panorama dos estudos sobre interseccionalidade no …€¦ · importante destacar que este trabalho...

24
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO BRASIL (2008 2018): notas gerais e especificidades dos objetos empíricos comunicacionais 1 AN OVERVIEW OF THE STUDIES ABOUT INTERSECTIONALITY IN BRAZIL (2008 2018): general notes and specificities of the empirical communication objects Guilherme Libardi 2 Resumo: Este estudo tem como objetivo traçar um panorama dos estudos sobre interseccionalidade no Brasil publicados no Banco de Teses e Dissertações da CAPES entre 2008 e 2018. Foi realizada uma pesquisa bibliográfica através dos termos "interseccionalidade" e "interseccional", convencionando-se que estes termos aparecessem no título e/ou nas palavras-chaves. Foram encontrados 26 estudos. A maioria é produzida no Nordeste e os marcadores sociais mais citados e articulados entre si são gênero e raça. Quatro estudos compõem o corpus dedicado a objetos comunicacionais, sendo que apenas um deles foi produzido em um PPG do campo da comunicação. Apesar do pioneirismo ao enfrentar a questão, a maioria acaba vinculando-se de modo superficial à proposta da interseccionalidade, não estabelecendo uma relação articuladora do conceito com seus objetos empíricos. É sugerido que a perspectiva seja empregada de um ponto de vista epistemológico. Palavras-Chave: Estado da arte. Interseccionalidade. Estudos de comunicação. Abstract: This study has as main purpose to trace an overview of the studies about intersectionality in Brazil published at the CAPES' Thesis and Dissertation database between 2008 and 2018. A bibliographic research with the terms "intersectionality" and "intersectional" was made, agreeing that these terms had to appear in the title and/or in the keywords. 26 studies were found. The majority is produced in the Northeast and the social markers most cited and articulated among each other were gender and race. Four studies compose the corpus dedicated to communication objects, and only one was produced in a postgraduate degree of the communication field. Besides its pioneerism by addressing the issue, the majority of these studies end up positioning to the intersectional proposal in a superficial way, not establishing an articulator relation of the concept with its empirical objects. It is suggested that the perspective has to be used from an epistemological point of view. Keywords: State of the art. Intersectionality. Communication Studies. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Gêneros e Sexualidades do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2018. 2 Guilherme Libardi: Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação na UFRGS, Mestre pelo mesmo programa e Bacharel em Publicidade e Propaganda pela ESPM-Sul, [email protected].

Upload: others

Post on 31-Oct-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

1 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE

INTERSECCIONALIDADE NO BRASIL (2008 – 2018): notas gerais e especificidades dos objetos empíricos

comunicacionais 1 AN OVERVIEW OF THE STUDIES ABOUT

INTERSECTIONALITY IN BRAZIL (2008 – 2018): general notes and specificities of the empirical communication

objects Guilherme Libardi2

Resumo: Este estudo tem como objetivo traçar um panorama dos estudos sobre interseccionalidade

no Brasil publicados no Banco de Teses e Dissertações da CAPES entre 2008 e 2018. Foi realizada

uma pesquisa bibliográfica através dos termos "interseccionalidade" e "interseccional",

convencionando-se que estes termos aparecessem no título e/ou nas palavras-chaves. Foram

encontrados 26 estudos. A maioria é produzida no Nordeste e os marcadores sociais mais citados

e articulados entre si são gênero e raça. Quatro estudos compõem o corpus dedicado a objetos

comunicacionais, sendo que apenas um deles foi produzido em um PPG do campo da comunicação.

Apesar do pioneirismo ao enfrentar a questão, a maioria acaba vinculando-se de modo superficial

à proposta da interseccionalidade, não estabelecendo uma relação articuladora do conceito com

seus objetos empíricos. É sugerido que a perspectiva seja empregada de um ponto de vista

epistemológico.

Palavras-Chave: Estado da arte. Interseccionalidade. Estudos de comunicação.

Abstract: This study has as main purpose to trace an overview of the studies about intersectionality

in Brazil published at the CAPES' Thesis and Dissertation database between 2008 and 2018. A

bibliographic research with the terms "intersectionality" and "intersectional" was made, agreeing

that these terms had to appear in the title and/or in the keywords. 26 studies were found. The

majority is produced in the Northeast and the social markers most cited and articulated among

each other were gender and race. Four studies compose the corpus dedicated to communication

objects, and only one was produced in a postgraduate degree of the communication field. Besides

its pioneerism by addressing the issue, the majority of these studies end up positioning to the

intersectional proposal in a superficial way, not establishing an articulator relation of the concept

with its empirical objects. It is suggested that the perspective has to be used from an epistemological

point of view.

Keywords: State of the art. Intersectionality. Communication Studies.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Gêneros e Sexualidades do XXVIII Encontro Anual

da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2018. 2 Guilherme Libardi: Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação na UFRGS,

Mestre pelo mesmo programa e Bacharel em Publicidade e Propaganda pela ESPM-Sul, [email protected].

Page 2: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

2 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

1. Introdução: a interseccionalidade entra em cena

A atenção ao estado do discurso científico3 sobre determinado tema é relevante para que

se possa empreender uma crítica epistemológica, reconstituindo a historicidade do objeto. É

uma forma de tatear como vem sendo produzido um saber sobre determinado assunto. Neste

texto, o objetivo é traçar um panorama do estado da arte dos estudos que recorrem à

interseccionalidade enquanto objeto teórico, dando maior enfoque aos estudos interessados em

questões comunicacionais4. Aqui, filio-me à perspectiva de Lopes (2014) ao compreender

“objeto teórico” como reflexo do quadro de conceitos que advêm do problema de pesquisa,

agindo de modo a delimitá-lo teoricamente.

Um estudo desta natureza diz respeito a um movimento de parar, olhar para trás e ir ao

encontro das discussões inerentes ao que está sendo estudado. De acordo com Luna (1999), o

objetivo de um estado da arte pode ser resumido em identificar “o que já se sabe, quais as

principais lacunas, onde se encontram os principais entraves teóricos e/ou metodológicos”

(LUNA, 1999, p.82). Este movimento, imprescindível para o avanço da ciência, é reconhecido

como escasso no campo das Ciências Sociais e Humanas e, principalmente, ao campo da

Comunicação, “onde inexiste a reflexão desse campo de conhecimento sobre si mesmo”

(LOPES, 2014, p.91).

Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica

interessada em avaliar a qualidade epistemológica das pesquisas aqui apresentadas5. A proposta

é desenhar um mapa, uma cartografia (JACKS, 2018) sobre os usos do conceito de

interseccionalidade, conferindo um olhar panorâmico e, após, um enfoque específico ao seu

uso nos estudos que articulam o seu conceito a um objeto empírico comunicacional.

A definição de “interseccionalidade” encontra eco em uma ampla gama de perspectivas

epistemológicas e em diferentes abordagens do pensamento feminista estadunidense e europeu.

Primeiramente, recorro à sua conceituação através da “fundadora” do termo, a estadunidense

Kimberlé Crenshaw. Em suas palavras, “[a] interseccionalidade é uma conceituação do

problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois

3 Filio-me à perspectiva de Bourdieu, compreendendo discurso científico como aquilo que se produz como saber

legítimo em um determinado campo científico, “[...] um lugar histórico onde se produzem verdades trans-

históricas” (BOURDIEU, 2004, p. 97). 4 Para definir “comunicação”, filio-me à perspectiva da Teoria da Mídia em Johnson (2014, p. 44), compreendendo

comunicação “[...] como um tipo distintivo de atividade social que envolve a produção, a transmissão e a recepção

de formas simbólicas e implica a utilização de recursos de vários tipos”. Esta noção mais ampla pode ser

complementada por Morley (2005), que enfatiza a presença de algum tipo de canal técnico midiático. 5 Cenário “ideal”, conforme defendido por Lopes (2014).

