rago, m. epistemologia feminista, gênero e história

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    EPISTEMOLOGIA FEMINISTA, GNERO E HISTRIA*

    Margareth Rago

    Depto de Histria - UNICAMP.

    Introduzindo o debate

    Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era possvel uma histria das

    mulheres, num trabalho que se tornou bastante conhecido, no qual expunha os inmeros

    problemas decorrentes do privilegiamento de um outro sujeito universal: a mulher1

    Argumentava que muito se perdia nessa historiografia que, afinal, no dava conta de pensar

    dinamicamente as relaes sexuais e sociais, j que as mulheres no vivem isoladas em

    ilhas, mas interagem continuamente com os homens, quer os consideremos na figura de

    maridos, pais ou irmos, quer enquanto profissionais com os quais convivemos no

    cotidiano, como os colegas de trabalho, os mdicos, dentistas, padeiros ou carteiros.

    Conclua pela necessidade de uma forma de produo acadmica que problematizasse as

    relaes entre os sexos, mais do que produzisse anlises a partir do privilegamento do

    sujeito. Ao mesmo tempo, levantava polmicas questes: existiria uma maneira feminina

    de fazer/escrever a histria, radicalmente diferente da masculina? E, ainda, existiria umamemria especificamente feminina?

    Em relao primeira questo, Perrot respondia simultaneamente sim e no. Sim,

    porque entendia que h um modo de interrogao prprio do olhar feminino, um ponto de

    vista especfico das mulheres ao abordar o passado, uma proposta de releitura da Histria

    no feminino. No, em se considerando que o mtodo, a forma de trabalhar e procurar as

    fontes no se diferenciavam do que ela prpria havia feito antes enquanto pesquisadora do

    movimento operrio francs. Entendia, assim, que o fato de ser uma historiadora do sexo

    feminino no alterava em nada a maneira como estudara e recortara o objeto. Na verdade,

    *Este artigo foi publicado em Pedro, Joana; Grossi, Miriam (orgs.)- MASCULINO,FEMININO, PLURAL. Florianpolis: Ed.Mulheres,1998

    1 Michelle Perrot - UNE HISTOIRE DES FEMMES EST-ELLE POSSIBLE? Paris:Rivage, 1984.

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    sua argumentao deslocava a discusso, deixando de considerar o modo de produzir e

    narrar a Histria para focalizar o objeto de estudo, sem pensar, por exemplo, por que ela

    no poderia ter trabalhado femininamente um objeto ou um tema masculino? 2 Ao mesmo

    tempo, Perrot destacava as diferenas de registro da memria feminina, mais atenta aos

    detalhes do que a masculina, mais voltada para as pequenas manifestaes do dia-a-dia,

    geralmente pouco notadas pelos homens.3

    Mais recentemente, outro prestigiado historiador francs advertiu contra os perigos

    de se investir a diferena entre os sexos de uma fora explicativa universal; de se observar

    os usos sexualmente diferenciados dos modelos culturais comuns aos dois sexos; de se

    definir a natureza da diferena que marca a prtica feminina; e da incorporao feminina da

    dominao masculina.4 Muito preocupado em reconhecer a importncia da diferenciao

    sexual das experincias sociais, Chartier revelava certo constrangimento em relao

    incorporao da categoria do gnero, numa atitude bastante comum entre muitos

    historiadores, principalmente do sexo masculino.

    Procuro, neste texto, levantar alguns pontos de reflexo sobre a epistemologia

    feminista e sua ressonncia na historiografia. E da maior importncia discutir questes to

    candentes e atuais, especialmente num encontro acadmico que procura perceber as

    possibilidades abertas para a produo do conhecimento pelas discusses que giram em

    torno da incorporao da categoria do gnero e que apontam para a sexualizao daexperincia humana no discurso.

    Epistemologia feminista: ensaiando alternativas

    Ao menos no Brasil, visvel que no h nem clarezas, nem certezas em relao a

    uma teoria feminista do conhecimento. No apenas a questo pouco debatida mesmo nas

    rodas feministas, como, em geral, o prprio debate nos vem pronto, traduzido pelas

    2Lembre-se que M.Perrot escrevera um importante estudo no campo da Histria Social:LES OUVRIERS EN GRVE.FRANCE 1871-1890. MOUTON, 1974.3M. Perrot - Prticas da Memria Feminina, Revista Brasileira de Histria, S.Paulo:Anpuh/Marco Zero,vol.9, no.18,1989.4Roger Chartier - Diferenas entre os sexos e dominao simblica, CadernosPAGU,no.4, Unicamp,1995.

