cegasa, empresa espa-nhola fabricante de pilhas e baterias que

atua no Brasil há dois anos. Na Espanha, a Cegasa desenvolve baterias de forma experimental para a fabricante de au-tomóveis espanhola Seat, que é controla-da pela Volkswagen. “Eles nos fornecem as pastilhas de lítio e nós construímos a bateria”, diz Janólio.

O mercado dessas baterias ainda inclui os ônibus híbridos, com motores elétri-cos e convencionais, pequenos caminhões, centro de processamento de dados de empresas e até veículos aéreos não tri-pulados (vants). “Temos recebido muitos pedidos e o que falta agora é produzi-las em série”, diz Ett. No plano de negócios da empresa, formatado pelo consultor Luiz Carlos Rocha Paes, já está prevista

no plano de negócios da empresa já está prevista a produção de 213 baterias em 2014

a produção, em 2014, de 213 baterias pa-ra caminhonetes, ônibus e até pequenas motocicletas. A previsão de faturamento é de R$ 25 milhões. “Mas a previsão po-tencial da demanda em 2014 deverá ser de 966 baterias, o que deve ser coberto por importações”, diz Paes. “Acredita-mos que a Electrocell possa ter 22% do mercado”, diz.

Para a CPFL, que começou a cons-truir esses carros elétricos em 2009, as baterias nacionalizadas

garantem a continuidade e o avanço no projeto. “Os carros elétricos são para a CPFL um exercício de demonstração da tecnologia, para verificarmos como ela funciona no dia a dia. Não é um projeto de pesquisa e desenvolvimento; nós que-remos demonstrar que é possível fazer carros elétricos no Brasil e já compramos quatro da Edra”, diz o engenheiro Mar-celo Rodrigues Soares, coordenador do projeto na CPFL, empresa que investiu cerca de R$ 3 milhões na compra dos carros e das baterias. “Nos nossos testes verificamos que o custo em rodar com esse veículo elétrico é de um quarto (1/4) o quilômetro rodado com gasolina”, diz Soares. O Aris já está homologado no De-partamento Nacional de Trânsito (Dena-tran) desde março de 2010 e apto para

rodar em todo o país. Apesar das boas

perspectivas para es-se novo mercado, o preço das baterias deve assustar alguns consumidores. “No Brasil precisamos ver o quanto o consumi-dor está disposto a pagar a mais em rela-ção a um veículo com motor a gasolina, por exemplo, para ter algo mais eficiente na re-dução da emissão de CO2”, diz Francisco Nigro, professor da Escola Politécnica da Universidade de São

Paulo (USP) e assessor técnico da Secre-taria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo. “A perspectiva é que, ao longo dos próximos anos, o preço da bateria caia e se torne mais viável para o mercado au-tomotivo”, explica Nigro. n

Bateria da Electrocell formada por módulos é instalada em caminhonete

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PESQUISA FAPESP 199 z 75

ElETRôNICA ORgâNICA y

Novos tipos de lâmpadas e

células fotovoltaicas orgânicas

são desenvolvidos por centro

de pesquisa mineiro

Iluminação flexível

Desfile do estilista Ronaldo Fraga no São Paulo Fashion Week deste ano: modelos com fitas iluminadas

lâmpadas flexíveis no formato de fitas capazes de serem coladas nas paredes, no teto e até em rodapés. A tecnologia e a arquitetura de ilu-minação caminham nesse sentido e novas formas de utilização dessas

fitas flexíveis compostas principalmente de polímeros encontram utilidades inusitadas antes mesmo de se tornarem comerciais. Foi o caso do desfile do estilista Ronaldo Fraga, no São Paulo Fashion Week, que aconteceu em junho deste ano na capital paulista. As modelos es-tavam ornadas com fitas eletroluminescentes chamadas de lume e produzidas pelo Csem Brasil, instalado em Minas Gerais, um centro privado de pesquisa aplicada, especializado no desenvolvimento e transferência de tecnolo-gia, principalmente em eletrônica orgânica e

Sérgio Kalili

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76 z Setembro De 2012

ItoEletrodo formado

por óxido de

índio e estanho.

é um material

transparente

ISolAntEAtua no controle

da corrente elétrica

entre os dois

eletrodos

FIoS ElétRIcoSAs fitas precisam

da eletricidade, mas

o consumo é baixo

PRAtAEletrodo formado

por uma tira de

tinta de prata que

reduz a resistência

e aumenta a

condutividade

elétrica

FóSFoRoAo ser exposto

ao campo elétrico

emite luz relativa

à cor da tinta

InVERSoRAumenta a

frequência da tensão

elétrica aplicada nos

eletrodos da fita

A fita iluminada é produzida com uma tecnologia que será útil em painéis fotovoltaicos flexíveis

Eletricidade sob camadas A fita flexível e eletroluminescente é formada por plásticos, eletrodos

e fósforo que formam um campo elétrico emissor de luz

microssistemas. Conectadas a pequenas baterias presas aos corpos das modelos, as fitas foram pela primeira vez apre-sentadas em público.

O desenvolvimento e a fabricação da Lume no Brasil deixam o país no mesmo nível, nessa área, da Europa, dos Estados Unidos e da China, num mercado global ainda muito pouco explorado. As fitas Lume geram luz em toda a superfície e são destinadas principalmente à pro-dução de telas de produtos eletrônicos como relógios, interiores de aviões e au-tomóveis, placas de publicidade e como peça decorativa. Elas possuem uma vida útil de 10 mil horas e apresentam baixo consumo de energia.

excita os elétrons do fósforo e, quando eles voltam ao estado original, emitem luz vermelha, branca, azul ou verde, de-pendendo do tipo de cor da tinta utiliza-da. Como substrato, a lâmpada flexível utiliza o polímero PET, o mesmo das garrafas de refrigerante e água mineral. A formação da fita acontece por meio da passagem pelos rolos da máquina e o recebimento de diferentes camadas.

Os polímeros orgânicos são os elemen-tos principais na fabricação dos organic light-emitting diodes (Oleds), que usam principalmente carbono na sua composi-ção e são a próxima promessa no campo da iluminação e de telas depois do LED, hoje já presente em lâmpadas especiais e nas telas de televisão. A rota tecnoló-gica da produção da Lume é a mesma da produção dos Oleds e abre caminho também para o desenvolvimento de dis-positivos com polímeros orgânicos como, por exemplo, células fotovoltaicas, que podem ser impressas e flexíveis, utiliza-das em sistemas de geração de energia solar. O objetivo do Csem não é, nesse primeiro momento, investir na produ-ção em escala de Oleds nem de displays. Outros países estão bastante próximos de dominar a confecção desses disposi-tivos. Por isso, o engenheiro Tiago Mara-nhão Alves, diretor-executivo do centro, afirma que o primeiro produto orgânico produzido para consumo geral será a célula fotovoltaica feita de semicondu-tores orgânicos.

REcIclAdoR dE EnERgIA“Além de termos condições de conquis-tar espaços significativos, nós temos os recursos naturais para entrar, competir e ganhar esse jogo”, diz. Pelo planeja-mento, as primeiras células fotovoltai-cas comerciais devem chegar às ruas em um ano. Com elas será possível fazer painéis solares leves e flexíveis a custos menores, alimentadores de teclados de computador, celulares e controles remo-tos. Essas células também serão capazes de captar a luz de casa, assim como a luz solar, e produzir corrente elétrica, exercendo a função de “um reciclador de energia”. Outro mercado será o de geração elétrica em localizações remotas ainda não servidas pela rede de distri-buição elétrica.

