marcas da perspectiva decolonial no curso de …

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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Educação Cleidiane Lemes de Oliveira MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO (LECAMPO): aproximações e distanciamentos Belo Horizonte 2017

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Page 1: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Educação

Cleidiane Lemes de Oliveira

MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE LICENCIATURA EM

EDUCAÇÃO DO CAMPO (LECAMPO): aproximações e distanciamentos

Belo Horizonte

2017

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Cleidiane Lemes de Oliveira

MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE LICENCIATURA EM

EDUCAÇÃO DO CAMPO (LECAMPO): aproximações e distanciamentos

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre

em Educação.

Orientador: Professor Dr. Teodoro Adriano Costa Zanardi

Belo Horizonte

2017

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Cleidiane Lemes de Oliveira

O CURSO DE LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO – LECAMPO – SOB A

PERSPECTIVA DECOLONIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre

em Educação.

Prof. Teodoro Adriano Costa Zanardi (Orientador) – PUC Minas

Lorene dos Santos – PUC Minas

Salomão Antônio Mufarrej Hage - UFPA

Belo Horizonte, 20 de abril de 2017

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Ao Rafinha pelos grandes aprendizados mesmo sendo ainda tão pequeno.

Sua intensa curiosidade desmonta o sentido único do mundo.

Page 7: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

AGRADECIMENTOS

Impossível seria concluir esse processo sozinha.É necessário demostrar infinita gratidão nesse

momento.

A Deus agradeço por me proporcionar a vida em toda sua plenitude.

Ao meu orientador Teodoro Zanardi, por acreditar em mim cotidianamente, pelas conversas e

pelo incentivo. Obrigada por estar percorrendo este caminho comigo desde o começo.

Aos meus pais, Hélio e Dionice, minha eterna gratidão pelas horas de escuta e por abraçarem

comigo o sonho de voos mais altos no mundo acadêmico. Vocês são a minha grande motivação

a prosseguir. Tudo que conquisto é para vocês. Ao Cleiton, meu irmão, o agradecimento por estar

junto, por se preocupar e por me abraçar quando o mundo parecia desabar sobre mim. Vocês são

a essência da minha vida!

Aos professores e professoras do Programa de Pós-graduação em Educação da PUC,

especialmente a professora Dra. Lorene dos Santos, por ser uma mulher inspiradora.

Aos alunos do curso e ao professor que acompanhei a disciplina, por me receberam tão bem e

me possibilitaram desenvolver essa pesquisa;

Ao LeCampo, na pessoa dos coordenadores do curso e do colegiado, por terem gentilmente

aberto as portas da FaE a pesquisa;

À CAPES pela bolsa;

Aos amigos da História que sempre me apoiaram: Tudor, Rafael, Kelen e Ana. Suas palavras de

motivação estão comigo até hoje. Tudor, um dia hei de retribuir todos os auxílios prestados pelo

telefone!

Às mulheres que me inspiram cotidianamente, dão-me força e nunca me deixaram esmorecer:

Tássia, Geusi, Dai, Raphaella, Sil e Marcinha. Vocês são muito queridas por mim.

Ao Hiago e ao Ramon pelo carinho em forma de leitura, obrigada por colocarem todas as vírgulas

nos lugares certos, ora as vírgulas da vida, ora as do texto. Ramon, o aconchego de sua presença

nos momentos finais foi a força necessária para que eu persistisse.

A Gizele, Bruna e Ângela por serem mais do que qualquer palavra consiga transcrever, vocês

fizeram com que eu visse o melhor de mim, cedendo muito do melhor de vocês.

Page 8: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

Aos amigos da Linha de Pesquisa em Currículo, meus exemplos de pesquisadores e educadores

comprometidos com a leitura do mundo: Márden, Silene e Guilherme.

A todos meus alunos por me ensinarem, cotidianamente, a pensar os sentidos de estar no mundo

e os desafios da educação Outra.

A Flávia por me ensinar como é ser professora no “dia a dia” e pelo carinho que sempre tem

comigo.

Aos professores do curso de História que tive o prazer de ser aluna, sem que talvez eles saibam,

levo muito deles comigo: Júlia Calvo, Carlos Veriano, Carla Ferreti e Marcelo Cedro.

A todos que passaram pela minha vida nesse momento. As contribuições, sugestões e diálogos

ajudaram-me a produzir a dissertação e a me construir como sujeito.

Page 9: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

O processo colonial traz em si mesmo uma ação contrária

incrível e dialética. Ou seja, não há intervenção colonial

que não provoque uma reação por parte do povo

colonizado. (FREIRE; MACEDO, 2011, p. 213)

Page 10: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

RESUMO

Esta dissertação teve por objetivo realizar uma análise do curso de Licenciatura em Educação do

Campo – LeCampo – ofertado pela Universidade Federal de Minas Gerais, por meio do seu

Projeto Político Pedagógico e da voz dos sujeitos Outros que compõem o curso, tomando como

referencia as contribuições da teorica decolonial. Para isso, a pesquisa se propôs a desenvolver

como objetivos específicos: problematizar o conceito de modernidade trazido pelos autores

europeus, a partir dos teóricos latino-americanos vinculados à perspectiva decolonial;

compreender a importância do MST como prática de resistência decolonial nos espaços

universitários; ressaltar a importância de uma perspectiva Intercultural Crítica na formação de

professores como mediadores e propulsores da construção de um conhecimento Outro; e, ainda,

compreender os reflexos dessa produção de conhecimento decolonial dentro do LeCampo. O

estudo caracteriza-se como qualitativo, tendo utilizado análise documental, entrevista

semiestruturada e roda de conversa como técnicas de coleta dos dados. A dissertação se ampara

nos escritos dos teóricos Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Paulo Freire e Catherine Walsh.

Acolhe também os teóricos que discutem a Educação do Campo, como Roseli Carldart, Miguel

Arroyo e Mônica Molina. Constatamos que o LeCampo possui traços decoloniais, visíveis na sua

construção e nas formas de organização dentro do Tempo Escola. Foi possível perceber que é

um desafio atual do curso dialogar com os sujeitos que passam a ingressá-lo construindo sentidos

de uma educação Outra comprometida com a transformação da sociedade. Lado Outro,

constatamos que o LeCampo possui em si traços decoloniais visíveis na construção do curso e

na organização no Tempo Escola.

Palavras-chave: Decolonialidade. Educação do Campo. Formação de Professores. Movimentos

Sociais.

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ABSTRACT

This dissertation aimed at carrying out an analysis of the Graduate Course in Countryside

Education - LeCampo - offered by the Federal University of Minas Gerais, through its Political

Pedagogical Project as well as through the voice of the Other Individuals who take part in the

course, referring to the contributions of decolonial theory. In this regard, the research had the

following specific objectives: Problematizing the concept of modernity, upheld by European

authors, from the perspective of Latin American Decolonial theoreticians; Understanding the

importance of the Landless Movement (MST) as a practice of decolonial resistance in university

spaces; Emphasizing the importance of a Critical Intercultural perspective in teacher training and

also understanding the impacts of the production of decolonial knowledge within LeCampo. This

is a qualitative study that relied on semi-structured interview, focus groups and document

analysis as data collection techniques. The dissertation is based on the writings of the

theoreticians Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Paulo Freire and Catherine Walsh. It also refers

to the theoreticians who discuss Countryside Education, such as Roseli Carldart, Miguel Arroyo

and Mônica Molina. It was possible to understand that the current challenge of the course is to

dialogue with the individuals who are now attending it so as to build an Other Education engaged

in the transformation of society. On the other hand, we have determined that LeCampo has

decolonial features itself which are visible in the construction of the course and in the

organization during the School Time.

Keywords: Decoloniality. Countryside Education. Teacher Training. Social Movements.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1- Pesquisas encontradas sobre o Le Campo 15

Quadro 2- Pesquisas encontradas sobre Educação do Campo e decolonialidade 16

Quadro 3- Associações comunitárias que os alunos do LeCampo pertencem 126

Quadro 4- Município de residência dos alunos pesquisados 126

Quadro 5- Conteúdo programática e bibliografia básica da disciplina pesquisada 135

Page 13: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

LISTA DE SIGLAS

BM Banco Mundial

CSH Ciências Sociais e Humanas

CVN Ciências da Vida e da Natureza

FaE Faculdade Educação

FETAEMG Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Minas Gerais

FIEI Formação Intercultural de Educadores Indígenas

FMI Fundo Monetário Internacional

LAL Literatura, Artes e Letras

LeCampo Licenciatura em Educação do Campo

MC Modernidade e Colonialidade

MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

PeTerra Pedagogia da Terra

PRONERA Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária

PROCAMPO Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do

Campo

TC Tempo Comunidade

TE Tempo Escola

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

Page 14: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 13

1.1 Metodologia ........................................................................................................................ 19

2 A MODERNIDADE COMO MATRIZ DA COLONIALIDADE ........................................... 29

2.1 A Modernidade em Dussel ...................................................................................................... 32

2.2 O Mito da Modernidade e o Silenciamento do Outro........................................................... 39

2.3 A formação da Outreidade ...................................................................................................... 43

3 A DECOLONIALIDADE REVISADA .......................................................................................... 50

3.1 A Decolonialidade e suas fontes .............................................................................................. 51

3.1.1 Seus precursores ..................................................................................................................... 54

3.2 O Coletivo Modernidade/Colonialidade e a Construção de um Paradigma Outro ........... 57

3.2.1 A colonialidade do poder em Quijano .................................................................................... 65

3.2.2 Dussel e a questão do Outro ................................................................................................... 68

3.2.3 A (de)colonialidade do Ser em Paulo Freire .......................................................................... 75

4 A PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO DO MST SOB A PERSPECTIVA INTERCULTURAL E

DECOLONIAL .................................................................................................................................... 81

4.1 A construção do saber do MST............................................................................................... 89

4.2 As lutas pela educação do Campo .......................................................................................... 96

4.3 Formação de Professores: do Rural a Educação do Campo .............................................. 101

5 LECAMPO: UMA FORMAÇÃO DECOLONIAL? ................................................................... 112

5.1 Nossa aproximação com a Universidade e com o LeCampo .................................................. 115

5.2 A construção curricular do LeCampo ..................................................................................... 117

6.2.1. O Projeto Político Pedagógico do curso ............................................................................. 119

5.2.2. A alternância pedagógica .................................................................................................... 122

5.2.3. Docência Multidisciplinar ................................................................................................... 125

5.3. Os sujeitos pesquisados ............................................................................................................ 129

5.4 Observação de Campo ........................................................................................................... 131

5.4.1. A observação em sala de aula ............................................................................................. 134

5.4.2. A mística no LeCampo ......................................................................................................... 139

5.5 A voz do Outro? ......................................................................................................................... 144

5.5.1. Os sujeitos do curso e sua institucionalização .................................................................... 144

5.5.2 O que é ser educador do campo para esses sujeitos? ........................................................... 153

5.5.3. A alternância pedagógica .................................................................................................... 163

5.5.4 Movimentos sociais e a materialidade do curso ................................................................... 164

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................ 170

REFERÊNCIAS ................................................................................................................................. 175

Page 15: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

13

INTRODUÇÃO

A construção da narrativa da História universal tem se pautado na superioridade de alguns

povos ante a uma suposta menoridade e irracionalidade de outros. Há, portanto, relações de poder

que fizeram com que a narrativa europeia sobressaísse como mundial, em detrimento das outras

histórias, que seriam consideradas como inferiores e referentes ao “resto do mundo”.

Segundo Quijano (2005), os processos de colonização europeus nos demais continentes

e, principalmente, na América Latina, resultaram na inferiorização desses povos e de suas

culturas e, mesmo findado o período colonial, as estruturas de dominação permaneceram nas

relações de colonialidade.

Entretanto, esses sujeitos Outros, ora inferiorizados, ora subsumidos dentro do discurso

europeu, passam a lutar para que suas histórias, suas formas de organização social e seus

conhecimentos sejam evidenciados, e a questionar a totalidade da narrativa eurocêntrica.

Pesquisar sobre esses sujeitos Outros na atualidade equivale a distanciar, problematizar essa

hegemonia discursiva e proporcionar questionamentos sobre o controle epistêmico

europeu/colonial.

Falamos, portanto, de saberes Outros e não de outros saberes porque entendemos que a

luta é para romper com a inferiorização dos saberes produzidos pelos sujeitos Outros.

Entendemos por Outro ou os Outros, segundo Dussel (2003), aqueles que foram as vítimas do

sistema colonizador e hegemônico, que foram negados em seus direitos de se reconhecem em

suas culturas, conhecimentos e formas de organização social.

A teoria decolonial passa a se destacar, na América Latina, pela problematização teórica

das tendências epistemológicas totalizantes, mas também por apresentar-se como tendência

política e epistêmica. Como destacado por Damázio (2011), por não se tratar de um campo

exclusivamente acadêmico, a decolonialidade permite o envolvimento de variados sujeitos, não

apenas para questionar os discursos ocidentais, mas também na emergência de saberes Outros

que surgem nos espaços relegados pela colonização moderna.

Nossa pesquisa1 se situa dentro dessa perspectiva de reflexão, e tem como marco teórico

os autores que problematizam a perspectiva decolonial de conhecimento dentro de uma estrutura

moderno/colonial, e não apenas aqueles teóricos que se denominam decoloniais: destacamos

Paulo Freire, Enrique Dussel e Anibal Quijano.

Antes de discorrermos sobre os objetivos desta pesquisa, desejamos salientar, de forma

1 Esta dissertação foi aprovada pelo Comitê de Ética da Plataforma Brasil. CAAE: 58312016.4.0000.5137.

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coerente com o referencial por nós utilizado, que não partimos aqui das dimensões de

neutralidade e uni-versidade de qualquer forma de conhecimento. Evidenciar, portanto, nosso

lócus de enunciação, conforme descrito por Mignolo (2005), é mais profundo do que

simplesmente dizer que estamos vinculados a certa maneira de compreender o mundo, mas diz

da relação do lugar que se fala com as formas políticas e geopolíticas, que evidenciam a

fragilidade da universidade enquanto “uni” e a coloca como “pluri-versal”.

O sujeito pesquisador não se desvincula de certas concepções e de seu lugar na história,

das suas motivações políticas e pessoais. Daí a importância de ressaltar o lugar da pesquisadora

como mulher, latina e defensora da construção de uma educação pautada em processos

decoloniais.

Meu interesse por essa pesquisa surgiu ainda na graduação, quando fui aprovada no

processo seletivo para desenvolver iniciação científica. Ainda estudante de História, já me

interessava pela educação do campo, tendo pesquisado sobre a formação de professores para o

campo, no curso Normal Regional Sandoval Soares de Azevedo, em Ibirité- MG, coordenado

pela conhecida psicopedagoga russa Helena Antipoff.

No mestrado, quis problematizar a atual formação de professores para o campo, buscando

compreender quais eram os sujeitos à frente desse projeto de educação e, principalmente, qual

conhecimento permeia os currículos dos cursos de licenciatura da área.

Nessa perspectiva, aproximamo-nos dos escritos de Dussel (1992), que questionam a

noção de modernidade e problematiza a relação com o conhecimento moderno/colonial,

problematizando como o sujeito Outro, colonizado, é inferiorizado pelas noções de conhecimento

europeu. Diante das leituras, principalmente de Dussel, optamos por pesquisar as relações entre

Educação do Campo, conhecimento e colonialidade/modernidade/decolonialidade.

A pesquisa teve por objetivo realizar uma análise do curso de Licenciatura em Educação

do Campo – LeCampo – ofertado pela Universidade Federal de Minas Gerais, por meio do seu

Projeto Político Pedagógico e da voz dos sujeitos Outros que compõem o curso, tomando como

referencia as contribuições da perspectiva teórica decolonial.

Os objetivos específicos da pesquisa são: problematizar o conceito de modernidade

trazido pelos autores europeus, a partir dos teóricos latino-americanos vinculados à perspectiva

decolonial; compreender a importância do MST como prática de resistência decolonial nos

espaços universitários; ressaltar a importância de uma perspectiva intercultural crítica na

formação de professores (as) como mediadores e propulsores da construção de um conhecimento

Outro.

Percebemos haver três perspectivas teóricas que se destacam na atualidade para a

Page 17: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

15

compreensão da educação do campo. A primeira pauta-se nos escritos da Educação Popular, ou

seja, na busca por compreender a fregmentação do conhecimento entre erudito e popular, sendo

o primeiro um conhecimento associado a diferentes instancias de poder e o segundo um

conhecimento não centralizado, difuso, mas não por isso inferiores entre si. Outra perspectiva é

aquela respaldada pelos teóricos da pedagogia socialista, como Pistrak e Makarenko. Essas

leituras estão centradas, basicamente, nas relações entre trabalho, capital e educação do campo.

Por último, a perspectiva que se aproxima das contribuições da Pedagogia do Movimento que

tem como principal teórica a professora Roseli Caldart. A Pedagogia do Movimento enfoca a

importancia dos movimentos sociais para a construção de uma outra educação, retirando o foco

da escola e voltando-se para os movimentos sociais como espaços de construção de

conhecimento.

No que tange as tendências de formação de educadores do campo também percebemos

três concepções amplamente discutidas. A primeira é aquela que se pautada sobre a perspectiva

hegemônica de campo, compreendendo o rural como simples contraponto a cidade e negando ser

um território de produção de conhecimento e, portanto, de culturas. Assim sendo, caberia ao

professor “elevar” a cultura daquele espaço. Outra perspectiva é denominada de crítica, sendo

aquela que busca compreender o papel do professor a partir de seu espaço de atuação, em uma

relação dialógica com os sujeitos. Por último, destacamos a perspectiva pautada pela proposta do

Movimentos da Educação do Campo. Pautada na luta para construção de políticas públicas

específicas para a formação de educadores do campo e para um conhecimento produzido em

diálogo com os movimentos sociais e sujeitos do campo.

Compreendemos ser essas as principais discussões teóricas, na atualidade, sobre a

educação do campo e a formação de professores a ela vinculada. Dessa forma, concebemos que

a contribuição da nossa pesquisa para o debate acadêmico sobre a Educação do Campo está em

trazer os referenciais decoloniais para realizar uma leitura do projeto de Educação do Campo e

especificamente sobre o LECAMPO. Isso não equivale a dizer que buscamos aqui enquadrar o

curso numa perspectiva decolonial ou não, mas de trazemos as aproximações e os

distanciamentos que percebemos entre o curso e a proposta apresentada pelos autores.

Reconhecendo que a teoria decolonial não nasce como um movimento teórico, mas como uma

prática de resistência colonizadora e posteriormente se corporifica em teoria acreditamos ser esta

uma teoria que traz um diálogo profícuo com as propostas atuais da construção de uma educação

do campo provocada pelo Movimentos da Educação do Campo.

Dois estados da arte nos ajudaram a vislumbrar um pouco mais sobre a produção sobre

educação do campo no Brasil em dois momentos diferentes. Os levantamentos realizados por

Page 18: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

16

Damasceno e Bessera (2004), trouxeram as produções relacionadas ao tema entre os anos de

1980 e 1990, em teses e dissertações. Entre as conclusões a que chegam as autoras destaca-se o

baixo interesse por pesquisadores interessados nessa área no período pesquisadog e o pouco

fomento fornecido aos pesquisadores que desejam pesquisá-la.

Entretanto, o estado da arte realizado por Gonçalves, Hayashi (2016) ressalta que, embora

atualmente o número de pesquisas tenha aumentado, há um número maior de temáticas que

versam sobre o assunto, o que demanda mais pesquisas na área. O levantamento buscou artigos

publicados entre 2007 e 2015 sobre a Educação do Campo, em revistas com Qualis A1, A2 e B1,

B2; ou seja, periódicos considerados de excelência pela CAPES.

As autoras categorizaram os artigos em dez temáticas: políticas públicas, formação de

educadores de campo, multisseriação, história da educação do campo, currículo,

desenvolvimento, ensino de ciências, movimentos sociais e juventude, trabalho e educação.

Na categoria Formação de Professores, damos destaque ao artigo realizado por Molina

(2015), que discorre sobre a problemática da expansão do ensino superior do Campo e os novos

desafios que passam a surgir da expansão da oferta dos cursos de Licenciatura para o campo. A

autora evidencia os ganhos obtidos historicamente na construção de licenciaturas específicas para

professores (as) do campo, não apenas na ordem da positivação dos direitos, mas numa ampliação

concreta da oferta de cursos de formação e da conquista de fundos públicos do Estado para o

financiamento e manutenção das graduações já conquistadas. Assim, Molina (2015, 2011) nos

deixa cientes das significativas transformações ocorridas na Educação no Campo nos últimos dez

anos.

Em nosso trabalho, buscamos a princípio pesquisas que se verticalizasse sobre o curso de

Licenciatura em Educação do Campo – LeCampo ofertado pela FaE/UFMG. Posteriormente,

buscamos pesquisas na área da Educação do Campo que tivessem como referência teórica a

decolonialidade2 ou a relação entre o conhecimento e a formação de professores.

Encontramos um número significativo de pesquisas cujo lócus era o LeCampo. Contudo,

essas pesquisas verticalizavam temáticas específicas de determinadas áreas de habilitação

ofertadas no curso, ou visavam analisar estratégias pedagógicas de algumas de suas das áreas de

formação. Embora tenham sido úteis no entendimento das áreas do curso, não nos forneceram

uma visão mais global sobre o assunto. Em razão disso, apenas duas dissertações e uma tese

2 Optamos por utilizar o termo “decolonial” e não “descolonial”, pelos mesmos motivos que Walsh (2009). A autora

defende que o termo “decolonial”, marca uma distinção com o significado de descolonizar em seu sentido clássico,

deixar de ser colônia. Deste modo, decolonial é mais que desfazer o colonial ou revertê-lo, ou seja, é superar o

momento colonial pelo momento pós-colonial. A intenção é provocar um posicionamento contínuo de transgredir e

insurgir. O decolonial implica, portanto, uma luta contínua.

Page 19: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

17

foram selecionadas.

AUTOR(A) TÍTULO TÍTULO/ ANO DE

DEFESA

ROSENO, Sonia Maria. O Curso de Licenciatura Em

Educação do Campo:

Pedagogia da Terra e a

Especificidade da Formação

Dos Educadores e Educadoras

Do Campo De Minas Gerais

Dissertação / 2010.

HORÁCIO, Amaríldo de

Souza.

Licenciatura em Educação Do

Campo e Movimentos

Sociais: Análise Do Curso de

Licenciatura da Universidade

Federal de Minas Gerais

Dissertação, 2015.

ROSENO, Sonia Maria. A Práxis Educativa do

Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem

Terra (MST): Desafios e

Possibilidades no Diálogo

com Instituições

Universitárias

Tese, 2014.

Fonte: nossa pesquisa

As pesquisas realizadas por Roseno (2010) e Horácio (2015) dissertam sobre a construção

do curso, abordando as turmas dos anos de 2005 e 2008. A pesquisa realizada por Horácio (2015)

traz, entre suas conclusões, mudanças significativas percebidas no público e no desenvolvimento

do curso entre os anos estudados.

A tese desenvolvida por Roseno (2014), apesar de não versar exclusivamente sobre o

LeCampo, objetivou compreender o processo educativo dos militantes do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que participaram do LeCampo e do curso de licenciatura

ofertado pela Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”.

Ao realizamos o levantamento sobre Educação do Campo e decolonialidade, não

encontramos um número expressivo de pesquisas, como supúnhamos. Assim sendo, listamos as

três pesquisas que faziam o diálogo teórico entre conhecimento, decolonialidade e Educação do

Campo mais próximo do almejado.

Page 20: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

18

AUTOR (A) TÍTULO TÍTULO / ANO DE

DEFESA

LEMOS, Girleide Tôrres. Os Saberes dos Povos Campesinos

Tratados Nas Práticas Curriculares

de Escolas Localizadas no

Território Rural de Caruaru-Pe.