Page 3: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

3 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

ou mais eixos da subordinação” (2002, p. 177). A autora é uma intelectual da área do Direito e

está pensando este conceito sob o prisma dos Direitos Humanos, dando destaque às injustiças

que mulheres negras sofrem pelo sistema jurídico. Por isso, Crenshaw está mais interessada

em pensar a interseccionalidade como uma sobreposição de eixos de opressão.

Gostaria de preservar a ideia dos “eixos”, porém identifica-los como “marcadores sociais

da diferença”. Também, prefiro pensar que para além de “subordinação”, possa haver

“articulação”. Explico: a perspectiva de Crenshaw, como dito anteriormente, está desenvolvida

para pensar um problema de injustiças cometidas no momento de julgamento em cortes dos

Estados Unidos. Acredito que, para uma maior capilaridade do seu conceito, podemos nos

associar à ideia de “marcadores sociais da diferença” pois é um termo mais amplo para discutir

“[...] como diferenças são socialmente instituídas e podem conter implicações em termos de

hierarquia [...].” (ALMEIDA et al., 2018, p. 19). Estes marcadores são classificações sociais

de cor, raça, etnia, gênero, sexualidade, território, entre outros; e agem produzindo diferença6.

Esta diferença, entretanto, também pode servir como veículo de agência, não se esgotando,

necessariamente, somente na ideia de subordinação; como se um marcador sempre fosse pesar

mais ou esmagar um outro. Por isso me vinculo à ideia de “articulação” a partir da autora

indiana Avtar Brah (2006), que desenvolve o seu pensamento sobre interseccionalidade desde

os Estudos Culturais, dialogando com as ideias de Stuart Hall7. Para a autora, é pensando os

marcadores como relacionados entre si (e não exclusivamente subordinados uns aos outros),

que “[...] podemos focalizar um dado contexto e diferenciar entre a demarcação de uma

categoria como objeto de discurso social, como categoria analítica e como tema de mobilização

política” (BRAH, 2006, p. 353). Portanto, é apoiado nestes dois conceitos: “marcadores

sociais” e “articulação” que defino brevemente a perspectiva da interseccionalidade.

A discussão sobre esse conceito merece uma atenção privilegiada por parte do campo da

Comunicação. Desde a consolidação dos Estudos Culturais, compreendemos a íntima relação

entre processos de comunicação e a manutenção de diferentes posicionamentos ideológicos:

“Nas sociedades modernas, diferentes tipos de mídia são lugares especialmente importantes

6 No âmbito dos estudos sobre identidades a partir dos Estudos Culturais, entende-se que a diferença é elemento

constitutivo da identidade e está baseada na percepção sobre o outro. Sendo assim, ela é baseada na ideia de

exclusão (WOODWARD, 2000). Um exemplo da questão em jogo seria o seguinte raciocínio: se você é

homem, você não pode usar batom. A crítica reside no fato de que algumas diferenças são consideradas mais

importantes que outras. 7 Uma discussão mais detalhada sobre estes diferentes modos de tratar a “interseccionalidade” pode ser encontrada

em Piscitelli (2008).

Page 4: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

4 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

para a produção, reprodução e transformações de ideologias” (HALL, 2015, p. 105, tradução

nossa). Podemos falar de diversos tipos de ideologias que estruturam diferentes naturezas de

representações e de processos comunicacionais. Dentre elas, dou destaque àquelas baseadas

em concepções hegemônicas de gênero, sexualidade, classe, raça, geração, entre outros

marcadores.

Rádio, televisão, filme, música popular, Internet, redes sociais e outros formatos e

produtos da cultura midiática proporcionam materiais dos quais nós forjamos nossas

próprias identidades, incluindo nosso senso de individualidade; nossa noção de o que

significa ser homem ou mulher; nossa concepção de classe, etnicidade, raça,

nacionalidade, sexualidade; e de divisão do mundo em categorias de “nós” e “eles”

(KELLNER, 2015, p. 7, tradução nossa).

Por sua vez, a interseccionalidade pode servir como uma ferramenta analítica útil para o

desvelamento e análise dos códigos que estabilizam as noções de gênero, sexualidade, classe e

raça na mídia; bem como para explicar os diferentes sentidos produzidos pelas audiências no

processo de recepção8. Articulada aos estudos de mídia, uma lente interseccional tem como

potencialidade a descrição e análise complexa do objeto empírico a partir do quadro dos

marcadores sociais da diferença. Concordando com Gill (2007, p. 28, tradução nossa), a

interseccionalidade permite “[...] pensar sobre o entrelaçamento de discursos de raça, gênero,

sexualidade, classe e por aí vai, rastreando diferentes padrões de desejo, desprezo, medo e

exotização” no discurso da e sobre a mídia. A partir desta contextualização introdutória,

delineio os percursos metodológicos envolvidos para a coleta e o tratamento dos dados.

2. Procedimentos metodológicos: percursos para um estado da arte

Na constituição do estado da arte, a técnica adotada foi a pesquisa bibliográfica. Stumpf

(2008) fornece contribuições pertinentes ao explicar os passos desta técnica de pesquisa que se

apresenta como preferencial para a constituição de um estado da arte. São eles: a) identificação

do tema e assuntos, etapa na qual o pesquisador define, com precisão, o tema a ser estudado,

partindo para o desenvolvimento de um rol de palavras-chaves e subtemas que deverão ser

buscados; b) seleção das fontes representativas para fornecer o suporte à pesquisa pretendida

(bibliografias especializadas, portais, catálogo de editoras, etc.); c) localização e obtenção do

8 Nas duas últimas obras da série Meios e Audiências, que reúnem o estado da arte dos estudos de recepção no

Brasil entre 2000 e 2015, a carência da perspectiva que articule o gênero a demais marcadores já vem sendo

apontada (JOHN; COSTA, 2014; TOMAZETTI; CORUJA, 2017).

Page 5: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

5 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

material e d) leitura e transcrição dos dados, realizando fichamentos e registros do conteúdo

relevante dos trabalhos obtidos.

O tema, como já fora exposto, é a “interseccionalidade” enquanto objeto teórico. A busca

pelos trabalhos foi feita no Banco de Teses e Dissertações da CAPES no dia 10 de outubro de

2018. O intervalo de tempo designado para a coleta foi 10 anos, de 2008 a 2018 e abrigando

todos os PPGs do Brasil. As palavras-chaves buscadas foram “interseccionalidade” e

“interseccional”, sendo convencionado que este termo aparecesse no título e/ou nas palavras-

chaves, denotando, assim, a importância e o “peso” do termo para o trabalho. Portanto, os

estudos dos quais trato incluem o conceito de “interseccionalidade” como aspecto teórico

(supostamente) central. A qualidade do emprego do conceito de interseccionalidade é

verificada somente nos trabalhos dedicados a objetos comunicacionais. A referência para

realizar esta avaliação é a perspectiva de Lopes (2014) sobre os níveis da pesquisa. Para ser

considerado um estudo interseccional, é importante que a sua teoria balize o trabalho

epistemologicamente, articulando a metodologia e perpassando a construção do objeto de

estudo. Delineados os preâmbulos introdutórios e a metodologia empregada, apresento as

descrições e análises dos resultados do estudo.

3. Apresentação do corpus: contextos geográfico, institucional e teórico

Ao todo, foram selecionados 269 trabalhos (19 dissertações e 7 teses), defendidos entre

2008 e 2018. Abaixo, é possível visualizar a constituição do corpus, organizado da publicação

mais recente até a mais antiga.