Para Maranhão, ninguém faz uma no-va cadeia de valor sozinho. “Isso só é possível com muita pesquisa e parcerias.”

Para a confecção da Lume, o Csem usou a tecnologia de eletrônica impressa em rolos utilizada na fabricação de se-micondutores orgânicos, embora essas fitas iluminadas não usem especifica-mente polímeros orgânicos. As Lumes são fabricadas em uma máquina de im-pressão chamada Roll to Roll, a primei-ra da América do Sul, e que funciona de maneira similar à rotativa de um jornal. Basicamente a Lume é formada por uma camada de um material à base de fósforo entre dois eletrodos, sendo um trans-parente chamado de ITO, de indium tin oxide, ou óxido de índio dopado, com estanho e o outro de tinta de prata. O campo elétrico formado pelos eletrodos

FoNtE viniciuS zanchin / cSem

cAmAdAS:

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Fósforo

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convênio pertencerão aos parceiros en-volvidos, inclusive a Fapemig.

Os primeiros passos para o surgimento e desenvolvimento da eletrônica orgâ-nica e impressa foram dados por acaso, em 1976. Nesse ano, Hideki Shirakawa, um pesquisador japonês do Instituto de Tecnologia de Tóquio, tentava sintetizar um tipo de plástico, o poliacetileno, um polímero simples formado apenas de áto-mos de carbono e hidrogênio. Ao errar a mão, adicionando uma quantidade maior de um catalisador ao composto, Hideki produziu um filme brilhante como uma folha de alumínio. Pouco depois, uniu--se a dois cientistas norte-americanos, o químico Alan MacDiarmid e o físico Alan Heeger, na Universidade da Pensilvânia. Trabalhando sobre o filme brilhante do pesquisador japonês, eles perceberam que, ao dopar o carbono com iodo, ele se tornava uma folha metálica dourada, com condutividade elétrica. Estava des-coberto então o primeiro semicondutor orgânico, formado de polímero. A desco-berta rendeu o Nobel de Química para os três em 2000. Quase 40 anos depois, muitas aplicações práticas para esses semicondutores foram estudadas. A cor-rida agora entre cientistas, instituições privadas e governamentais é de como fabricar esses produtos à base da eletrô-nica orgânica e impressa com eficiência, custos reduzidos e em larga escala.

A corrida para colocar o Oled no mer-cado movimenta os grandes fabricantes de material de iluminação como a alemã Osram, que está investindo nos Oleds, feitos de semicondutores orgânicos. A principal vantagem desse material é que ele não é formado por uma junção de pontos emissores individuais, mas sim por uma superfície flexível que gera ilu-minação de maneira uniforme, podendo se moldar mais facilmente a diferentes formas e ambientes. A empresa já tem uma instalação na cidade de Regens-burg, na Alemanha, preparada para ser a primeira linha-piloto de produção em grande escala de Oleds do mundo. Os primeiros produtos de uso comercial, para iluminação de escritórios e para o varejo, já foram testados nas cidades ale-mãs de Munique e Berlim e devem che-gar em breve ao Brasil. Segundo Joyce Calil, gerente de vendas da Osram no país, a expectativa é de que “as primei-ras aplicações no mercado sejam para luz funcional a partir de 2015”. n

O Csem já recebeu para o desenvolvi-mento de seus projetos o apoio financei-ro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em Mi-nas Gerais, um acordo entre a Secreta-ria de Estado de Ciência e Tecnologia, a Fapemig e a iniciativa privada está esti-mulando o desenvolvimento dessa tec-nologia. “O importante nesse projeto é que estamos usando o governo como indutor de uma parceria entre universi-dade e empresa para o desenvolvimento de tecnologia de ponta, que pode gerar riqueza, empregos e desenvolvimento para o país”, explica Mario Neto Bor-ges, presidente da Fapemig. A fundação já investiu R$ 7 milhões no instituto. O BNDES adicionou mais R$ 15 milhões ao investimento.

IntERcâmbIo conJUgAdoO Memorando de Entendimento em Cooperação Acadêmica, Pesquisa e De-senvolvimento firmado entre as institui-ções permite o intercâmbio de pesquisa-dores, mestres, doutores e pós-doutores das universidades e empresas mineiras com o Centro de Eletrônica Plástica do Imperial College, um dos mais impor-tantes centros de eletrônica orgânica do mundo. O diretor do centro inglês, o físico Donal Bradley, é um dos inven-tores da eletroluminescência de polí-meros conjugados. Dez pesquisadores brasileiros já trabalharam com ele, por meio do convênio. Na volta, alguns fo-ram recrutados para trabalhar no Csem. Pelo acordo, as patentes registradas pelo

o desafio agora é fabricar produtos à base de eletrônica orgânica com eficiência e custo reduzido

A máquina de impressão e produção das fitas em rolo

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78 z Setembro De 201278 z XXXX DE 2012

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globalização adotada com rapidez por São Paulo

degradou a sua constituição urbana e social

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grandeza e para as mazelas

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PESQUISA FAPESP 199 z 79PESQUISA FAPESP 2xx z 79

nos anos 1920, Oswald de Andrade ironizava a vocação paulistana de ser uma “torcida indígena a favor de um imperialismo ‘civilizador’”, antecipando que esse entusiasmo

paulistano seria fonte tanto de suas grandezas como de suas mazelas. “Nos anos 1990, São Pau-lo já era o centro econômico nacional e reagiu mais rapidamente do que as outras regiões para abraçar e se adaptar à internacionalização da economia, a globalização”, observa a professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Sueli Schiffer. “Por um lado, isso trouxe uma concen-tração crescente de atividades tecnológicas e es-pecializadas muito avançadas, com os benefícios de investimentos massivos em infraestrutura em determinadas áreas e a criação de uma força de trabalho qualificada”, conta. “Mas essa rápida aceitação da globalização auxiliou no desloca-mento da população pobre para as áreas peri-féricas, aumentando a já existente segregação social. Sem falar do aumento do desemprego para os menos qualificados, maior informalida-de no mercado de trabalho, violência crescente e aumento das favelas”, observa a pesquisado-ra, coordenadora do estudo Projetos urbanos e desenvolvimento local: financiamento e gestão.

O estudo é uma continuação do projeto temático São Paulo: globalização da economia e estrutura urba-na, que Sueli realizou com apoio da FAPESP (1998). Em pleno processo de globalização, a pesquisadora analisou, com notável pioneirismo, de que forma, no Brasil, se dava a relação entre a nova estrutura econômica adotada e a organização espacial. “Nu-ma economia desigual, a estrutura espacial acaba sendo afetada e fica desigual. Houve um aumento da renda concentrada na cidade. Ao mesmo tempo, porém, se deu a expulsão de uma grande parcela da população para áreas distantes e sem estrutura apropriada de moradia, uma redefinição forçada das prioridades urbanas, o aumento da deficiência dos problemas de infraestrutura urbana, em espe-cial no transporte e no meio ambiente, num quadro de miséria e desigualdade crescentes, geradoras de uma violência urbana séria”, observa. A “torcida indígena” acabou gerando esplendor e decadência.

“O planejamento urbano dos anos 1950 e 1960 atuava em cidades com acelerado crescimento e intensos fluxos migratórios, em sua grande maio-ria vindos da área rural, de população de baixa renda e qualificação. A carência de todos os tipos de infraestrutura, mesmo as básicas como água, energia, saneamento e transportes públicos, eram os desafios mais gritantes da gestão e dos planos urbanos”, explica Sueli.