Dissertação, 2013.

MOTA, NETO, João

Colares.

Educação Popular e Pensamento

Decolonial Latino-Americano Em

Paulo Freire e Orlando Fals Borda

Tese, 2015.

ZANCANELLA, Yolanda. Educação dos Povos do Campo:

Os Desafios da Formação dos

Educadores'

Dissertação, 2007.

Fonte: nossa pesquisa

A pesquisa desenvolvida por Lemos (2013) teve como objetivo compreender os sentidos

dos saberes dos povos campesinos tratados nos conteúdos de aprendizagem nas Práticas

Curriculares dos (as) professores (as) das escolas localizadas no território rural do município de

Caruaru-PE. Apesar das discussões trazidas pela autora não se aproximarem dos espaços

acadêmicos como produtores de conhecimento e da formação de professores (as), houve uma

rica discussão teórica sobre as noções de produção de conhecimento, sua seleção e sua “inclusão”

como conhecimento escolarizado.

A autora chega à conclusão de que os professores (as) das escolas pesquisadas reforçam

o estereótipo de que os conhecimentos dos sujeitos do campo são inferiores aos conhecimentos

científicos, além de reforçarem o campo como local de atraso e o da cidade como local de

progresso.

Já a dissertação apresentada por Zancanella (2007) incide em pontos centrais sobre a

formação de professores do campo e os conhecimentos necessários a essa formação. A autora

aborda em sua pesquisa a proposta de formação de professores (as) na Universidade Estadual do

Oeste do Paraná –UNIOESTE - em um curso de Pedagogia do Campo.

Para a autora, o curso nasce de uma insuficiência histórica na formação dos professores

(as) do campo e, por outro lado, de um crescimento dos movimentos que reivindicam um novo

modelo de formação. Mais do que uma mudança metodológica na construção dos cursos de

licenciatura do campo, a autora analisa como esse novo modelo de formação tem de se atar a

uma necessidade de aproximação entre os saberes construídos pelos sujeitos do campo e a

universidade, a partir da criação de políticas públicas específicas para formação de professores

do campo. Assim, deve haver uma ressignificação da Universidade que inclua uma revisão de

seu papel social e dos conhecimentos que a ela se conectam, possibilitando que saberes Outros,

construídos dentro dos movimentos sociais, passem a ela se relacionar.

Page 21: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

19

Por percebermos a problemática do conhecimento como central à proposta de formação

de professores, e principalmente, o questionamento do que é denominado “conhecimento

relevante” para ocupar os currículos de formação de professores, acreditamos que pesquisas

novas e mais aprofundadas nessas áreas são de grande relevância. Apesar da pesquisa de

Zancanella (2007) trazer essas problematizações, a autora não tece sobre a questão do

conhecimento, porque esse não é seu objeto de estudo.

Problematizar o conhecimento que ocupa os currículos dos cursos de licenciatura em

educação do campo equivale a problematizar a ideia equivocada e perigosa de que o

conhecimento é neutro. Acreditamos ser necessário questionar: De quem é esse conhecimento?

A que grupo social pertence? Responder essas questões nos possibilita problematizar com a

suposta neutralidade científica e com o metarrelato europeu que, segundo Lander (2005), se

impõe sobre as disciplinas escolares, principalmente, na América Latina.

1.1 Metodologia

O olhar é algo de grande importância na cultura ocidental. Como descrito por Tosta e

Rocha (2009), há várias expressões que permeiam nossa oralidade que reforçam a importância

do olhar, como em “olhos nos olhos”, “jogo de olhares” e “olho gordo”, só para citar algumas

das possibilidades. Entretanto, o olhar ocidental é marcado pela dominação e conquista do Outro.

A perspectiva ocidental traz em si uma ontologia da totalidade, que impede que o outro

seja reconhecido como Outro. Ao considerar a sua narrativa histórica como a única legítima, as

demais narrativas passam a ser consideradas exóticas e inferiores, passando a fazer parte das

histórias do “resto do mundo”.

Corroborando essa perspectiva, Smith (2016) nos diz que o olhar investigativo científico,

quando direcionado às culturas não europeias, foi historicamente construído como sinônimo de

contato com povos e saberes informais, imaginativos e anedóticos. A forma de investigação

científica de outras culturas, como a própria etnografia, passa a ser meio de conhecer aqueles que

“fogem à civilidade”. Nessa lógica, a pesquisa científica possibilita novos processos de

colonização e de colonialidade dos povos e de seus saberes.

Isso não quer dizer, entretanto, que se parte aqui de um radicalismo que busca negar todo

acúmulo de conhecimento científico que se desenvolveu no Ocidente, mas de salientar que

partimos aqui de uma problematização da construção da ciência dentro da modernidade europeia,

que não a reconhece como neutra e objetiva. Daí nosso lócus de enunciação ser a América Latina,

não apenas numa perspectiva desse ser nosso “ponto de vista”, mas do reconhecimento que é

Page 22: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

20

desse ponto de vista da construção da História que nos situamos, junto às Outras histórias e aos

Outros sujeitos silenciados pela ciência moderna.

Daí, pensar uma pesquisa com sujeitos que historicamente tiveram sua cultura e suas

identidades silenciadas requer, necessariamente, um esforço para não repetirmos processos

históricos de construção do saber científico que perpetuam o silenciamento desses sujeitos. O

Outro, em nossa pesquisa, se materializa nos estudantes do curso de Licenciatura em Educação

do Campo (Le Campo). Sujeitos que vivem e moram do e no campo, e que buscam outra

apropriação desse lugar e das suas histórias, resistindo ao olhar construído pela modernidade

europeia, que insiste na tentativa de colonizar os sujeitos campesinos frente aos ideais da

construção de uma única forma de sociedade pautada no progresso, na lógica do capital e do

saber científico como superior.

Como descrito por Smith (2016), é necessário descolonizar as metodologias nas

pesquisas. Isso equivale a repensar esses sujeitos e seus lugares na História oficial, trazendo suas

resistências, práticas e o direito a saberem-se sujeitos históricos, mas não apenas isso; também

se torna necessário que as pesquisas possibilitem melhoras às condições de vida desses sujeitos.

Reconhecemos que é necessária grande atenção ao pensar nesse último ponto proposto

por Smith. Por vezes, a melhora da vida dos sujeitos através das pesquisas está associada à noção

de que o pesquisador “dá voz” a esses sujeitos. Entretanto, assim como descrito por Spivak

(2010), partimos aqui da noção de que esses sujeitos sempre falaram e resistiram, sempre tiveram

“voz” própria, sem precisar que outro a concedesse. Acreditamos que nossa ação como

pesquisadores, que almejam contribuir, por meio dessa pesquisa, para melhorar as condições

desses sujeitos, está vinculada, primordialmente, ao ouvir. A escuta, aprendida no ethos oriental,

permite conhecer o Outro através de uma postura de silêncio. Não um silêncio de indiferença,

mas aquele que reconhece que, por não sabermos nada do outro como Outro, nos resta a escuta

atenta do que ele tem a nos dizer e a demonstrar de seu mundo.

Entretanto, a escuta desses sujeitos se dá mediada pela ocupação que eles fazem do espaço

acadêmico em um curso de nível superior. Assim, nossa atenção se volta para analisar o curso de

formação de professores para o campo a partir de uma perspectiva de análise decolonial,

buscando evidenciar a forma como as suas estruturas de produção de conhecimento estão

articuladas ao processo da colonialidade e decolonialidade, buscando compreender como esses

sujeitos que estão no curso se apropriam dele.

A escolha pela instituição da UFMG para o desenvolvimento dessa pesquisa se deu por

entendermos que ela atenderia aos pontos propostos, uma vez que a universidade é considerada

Page 23: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

21

referência nacional na área da educação do campo, além de já apresentar quantidade substancial

de conteúdo acadêmico sobre a temática3.

Frente às inquietações das relações eu/Outro na produção do conhecimento acadêmico,

a nossa concepção sobre o que é uma pesquisa não pode, portanto, se distanciar das relações entre

o pensamento e ação, mesmo que se reconheça que a pesquisa é uma prática teórica. Nossa

definição sobre o conceito de pesquisa se alicerça em Minayo, quando nos diz que

(...) nada pode ser intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar,

um problema da vida prática. As questões da investigação estão, portanto, relacionadas

a interesses e circunstancias socialmente condicionadas. São frutos de determinada

inserção na vida real, nela encontrando suas razões e seus objetivos. (2000, p. 16) Para desenvolvermos a pesquisa, optamos pela abordagem qualitativa, por

compreendermos que ela nos possibilita visualizar e analisar a realidade social no campo

educacional, em específico, e nos ajuda a desvelar os significados, valores e atitudes que estão

presentes no mundo dos sujeitos pesquisados.

Conforme descrito por Bogdan e Bilken (1994), os estudos qualitativos são marcados pela

presença dos investigadores nos locais de estudo, porque se preocupam em observar o ambiente

da ocorrência dos fatos. Os dados recolhidos

Na sua busca de conhecimento, os investigadores qualitativos não reduzem as muitas

páginas contendo narrativas e outros dados a símbolos numéricos. Tentam analisar os

dados em toda a sua riqueza, respeitando, tanto quando possível, a forma em que estes

foram registrados ou transcritos. (p. 48, 1994)

Algumas características, ainda segundo Bogdan e Biklen (1994), são centrais à

construção de uma pesquisa qualitativa. Nem todos os estudos qualitativos são marcados por

darem a mesma importância a distintas categorias, mas a graus diferentes. Assim, o pesquisador

quando está em campo observa a tudo com olhar de estranhamento, questionando sempre o

porquê de as coisas estarem ordenadas de uma determinada forma e não de outra. As

características mencionadas em sua obra são:

1. Na investigação qualitativa a fonte direta de dados é o ambiente natural,

constituindo o investigador o instrumento principal.

2. A investigação qualitativa é descritiva.

3. Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que

simplesmente pelos resultados ou produtos.

4. Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva.

5. O significado é de importância vital na abordagem. (BOGDAN, BIKLEN, p.47-

50, 1994)

3 É notória a importância da produção teórica de Miguel Arroyo e Antunes-Rocha na discussão sobre Educação do

Campo no país.

Page 24: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

22

Sendo o ambiente natural a fonte direta de dados, optamos por nos aproximar do curso

realizando observações. Num primeiro momento, elas se deram de forma assistemática, buscando

nos situarmos nos espaços utilizados pelos alunos, e estabelecer conversas informais com

monitores e estudantes de variadas turmas e períodos, além de nos aproximarmos de alguns

alunos nos intervalos entre as disciplinas e no horário do almoço, com o objetivo de conhecer

esses sujeitos e seu cotidiano escolar.

A observação foi realizada em dois momentos distintos: o primeiro momento foi em uma

disciplina ofertada de forma conjunta a todas as habilitações do Le Campo, denominada

“Processo de Ensino Aprendizagem”. Nesses momentos, a observação ocorreu de forma

assistemática, devido à pluralidade de situações. O segundo momento de observação aconteceu

na observação feita, em sala de aula, de uma disciplina específica, ofertada à turma da habilitação

em “Literatura, Artes e Linguagem” (LAL) no quinto período. Houve uma preocupação em

realizar uma observação sistemática dos sujeitos que compunham aquela turma, e de perceber

como os conhecimentos trazidos pelo professor junto à disciplina eram trabalhados em sala de

aula.

O processo da escolha das disciplinas se deu inicialmente a partir da leitura do título das

disciplinas ofertadas naquele TE nas quatro habilitações oferecidas no curso4. Pelo nome das

disciplinas, descartamos aquelas que pareciam verticalizar o conteúdo específico de sua área de

formação, uma vez que buscávamos uma disciplina que enfatizasse os aspectos da formação de

professores, educação do campo e o conhecimento a ele veiculado.

Ao termino da seleção, ficamos em dúvida entre duas disciplinas, ambas ofertadas na

habilitação em Letras, Artes e Literatura (LAL): a disciplina “Educação e Trabalho” e a disciplina

“Educação, conhecimento e cultura”. Busquei, junto à secretaria do curso, a ementa de ambas as

disciplinas, para melhor compreendê-las. Ressaltamos que não tivemos acesso aos planos de

ensino das disciplinas, mas a um quadro que as listava seguidas pelas suas ementas. Observamos

que a primeira tinha uma carga horaria total, somada TE e TC, menor que a segunda,

respectivamente 45h e 60h. E tivemos ciência das seguintes ementas

EDUCAÇÃO E TRABALHO: O processo histórico de construção das condições de

sobrevivência. Trabalho no campo. A relação educação e trabalho; Educação

profissional; trabalho docente e saúde.

4 Ciência da Vida e da Natureza (CVN), Línguagens, Artes e Literatura (LAL), Ciências Sociais e Humanas (CSH)

e Matemática..

Page 25: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

23

EDUCAÇÃO, CONHECIMENTO E CULTURA: A diversidade epistemológica do

mundo da construção de procedimentos às estratégias de legitimação. Ciências,

discurso e poder. Ciências naturais e sociais, comprometimento com o sentido coletivo

da vida e responsabilidade com o mundo. (Grifos nossos)

Dentro das propostas apresentadas, chamou-nos a atenção a que se relaciona à disciplina

“Educação, Conhecimento e Cultura”, por trazer a relação com o conhecimento e suas estratégias

de legitimação, traço que se aproxima das indagações trazidas pela colonialidade do ser e do

poder, além de trazer proposições de um sentido das ciências naturais e sociais a partir de um

sentido de coletividade. Assim, interessou-nos saber como essas proposições se desenvolviam na

prática, na relação com os teóricos e nas interações do espaço escolar.

Posteriormente, incluímos a disciplina “Processo de Ensino-Aprendizagem” por ser

diferente das outras comumente ofertadas em cursos de formação de professores: seu objetivo,

de acordo com a ementa, é promover a articulação entre o TE e o TC, da seguinte maneira

Fazer a discussão teórica e vivência prática da organicidade, por turma, por tempo-

escola e tempo-comunidade. Organização em Grupos de Trabalho. Apropriação teórica

de conceitos relativos à organização e processos grupais, engajamento social e

lideranças.

Assim, apostamos que essa disciplina tinha potencial para trazer uma concepção de

produção de conhecimento e de formação de professores vista “de baixo para cima”, estimulando

processos coletivos e avaliativos do curso e de reflexões sobre a teoria e a prática na formação

docente, rompendo com a verticalização moderna que traz a hierarquização dos saberes

acadêmicos como superiores e buscando uma relação pautada na ação e engajamento social

desses sujeitos futuros educadores.

As percepções e impressões obtidas no período da observação em campo foram

registradas em um caderno de campo que se tornou fonte valiosa de impressões, no qual me

ocupava em descrever as características e especificidades das falas dos educandos do curso em

seus momentos de discussão em sala de aula, além de poder tomar nota das percepções dos

educandos das outras turmas junto à disciplina transversal.

A escrita neste caderno se desenvolveu a partir de rigorosa descrição das situações

observadas. Num primeiro momento, elas eram realizadas de forma concomitante à observação,

entretanto, como a disposição das carteiras em sala de aula se apresentava em círculo, minha

presença era sempre notada, assim como minhas anotações. Depois de alguns comentários de

educandas da turma, em tom cômico, dizendo: “Quero ler esse caderno seu hein?!” e “Nada

escapa da escrita dela gente, vocês viram isso?” (Caderno de campo dia 12 de junho de 2016),

Page 26: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

24

percebi ser menos elucidativo de minha presença fazer as anotações apenas de pontos centrais ou

a escrita de palavras-chave em sala de aula e, posteriormente, ao término da observação passava

a desenvolver os pontos anotados. Diferentemente, na disciplina Processos de ensino

aprendizagem, era possível tomar notas de forma simultânea à observação sem que isso

destacasse minha presença, devido principalmente à quantidade de alunos presentes.

A entrevista na pesquisa qualitativa ganha visibilidade. Afinal, por meio dela, é possível

compreender como os sujeitos pesquisados se colocam frente às situações, podendo, através de

seus discursos, percebermos como essas relações se efetivam. Como descreve Minayo (2010), a

entrevista nada mais é do que uma forma de conversação que, em seu sentido restrito, busca ser

um meio para coleta de informações sobre determinado tema científico.

Minayo (2000) descreve cinco tipos de entrevista, a saber: sondagem de opinião,

semiestruturada, aberta ou em profundida, focalizada e projetiva, entretanto, as mais utilizadas

são as entrevistas semiestruturadas e as abertas (ou não estruturadas). A utilização de uma delas

diz do nível de diretividade que se quer empregar: enquanto a primeira segue um roteiro que

direciona a entrevista, a segunda deixa o entrevistado livre para discorrer sobre a temática que

lhe é apresentada. Como descrito por Ludke e André (1986), a entrevista tem algumas vantagens

sobre outras técnicas, porque permite

[...] a capacitação imediata e corrente da informação desejada, praticamente com

qualquer tipo de informante e sobre os mais variados tópicos. Uma entrevista bem feita

pode permitir o tratamento de assuntos de natureza estritamente pessoal e íntima, assim

como termas de natureza complexa e de escolhas nitidamente individuais. (LUDKE;

ANDRÉ 1986, p.35)

Fizemos a opção de utilizar a pesquisa semi-estruturada, evitando assim uma rigidez que

impossibilite a fluidez da conversa com os sujeitos, viabilizando um campo para novas hipóteses,

além de reconhecermos ser essa a técnica que mais se aproxima das nossas demandas em escutar

o Outro, deixando-o de certa forma livre para compartilhar suas percepções e sentimentos sobre

vários aspectos.

Para a realização da entrevista, elaboramos um roteiro prévio. A entrevista foi realizada

com um professor responsável pela disciplina em que a observação de campo foi realizada.

Optamos por fazer a pesquisa com o professor responsável pela disciplina “Educação,

Conhecimento e Cultura”, por entendermos ser possível verticalizar nossas percepções sobre as

escolhas feitas pelo professor para o desenvolvimento da disciplina, além de podermos dialogar

sobre episódios significativos percebidos no período da observação.

Page 27: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

25

Reiteramos que, na entrevista, buscamos compreender de forma mais geral as percepções

trazidas pelo entrevistado sobre a relação entre a formação dos educadores do campo e o

conhecimento necessário a essa formação. A partir desse questionamento amplo, conduzimos a

entrevista buscando abordar as percepções e as organizações do curso dentro das noções de

colonialidade e de decolonialidade, tendo sido transcritas, posteriormente, pela própria

pesquisadora.

Preocupamos em manter a transcrição fiel à oralidade, por acreditarmos que há nas pausas

no momento da fala e na forma de dizer sobre o assunto pontos significativos para podermos

ouvir melhor esses sujeitos. Preferimos por colocar a simbologia (...) para expressar uma pausa

na fala dos sujeitos e por não utilizar a expressão (sic) quando percebemos alguma diferenciação

na oralidade frente ao padrão da língua formal. A ausência da expressão sic possibilita uma leitura

dos fragmentos analisados de forma mais fluida. Além disso, reconhecemos que a oralidade traz

outras normativas que fogem àquelas expressas pela grafia da forma padrão da língua e que não

necessitam ser marcadas como desvios.

Faltava-nos ainda encontrar um procedimento metodológico para nos encontrarmos com

os sujeitos que faziam parte da turma da LAL/2011. A escolha pela roda de conversa se deu por

percebermos nela um potencial para a interação entre os sujeitos e suas histórias. Assim, a roda

possibilita que as construções de sentidos e percepções sobre o curso e sobre a ocupação desses

sujeitos no espaço acadêmico não sejam percebidas somente a partir do sentido individual, mas

também do coletivo. A conversa realizada em roda não busca consenso, mas a pluralidade de

opiniões, que pode se dar de modo convergente em alguns momentos, complementando os

sentidos percebidos e possibilitando as divergências, sem que isso, reiteramos, oculte os sentidos

individuais atribuídos por esses sujeitos.

Para Almeida (2011), a circularidade da roda pode ser compreendida tanto como um

momento em que há transmissão de saber e conhecimento como um encontro de gerações e

culturas, momento de rememoração histórica.

Neste sentido, a roda é o elemento para a reunião, a proximidade e associação de pessoas

e culturas. A disposição da roda por meio do círculo permite a comunicação entre as

pessoas, o estabelecimento de olhares, identificações a

ações coletivas. A roda demarca o espaço do encontro e da inclusão; nenhuma roda está

fechada em si, sempre pode se abrir para a entrada de mais um. (ALMEIDA, 2011,

p.40)

Page 28: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

26

À mediadora coube a responsabilidade de não deixar que alguns sujeitos monopolizassem

o debate, criando um ambiente de escuta das diferentes vozes e experiências daqueles que ali

estavam.

A roda de conversa foi realizada na FaE, no espaço de sala de aula, e foi marcada com

antecedência para que fosse possível ter a participação de um significativo grupo de educandos,

durando aproximadamente 1h e 15min.

Realizamos um quadro para apresentar de forma sintética os sujeitos que participaram da

roda de conversa.

Pseudônimo5 Idade Estado Civil Já

lecionou

Tempo

de

docência

Disciplina Turmas Localidade Município

Ana 31 União Estável Não - - - Área rural Icaraí de

Minas

Lira 26 Solteira Não - - - Área rural Icaraí de

Minas

João 20 Solteiro Não - - - Área rural

Ouro

Verde de

Minas

Gabriela 20 Solteira Sim 6 meses

Língua

Portuguesa

e Redação

6º ao 9º

ano Área rural

Rio Pardo

de Minas

Pedro 22 Solteiro Sim 18 meses

Língua

Portuguesa

e Redação

6º ao 9º

ano Área rural

Rio Pardo

de Minas

Júlia 23 Solteiro Não - - - Quilombo

Ouro

Verde de

Minas

Felipe 25 Solteiro Sim 1 mês

Língua

Portuguesa

e Redação

6º ao 9º

ano Quilombo

Rio Pardo

de Minas

Bianca 28 Casada Sim 36 meses

Arte e

Língua

Portuguesa

6º ao 9º

ano

Área

indígena

São João

das

Missões Fonte: nossa pesquisa

Houve um convite geral aos educandos da turma para participarem da roda de conversa,

tendo comparecido no dia oito alunos. O perfil dos presentes foi diverso, principalmente se

5 Foi solicitado para que os sujeitos que escolhessem um pseudônimo. Os que não escolheram deixaram a cargo da

pesquisadora a escolha.

Page 29: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

27

observadas as faixas etárias, seu tempo de atuação como educadores e as suas a diversidade de

localidades de moradias no meio rural.

Para analisarmos a roda de conversa criamos quatro categorias de análise fundamentais,

a partir das respostas dos sujeitos pesquisados, e apresentamos as aproximações e

distanciamentos que percebemos junto aos teóricos decoloniais. Analisamos as relações entre os

sujeitos do curso e sua institucionalização; buscamos analisar quais os sentidos trazidos por esses

sujeitos de serem educadores do campo; analisamos a alternância pedagógica e a importância da

presença dos movimentos sociais para garantirem a materialidade do curso.

Outra técnica a que recorremos foi a análise documental, para realizamos a análise do

PPP do curso. Segundo Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009), a pesquisa documental é pouco

explorada na área da educação, mas a sua utilização, dependendo do problema que se deseja

trabalhar, é uma técnica muito interessante quando se quer buscar informações documentais.

Mas, o que é documento, afinal? Dentro da escola positivista do século XIX, os

historiadores reconhecem como documento apenas um seleto grupo de documentos escritos e

oficiais. O documento era aquele que guardava o conhecimento histórico, cabendo ao historiador

apenas captar os fatos relevantes e documentais que ali estavam. Nessa visão, não havia uma

problemática sobre a intencionalidade daquele que o analisa e, muito menos, sobre a

subjetividade nele encontradas. Nessa perspectiva, o documento era naturalizado.