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    publicaes de autoras do Hemisfrio Norte. H quem diga, alis, que a questo interessa

    pouco ao feminismo dos trpicos, onde a urgncia dos problemas e a necessidade de

    rpida interferncia no social no deixariam tempo para maiores reflexes filosficas.5

    Contrariando posies e tentando aproximar-me da questo, gostaria de esboar

    algumas idias. Afinal, se considerarmos que a epistemologia define um campo e uma

    forma de produo do conhecimento, o campo conceitual a partir do qual operamos ao

    produzir o conhecimento cientfico, a maneira pela qual estabelecemos a relao sujeito-

    objeto do conhecimento e a prpria representao de conhecimento como verdade com que

    operamos, deveramos prestar ateno ao movimento de constituio de uma ( ou seriam

    vrias?) epistemologia feminista, ou de um projeto feminista de cincia.6 O feminismo

    no apenas tem produzido uma crtica contundente ao modo dominante de produo do

    conhecimento cientfico, como tambm prope um modo alternativo de operao e

    articulao nesta esfera. Alm disso, se consideramos que as mulheres trazem uma

    experincia histrica e cultural diferenciada da masculina, ao menos at o presente, uma

    experincia que vrias j classificaram como das margens, da construo mida, da gesto

    do detalhe, que se expressa na busca de uma nova linguagem, ou na produo de um

    contradiscurso, inegvel que uma profunda mutao vem-se processando tambm na

    produo do conhecimento cientfico.

    Certamente, a questo muito mais complexa do que estou formulando aqui, j que,de um lado, h outras correntes vanguardistas do pensamento contemporneo, atuando no

    sentido das profundas desestabilizae e rupturas tericas e prticas em curso. Alm do

    mais, seria ingnuo considerar que a teoria feminista rompe absolutamente com os modelos

    de conhecimento dominantes nas Cincias Humanas, sem reconhecer que se h rupturas, h

    tambm muitas permanncias em relao tradio cientfica. No entanto, quero chamar a

    ateno especificamente para o aporte feminista s transformaes em curso no campo da

    produo do conhecimento.

    5 Uma instigante discusso sobre o tema, encontra-se em Roberto Cintra Martins -Filosofia da Cincia e feminismo: uma ligao natural, in Lucila Scavone (org.)-TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS.Gnero e Cincia. S.Paulo: UNESP, 1996.6A esse respeito, veja-se Linda Alcoff e Elizabeth Potter(orgs.) - FEMINISTEPISTEMOLOGIES.New York and London: Routledge, 1993.

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    Na considerao da existncia de uma/vrias epistemologia/s feminista/s, valeria

    ento destacarmos, de incio, dois pontos: o primeiro aponta para a participao do

    feminismo na ampla crtica cultural, terica, epistemolgica em curso, ao lado da

    Psicanlise, da Hermenutica, da Teoria Crtica Marxista, do Desconstrutivismo e do Ps-

    modernismo. Esta crtica revela o carter particular de categorias dominantes, que se

    apresentam como universais; prope a crtica da racionalidade burguesa, ocidental,

    marxista incluso, que no se pensa em sua dimenso sexualizada, enquanto criao

    masculina, logo excludente. Portanto, denuncia uma racionalidade que opera num campo

    ensimesmado, isto , a partir da lgica da identidade e que no d conta de pensar a

    diferena. Eneste ponto que o feminismo se encontra especialmente com o pensamento

    ps-moderno, com a crtica do sujeito, com as formulaes de Derrida e Foucault, entre

    outras.7 O segundo, embutido no primeiro, traz as propostas desta nova forma de conceber

    a produo do conhecimento, do projeto feminista de cincia alternativa, que se quer

    potencialmente emancipador.

    1 - a crtica feminista

    No demais reafirmar que os principais pontos da crtica feminista cincia

    incidem na denncia de seu carter particularista, ideolgico, racista e sexista: o saberocidental opera no interior da lgica da identidade, valendo-se de categorias reflexivas,

    incapazes de pensar a diferena. Em outras palavras, atacam as feministas, os conceitos

    com que trabalham as Cincias Humanas so identitrios e, portanto, excludentes. Pensa-

    se a partir de um conceito universal de homem, que remete ao branco-heterossexual-

    civilizado-do-Primeiro-Mundo, deixando-se de lado todos aqueles que escapam deste

    modelo de referncia. Da mesma forma, as prticas masculinas so mais valorizadas e

    hierarquizadas em relao s femininas, o mundo privado sendo considerado de menor

    importncia frente esfera pblica, no imaginrio ocidental.

    7Vide a respeito Mary McCanney Gergen (ed.) - O PENSAMENTO FEMINISTA E AESTRUTURA DO CONHECIMENTO. Rio de Janeiro:Rosa dos Tempos/EdUNB,1993;Cludia Costa Lima - O leito de Procusto: gnero, linguagem e as teorias feministas,Cadernos PAGU,no.2, Unicamp, 1993.

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    Portanto, as noes de objetividade e de neutralidade que garantiam a veracidade do

    conhecimento caem por terra, no mesmo movimento em que se denuncia o quanto os

    padres de normatividade cientfica so impregnados por valores masculinos, raramente

    filginos. Mais do que nunca, a crtica feminista evidencia as relaes de poder

    constitutivas da produo dos saberes, como aponta, de outro lado, Michel Foucault. Este

    questionara radicalmente as representaes que orientavam a produo do conhecimento

    cientfico, tida como o ato de revelao da essncia inerente coisa, a partir do

    desvendamento do que se considerava a aparncia enganosa e ideolgica do fenmeno.