Correria em avenida paulistana: produto do crescimento intenso e não planejado da metrópole

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Segundo a pesquisadora, o controle sobre a produção e a alteração do espaço sempre fo-ram mecanismos usados pela elite nacional

para assegurar sua dominância interna, criando áreas de segregação, algumas muito bem servidas por todo o tipo de facilidades urbanas instaladas pelo Estado e outras sem a mínima estrutura de moradia e serviços públicos. “Isso é parte da vida paulista desde o século XIX, mas a globalização elevou esse procedimento a níveis muito altos”, avalia Sueli. “Não é um espaço construído a par-tir de um planejamento oficial para a melhoria de vida da população, mas uma miscelânea de desenvolvimentos modernos de negócios mis-turados com velhas moradias, criando um fluxo de transporte confuso e a aparência geral de um ‘arranjo forçado’, apesar do alto custo do trabalho envolvido”, analisa.

Tudo em nome de se fazer parte das chamadas “cidades-globais”, embora com um status menor do que as localizadas nos países avançados. “Es-sas cidades-líderes de países periféricos, como São Paulo, Cingapura ou Hong Kong, realizam tarefas subordinadas nessa cadeia de acumulação internacional, locus em que o capital estrangeiro é internalizado em territórios nacionais. E como

essas cidades servem para concentrar atividades econômicas para a economia global, são desconec-tadas da realidade da economia doméstica”, ava-lia. Não sem razão, em 1997 São Paulo já abrigava 96,9% das sedes dos bancos privados estrangeiros do país e 67,5% das sedes dos grupos privados internacionais, ao mesmo tempo que 19% da sua população vivia em favelas e 16% dos paulistanos estavam desempregados. “A provisão de infraes-trutura realizada pelo poder público desde então tem como objetivo tão somente atender às condi-ções mínimas de organização do espaço urbano para sustentar a produção condizente com esse padrão globalizado da sociedade brasileira”, ava-lia Sueli. Mesmo as concessões fiscais feitas para atrair o capital estrangeiro são tão extremadas que drenam boa parte do orçamento municipal, que fica comprometido por décadas.

“O crescimento das ‘cidades-globais’ dos paí-ses periféricos aumentou a segregação espacial e a exclusão social preexistente. Isso porque há uma exigência de uma força de trabalho mais qualificada, para dar conta das exigências ‘glo-bais’, e a redução de oportunidades de emprego no setor industrial, em face da modernização deste setor, não é totalmente compensada por novos empregos no setor terciário”, diz a pesqui-sadora. Num contexto espacial em que apenas os “melhores” têm lugar, os “menos capacitados” são “convidados” a deixar a cidade e morar em regiões cada vez mais distantes, seja pelo preço elevado das moradias, seja pelo novo perfil pro-fissional exigido, voltado apenas para exercer funções de “menor qualificação”. Assim, segun-do a pesquisadora, ao se avaliar as precondições às possíveis realizações de projetos urbanos no Brasil, e em especial em São Paulo, e os fatores que induzem o desenvolvimento de projetos urba-nos tão usuais em outros países, pode-se afirmar que estes projetos não parecem constituir uma possibilidade de planejamento urbano a curto prazo para o nosso país.

“Uma exclusão social crescente exige uma maior intervenção estatal, mas segundo o ideário neoli-beral da globalização isso não deve ser feito. Por anos, tudo o que a cidade ganhou em benefícios foi contrabalançado por perversidades sociais resultantes dos efeitos colaterais da globaliza-ção. O desemprego crescente, a pauperização, a informalidade, a violência se transformaram, cada vez mais, em efeitos visíveis das novas for-mas urbanas.” Para fugir dessa realidade, partes da elite se “encastelaram” em regiões da cidade e foram criados novos “centros” que promoveram um processo de dispersão do tecido urbano. “No passado isso já se verificava, mas em outro formato, como na mudança do velho centro para a avenida Paulista. Posteriormente criaram-se os centros das avenidas Faria Lima, Carlos Berrini e Nova

Favela Real Parque diante do progresso da cidade revela insuficiência crescente de infraestrutura em regiôes da cidade

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Faria Lima, voltados para atividades dinâmicas e internacionais. Cada novo centro envolvia um investimento municipal pesado, já que foi preciso instalar serviços de comunicação, infraestrutura e transporte, novos acessos como túneis e avenidas, perturbando o tecido urbano tradicional, tudo em grande velocidade e sem planejamento voltado para o coletivo da cidade, mas privilegiando áreas específicas”, avalia. Sobrou pouco para investir em habitação e serviço para os de menor renda.

“Com a globalização, viu-se a migração força-da para as periferias, uma concentração maior de pessoas por domicílio, a favelização, a invasão de áreas de mananciais, como as encostas da represa Billings, uma degradação dramática da qualidade de vida e uma insuficiência crescente de infraes-trutura”, analisa. E hoje? “Num primeiro momento a Região Metropolitana de São Paulo parece ter melhorado. Os fluxos migratórios praticamen-te zeraram para São Paulo, que agora cresce em ritmo menor que o do país . Está havendo uma redução na participação relativa da parcela mais pobre e menos escolarizada da população no mer-cado de trabalho local. Entre 2003 e 2007 o cres-cimento do emprego formal foi de 4,15% ao ano e, em 2012, pela primeira vez, o número de pessoas com carteira assinada supera os 50%”, afirma o sociólogo Álvaro Comim, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). “A cidade está melhor em serviços sofisticados e a demanda de mão de obra, com maior escolaridade e qualificação, sugere uma metrópole ‘classe média’. Mas a inflexão da desigualdade tem um preço: os mais pobres, que não se encaixam nessas exigências, continuam a ser expulsos da cidade, porque a cidade não os comporta ou deseja”, diz.

a cidade-global fechou suas portas para os trabalhado-res menos qualificados. “As

indústrias tradicionais que usavam trabalhadores comuns estão indo para o interior e a cidade está apenas com a indústria que usa tecnologia. Estamos exportando problemas co-mo favela, miséria etc. Em algumas décadas vamos olhar São Paulo co-mo sendo uma cidade internacional, mas o nosso entorno estará degrada-do”, avalia o pesquisador. “Os mais ricos estão também se segregando da cidade. São Paulo, à exceção de algu-mas áreas particulares que abrigam atividades para eles, se transformou numa terra desconhecida e violenta e pela qual essa elite não sente ne-nhum tipo de ligação ou compro-metimento”, lembra Sueli. Apesar dos edifícios que poderiam figurar em qualquer metrópole americana ou europeia, São Paulo, globalizada, está pondo em risco a sua posição justamente pelo seu en-tusiasmo em aderir à nova configuração da eco-nomia mundial em detrimento das melhorias demandadas por sua população.

“Temos que esperar transformações na socie-dade brasileira para que estes fatores se revertam a favor de uma organização espacial menos ex-cludente e desigual, em que os projetos urbanos de renovação de áreas obsoletas ou degradadas tenham papel importante na estruturação urbana e sejam compatíveis com as mudanças socioeco-nômicas que só aí aconteceriam”, diz. n

Para pesquisadora, país precisa se

transformar para ter uma

organização espacial menos

excludente

zona leste de São Paulo exemplifica a migração forçada para as periferias

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lista de livros censurados pelos militares após o AI-5

revela critérios de apreensão

As páginas proibidas

vinte e oito caixas guardadas no Ar-quivo Nacional de Brasília preserva-ram parte de uma história que per-manece com páginas incompletas. A coleção reúne documentação dos

órgãos censores da ditadura militar sobre livros publicados no período que segue a criação do Ato Institucional nº 5, de 1968.