Como relata Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009), coube à escola dos Annales, no

primeiro quartel do século XX, modificar de forma significativa essa concepção sobre

documento. Agora este passa a ser problematizado, assim como o sujeito que o manipula. Além

disso, no que tange ao reconhecimento do que é aceito como documento, há uma ampliação: não

são mais somente documentos oficiais, escritos, aqueles que dizem da história, mas iconografias,

objetos do cotidiano, elementos folclóricos e quaisquer objetos que digam do passado, mais

recente ou não.

Consideradas tais reflexões, os documentos por nós utilizados foram o Projeto Político

Pedagógico do Curso e o Plano de Ensino das duas disciplinas observadas. Para tanto,

enfatizamos nossas análises na construção do PPP do curso, na concepção de alternância

pedagógica e na docência multidisciplinar.

Sendo assim, a dissertação se organiza em seis capítulos, sendo o primeiro composto pela

Introdução em conjunto à Metodologia. No segundo capítulo, “A modernidade como matriz da

colonialidade”, apresentamos a crítica decolonial ao conceito de modernidade. Reconhecendo

que os processos de colonização resultam sempre em processos de dominação e uma reação por

parte dos colonizados, apresentamos ambas as facetas da colonização na América Latina.

Page 30: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

28

No terceiro capítulo, denominado “A decolonialidade revisada”, apresentamos os autores

e os conceitos que balizam a nossa pesquisa, com foco nos escritos de Quijano, Dussel e Paulo

Freire. No quarto capítulo, “A proposta de construção do MST sob a perspectiva intercultural e

decolonial”, apresentamos um pouco da história do MST e as lutas empreendidas pelo

movimento para a construção de políticas públicas voltadas para a construção de uma Educação

do Campo. No quinto capítulo, “Formação de professores e o campo”, apresentamos os

paradigmas de formação de professores e, em especial, o vínculo entre a perspectiva crítica e a

proposta de formação de professores para a Educação do Campo.

Por último, apresentamos os dados da pesquisa de campo. Inicialmente construímos um

histórico da construção do LeCampo; em seguida, apresentamos os dados da observação de

campo como os dados da roda de conversa. A dissertação se encerra com as considerações finais,

momento em que buscamos sintetizar a pesquisa e estabelecer reflexões sobre os dados

encontrados.

Page 31: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

29

2 A MODERNIDADE COMO MATRIZ DA COLONIALIDADE

Evidenciar como se deu a construção da matriz colonial de poder dentro da narrativa

totalizadora produzida pela História universal europeia é o passo inicial para se compreender e

analisar as formas de dominação e negação do Outro e de suas histórias, perpetradas pelo padrão

de poder colonial dominador.

Para os teóricos da decolonialidade, especialmente Dussel (1993), é necessário realizar

um “desmonte” das estruturas epistêmicas que produziram a Europa como superior aos demais

povos e culturas, demonstrando que não há um processo de neutralidade que as legitime, mas

uma supremacia dos conhecimentos do grupo que desfrutou da vantagem colonial.

Um dos conceitos centrais para Dussel (2005, 2002) a ser desconstruído é a modernidade.

O autor busca construir outra noção da modernidade que não se restringe à clássica tríade

europeia: Revolução Francesa, Reforma Protestante e Iluminismo.

Assim, a modernidade passa a ser compreendida a partir não de fenômenos intraeuropeus,

mas a partir das grandes navegações, dos processos colonizadores da Ameríndia em 1492.

O encobrimento do Outro, nas palavras de Dussel (1993), e não o descobrimento do Outro

é o que caracteriza esse momento. A Ameríndia passa a ser espoliada para garantir riquezas à

Europa, à custa do silenciamento e da exploração do nativo e do negro feitos, respectivamente,

de servo e escravo, passando a ser utilizados como objeto necessário para a exploração das

“novas” terras.

A modernidade, portanto, inicia-se com o silenciamento, exploração e espoliação do

Outro, o latino colonizado. Essa outra interpretação nos possibilita perceber a falácia da

construção da modernidade como construção endógena europeia e salientar seu momento de

irracionalidade. Ou seja, no projeto racional e emancipador descrito pelos teóricos europeus na

construção de seu conceito de modernidade, há o ocultamento desse momento sacrifical do

Outro, da sua negação enquanto ser humano pela Europa.

Se por um lado a releitura sobre a construção da modernidade nos propicia compreender

como esses processos de encobrimento do Outro se deram, numa tentativa de padronizá-lo dentro

do mesmo europeu, construindo um padrão de mesmidade, também torna possível vislumbrar

como o Outro se organizou e desenvolveu práticas de resistência que enfrentam o padrão de

mesmidade europeia.

Explicitados necessários e centrais pontos históricos que nos ajudam a apreender que os

processos de resistência e de negação do Outro nascem na modernidade, nos dispomos a centrar

nossa escrita nos processos regidos pela colonialidade. Como já dissemos em outro momento, o

Page 32: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

30

findar do processo colonial não equivaleu a uma possibilidade de construção da Outreidade

dentro da América Latina, mas criou outros laços de dominação que estão baseados na

perpetuação do padrão de poder de dominação iniciado na modernidade colonial.

Assim, o projeto neoliberal passa a ser a grande narrativa histórica que parece direcionar

toda a “História” a um único e inexorável lugar. Se a modernidade é construída sobre as bases

de ideias de racionalidade e um único padrão de civilidade, o neoliberalismo reforça esses laços,

porém numa perspectiva de inclusão.

É a partir dos escritos de Walsh (2014) que buscamos analisar como a construção da

Outreidade latina no período da colonialidade sofre com um projeto de inclusão capitalista, que

busca, a partir de uma perspectiva intercultural funcional, trazer o Outro para dentro do Mesmo,

a partir de uma inclusão que seja funcional ao sistema capitalista neoliberal.

O neoliberalismo é aqui compreendido, conforme Lander (2005), não apenas como uma

política/teoria econômica, mas, principalmente, como um discurso homogêneo de base

civilizatória. Há no neoliberalismo uma síntese dos valores necessários ao “bom”

desenvolvimento das sociedades, pautados sob relações com o humano, a natureza, a história, o

progresso, o conhecimento e a “boa vida”. Não haveria, portanto, outras formas, modelos ou

teorias que se colocassem como alternativas a esse modelo hegemônico de vida.

Aos países outrora colonizados, o que lhes cabe é adequarem-se a esse padrão

hegemônico de desenvolvimento para não serem considerados, novamente, atrasados e

incivilizados, frente aos países europeus que já incorporaram esse modelo de desenvolvimento.

O modelo neoliberal se constitui, no senso comum da sociedade moderna ocidental, como a única

possibilidade de desenvolvimento mundial, reescrevendo a história mundial a partir da

centralidade europeia totalizante, numa expectativa de que a História teria nele seu fim.

O neoliberalismo é um excepcional extrato purificado e, portanto, despojado de tensões

e contradições, de tendências e opções civilizatórias que tem uma longa história na

sociedade ocidental. Isso lhe dá a capacidade de constituir-se no senso comum da

sociedade moderna. A eficácia e a hegemonia atual desta síntese sustentam-se nas

tectônicas transformações nas relações de poder ocorridas no mundo nas últimas

décadas. (LANDER, 2005, p. 8)

A modalidade neoliberal traz em si a globalização como fenômeno pujante e recente na

História, por vezes com uma concepção idílica da construção do mundo como uma aldeia global.

Entretanto, segundo Coronil (2005), a globalização atual é uma intensificação do comércio

transcontinental, de expansão do capitalismo e das colonizações mundiais. Na globalização que

Page 33: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

31

vivenciamos com o liberalismo se acentua a polarização, a exclusão e a diferença dos países

centrais em relação àqueles historicamente colonizados.

Não há uma expansão dos centros de globalização neoliberais europeus (antigos

colonizadores) na globalização que vivemos, mas uma implosão, que trouxe os centros de poder

às periferias a elas subordinadas. “Em suma, unifica dividindo. Em vez da reconfortante imagem

da aldeia global, [o neoliberalismo] oferece, de diferentes perspectivas e com diferentes ênfases,

uma visão inquietante de um mundo fraturado e dividido por novas formas de dominação. ”

(CORONIL, 2005, p.50)

Como desenvolvido por Coronil (2005), as características da globalização neoliberal

perpetuam, dessa forma, os processos vivenciados no período da primeira modernidade,

principalmente ao desagregar as histórias dos países das suas relações com o restante do mundo,

fazendo com que as diferenças sejam reconhecidas como hierarquias naturalizadas nos processos

históricos. Entretanto, essas leituras devem ser feitas não mais sob a perspectiva da colonização,

mas de uma colonialidade que se mantem hegemonicamente sob alguns países.

A colonialidade neoliberal, para Santos e Rodrigues-Garavito (2004) se destaca pela

lógica do norte sob o desenvolvimento do sul. “Nortear” o sul é a proposta fomentada por órgãos

estrangeiros como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, para “garantir” apoio

técnico (produzido pelos países do Norte) ao seu “desenvolvimento”.

Por trás do discurso de inclusão, o que se percebe é que as diferenças entre norte e sul

continuam a existir dentro das dicotomias modernas/colonizadoras: os países do norte ainda

“detentores” e “doadores” do conhecimento, do desenvolvimento, do pensar e da vida urbana, ao

contrário dos países do Sul, que detêm a ignorância, o subdesenvolvimento, o aprender a pensar

e a fazer, o ambiente rural e a possibilidade de se incluírem no processo neoliberal. O Outro é

negado novamente em sua alteridade, frente à narrativa mundial neoliberal. O Outro só se

completa e se define quando o Ser Europeu o completa em suas “faltas” e “atrasos”.

Entre os vários grupos que sofreram influência direta das propostas neoliberais, ousamos

dizer que nenhum foi tão acentuado como o campo. O ambiente rural passa a ser sinônimo de

atraso e de um modo de vida que tende ao desaparecimento, diante de uma “inevitável” expansão

da modernização e da modernidade urbana, que privilegia o cidadão (aquele que vem da cidade)

em detrimento do camponês.

O modelo capitalista de agricultura passa a ser aquele que garante a reorganização das

formas de trabalho e de organização da população campesina, possibilitando sua inclusão no

sistema neoliberal, centrando os esforços do campo na importância dos conceitos de “mercado

de trabalho”, “eficiência produtiva” e “individualismo”.

Page 34: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

32

Essa proposta de modernização busca a inclusão daqueles que estavam até então à

margem/excluídos do sistema capitalista. Entretanto, essa inclusão não se realiza a partir do

reconhecimento da alteridade do Outro, mas como uma nova forma de silenciá-lo dentro do

projeto de Mesmidade capitalista. A busca pela manutenção da hegemonia e da suposta

neutralidade neoliberal trouxe a inclusão desses sujeitos como uma “espontaneidade” do sistema,

desprovido de disputas de poder e de fronteiras políticas.

Um dos conceitos centrais que permeiam nossa escrita será o lócus de enunciação.

Segundo Mignolo (2005), o que se problematiza na escrita não é apenas o conhecimento

produzido como um saber parcial, mas a importância de se afirmar a impossibilidade de

desvinculação do sujeito da enunciação com seu lugar epistêmico.

Portanto, nosso lugar de enunciação epistêmica é aquele que se coloca na defesa da

pluriversalidade. Situamos nossa escrita dentro da lógica do sujeito Outro colonizado, latino

escrevendo a partir de uma geopolítica que, nas palavras de Eduardo Galeano (2016), sofreu com

a divisão internacional do trabalho. Em outras palavras, enquanto alguns países se especializaram

em ganhar, a América Latina se especializou em perder, desde o período do Renascimento,

quando os europeus “se aventuraram pelos mares e lhe cravaram aos dentes na garganta”

(GALEANO, 2016, P. 17).

2.1 A Modernidade em Dussel

É central, não só à escrita de Dussel (1993,2005), mas a toda a concepção decolonial, a

problematização da modernidade. A hegemonia da História universal europeia está imbricada a

uma proposta de desenvolvimento e de progresso ilimitado relacionado ao capitalismo. Este

último, gestado nos países do centro (antigas metrópoles, principais beneficiadas do ouro e da

prata da América Latina), é direcionado à periferia (antigas colônias exploradas), a uma

imposição europeia que gera a “impossibilidade” e “inexistência” de qualquer outra civilização

que não aquela gestada pela burguesia europeia. O Outro, o oprimido, é colocado à margem do

projeto capitalista, “desnudado” de história, epistemologia e de um projeto alternativo capaz de

lhe proporcionar a dignidade. (ZANARDI, 2013).

A construção da modernidade é aqui entendida como uma amálgama entre os processos

de colonização, colonialidade e de consolidação do capitalismo. A importância da modernidade,

como Wallerstein (1974) descreve, está em ser grande estrutura de compreensão da sociedade,

precedida apenas pela revolução neolítica.

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33

O autor que nos apoiamos para dissertar sobre a centralidade da problemática moderna é

Dussel (2002; 1993). Nele, a problemática central está em conceber quando a modernidade se

iniciou, e a partir de quais situações históricas. Segue-se daí duas concepções: a primeira é

denominada eurocêntrica, uma vez que todos os esforços para a análise desse fenômeno se

encerram na Europa. A segunda, denominada modernidade subsumida, entende os processos

mais amplos aos quais se vincula a modernidade, a partir de dois momentos históricos: o século

XV, com a colonização da América Latina e o século XVIII, com a consolidação do capitalismo

na Europa.

A primeira concepção é contemplada exclusivamente por processos endógenos à Europa.

Assim, a modernidade é tida como o ápice do desenvolvimento da racionalidade europeia e,

portanto, comprovação de sua superioridade. “La Modernidad es una emancipación, una “salida”

de la inmadurez por un esfuerzo de la razón como proceso crítico, que abre a la humanidad a un

nuevo desarrollo del ser humano. Este proceso se cumpliría en Europa, esencialmente en el siglo

XVIII.” (DUSSEL, 1993, p. 48)

A essa perspectiva, conforme descrito por Weber, representante do pensamento

eurocêntrico, pode-se questionar quais foram os fatores que fizeram repousar exclusivamente

sobre a Europa essa centralidade.

Alguém que seja produto da moderna civilização europeia, ao estudar qualquer

problema da História universal, estará sujeito a indagar a si próprio sobre a combinação

de circunstâncias a que deveria ser atribuído o fato de que na civilização ocidental,

surgiram fenômenos culturais que (como gostamos de pensar) repousam em uma linha

de desenvolvimento que possui significância e valor universal. (DUSSEL, 2013, p. 13)

Segundo Escobar (2005), recorrentemente são mencionadas dimensões históricas,

sociológicas, culturais e filosóficas para explicar a modernidade a partir da sua concepção como

um processo endógeno às transformações europeias. Historicamente, suas origens estariam

centradas no século XVII, na Europa do Norte, e teriam como grandes eventos que a envolvem:

a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Entretanto, é no final do século

XVIII, com a Revolução Industrial, que se tem o ápice da modernidade, quando se consolidam

os aspectos do conhecimento científico-racional ao desenvolvimento do capitalismo.

Sociologicamente, a modernidade se atem à criação de instituições, como o Estado Nação, e a

uma nova relação de temporalidade e localidade, pelas quais as histórias das regiões que não são

europeias passam a ser apenas “histórias locais”, em detrimento da grande narrativa universal

ontológica europeia.

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34

Já os aspectos culturais são baseados numa crescente racionalização do mundo/vida.

Posteriormente, as formas de conhecimento passam a se associar ao capital e aos aparatos

administrativos do Estado criados pelo modelo europeu. Por último, sua base filosófica: o

“homem”, sujeito abstrato, passa a ser reconhecido como fundamento de todo o conhecimento

do mundo, passando a ser o único sujeito superior e não mais a natureza ou o divino. O

conhecimento se desenvolve junto a esse único sujeito do conhecimento, frente às suas análises

e verificações sobre os objetos de estudo.

Para teóricos como Dussel (2003, 2005), Quijano (2005), Mignolo (2005), entre outros,

há nessas dimensões uma essencialização da modernidade, que excluiu dela todas as outras partes

do mundo. Daí a necessidade da construção de outro conceito de modernidade, que abarque

outras regiões do mundo numa dimensão planetária:

Ou seja, empiricamente nunca houve História Mundial até 1492 (como data de início

da operação do Sistema-mundo). Antes dessa data, os impérios ou sistemas culturais

coexistiam entre si. Apenas com a expansão portuguesa desde o século XV, que atinge

o extremo oriente no século XVI, e com o descobrimento da América hispânica, todo o

planeta se torna o lugar de uma só História Mundial. (DUSSEL, 2005, p. 27)

A totalidade construída pela narrativa moderna europeia só passa a ter sentido a partir da

dominação e espoliação dos Outros, provocando a barbárie juntos aos povos colonizados para

garantir ouro e prata, necessários para o desenvolvimento do capitalismo na Europa.

A segunda concepção da modernidade, denominada subsumida, diz que há, junto ao

“nascimento” da modernidade, um processo de mundialização, de vinculação planetária, que se

desenvolve junto com a colonização.

Dentro dessa lógica, a modernidade é dividida em dois momentos. Seu primeiro momento

é iniciado no século XV e está centrado nas relações da modernidade hispânica, humanista e

renascentista com a construção do sistema inter-regional mediterrâneo e muçulmano. O segundo,

iniciado no século XVII, está centrado em Flandres e no gerenciamento do sistema-mundo pela

Europa.

O primeiro momento dessa modernidade, segundo Dussel (2002), ocorre quando a

Europa, ao encobrir o Outro, e não o “descobrir”, coloniza-o, controla-o, vence e violenta-o. O

segundo momento se relaciona com a consolidação do desenvolvimento capitalista na Europa,

possibilitada a partir da espoliação do ouro e da prata através da exploração do Outro, o

colonizado latino.

Perceber a modernidade a partir de uma dialética planetária traz modos diferentes de

organização do tempo histórico do que aquele produzido pela periodização clássica da

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35

historiografia. Essa periodização clássica é caracterizada por Dussel como uma “divisão

‘pseudocientífica’ da história, ideológica e deformante”. (DUSSEL, 2002, p. 51).

A busca de Dussel ao criar esses modelos reside em retirar a centralidade helenocêntrica

ou eurocêntrica da História, modificando a lógica da discussão filosófica da sua atual

centralidade euro-norte-americana. Assim, o autor lança mão de textos míticos de todas as

culturas da história da humanidade para formar os Estágios ético-políticos pré-modernos. Esses

estágios são compostos por três grandes momentos e se propõem a organizar o mundo em grandes

sistemas, anteriores à construção do sistema-mundo: o estágio Egípcio-mesopotâmico, que tem

início no IV milênio a.C.; o estágio Indo Europeu, que se iniciou no século XX a.C. e, por último,

o modelo Asiático-afro-mediterrâneo, que se desenvolveu a partir do século IV d.C.

O primeiro estágio abarca as regiões que levam o nome do estágio, ou seja, Egito e

Mesopotâmia, e apresenta-se como o período da ocupação do planeta. O segundo período, cujos

limites estão entre a China e o Mediterrâneo, conta com a inserção, após o século IV a.C., do

mundo helênico. Esse é o período mais estudado nos espaços acadêmicos atualmente, pois

abrange o período denominado “Antiguidade Clássica” da periodização histórica clássica. O

terceiro estágio se estende da China à Europa Ocidental à oeste e à África bantu ao sul, tendo

como centro as conexões comerciais. A partir do século VII d.C. destaca-se a cultura do mundo

muçulmano, além das Índias com comércio de especiarias.

Em conjunto a esses três grandes estágios ético-políticos, deve-se ressaltar que Dussel

(2002) também descreve a existência de um sistema meso-americano e inca. Devido à forma

brutal da colonização europeia sobre esses povos, não foram guardados documentos que

possibilitassem resgatar de forma sistemática suas histórias e formas de organização anteriores

ao período da colonização. Entretanto, já existem alguns estudos arqueológicos em

desenvolvimento que, segundo Dussel (2002), nos possibilitam chegar à conclusão da existência

de mais de um modelo ético-político no continente ameríndio antes de 1492.

O que Dussel (2005) nos possibilita compreender, a partir dessa nova organização, é a

fragilidade teórica da construção da modernidade em sua forma eurocêntrica. Afinal, o continente

europeu, localizado no estágio Indo-europeu, não possuía nenhuma centralidade econômica ou

cultural, antes de 1492, devido à abrangência e a importância dos comércios desenvolvidos no

estágio Asiático-afro-Mediterrâneo.

A Europa latina é uma cultura periférica e nunca foi, até este momento, “centro” da

história; nem mesmo com o Império Romano (que por sua localização extremamente

ocidental, nunca foi centro nem mesmo da história do continente euro-afro-asiático). Se

algum império foi o centro da história regional euro-asiática antes do mundo

muçulmano, só podemos referir-nos aos impérios helenistas, desde os Seleusidas,

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Ptolomaicos, Antíocos, etc. Mas, de qualquer modo, o helenismo não é Europa, e não

alcançou uma “universalidade” tão ampla como a muçulmana no século XV. (DUSSEL,

2005, p.26)

Cercada geograficamente pela presença turco-otomana, que a impedia de comercializar

diretamente com as Índias, Portugal e Espanha, dentro de suas privilegiadas posições geográficas

para o Atlântico, passam a buscar rotas alternativas para evitar pagar as altas taxas alfandegárias

da comercialização das especiarias e conquistar as Índias. A conquista e exploração de novas

rotas possibilitariam um novo desenvolvimento econômico não só a esses países, mas a todas as

regiões que se encontravam no sistema Indo-europeu.

A busca por novas rotas levou à exploração e conquista de terras desconhecidas. Dessa

conquista, segundo Dussel (2002), Portugal e Espanha obtiveram uma “vantagem comparativa”

inexistente no século XV. A colonização da Ameríndia possibilitou o acúmulo econômico

necessário de capital à Europa, através das 18 mil toneladas de prata levadas da América Latina

entre 1503 e 1660. Entretanto, como descrito por Galeano (2016), Portugal e Espanha tinham a

vaca, mas não tinham o leite: todo o seu avanço econômico advindo da exploração produziu

rendosos lucros à Inglaterra e França, que, posteriormente, viriam a liderar o centro do sistema-

mundo.

O sistema-mundo, como descrito por Wallerstein (1974), é um sistema que se inicia com

a exploração da América Latina e se perdura com a exploração de outras regiões, feitas de

coloniais, no continente asiático. Nascem assim relações econômicas mundiais centradas na

Europa, que tornam os demais locais do mundo periféricos e silenciados em relação às suas

formas de organização culturais e econômicas. Os interesses do capital europeu colonizam as

formas de organização das populações e suas riquezas naturais.

A construção do sistema-mundo não diz da ligação de todo o mundo, mas da criação de

um sistema mais amplo do que as unidades políticas juridicamente definidas até então. Segundo

Wallerstein (1974), esse sistema nasce no século XV e princípios do XVI podendo ser chamado

também de economia-mundo, por ser o fator econômico responsável por traçar ligações básicas

entre as diferentes regiões, embora também se reconheça a importância dos aspectos culturais e

políticos. Segundo Wallerstein, o sistema-mundo

Era uma espécie de sistema social que o mundo ainda não conhecera realmente antes e

que constitui a característica distintiva do sistema mundial moderno. Era uma entidade

econômica, mas não política, ao contrário dos impérios, cidades-estados e nações-

estados. De facto, ela continha precisamente dentro dos seus limites (é difícil falar de

fronteiras) impérios, cidades-estados e ‘nações-estados’ em ascensão.