TABELA 1

Corpus total

Título Autoria Universidade PPG Ano

Ser mulher: cotidianos, representações e

interseccionalidades da mulher popular

(Porto Alegre 1889 – 1900)

Almaleh,

Priscilla Unisinos

PPG em

História 2018

9 Originariamente, 28 trabalhos haviam sido encontrados. No entanto, dois foram descartados. A tese de Costa

(2016), do PPG em Direito Processual Civil/PUC-SP trata da articulação entre direito processual, economia e

psicologia. Ou seja, a noção de “interseccional” reside no diálogo entre três campos de conhecimento, e não na

articulação mútua de marcadores sociais produtores de diferença, que agem sobre o corpo e a experiência vivida.

A tese de Cúnico (2018), do PPG em Psicologia/PUCRS, também foi desconsiderada porque encontra-se sob

sigilo. Apesar do persistente contato com a biblioteca da universidade e com a própria autora, não tive acesso

cedido a nenhuma parte da pesquisa.

Page 6: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

6 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

Think Olga: interseccionalidade,

comunicação midiática no facebook e a

apropriação da identificação de gênero

no sujeito do feminismo

Bezerra,

Mariana

Lemos de

Morais

UFRN

PPG em

Estudos de

Mídia

2018

Donas de rua, vidas lixadas:

interseccionalidades e marcadores sociais

nas experiências de travestis com o crime

e o castigo

Ferreira,

Guilherme

Gomes

PUCRS PPG em

Serviço Social 2018

Transição capilar: cabelos, consumo e

interseccionalidade no ciberespaço

Matos, Lídia

de Oliveira UFS

PPG em

Antropologia 2017

Da esterilização ao Zika:

interseccionalidade e transnacionalismo

nas políticas de saúde para as mulheres

Carvalho,

Layla

Daniele

Pedreira de

USP PPG em

Ciência Política 2017

Trajetórias educacionais de mulheres:

uma leitura interseccional da deficiência

Farias,

Adenize

Queiroz de

UFPB PPG em

Educação 2017

Escrevivências sobre mulheres negras

acompanhadas pela Proteção Social

Básica : uma perspectiva interseccional

Soares,

Lissandra

Vieira

UFRGS

PPG em

Psicologia

Social e

Institucional

2017

A defesa transnacional dos direitos

humanos das mulheres latinoamericanas

por redes feministas regionais: um estudo

à luz da interseccionalidade

Arcoverde,

Mariana

Torreão

Brito

UFPE

PPG em

Direitos

Humanos

2017

Mulheres da paz : histórias de vida,

interseccionalidades e processos de

subjetivação

D'Ávila,

Michele

Nunes

UFRGS

PPG em

Psicologia

Social e

Institucional

2016

As interseccionalidades entre gênero,

raça/etnia, classe e geração nos livros

didáticos de sociologia

Silva, Samira

do Prado UEL

PPG em

Ciências

Sociais

2016

Raça/cor da pele, gênero e Transtornos

Mentais Comuns na perspectiva da

interseccionalidade

Smolen,

Jenny Rose UEFS

PPG em Saúde

Coletiva 2016

Juventude, sexualidade e relações

afetivo-sexuais: uma análise

interseccional de jovens rurais e

urbanos/as

Nascimento-

Gomes,

Fernanda

Sardelich

UFPE PPG em

Psicologia 2016

Juventude e projeto de vida: um estudo

interseccional dos modos de subjetivação

de universitários/as de origem popular

Gomes,

Vanessa

Benevides

Martins

UFPE PPG em

Psicologia 2016

Luz, câmera, limpando:

interseccionalidades e representações

sociais em Domésticas, o filme (2001) e

Doméstica (2012)

Bernardino,

Jéssyca

Lorena Alves

UnB PPG em

História 2016

“Tá dentro, não tá fora”: subjetividade,

interseccionalidade e experiências de

adoecimento de mulheres negras com

doença falciforme

Xavier,

Eliana Costa PUCRS

PPG em

Psicologia 2015

“Quando não tem bebida, morga logo!”:

um estudo interseccional sobre juventude

e consumo de álcool

Souza,

Leyllyanne

Bezerra de

UFPE PPG em

Psicologia 2015

Page 7: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

7 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

Rés negras, judiciário branco: uma

análise da interseccionalidade de gênero,

raça e classe na produção da punição em

uma prisão paulistana

Alves,

Enedina do

Amparo

PUC-SP

PPG em

Ciências

Sociais

2015

A vivência de mulheres em cargos em

cargos executivos em grandes empresas:

uma análise interseccional das

desigualdades de gênero e de Raça

Pereira,

Edilene

Machado

UNESP

PPG em

Ciências

Sociais

2015

A interseccionalidade de gênero, raça e

classe no Programa Ciência sem

Fronteiras: um estudo sobre estudantes

brasileiros com destino aos EUA

Borges,

Rovênia

Amorim

UnB PPG em

Educação 2015

Resistindo à tempestade: a

interseccionalidade de opressões nas

obras de Carolina Maria e Maya Angelou

Santos,

Marcela

Ernesto dos

UNESP PPG em Letras 2014

Os significados do uso de álcool entre

os/as jovens quilombolas de

Garanhuns/PE: uma perspectiva

interseccional

Silva,

Roseane

Amorim da

UFPE PPG em

Psicologia 2014

Interseccionalidade gênero/raça e etnia e

a Lei Maria da Penha: discursos jurídicos

brasileiros e espanhóis e a produção de

subjetividade

Silveira,

Raquel da

Silva

UFRGS

PPG em

Psicologia

Social e

Institucional

2013

Interseccionalidade entre raça e surdez: a

situação de surdos (as) negros (as) em

São Luís – MA

Buzar,

Francisco

José Roma

UnB PPG em

Educação 2012

A construção social da “saúde

reprodutiva” no Brasil. Um olhar na

perspectiva da interseccionalidade de

gênero e raça

Duarte,

Heloísa

Helena da

Silva

Unisinos PPG em Saúde

Coletiva 2012

Mulheres negras soropositivas e as

interseccionalidades entre gênero, classe

e raça/etnia

Toledo,

Angelita

Alves de

UFSC PPG em

Serviço Social 2012

Na trama das interseccionalidades:

mulheres chefes de família em Salvador

Macêdo,

Márcia dos

Santos

UFBA

PPG em

Ciências

Sociais

2008

FONTE – O AUTOR

A partir desta lista de trabalhos, é possível extrair uma variada gama de considerações.

Primeiramente, dou atenção à evolução do número de pesquisas que tratam sobre o tema da

interseccionalidade no intervalo considerado entre 2008 e 2018:

Page 8: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

8 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

GRÁFICO 1

Evolução do número de teses e dissertações

FONTE – O AUTOR

No interstício de três anos, compreendidos entre 2015 e 2018, houve um crescimento

significativo no número de pesquisas sobre o tema. O período acumula 19 estudos, o que

equivale a 73% do total produzido nos dez anos. Este fator sinaliza para uma curva de interesse

sobre o assunto que, apesar da queda em 2018, aparenta ser crescente. Esta informação

corrobora para a necessidade de começarmos a verificar quais os principais aspectos que estas

pesquisas estão levando em conta ao tratar sobre interseccionalidade.

Nas próximas seções, serão apresentadas as principais características que ajudam a

fornecer um panorama geral destes estudos. Divido esta descrição em três dimensões: contexto

geográfico, que mostra as regiões do país onde as produções estão aderindo à perspectiva em

questão; contexto institucional, que diz respeito às universidades e PPGs; e contexto teórico,

que descreve panoramicamente como a interseccionalidade vem sendo discutida em termos

teóricos.