O conteúdo dessas pastas foi analisado recen-temente por Sandra Reimão, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, que compôs a lista até hoje mais completa de livros submetidos à censura no período. O estudo foi apresentado no livro Repressão e resistência – Censura a livros na ditadura militar (Edusp/FA-PESP, 2011) e permite analisar, agora com mais precisão, com que critérios o governo brasileiro proibia obras literárias publicadas na época, co-locando sob o manto da preservação da ordem e dos bons costumes livros políticos, como O mundo do socialismo, de Caio Prado Junior, e eróticos, como Tessa, a gata, de Cassandra Rios.

Na lista ainda estão Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca; Zero, de Ignácio de Loyola Brandão; Dez histórias imorais, de Aguinaldo Silva; e Carniça, de Adelaide Carraro. No estudo de Sandra Rei-mão há ainda uma subdivisão para peças teatrais publicadas em livros, em que são citados os tex-tos Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna, e Abajur lilás”, de Plínio Marcos.

São todos livros oficialmente vetados entre os anos 1970 e 1988, período compreendido entre o ano do decreto-lei 1.077/70 – que instituiu a cen-sura prévia com vistas a publicações literárias – e

o ano em que a Assembleia Nacional Constituinte pôs fim à censura.

Os eróticos eram alvos mais comuns. “Se você olhar a legislação, a censura sempre fez referên-cia a matérias contrárias à moral e aos bons cos-tumes; nunca ficou explícito que havia censura a temas políticos, a textos sobre corrupção ou tortura”, conta Marcelo Ridenti, autor do livro Em busca do povo brasileiro – Artistas da revolu-ção, do CPC à era da TV (Record, 458 páginas).

Não se trata apenas de um disfarce. “Essa era realmente uma preocupação dos censores, e a maioria dos livros censurados eram livros eró-ticos. A questão é que a censura, com base nes-ses critérios sobre a moral e os bons costumes, proibia também obras consideradas subversivas à ordem política”, conclui.

Cassandra Rios, famosa autora que voltou sua produção para prosas não raro de veia homoe-rótica feminina, foi uma das campeãs de veto da ditadura. Na capa do livro Tessa, a gata, a autora inclusive reverte a ação da censura a seu favor, com o slogan “Um novo sucesso da autora mais proibida do Brasil”.

O estudo de Sabdra, com apoio da FAPESP, verificou que 313 obras foram vetadas, entre 492 submetidas à análise do Departamento de Cen-sura de Diversões Públicas (DCDP). Ou seja, do total, 179 livros foram liberados após a análise do DCDP, dado importante para compreender que havia um sistema de critérios desenvolvido pelo órgão. A censura era movida por um time de funcionários contratados por meio de concurso público, muitos deles universitários.

DITADURA y

gustavo Fioratti

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84 z Setembro De 2012

o número levantado por Sandra ainda não é definitivo. A lista completa de livros censurados

pela ditadura dificilmente chegará a um fim, diz a pesquisadora, pois antes do decreto-lei 1.077 não havia uniformi-dade na metodologia da censura. “Antes de 1970 havia coação, apreensão a livros, invasão de livrarias e prisão de livreiros de maneira desorganizada. A censura era feita por órgãos do Estado e, depois do AI-5, passou a ser função do Ministério da Justiça”, diz ela.

Mesmo os documentos guardados nas 28 pastas do Arquivo Nacional podem estar incompletos. “O arquivo que exis-te é o que foi preservado. Não sabemos quanto desse arquivo foi perdido”, expli-ca a pesquisadora. Os documentos guar-dados pelo Arquivo Nacional só ficaram disponíveis a partir do ano 2000. “Há muita novidade a respeito do assunto. Esse material ainda não havia sido ana-lisado simplesmente porque antes não estava com uma organização mínima”, diz a pesquisadora.

Um trabalho similar, no entanto, não somente antecede a pesquisa de San-dra como lhe serve também como ponto de partida. Doutor em letras pela USP, o professor Deonísio da Silva, no livro Nos bastidores da censura, já havia indi-cado 430 livros proibidos pela censura durante a época do regime militar. En-tre os títulos, 92 são assinados por au-tores brasileiros. “Eu dou continuidade ao trabalho que o Deonísio começou”, diz Sandra. Quando virou seus holofo-tes também para a publicação de livros, a censura já atingia amplamente e com força total outros campos de expressão artística, especialmente o teatro, a mú-sica e o cinema. “A quantidade de livros censurados é menor do que a de outros meios de diversão pública.”

não haverá uma lista completa de livros censurados, pois a apreensão dos militares era desorganizada

levantamento sobre percentual de obras censuradas nos “anos de chumbo”

AS ESTANTES ESVAzIADAS PElA DITADURA

FoNtE levantamento feito Por funcionárioS Do arquivo nacional em 1988

livros submetidos

livros vetados

1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979

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A partir de 1976, o número de livros censurados começa a cair gradualmente (ver quadro na página 84). Uma das hipó-teses para esse decréscimo – no número de obras censuradas também em outras áreas das artes – é a morte do jornalista Vladimir Herzog em decorrência de tor-tura praticada pelos militares, em 1975.

a partir de então acentua-se a co-brança da sociedade pela rede-mocratização e também pelo fim

da censura. “Esse é um dos fatores”, diz Flamarion Maués Pelúcio Silva, douto-rando em história social e mestre em his-tória econômica pela USP, que estuda as editoras de oposição à ditadura no Brasil. No início dos anos 1970 houve o maior número de mortes e desaparecimentos de figuras políticas que se opunham ao regime, “na militância armada ou não”. E a morte de Herzog nesse contexto, lembra Flamarion, faz com que o país “conheça de maneira mais ampla” a si-tuação política agravada pela repressão, o que provoca uma reação imediata.

Para o pesquisador, o estudo de Sandra, ao limitar-se ao universo de livros que fo-ram proibidos por uma censura oficial e documentada, mostra “de forma coerente” quais eram os fundamentos da perseguição a obras literárias. “São trabalhos censura-dos a partir de um ponto de vista formal, com pareceres. Os documentos trazem jus-tificações, e esse material é valioso”, avalia.

Em tempo: no final de seu livro, San-dra faz referência ainda à resistência de editores e de escritores ante as exigên-cias da censura institucionalizada. Éri-co Verissimo e Jorge Amado, com suas manifestações públicas em repúdio ao regime militar, se destacaram dentro desse movimento – que foi protagoniza-do ainda por “uma legião de anônimos”, encerra a pesquisadora. n

à disposição de qualquer adolescente na Biblioteca Municipal, desta localidade”, diz carta de Usana Minette, de Lençóis Paulista, de setembro de 1974 e endere-çada ao ministro da Justiça, Armando Ribeiro Falcão. O livro “... foi apoiado pelo senhor prefeito e presidente da bi-blioteca e só foi retirado de circulação depois de muita insistência”, continua a carta-denúncia.

Escrito à máquina, esse exemplar data justamente do período de maior atuação dos órgãos censores. A bem da verdade, é em 1975 que houve o maior número de proibições a livros nacionais. Segundo a pesquisa de Sandra Reimão, 109 livros, dos 132 analisados pela Justiça, foram censurados em 1975.