(WALLERSTEIN, 1974, p. 25)

Page 39: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

37

É somente dentro deste contexto de relações de construção do sistema-mundo, no qual a

centralidade do Mediterrâneo é abandonada pela centralidade das relações de dominação

estabelecidas pelos europeus na América Latina, que se pode pensar na concepção de

Modernidade subsumida. Ou seja, não há um sistema independente de “produção” da

Modernidade no século XVIII pela Europa. Há um processo que, financiado pela burguesia

comercial burguesa europeia, ao buscar sua expansão comercial pelas navegações, passa a

colonizar e expropriar riquezas da região da Ameríndia. Esses processos garantem a derrocada

do Antigo Regime pelo fortalecimento da burguesia, com a acumulação de capital necessário ao

desenvolvimento do capitalismo, e possibilitará a centralidade europeia na gestão do sistema-

mundo que a partir daí se constituirá.

A abordagem de Modernidade que assume criticamente a presença do Outro dentro desse

processo, excluindo a totalidade europeia de toda essa centralidade explicativa dos processos, é

assim definida por Dussel:

(...) não é um sistema independente, autopoiético, auto-referente, mas é uma ‘parte’ do

‘sistema-mundo’: seu centro. A modernidade, então, é uma ‘parte’ do ‘sistema-mundo’;

seu centro. A modernidade, então, é um fenômeno que vai se mundializando;

começando pela constituição simultânea da Espanha com referência à sua ‘periferia’ (a

primeira de todas, propriamente falando, a Ameríndia: o Caribe, o México, o Peru).

(DUSSEL,2002, p.52)

Somente a partir da formação da América Latina como primeira “periferia” desse sistema-

mundo que se compreende a modernidade. Entretanto, esse sistema se mundializa ao longo dos

séculos. No século XVI as áreas centrais passam a ser Espanha, Holanda, Inglaterra e França, e

a crescente periferia passa a ser composta pela Ameríndia, Brasil e as costas africanas de

escravos. Já no século XVII temos a Costa da África, Ásia e a Europa oriental como regiões

periféricas, e no século XIX o Império Otomano, Rússia, alguns reinos da Índia, Sudeste Asiático

e a África continental. (DUSSEL, 2002, p. 52)

O conceito de modernidade ao qual aderimos nessa pesquisa, não parte, portanto, da

noção de que foram os processos históricos acumulados pela Europa ao longo do feudalismo que

possibilitaram sua centralidade. Nossa defesa está em um fator externo. Será, portanto, a

conquista e a colonização da América Latina a responsável por proporcionar vultosos lucros à

economia não só de Portugal e Espanha, mas de toda a Europa, que propiciará o desenvolvimento

do sistema-mundo e da centralidade da Europa nesse sistema.6

6 Dussel (2002) também relata da impossibilidade de ser os conhecimentos europeus aqueles que fizeram com que

ela se colocasse como central, uma vez que a China e o mundo otomano-muçulmano também obtinham rico

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38

Nessa perspectiva, Dussel (2002) compreende que há um processo de conquista, nesse

primeiro momento, caracterizado pela construção do sistema-mundo e da colonização, porque

ainda existem traços de aproximação com o antigo sistema inter-regional. Já no segundo

momento, datado do século XVIII, já se apresenta a centralidade da Europa, o sistema-mundo já

tem como política econômica o capitalismo e a Europa como sua condutora.

Assim, o que seria reconhecido pelo modelo eurocêntrico de modernidade como

racionalização ontológica europeia, é abordado por Dussel (2002) como a racionalidade para

gestar e garantir as exigências de eficácia e de gestão do sistema-mundo realizados pela Europa

a partir do século XVII, assegurando que o paradigma do sistema-mundo moderno se

consolidasse como a “única grande narrativa” possível aos demais países do mundo.

A racionalidade, pautada pelos ideais de liberdade e emancipação individuais, seria o

caminho a essa narrativa universal, devendo ser percorrido por todos os povos, principalmente

os colonizados, para saírem da barbárie e da maldade que os “incivilizava” e irem em direção à

civilidade.

Como descrito por Zanardi (2012), a razão iluminista, instrumentalizada pela burguesia

com base nos ideais liberais, teve como objetivo a construção de um único modo de vida, pautado

pela construção de um mundo único. A pluralidade não é incorporada a esse projeto, mas há uma

preocupação com a inclusão dos outros sujeitos a esse projeto através do consumismo e da

exploração e opressão do homem pelo homem.

O mito da modernidade é, segundo Dussel (2002), suprimido desse discurso, como forma

de ocultar o momento irracional do projeto de racionalidade iluminista. Ou seja, é ocultado que

para que a Europa ocupasse a centralidade do sistema-mundo; a colonização do Outro Ameríndio

resultou em processos de aniquilamento do Outro. O genocídio praticado contra os povos nativos

não pode ser concebido pela História Universal como algo “necessário” ao desenvolvimento da

modernização, mas como parte do ato irracional e ocultado pela racionalidade europeia iluminista

burguesa. Assim, a modernidade não se apresenta exclusivamente como racional:

Se a modernidade tem um núcleo racional ad intra forte, como “saída” da humanidade

de um estado de imaturidade regional, provinciana, não planetária, essa mesma

Modernidade, por outro lado, ad extra, realiza um processo irracional, que se oculta a

seus próprios olhos. Ou seja, por seu conteúdo secundário e negativo mítico, a

“Modernidade” é justificativa de uma práxis irracional de violência. (DUSSEL,2005,

p.28)

conhecimento acumulado, inclusive sobre navegações. Não há uma impossibilidade de factibilidade empírica.

Também em Wallerstein (1974) é encontrada essa discussão.

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Esse momento irracional em seu ápice traz a práxis da violência e do genocídio dos povos

e de suas culturas tidas como inferiores pela racionalidade dominadora eurocêntrica, que

privilegia o conquistar e o dominar em detrimento da escuta e do reconhecimento da alteridade

do Outro.

2.2 O Mito da Modernidade e o Silenciamento do Outro

Para abordar a relação que a Europa teve com o Outro, Dussel (2002) lança um olhar

apurado e comparativo entre o ethos grego e o ethos semita, como forma de compreender o modo

como se desenvolveu a colonização a partir de uma prática de conquista, dominação, espoliação

e negação do Outro.

A perspectiva do ethos semita se constrói a partir de uma “Metafísica da Alteridade”,

concebendo o Outro como uma totalidade própria. Como observado por Dussel, a cultura semita

vivenciada por beduínos no deserto enfatiza o cultivo do ser humano existente por debaixo de

suas túnicas pelo ouvir e acolher. Ao não se ver o Outro que está por debaixo da vestimenta,

apenas escuta-o e acolhe.

Já o ethos grego se inicia na afirmação de Parmênides “o ser é, o não ser não é”,

construindo um ethos vinculado a uma perspectiva de “ontologia da Totalidade”. Existe um ser

que ontologicamente se basta e este é o próprio grego. Assim, na constatação da existência desse

ser que ontologicamente se completa, encontra-se o ser que não se completa e que, portanto,

necessita ser completado. Assim, a perspectiva grega centra-se na noção de conquistar o Outro.

Para Dussel (2002), a Europa tomou para si a totalidade do ser construindo sobre a

filosofia grega seu alicerce, dando-lhe o direito de expurgar do Outro aquilo que a seus olhos era

considerado bárbaro/incivilizado. O não ser, nessa perspectiva europeia, apresenta-se como os

inúmeros Outros existentes na colonização, que necessitam ser “libertados” de sua ignorância

pela totalidade daquele que é o Ser. Assim, enquanto o ethos semita privilegia a escuta, a

perspectiva do ethos grego privilegia o ver e conquistar.

Daí podemos compreender a conquista realizada pela Europa na Ameríndia, privilegiando

a perspectiva do conquistar e dominar que se realizou principalmente em dois grupos: os povos

nativos e os povos trazidos das mais variadas regiões da África, sob condição de escravos.

Maias, Incas e Aymaras passam a ter a sua identidade negada para, ao longo do tempo,

ter uma identidade coletiva, negativa, associada a uma identidade geral: índios. O que também

ocorreu com os povos vindos de várias regiões africanas: todos foram denominados,

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pejorativamente, de negros. Ocultados em seu ser, tiveram suas identidades colonizadas pela

dominação europeia.

A partir da invasão da Ameríndia, Dussel (1993) elenca quatro etapas de dominação: o

momento da invenção, do descobrimento (en-cobrimento), da conquista e da colonização. O

momento da invenção corresponde ao período em que havia a crença de que as terras encontradas

seriam asiáticas. O mundo das ideias renascentistas se concretizava nas buscas de Colombo pela

exploração do Atlântico, configurando a invenção do ser asiático da América, ou seja, esse

momento só existiu no imaginário do povo europeu, questionando a trindade imaginada do

mundo: Ásia, África e Europa.

O período denominado descobrimento do Outro diz do reconhecimento da invenção

daqueles povos como asiáticos e da subsequente negação daqueles povos enquanto Outro. Eles

são negados em sua alteridade, passando a ser em-cobertos e não descobertos. Descobrir, na

perspectiva dusseliana, diz do reconhecendo da existência de terras não conhecidas pelos

europeus, até então, e da necessidade de formular uma nova análise histórica desse momento,

como povos a serem conquistados e colonizados. Nasce a partir desse momento a autonarrativa

europeia como o centro do mundo.

A conquista e a colonização podem ser compreendidas como a práxis da dominação.

Côrtes e Pizarro foram os primeiros conquistadores modernos, impondo violência e o poder do

indivíduo. O poder não estaria mais no coletivo, mas na importância e no poder conferido ao

indivíduo. A colonização se efetiva de forma diferenciada para a mulher e para o homem:

enquanto o corpo da mulher nativa será dominado e escravizado, sendo principalmente utilizado

para o prazer do colonizador, o homem nativo será explorado para a consolidação do capitalismo

mercantil e da necessidade do acúmulo de ouro e da prata. Os corpos dos nativos passam a ser

mão de obra no sistema de Totalidade econômica, o que posteriormente também acontecerá com

o negro africano escravizado. A diversidade foi negada pela totalidade do projeto moderno

europeu, negando o Outro como ser humano e o inserido na totalidade como coisa, como

“encomendado”.

Disso resulta, como descrito por Quijano (1992), uma hierarquização que se baseia na

racialização do Outro. Segundo o autor, os “povos” negros e índios passam a ser concebidos

como raças inferiores e, portanto, negados em sua existência.

O controle das formas de trabalho também foi colonizado. Conforme descrito por Quijano

(2005), negros e índios, respectivamente, passam a ser explorados como escravos e explorados

em regime de servidão, garantindo a produção, apropriação e distribuição dos produtos

espoliados da América Latina e passando a sustentar e organizar toda a produção de mercadorias

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41

para o sistema-mundo moderno. Cria-se assim um padrão de poder baseado no controle do

trabalho, de recursos e produtos que são legitimados pela lógica capitalista de produção mercantil

e do salário.

Para Quijano (2005), abordar a modernidade a partir das noções de avanço, novidade e

do modelo racional-científico de desenvolvimento das sociedades seria o mesmo que admitir que

houve outras modernidades, porque todas as altas culturas (como China, Índia, Egito, Grécia e

Maia-Asteca) demonstram, anteriormente à criação do sistema-mundo, traços inequívocos dessa

forma de desenvolvimento. O traço constitutivo da modernidade é, para Quijano (2005), a criação

de um padrão de poder mundial que se desenvolve a partir do controle do trabalho numa relação

entre capital-trabalho pela Europa, distribuindo na geografia mundial, ou dentro do sistema-

mundo, formas integradas do capitalismo, estando centrada nela todo o controle capitalista.

O notável não é que os europeus se imaginaram e pensaram a si mesmos e ao restante

da espécie desse modo [como superiores] – isso não é um privilégio dos europeus – mas

o fato de que foram capazes de difundir e de estabelecer essa perspectiva histórica como

hegemônica dentro do novo universo intersubjetivo do padrão mundial de poder. (2005,

p.112)

A negação do Outro, sua hierarquização e o controle do seu corpo em favor do

desenvolvimento econômico do projeto burguês europeu fez com que o seu en-cobrimento

resultasse num genocídio ocultado pela narrativa mundial. A expansão da territorialidade

europeia pressupôs a expansão de sua cultura como única, o que a legitimou a matar e a explorar

aqueles que não se submetiam a seu projeto de racionalidade.

A mita é o exemplo mais conhecido de exploração do trabalho pensado na relação de

padrão de poder. Era um sistema de exploração, utilizado na região andina, pelo qual se fazia a

extração de materiais preciosos como ouro e prata. A mita, nas palavras de Galeano, era uma

máquina de triturar índios. “O emprego do mercúrio para extração da prata por amálgama

envenenava tanto ou mais do que os gases tóxicos do ventre da terra. Fazia cair os dentes e os

cabelos, e provocava tremores incontroláveis. ” (GALEANO, 2016, p.67).

Ainda sobre o controle do trabalho na mita, Quijano (2005) nos diz:

O vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da colonização não foi causado

principalmente pela violência da conquista, nem pelas enfermidades que conquistadores

trouxeram em seu corpo, mas porque tais índios foram usados como mão de obra

descartável, forçados a trabalhar até a morte. (2005, p.109)

Segundo Dussel (1993), a negação da alteridade do Outro se desenvolve não como

demonstração da completa irracionalidade do projeto moderno, mas demonstra a limitação da

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“razão emancipadora”. A morte, a exploração e a negação das culturas dos povos da Ameríndia

necessitam ser demonstradas como o ato irracional do mito sacrifical da colonização. É

necessário expor e reconhecer as histórias das vítimas e da negação de sua humanidade: do negro

escravizado, do índio, da mulher: dos Outros colonizados. Nas palavras de Dussel

O outro será a/o outra/o mulher/homem: um ser humano, um sujeito ético, o rosto como

epifania da corporalidade vivente humana; será um tema de significação

exclusivamente racional, filosófico, antropológico. (...) Nesta Ética, o Outro não será

denominado metaforicamente e economicamente sob o nome de “pobre”. Agora,

inspirando-nos em W. Benjamin, o denominarei “a vítima”- noção ampla e complexa.

(2002, p.16-17)

É preciso desvelar, portanto, o que Dussel (1993) denominou de “Mito da Modernidade”.

A pretensa superioridade europeia a legitimou e a “exigiu moralmente” desenvolver os povos

que se encontravam nas periferias do mundo, retirando deles sua “rudez” e sua “barbaridade”,

levando-os ao caminho do desenvolvimento e de sua modernização. Como o Outro se opôs ao

processo de civilização, o uso da violência passou a ser empregado como necessário e legítimo.

Assim, “o moderno” culpa os Outros pelas vítimas causadas e pelo genocídio que ocorreu na

América Latina. Compreende-se, portanto, que é apenas quando se reconhece que a racionalidade

moderna produz a violência e a negação do Outro que se consegue negar o mito civilizatório.

Conforme descrito por Dussel (1993), sete características compõem o mito da

modernidade:

a) A civilização moderna se autocompreende como superior, passando a se legitimar uma

construção eurocêntrica do mundo;

b) A “exigência moral de dominação”: uma vez superior aos povos primitivos, a Europa era

obrigada a retirar da inferioridade os outros povos e conduzi-los ao desenvolvimento;

c) O desenvolvimento mundial é unilinear, sendo o caminho de toda sociedade a

modernização proposta pelo desenvolvimento o Europeu;

d) A oposição ao desenvolvimento trazido pela Europa Moderna aos “povos selvagens” é

pedagógica, e o uso da força se legitima pela superioridade da missão civilizatória;

e) A produção de vítimas nesse processo de dominação possui um sentido “quase ritual de

sacrifício”: o colonizado, o escravo, o africano, a mulher são vítimas de sua própria

resistência frente à bondade do conquistador;

f) Há um papel emancipador na conquista trazido pela modernidade, uma vez que esses

povos poderão fazer parte da superioridade da cultura europeia e do desenvolvimento

trazido pela modernização;

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43

g) Pelas conquistas maiores a serem trazidas com a “civilização” os sofrimentos e sacrifícios

das populações oprimidas são compreendidos como necessários e inevitáveis.

O mito da modernidade é uma grande inversão contada pela Europa. A vítima é colocada

como a responsável pelos processos de silenciamento e de exploração a que foram submetidos,

e o responsável, o colonizador, é considerado o herói.

De acordo com estudos de Quijano (1992,2005), esses processos de negação dos sujeitos

colonizados não se findam junto aos processos de colonização. O padrão de poder se perpetua

em processos de colonialidade, pela qual persistem formas da matriz de poder. Apesar de extenso,

achamos necessária a transcrição da distinção realizada por Quijano

Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado ao Colonialismo. Este

último refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controlo

da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população

determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além

disso, localizadas noutra jurisdição territorial. Mas nem sempre, nem necessariamente,

implica relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo, enquanto

a Colonialidade tem vindo a provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e

duradoura que o colonialismo. Mas foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e, mais

ainda, sem ele não poderia ser imposta na intersubjetividade do mundo tão enraizado e

prolongado. (2009, p. 73)

A colonialidade do poder7 é a imposição de um padrão aos grupos dominados e

subalternizados, seja em função de sua raça, gênero, ou quaisquer outras hierarquias. Esses

padrões, ditados a partir de paradigmas eurocentrados, buscam criar uma cosmovisão

hegemônica e dominadora. Assim, se nos processos de colonização o bárbaro e o incivilizado

eram aqueles que não professavam a mesma fé, língua e cultura dos povos europeus, nos

processos de colonialidade os povos incivilizados são aqueles que não se aproximam do ideal de

racionalidade e de desenvolvimento moderno/capitalista produzido pelo centro Europeu.

Esse(s) Outro(s), que vivem os processos de colonialidade, são aqueles que, dentro do

padrão de poder proposto por Quijano (2005), foram historicamente negados em sua alteridade

e utilizados, assim como suas localidades geográficas, para fornecer ao capitalismo europeu o

capital necessário ao seu desenvolvimento.

2.3 A formação da Outreidade

Como demonstramos até o momento, há um padrão hegemônico imposto pelo centro do

sistema-mundo moderno que, nascido a partir das grandes navegações, consolidou-se entre os

7 Esse conceito será abordado no próximo capítulo no tópico 3.2.1 A colonialidade do poder em Quijano.

Page 46: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

44

séculos XVI e XVIII. A partir desse padrão, temos a negação da alteridade do Outro colonizado,

que foi hierarquizado e oprimido em nome de uma perspectiva evolucionista da história. Em

nome do mito da modernidade, a Europa foi moralmente “obrigada” a retirar os povos nativos

do seu estado de incivilidade e conduzi-los a uma história unilinear e unidirecional de progresso,

ou seja, os povos se modernizariam para ter processo de elevação semelhante ao da Europa

moderna.

Até o presente momento trouxemos apenas como as formas de silenciamento e de

ocultação das histórias Outras se desenvolveram. Apresentar as formas de silenciamento e

dominação são necessárias para desvelar os pontos de ocultamento do outro e romper com o mito

da modernidade. Entretanto, privilegiar a leitura da dominação e do silenciamento é corroborar

a perspectiva da colonização e da colonialidade, não trazendo para o centro do debate aqueles

sujeitos que foram silenciados durante todo o processo.

Daí ser de suma importância ouvir aquelas vozes que, dissonantes ao modelo de

colonização e genocídio do Outro promovido pela Europa, passaram a pensar a partir de outro

lugar. Para tanto, destacamos os escritos de Waman Poma Ayala, que, segundo Mignolo (2008),

é um dos teóricos centrais na abordagem dos processos de colonização na América Latina na

perspectiva do Outro colonizado, além dos escritos do Padre espanhol Bartolomé de Las Casas.

Waman Poma Ayala (1534- 1615) nasceu e foi criado nos Andes, e tornou-se grande

cronista indígena a partir de sua grande obra “Primer ye bun gobierno”. A história narrada pela

perspectiva indígena traz outro olhar sobre a colonização que, segundo Mignolo (2008),

demonstra mais uma vez a importância de uma geopolítica do conhecimento que fuja à escrita

europeia e suas experiências de mundo, possibilitando outras experiências e histórias, vindas do

outro colonizado.

Para Mignolo (2008) e Dussel (2008), é a partir dos escritos de Ayala que se consegue

resgatar as primeiras manifestações do giro decolonial ainda nos séculos XVI e XVII, no texto

escrito no vice-reino do Peru e encaminho ao rei da Espanha Felipe III no ano de 1616.

O giro decolonial é um conceito criado por Mignolo (2008), que pensa as novas formas

de organização, (sejam em teorias econômicas, políticas ou culturais, que se sobressaem à

colonialidade do poder moderno/colonial) nascidas a partir do lugar da colonização. A partir do

giro decolonial se defende a importância de restaurar historicamente a genealogia do pensamento

latino para não ficarmos reféns do pensamento grego romano, tornando possível que outros

lugares de memória colonial se assentem sobre a ferida colonial, rompendo com a lógica de que

os que estão na periferia do sistema-mundo têm a sua história escrita apenas por aqueles que

estão inscritos dentro do centro colonizador.

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45

Segundo Dussel (2008), após três décadas de lutas e resistência indígena, os castelhanos

estabelecem seu poder e instauram o vice-reino do Peru, e é desse período a escrita de Waman

Poma Ayala.

O bom governo, proposto por Ayala, aborda práticas sociais e históricas para a

organização andina da região, sugerindo formas de coexistência entre índios, os castelhanos, os

mouros e os africanos, sem que isso ocasione a destituição do rei da Espanha, Felipe III. Dessa

forma, Dussel (2008, p.180) defende que a proposta de Ayala nesses escritos torna-se um

dramático relato, um protesto crítico contra o colonialismo, sendo um modo de resguardar o que

ainda sobreviveu da organização Inca após a dominação espanhola.

Há uma crítica inicial realizada por Ayala que se estrutura em forma de relato histórico

de base ético-político sobre os grupos de nativos/as, castellanos/as, moros/as, os negros/as,

ressaltando os problemas de cada grupo e as virtudes por ele encontradas. A base teórica que

fundamento o discurso ético-político é o cristianismo, entendendo-o como um argumento lógico-

epistêmico que afeta a conduta humana por trazer critérios para a convivência de todos em uma

sociedade, podendo possibilitar assim a construção de um “bom viver”. (MIGNOLO, 2008)

O diagrama de Tawantinsuyu se constituiria de diagonais de um quadrado: em cada uma

das quatro diagonais haveria um suyus, onde viveria cada um dos grupos. No centro, segundo

Mignolo (2008), estaria o rei Felipe III da Espanha, não para impor sua cultura e seus modos de

organização aos demais suyus8, mas como um elo entre Castela e Tawantinsuyu, que garantisse

aos grupos a sua coexistência de forma intercultural.

8 Suyos são os espaços significativos presentes nas estruturas e nas hierarquias sociais dos Incas.

Page 48: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

46

FONTE: LABASTIDA, 2013.

A última parte de sua obra é destinada à organização sobre o uso da natureza e das relações dela

com o trabalho.

El ritmo de las estaciones, la convivencia en y con el mundo natural: sol, luna, tierra,

fertilidad, agua, runas (seres vivientes que en Occidente se describen como “seres

humanos”) conviven en la armonía del “buen vivir”. Esta armonía es significativa, a

principios del siglo XVII, cuando la formación del capitalismo ya mostraba un

desprecio por vidas humanas desechables (indios y negros, fundamentalmente),

sometidas a la explotación del trabajo, expropiadas de su morada (la tierra en donde

eran), y su morada transformada en tierra como propiedad individual. (MIGNOLO,

2008, p.38)

O que se percebe na escrita de Ayala é uma nova forma de se pensar não só as

organizações políticas, mas uma nova forma de organizar as diferentes formas de organização

cultural a partir de um entendimento do sistema-mundo não pela lógica colonial, mas pelo

pensamento do Outro colonizado.

