por uma epistemologia feminista negra e decolonial: … · pensar a luta das mulheres negras é...

5
POR UMA EPISTEMOLOGIA FEMINISTA NEGRA E DECOLONIAL: (re)discutindo e (re)afirmando o conceito de interseccionalidade Fernanda da Silva Lima (PPGD/UNESC) Email: [email protected] Resumo Pensar a luta das mulheres negras é pensá-la a partir da interseccionalidade. Por isto, este artigo traz como problemática verificar de que forma a interseccionalidade pode contribuir para a construção e consolidação do pensamento feminista negro no Brasil? Tem como objetivo geral estudar a interseccionalidade enquanto categoria teórica que explica as múltiplas subordinações impostas às mulheres negras em razão da manutenção do padrão colonial de poder e de gênero que constantemente invisibiliza ou não reconhece as demandas das mulheres negras. Para atender o objetivo proposto utilizou-se, como método de abordagem, o dedutivo. Como método de procedimento foi utilizado o método monográfico e como técnica de pesquisa aplicou-se a bibliográfica. Palavras-chave: Decolonialidade; Feminismo negro; Interseccionalidade;. Introdução Contar a trajetória de luta das mulheres negras não é tarefa fácil. Por muito tempo elas passaram invisíveis tanto aos movimentos sociais negros – que privilegiaram os homens negros no debate político –, como aos movimentos feministas mais tradicionais e até mesmo críticos que centravam sua atenção exclusiva na luta de mulheres brancas burguesas num primeiro momento, e posteriormente para incluir a classe como fator de subordinação, ignorando as demandas por raça. O fato é que as mulheres negras, mesmo presentes em ambos os movimentos, não possuíam força política capaz de serem ouvidas ou levadas a sério. A construção de um pensamento feminista negro ou do feminismo negro tem, portanto, origem na luta das mulheres negras por representatividade e na busca por serem reconhecidas como sujeito político.

Upload: others

Post on 23-Feb-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: POR UMA EPISTEMOLOGIA FEMINISTA NEGRA E DECOLONIAL: … · Pensar a luta das mulheres negras é pensá-la a partir da interseccionalidade. Por ... COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo

POR UMA EPISTEMOLOGIA FEMINISTA NEGRA E DECOLONIAL: (re)discutindo e (re)afirmando o conceito de interseccionalidade

Fernanda da Silva Lima (PPGD/UNESC)

Email: [email protected] Resumo Pensar a luta das mulheres negras é pensá-la a partir da interseccionalidade. Por isto, este artigo traz como problemática verificar de que forma a interseccionalidade pode contribuir para a construção e consolidação do pensamento feminista negro no Brasil? Tem como objetivo geral estudar a interseccionalidade enquanto categoria teórica que explica as múltiplas subordinações impostas às mulheres negras em razão da manutenção do padrão colonial de poder e de gênero que constantemente invisibiliza ou não reconhece as demandas das mulheres negras. Para atender o objetivo proposto utilizou-se, como método de abordagem, o dedutivo. Como método de procedimento foi utilizado o método monográfico e como técnica de pesquisa aplicou-se a bibliográfica. Palavras-chave: Decolonialidade; Feminismo negro; Interseccionalidade;. Introdução

Contar a trajetória de luta das mulheres negras não é tarefa fácil. Por muito

tempo elas passaram invisíveis tanto aos movimentos sociais negros – que

privilegiaram os homens negros no debate político –, como aos movimentos

feministas mais tradicionais e até mesmo críticos que centravam sua atenção

exclusiva na luta de mulheres brancas burguesas num primeiro momento, e

posteriormente para incluir a classe como fator de subordinação, ignorando as

demandas por raça.

O fato é que as mulheres negras, mesmo presentes em ambos os

movimentos, não possuíam força política capaz de serem ouvidas ou levadas a

sério. A construção de um pensamento feminista negro ou do feminismo negro tem,

portanto, origem na luta das mulheres negras por representatividade e na busca por

serem reconhecidas como sujeito político.