Em 1976 foram 61 os livros proibidos. Entre eles aparece Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, uma das obras mais es-tudadas pelos pesquisadores da censura a livros no período da ditadura. Resumi-damente, o livro conta a história de três personagens que, durante os festejos de ano-novo, assaltam uma mansão, matam três pessoas, estupram uma e, no final, brindam a passagem do ano.

No parecer assinado por Raymundo F. de Mesquista com as palavras “Não Liberação” em caixa-alta preenchendo o campo “Classificação Etária”, a cen-sura é justificada da seguinte forma: “O presente livro [...] retrata, em quase sua totalidade, personagens portado-res de complexos, vícios e taras, com o objetivo de enfocar a face obscura da sociedade na prática da delinquência, suborno, latrocínio e homicídio, sem qualquer referência a sanções...” Mais adiante o documento enfim aponta que, nas páginas 31, 139 e 141, são feitas “rá-pidas alusões desmerecedoras aos res-ponsáveis pelo destino do Brasil e ao trabalho censório”.

Marcelo Ridenti confirma que a litera-tura foi “relativamente” menos atingida pela censura do que campos de expres-são vizinhos. “A produção audiovisual tinha mais potência de difusão em massa. Cinema e televisão, naturalmente, eram mais visados”, explica o pesquisador. As editoras nacionais, ele prossegue, não foram obrigadas a submeter seus lança-mentos à censura prévia, como acontecia com produtoras de filmes e de programas de televisão. Para colocar em funciona-mento seu sistema de vigilância também sobre a produção literária nacional, os censores contavam com uma ajuda bá-sica: as denúncias, feitas muitas vezes por cidadãos comuns.

Por ter sido menos visada, a litera-tura permitiu o exercício de um pouco mais de liberdade. “Serviu

como válvula de escape”, diz Ridenti. “Calabar, de Chico Buarque, foi proibida em teatro, mas saiu em forma de livro”, exemplifica o pesquisador. “Com a litera-tura, dava para respirar um pouco mais.”

Segundo levantamento de Zuenir Ven-tura apresentado em 1968 – O ano que não terminou, nos 10 anos de vigência do AI-5 (1968-1978) foram censurados cerca de 500 filmes, 450 peças de tea-tro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos de sinopses de novelas.

Boa parte das denúncias reunidas en-tre os pareceres emitidos pelos órgãos censores – vários deles publicados nas últimas páginas do livro de Sandra com boa legibilidade, graças ao projeto gráfico de Carla Fernanda Fontana – recrimina conteúdos considerados eróticos ou por-nográficos: “O livro Dias de Clichy, de Henry Miiler [sic], é um verdadeiro aten-tado ao pudor, no entanto encontrava-se

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Amaury de Souza contribuiu

para o estabelecimento

da ciência política no Brasil

intelectual brilhante, cientista político desta-cado, acadêmico multitemático e liberal cora-joso. As qualidades normalmente atribuídas pelos amigos, colegas e alunos a Amaury de

Souza se multiplicaram por muitas outras vozes depois de 17 de agosto, quando ele morreu em consequência de câncer no pâncreas, aos 69 anos.

Souza nasceu em Uberlândia, Minas Gerais, onde fez os cursos de sociologia e política e o de administração na Universidade Federal de Minas Gerais, concluídos em 1965. No Rio de Janeiro, onde se estabeleceu, foi um dos fundadores do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Cató-lica do Rio (PUC-Rio).

Esteve algumas vezes nos Estados Unidos como professor visitante das universidades de Michi-gan e da Califórnia (Ucla) e fez o doutorado em ciência política pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), no final dos anos 1970. Segun-do o sociólogo Bolívar Lamounier, amigo desde a adolescência, sua tese tratava do sindicalismo brasileiro, cuja estrutura corporativa criticava duramente. “Entre seus colegas dos tempos de graduação que viriam a colaborar decisivamente no estabelecimento da ciência política acadêmica no Brasil estavam Antônio Octávio Cintra (Ph.D. pelo MIT), Bolívar Lamounier (Ph.D. pela Ucla), Fábio Wanderley Reis (Ph.D. por Harvard), José Murilo de Carvalho (Ph.D. por Stanford) e Simon Schwartzman (Ph.D. por Berkeley)”, escreveu Octavio Amorim Neto, professor da Escola Bra-sileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, do Rio (Ebase/FGV).

OBITUáRIO y

Souza: trabalhos que ajudam a explicar o Brasil atual

Ao voltar dos Estados Unidos, Souza se en-gajou nas lutas pela redemocratização do país e pelas reformas estruturais, como controle da inflação e reforma do Estado, que começaram a ser implementadas nos anos 1990. “Outra área a que Amaury se dedicou foi a da metodologia empírica aplicada à pesquisa sociopolítica, setor em que se firmou como um dos principais senão o principal nome de nossa geração”, escreveu Lamounier sobre o amigo. Ele realizou um lon-go e produtivo trabalho como consultor, desde os anos 1980. Era diretor da Techne, empresa de consultoria empresarial, e da MCM, de consul-toria em economia e análise política.

Nos últimos anos publicou dois livros que aju-dam a explicar o Brasil atual. A agenda interna-cional do Brasil: a política externa brasileira de FHC a Lula, de 2009, e A classe média brasilei-ra: ambições, valores e projetos de sociedade, de 2010, este último junto com Bolívar Lamounier. “O campo que mais o interessava passou a ser o das relações internacionais”, escreveu Lamounier. “Participava de um projeto internacional sobre os Brics [Brasil, Rússia, Índia e China] e sobre a África do Sul e começara a trabalhar num livro sobre os aspectos internacionais do desenvol-vimento econômico e político do Brasil quando surgiu o câncer.” na

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neldson marcolin

Arquivo do Estado de

São Paulo disponibiliza

on-line 7 mil imagens

de documentos sobre

a escravidão

mEmóRIA

A história visível

Carta de 1875 dirigida ao presidente da Câmara Municipal de Belém do Descalvado, em São Paulo: acesso facilitado aos documentos

em 1883, a apenas seis anos da abolição da escravidão, surgiu em São Paulo uma nova organização social, oficialmente reconhecida pela presidência da

província. Um grupo formado apenas por mulheres fundou a Associação Protetora dos Escravos com o intuito de fazer valer as disposições contidas na lei de 28 de setembro de 1871 – depois dessa data, a chamada Lei do Ventre Livre determinava que fossem considerados libertos todos os filhos de escravas. Além dos fatos históricos ligados diretamente à escravidão, a criação da associação revela outra faceta social da época: sociedades como essas eram compostas muitas vezes apenas de mulheres num tempo em que elas não tinham direitos políticos, como o do voto. “Foi uma forma por elas encontrada para entrarem na grande política quando isso lhes era interditado”, diz o historiador Rafael Marquese, professor e pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

É o que se pode afirmar a partir do estatuto original da Associação Protetora dos Escravos. O documento está acessível on-line junto com outras 7 mil imagens relacionadas à memória da escravidão recentemente digitalizadas pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo (www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/escravos).

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A coleção Escravos é um conjunto de cartas dirigidas à presidência da província de São Paulo, ofícios sobre investigações de tráfico negreiro, relações de escravos matriculados nos municípios, estatísticas da população escrava, entre muitos outros papéis reunidos entre 1764 e 1890.