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Outro autor que escreve sobre outra perspectiva é o padre espanhol Bartolomeu de Las

Casas.9 Apesar desse autor não ser o Outro colonizado, ele se coloca ao lado daqueles que tiveram

suas vidas e formas de organização colonizadas, denunciando a violência injusta e ilegítima

vivenciada pelos povos nativos da América. Como descrito por Dussel, “Bartolomé es el primer

crítico frontal de la Modernidad, dos decenios posterior al tiempo mismo de su nacimiento. Pero

su originalidad no se sitúa en la Lógica o la Metafísica, sino en la Ética, la Política y en la

Historia.” (2008, p.171)

Entretanto, após algum tempo de sua chegada, e constatada as formas de dominação e

massacre que os nativos sofriam, passa a ser uma voz combativa às formas de dominação

utilizadas pelos conquistados espanhóis como Cortez e Pizarro.

Da carta enviada ao Rei Carlos I por Las Casas (2006), o que se percebe é a utilização do

cristianismo para a busca da construção de uma ética que impossibilite a morte e os massacres

aos povos indígenas. Las Casas afirmava ao Rei serem os soldados espanhóis mais bárbaros que

os outros povos: “Ao contrário, nas coisas absolutamente desumanas que fizeram às nações que

subjugaram, superaram todos os outros bárbaros” (LAS CASAS, 2006, s/p.)

Ainda, segundo Dussel (2008), os discursos, cartas e textos proferidos por Las Casas

apresentam três grandes pontos de sua estrutura filosófica que permitem ver o Outro. O primeiro

ponto é o questionamento da superioridade da cultura ocidental, ao buscar demonstrar como a

barbárie provocada pela conquista é mais perversa do que os “erros pagãos” dos povos indígenas.

Outro ponto elencado por Dussel (2008), está na postura de Las Casas em não abrir mão da

pretensão de validade universal do evangelho, mas não subjugar o Outro em nome dessa verdade.

O terceiro ponto está para além da visibilidade que ele tem da falsidade do argumento que

justifica a violência da conquista, mas no reconhecimento do Outro como aquele que merece ser

respeitado.

Assim, o que se percebe em Las Casas como revolucionário é o ouvir e crer no Outro

como condição necessária para a prática da liberdade e da existência no mundo. Ao aceitar o

Outro como Outro, e não tentar encaixá-lo dentro do mesmo, há a possibilidade de um acordo

ético e racional, possibilitando a voluntariedade do Outro mediante reconhecimento de sua razão,

aceitando ou negando novas doutrinas ou uma nova proposta de vida.

9 Nasceu em Servilha, na Espanha, em 1484 e faleceu em Madri, na Espanha, em 1566. Foi um frade dominicano

que chegou ao território latino como encomendeiro, ou seja, detinha permissão do Rei da Espanha para ter alguns

nativos sobre sua responsabilidade para explora-los em troca de catequização. Após algum tempo nas terras recém

conquistadas passou a ser o principal defensor dos nativos contra os abusos dos colonizadores.

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Em um dos debates realizados com Sepúlveda, defensor veemente dos direitos espanhóis

da realização da conquista e da subalternização dos povos nativos da Ameríndia, em Valladolid,

no ano de 1550, Las Casas trouxe pontos de reflexão sobre o Outro que, segundo Dussel (2008),

nos ajudam a forjar o ponto central da modernidade, sendo essa resposta silenciada não apenas

por Sepúlveda, mas, durante grande parte da modernidade.

¿Qué derecho tiene Europa de dominar colonialmente a las Indias? Una vez resuelto el

tema (que filosóficamente refuta convincentemente Las Casas, pero que fracasa

rotundamente en la praxis colonial moderna de las monarquías absolutas y del sistema

capitalista como sistema-mundo) la Modernidad nunca más se preguntará existencial ni

filosóficamente por este derecho a la dominación de la periferia hasta el presente. Ese

derecho a la dominación se impondrá como la naturaleza de las cosas y estará debajo

de toda la filosofía moderna. (DUSSEL, 2008, p.176)

Frente a esses dois escritores que problematizam o direito do Outro a existir dentro da

Modernidade como Outro, e não subsumidos no padrão de mesmidade moderno/europeu, o que

se percebe é que, no momento da primeira modernidade, houve vozes que se colocaram em

dissonância ao projeto de colonização e negação do Outro, entretanto, esses escritos foram

silenciados e colocados à margem do discurso hegemônico.

A modernidade, apresentada sob sua perspectiva eurocêntrica, é o ponto nodal para a

compreensão dos processos do silenciamento do Outro da narrativa da história mundial. A

construção de uma “História” desenvolvida sob a perspectiva única silenciou os Outros sujeitos

e suas histórias, consolidando uma História centrada na “emancipação” e “racionalização”

europeia, e uma história inferior e secundária a essa, formada pelos continentes colonizados.

A colonização, nesse processo de escrita universal, passou a ser vista não como espoliação

e negação do Outro, mas como “benesse” necessária dada pelo colonizador ao desenvolvimento

moral e intelectual dos povos que seriam “incivilizados”, até o momento em que passassem a ter

contato com os ideais burgueses e “emancipadores” da grande narrativa europeia.

O limiar desse encontro é tênue, visto que esse contato não seria responsável por elevar

esse Outro a uma superioridade similar à europeia, apenas o possibilitaria passar por processos

que lhe garantiriam uma modernização, uma incorporação periférica ao capitalismo e uma

cristianização, que lhe garantiria apenas no além uma vida melhor e com dignidade.

Romper com os processos de colonização não equivale historicamente a esses sujeitos, e

a seus países, findarem o padrão moderno/colonial de subalternidade aos quais foram

submetidos. Passa-se, ao ter cessado o período colonial, a seguir um novo padrão de poder

pautado sobre a colonialidade do Outro. Já consolidada a homogeneidade da grande narrativa

mundial pautada pela Europa e consolidado o capitalismo, a grande narrativa Histórica

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eurocêntrica traz aos países que foram o Outro da colonização a alternativa única de buscarem

se modernizar, industrializar e urbanizar, para que seu desenvolvimento seja, supostamente,

equitativo ao dos países das economias centrais.

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3 A DECOLONIALIDADE REVISADA

Neste capítulo nos propomos a apresentar os teóricos e os conceitos que balizam nossa

pesquisa. O conceito de decolonialidade é o primeiro que buscamos explicitar. Acreditamos ser

necessário evidenciar que a noção decolonial nasce de uma estrita vinculação com a prática de

resistência. Assim, buscamos demonstrar que o conceito não se finda em sua teorização e não se

limita a autores (as) e práticas que utilizam da nomenclatura decolonial para abordá-lo.

Os teóricos que apresentamos como precursores da noção decolonial são, especialmente,

Aimé Cesaire10 e Franz Fanon11. Esses teóricos, apesar de não trazerem a noção de

decolonialidade em sua escrita, discutem como as relações entre a colonização e a resistência a

ela são marcas presentes no período colonial dos povos colonizados. Ambos trazem a marca da

racialização de forma central, entretanto, o primeiro numa perspectiva mais histórica e o segundo

numa junção de seus estudos de psiquiatria e colonização.

Outrossim, buscamos apresentar ainda a importância dos teóricos do coletivo

modernidade/colonialidade (MC), buscando apresentar como esses autores possibilitam a

ampliação do debate sobre as relações entre modernidade, colonização e colonialidade. Como

coletivo que se apresentam, não dispõe de uma uniformidade teórica, mas comumente de pontos

de vistas e análises que se complementam. Ainda nesse momento, também apresentamos as

diferenciações entre os teóricos decoloniais, pós-coloniais e dos estudos culturais. Nossa

intenção não é a de separar em campos não dialógicos os autores em suas abordagens, mas a de

oportunizar uma abordagem de seus pontos de contato e de seus distanciamentos.

Dentre os autores que fazem parte do coletivo MC, demonstraremos de forma mais

sistematizada algumas reflexões trazidas por Dussel12, a partir dos conceitos de outreidade e de

pedagógica. De Quijano13 trazemos as contribuições sobre o conceito de colonialidade e de

padrão de poder criado na modernidade. Para finalizar, trazemos os conceitos de colonialidade

do saber e do ser, respectivamente por Paulo Freire14 e Maldonado-Torres15.

10 Aimé Fernand David Césaire nasceu em 1913 em Basse-Pointe na cidade do nordeste da Martinica, falecendo em

2008. Césaire destacou-se, principalmente, como ensaísta e político da negritude. 11 Frantz Omar Fanon nasceu em 1925, Fort-de-France, Martinica, e morreu em 1961 nos Estados Unidos. Destacou-

se pela sua formação como psiquiatra e militante do movimento negro. Suas obras influenciaram diversos

movimentos políticos e teóricos africanos. 12 O filósofo Enrique Dussel nasceu em La Paz, Argentina, em 1934. Radicado no México em 1975, onde reside

atualmente. 13 O sociólogo Aníbal Quijano nasceu em no Peru, em Yungar, em 1928, onde reside até os dias de hoje. 14 O educador Paulo Reglus Neves Freire nasceu no Recife, Brasil, em 1921, e faleceu em seu país na cidade de São

Paulo em 1997. 15 O filósofo atualmente é professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley.

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Trazemos ainda, no que se refere a colonialidade do ser, a presença dos escritos de Freire,

por acreditarmos que, apesar de não trazer esse conceito em seus escritos, o autor possibilita a

ampliação do conceito a partir de algumas categorias desenvolvidas em suas obras.

3.1 A Decolonialidade e suas fontes

Ao falarmos de decolonialidade, é necessário ressaltar que este conceito nasce antes como

prática de resistência dos grupos oprimidos e vitimados pelo sistema colonial do que como

categoria acadêmica. Isso possibilita que o conceito não fique limitado à sua acepção teórica,

mas abranja autores que, mesmo sem descreverem o conceito, debruçaram-se sobre temáticas de

resistência dentro das dimensões políticas, éticas e epistêmicas.

Como descrito por Walsh (2014), o conceito de decolonialidade é central à produção

teórica do coletivo modernidade/colonialidade dando particular visibilidade ao conceito no nível

acadêmico. Todavia, é necessária a ressalva de que o seu desenvolvimento não é inerente ao

coletivo. O uso deste conceito pelo coletivo se deu a partir de 2004, todavia, Chela Sandoval e

Emma Perez já faziam menção ao conceito de decolonialidade e decolonial desde 1980. Walsh

(2014) também menciona que os escritos de Fanon, nas décadas de 1950 e 1960, apresentam

similaridades ao que se entende por decolonialidade atualmente. Para além dos estudos teóricos,

a autora ressalva que há uma prática decolonial desenvolvida por mais de 500 anos, realizada nas

resistências dos povos indígenas e negros.

Para o desenvolvimento da nossa pesquisa, acolhemos a noção trazida por Walsh (2014)

de que a prática decolonial antecede a escrita acadêmica. Portanto, a noção de decolonialidade

tem de estar, necessariamente, relacionada a essa prática. Sendo assim, para fins do

desenvolvimento da pesquisa, adotamos o conceito de decolonialidade construído por Neto, em

sua tese:

Um questionamento radical e uma busca de superação das mais distintas formas de

opressão perpetradas pela modernidade/colonialidade contra as classes e os grupos

sociais subalternos, sobretudo das regiões colonizadas e neocolonizadas pelas

metrópoles euro-norte-americanas, nos planos do existir humano, das relações sociais e

econômicas, do pensamento e da educação. (2015, p.49)

Nessa concepção, o projeto decolonial é marcado pelo reconhecimento do Outro como

sujeitos coletivos que buscam seu reconhecimento como seres distintos e não aceitam serem

subsumidos dentro do projeto modernizador/colonizador. Há a presença do importante

componente da autonomia, demonstrando a participação desses sujeitos, de forma ativa, frente à

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construção de um Outro projeto de sociedade, que parte da negação à negação de seus corpos,

vozes e de uma educação silenciadora e opressiva.

A proposta decolonial é anticapitalista, antirracista, não eurocêntrica e antipatriarcal,

assumindo, como assegura Mota Neto (2015), uma postura crítica frente a toda e qualquer forma

de exclusão que se origine no colonialismo, possibilitando a emersão de distintas formas de

organização da existência social, além de confrontar as práticas de silenciamento vindas da

colonialidade.

Neste ponto, a categoria criada por Nelson Maldonado-Torres (2008) nos ajuda a

depreender a decolonialidade com um giro decolonial, ou seja, para o autor, o giro decolonial se

refere a três pontos basilares. Primeiramente, há uma percepção de que as formas de poder

gestadas na modernidade têm produzido e ocultado formas de poder coloniais que afetam de

forma negativa os distintos sujeitos colonizados. Também se caracteriza por um reconhecimento

de que são esses sujeitos colonizados, afetados pela desumanização e pela morte, que têm poder

de promover alternativas às formas modernas de opressão. Por último, o giro decolonial comunga

da noção de que os processos decoloniais são tão antigos quanto os processos coloniais, afinal,

em que houve colonização, houve resistência.

En este sentido, no se trata de una sola gramática de la descolonización, ni de un solo

ideal de un mundo descolonizado. El concepto de giro des-colonial en su expresión más

básica busca poner en el centro del debate la cuestión de la colonización como

componente constitutivo de la modernidad, y la descolonización como un sin número

indefinido de estrategias y formas contestatarias que plantean un cambio radical en las

formas hegemónicas actuales de poder, ser, y conocer. (MALDONADO-TORRES,

2008, p. 66)

Outro teórico que buscou problematizar a perspectiva decolonial foi Mignolo (2005),

entretanto, a partir do conceito de pensamento de fronteira. O pensamento de fronteira é

entendido como uma resposta epistêmica dos grupos subalternos ao silenciamento e às

imposições da modernidade eurocêntrica. Contudo, salienta que essa não é uma proposta anti-

moderna, mas de busca pela redefinição da modernidade a partir do lugar do Outro colonizado

feito subalterno.

Dentro das possibilidades aqui apresentadas, que se aproximam da noção de

decolonialidade por nós definida, seja no giro decolonial ou no pensamento de fronteira, o que

se pode perceber é que essas ideias coadunam com os ideais e as práticas de um grande número

de líderes sociais, intelectuais e de movimentos sociais que ao se organizarem frente às formas

de desumanização e opressão encontradas, trazem consigo a problematização das formas

hegemônicas de poder se afirmando no lugar do Outro.

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53

Reafirma-se, dessa forma, que a prática decolonial é anterior ao conceito decolonial e que

ela está imbricada nos processos coloniais, assim como é afirmado pelas produções de Mignolo

(2007), Dussel (2002) e Walsh (2014).

Ao descrever sobre a decolonialidade, Mignolo (2007) nos diz que é necessário ter clareza

de que o pensamento decolonial emergiu na fundação da modernidade/colonialidade. Partir do

pressuposto de que há uma junção entre modernidade e colonialidade nos desvela que os

processos trazidos pela modernidade não foram apenas benéficos, mas que emergiram junto a

um silenciamento, negação e resistência do Outro colonizado.

É possível afirmarmos que o conceito de decolonialidade passou por “etapas”, ou seja,

em cada processo histórico de resistência do Outro colonizado é possível perceber traços

diferenciados dessa resistência, das formas de organização e do projeto pós-libertação.

O primeiro momento a se vivenciar a decolonialidade como enfrentamento à díade

modernidade/colonialidade foi localizado nas Américas, a partir do pensamento indígena e do

pensamento afro-caribenho, nos vice-reinos da Espanha como Anahuac e Tawantinsuyu,

respectivamente nos séculos XVI e XVII. Estendeu-se à Ásia e África durante o XVIII e XIX,

enfrentando o império britânico e o colonialismo francês e, por último, desde o fim da Guerra

Fria e da ascensão dos Estados Unidos como potência capitalista. É nesse último período que se

começa a traçar características próprias da genealogia decolonial numa acepção teórica.

(MIGNOLO, 2007, p. 28)

Traçar a perspectiva da genealogia do pensamento colonial, ainda que de forma sumária,

como fazemos aqui, possibilita que o pensamento decolonial não seja “perdido” ou inscrito como

parte de algumas das grandes genealogias fundadoras da modernidade. Demarca, dessa forma, o

seu traço de resistência e, principalmente, de busca de autonomia desses outros sujeitos. Como

descrito por Maldonado-Torres (2007), seguido ao grito de espanto dos sujeitos colonizados

emergem atitudes decoloniais.

Ainda há, nessa síntese do pensamento decolonial, mais um ponto a ser abordado.

Segundo Maldonado-Torres, a partir do século XX, os projetos decoloniais passam a construir

uma consciência global sobre o projeto global de decolonialidade.

En conclusión, el giro des-colonial se trata pues de una revolución en la forma en que

variados sujetos colonizados percibían su realidad y sus posibilidades tras la caída de

Europa en la Segunda Guerra Mundial. Ya las bases del giro des-colonial estaban

planteadas de antemano en el trabajo de intelectuales racializados, en tradiciones orales,

en historias, canciones, etc., pero, gracias a eventos históricos particulares, se globaliza

a mitad del siglo XX. De ahí en adelante puede decirse que se planteó un giro, ya no

sólo al nivel de la actitud de sujetos o de comunidades específicas, sino al nivel del

pensamiento mundial. El tema de la descolonización adquirió vigencia para distintos

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grupos que ahora se veían más seriamente entre sí, en vez de buscar en Europa las claves

únicas para elaborar su futuro. (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 70)

A partir dessa apresentação da história do pensamento decolonial e do conceito de

decolonialidade, reiteramos que é possível vislumbrar em outros autores, principalmente latinos,

vínculos com a produção e a problematização decolonial. No próximo momento nos

discorreremos sobre o momento de consolidação teórica sobre o conceito de decolonialidade e

exploramos a constituição do Coletivo modernidade/colonialidade e o seu surgimento.

3.1.1 Seus precursores

Entre as elaborações clássicas sobre o colonialismo na América Latina, destacamos

inicialmente as escritas dos martinicanos Aimé Césaire e Franz Fanon. Esses autores se destacam

entre os anos de 1950 e 1970 por passarem a problematizar a colonização a partir do lugar do

homem negro e colonizado. Apesar de não terem como centro de seus escritos a problematização

de conhecimentos numa relação moderna/colonial, os autores trazem análises que nos levam a

compreensão do colonialismo em suas populações e culturas, partindo sempre da perspectiva

colonial.

Em seu livro mais conhecido, “Discurso sobre o colonialismo”, Césaire (1978), ao

adjetivar o processo de colonização, nos diz ser um processo “descivilizador”, “degradador”,

“embrutecedor” e que promove um “asselvajamento do continente”. Césaire (1978) busca

analisar a motivação da colonização, uma vez reconhecida como algo degradante tanto ao

colonizado como ao colonizador, chegando à conclusão de que a colonização teve como

motivação a ampliação das concorrências econômicas e da acumulação de capital para a Europa.

Ao discorrer sobre os motivos que conduziram ao processo colonial, o autor é enfático ao trazer

os motivos pelos quais a colonização não ocorreu

(...)nem evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade de recuar as fronteiras

da ignorância, da doença, da tirania, nem vontade de fugir às consequências, que o gesto

decisivo, aqui, propagação de Deus, nem extensão do Direito; admitamos, uma vez por

todas, é do aventureiro e do pirata, do comerciante e do armador, do pesquisador de

outo e do mercador, do apetite e da força (...) (CÉSAIRE, 1978, p.19)

O processo de colonização cria uma ordem superior que, através de enunciados

desonestos, se legitimou a fazer aquilo que lhe bem aprouver. Dentro desses enunciados, por

exemplo, ser cristão tornou-se sinônimo de ser civilizado e não ser tornou-se sinônimo de

paganismo, logo de selvageria, o que legitimaria o colonizador a hierarquizar, explorar e

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assassinar o nativo, negros e amarelos, por não serem civilizados. O colonialismo, nessa lógica,

não seria apenas a destruição das populações colonizadas, mas também destruidor da civilidade

europeia, já que a colonização resulta na impossibilidade da existência de “um só valor humano”

(CÉSAIRE, 1978, p. 16). Além disso

Provam que a colonização desumaniza, repito, mesmo o homem mais civilizado; que a

acção colonial, a empresa colonial, a conquista colonial, fundada sobre o desprezo,

tende, inevitavelmente, a modificar quem a empreende; que o colonizador, para se dar

boa consciência habitua a ver no outro o animal, se exercita a trata-lo como animal,

tende objectivamente a transformar-se, ele próprio em animal. (CÉSAIRE, 1978, p. 23-

24)

Como descrito por Restrepo e Rojas (2010), percebe-se, a partir da leitura da Césaire, a

destruição de qualquer argumento que justifique como benevolente a colonização. Advém daí a

importância em não se isolar a ação colonizadora, mas de relacioná-la como experiência

estruturante das sociedades colonizadas e das culturas colonizadoras. Pode-se perceber que

Césaire (1978), assim como Fanon, já propiciava as bases para se problematizar a dominação,

não apenas nas instâncias militares e econômicas, mas de discursos e práticas de inferiorização

dos sujeitos colonizados.

Já a escrita de Fanon é marcada por grande crítica ao colonialismo e suas marcas racistas.

Como descrito em seu livro mais conhecido, “Os condenados da terra”, o que se percebe no

período colonial na América Latina é uma vinculação ao pertencimento racial e social a grupos

dominantes ou dominados. Dito de outra maneira: se é rico por ser branco e se é branco por ser

rico. Portanto, mesmo que se desmanche o mundo colonial e que as organizações coletivas de

grupos dominados façam desestruturar as fronteiras raciais criadas para “organizar” essa

sociedade, marcada por essa dicotomia, haverá pela frente o mais profundo exercício de

descolonização para apagar essas estruturas.

Como psiquiatra, Fanon (2008) busca articular a relação entre desejo, poder, economia e

cultura para explorar e analisar as práticas do colonialismo. Na introdução de “Pela Negra,

Máscaras Brancas” (2008) Fanon deixa claro que, apesar de sua análise ser psicológica, é

necessário pensar sempre em um duplo processo de análise que envolve: o econômico e a

epidermização da inferioridade.

A epidermização da inferioridade ocorre em conjunto com a utilização da linguagem

como primeiro meio de dominação cultural dos brancos, colonizadores, frente aos

negros,colonizados, tema desenvolvido pelo autor no terceiro capítulo da obra. A partir da

mudança da linguagem, se modificaria o que o caracteriza como negro, “Quanto mais assimilar

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56

os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele

rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. ” (FANON, 2008, p.340)

Reconhecido esse processo de dominação, era necessário buscar meios de ultrapassá-lo,

não apenas por meio do findar do processo colonial. Era preciso que o homem e a mulher negros

se libertassem da ilusão de que a única forma de suprimir o processo de inferiorização que

sofriam seria adquirindo traços culturais do colonizado, buscando romper com a lógica do acesso

aos benefícios e passando a lutar pela libertação do colonizado. “(...) é verdade, não há um

colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se instalar no lugar do colono”

(FANON, 2008, p. 29).

Há a necessidade de se findar a vontade de ser o colonizador, porque ela representa apenas

as dimensões de inferiorização às quais esses sujeitos foram expostos, reforçando a justificativa

da colonização e da opressão de um grupo pelo outro. Quando associado aos valores do

individualismo liberal, esse sentimento de ser o colonizador (ou seja, poder usufruir dos

privilégios de ocupar o lugar do poder) pode enfraquecer o sentimento de grupo e de luta pela

libertação coletiva. Destarte, ao ter como o sonho o dominado ser o dominador, as mudanças

sociais perdem espaço para os valores meritocráticos da sociedade liberal burguesa.

Segundo Restrepo e Rojas (2010), outro pensador que merece destaque no pensamento

clássico decolonial é Orlando Fals Borda16. A trajetória acadêmica de Fals Borba se inicia nos

anos sessenta, junto à criação do primeiro programa latino-americano de sociologia na

Universidade de Colombia, em Bogotá. Essa universidade tornou-se singular por ter, desde sua

criação, forte vínculo entre militância política e organização social de base com sua produção

intelectual. Diferente dos outros escritores, o que nos chama a atenção em Fals Borba é a forte

preocupação com o sentido político da produção do conhecimento, com a pesquisa acadêmica e

sua relação com a realidade social. Assim, o conhecimento tem estreito vínculo com o sentido da

práxis marxista de transformação da prática social e política.