    Especialmente nas Cincias Humanas, chegar verdade do acontecimento, compreend-lo

    objetivamente significava retirar a mscara que o envolvia na superfcie e chegar s suas

    profundezas. Foucault criticava, assim, a concepo dominante na cultura ocidental de que

    o conhecimento, a produo da verdade se daria pela coincidncia entre o conceito e a

    coisa, no movimento de superao da distncia entre a palavra e a coisa, entre a aparncia e

    a essncia.

    A convergncia entre a crtica feminista e as formulaes dos filsofos da

    diferena, como Foucault, Deleuze, Lyotard, Derrida, entre outros, j foi observada por

    vrias intelectuais.8 A filosofia ps-moderna prope, a partir de um solo epistemolgico

    que se constitui fora do marxismo, novas relaes e novos modos de operar no processo da

    produo do conhecimento: a descrio das disperses (Foucault) e no a sntese dasmltiplas determinaes(Marx); revelar o processo artificial de construo das unidades

    conceituais, temticas supostamente naturais: a desconstruo das snteses, das unidades

    e das identidades ditas naturais, ao contrrio da busca de totalizao das multiplicidades.

    E, fundamentalmente, postula a noo de que o discurso no reflexo de uma suposta

    base material das relaes socias de produo, mas produtor e instituinte de reais. A

    produo do conhecimento se daria, assim, por outras vias. Como disse Foucault:

    Mas no se trata aqui de neutralizar o discurso, transform-lo em signo de outra

    coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aqum

    8Veja-se, por ex., Jane Flax - Ps-Modernismo e Relaes de Gnero na TeoriaFeminista, in Helosa Buarque de Hollanda - PS-MODERNISMO E POLTICA. Rio deJaneiro: Rocco, 1991.

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    dele, e sim, pelo contrrio, mant-lo em sua consistncia, faz-lo surgir na complexidade

    que lhe prpria. Em uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar s coisas,

    despresentific-las;(...) substituir o tesouro enigmtico das coisas anteriores ao

    discurso pela formao regular dos objetos que s nele se delineiam; definir esses objetos

    sem referncia ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que

    permitem form-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condies

    de aparecimento histrico;9

    Do mesmo modo, as tericas feminstas propuseram no apenas que o sujeito

    deixasse de ser tomado como ponto de partida, mas que fosse considerado dinamicamente

    como efeito das determinaes culturais, inserido em um campo de complexas relaes

    sociais, sexuais e tnicas. Portanto, em se considerando os estudos da mulher, esta no

    deveria ser pensada como uma essncia biolgica pr-determinada, anterior Histria, mas

    como uma identidade construda social e culturalmente no jogo das relaes sociais e

    sexuais, pelas prticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes. Como se v, a

    categoria do gnero encontrou aqui um terreno absolutamente favorvel para ser abrigada,

    j que desnaturaliza as identidades sexuais e postula a dimenso relacional do movimento

    constitutivo das diferenas sexuais.

    Vale ainda notar a aproximao entre as formulaes da teoria feminista e avalorizao da cultura pelo ps-modernismo, ao contrrio da sociedade para o marxismo.

    Nesse contexto, a Histria Cultural ganha terreno entre os historiadores, enfatisando a

    importncia da linguagem, das representaes sociais culturalmente constitudas,

    esclarecendo que no h anterioridade das relaes econmicas e sociais em relao s

    culturais. O discurso, visto como prtica, passa a ser percebido como a principal matria-

    prima do historiador, entendendo-se que se ele no cria o mundo, apropria-se deste e lhe

    proporciona mltiplos significados.10

    Enesta perspectiva que Joan Scott, conhecida anteriormente por seus trabalhos na

    rea da Histria Social, ao procurar explicar alternativamente o problema da

    9Michel Foucault - ARQUEOLOGIA DO SABER. Rio de Janeiro:Forense Universitria,1986,p.5410Keith Jenkins - RE-THINKING HISTORY.London: Routledge,1991.

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    trabalhadora, a diviso sexual do trabalho, a oposio entre o lar e o trabalho, inverte

    radicalmente o caminho tradicional da interpretao histrica, enfatisando a importncia do

    discurso na constituio de uma questo socio-econmica. A diviso sexual do trabalho ,

    ento, percebida como efeito do discurso. Segundo ela,

    Ao invs de procurar causas tcnicas e estruturais especficas, devemos estudar o

    discurso a partir do qual as divises do trabalho foram estabelecidas segundo o sexo. O

    que deve produzir uma anlise crtica mais aprofundada das interpretaes histricas

    correntes.11

    Explica que a diferena sexual inscrita nas prticas e nos fatos sempre construda

    pelos discursos que a fundam e a legitimam, e no como um reflexo das relaes

    econmicas. Considera insustentvel a difundida tese de que a industrializao provocou

    uma separao entre o trabalho e o lar, obrigando as mulheres a escolher entre o trabalho

    domstico e o assalariado. Para ela, o discurso masculino, que estabeleceu a inferioridade

    fsica e mental das mulheres, que definiu a partilha aos homens, a madeira e os metais e

    s mulheres, a famlia e o tecido provocou uma diviso sexual da mo-de-obra no

    mercado de trabalho, reunindo as mulheres em certos empregos, substituindo-as sempre

    por baixo de uma hierarquia profissional, e estabelecendo seus salrios em nveisinsuficientes para sua subsistncia. (idem)

    2 - o projeto de cincia feminista ou um modo feminista de pensar?