Todo o material foi acumulado por órgãos administrativos da província paulista nesse período e reunido na década de 1950 em uma única coleção. O trabalho de organização e digitalização levou três meses ao custo de R$ 30,9 mil do Programa de Apoio ao Desenvolvimento dos Arquivos Ibero-americanos (Adai), fundo do governo espanhol para o desenvolvimento arquivístico.

Outro documento que também desperta o interesse de estudiosos é um ofício de 26 de julho de 1886 do Ministério dos Negócios, da Agricultura, Comércio e Obras Públicas ao inspetor da Tesouraria da Fazenda de São Paulo sobre a dúvida que este último tinha a respeito da matrícula de escravos na cidade de Bananal.

livro-caixa da cidade de Santa Branca com informações sobre alforria de escravos, de 1882

Alguns deles alegavam terem sido “importados” para o Brasil depois da lei de 7 de novembro de 1831, que proibiu o tráfico negreiro transatlântico. Ou seja, eles não poderiam ser considerados cativos. A ordem do ministério, no entanto, é clara: o coletor de Rendas Gerais de Bananal não deveria se negar matricular os escravos. A matrícula foi criada pelo governo para obrigar os fazendeiros a registrar o número correto de escravos de modo que pudessem constar no censo demográfico e para que se soubesse quem nasceu antes e depois da Lei do Ventre Livre.

“Mesmo com a lei de 1831, que bania o tráfico, de 1835 a 1850 houve intenso comércio ilegal de escravos”, diz Marquese. Nos anos 1880, o abolicionismo ganhou novo ânimo com militantes antiescravidão estimulando os escravos que chegaram ilegalmente ao

Brasil a exigir seu direito à liberdade. “Bananal foi uma das cidades onde essa reação se tornou mais visível por ser uma região cafeeira com muitos escravos e protestos de ativistas ligados a José do Patrocínio, do Rio de Janeiro, figura importante do abolicionismo.” O ofício do ministério mostra como a lei era menosprezada quando se tratava de escravos.

Para o historiador Carlos Bacellar, coordenador do Arquivo Público do Estado de São Paulo, documentos como esses iluminam melhor o período e servem como porta de entrada para outras investigações sobre escravidão em São Paulo, além da óbvia vantagem de poderem ser consultados via internet. “Professores de história, incluindo os do ensino médio, podem também baixar documentos e usá-los para ilustrar aulas”, conclui Bacellar.

Estatuto da Associação Protetora dos Escravos, de 1883, criada e dirigida por mulheres

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Antropofagia em cenaCom mais de 50 anos

de atuação, Teatro

Oficina agora faz

pesquisa voltada para

a intervenção urbana

a fachada do Teatro Oficina na rua Jaceguai – uma estreita via de acesso à 9 de Julho no bairro do Bixiga, em São

Paulo – tem a simplicidade de uma garagem. Quando a pesada porta da entrada se abre, revela-se então uma estrutura que em nada lembra a de um teatro convencional: lá dentro, uma espécie de passarela, comprida, corre por entre duas arquibancadas de aço e madeira.

Nada de cortinas, nada de palco, nada de poltronas. Quem percorre esse corredor nota um leve declive em direção aos fundos. À esquerda, ao lado de uma das arquibancadas e já no meio do percurso, uma imensa janela de vidro tem vista para os edifícios do bairro.

A arquiteta italiana Lina Bo Bardi projetou o espaço nos anos 1980 para que o diretor José Celso Martinez Corrêa, hoje com 75 anos, pudesse desenvolver uma linha de trabalho que tem um pé na arena grega e outro no Carnaval. Os espetáculos apresentados ali ocupam não só a passarela; costumam espalhar-se por todos os

gustavo Fioratti

zé Celso em cena de A terra, de

2001, trilogia de Os sertões: fundador

do Oficina continua sempre presente

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Ao lado, As bacantes, de 1996, em reapresentação de 2010; abaixo, Cacilda!, de 1998, reencenada em 2010

cantos. Não raro, o lugar da plateia é também o lugar da cena, e o público entra na dança.

José Celso está sempre presente, muitas vezes em cena, com cabelos brancos e roupas claras. “O ‘Teato’ é uma feitiçaria que engole o enfeitiçamento geral com que a sociedade de espetáculos, com o fetiche da mercadoria, escraviza a humanidade. Nós queremos nos ‘desvoduzar’. Trazer sopros que invertam as equações abstratas dominantes”, diz ele.

O diretor grafa a palavra teatro sempre sem o “r” – ou com o “r” entre parênteses – para conjugar a sílaba “te” à palavra “ato”. Diz que ato e representação não são coisas iguais, ampliando o sentido da mimese, do texto decorado, para um trabalho performático com ares de celebração dionisíaca. A última peça do Teatro

agora sim articulada à parceria com a arquiteta Lina Bo Bardi.

A reabertura do repertório do Oficina ocorreu em 1991, com o espetáculo As boas, com texto de Jean Genet e com Raul Cortez no elenco. Ham-let (1993), baseado na obra de Shakespeare, e As bacantes (1996), de Eurípedes, aprofundam a inspiração na mitologia grega de Dionísio, deus dos prazeres, da loucura, do vinho, do sexo. O Oficina firma seu terreno na celebração da nudez, do corpo e da carne como ponte para um gozo espiritual.

É uma linha de pesquisa que resulta em espetáculos longos, muitas vezes com até quatro horas de duração. Assim era Cacilda!, de 1998, baseada na vida e no trabalho da atriz Cacilda Becker, e a trilogia de Os sertões, adaptação da obra de Euclides da Cunha, de modo que o original era dividido em três partes: A terra, O homem e A luta. Houve sessões que reuniam esses três espetáculos, com mais de 10 horas de duração. Uma delas foi apresentada no mesmo município da Bahia onde houve o massacre de Canudos, narrado no livro de Euclides da Cunha.

Oficina, Macumba antropófaga, tem esse perfil: o espetáculo começava dentro do teatro e partia para a rua. Descia a rua Jaceguai e, por entre becos, casas, ruelas da vizinhança, prosseguia com atores conduzindo performances ao som de bumbos, pandeiros e declamações.

É um momento atual do grupo, que José Celso considera fazer parte “da descoberta do teatro como intervenção urbana”. O que não muda é a diretriz estabelecida por uma referência fundamental: a obra do escritor Oswald de Andrade (1890-1954), especialmente seu Manifesto antropófago.

A redescoberta de Oswald “foi a revolução cultural mais importante da segunda metade do século XX”, diz o diretor, em referência ao movimento Tropicalista. “Ninguém o conhecida, nem

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Glauber [Rocha, cineasta], nem Caetano [Veloso], nem Gil [Gilberto Gil] nem o Hélio Oiticica [artista plástico]; a antena de Oswald nos ligou neste movimento definitivo de descolonização da língua, do corpo, da arte”, prossegue.

O Oficina foi fundado em 1958 por José Celso, Renato Borghi e Etti Fraser, entre outros atores. Teve uma primeira fase realista, com pesquisa fundamentada na metodologia do russo Constantin Stanislavski. Após um incêndio que destruiu o teatro por completo, o grupo encenou em 1967 O rei da vela, de Oswald. A peça marca a nova pesquisa, voltada para o teatro épico do alemão Bertolt Brecht.