No texto intulado “¿Es posible una sociología de la liberación?” (2016), o autor traz

questionamentos centrais à sua produção acadêmica: os problemas de uma ciência comprometida

com um histórico de colonização e dominação dos povos latinos, além da necessidade de se

produzir uma ciência nova, que se caracterize como subversiva e esteja necessariamente atada a

uma reconstrução social, e não a fins particulares e/ou burgueses. A partir do conceito de “ciência

guerrilheira”, elaborada pelo argentino Óscar Varsavsky, Fals Borba (2010) defende uma ciência

16 O sociólogo Orlando Fals Borba nasceu em 1925 em Barranquilla, Colômbia, e faleceu em seu país em 2008.

Page 59: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

57

que tenha estreita relação com seu lugar de produção, e que colabore para sua construção e

compreensão:

Sostiene que esto no es destruir la ciencia, sino enriquecerla; no es negar su

universalidad sino precisamente llegar a ella através de la originalidade impuesta por

las realidades locales; no es producir por producir, como robots dentro de una economía

de consumo, sino como seres pensantes animados por um verdadeiro espíritu de

servicio; no es seguir las reglas del juego ni los critérios de importancia fijaxa em otras

latitudes, sino fijas los propios y actuar em consecuencia. (FALS BORBA, 2016, s/p)

Pensar a perspectiva desenvolvida por Césaire, Fanon e Fals Borba é pensar no

colonialismo e em seu complexo das relações históricas. É também pensar em críticas

desenvolvidas de maneiras pontuais sobre a história latina, em seu histórico de dominação

colonial e, principalmente, nos aspectos desumanizadores da colonização. De forma sintética,

podemos pensar através das contribuições desses autores a teoria decolonial como denúncia aos

efeitos do colonialismo e seus processos de desumanização e como possibilidade de construção

de processos políticos de libertação e subversão.

3.2 O Coletivo Modernidade/Colonialidade e a Construção de um Paradigma Outro

Ao longo do desenvolvimento do coletivo, há uma diversificação de nomes dos quais

foram chamados e denominados. Nos textos escritos por Walsh (2004), a autora denomina como

Coletivo modernidade/colonialidade; já para Restrepo e Rojas (2010) há a denominação de

coletivo de argumentação da Inflexão Decolonial. Em Arturo Escobar (2003), um dos primeiros

a buscar nomear os autores, há a noção de programa de investigação da

modernidade/colonialidade latino-americano.

Compreendendo coletivo como aquele que é capaz de abranger um grande número de

pessoas, mas respeitando as diferenças trazidas por cada um, optamos aqui por utilizar essa noção

de coletivo modernidade/colonialidade, a partir de agora coletivo MC. É necessário fazer a

ressalva de que este coletivo é heterogêneo, e que a utilização da noção de coletivo é aqui

escolhida por acreditarmos que as divergências teóricas trazidas no grupo não descaracterizam a

problemática central, mas tende a enriquecer suas concepções políticas e epistemológicas.

Esse coletivo busca, portanto, centra-se em como os processos históricos de ocultamento

e submissão do Outro ao projeto de Mesmidade moderno eurocêntrico silenciaram e subjugaram

aqueles que foram encobertos pelos ideais da modernidade, a partir dos processos de colonização

e de colonialidade.

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58

Como é relatado por Restrepo e Rojas (2010), ao fazer um histórico da constituição do

coletivo, é a partir do Congresso Mundial de Sociologia, realizado em 1998 em Montreal, que

houve uma aproximação entre os escritores mais conhecidos do coletivo: Aníbal Quijano,

Enrique Dussel, Walter Mignolo e Edgardo Lander.

A aproximação e o encontro resultaram na publicação de uma obra que se tornou

referência para os estudos decoloniais: “A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências

sociais. Perspectivas latino-americanas”. Nesse livro, o coletivo MC buscou evidenciar América

Latina como lócus de enunciação de conhecimento com base em um contexto de

emancipação/libertação de seus povos nativos e de outros grupos marginalizados. Seguiu a esse

encontro uma série de outros encontros, quase anuais, que foram realizados em diferentes

instituições da América Latina e nos Estados Unidos da América, onde alguns dos pesquisadores

do coletivo desenvolvem suas pesquisas.

Como nos demonstra Mota Neto (2015), é interessante perceber que, além das

publicações, o coletivo MC também vem se organizando a partir de programas acadêmicos

universitários, como o Doutorado em Estudos Culturais Latino-Americanos na Universidad

Andina Simón Bolívar, no Equador, o Mestrado em Estudos Culturais da Universidade Javeriana

na Colômbia e o Mestrado em Investigação sobre Problemas Sociais Contemporaneos do

Instituto de Estudios Sociales Cotemporáneos (IESCO). Mota Neto (2015) também nos chama a

atenção para o significativo número de publicações veiculado pelo periódico Tabula Rasa,

vinculado a Universidad Colegio Mayor de Cundinamarca, em Bogotá, sobre a temática.

Nota-se que o coletivo não se restringe à vida acadêmica, havendo também, como nos diz

Castro-Gomes e Grosfoguel (2007), uma participação ativa dos membros do coletivo em

movimentos indígenas na Bolívia e no Equador, no Caribe, junto a movimentos negros e, ainda,

o envolvimento nas atividades do Fórum Social Mundial, desenvolvendo projetos culturais,

epistêmicos e políticos.

O coletivo organiza-se dessa forma, buscando não apenas uma produção teórica que diga

desse Outro que foi subjugado, mas também participam de encontros e eventos com esses sujeitos

para questionar a noção, equivocada, de que o Coletivo “dá voz” a esses sujeitos. O que o coletivo

MC almeja é ouvi-los, uma vez que suas vozes já ecoam por todo o sangue e resistência

empreendida desde o começo dos processos da colonização.

O conceito de decolonialidade, já apresentado por nós, ganha importante dimensão na

produção teórica desses autores. Como descrito por Castro-Gomes e Grosfoguel (2007) esse

conceito possibilita problematizar a noção de que viemos em um mundo pós-colonizado. Para os

Page 61: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

59

autores, o que se observa é a passagem de uma sociedade com padrões de um colonialismo

moderno a uma colonialidade global.

Nosotros partimos, en cambio, del supuesto de que la división internacional del trabajo

entre centros y periferias, así como la jerarquización étnico-racial de las poblaciones,

formada durante varios siglos de expansión colonial europea, no se transformó

significativamente con el fin del colonialismo y la formación de los Estados-nación en

la periferia. Asistimos, más bien, a una transición del colonialismo moderno a la

colonialidad global, proceso que ciertamente ha transformado las formas de

dominación desplegadas por la modernidad, pero no la estructura de las relaciones

centro-periferia a escala mundial. (2007, p.13, grifos no original)

Essas relações de colonialidade global não rompem com o padrão de poder centrado no

capitalismo, no patriarcado e nas formas de poder centradas no mundo euro-norteamericano, mas

inclui novos e fortes laços econômicos de controle desse sistema, como o Fundo Monetário

Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), assim como organizações militares como as da

Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Para Mota Neto (2015), o reconhecimento dos limites do fim do colonialismo e a

compreensão dos processos de colonialidade levam Castro-Gomes e Grosfoguel (2007) a

buscarem uma segunda descolonização. Se o capitalismo e a colonialidade global foram

reajustadas rearranjando a manutenção do padrão de poder colonial, é necessário que se complete

o primeiro processo de colonização estendendo a emancipação desses sujeitos a níveis mais

amplos que fatores jurídico-políticos tais como relações de ciência, igualdade racial, de gênero

e a educação, garantindo o acesso as suas formas de construção e reconstrução do mundo.

Pensar as sociedades dentro dessa concepção significa não se resumir a uma perspectiva

simplesmente econômica e política, e também não resumir a sociedade aos paradigmas culturais

e sociais, mas utilizando a terminologia de Castro-Gomes e Grosfoguel (2007), é pensar numa

rede global de poder, que se integram nessas perspectivas. Pensar dentro dessa rede, subentende

a necessidade de dialogar com outros escritos e escritores, outros paradigmas, que fujam a

centralidade eurocêntrica de produção de saber.

Uma forma de pensar a nova linguagem está, segundo Castro-Gomes e Grosfoguel

(2007), nas formas não ocidentais de produção de saber, justamente porque buscam formas totais

de abarcar o mundo. Não uma totalidade que seja ontológica, como a europeia, mas a que evita

o compartimento da compreensão da sociedade em setores, que somados produzem a totalidade.

E assim, ao pensar a partir de outros aportes e conceitos, de uma forma distinta, possibilita-se a

produção de outro espaço de conhecimento para as ciências sociais e humanas que não nega a

Page 62: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

60

racionalidade moderna, mas que reconhece o Outro em sua alteridade, não exigindo dele uma

modernização da sua cultura, economia e política, por compreendê-la atrasada.

Segundo Escobar (2005, p.64), a teologia da libertação desde os anos sessenta e setenta,

os debates tecidos sobre a filosofia e a ciência social latino-americana, os debates sobre uma

ciência social autônoma, construídas principalmente por Fals Borba, a teoria da dependência e

os estudos sobre comunicação, os estudos culturais na década de noventa são importantes leituras

realizadas pelos autores do coletivo MC, por trazerem uma forte presença das teorias críticas da

modernidade europeia e norte-americanas e, por possibilitarem contato com outros grupos e

teóricos, como a teoria feminista chicana, a teoria pós-colonial e a filosofia africana. Reforça-se,

assim, a noção de ser o coletivo MC aquele que pensa um paradigma Outro, porque pensado pelo

Outro, e não um “outro paradigma” porque este ainda poderia estar centrado nas bases do

silenciamento do Outro.

Ressaltamos que esse paradigma Outro não se aproxima de uma tentativa de buscar a

“pureza”, como uma missão fundamentalista de buscar as essências das culturas e dos grupos

colonizados, mas sim, segundo Castro-Gomes e Grosfoguel (2007), de oportunizar a leitura da

epistemologia como algo que se localiza entre o tradicional e o moderno, e que deve reconhecida

como híbrida. Nesse momento, buscamos deixar claro, apenas, que esse hibridismo não

corresponde à noção de mestiçagem, mas é aqui empregado no sentido de uma cumplicidade

subversiva. Pensa-se esse Outro paradigma a partir de uma busca por ressignificar as formas

hegemônicas de conhecimento, sendo assim mais do que uma opção teórica de produção de

conhecimento. No entanto, o paradigma decolonial passa a ser uma necessidade ética para com

os grupos silenciados pela modernidade e com as ciências sociais latinas.

Feito este esclarecimento, queremos ainda trazer algumas noções trazidas por Escobar

(2005) como características do coletivo MC:

- Há um descentramento da modernidade e das grandes narrativas eurocêntricas.

- Há uma nova compreensão da modernidade que passa a ser centrada em Portugal e na

Espanha (como a primeira modernidade).

- Há uma centralidade na América Latina como aquela que inicia o “lado Outro” da

modernidade.

-Não se tem uma contestação da razão moderna, mas uma crítica a seus processos

bárbaros. Assim, não se questiona o poder emancipatório da razão, mas a superioridade europeia

articulada como a única que possui “a” razão.

Para Restrepo e Rojas (2010), são cinco os pontos de comunhão entre os autores do

coletivo MC. O mais visível é a utilização realizada dos conceitos de colonialismo e de

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61

colonialidade. Enquanto o primeiro termo diz de um domínio político e militar, de exploração

das riquezas pelo colonizador nas colônias, o segundo diz de um fenômeno histórico, vinculado

a um padrão de poder que naturaliza as formas de dominação do colonizador, naturalizando as

estruturas de dominação e subalternizando os conhecimentos dos nativos. Do termo

colonialidade derivam outros dois, descolonização e decolonialidade: enquanto o primeiro diz da

superação da situação de colônia, o segundo termo busca superar a colonialidade, dentro das

relações de poder.

O segundo ponto está na relação entre os conceitos modernidade/colonialidade. Quando

se supõe que algo/alguém é moderno, existe algo/alguém que não é. Ou seja, existe um “ser” e

um “não ser”, e esse “não ser” passa a ser subsumido por aquele que é, tendo que aprender seus

conhecimentos e suas práticas, para assim poderem “existir”.

O terceiro ponto elencado pelos autores está no questionamento da criação da

modernidade por processos euro-centrados e intra-europeus. O conceito de sistema-mundo é

utilizado para buscar outra acepção da modernidade, que traz mudanças à concepção teórica da

Europa ser o centro da modernidade. O quarto ponto atem-se à negação de sistemas

mundializados de poder, como o marxismo e o cristianismo.

Os dois últimos pontos apresentados são, respectivamente, a afirmação de que o projeto

decolonial é um paradigma Outro e não um novo paradigma e a produção de um conhecimento

Outro que se aproxime da “ferida colonial”, sendo historicamente localizado e inscrito dentro de

relações de poder, ou seja, a busca pela consolidação de um projeto decolonial.

Ainda neste momento, realizamos um exercício de síntese das principais concepções

teóricas vivenciadas pelos estudos pós-coloniais, estudos culturais e decoloniais. Não em uma

tentativa de formatar e enquadrar os teóricos em campos separados e não dialógicos com os

demais, mas numa tentativa de apresentar um panorama dos conceitos e das teorias já

desenvolvidas, suas convergências e divergências.

De acordo com Costa (2006), os estudos pós-coloniais têm em sua origem teórica no

diálogo com, pelo menos, três perspectivas teóricas: a perspectiva pós-estruturalista francesa com

os escritos de Derrida e Foucault versando sobre a problemática do caráter discursivo do social,

perspectivas pós-modernas e com os estudos culturais.

Em suma, a pós-modernidade passa a ser compreendida por esses autores como

descentramento das narrativas, mas se recusam a uma perspectiva pós-moderna desvinculada de

um projeto político, devido ao enfoque que dão às questões da transformação social e de combate

a opressão social. Os diálogos com os estudos culturais se dão a partir da problematização da

crítica literária britânica originada na Universidade de Birmingham, na Inglaterra.

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Numa entrevista cedida à revista Cultural Studies por Castro-Gómez (2014), ao ser

questionado sobre as aproximações e distanciamentos sobre as produções teóricas latino-

americanas, ele afirma que o diferencial à produção de conhecimento entre essas linhas teóricas

não são os seus métodos, mas o lócus de enunciação. Dito de outra forma, é o reconhecimento

do lugar geopolítico e o conjunto de construções políticas do lugar do qual o sujeito fala que

marca a sua “posição estratégica”.

Partindo deste ponto de vista, Castro-Gómez (2014) critica a existência de um “cordão

sanitário” que, segundo ele, alguns colegas acabam traçando entre os estudos culturais, as

análises culturais, as práticas culturais e poder, ao invés de enfocar na “posicionalidad estratégica

que adquieren los Estudios Culturales en un campo de batalla discursivo” (2014, p.3). O autor

sai em defesa da observação e da construção da observação da prática como maneira de

categorizar e relacionar os escritos latinos.

Yo mismo he hablado varias veces de “poscolonialismo” para referirme a los trabajos

de la red modernidad/colonialidad entre quienes se cuentan Walter Mignolo, Anibal

Quijano, Arturo Escobar, Enrique Dussel, etc., a pesar de que algunos de ellos piensan

que hablar en América Latina de “estudios culturales” y “poscolonialismo” equivale a

importar modas académicas globalizadas y eurocéntricas que vienen asociadas con esos

nombres. (CASTRO-GÓMEZ, 2014, p. 4)

Já em um livro publicado por Castro-Gómez e Grosfoguel (2007), os autores buscam

tecer algumas diferenciações entre os estudos culturais e estudos pós-coloniais com relação aos

estudos do coletivo MC. Ambas correntes caracterizam o sistema-mundo moderno colonial a

partir das significações culturais, não enfocando nas relações e nos discursos sobre o Outro, por

crerem que a hegemonia social e política perpassam pelo controle dos códigos semióticos. No

coletivo MC, a perspectiva decolonial utiliza-se das noções de capitalismo e cultura, a partir de

seus entrelaçamentos com os processos econômicos e culturais, evitando uma concepção

dicotômica entre discurso/economia e sujeito/estrutura. A dicotomia só ocorre quando se

entendem os econômicos e culturais como derivados um do outro, mas como dito, para o Coletivo

há a noção de um entrelaçamento.

Trazidas as diferenças entre as perspectivas pós-coloniais e suas relações com o pós-

estruturalismo e a pós-modernidade, buscamos diferenciar a pós-colonialidade dos estudos

decoloniais. Na escrita de Restrepo e Rojas (2010), encontramos três pontos de distinção entre o

pós-colonialismo e a perspectiva decolonial, denominada pelos autores de inflexão. Enquanto os

estudos dos teóricos pós-coloniais são voltados para o conceito de pós-colonialismo, a

problematização do grupo da inflexão decolonial enfatiza a colonialidade. O lócus de enunciação

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do primeiro são os países da Ásia e a África e sua colonização entre os séculos XVIII e XX,

enquanto o segundo volta-se para a experiência colonial desenvolvida por Portugal e Espanha

nas Américas no século XVI. Nos estudos pós-coloniais há uma ênfase no pós-estruturalismo

francês, enquanto nos teóricos da inflexão há uma busca por estudos marginais à compreensão

da modernidade, que buscam um ordenamento planetário decolonial.

Aunque se diferencien en la conceptualización, en los anclajes históricos y en la

imaginación geopolítica, ambas corrientes están intentando desentrañar estas

implicaciones en la imaginación teórica y política que definen los cerramientos y

aperturas de nuestro presente. (RESTREPO; ROJAS, 2010, p. 24)

Acreditamos que as duas últimas considerações trazidas pelo autor possam trazer

diferenciações mais significativas ao projeto decolonial. Entretanto, como problematizado por

Mota Neto (2015), como dizer que autores como Edward Said e Gayatri Spivak, nomes

conhecidos dos estudos pós-coloniais, não trazem em sua escrita uma perspectiva da

colonialidade? Aqui se reforça a acepção de que, para além da utilização do uso do conceito nas

escritas acadêmicas, há traços característicos da escrita que nos possibilitam estabelecer estreitas

relações com a noção da colonialidade.

É possível perceber a preocupação da autora com a temática no livro “Pode o subalterno

falar?”. Nele Spivak (2010) problematiza a representação do sujeito do terceiro mundo no

discurso ocidental. Para isso, no entanto, a autora recorre “talvez de maneira surpreendente, ao

argumento de que a produção intelectual ocidental é, de muitas maneiras, cúmplice dos interesses

econômicos internacionais do Ocidente. ” (SPIVAK, 2010, p. 20)

Há, ainda, um ponto que não foi trazido. Nos estudos decoloniais é forte a presença das

relações sociais, do trabalho e do patriarcado como temas centrais que se relacionam à

epistemologia, a antropologia e a antologia. Todavia, nos estudos pós-coloniais, há uma

diversificação dessas fontes e métodos, preocupando-se com as obras literárias escritas pelos

colonizadores e as representações que trazem dos sujeitos colonizados, e realizadas análises das

obras escritas pelo colonizados como formas de resistência. (MOTA NETO, 2015, p. 74)

Essa é a marca dos textos produzidos por Bhabha (2003). Para o autor, um aspecto

importante do discurso colonial é a fixidez na construção dos estereótipos. É a partir da fixidez

da diferença cultural, histórica e racional no colonialismo que se afirmam os estereótipos, como

principal estratégia discursiva para inferiorizar os demais, daí que sua leitura do discurso colonial

(...) sugere que o ponto de intervenção deverá ser deslocado do imediato

reconhecimento das imagens para uma compreensão dos processos de subjetivação

tornados possíveis (e plausíveis) através do discurso do estereótipo. Julgar a imagem

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64

estereotipada com base em sua normatividade política prévia é descarta-la, não desloca-

la o que só é possível ai se lidar com sua eficácia, com o repertório de posições de poder

e resistência, dominação e dependência, que constrói o sujeito da identificação colonial

(tanto colonizador como colonizado). (BHABHA, 2003, p. 106, grifos no original).

Como se percebe no fragmento, há uma ênfase nas noções de representação, como formas

que “criam” o Outro e sua formação identitária cultural e social como diferente. Os conceitos de

hibridismo e mestiçagem são usados pelo autor para analisar as relações de poder, não a partir da

dominação de um grupo pelo outro, mas buscando o lugar comum, no qual ambas as culturas são

modificadas.

Já nos estudos culturais há menos diferenciações em comparação com a decolonialidade.

Como descrito por Restrepo e Rojas (2010), o principal expoente dos estudos culturais na

América Latina está no doutorado em Estudos Culturais Latino-Americanos, coordenado por

Catherine Walsh, na Universidad Andina Simón Bolivar, aproximando-se fortemente dos

autores decoloniais. Os distanciamentos ocorrem, mas em sua maioria com os autores que

trabalham a perspectiva dos estudos culturais a partir da Europa, como os trabalhos de Stuart

Hall. Seus estudos trazem contribuições mais marcantes do estruturalismo e da psicoanálises,

marcos conceituais considerados eurocêntricos dentro da perspectiva decolonial.

Como descrito por Walsh (2003), a necessidade do estudo sobre as relações culturais na

América Latina está em abordar a cultura dentro de uma sociedade latino-americana marcada

pelo capitalismo transnacional e por projeto neoliberal, mas que também tem a forte presença de

movimentos sociais. Assim, urge a necessidade de uma compreensão sobre a cultura que se

sobressaia àquela de conjunto de valores e costumes, que não esteja isolada em disciplinas

acadêmicas ou que, ainda, se desvinculem na prática e na teoria de assuntos econômicos, sociais

e políticos.

(...) hay que plantear la necesidad de abrir aún más las disciplinas – em efecto

indisciplinarlas- y, a la vez, poner atención a las maneras em que el conocimiento está

entretejido com ls articulaciones de poder, ya no del estado-nación o del imperialismo

em sí, sino del nuevo ‘imperio’ del sistema-mundo. (WALSH, 2003, p. 13)

Traçadas as relações entre essas teorias, buscaremos, num próximo momento, apresentar

as ideias centrais que são fundamentais no desenvolvimento da nossa pesquisa. Para

verticalizarmos sobre a temática escolhemos três conceitos centrais: colonialidade do poder (de

Quijano), Outreidade (de Dussel), e da colonialidade do ser (em Paulo Freire). Realizaremos

também uma discussão sobre a colonialidade do saber, baseada em autores diversos.

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3.2.1 A colonialidade do poder em Quijano

Um dos conceitos centrais trazidos por Quijano, amplamente utilizado pelos teóricos do

coletivo decolonial, é o de colonialidade do poder. Pensar a modernidade como o

desenvolvimento de ideias racionais-científicas ou do avanço de um estado laico e secular nos

leva, segundo Quijano (2005), a apenas discutir qual ou quais sociedades merecem ser chamadas

de “criadoras” da modernidade. Assim, o autor propõe pensar a modernidade dentro de um

quadro que possibilitou a criação de um sistema-mundo moderno, e que criou a Europa como

centro desse sistema.

É no seu artigo “Colonialidad y Modernidad-Racionalidad” que Quijano (1992) inicia a

noção de colonialidade, defendendo ser a colonialidade constitutiva da modernidade e não

derivativa. Assim, há a distinção basilar entre colonialidade e colonial. Enquanto os processos

coloniais dizem da dominação e exploração de forma direta, baseada nas relações políticas,

sociais e de trabalho, a noção de colonialidade, apresentada por Quijano (1992, 2005) tem

estruturas mais enraizadas na sociedade, porque suas formas de poder não são diretas como as

apresentadas no período da colonização. A colonialidade nasce em conjunto com as estruturas

de classificação racial da população e as relações destas com as formas de exploração do trabalho,

mas perpetuam mesmo findado os processos coloniais.