Page 2: POR UMA EPISTEMOLOGIA FEMINISTA NEGRA E DECOLONIAL: … · Pensar a luta das mulheres negras é pensá-la a partir da interseccionalidade. Por ... COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo

É nesta perspectiva de ser um pensamento crítico construído na luta que o

feminismo negro se apresenta potente nos estudos decoloniais e na perspectiva do

que Lugones (2008) vai chamar de ‘sistema moderno-colonial de gênero’, permeado

pela colonialidade do poder que violentamente inferiorizam as mulheres colonizadas.

Vai compreender também que a raça é uma categoria estruturante, tanto quando

gênero, neste sistema colonial de poder e é isto que vai explicar a subordinação das

mulheres de cor – num sentido mais amplo, incluindo as mulheres negras.

Assim, a categoria da interseccionalidade é definida conceitualmente por

Kimberlé Crenshaw (2002) como “formas de capturar as consequências da interação

entre duas ou mais formas de subordinação: sexismo, racismo, patriarcalismo.” Logo

a interseccionalidade “[...] visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à

inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado.”

(AKOTIRENE, 2018, p. 14) A interseccionalidade é sobretudo, uma terminilogia

própria do pensamento feminista negro, que embora não seja impassível a críticas,

é um conceito que precisa ser melhor demarcado, definido e reafirmado.

Pensar a luta das mulheres negras é pensá-la a partir da interseccionalidade.

Por isto, este artigo traz como problemática verificar de que forma a

interseccionalidade pode contribuir para a construção e consolidação do

pensamento feminista negro no Brasil? Tem como objetivo geral estudar a

interseccionalidade enquanto categoria teórica que explica as múltiplas

subordinações impostas às mulheres negras em razão da manutenção do padrão

colonial de poder e de gênero que constantemente invisibiliza ou não reconhece as

demandas das mulheres negras. Para atender o objetivo proposto utilizou-se, como

método de abordagem, o dedutivo. Como método de procedimento foi utilizado o

método monográfico e como técnica de pesquisa aplicou-se a bibliográfica.

Decolonialidade, feminismo negro e interseccionalidade

Page 3: POR UMA EPISTEMOLOGIA FEMINISTA NEGRA E DECOLONIAL: … · Pensar a luta das mulheres negras é pensá-la a partir da interseccionalidade. Por ... COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo

Patricia Hills Collins (1986/2016) ao discutir a potência do pensamento

feminista negro afro-americano destaca que as mulheres negras se constituíram em

diferentes épocas e espaços dentro de uma tradição oral como “outsider within”. E

desta forma, construíram e constroem epistemologias de enfrentamento a um

pensamento único e universal, machista, sexista, racista, cristão, heteronormativo,

branco e violento.

Assim, reconfiguram-se como intelectuais que atuam e dizem o que há muito

fora silenciado e desprezado por uma tinta branca que ainda as invisibilizam.

Assumindo-se como “forasteiras de dentro” criam pontos de vistas de e para

mulheres negras ou ainda um ponto de vista com certos elementos que serão

partilhados por mulheres negras como grupo de diferentes formas, observações e

interpretações que traduzem a condição feminina afro-americana e brasileira

também, porque irmandadas pela colonialidade.

Quer-se com este estudo, construir saberes outros, compreendendo as

mulheres negras como outisider within (COLLINS, 1986/2016) E, sobretudo dar

concretude e visibilidade às mulheres negras, suas lutas, reivindicações e

enfrentamentos. Permitindo que as feridas coloniais que ainda não cicatrizaram

sejam expostas, quando se reconhecem como sujeitos atravessadas pela

colonialidade de poder e saber e o lugar que ocupam nesta máquina de produzir

diferenças que se mantém até hoje ancorada na noção de raça. (QUIJANO, 2009;

MIGNOLO; GÓMEZ 2012)

É importante pensar em novas estratégias de luta e saberes que tenham

como referência a descolonização. “A descolonização se apresenta como estratégia

que se impõe não somente como transformação, mas compreende, igualmente,

“construção e criação”. (WOLKMER, 2017 p. 20)

É também por esta razão que a tradição histórica linear dos movimentos

feministas tradicionais de primeira e segunda onda, marcadamente representativos

das demandas das mulheres brancas e burguesas, é insuficiente, pois universalizou

Page 4: POR UMA EPISTEMOLOGIA FEMINISTA NEGRA E DECOLONIAL: … · Pensar a luta das mulheres negras é pensá-la a partir da interseccionalidade. Por ... COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo

a categoria ‘mulher’. Ou seja, a categoria “mulher”, que constituía uma identidade

diferenciada da de “homem”, não era suficiente para explicá-las. (PEDRO, 2005, p.