O grupo se desfez em parte por conta da situação política – a ditadura militar leva José Celso para o exílio, após 20 dias de prisão por conta de manifestos contra o regime – e em parte por desacordos entre os integrantes. O diretor retornou ao Brasil em 1978 e se seguiu o período da retomada de seu trabalho. Retomada lenta e gradual,

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O rei da vela, de 1967: pesquisa voltada para o teatro épico

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Se era para ser chato, então eu seria mesmo. Resolvi contar, registrar, tirar média, moda e mediana, tudo que fosse possível. Só quan-

tificando pode-se convencer o adversário. Então, a partir de agora, eu ia contar. Contabilizar. E, se preciso fosse, sistematizar. Aquela mania de carioca de nunca chegar na hora marcada, eu ia provar, por a + b, e talvez adicionando c, d, e, que não só não fazia sentido como trazia perdas irreparáveis à espécie humana. Bem, esse havia sido meu intuito inicial.

Sexta-feira: a Cássia marcou comigo às 19h30 no Amarelinho da Cinelândia e chegou às 19h56. Anotei, discretamente, enquanto ela ia ao toalete, os 26 minutos de atraso. No sábado seguinte, mar-quei a praia com o Augusto, que chegou quinze minutos depois do combinado. Tomei nota no meu caderninho, sem comentar nada. No mesmo dia, à noite, o pessoal do clube marcou o clássico cineminha. O primeiro a chegar, depois de mim, apareceu no cinema dezenove minutos depois da hora estipulada. Os outros demoraram ainda mais e tudo foi devidamente registrado, com discrição. No dia seguinte, passaria para o Excel a tabela da primeira semana já contabilizando o tempo de atraso de todas aquelas pessoas e o que aqui-lo significaria em se tratando de perdas. Aquela mania de atraso me irritava profundamente, uma vez que sempre fui pontual. Meus atrasos eram de, no máximo, cinco minutos, quando não che-gava antes. No entanto, a massa humana com a qual eu convivia achava cafona ser pontual. Tudo bem, mas quantas coisas eu deixava de fazer em todo aquele tempo em que esperava alguém? Era exatamente isso o que eu ia passar a observar, e as conexões entre o tempo jogado no lixo e as atividades não executadas seriam examinadas com rigor, na esperança de que um estudo sério

motivasse alguma mudança de hábito, ao menos entre meus conhecidos.

Mantive minha ciência do tempo de atraso e no domingo havia um almoço com os amigos de infância. A turma só chegou meia hora depois do marcado. Ao menos aquela ideia de anotar e con-tabilizar o tempo de atraso e a tradução daquilo em perdas ensejavam em mim algum prazer ao constatar aquelas sucessivas demoras. Se antes eu ficava irritadíssimo e mal-humorado, agora que iniciara aquele esporte tão íntimo e solitário, estava tendo algum gozo em somar e multiplicar minutos vazios. No primeiro fim de semana, minha tabeli-nha particular já demonstrava um total de mais de uma hora de atrasos alheios. Ora, o que é possível empreender nesse tempo? A leitura de boa parte de um bom romance, uma caminhada no aterro do Flamengo, um telefonema sempre adiado para mi-nha tia? Pois esse foi o tempo que fiquei de bobeira aguardando todos eles, sem, no entanto, fazer nada.

Continuei minha prática durante todo aquele mês de maio. Atrasos de clientes no trabalho, de familiares, dos amigos, tudo era anotado minu-ciosamente no meu caderno e depois repassado para o Excel, onde o total me trazia números bri-lhantes e redondos. Passei a cronometrar também o tempo que eu levava para fazer certas tarefas básicas da vivência e da sobrevivência, elaboran-do um verdadeiro catálogo de equivalências: uma espera de quinze minutos, por exemplo, significa-ria uma sesta após o almoço, que, se eu pudesse aproveitar, me tornaria mais produtivo à tarde sem tomar tantos cafés. Assim, no mês de maio, com seus 31 dias, somei um total de 6 horas e 48 minutos de atrasos. Quase um turno de trabalho! Quanto um pipoqueiro ganha vendendo pipoca na frente do Cine Joia durante esse tempo? Qual é o lucro desse cara? Minha analista, que me cobra

conto

Uma ciência do atrasoVivian Pizzinga

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Vivian Pizzinga é psicóloga com mestrado em saúde coletiva pelo IMS/Uerj. Escreve para o blog Caneta, lente, pincel e teve textos publicados nos volumes 1 e 2 do Clube da Leitura, no jornal Plástico Bolha, na revista Café Espacial, entre outros.

ao acordar naquele dia, entre outras perguntas aparentemente estapafúrdias para eles. A verdade é que passei aquele ano anotando e observando relações temporais, tornando-me um verdadeiro obcecado pelo atraso e seus nexos causais.

Agora eu já não suportava mais se alguém che-gava na hora, se chegava antes ou se seu atraso era irrelevante, tanto quanto os meus. A pontualidade impediria digressões intelectuais sobre os hábitos humanos e suas circunstâncias. O que seria, origi-nalmente, uma grande teoria do atraso me levava a descrições sobre variados tipos humanos e seus perfis psicológicos, a estrutura do psiquismo e sua tradução em tarefas simples da vida diária. Eu só pensava nisso e, de algum modo, fui percebendo que o tempo que eu destinava a fazer tabelas, so-mando e subtraindo parcelas temporais, era talvez o dobro daquele que eu gastava esperando fulano ou beltrano para o cinema ou o almoço. Passei a me atrasar para meus compromissos enquanto anotava fórmulas e incógnitas, e já não queria mais convencer o adversário de que o atraso era prejudicial. O que eu queria era, nada mais, nada menos, continuar esperando.

benevolentes oitenta reais por sessão, atenderia seis clientes e faria bons quatrocentos reais nesse intervalo de tempo. Quantos deles elaborariam o Édipo nessas sessões?

Não obstante o desperdício de horas, a verda-de é que gostei tanto do esporte, que resolvi fazer as anotações em junho, julho e agosto e totalizei, nesses três meses, pouco mais de trinta horas de atrasos. Fui aprimorando minhas percepções e co-nexões teóricas, e resolvi continuar as observações nos meses seguintes, uma vez que poderia haver um diferencial relacionado às estações do ano. Será que as pessoas atrasavam mais na primavera e no verão do que no outono e inverno, ou seria o contrário? Ou será que não havia diferença signi-ficativa? Se houvesse, qual razão estaria na origem do fenômeno? Que outras variáveis intervenientes eu poderia encontrar? Mulheres atrasavam mais, ou seriam os homens (e que mito poderia estar rondando as maneiras feminina e masculina de lidar com os instantes)? Havia mais atrasos pela manhã, à tarde ou à noite? Para programas inte-lectuais ou farras monumentais? Anos eleitorais seriam mais propícios a atrasos? E por quê? Cada vez mais eu anotava detalhes que poderiam guar-dar alguma relação com o atraso e perguntava, in-sistentemente, aos meus pares, o que teriam feito antes de sair, que tipo de pensamento haviam tido

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um setor imobiliário fortalecido que contribua para a geração de emprego, renda e oportunidades’’.

A mobilidade urbana, tema abordado por Vasconcellos (cap. 9), é problemática em função da má qualidade e oferta reduzida dos transportes públicos nas áreas periféricas. Os deslocamentos in-traurbanos possuem custo e tem-po inversamente proporcionais à renda dos habitantes. O autor recomenda um conjunto de in-vestimentos em infraestrutura e gestão de transportes públicos, distribuídos de modo equilibra-do na cidade, que dependem de

acordos institucionais e de articulação entre as instâncias municipal, estadual e federal.