    E dificil falar de uma epistemologia feminista, sem tocar na discusso sobre os

    perigos da reafirmao do sujeito mulher e de todas as cargas constitutivas dessa

    identidade no imaginrio social. Afinal, como j se observou exaustivamente, a questo

    das relaes sexuais e da mulher especificamente nasce a partir das lutas pela emancipao

    deste sujeito antes definido como sexo frgil. Ena luta pela visibilidade da questo

    feminina, pela conquista e ampliao dos seus direitos especficos, pelo fortalecimento da

    11Joan W. Scott - La Travailleuse, in G. Duby e M.Perrot (orgs.)- HISTOIRE DESFEMMES,vol.4. Paris:Plon, 1991, p.428.

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    identidade da mulher, que nasce um contradiscurso feminista e que se constitui um campo

    feminista do conhecimento. Ea partir de uma luta poltica que nasce uma linguagem

    feminista. E, no entanto, o campo terico que se constitui transforma-se a tal ponto que,

    assim como a Histria Cultural, deixa de lado a preocupao com a centralidade do sujeito.

    Como se de repente os efeitos se desviassem dos objetivos visados no ponto de partida: a

    categoria relacional do gnero desinveste a preocupao de fortalecimento da identidade

    mulher, ao contrrio do que se visava inicialmente com um projeto alternativo de uma

    cincia feminista.

    Esta uma das principais dificuldades que emergem, ao se tentar conceitualizar o

    campo epistemolgico em que se funda um conhecimento sobre as mulheres e, agora, sobre

    as relaes de gnero. A categoria do gnero, j observou Joan Scott, no nasce no interior

    de um sistema de pensamento definido como o conceito de classes em relao ao

    marxismo. Embora seja apropriada como instrumento analtico extremamente til, procede

    de um campo profundamente diverso daquele que tinha como horizonte a emancipao

    social de determinados setores sociais. Helen Longino observa, ainda, que foi depois do

    desenvolvimento do pensamento feminista nas reas da histria, antropologia, teoria

    literria, psicologia e sociologia que se passou a pensar nos conceitos atravs dos quais se

    operava. A reflexo filosfica foi posterior prtica terica. 12

    Isto significa: 1) que houve uma incorporao das questes feministas em diferentescampos da produo do conhecimento cientfico, de fora para dentro, como por exemplo,

    na psicanlise ou no campo marxista. Os temas da mulher e do gnero foram incorporados

    s questes colocadas pela historiografia marxista, sem ter nascido a partir dela,

    enfrentando, alis, srias dificuldades em seu interior. Sabemos como a questo das

    relaes entre os sexos, a histria da sexualidade e do corpo, as lutas polticas das mulheres

    foram secundarizadas no marxismo, tidas como secundrias em relao s questes da luta

    das classes. Do mesmo modo, a questo tnica e racial. Eimpossvel deixar de pensar na

    reao que o livro Histria da Sexualidade, de Foucault teve por parte dos historiadores

    ligados Histria Social, por exemplo. De certo modo, no se pensava nas relaes

    12Helen E. Longino - To See Feelingly: Reason, Passion, and Dialogue in FeministPhilosophy,in Donna C. Stanton e A. Stewart (org.) FEMINISMS IN THE ACADEMY,Ann Arbor: The University of Michigan Press,1995, p.21.

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    sexuais como dimenso constitutiva da vida em sociedade e como uma das definidoras de

    nossa forma de operar conceitualmente. A sexualidade era identificado fora instintiva,

    biolgica e, assim, no merecia ser historicizada. Este era o lugar que tinha no apenas no

    marxismo, mas no imaginrio ocidental.

    2) Esta incorporao, portanto, no se deu sem maiores complicaes. Porque a

    entrada dos temas feministas em campos epistemolgicos masculinos provocou muitas

    desestabilizaes e, mesmo, rupturas, a despeito das muitas permanncias. Os conceitos se

    mostravam estreitos demais para pensar a diferena, alis, masculinos, muitas vezes

    misginos, precisavam ser transformados, abandonados,questionados, refeitos. Como

    lembra Elizabeth Grosz, no se tratava afinal de um simples esquecimento das mulheres de

    um campo neutro e objetivo de conhecimentos:Sua amnsia estratgica e serve para

    assegurar as bases patriarcais do conhecimento. 13 Alm disso, esta entrada, por

    exemplo, no campo do marxismo s foi possvel porque este, ao dar sinais de esgotamento,

    estava sendo amplamente criticado, vrios conceitos se mostravam insuficientes, e os

    marxistas partiam em busca de renovaes conceituais, temticas, de atualizao.14

    3) Esta incorporao remete, ainda, a uma outra questo: a que vem uma

    epistemologia feminista? Para que necessitamos de uma nova ordem explicativa do mundo?