82).

Este intenso debate demonstrou que não havia a “mulher” de forma universal,

genérica e abstrata, mas sim “mulheres” diferenciadas por diversos marcadores

como raça, condição sexual, classe, idade e que estes diversos marcadores podem

conjuntamente gerar as mais diversas formas de opressão. É a partir deste

reconhecimento, de que a categoria “mulheres” passa a ser compreendida para

demonstrar as diferenças existentes entre as próprias mulheres, que narrar

linearmente a trajetória do feminismo a partir de ondas teóricas é contestada por

feministas negras e brancas. (RIBEIRO, 2017).

No mesmo sentido, Espinosa-Miñoso (2014, p. 184) reafirma a necessidade

de pensar um feminismo decolonial. Para a autora El feminismo descolonial elabora una genealogía del pensamiento producito desde los márgenes por feministas, mujeres, lesbianas y gente racializada en general; y dialoga con los conocimientos generados por intelectuales y activistas comprometidos con desmantelar la matriz de opresión múltiple asumiendo un punto de vista no eurocentrado. (ESPINOSA-MIÑOSO, 2014, p. 184)

Considerações finais

Logo, não mais é possível pensar a aplicação universal dos direitos humanos

sem a devida análise sobre os marcadores de gênero e raça que são estruturantes

na nossa sociedade e utilizados para gerar opressões e discriminações. Esta é

também uma das finalidades deste projeto: praticar a escuta dos sujeitos

subalternos, neste caso as mulheres negras que são atingidas, pelo menos, pelas

opressões do racismo e do sexismo.

Pois, compreendemos com Gómez e Mignolo (2012, p.13) que a “[...] La

decolonialidad comienza por la liberación de lós sujetos reprimidos y marginalizados

por el racismo y el patriarcado [...]” atravessadas por violências múltiplas. E pensar

Page 5: POR UMA EPISTEMOLOGIA FEMINISTA NEGRA E DECOLONIAL: … · Pensar a luta das mulheres negras é pensá-la a partir da interseccionalidade. Por ... COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo

em epistemologias outras na perspectiva das mulheres negras. E, é sobretudo

romper com um pensamento único. Referências AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade. Belo Horizonte: Letramento, Justificando, 2018. Coleção Feminismos Plurais. COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado.Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00099.pdf acessado em 20 de jun. 2018.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas. Florianópolis, ano 10, n. 1, p. 171-188, jan./jun. 2002. ESPINOSA-MINÕSO, Yuderkys. Una crítica descolonial a la epistemologia feminista crítica. El cotidiano 184. Marzo-abril, 2014. LUGONES, María. Colonialidad y Géreno. Tabula Rasa. Bogotá – Colômbia, nº 9: p. 73-101, Julio-diciembre, 2008. QUIJANO, Anibal. Colonialidade de poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura Souza; MENEZES, Maria Paula (orgs) Epistemologias do sul. Coimbra: Gráfica Coimbra, 2009. p.73-118 PEDRO, Joana. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. HISTÓRIA, São Paulo, v.24, N.1, P.77-98, 2005. PEDRO PABLO, Gómez Moreno; MIGNOLO, Walter. Estéticas decoloniais. Bogotá: Universidad Distrital Francisco José Caldas,2012. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017. Coleção Feminismos Plurais. WOLKMER, Antônio Carlos. Para uma sociologia jurídica no Brasil: desde uma persspectiva crítica e descolonial. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 4, n. 3, set./dez. 2017.