3.1 Contexto geográfico e institucional

Além da questão temporal, também dou destaque ao contexto geográfico no qual estes

estudos estão inseridos. A maioria advém de teses e dissertações produzidas em PPGs do Rio

Grande do Sul, conforme mostra o gráfico a seguir:

1

3

12

5

65

3

2008 2010 2012 2014 2016 2018

Page 9: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

9 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

GRÁFICO 2

Distribuição geográfica de teses e dissertações

FONTE – O AUTOR

Embora o Rio Grande do Sul seja o Estado onde mais se publique teses e dissertações

com o termo interseccionalidade em seu título ou palavra-chave (7), é na região Nordeste onde

as discussões sobre o tema são mais presentes, somando dez estudos publicados. Este dado é

bastante positivo se levarmos em conta que o Nordeste é uma das regiões do Brasil com as

condições de desenvolvimento de pesquisas mais recentes. Lá, concentram-se somente 16%

dos PPGs do país, enquanto as regiões Sul e Sudeste, juntas, somam 72% dos cursos de pós-

graduação (CAPES, 2010). O contexto institucional no qual estas pesquisas são produzidas

pode ser verificado nos gráficos que ilustram as universidades em que são realizados os estudos

e em quais PPGs:

GRÁFICO 3

Distribuição institucional de teses e dissertações – Universidades

FONTE – O AUTOR

7

5

4

3

2

1 1 1 1 1

RS PE SP DF BA PB SC SE PA RN

5

3 3

2 2 2

1 1 1 1 1 1 1 1 1

Page 10: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

10 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

Apesar de Pernambuco não ser o Estado onde mais são publicados estudos sobre

interseccionalidade, a UFPE é a universidade que mais concentra pesquisas desta natureza. No

que tange ao Rio Grande do Sul, estado que mais publica acerca do assunto, as teses e

dissertações produzidas estão distribuídas entre três universidades: UFRGS (3), Unisinos (2) e

PUCRS (2). Neste gráfico, também cabe ressaltar a prevalência da produção científica sobre

interseccionalidade em universidades públicas: 12, enquanto há somente três em privadas. A

seguir, verificamos em quais PPGs os 26 estudos foram elaborados:

GRÁFICO 4

Distribuição institucional de teses e dissertações – PPGs

FONTE – O AUTOR

De forma geral, podemos afirmar que a área das Ciências Sociais e Humanas é

hegemônica no que diz respeito ao interesse em tratar sobre o objeto teórico em questão. A

Psicologia se destaca como campo em que mais são produzidos estudos sobre

interseccionalidade (8)10. Também chama atenção que duas pesquisas foram produzidas na área

da Saúde11, ou seja, fora das “humanidades”. A pluralidade de áreas em que a questão da

interseccionalidade encontra terreno revela a natureza versátil do conceito, bem como a

possibilidade que ele tem de navegar em diferentes disciplinas. Ainda que, como é visto mais

adiante, alguns destes estudos tratem de objetos comunicacionais, destaco a presença de

10 Considerando o PPG em Psicologia (5) e o PPG em Psicologia Social e Institucional (3). 11 Duarte (2012); Smolen, (2016).

1

1

1

1

1

2

2

2

3

3

4

5

PPG em Estudos de Mídia

PPG em Direitos Humanos

PPG em Antropologia

PPG em Letras

PPG em Ciência Política

PPG em História

PPG em Saúde Coletiva

PPG em Serviço Social

PPG em Educação

PPG em Psicologia Social e Institucional

PPG em Ciências Sociais

PPG em Psicologia

Page 11: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

11 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

somente um estudo produzido no campo da comunicação12, o que sinaliza a pouca relevância

destinada ao conceito pela área.

Delineados o contexto geográfico e institucional, cabe adentrar no contexto teórico,

verificando de que modo este conceito é apropriado nas teses e dissertações.

3.2 Contexto teórico

Como vimos na definição do termo, a ideia de interseccionalidade é forjada no

pensamento da intersecção entre marcadores sociais que produzem diferença. Por isso, além

de um panorama contextual, considero essencial para a reconstrução do discurso sobre

interseccionalidade, verificar quais os marcadores sociais são mais considerados para fins de

articulação:

GRÁFICO 5

Marcadores sociais mais citados

FONTE – O AUTOR

O gênero é o marcador social mais presente nas pesquisas que versam sobre

interseccionalidade. Do total de 26 trabalhos, ele está ausente em somente um estudo13.

12 Bezerra (2018). 13 Buzar (2012).

1

1

2

5

6

15

24

25

Religião

Sexualidade

Território

Condição de saúde

Geração

Classe

Raça, etnia ou cor da pele

Gênero

Page 12: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

12 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

Discussões sobre raça, etnia ou cor da pele14 só não aparecem em dois15. Portanto, a principal

leitura é a grande relevância dada a estes dois marcadores sociais. Tal fenômeno não surpreende

se levarmos em conta as origens do pensamento interseccional. O feminismo negro teve um

importante papel na sedimentação da interseccionalidade privilegiando as características de

gênero e raça para pensar a experiência da mulher negra. Antes que o termo fosse cunhado por

Crenshaw (2002), outras autoras feministas negras16 que ocupavam espaços na política e na

academia já estavam publicando sobre a importância de considerar gênero e raça em

articulação.

Como o objetivo do artigo é investigar os modos de apropriação da perspectiva da

interseccionalidade, cabe verificar, para além da quantificação acima, quais marcadores sociais

se articulam com quais nestes estudos. A tríade dos três marcadores mais citados (gênero,

raça/etnia/cor da pele e classe) interseccionam-se da seguinte forma:

14 O uso dos três termos aparece de modo difuso nos estudos do corpus. Alguns consideram somente a categoria

“raça” ou “etnia”; outros, as díades “raça/cor da pele” ou “raça/etnia”. Poucos se dedicam a estabelecer um critério

para o uso de um ou outro termo, ou um conjunto deles. Observo que não há consenso sobre um trato teórico e

operacionalização analítica dos conceitos. Uma das autoras que apresentou uma criteriosa argumentação histórica

e teórica do porquê do uso de raça junto à etnia (“raça/etnia”) foi Silveira (2013, p. 55), concluindo: “Assim sendo,

pode-se dizer que etnia tem mais a ver com a construção das identidades e raça com a instalação das relações de

dominação”. Em outra perspectiva, Smolen (2016) argumenta que o termo “cor da pele” junto à “raça” é

necessário pois a categorização racial ocorre com base na cor da pele. Concordo com Silveira (2013) quando

afirma que é de sumária importância não ignorar as diferenças conceituais entre os termos, inclusive por motivos

políticos. Entretanto, a decisão foi considerar os três termos agrupados no mesmo conjunto pois, de acordo com

seus respectivos usos nos estudos em questão, os percebemos como intimamente relacionados. 15 Souza (2015); Farias (2017). 16 Alguns nomes das pioneiras no cenário estadunidense: Audre Lorde (1934 – 1992), Angela Davis (1944 –) e

bell hooks (1952 –). No contexto brasileiro: Lélia Gonzalez (1935 – 1994) e Sueli Carneiro (1950 –).