    Para melhor controlar o pensamento e o mundo? Uma nova ordem das regras para trazer

    poder poltico a um setor que se sente excludo? Sandra Harding pergunta, ento, ao ladode muitas outras feministas, se no estaramos correndo o risco de repor o tipo de relao

    poder-saber que tanto criticamos:

    Como que o feminismo pode redefinir totalmente a relao entre saber e poder,

    se ele est criando uma nova epistemologia, mais um conjunto de regras para controlar o

    pensamento?15

    13Elizabeth Grosz - Bodies and Knowledges: Feminism and the Crisis of Reason, inL.Alcoff e E.Potter, op.cit. p.206.14Veja-se a propsito Donna Haraway - Saberes Localizados: a questo da cincia para ofeminismo e o privilgio da perspectiva parcial. UNICAMP, Cadernos PAGU, no.5,1995,P.14.

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    E possvel contra-argumentar lembrando que no h como fugir ao fato de que

    todas as minorias relativamente organizadas, e no apenas as mulheres, esto reivindicando

    uma fatia do bolo da cincia e que nenhum dos grupos excludos, - negros, africanos,

    orientais, homossexuais, mulheres, com suas propostas de epistemologias alternativas -

    feminista, terceiro mundista, homossexual, operria - pode hoje reivindicar um lugar de

    hegemonia absoluta na interpretao do mundo. Alm disso, h que se reconhecer as

    dimenses positivas da quebra das concepes absolutizadoras, totalizadoras, que at

    recentemente poucos percebiam como autoritrias, impositivas e hierarquizantes. No h

    dvidas de que o modo feminista de pensar rompe com os modelos hierrquicos de

    funcionamento da cincia e com vrios dos pressupostos da pesquisa cientfica. Se a crtica

    feminista deve encontrar seu prprio assunto, seu prprio sistema, sua prpria teoria e

    sua prpria voz, como diz Showalter, possvel dizer que as mulheres esto construindo

    uma linguagem nova, criando seus argumento a partir de sua prprias premissas.16

    Vamos dizer que podemos pensar numa epistemologia feminista, para alm do

    marxismo e da fenomenologia, como uma forma especfica de produo do conhecimento

    que traz a marca especificamente feminina, tendencialmente libertria, emancipadora. H

    uma construo cultural da identidade feminina, da subjetividade feminina, da cultura

    feminina, que est evidenciada no momento em que as mulheres entram em massa no

    mercado, em que ocupam profisses masculinas e em que a cultura e a linguagem sefeminizam. As mulheres entram no espao pblico e nos espaos do saber transformando

    inevitavelmente estes campos, recolocando as questes, questionando, colocando novas

    questes, transformando radicalmente. Sem dvida alguma, h um aporte feminino/ista

    especfico, diferenciador, energizante, libertrio, que rompe com um enquadramento

    conceitual normativo. Talvez da mesmo a dificuldade de nomear o campo da

    epistemologia feminista.

    Vejamos alguns aspectos desse aporte: o questionamento da produo do

    conhecimento entendida como processo racional e objetivo para se atingir a verdade pura e

    15Sandra Harding - A instabilidade das Categorias Analticas na Teoria Feminista, inRevista de Estudos Feministas,vol.1,no.1, 1993, Rio de Janeiro CIEC/ECO/UFRJ, p.19.

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    universal, e a busca de novos parmetros da produo do conhecimento. Aponta, ento,

    para a superao do conhecimento como um processo meramente racional: as mulheres

    incorporam a dimenso subjetiva, emotiva, intuitiva no processo do conhecimento,

    questionando a diviso corpo/mente, sentimento/razo. Simmel j fizera esta observao,

    em 1902, ao indagar sobre as possveis contribuies da Cultura Feminina num mundo

    masculino, e Helen Longino complementa:

    Em busca de parmetros (groundings) conceituais e filosficos alternativos,

    muitos pensadores abraaram modos de anlise que rejeitam a dicotomizao entre razo

    e paixo, entre saber e sentimento.17

    Para ela, o pensamento feminista trouxe a subjetividade como forma de

    conhecimento. We all see feelingly, afirma, o que se ope radicalmente ao ideal de

    conhecimento objetivo trazido das Cincias Naturais para as Cincias Humanas. Entrando

    num mundo masculino, possudo por outros, a mulher percebe que no detm a linguagem

    e luta por criar uma, ou ampliar a existente: aqui se encontra a principal fonte do aporte

    feminista produo do conhecimento, construo de novos significados na interpretao

    do mundo.