Importa detalhar a articulação desses dois fatores primordiais para a compreensão da

colonialidade, as relações de trabalho e a racialização da sociedade. Quando do processo colonial,

a Europa inicia pela América um processo de relações de trabalho, histórica e sociologicamente

novo que posteriormente se expandiria dentro do sistema-mundo. Podemos traçar três

características básicas: essas formas de trabalho visavam à produção de mercadorias para o

mercado mundial; todas e cada uma dessas formas eram articuladas com o capital, o seu mercado

e entre si, criando um padrão de poder do qual eram conjunta e individualmente dependentes

histórico-estruturalmente; cada uma dessas formas desenvolveu novos traços e formas históricas.

Para a ocupação dessas formas de trabalho os critérios foram racializados. Ou seja, os

índios foram colocados numa espécie de servidão, os negros foram reduzidos à mão de obra

escrava e os espanhóis e portugueses, por serem brancos, se tornaram os que recebiam salários,

os que poderiam ocupar cargos administrativos, civis ou militares. Apesar do padrão de poder se

iniciar na América Latina, ele se estende posteriormente, criando novas identidades históricas e

sociais: os amarelos e os azeitonados.

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Essa colonialidade do controle do trabalho determinou a distribuição geográfica de cada

uma das formas integradas no capitalismo mundial. Em outras palavras, determinou a

geografia social do capitalismo: o capital, na relação social de controle do trabalho

assalariado, era o eixo em torno do qual se articulavam todas as demais formas de

controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Isso o tornava dominante

sobre todas elas e dava caráter capitalista ao conjunto de tal estrutura de controle do

trabalho. (QUIJANO, 2005, p. 109)

Mas, ainda há, segundo Quijano (2005), outro importante fator a ser analisado: o que

levou a centralidade europeia nos processos de construção desse sistema-mundo? Afinal, não há

nada de constitutivo ao capitalismo que restrinja a uma única área toda a centralidade do trabalho

assalariado, e posterior acumulação da contração da produção industrial. Para Quijano (2002) é

essencial nos atentarmos que a justificativa de um trabalho não pago ou não assalariado estava

associada à inferioridade das raças. Assim, há uma colonização cognitiva, que expropria

culturalmente o colonizado, reprime os seus conhecimentos e o obriga a se submeter a algumas

práticas culturais do colono.

Temos assim o último conceito constituinte do padrão de poder moderno/colonial: o

eurocentrismo. Na perspectiva histórica eurocentrada existe, portanto, a História da Europa, que

se propõe ser a História da humanidade, uma história ontológica e pautada na superioridade de

seus povos, e outra “história”, baseada na inferioridade dos povos colonizados, que narra a

expansão da Europa como benéfica ao seu desenvolvimento.

Como se percebe, a análise elaborada por Quijano (1995,1992, 1989) traz em si não

apenas aspectos econômicos e políticos, mas também sociais. O padrão de poder colonial não se

consolida apenas pelo poder econômico do capitalismo europeu, mas pelas estratégias de

inferiorização dos povos e das culturas colonizadas, e pela naturalização de uma narrativa

eurocêntrica como universal e, portanto, superior às demais.

Não somente preocupado com as formas de dominação que ocorrem pela colonialidade,

Quijano (2005) nos diz das formas de resistência a essa colonialidade. A denominada resistência

intelectual surgiu em fins do século XIX e se afirmou pós Segunda Guerra Mundial, articulada

aos debates da questão do desenvolvimento-subdesenvolvimento.

Outra forma de resistência é trazida pelo autor como socialização do poder. Essa

proposição é feita pelo autor a partir da década de setenta, e reconhece que “o socialismo não

pode ser outra coisa que a trajetória de uma radical devolução do controle sobre o

trabalho/recursos/produtos, sobre o sexo/recursos/produtos e sobre a

intersubjetividade/conhecimento e comunicação” (QUIJANO, 2005, p. 273).

A saída apresentada pelo autor para a superação do padrão de poder não busca romper

com a dimensão de racionalidade apresentada pela modernidade, nem com a totalidade social

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67

apresentada na construção do sistema-mundo, pensando na diversidade de sujeitos que foram

silenciados como Outro dentro do sistema, evitando fragmentações e possibilitando conexões

entre as formas de dominação que não se restringem apenas ao econômico.

A construção do conhecimento, para Quijano, dentro da lógica do padrão de poder, criou

uma perspectiva estrutural-funcionalista do saber. Ou seja, há uma totalidade do saber que exclui

as outras partes, criando a noção de que há um “cérebro” que tudo controla e “outras partes” que,

de forma relacionada e hierárquica, são subjugadas ao cérebro para o bom desenvolvimento do

todo. A Europa era o centro que doava conhecimento, e as áreas colonizadas eram as partes que

deveriam receber esses saberes, não para serem o centro, mas para ajudarem no desenvolvimento

da totalidade do saber.

Outrossim, é necessário ressaltar que essa noção de totalidade já está questionada, não

somente pelas correntes empiristas, mas por uma nova corrente intelectual: os pós-modernos.

Das contribuições pós-modernas, assim como Quijano (1989), corroboramos a noção de que a

ideia de totalidade europeia levou a um reducionismo teórico que proporcionou a redução a um

único relato histórico como macrossujeito histórico. E que essas ideias vieram de uma tentativa

de total racionalização da sociedade.

Essas críticas dos pós-modernos possibilitam aos teóricos decoloniais, como Quijano

(1989), criticarem o projeto de racionalidade e de totalidade moderno. Todavia, ao fazer isso, o

autor busca não uma negação da razão, mas a sua modificação.

No es necesario, sin embargo, recusar toda idea de toalidad para desprenderse de las

ideas e imágenes com las cuales se elaboró esa categoria dentro de la modernidad

europea. Lo que hay que hacer es algo muy distinto: liberar la producción del

conocimiento, de la reflexión y de la comunicación, de los baches de la racionalidad-

modernidad europea. (1989, p. 446)

A perspectiva de totalidade não precisa (e não pode) abrir mão da noção da diversidade.

Segundo Quijano, fora do ocidente as culturas não abrem mão da perspectiva de totalidade, mas

assim como o conhecimento, esses conceitos incluem o reconhecimento da heterogeneidade, do

que é contraditório. “Em otros términos, [a totalidad] no solamente no niega sino que requiere la

idea del Otro, diverso, diferente. (...) De esa manera cierra el passo a todo reducionismo, así como

a la metafísica de um macrosujeto histórico capaz de racionalidade propia y de teleologia

histórica, de la cual los indivíduos y los grupos específicos, las clases, por ejemplo, serían apenas

portadores o misioneiros.” (QUIJANO, 1989, p. 447).

Assim, reforçamos que a crítica ao paradigma europeu de racionalidade/modernidade é

fundamental, mas é duvidoso que a negação de todas as categorias modernas e sua dissolução no

Page 70: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

68

âmbito discursivo, consistindo numa negação das noções de totalidade e conhecimento, nos leve

a pensar o Outro e os problemas advindos da construção das relações de um padrão de poder.

Como descrito por Quijano (1989), é necessário, no primeiro momento, desprender-se das

vinculações de racionalidade-modernidade com a colonialidade. A descolonização

epistemológica se torna, por consequência, o novo passo, que leva a uma nova comunicação

intercultural, um intercâmbio de ideias e, somente assim, pretende encontrar com legitimidade

alguma universalidade.

3.2.2 Dussel e a questão do Outro

Dussel é um dos grandes teóricos do Coletivo. Já era um teórico conhecido,

principalmente por suas escritas sobre a teologia da Libertação. A escrita do filósofo argentino é

vasta. Por essa razão, a parte que nos atemos está centrada, principalmente, em sua

problematização sobre a totalidade do sistema-mundo construída a partir da modernidade,

iniciada em 1492, e na análise de como essas relações modernas de dominação pela colonização

impediram o Outro, colonizado, de existir e desenvolver uma pedagógica que lhe seja própria.

A modernidade, em Dussel (1993), nasce a partir do encobrimento do Outro, do

colonizado latino, que foi espoliado e conquistado pelo europeu. E é a partir dessa dominação

que se inicia a construção de um sistema-mundo europeu como totalidade. Posteriormente, nos

deteremos com mais profundidade nos desdobramentos sobre a construção da modernidade.

Todavia, queremos ressaltar nesse momento como o conceito de Outro se desenvolve na obra de

Dussel.

É da aproximação, e superação, com a escrita do filosofo lituano-judeu Lévinas, que

Dussel analisa a negação do Outro na modernidade. É a noção metafísica17 do Outro – a

Outreidade que nos possibilita pensar no colonizado a partir de uma visão ética, desenvolvendo

a partir da percepção do Outro a possibilidade de dizer de um “eu”, que se desenvolve a partir

das noções de rosto e de face-a-face e não de sujeito e objeto. Se em Lévinas o Outro é o pobre,

como nos demonstra Josivan, Dussel buscará entender quem é esse pobre. Quem é o pobre da

conquista europeia? Quem é o pobre nas relações econômicas do capital? Assim, ele chegará à

conclusão de o pobre é o Outro, a vítima

17 “Tanto para Lévinas como para Dussel a ontologia deve ser ‘destruída’ para dar passagem a ‘emeta-física da

outreidade’ da afirmação do Outro como Outro que graciosamente se me ‘revela’ na epifania de seu rosto. E a

metafísica é primeiramente a ética: ‘ a ética, para além da visão e da certeza, designa a estrutura da exterioridade

como tal. A moral não é um ramo da filosofia, mas a filosofia primeira. (VILLA, 1998))

Page 71: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

69

Sin embargo, Lévinas habla siempre que el Otro es "absolutamente otro". Tiende

entonces hacial a equivocidad. Por otra parte, nunca ha pensado que el Outro pudiera

ser unindio, un africano, un asiático. El Otro, para nosotros, es América latina

conrespecto a la Totalidad europea; es el pueblo pobre y oprimido latino-americano

com respecto a las oligarquías dominadoras y sin embargo dependientes.(DUSSEL,

1973, p. 113)

O outro será a/o outra/o mulher/homem: um ser humano, um sujeito ético, o rosto como

epifania da corporalidade vivente humana; será um tema de significação

exclusivamente racional, filosófico, antropológico. (...) Nesta Ética, o Outro não será

denominado metaforicamente e economicamente sob o nome de “pobre”. Agora,

inspirando-nos em W. Benjamin, o denominarei “a vítima”- noção ampla e complexa.

(DUSSEL, 2002, p.16-17)

Reconhecer quem é o Outro em sua alteridade, no face a face, é necessário para abandonar

um padrão que torna o “eu mesmo”, a mesmidade, o padrão de referência. A partir desse

momento, Dussel passa a problematizar a libertação desse Outro como pressuposto ético, que

não nasce em mim, mas no Outro. É o Outro quem me tira do meu lugar ao dizer “tenho fome!”.

Como demarcado por Casali, ao escutar o grito ético só me resta inquietar-me ou não. Se a relação

de mesmidade não me permite olhar e ouvir o Outro, ele irá ser subsumido em um padrão de

mesmidade, o mesmo padrão que colonizou o Outro, que o encobriu e o fez vítima.

Estamos antes de todo ello. Estamos ante el esclavo que nació esclavo y que no sabe

que es persona. Simplemente grita. El grito, como ruido, rugido, clamor, proto-palabra

todavía no articulada, que es interpretada en su sentido por el que tiene conciencia ética.

Indica simplemente que alguien sufre y que desde su dolor lanza un alarido, un llanto,

una sú- plica. (DUSSEL, 2002, p. 20)

Para extinguir o padrão de mesmidade, Dussel (1993) propõe a transmodernidade. Nesse

conceito, ele evidencia que a razão moderna teve o seu momento de irracionalidade percebida no

mito sacrifical de negação do Outro, pelo padrão de mesmidade do colonizador. Ao olhar para si

como único e não se ver no Outro, a razão moderna violentou e encobriu o Outro.

Entretanto, não há uma desilusão da razão na escrita dusseliana. Como proposto por

Dussel (1993, p. 24), não há uma negação da razão como é percebido em alguns escritos pós-

modernos. Não se nega, mas se afirma a razão do Outro numa proposta de mundialidade

transmoderna.

O primeiro ponto relacionado à transmodernidade são as duras críticas realizadas à

totalidade ontológica europeia, que se reconhece como padrão de mesmidade, e que impossibilita

ao Outro a construção de narrativas em face da colocação da Europa como sujeito soberano da

História, propondo uma afirmação dessas culturas negadas e ocultadas pela modernidade.

Page 72: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

70

Há ainda, segundo Mota Neto (2015), outras três estratégias fundamentais para o

desenvolvimento do projeto transmoderno: primeiro, a necessidade de uma crítica interna dessas

culturas negadas, realizadas pelos seus membros. Ainda, o importante papel dos críticos (algo

bem parecido com o intelectual orgânico) que vivem nas fronteiras em ajudar na construção de

um pensamento crítico que ajunte tradições de fronteira. Posterior a autocrítica e pelo diálogo

intercultural, já se pode falar de culturas descolonizadas, transmodernas.

Para pensar os pontos de construção da ética (que seja transmoderna, aponte o quanto a

modernidade foi totalizadora e pense uma possibilidade transmoderna), Dussel (1977)

desenvolve quatro momentos metafísicos de análise da América latina: política, erótica,

pedagógica e antifetichismo.

Todos esses momentos partem da relação eu-outro como fundamento de análise. A

relação política parte das relações irmão-irmão, e não se resume a apenas uma ação política

profissional, mas às ações humanas sociais que não se dão dentro dos outros três níveis de análise.

A erótica diz da relação varão e mulher. Como descrito por Dussel (1977), se na análise

política haveria uma distância entre os sujeitos, agora há uma proximidade. A erótica é o

momento em que se realiza o desejo do outro como outro. Caso o outro seja considerado coisa

ou objeto, já não acontece mais a erótica, porque, ao perder a alteridade, nega-se a gratuidade, a

entrega, a liberdade e a justiça com o outro. Quando se afunda em um padrão de mesmidade, essa

relação se transforma em machismo e numa sociedade falocrata.

O fetichismo é a totalização da mesmidade, a impossibilidade do Outro. Por exemplo, na

erótica temos como totalização o machismo. A falocracia dominadora torna as mulheres

submissas e as impede de ser o Outro. Em várias dimensões, Dussel (1977) abordará essa

totalidade, como ocorre também na escola. É só a escola a responsável por “dar” o saber legítimo

à sociedade, aquele que está fora dela é sempre o inculto e analfabeto.

Por último, e com mais cuidado nos detemos, Dussel (1977) desenvolve a pedagógica.

Diferente da pedagogia, a pedagógica preocupa-se com a proximidade pai-filhos, mestre-

discípulo, não exclusivamente desenvolvida nos processos escolarizados. A pedagógica também

está centrada nas relações médico-enfermo, advogado-cliente, artista-espectador, centrando-se

nas áreas da educação, saúde e bem-estar.

Assim, o sistema pedagógico divide-se em erótico ou doméstico e político ou social. No

primeiro, temos aquele que educa dentro do ethos tradicional, no qual o varão domina a mulher

e o casal domina o filho. Já o sistema pedagógico político ou social, além de educar igualmente

dentro do ethos social, tem a presença de instituições, como o sistema de escolaridade e os

sistemas dos meios de comunicação. Essa separação é simplesmente para análise, pois há um elo

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71

indissociável entre esses dois momentos, afinal “a criança que nasce no lar é educada para fazer

parte da comunidade política, e a criança que nasce numa cultura cresce para formar um lar”.

(DUSSEL, 1977, p.93).

Dentro dessa dimensão da pedagógica, Dussel (1977) traz seis divisões18, das quais nos

deteremos com maior apreço nos pontos em que se centra a análise da educação escolarizada.

A Pedagógica simbólica diz do processo político de dominação que ocorre dentro da

América Latina. Para tanto, o autor faz uma comparação com Emílio de Rousseau19. Emílio,

segundo o autor, é o ícone da individualização burguesa. Afinal, é desligado do mundo e

submetido à “essência” do conhecimento para que seja educado. O isolamento da comunidade e

o contato exclusivo com o seu o preceptor aparenta-se, segundo Dussel (1997a), à ação do

dominador sobre o nativo. Afinal, é o isolamento da sua cultura que possibilitaria a uma

aceitação, sem questionamentos, do que passaria a ser a verdadeira educação, vinda de uma fonte

incontestável e neutra do conhecimento.

Para Dussel (1997), quando o dominador se torna o pai, opressor e dominador, a América

Latina passa a representar o filho, o mestiço. Órfão de mãe (a cultura) esse filho passa a ter como

fonte do “verdadeiro” conhecimento a dominação ideológica e a negação de sua alteridade.

Para Dussel (1977), é nos limites da interpretação da dialética pedagógica que se estuda

a ontologia dominadora vigente, que tem suas origens na Europa e de forma mais recente na

América do Norte. Portanto, é necessário vislumbrar o processo de dominação cultural a partir

da problematização desses lugares.

O primeiro momento da cultura moderna foi dizer não à cultura que lhe antecede, que

estava baseada no antigo regime, com sua lógica feudal e rural. Assim, seria novamente a partir

de Rousseau, que Dussel (1977) vê o nascimento da “instituição pedagógica” moderna. Por isso,

Emílio é órfão, porque deveria cortar os laços com a “mãe”, ou seja, com a cultura medieval,

tornando-se responsável o pai-Estado (burguês) pela educação. Nessa nova relação, exigem-se

outras formas de saber e capacidades que, segundo Casali (1979), têm como critério absoluto a

noção de utilidade. O educando tem que estar livre de condicionamento para poder ser conduzido

pelo projeto educador.

Como apontado por Casali (1979), em nome de um projeto nunca confessado, a cultura

neocolonial passa a ter membros que apoiam o mecanismo pedagógico vindo do império,

18 As partes da pedagógica apresentadas pelo autor são: A pedagogia simbólica, Limites da interpretação dialética

pedagógica, Descrição metafísica da pedagógica, A economia pedagógica, A eticidade do projeto pedagógico, La

moralidade de la práxis pedagógica. 19 Refere-se aqui a obra de Rousseau Emílio ou da educação, obra escrita em Paris no ano de 1762.

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72

legitimando-o como o único modelo possível de educação e como caminho necessário a se

elevarem às sociedades colonizadas.

Diante desses dois momentos em que temos a supressão do filho, a América Latina,

Dussel (1997) apresenta a descrição metafísica da pedagógica. Nesse momento, ele se propõe a

discutir a superação da ontologia pedagógica da dominação, descobrindo a exterioridade do filho

em uma pedagogia da libertação.

La ontología pedagógica es dominación porque el hijo-discí- pulo es considerado como

un ente en el cual hay que depositar conocimientos, actitudes, "lo Mismo" que es el

maestro o preceptor. Esa dominación incluye al hijo dentro de la Totalidad: se lo aliena.

En este caso el hijo-discípulo es lo educable: el educado es el fruto, efecto de la

causalidad educadora. Es una causalidad óntica, que pro-duce algo en algo. (DUSSEL,

1977, p. 145)

Dussel (1977) aponta que, para eliminar a noção de totalidade encontrada na mesmidade,

é necessário reconhecer que há um legado humano que deve ser transmitido às novas gerações.

Mas esse conhecimento não deve ser uma tradição sufocadora, não devendo ficar vinculada ao

silenciamento, e sim à recriação em um duplo sentido, o de criar o novo e de celebrar a liberdade

do filho, reconhecendo que ele não é órfão e, portanto, não pode ser manipulado, domesticado

ou retirado de sua cultura. Ele é filho das culturas silenciadas, dos nativos, das culturas negras e

mestiças.

Entretanto, isso só ocorre frente à escuta do Outro, dentro da dicotomia palavra-escuta,

que possibilita o acolhimento do Outro, para assim também se pensar no papel do educador. “El

auténtico maestro primero escuchará la palabra objetante, provocante, interpelante, aun insolente

del que quiere ser Otro. Sólo el que escucha en la paciencia, en el amor-dejusticia, es la esperanza

del Otro como liberado, en la fe de su palabra. Sólo él podrá ser maestro.” (DUSSEL, 1977, p.

153)

O professor tem o papel de ser aquele que escuta e que quer ser ouvido, a partir de uma

relação face a face, que busca retirar aquilo que é constituído como imposição ao colonizado e

encontrar a alteridade em sua face, como Outro. Não como aquele que busca a essência da

verdadeira cultura do nativo, mas busca encontrar a alteridade. Quanto à busca de sua essência,

não é esse o ponto em questão defendido pelo autor, mas o reconhecimento da alteridade frente

às imposições culturais nos processos da pedagógica.

Já o momento da econômica pedagógica é descrito por Casali (1979) como o momento

em que Dussel busca a “mediação entre o âmbito prático (político-erótico-pedagógico) e o

poiético (trabalho, relação homem-natureza)”. Contra a ontologia que diz que nossa primeira

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73

relação é homem-natureza, Dussel defende ser ela homem-homem, afinal nossos primeiros

cuidados são feitos por alguém, e principalmente, nossa alimentação.

Se a pedagógica erótica nos fala da relação pai/mãe e seus filhos, a pedagógica política

se abre ao âmbito do Estado, com as relações de classes, cultura e tecnologia. A econômica

pedagógica preocupará em diminuir a distância entre a erótica e política, entendendo a erótica

como o momento e os aprendizados do lar e a política como os aprendizados e a convivência em

sociedade. Ou seja, ela faz a ponte necessária entre o convívio familiar e o social. Como descrito

por Casali (1979), é nela que se insere o âmbito do Estado, das classes sociais, da cultura e da

tecnologia. É nesse momento que se estuda a relação homem-natura, pelas relações homem-

natureza que passam a ser percebidas como diferenciação do “face a face”, a partir da criação de

sistemas, sejam eles pedagógicos, educativos ou de saúde.

Esses sistemas, ao se totalizarem, acabam abastecendo-se e explorando a quem deveriam

servir. Portanto, precisam de uma desmontagem. Assim, o sistema educativo aliena o aluno,

entregando-lhe a “mercadoria” chamada educação de forma pronta e apática.

La "escuela" se arroga así el deber sublime de dar toda la cultura al niño (como el

médico cree darle toda la salud al enfermo). Lo cierto es que con esto elimina los

subsistemas educativos, ya que antes era la familia, el viejo del pueblo o barrio, el cura

o la tía, los que educaban a los niños. Pero no sólo se eliminan los subsistemas más

baratos, reales, perfectamente adaptados a la vida cotidiana del educando, sino que se

los critica como sus enemigos (así como el médico en vez de educar a los "curanderos"

simplemente los persigue como blasfemos shamanes). (DUSSEL,1977, p.162)

Assim, entende-se que essa totalidade tem de dar à população latino-americana conteúdos

necessários para que estas se desenvolvam. Para Dussel (1977), essa “síndrome ideológica” tem

um mecanismo que lhe é próprio: os conteúdos são passados por um observador neutro, um

conteúdo neutro, portanto, distantes de uma valoração ética ou política. Entretanto, aqueles que

detêm esses conhecimentos são socialmente tidos como mais modernos e mais belos. Cria-se a

lógica da competição de um projeto liberal, afinal, aqueles que detêm esse conhecimento terão

os melhores empregos e melhores salários, basta competir e conquistar esse lugar. “De esta

manera el capitalismo del conocimiento, inherente al imperialismo profesional, subyuga a la

gente em forma más imperceptible y efectiva que los armamentos o las finanzas

internacionales.”. (DUSSEL, 1977, p. 168). Para resolver isso, são necessários, ainda segundo o

autor, novos serviços para um homem oprimido, desmistificado a pedagógica imperante e

propondo um caminho libertador que seja construído com os sujeitos e para os sujeitos e não

oferecidos a eles como benesses.