Page 13: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

13 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

FIGURA 1

Representação quantitativa da intersecção entre os marcadores mais citados

FONTE – O AUTOR

A representação gráfica acima demonstra, em termos quantitativos, quantas vezes cada

marcador se articula aos demais, considerando os três mais citados. Podemos visualizar que

dos 25 trabalhos que tratam de gênero, 23 interseccionam-se com raça, etnia ou cor da pele e

15 com classe. Também é possível observar que todos os estudos que consideram classe como

um marcador o articulam a gênero e a raça, etnia ou cor da pele. Esta articulação majoritária

entre gênero e raça reflete o que foi mencionado anteriormente sobre a herança do feminismo

negro em considerar estes dois marcadores sociais como centrais em suas questões de

mobilização política e teórica. É importante mencionar que o marcador de classe é relevante

aos estudos interseccionais por funcionar como um pano de fundo histórico que contextualiza

os embates entre diferentes agentes no sistema capitalista. Como argumento da relevância da

categoria, cabe resgatar um trecho da obra de Angela Davis intitulada Mulheres, raça e classe,

quando ela descreve as relações institucionalizadas na época do sufrágio no início do século

XX:

[...] o inimigo real – o inimigo comum – era o patrão, o capitalista ou quem quer que

fosse responsável pelos salários miseráveis, pelas insuportáveis condições de trabalho

e pela discriminação racista e sexista no trabalho. [...] O sufrágio feminino poderia

servir como uma arma poderosa na luta de classes. [...] As mulheres da classe

trabalhadora reivindicavam o direito ao sufrágio como um braço para ajuda-las na

luta de classes em andamento (DAVIS, 2016, p. 148).

Page 14: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

14 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

Um maior interesse pela incorporação do marcador de classe poderia ser um potente

operador analítico para contextualizar o lugar dos sujeitos na lógica produtiva capitalista,

ajudando no desvelamento de desigualdades17. Cabe ainda verificar quais autoras e autores

mais foram apropriados para tratar do conceito de interseccionalidade:

GRÁFICO 6

Autoras mais citadas

FONTE – O AUTOR

Um fator interessante ao olhar para as três autoras mais citadas é as suas origens: Estados

Unidos, Índia e Brasil, respectivamente. Este fator indica que o conceito de interseccionalidade,

embora tenha sido cunhado por Crenshaw nos Estados Unidos, foi capaz de alçar voo para

vários lugares do globo, demarcando a sua internacionalização. Dou destaque à presença da

autora brasileira Adriana Piscitelli, que contribuiu imensamente ao pensamento interseccional

brasileiro através do seu texto Interseccionalidade, categorias de articulação e experiências

de migrantes brasileiras (PISCITELLI, 2008). É um texto muito utilizado por seu caráter

didático para apresentar as duas principais correntes de pesquisa na perspectiva da

interseccionalidade: o modelo mais sistêmico de Crenshaw e o construcionista de Brah.

17 No contexto dos estudos sobre recepção midiática, a classe é um marcador bastante presente nas teses e

dissertações. Contudo, seu uso acaba funcionando mais como um demarcador sociodemográfico do que como

uma categoria para analisar conflitos e contradições atravessadas pela questão de classe (JACKS; SIFUENTES;

LIBARDI, 2017).

2

2

2

2

2

2

2

2

3

3

3

10

10

18

Geise Pinto

Cristiano Rodrigues

Sueli Carneiro

Ann Phoenix

Cláudia Mayorga

Lélia Gonzalez

bell hooks

María Lugones

Heleieth Saffioti

Patrícia Hill Collins

Patrícia Mattos

Adriana Piscitelli

Avtar Brah

Kimberlé Crenshaw

Page 15: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

15 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

Este é o panorama geral dos estudos de interseccionalidade no Brasil entre 2008 e 2018.

No capítulo seguinte, é apresentado um debate específico sobre os trabalhos que se interessam

em articular este conceito para analisar um objeto empírico comunicacional.

4. Pesquisas sobre objetos comunicacionais: um encontro ainda tímido com a

interseccionalidade

Dos 26 trabalhos que compõem o corpus geral, somente quatro endereçam a discussão

sobre interseccionalidade para investigar um fenômeno comunicacional, todas dissertações.

Por se tratar de um corpus menor, exploro com mais detalhes os procedimentos e conclusões

de cada pesquisa18, dando maior enfoque aos usos do conceito de interseccionalidade. As

dissertações são:

TABELA 2

Parte do corpus com objetos comunicacionais

Título Autoria Universidade PPG Ano

Think Olga: interseccionalidade, comunicação

midiática no facebook e a apropriação da

identificação de gênero no sujeito do feminismo

Bezerra, Mariana

Lemos de Morais UFRN

PPG em

Estudos da

Mídia

2018

Transição capilar: cabelos, consumo e

interseccionalidade no ciberespaço

Matos, Lídia de

Oliveira UFS

PPG em

Antropologia 2017

Luz, câmera, limpando: interseccionalidades e

representações sociais em Domésticas, o filme

(2001) e Doméstica (2012)

Bernardino,

Jéssyca Lorena

Alves

UnB PPG em

História 2016

A construção social da “saúde reprodutiva” no

Brasil. Um olhar na perspectiva da

interseccionalidade de gênero e raça

Duarte, Heloísa

Helena da Silva Unisinos

PPG em Saúde

Coletiva 2012

FONTE – O AUTOR

O estudo de Bezerra (2018), intitulado Think Olga: interseccionalidade, comunicação

midiática no facebook e a apropriação da identificação de gênero no sujeito do feminismo, é

o único que se vincula ao paradigma dos Estudos Culturais, desbravando a Teoria Feminista a

18 A decomposição dos trabalhos foi feita com base no protocolo de fichamento elaborado por Nilda Jacks com

o apoio de integrantes do Núcleo de Pesquisa Cultura e Recepção Midiática (PPGCOM-UFRGS), disponível em

Meios e Audiências II (JACKS, 2014).

Page 16: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

16 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

partir desta perspectiva. Tem como objetivo “analisar se os conteúdos presentes na fanpage do

Facebook da Think Olga propagam o conceito de identificação de gênero defendido pelo

feminismo interseccional” (p. 43). Em sua dissertação, a autora se propõe a pensar a categoria

“mulher” a partir da articulação com os marcadores de raça, classe e gênero. Para analisar os

dados, a autora coloca a análise de conteúdo de Bardin em diálogo com Brah e sua perspectiva

construcionista da interseccionalidade. Para compreender de que forma os múltiplos

marcadores eram tratados no conteúdo, a autora analisou dez postagens evidenciando, entre

outros elementos, o que ela denominou de “expressões interseccionais”, ilustrado estas

intersecções em ilustrações gráficas. O critério para a escolha dos marcadores com os quais

trabalhou é que “as categorias escolhidas são eixos estruturantes na matriz de desigualdade e

diferenças no Brasil, que, por sua vez, se encontra na permanência e reprodução das situações

de pobreza e exclusão social” (p. 55). Bezerra conclui que “os sentidos de identidades

prioritários acionados pela Olga possuem relação direta com o feminismo interseccional

construcionista, por dar voz e visibilidade a uma pluralidade de mulheres através das

publicações realizadas em sua fanpage no Facebook” (2018, p. 178).

Matos (2017), em sua pesquisa de Mestrado chamada Transição capilar: cabelos,

consumo e interseccionalidade no ciberespaço, exibe uma vinculação paradigmática próxima

ao Feminismo, embora não deixe isso explícito no texto. Tem como proposta realizar uma

“análise dos sentidos atribuídos à transição capilar e aos cabelos crespos/cacheados partindo

dos conteúdos produzidos por mulheres e postados na internet” (p. 19), verificando quais

termos mais circulam em vídeos dos canais do YouTube Rayza e Mari Morena. Para tanto, a

autora se propõe a realizar uma “etnografia no ciberespaço” (p. 12), porém dando ênfase aos

dois canais citados. Entre seus resultados, Matos salienta que foi percebido um movimento de

busca pela autonomia da mulher negra através dos usos conferidos ao seu cabelo.