    Portanto, o feminismo prope uma nova relao entre teoria e prtica. Delineia-se um novo agente epistmico, no isolado do mundo, mas inserido no corao dele, no

    isento e imparcial, mas subjetivo e afirmando sua particularidade. Ao contrrio do

    desligamento do cientista em relao ao seu objeto de conhecimento, o que permitiria

    produzir um conhecimento neutro, livre de interferncias subjetivas, clama-se pelo

    envolvimento do sujeito com seu objeto. Uma nova idia da produo do conhecimento:

    no o cientista isolado em seu gabinete,testando seu mtodo acabado na realidade emprica,

    livre das emoes desviantes do contato social, mas um processo de conhecimento

    construdo por individuos em interao, em dilogo crtico,contrastando seus diferentes

    16Elaine Showalter - A crtica feminista no territrio selvagem, in Helosa Buarque deHollanda (org.) - TENDNCIAS E IMPASSES. O Feminismo como Crtica da Cultura.Rio de Janeiro: Rocco,1994, p.29.17G. Simmel - Cultura Feminina, in FILOSOFIA DO AMOR. Rio de Janeiro: MartinsFontes, 1993; Helen Longino, idem, p.20.

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    pontos de vista, alterando suas observaes, teorias e hipteses, sem um mtodo pronto.

    Reafirma-se a idia de que o caminho se constri caminhando e interagindo.

    Defendendo o relativismo cultural, questiona tambm a noo de que este

    conhecimento visa atingir a verdade pura, essencial. Reconhece a particularidade deste

    modo de pensamento e abandona a pretenso de ser a nica possibilidade de interpretao.

    Concordando com Sandra Harding: Uma forma de resolver o dilema seria dizer que a

    cincia e a epistemologia feministas tero um valor prprio ao lado, e fazendo parte

    integrante, de outras cincias e epistemologias - jamais como superiores s outras.(p.23)

    Enfatiza a historicidade dos conceitos e a coexistncia de temporalidades

    mltiplas. Nesta direo, a historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias mostra a

    confluncia das tendncias historiogrficas contemporneas com as nquietaes

    feministas; defendendo a instabilidade das categorias feministas(Sandra Harding), fala

    em hermenutica crtica e no historismo:

    a historiografia feminista segue os mesmos parmetros(que a desconstruo de

    Derrida, a arqueologia da Foucault, a teoria crtica marxista, a histria social e

    conceitual dos historistas alemes, a historiografia das mentalidades), pois tem seu

    caminho metodolgico aberto para a possibilidade de construir as diferenas e de explorar

    a diversidade dos papis informais femininos.18

    Os estudos feministas inovam, ento, na maneira como trabalham com as multiplicidades

    temporais, descartando a idia de linha evolutiva inerente aos processos histricos.

    Feminismo e Histria

    Seria interessante, por fim, pensar como os deslocamentos tericos produzidos

    pelo feminismo tm repercutido na produo historiogrfica. A emergncia de novos temas,

    de novos objetos e questes, especialmente ao longo da dcada de setenta deu maior

    18Maria Odila Leite da Silva Dias - Teoria e mtodo dos estudos feministas: perspectivahistrica e hermenutica do cotidiano, in Albertina de O. Costa e Cristina Bruschini

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    visibilidade s mulheres enquanto agentes histricos, incialmente a partir do padro

    masculino da Histria Social, extremamente preocupada com as questes da resistncia

    social e das formas de dominao poltica.19 Este quadro ampliou-se, posteriormente, com a

    exploso dos temas femininos da Nouvelle Histoire, como bruxaria, prostituio, loucura,

    aborto, parto, maternidade, sade, sexualidade, a histria das emoes e dos sentimentos,

    entre outros.

    Eclaro que muitos discordaro da diviso sexual dos temas histricos acima

    proposta, j que h muitas outras dimenses implicadas na ampliao do leque temtico,

    principalmente a crise da historiografia da Revoluo e a redescoberta da Escola dos

    Annales. Entretanto, poucos podero negar que a entrada desses novos temas se fz em

    grande parte pela presso crescente das mulheres, que invadiram as universidades e criaram

    seus prprios ncleos de estudo e pesquisa, a partir dos anos setenta. Feministas assumidas

    ou no, as mulheres foram a incluso dos temas que falam de si, que contam sua prpria

    histria e de suas antepassadas e que permitem entender as origens de muitas crenas e

    valores, de muitas prticas sociais frequentemente opressivas e de inmeras formas de

    desclassificao e estigmatizao. De certo modo, o passado j no nos dizia e precisava

    ser re-interrogado a partir de novos olhares e problematizaes, atravs de outras categorias

    interpretativas, criadas fora da estrutura falocntrica especular.