Nakano (cap. 10) discute os desafios do de-senvolvimento econômico para o planejamento urbano municipal, a partir da análise de um con-junto de intervenções urbanísticas previstas para áreas estratégicas indicadas no plano diretor de São Paulo. Enfatiza a necessidade do repovoa-mento intraurbano com usos diversificados e uma distribuição mais equilibrada das atividades econômicas no território.

A questão da macrometrópole e o papel cen-tral de São Paulo é fundamental para Tapia e Silva (cap. 11), que evidenciam a necessidade de novos modelos de governança metropolitana, com arranjos institucionais capazes de enfrentar as transformações socioeconômicas em curso.

Enfim, os argumentos expostos, ao longo do livro, sinalizam que as oportunidades ligadas ao desenvolvimento econômico, articulado ao conhecimento e à inovação, dependem de uma melhor distribuição espacial dos setores produ-tivos modernos na cidade e de uma maior inte-ração entre diversidade econômica e sociedade, estratégias fundamentais às políticas públicas, municipal e metropolitana, em prol de uma ci-dade justa e equitativa.

Estabelecer conexões com o de-senvolvimento econômico e o espaço urbano de São Paulo,

procurando explicar a localização de atividades inovativas e as dinâ-micas territoriais, não é tarefa fácil, dada a dimensão e complexidade do município e a incipiência de dados.

Os resultados deste estudo in-dicam que o município possui es-trutura produtiva complexa e di-versificada, reforçando sua posição primaz no país e contrariando a afir-mação de que os setores industrial e de serviço se opõem. Para Comin (cap. 1), na atualidade, evidencia-se forte relação da indústria com uma parcela do setor de serviço, que passou a incor-porar, em sua matriz, conhecimento e inovação tecnológica. Investimento em educação é um dos principais desafios para as políticas públi-cas, propiciando o acesso da população às novas tecnologias e contribuindo para a redução das desigualdades sociais.

Freire, Abdal e Bessa (cap. 2) discutem a relação entre indústrias de alta tecnologia, inovação e co-nhecimento. Consoni (cap. 4) enfatiza que a siner-gia decorrente das articulações entre empresas de P&D e universidades é estratégica para as políticas públicas, pois qualificam a mão de obra especia-lizada, para além do pessoal com nível superior, proporcionando melhores salários e maior renda.

A despeito dos aspectos vantajosos da moderni-zação tecnológica, os mapas espacializam as múl-tiplas dimensões do tema, denotando “regiões ga-nhadoras e perdedoras’’, conforme apontam Bessa et al (cap. 5). A localização dos setores produtivos mais modernos, dos empregos qualificados, dos es-tratos sociais de média e alta renda e das melhores infraestruturas reforçam o centro expandido, em especial o vetor sudoeste, evidenciando que a his-tórica segregação socioespacial na cidade persiste.

Wissenbach (cap. 8) analisa o papel da localiza-ção urbana na dinâmica do mercado imobiliário, reconhecendo sua força, e indaga se é possível “conciliar uma política de desenvolvimento ur-bano que se oriente pela reversão dos proble-mas crônicos da cidade […] com a existência de

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Angélica t. benatti Alvim

Angélica t. benatti Alvim é arquiteta e urbanista (Belas Artes, SP), mestre, doutora (FAU-USP), professora e atual coordenadora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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grande calote, tratam do perío-do holandês e das várias fases e transformações nas característi-cas dos engenhos e de sua produ-ção desde o governo de Maurício de Nassau em 1637 até a fase final da Restauração pernambucana de 1654 e seus desdobramentos.

Outro destaque é o debate sobre a natureza da própria insurreição contra os batavos. Esta chegou a ser pensada como “uma empresa desesperada de relapsos devedo-res luso-brasileiros, ansiosos por se libertarem das dívidas”. Mas parte da documentação demonstrou que muitos devedores não se mostraram

totalmente favoráveis à insurreição. No último ca-pítulo, Os engenhos de açúcar no Brasil holandês, é apresentado um levantamento cronológico, his-tórico e descritivo detalhado sobre os engenhos.

Para cada engenho há um mapeamento de in-formações que auxilia a visualização de paisagens históricas e dados econômicos, bem como de suas transformações no tempo. Este capítulo também apresenta particularidades que nos aproximam de vários microcosmos, com questões familiares e tramas políticas que permitem a compreensão de processos históricos mais complexos como aqueles que envolviam as relações entre senhores de engenho, holandeses e a administração lusa.

Na verdade, ao trazer informações que cons-tituíram uma das bases para a vasta produção deste historiador pernambucano sobre a histó-ria do Nordeste colonial, o livro apresenta no-táveis exercícios de investigação e compilação de Evaldo Cabral para organizar e dar sentido a informações de origem tão diversa. Enfim, po-demos dizer que O bagaço da cana oferece ainda muito “caldo” sobre este fascinante tema que é o dos engenhos de açúcar coloniais do Nordeste e a dominação holandesa, tendo em vista os seus significados na estruturação da América portu-guesa no século XVII.

o recém-lançado livro do his-toriador Evaldo Cabral de Mello, O bagaço da cana – Os

engenhos de açúcar no Brasil holan-dês, é um tesouro para os pesquisa-dores que se dedicam a investigar a produção açucareira e todos os des-dobramentos que a envolviam na configuração econômica e política do Nordeste colonial seiscentista.

A cana-de-açúcar foi cultivada na península Ibérica desde a época da conquista dos mouros, ocorrida a partir da expansão árabe do século VII. O autor indica em outro estu-do que até mesmo a palavra açúcar deriva etimologicamente do árabe al-succar, que tem origem no sânscrito sarkara, ou seja, semelhante à areia branca. Desde Chi-pre e Creta até o norte da África, o cultivo da cana foi introduzido nessas localidades a partir do século XIV. Por volta de 1440, a região da Madeira foi o ponto de partida para a expansão do cultivo da cana e da produção de açúcar no mundo atlântico, servindo como modelo para os Açores, Cabo Verde, São Tomé e Brasil. Nas primeiras décadas do século XVI, Antuérpia, Amsterdã e Lisboa tinham fortes relações eco-nômicas envolvendo o açúcar pernambucano, as quais, devido à grande demanda, suscitaram muitos investimentos de judeus portugueses e de negociantes dos próprios Países Baixos, levando a que diversos fatores dessa conjuntura histórica, aliada à união das coroas ibéricas, culminassem na invasão holandesa em Pernambuco.

A partir deste contexto, Evaldo Cabral tem como foco o período da dominação batava em Pernambuco, e dividiu o livro em seis capítulos. O primeiro, As fontes, apresenta o diversificado corpus documental consultado pelo autor: de-nunciações e confissões inquisitoriais, fontes de índole administrativa, listagens de engenhos, crônicas e relatórios sobre o Brasil holandês. O segundo capítulo, Antes dos holandeses, indica as conjunturas históricas e as características dos engenhos anteriores ao período neerlandês em Pernambuco. Os três capítulos seguintes, Os desastres da guerra, Euforias nassovianas e O

os engenhos e os holandeses

o bagaço da canaEvaldo Cabral de MelloCompanhia das letras216 páginas, R$ 23,00

milena Fernandes maranho

Milena Fernandes Maranho é pesquisadora-colaboradora do IFCH/Unicamp e autora da tese O moinho e o engenho – São Paulo e Pernambuco em diferentes contextos e atribuições no império colonial português, 1580 - 1720 (USP, 2006).

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