A dissertação de Bernardino (2016), Luz, câmera, limpando: interseccionalidades e

representações sociais em Domésticas, o filme (2001) e Doméstica (2012), não apresenta um

paradigma teórico ao qual se vincula. Tem como objetivo “[...] analisar as representações das

trabalhadoras domésticas nas películas Domésticas, o filme de Fernando Meirelles e Nando

Olival, de 2001 e Doméstica, de Gabriel Mascaro, de 2012” (p. 10). Para a leitura fílmica,

apoia-se na proposta metodológica da Análise de Discurso de Orlandi. A interseccionalidade

entra em cena inscrita em uma discussão sobre feminismo e cinema. Bernardino justifica a

relevância do termo para o seu estudo a partir do corpo que as domésticas encarnam nos filmes.

Page 17: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

17 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

“Aqui reside um aspecto fundamental para a presente pesquisa: trabalhar a interseccionalidade

entre gênero, raça e classe nos filmes selecionados, já que as domésticas são majoritariamente

negras e pobres” (p. 19). A autora ainda dedica à interseccionalidade uma indagação específica:

“como as reflexões interseccionais entre gênero, raça e classe social aprofundariam a

historicização das representações sociais das domésticas nas películas?” (p. 118). Bernardino

conclui que:

Ambos filmes são exceções no quadro geral da história do cinema nacional ao

trazerem como protagonistas uma categoria que geralmente não é o centro das tramas.

Contudo, o fato de serem produções masculinas, brancas e de classe média alta

apresentam as domésticas submissas aos olhares dos diretores. Analogicamente, as

domésticas foram representadas pelos olhos dos patrões, por isso, em termos de

conquista de representatividade, os filmes não construíram rupturas às convenções

hegemônicas de representações. Domésticas, o filme (2001) e Doméstica (2012) são,

assim, representações do imaginário social dominante sobre o trabalho doméstico e

trabalhadoras domésticas.

Em sua dissertação A construção social da “saúde reprodutiva” no Brasil. Um olhar na

perspectiva da interseccionalidade de gênero e raça, Duarte (2012) também não apresenta um

referencial amparado por uma perspectiva teórica específica para guiar suas discussões.

Propõe-se a “[...] analisar a produção contemporânea de discursos sociais em torno da ‘saúde

reprodutiva’ no Brasil” (p. 52). Para isso, a autora utiliza como ferramenta a análise do discurso

e, como corpus, os discursos veiculados na mídia online sobre “saúde reprodutiva”. A

interseccionalidade é útil para a autora pois o seu conceito ajuda no desenvolvimento de uma

perspectiva crítica das condições da mulher negra no quadro da saúde reprodutiva: “Nesse

sentido, a interseccionalidade permite-nos analisar a produção de discursos sociais em torno

da saúde reprodutiva como fenômeno social complexo que diz respeito às relações de poder e

aos jogos de forças sociais em determinados contextos” (DUARTE, 2012, p. 61). Entre seus

achados, a autora considera que as mulheres negras não são plenamente contempladas tendo

em vista um passado de políticas eugênicas e seus reflexos nas políticas atuais.

Este corpus trata a respeito de quatro dissertações que se distinguem em relação à

natureza dos dados analisados de duas formas. Uma delas por tratarem de discursos produzidos

por receptores. São estudos que se interessam pelo conteúdo produzido por pessoas

desvinculadas das lógicas de produção da mídia hegemônica. Entre elas, o de Bezerra (2018)

e o de Matos (2017). Ambas as autoras estão interessadas em articular a interseccionalidade

para analisar elementos produzidos por agentes de fora das lógicas de produção do sistema de

mídia comercial convencional. A respeito desse fenômeno, é importante pensar a

Page 18: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

18 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

interseccionalidade no contexto contemporâneo de usos criativos da Internet por parte dos

usuários, alimentando o debate sobre o “empoderamento” da audiência. Em outro polo, há os

estudos de Bernardino (2016) e o de Duarte (2012), interessadas nos discursos elaborados nas

lógicas de produção da gramática dos meios de comunicação tradicionais: cinema e revista.

Em última instância de análise, interessa reconstituir o percurso teórico das autoras a fim

de observar as formas com que o conceito de interseccionalidade é apropriado. Para isso, foi

realizada a leitura de seus capítulos teóricos sobre o tema.

Na pesquisa de Bezerra (2018), a autora dedica dois capítulos ao tratamento conceitual e

histórico do tema “interseccionalidade”. No primeiro deles, é desenvolvida uma genealogia

crítica do seu conceito, salientando, de início, para o fato de que muito do que há publicado

hoje sobre o assunto provém dos EUA ou Europa. Em seguida, adentra no conceito

propriamente dito desde Kimberlé Crenshaw, mas também resgatando antecessoras que já

propunham um pensamento interseccional, só que sem dar este referido nome. Bezerra (2018)

recorre à Adriana Piscitelli para abordar o caráter sistêmico – vinculado à Crenshaw – e o

construcionista – vinculado à Avtar Brah e à Anne McClintock – da interseccionalidade. Por

fim, a autora se posiciona, vinculando-se à abordagem construcionista, “já que [esta

abordagem] destaca especialmente os aspectos dinâmicos e relacionais da identidade social”

(BEZERRA, 2018, p. 47). A preocupação com a questão da identidade está como pano de

fundo na problemática da interseccionalidade em sua pesquisa. Por isso, articula discussões

entre estes dois conceitos em um outro capítulo teórico. Preocupada com a racialização do

gênero e suas implicações para construções da identidade, realiza um extenso debate junto a

autoras feministas negras sobre pensamento diaspórico, translocal e pós-colonial. Alguns dos

nomes citados são Lélia Gonzalez e Sonia Alvarez. Bezerra realiza este percurso para

argumentar que a interseccionalidade, em sua abordagem construcionista, seria uma alternativa

para pensarmos sobre a conformação de identidades não-fixas, marcadas em sujeitos que,

apesar das identidades coletivas, vivem processos de individualização.

Em Matos (2017), não há capítulo específico para destrinchar o conceito de

interseccionalidade. Ela o apresenta brevemente em dois subcapítulos. Primeiramente, o termo

aparece inserido dentro de uma discussão sobre aspectos históricos e teóricos do feminismo,

junto a uma conceituação de gênero através de John Scott: “[a] autora conclui que, a intersecção

entre raça, classe e gênero como categorias analíticas que ‘reformariam’ essa forma de narrar

a história, composta pela fala dos oprimidos e as desigualdades de poder, levaria a uma

Page 19: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

19 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

mudança radical [...]” (MATOS, 2017, p. 73). A segunda vez em que há um esforço de teorizar

sobre interseccionalidade surge no subcapítulo subsequente, que trata sobre raça e racismos. A

autora se apoia em María Lugones, afirmando que a relação entre colonizado e colonizador é

atravessada por marcadores sociais da diferença; e em Lélia Gonzalez para dizer que o

pensamento interseccional é relevante para se debater raça.

No estudo de Bernardino (2016), o debate sobre interseccionalidade é apresentado na

introdução e inscrito no subcapítulo sobre feminismo e cinema. Neste, é apresentado o que é

gênero e, em seguida, o conceito de interseccionalidade. Ele surge introdutoriamente a partir

de Guacira Lopes Louro que atesta para a necessidade de estarmos atentos às várias diferenças

que habitam o interior da categoria “gênero”. A autora reforça este conceito a partir do texto

clássico de Kimberlé Crenshaw. Em seguida, visibiliza mulheres negras que também tratam do

assunto “interseccionalidade”, mesmo sem se referir a este nome especificamente em seus

estudos, como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro.