    A descoberta da origem da me moderna a partir do modelo rousseausta, proposta por Elisabeth Badinter, por exemplo, foi fundamental para se reforar o

    questionamento do padro de maternidade que havia vigorado inquestionvel at os anos

    60 e reforar a luta feminista pela conquista de novos direitos; a genealogia dos conceitos

    da prostituio, da homossexualidade e da perverso sexual, entre outros, foi extremamente

    importante enquanto reforava a desconstruo prtica das inmeras formas de

    normatizao20. A histria do corpo feminino trouxe luz as inmeras construes

    estigmatizadoras e misginas do poder mdico, para o qual a constituio fsica da mulher

    (orgs.) - UMA QUESTO DE GNERO. RJ.: Editora Rosa dos Tempos/SP:FundaoCarlos Chagas, p.49.19Margareth Rago - As mulheres na Historiografia Brasileira, in Zlia Lopes (org.)- AHISTRIA EM DEBATE, SP: Editora da UNESP, 1991.

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    por si s inviabilizaria sua entrada no mundo dos negcios e da poltica. O questionamento

    das mitologias cientficas sobre sua suposta natureza, sobre a questo da maternidade, do

    corpo e da sexualidade foi fundamental em termos da legitimao das transformaes

    libertadoras em curso.

    O campo das experincias histricas consideradas dignas de serem narradas

    ampliou-se consideravelmente e juntamente com a emergncia dos novos temas de estudo,

    isto , com a visibilidade e dizibilidade que ganharam inmeras prticas sociais, culturais,

    religiosas, antes silenciadas, novos sujeitos femininos foram includos no discurso

    histrico, partindo-se inicialmente das trabalhadoras e militantes, para incluir-se, em

    seguida, as bruxas, as prostitutas, as freiras, as parteiras, as loucas, as domsticas, as

    professoras, entre outras. A ampliao do conceito de cidadania, o direito histria e

    memria no se processavam apenas no campo dos movimentos sociais, passando a ser

    incorporados no discurso, ou melhor, no prprio mbito do processo da produo do

    conhecimento.

    Para tanto, novos conceitos e categorias tiveram de ser introduzidos a partir das

    perguntas levantadas pelo feminismo e dos deslocamentos tericos e prticos provocados.

    Por que se privilegiavam os acontecimentos da esfera pblica e no os constitutivos de

    uma histria da vida privada? Por que se desprezava a cozinha, em relao sala, e a casa

    em relao rua? Onde uma histria dos segredos, das formas de circulao e comunicaofemininas, das fofocas, das redes interativas construdas nas margens, igualmente

    fundamentais para a construo da vida em sociedade? Quais as possibilidades de uma

    Histria no feminino? No apenas a histria das mulheres, mas a histria contada no

    registro feminino?21

    Neste contexto, ficou evidente a precariedade e estreiteza do instrumental conceitual

    disponvel para registrar as prticas sociais que passavam a ser percebidas, embora

    existentes desde sempre. Para o historiador formado na tradio marxista, especialista na

    20Vejam-se as discusses de Jurandir Freire Costa - O referente da identidadehomossexual, in Richard Parker e Regina M. Barbosa (orgs.) - SEXUALIDADESBRASILEIRAS. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.21Tnia Navarro Swain - Feminino/Masculino no Brasil do sculo XVI: um estudohistoriogrfico,1995, (mimeo); Maria Izilda S. de Mattos e Fernando A. de Faria -

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    recuperao histrica das lutas sociais e da dominao de classes, como falar das prticas

    desejantes, com que conceitos poderia construir uma histria do amor, da sexualidade, do

    corpo ou do medo? Como trabalhar a questo da religiosidade e das reaes diante da vida

    e da morte?

    No casos dos estudos feministas, o sucesso da categoria do gnero se explica, em

    grande parte, por ter dado uma resposta interessante ao impasse terico existente, quando

    se questionava a lgica da identidade e se decretava o eclipse do sujeito. Categoria

    relacional, como observa Joan Scott, encontrou campo extremamente favorvel num

    momento de grande mudana das referncias tericas vigentes nas Cincias Humanas, e em

    que a dimenso da Cultura passava a ser privilegiada sobre as determinaes da Sociedade.

    Assim como outras correntes de pensamento, a teoria feminista propunha que se pensasse a

    construo cultural das diferenas sexuais, negando radicalmente o determinismo natural e

    biolgico. Portanto, a dimenso simblica, o imaginrio social, a construo dos mltiplos

    sentidos e interpretaes no interior de uma dada cultura passavam a ser priorizados em

    relao s explicaes econmicas ou polticas.

    Em termos da historiografia, estas concepes se aproximam das formuladas pela

    Histria Cultural. Esta pe em evidncia a necessidade de se pensar o campo das

    interpretaes culturais, a construo dos inmeros significados sociais e culturais pelos

    agentes histricos, as prticas da representao, deixando muito claro que o predomnio prolongado da Histria Social, de tradio marxista, secundarizou demais o campo da

    subjetividade e da dimenso simblica. Exceo feita a E. P. Thompson, que alis se

    tornou extremamente famoso apenas na dcada de oitenta, grande parte dos estudos

    histricos de tendncia marxista mantinham-se presos ao campo da poltica e da economia,

    este sendo considerado o lugar do real e da inteligibilidade da histria. Apenas nas

    ltimas dcadas, passou-se a falar incisivamente em imaginrio social, nas representaes

    sociais, em subjetividade e, para tanto, a Histria precisou buscar aproximaes com a

    Antropologia, a Psicanlise e a Literatura. Alm disso, na medida em que o discurso

    passou a ser dotado de positividade, os historiadores tambm perceberam que era inevitvel

    interrogar o prprio discurso e dimensionar suas formas narrativas e interpretativas.

    MELODIA E SINTONIA EM LUPICNIO RODRIGUES: O Feminino, O Masculino eSuas Relaes. RJ:Bertrand Brasil, 1996.

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    Em relao aos estudos feministas, e a despeito das inmeras polmicas em curso,

    vale notar que a categoria do gnero abre, ainda, a possibilidade da constituio dos

    estudos sobre os homens, num campo terico e temtico bastante renovado e

    radicalmente redimensionado. Aps a revoluo feminista e a conquista da visibilidade

    feminina, aps a constituio da rea de pesquisa e estudos feministas, consagrada

    academicamente em todo o mundo, os homens so chamados a entrar, desta vez, em um

    novo solo epistmico. Eassim que emergem os estudos histricos, antropolgicos,

    sociolgicos - interdisciplinares - sobre a masculinidade, com enorme aceitao. Cada vez

    mais, portanto, crescem os estudos sobre as relaes de gnero, sobre as mulheres, em

    particular, ao mesmo tempo em que se constitui uma nova rea de estudos sobre os

    homens, no mais percebidos enquanto sujeitos universais.

    Sem dvida alguma, os resultados das inmeras perspectivas abertas tm sido dos

    mais criativos e instigantes. O olhar feminista permite reler a histria da Colonizao no

    Brasil, no sculo 16, a exemplo do que realiza a historiadora Tnia Navarro Swain,

    desconstruindo as imagens e representaes construdas pelos viajantes sobre as formas de

    organizao dos indgenas, sobre a sexualidade das mulheres, supostamente fogosas e

    promscuas, instituindo sua amoralidade. Num excelente trabalho genealgico, a

    historiadora revela como os documentos foram apropriados e re-interpretados pela

    historiografia masculina, atravs de conceitos extremamente misginos, cristalizando-seimagens profundamente negativas a respeito dos primeiros habitantes da terra,

    considerados para sempre incivilizados e incapazes de cidadania.

    J Maria Izilda Matos e Fernando A. Faria, estudando as composies musicais de

    Lupicnio Rodrigues, a partir da categoria do gnero, descortinam as formas de construo

    cultural das referncias identitrias da feminilidade e da masculinidade, nas dcadas de

    quarenta e cinquenta, dominantes at recentemente. A partir da anlise das letras de

    msicas produzidas pelo famoso compositor gacho, podem visualizar no apenas as

    experincias femininas, mas seu universo de relaes com o mundo masculino, numa

    proposta bastante enriquecedora e inovadora.

    Finalizando...

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    As possibilidades abertas para os estudos histricos pelas teorias feministas so

    inmeras e profundamente instigantes: da descontruo dos temas e interpretaes

    masculinos s novas propostas de se falarfemininamente das experincias do cotidiano,

    da micro-histria, dos detalhes, do mundo privado, rompendo com as antigas oposies

    binrias e de dentro, buscando respaldo na Antropologia e na Psicanlise, incorporando a

    dimenso subjetiva do narrador.

    Na historiografia feminista, vale notar, a teoria segue a experincia: esta no

    buscada para comprovar aquela, aprioristicamente proposta. Opera-se uma des-

    hierarquizao dos acontecimentos: todos se tornam passveis de serem historicizados, e

    no apenas as aes de determinados sujeitos sociais, sexuais e tnicos das elites

    econmicas e polticas, ou de outros setores sociais, como o proletariado-masculino-

    branco, tido como sujeito privilegiado por longo tempo, na produo acadmica. Alis, as

    prticas passam a ser privilegiadas em relao aos sujeitos sociais, num movimento que me

    parece bastante democratizador. Assim, e como diria Paul Veyne, o que deve ser

    privilegiado pelo historiador passa a ser dado pela temtica que ele recorta e constri, e

    no por um consenso terico exterior problemtica, como acontecia antes quando se

    trabalhava com o conceito de modo de produo, por exemplo, ou ainda, quando a

    preocupao maior com o passado advinha de suas possibilidades em dar respostas busca

    da Revoluo. A realidade j no cede teoria.Enfim, parece que j no h mais dvidas de que as mulheres sabem inovar na

    reorganizao dos espaos fsicos, sociais, culturais e aqui, pode-se complementar, nos

    intelectuais e cientficos. E o que me parece mais importante, sabem inovar libertariamente,

    abrindo o campo das possibilidades interpretativas, propondo mltiplos temas de

    investigao, formulando novas problematizaes, incorporando inmeros sujeitos sociais,

    construindo novas formas de pensar e viver.