Em sua dissertação, Duarte (2012) realiza um preâmbulo sobre interseccionalidade em

um capítulo sobre a construção social da saúde reprodutiva. Destaca a invisibilização das

mulheres negras nestas políticas e coloca em pauta as formas com que o movimento do

feminismo negro vem tentando alterar esse cenário, tornando-o mais inclusivo. É com base

nesse contexto que a autora apresenta o termo “interseccionalidade” no capítulo seguinte, cujo

foco é explicar o seu conceito. Amparada por Crenshaw e Kia Caldwell, resume que “[e]sta

abordagem permite um entendimento dos problemas sociais capturando as consequências

estruturais e dinâmicas das interseccções complexas entre dois ou mais eixos de opressão que

se entrecruzam e potencializam” (BERNARDINO, 2012, p. 57). Como a autora está

preocupada com questões voltadas à área da saúde, dá ênfase ao olhar interseccional articulado

pelas feministas negras, que apontam a uma outra dimensão: “a da biopolítica baseada nas

desigualdades de raça e classe” (BERNARDINO, 2012, p. 59). Para se debruçar sobre esta

questão, faz referência principalmente à Sueli Carneiro.

Destes quatro trabalhos que têm a mídia como objeto empírico, considero que somente

o de Bezerra (2018) podemos definir como, de fato, um estudo interseccional. A autora, ao se

propor analisar as “expressões interseccionais” que surgem nos conteúdos da página da Think

Olga, usa o conceito como uma ferramenta teórico-metodológica. Ou seja, para além de

desbravar as diversas facetas conceituais de interseccionalidade e posicionar-se filiada a uma

específica (a construcionista), a autora demonstra em tabelas e imagens a operacionalização do

Page 20: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

20 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

seu uso. Ao longo do estudo, a interseccionalidade é abordada coerentemente desde as suas

decisões teóricas às análises, vinculando-se aos Estudos Culturais e tratando a Teoria Feminista

desde esse campo de estudos. Os estudos de Matos (2017), Bernardino (2016) e Duarte (2012)

parecem não articular o conceito de interseccionalidade de forma abrangente ao longo do

estudo. Fornecem descrições sucintas do conceito, sem recorrer a importantes intelectuais do

campo. Na maioria dos casos, as autoras a trataram mais como um referencial teórico para dizer

que a articulação entre gênero, raça e classe é importante para desvelar as opressões e analisar

eixos de poder; do que como uma ferramenta analítica operacionalizada junto aos dados. Como

consequência, os achados em relação aos objetos de análise à luz do conceito acabaram sendo

uma redundância de sua própria definição.

Como ponto semelhante entre todos os trabalhos, destaco o positivo reconhecimento que

todos as suas autoras deram ao feminismo negro como movimento político-teórico que

desenvolveu as primeiras discussões em torno do que seria chamado de “interseccionalidade”

por mulheres de outras gerações.

Considerações finais

Ao longo do artigo busquei apresentar um panorama geral do estado da arte das teses e

dissertações sobre interseccionalidade no Brasil produzidas entre 2008 e 2018. Em linhas

gerais, dou destaque à evolução quantitativa dos estudos que se dedicam ao tema enquanto

objeto teórico central. Esses trabalhos são produzidos, majoritariamente, nas regiões Nordeste

e Sul e vinculados a PPGs da área da Psicologia, seguido por Ciências Sociais e Educação. Os

marcadores sociais mais articulados são gênero e raça e a autora mais citada para explicar o

conceito de interseccionalidade é Kimberlé Crenshaw. O guarda-chuva teórico do feminismo

negro foi apropriado pela maior parte dos estudos, fosse para contextualizar o objeto de

pesquisa ou para articular teoricamente a questão da interseccionalidade, incluindo outras

autoras do movimento. Dessa forma, o conceito de interseccionalidade surge nos trabalhos

permeada por uma potência política.

No entanto, essa potencialidade foi pouco explorada nos trabalhos dedicados a objetos

comunicacionais. Foi encontrado somente uma dissertação dedicada à perspectiva

interseccional produzida por um PPG do campo da Comunicação. Outros três estudos também

Page 21: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

21 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

tratam de objetos comunicacionais, porém foram produzidos em PPGs de outras áreas19. Além

do baixo número de estudos tratando de comunicação, verifico que os mesmos, em sua maioria,

são rasos ao abordarem a interseccionalidade de um ponto de vista epistemológico, ou seja,

permeando toda a pesquisa, à exceção do estudo de Bezerra (2018). A presença hegemônica

de Crenshaw sem propor um diálogo com outras autoras que já avançaram teórica e

metodologicamente para tratar a interseccionalidade demonstra pouca imersão no objeto

teórico. Apesar disso, é relevante destacar que o esforço de autores e autoras em tratar da

interseccionalidade, mesmo que às vezes de modo limitado, demonstra o interesse pelo seu

potencial teórico e político na pesquisa.

Por fim, defendo que a perspectiva da interseccionalidade possui vasta potência

epistemológica e política aos estudos sobre objetos comunicacionais – e sobretudo ao campo

da comunicação. Douglas Kellner sumariza que os estudos de mídia podem ser divididos em

três grandes áreas: economia política, análise textual e estudos de audiência. Para cada uma

destas áreas, a interseccionalidade é um terreno fértil. Para a economia política, olhar a

sociedade – que por sua vez é marcada por categorias de classe, gênero, raça, etc. – em uma

lente interseccional proporciona uma outra forma para compreender os modos com que os

interesses pelo lucro afetam o modo como os discursos midiáticos são produzidos. As análises

textuais podem enriquecer o entendimento dos códigos hegemônicos uma vez que estes

sugerem convenções dos modos de ser e estar no mundo através de representações na mídia.

Finalmente, os estudos de audiência, por se dirigirem a pessoas e seus discursos sobre a mídia,

pode apropriar-se da perspectiva interseccional na tentativa de acessar os modos com que os

marcadores atravessam as experiências de recepção. Ainda, o desenvolvimento de uma

perspectiva interseccional dos marcadores sociais no campo da Comunicação poderia,

certamente, atualizar proposições políticas que pesquisadores e pesquisadoras de outras

gerações deixaram como legado.

Referências

ALMALEH, Priscilla. Ser mulher: cotidianos, representações e interseccionalidade da mulher popular

(Porto Alegre 1889 – 1900). Dissertação (Mestrado em História) – Unisinos, 2018.

ALMEIDA, Heloísa Buarque de; SIMÕES, Júlio Assis; MOUTINHO, Laura; SCHWARTZ, Lília Moritz.

Numas, 10 anos: um exercício de memória coletiva. In: SAGGESE, Gustavo Santa Roza [et al.] (orgs.).

19 O que, aliás, demonstra a capacidade de trânsito dos objetos da comunicação em outros campos.

Page 22: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

22 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

Marcadores sociais da diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São

Paulo: Terceiro Nome, 2018.

ALVES, Enedina do Amparo. Rés negras, judiciário branco: uma análise da interseccionalidade de gênero,

raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Dissertação (Mestrado em Ciências

Sociais) – PUC-SP, 2015.

ARCOVERDE, Mariana Torreão Brito. A defesa transnacional dos direitos humanos das mulheres

latinoamericanas por redes feministas regionais: um estudo à luz da interseccionalidade. Dissertação

(Mestrado em Direitos Humanos) – UFPE, 2017.

BERNARDINO, Jéssyca Lorena Alves. Luz, câmera, limpando: interseccionalidades e representações

sociais em Domésticas, o filme (2001) e Doméstica (2012). Dissertação (Mestrado em História) – UnB, 2016.

BEZERRA, Mariana Lemos de Morais. Think Olga: interseccionalidade, comunicação midiática no

facebook e a apropriação da identificação de gênero no sujeito do feminismo. Dissertação (Mestrado em

Estudos de Mídia) – UFRN, 2018.

BORGES, Rovênia Amorim. A interseccionalidade de gênero, raça e classe no Programa Ciência sem

Fronteiras: um estudo sobre estudantes brasileiros com destino aos EUA. Dissertação (Mestrado em

Educação) – UnB, 2015.

BOURDIEU, Pierre. Para uma sociologia da ciência. Lisboa: Edições 70, 2004.

BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. In: Cadernos Pagu (26), jan-jun, 2006.

BUZAR, Francisco José Roma. Interseccionalidade entre raça e surdez : a situação de surdos (as) negros

(as) em São Luís – MA. Dissertação (Mestrado em Educação) – UnB, 2012.

CAPES. Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 2011 – 2020. Disponível em:

https://www.capes.gov.br/images/stories/download/PNPG_Miolo_V2.pdf. Acesso em 8 fev. 2019

CARVALHO, Layla Danele Pedreira de. Da esterilização ao Zika: interseccionalidade e transnacionalismo

nas políticas de saúde para as mulheres. Tese (Doutorado em Ciência Política) – USP, 2017.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial

relativos ao gênero. In: Revista Estudos Feministas. vol.10 no.1 Florianópolis. Jan. 2002

D’ÁVILA, Michele Nunes. Mulheres da paz: histórias de vida, interseccionalidades e processos de

subjetivação. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) – UFRGS, 2016.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

DUARTE, Heloísa Helena da Silva. A construção social da “saúde reprodutiva” no Brasil. Um olhar na

perspectiva da interseccionalidade de gênero e raça. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Unisinos,

2012.

FARIAS, Adenize Queiroz de. Trajetórias educacionais de mulheres: uma leitura interseccional da

deficiência. Tese (Doutorado em Educação) – UFPB, 2017.

FERREIRA, Guilherme Gomes. Donas de rua, vidas lixadas: interseccionalidades e marcadores sociais nas

experiências de travestis com o crime e o castigo. Tese (Doutorado em Serviço Social) – PUCRS,

2018.GOMES, Vanessa Benevides Martins. Juventude e projeto de vida: um estudo interseccional dos

modos de subjetivação de universitários/as de origem popular. Dissertação (Mestrado em Psicologia) –

UFPE, 2016.

GILL, Rosalind. Gender and the media. Cambridge: Polity Press, 2007.

Page 23: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

23 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

HALL, Stuart. The White of their eyes: racista ideologies and the media. In: DINES, Gail; HUMEZ, Jean M

(eds.) Gender, race, and class in media: a critical reader. London: Sage Publications, 2015.

JOHN, Valquíria Michela; COSTA, Felipe da. Mulheres, identidade de gênero e sexualidade: problemáticas e

desafios a partir do recorte por sexo. In: JACKS, Nilda (org.). Meios e Audiências II: a consolidação dos

estudos de recepção no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2014.

JACKS, Nilda. Reflexividade à vista! (Prefácio). In: MATTOS, Maria Ângela; BARROS, Ellen Joyce Marques;

OLIVEIRA, Max Emiliano. Metapesquisa em comunicação: o interacional e seu capital teórico nos textos

da Compós. Porto Alegre: Editora Sulina, 2018.

JACKS, Nilda; SIFUENTE, Lirian; LIBARDI, Guilherme. Classe social: elemento estrutural (des)considerado

nas pesquisas de recepção e consumo midiático. In: Meios e Audiências III. Porto Alegre: Sulina, 2017.

KELLNER, Douglas. Cultural Studies, multiculturalism, and media culture. In: DINES, Gail; HUMEZ, Jean M

(eds.) Gender, race, and class in media: a critical reader. London: Sage Publications, 2015.

LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Pesquisa em comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

LUNA, Sergio Vasconcelos. Planejamento de pesquisa: uma introdução. São Paulo: EDUC, 1999.

MACÊDO, Márcia dos Santos. Na trama das interseccionalidade: mulheres chefes de família em Salvador.

Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – UFBA, 2008.

MATOS, Lídia de Oliveira. Transição capilar: cabelos, consumo e interseccionalidade no ciberespaço.

Dissertação (Mestrado em Antropologia) – UFS, 2017.

MORLEY, David. Media. In: BENNET, Tony; GROSSBERG, Lawrence; MORRIS, Meaghan. New

keywords: a revised vocabulary of culture and society. Malden: Blackwell Publishing, 2005.

NASCIMENTO-GOMES, Fernanda Sardelich. Juventude, sexualidade e relações afetivo-sexuais: uma

análise interseccional de jovens rurais e urbanos/as. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – UFPE, 2016.

PEREIRA, Edilene Machado. A vivência de mulheres em cargos em cargos executivos em grandes

empresas: uma análise interseccional das desigualdades de gênero e de Raça. Tese (Doutorado

PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras.

In: Sociedade e Cultura, v.11 n.2 jul/dez 2008.

SANTOS, Marcela Ernesto dos. Resistindo à tempestade: a interseccionalidade de opressões nas obras de

Carolina Maria e Maya Angelou. Tese (Doutorado em Letras) – UNESP, 2014.

SILVA, Roseane Amorim da. Os significados do uso de álcool entre os/as jovens quilombolas de

Garanhuns/PE: uma perspectiva interseccional. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – UFPE, 2014.

SILVA, Samira do Prado. As interseccionalidades entre gênero, raça/etnia, classe e geração nos livros

didáticos de sociologia. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – UEL, 2016.

SILVEIRA, Raquel da Silva. Interseccionalidade gênero/raça e etnia e a Lei Maria da Penha : discursos

jurídicos brasileiros e espanhóis e a produção de subjetividade. Tese (Doutorado em Psicologia

Institucional) – UFRGS, 2013.

SMOLEN, Jenny Rose. Raça/cor da pele, gênero e Transtornos Mentais Comuns na perspectiva da

interseccionalidade. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – UEFS, 2016.

Page 24: PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE NO …€¦ · Importante destacar que este trabalho não trata de uma desconstrução metodológica interessada em avaliar a qualidade

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

24 www.compos.org.br

www.compos.org.br/anais_encontros.php

SOARES, Lissandra Vieira. Escrevivências sobre mulheres negras acompanhadas pela Proteção Social

Básica: uma perspectiva interseccional. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) –

UFRGS, 2017.

SOUZA, Leyllyanne Bezerra de. “Quando não tem bebida, morga logo!”: um estudo interseccional sobre

juventude e consumo de álcool. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – UFPE, 2015.

STUMPF, Ida Regina C. Pesquisa bibliográfica. In: DUARTE, J.; BARROS, A. (orgs.). Métodos e técnicas de

pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2006.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade. Petrópolis: Vozes, 2014.

TOLEDO, Angelita Alves de. Mulheres negras soropositivas e as interseccionalidades entre gênero, classe e

raça/etnia. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – UFSC, 2012.

TOMAZETTI, Tainan Pauli; CORUJA, Paula. Relações de gênero: os desafios para além das binariedades,

identidades e representações. In: JACKS, Nilda (coord.). Meios e Audiências III: reconfigurações dos estudos

de recepção e consumo midiático no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2017.

XAVIER, Eliana Costa. “Tá dentro, não tá fora”: subjetividade, interseccionalidade e experiências de

adoecimento de mulheres negras com doença falciforme. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – PUCRS,

2015.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu

da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.