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74

O penúltimo ponto a ser trabalhado pelo autor é a eticidade do projeto pedagógico. Nesse

momento, se discute os projetos pedagógicos. Para Dussel (1977), não cabe aqui uma análise dos

métodos pedagógicos, mas de uma leitura da eticidade dos projetos. Busca-se afirmar o filho em

sua exterioridade ou negá-lo. Para isso, Dussel (1997) diferencia o conceito de cultura de suas

variáveis. A cultura imperial é aquela pretensamente universal, e é dela que se origina a

imposição de uma cultura nacional, que é uma imposição da noção de nação e que não apresenta

relações com a cultura popular. Diferente delas, a cultura popular é aquela que tem como marca

as resistências dos grupos negados em sua alteridade e dispõe de um projeto de libertação das

dominações que sofrem. É a partir dela que se tem um projeto pedagógico, ético e humano, que

fuja à dominação e que pense a libertação.

Quando o projeto é pautado na dominação, diz Dussel, o filho-população, é educado a

partir de processos de mesmidade, sendo fruto de violência, repressão com o Outro. Há de se

evidenciar que a oligarquia deseja essa educação:

Si el pro-yecto es el de una cultura dominadora, cerrada entonces la Totalidad por

exclusión de la Alteridad (que es lo real histórico: el hijo, el pueblo como el Otro), dicho

pro-yecto ha dejado de ser descubrimiento del poderser real: se ha tornado irreal,

esquizofrénico, totalizado, perverso, muerto. (DUSSEL,1977, p.173)

Assim como a dominação na colonização tem forte invasão cultural, há de se ter uma

grande reconquista e preocupação com a cultura popular, caso se queira construir um projeto

pedagógico libertador. A cultura libertadora é fruto dessa nova forma de organização. Citando o

conceito de Fanon de “homem culto”, Dussel (1997) nos diz que uma das características desse

homem é, em vez de enfraquecer o povo, chamar à luta o colonizado, sacudi-lo e despertá-lo para

a luta.

Por fim, o autor trabalha a noção da moralidade da práxis pedagógica. Nela, Dussel (1977)

busca pensar a moralidade do projeto educacional. Assim, se o projeto afirma o Outro, ele é bom,

mas, se o nega e domina, ele é mau. Há, para a explicação desse projeto educacional, algumas

relações estabelecidas por Dussel (1997):

- Dialético dominadora versus Liberadora.

- Conquistadora versus Colaborativa.

- Desmobilizadora versus Mobilizadora.

- Invasora cultural versus Criadora.

Nas bases apresentadas o autor busca pensar uma pedagógica que contribua para pensar

e problematizar uma educação distinta, que não se finda no padrão de mesmidade colonizadora,

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75

que não é doadora de um conteúdo neutro e libertador e que tenha como base, portanto, a cultura

de luta desse Outro silenciado historicamente.

O professor, torna-se figura central, porque debate as culturas e as formas de estar no

mundo, proporcionando uma construção colaborativa e libertadora do conhecimento, que rompe

com as relações de mesmidade existente na relação Eu/Outro e as coloca como relações de

horizontalidade, porque realizadas no face a face.

3.2.3 A (de)colonialidade do Ser em Paulo Freire

Apesar de Freire não discutir conceitos centrais da teoria decolonial como colonialidade

e modernidade, encontramos estreitas relações entre a sua produção teórica e a noção da

colonialidade do ser. Como descrito por Silva (2000), no Brasil, Freire é o teórico que inicia uma

discussão pós-colonial educacional.

Freire trouxe em suas obras aproximações significativas com os conceitos trazidos pelos

teóricos decoloniais, como é o caso mais explícito de sua aproximação com os escritos de Fanon,

pensando, a partir dos “condenados da terra”, as estruturas de dominação dos oprimidos. Como

descrito por Freire (2014, p.51) “ao fazer-se opressora, a realidade implica a existência dos que

oprimem e dos que são oprimidos(...)”, e essa realidade se dá nos processos de socialização e de

educação escolarizada. Assim, passa o oprimido a crer que existem estruturas “racionais” que

inferiorizam o seu ser e, de outro lado, garantem a legitimidade e superioridade do outro

dominador, por meio de um processo que naturaliza as estruturas sociais.

Segundo Maldonado-Torres, o conceito de colonialidade do ser surgiu em discussões em

um grupo de intelectuais sobre a colonialidade e a decolonialidade, a partir das teorizações de

Mignolo, respondendo a uma necessidade de se esclarecer os efeitos da colonialidade na

experiência vivida dos sujeitos colonizados e no domínio que essas experiências trazem ao existir

humano, impondo sentidos aos modos de ser e à corporeidade dos sujeitos Outros. Entretanto,

não utilizaremos a dimensão de colonialidade do ser a partir dos escritos de Mignolo, mas das

contribuições freireanas, por compreendermos que as contribuições freireanas verticalizam-se

mais sobre as questões educacionais.

Como descrito por Mota Neto (2015) é possível perceber nos escritos de Freire, a partir

da década de 80, uma preocupação com as questões coloniais. Devido sua ida à África Freire

passa a ter contato com os trabalhos de reconstrução nacional vivenciados em muitos países

recém-libertos do jugo colonial e passa a problematizar o peso que a cultura colonizadora impôs

a colonizada.

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76

A história dos colonizados "começava” com a chegada dos colonizadores, com sua

presença “civilizatória”; a cultura dos colonizados, expressão de sua forma bárbara

de compreender o mundo. Cultura, só a dos colonizadores. A música dos

colonizados, seu ritmo, sua dança, seus bailes, a ligeireza de movimentos de seu

corpo, sua criatividade em geral, nada disto tinha valor” (FREIRE, 1978, p. 20)

Nessa estrutura, o colonizador parece ser investido de um poder inquestionável e superior,

as estruturas sociais parecem ser imutáveis e as desigualdades, o racismo e a negação do Outro

parecem se imbricar nas estruturas como algo imutável. Dentro de estruturas tão rígidas, a única

opção que parece possível àqueles que estão negados em sua existência é tornar-se colonizador

para alçar lugares de superioridade na estrutura social, a partir da negação daqueles traços que o

inferiorizam, e do aprendizado do conhecimento e da cultura “superior”.

De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem

saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto,

terminam por se convencer de sua “incapacidade”. Falam de si como os que não sabem

e do “doutor” como o que sabe e a quem devem escutar. Os critérios de saber que lhe

são impostos são os convencionais. (2014, p.69)

Os processos de escolarização, seja na universidade ou na escola básica, atuam, por vezes,

reforçando a validade desse conhecimento e da cultura moderno colonial como superior as

demais, legitimando-os como únicos conhecimentos válidos e reforçando os sentidos de

inferiorização conferido aos saberes Outros.

Como descrito por Dussel (2003), há um mito da modernidade que é ensinado a nós

colonizados: a modernidade e seus saberes serão redentores a todos os povos colonizados. Ao

impor e fixar esse sentido único a educação, ela se distancia do diálogo e se aproxima de uma

perspectiva domesticadora do ser e negadora da práxis histórica humana. Nas palavras de Freire,

torna-se uma educação para a invasão cultural.

Daí que a invasão cultural, coerente com sua matriz antidialógica jamais possa ser feita

através da problematização da realidade e dos próprios conteúdos programáticos dos

invadidos. Aos invasores, na sua ânsia de dominar, de amoldar os invadidos a seus

padrões, a seus modos de vida, só interessa saber como pensam os invadidos seu próprio

mundo para dominá-los mais. É importante, na invasão cultural, que os invadidos vejam

a sua realidade com a ótica dos invasores e não com a sua. (FREIRE, 2014, p. 206)

Para romper com essa relação antidialógica e colonizadora estendida da sociedade aos

espaços escolarizados, é necessário criar condições para um diálogo que nos permita escutar os

sujeitos e o ato dialógico como impulsionadores do pensamento crítico que modifica a condição

humana no mundo. Modifica porque exige dos sujeitos que suas palavras sejam intrínsecas as

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77

suas formas de agir no mundo, distanciando-se da acomodação e da crença na impossibilidade

de modificação do mundo, superando o fatalismo que cede lugar à transformação de homens e

mulheres e passam a buscar a construção para o ser mais.

O ser mais, da perspectiva freireana, vincula-se a uma vocação para a humanização

presente nos seres humanos que sempre inquietos buscam novas formas para estar no mundo

afirmando e conquistando sua liberdade. Segundo Zitkoski (2008) essa é uma categoria central a

obra de Freire, porque nos possibilita perceber a concepção freireana de ser humano.

Assim como defendido por Fanon, Freire (2014) parte da noção que é impossível realizar

o ser mais de forma isolada: é necessária a partilha com os Outros sujeitos. Buscando não mais

um conhecimento que negue a sua existência, mas uma educação problematizadora, do quefazer

libertador. O mundo não é apenas o do palavrear, mas aquele que mediatiza os sujeitos da

educação em prol da sua humanização.

Para Dussel (2002, p.441), a importância de Freire está em apoiar a sua pedagógica em

uma comunidade de vítimas miseráveis, “os condenados da terra”. Nessas condições, em vez de

pensar um educador desesperado, ou dominador, nota-se em Freire a proposição por um diálogo

iniciado também pelo professor, que permite a prática da liberdade àqueles que não são livres.

A educação, assim como qualquer outra esfera social, não é neutra. Ela diz da formação,

da prática educativa, implica opções, rupturas e escolhas de um sonho. (FREIRE, 2014). Assim,

os mitos, como o da modernidade descrito em Dussel (2003), ou do capitalismo, devem passar a

ser problematizados e reconhecidos como dimensões de um projeto político da educação que não

pode ser neutro e ahistórico.

Dizer a palavra, como descrito por Freire (2014), é transformar o mundo, e isso não pode

ser privilégio de um grupo, mas direito de todos, direito do Outro. Daí a necessidade de que o

Outro diga a palavra, sendo impossível que alguém o faça por ele ou que o faça sozinho. Aqueles

que se encontram negados em seus direitos de dizerem a palavra devem buscar, antes de qualquer

coisa, que possam dizê-la, que reconquistem esse direito, não aceitando serem desumanizados.

Ao compreender que essa transformação do mundo não deve ser feita de forma individual,

mas coletiva, Freire (2014) utiliza-se da dimensão de classe social para dizer daqueles que são

oprimidos e opressores, ou seja, daqueles que, respectivamente, vendem e compram o trabalho.

Entretanto, em Pedagogia da Esperança, Freire (2011) revisita o conceito de classe, não para

ignorá-lo, mas para demonstrar com as relações de poder são complexas, aproximando-se das

discussões dos pensadores decoloniais

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78

Em outras palavras, o sexo só, não explica tudo. A raça só, também. A classe só,

igualmente. A discriminação racial não pode, de forma alguma, ser reduzida a um

problema de classe como o sexismo, por outro lado. Sem, contudo, o corte de classe,

eu, pelo menos, não entendo o fenômeno da discriminação racial nem o da sexual,

em tua totalidade, nem tampouco o das chamadas minorias em si mesmas. Além da

cor da pele, da diferenciação sexual, há também a “cor” da ideologia (FREIRE,

2011, p. 156).

Nesse momento, se percebe uma clara aproximação com as noções, aqui já apresentadas,

da colonialidade do poder trazidas por Quijano (2005), com o seu principal conceito

colonialidade do poder.

Entendemos que o caminho apontado por Freire (2011) para a construção de uma

sociedade, que se veja livre das condições de determinação dos seres humanos na raça, no sexo

e na classe, coaduna ainda com uma ruptura e uma luta contra o capitalismo. Entretanto, o autor

também compreende que não é condição equivalente à ruptura com o capitalismo e o fim das

condições de racismo e sexismo, por exemplo. É necessário que se evidencie as relações e as

vinculações entre uma e outra situação para que se possa, verdadeiramente e historicamente,

empreender uma luta que modifique as estruturas sociais através de rupturas com o sistema de

opressão.

3.2.4 A decolonialidade do saber

Problematizar esses conhecimentos no bojo da teoria decolonial é eminentemente buscar

romper com a totalidade discursiva europeia que ora sucumbe os Outros conhecimentos, ora os

inferioriza. Entretanto, cientes dos perigos existentes na rejeição da totalidade e da sua

substituição por teorias particularistas e impeditivas das compreensões da constituição dos

sistemas sociais e políticos globais, reforçamos que nossa concepção sobre o rompimento com a

totalidade se aproxima daquela descrita por Giroux (1993, p. 53), que compreende ser necessário

trazer a totalidade mais como um dispositivo heurístico do que como uma categoria ontológica.

“O” conhecimento presente na totalidade europeia é, portanto, aquele que elevaria todas

as populações colonizadas, devendo estar presente não apenas nas formas cotidianas de

colonialidade do ser, mas nas estruturas das instituições modernas, como as escolas e as

universidades. Como descrito por Apple, há uma hegemonia do conhecimento europeu moderno-

colonizador dentro das instituições escolares. Essa hegemonia não problematiza a concepção de

conhecimento porque o entende como algo dado e superior, naturalizando as relações com o

conhecimento e ignorando as suas relações com as culturas e formas de vida dos sujeitos.

Page 81: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

79

Boaventura de Souza Santos é um dos principais teóricos que buscam compreender essa

relação entre uma suposta naturalização do conhecimento e a ciência moderna. Para o Santos e

Rodrigues-Garavito (2004), é necessário compreender que a escolha pelo conhecimento

científico como superior às demais formas de conhecimento se dá no bojo da consolidação do

capitalismo e, portanto, esse seria o único conhecimento que possibilitaria o desenvolvimento

tecnológico e a consolidação do capital. Como também argumentado por Lander (2005), além de

ter o conhecimento tido como superior, a Europa passa a ser também a única a deter os critérios

de validade do conhecimento, porque é a única que compreende o conhecimento dentro das

noções de fragmentação presentes nos conceitos de sujeito e objeto.

Dessa forma, o conhecimento científico passa a fazer parte da construção ontológica da

modernidade europeia, criando uma hegemonia da perspectiva científica de conhecimento e uma

inferiorização das outras formas de conhecimento que não se relacionam com o desenvolvimento

tecnológico do capitalismo e, inevitavelmente, com a ciência moderna. Para a garantia da

manutenção da hegemonia do saber científico, diante do que Santos e Rodrigues-Garavito (2004)

denominou “vitalidade dos saberes do Sul”, a modernidade colonizadora aceitou que outros

conhecimentos passassem a ser reconhecidos, entretanto, numa perspectiva inferior, como

“saberes”, “conhecimentos locais” ou “etnociências”.

O que aqui compreendemos como uma concepção decolonial do conhecimento aproxima-

se das problematizações trazidas por Santos e Meneses (2008) um duplo e necessário debate

dialógico entre as formas de conhecimento acumuladas pela ciência e os conhecimentos Outros,

historicamente negados. É necessária uma contundente crítica à imposição de um particularismo

à totalidade universal, seja europeu ou não, assim como é necessário evitar o seu extremo oposto,

caindo em um relativismo “particularista” que impede o diálogo crítico entre os diferentes

grupos, fragmentando-os e isolando-os.

É junto a essa perspectiva que concebemos um conhecimento que propicie uma

interculturalidade crítica, como proposto por Walsh (2014,2009), que possibilite um projeto

político, social e epistêmico, ou seja, que reconheça que mudar as relações com o conhecimento

é inevitavelmente questionar as estruturas e as condições de desigualdade, inferiorização,

racialização e discriminação existentes no capitalismo.

Modificar a relação com o que se denomina e com o “para que serve” o conhecimento é

uma das grandes rupturas propostas pela teoria decolonial. Se, como já descrito, o conhecimento

na perspectiva moderno colonial tem um fim muito claro para a manutenção e desenvolvimento

do capitalismo e para a “elevação” cultural dos povos, conduzindo a História a uma direção

Page 82: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

80

unívoca, na perspectiva decolonial o conhecimento se apresenta como meio de libertação dos

povos, rompendo com as estruturas que os inferioriza e os invisibiliza.

Assim, numa perspectiva decolonial, os conhecimentos desse sujeito Outro colonizado

têm de estar também presentes dentro do ambiente escolarizado, disputando esses espaços para

romper com a hegemonia do conhecimento moderno colonizador e proporcionar uma relação

outra desses sujeitos com os seus conhecimentos e com a sua comunidade.

Disputar os conhecimentos presentes nas escolas e universidades faz com que o Outro

não seja mais reconhecido como aquele que é “diferente” do padrão a ser seguido na sociedade,

mas os sujeitos e os conhecimentos, tendo como base a pluralidade, passam a ser reconhecidos

como distintos, numa perspectiva dusseliana.

É preciso salientar que, como descrito por Arroyo (2014), a presença desses

conhecimentos nesses espaços não se dá sem que os sujeitos colonizados exijam e lutem para

que eles lá estejam, rompendo com a perspectiva hegemônica. Como descrito pela autora

caribenha Audre Lorde, as ferramentas do amo jamais serão utilizadas para desarmar sua própria

casa.

Quando os sujeitos camponeses se colocam contra a totalidade moderna urbanocêntrica,

eles se colocam contra não apenas a uma forma de conceber o campo, mas de se manterem e

viverem nele. Assim, o conhecimento moderno colonial que concebe os povos do campo como

inferiores e incivilizados, e que se relaciona com o campo somente dentro da perspectiva

tecnológica do conhecimento capitalista para o agronegócio, não é mais aceita por eles.

É necessário um conhecimento que coadune com suas perspectivas de campo, rompendo

com a noção de que o campo é um espaço a ser modernizado, que o reconheça não como

contraponto ao meio urbano, mas como local de produção de cultura e de conhecimento. É

necessário um conhecimento que se construa numa relação dialética entre os conhecimentos

científicos e os conhecimentos práticos do campo.

Nessa perspectiva, o conhecimento é aquele que permite ao homem e a mulher do campo

se relacionar com o seu território, não de forma abstrata e a partir de um conhecimento

verticalizado, mas de um conhecimento contextualizado.

Page 83: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

81

4 A PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO DO MST SOB A PERSPECTIVA

INTERCULTURAL E DECOLONIAL

O enfrentamento e a transformação das estruturas dos padrões de colonialidade buscam

romper com a subordinação que é naturalizada socialmente, desafiando as estruturas sociais,

políticas e também epistêmicas, que enraízam padrões de poder e silenciamento. É junto a essa

perspectiva que pensar a interculturalidade torna-se uma transgressão dentro da lógica moderna

e colonizadora.

A nova grande narrativa que se torna o paradigma desse período da modernidade é a

perspectiva neoliberal, que ganha forças e se desenvolve a partir dos anos 1990 na América

Latina, e especialmente, no Brasil.

Para Walsh (2009), a tentativa de incluir o Outro dentro do modelo de capitalismo liberal

burguês é denominada de Interculturalidade funcional. Ou seja, busca-se integrar aqueles que

estão à margem do sistema. Entretanto, essa integração é realizada através da homogeneização

dos grupos marginalizados em nome dos interesses da lógica moderna/neoliberal. Não há uma

discussão/superação dos problemas que geraram o silenciamento, a assimetria e as desigualdades

dentro do sistema: a marginalização de alguns grupos apenas cria maneiras para produzir sua

inserção.

A lógica da inclusão dos excluídos é, segundo Dussel (2007), a lógica de inclusão do

Outro no Mesmo, ou seja, da Mesmidade. O Outro não participa desse projeto pela transformação

do sistema, não é reconhecido como um igual frente a um novo paradigma institucional, mas,

como assevera Walsh (2009) e Tubino (2005), o Outro é incluído numa perspectiva de

funcionalidade ao sistema já estabelecido.

A lógica presente no capitalismo pós 1980, principalmente na América Latina, passa a

ser uma lógica do funcionamento multicultural: há uma demanda de inclusão daqueles que até

então estavam à margem como negros, índios e camponeses para comporem o desenvolvimento

da sociedade. Não há mais uma tentativa direta de exclusão, negação e submissão, uma vez que

seus idiomas, suas formas de vestir e de organização social passam a ser acolhidas até mesmo

pelas Constituições. Contudo, também passa a ser neutralizada e esvaziada de seus significados.

É uma estratégia política funcional ao sistema/mundo moderno e ainda colonial;

pretende “incluir” os anteriormente excluídos dentro de um modelo globalizado de

sociedade, regido não pelas pessoas, mas pelos interesses do mercado. Tal estratégia e

política não buscam transformar as estruturas sociais racializadas; pelo contrário, seu

Page 84: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

82

objetivo é administrar a diversidade diante do que está visto como o perigo da

radicalização de imaginários e agenciamento étnicos. Ao posicionar a razão neoliberal

– moderna, ocidental e (re)colonial – como racionalidade única, faz pensar que seu

projeto e interesse apontam para o conjunto da sociedade e a um viver melhor.

(WALSH, 2009, p. 20)

A inclusão na lógica funcional mantém negada a alteridade do Outro, não avançando para

discussões que permitam uma sociedade mais equitativa, mas para a contenção/ocultamento dos

conflitos e lutas na sociedade, a partir da inclusão dos grupos historicamente excluídos.

Essa lógica de inclusão ganha força quase simultaneamente à pressão e a pluralidade de

movimentos sociais que ocorrem no Brasil, principalmente a partir da década de 1980. Como

descrito por Gohn (2011), após esse período, as ações coletivas, em seus caráteres sociopolíticos

e culturais, fizeram com que a população se organizasse para reivindicar antigas pautas: para

tanto, as técnicas foram da denúncia aos atos de desobediência civil.

Esses movimentos, como apresentado por Gohn (2011), passaram a exigir uma

descolonização das suas formas de ser e de poder, exigindo e apresentando novas pautas que lhes

possibilitassem pensar suas lutas, não mais a partir de um modelo de desenvolvimento gestado

pelo centro, mas a partir das demandas e construções históricas desse Outro.

Entretanto, como descrito por Walsh (2009), apesar de inicialmente esses movimentos

trazerem pautas novas, suas demandas acabaram por ser incluídas dentro da lógica funcional do

Estado, sendo o Outro incluído dentro do padrão de Mesmidade.

As políticas desenvolvidas pelo Estado após 1980 na América Latina visavam reformas

constitucionais para possibilitar a inclusão funcional de alguns grupos à sociedade. Walsh nos

relata o que ocorreu em algumas políticas na área da educação para os povos indígenas.

As reformas educativas e constitucionais latino-americanas dos anos 90 podem ser

compreendidas dentro deste interesse e responsabilidade de “transformação”.

Efetivamente, a orientação relacionada aos “Povos Indígenas” incluía elementos

relacionados à educação, ao desenvolvimento e aos direitos legais – particularmente os

direitos de identidade e da terra -, oferecendo desta maneira critérios para as reformas

jurídicas dentro de um marco encaminhado ao projeto neoliberal de ajuste estrutural,

dando reconhecimento e inclusão à oposição dentro do Estado-nação, sem maior

mudança radical ou substancial em sua estrutura hegemônico-fundante. (WALSH,

2009, p. 19)

A leitura trazida por Gohn (2011) sobre a atuação do Estado frente às demandas dos

Movimentos Sociais no Brasil se aproxima daquelas tomadas pelo governo equatoriano sobre a

educação indígena. Ante as demandas trazidas pelos Movimentos Sociais para a presença atuante

do Estado visando à asseguração de seus direitos, o Estado passa a realizar uma inclusão desses

movimentos no jogo político. Ocorre uma proliferação de fóruns, conselhos e conferências, como

Page 85: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

83

formas utilizadas pelo Estado para institucionalizar a participação popular, obrigando os

movimentos sociais a buscarem uma rearticulação para participação nessa nova estrutura posta.

Essa proposta pode, segundo Walsh (2009), trazer uma perspectiva de re-forma ao sistema, a

adesão ao jogo político se enfraqueça as relações sociais da organicidade dos movimentos para

a burocracia e a inclusão funcional a sociedade.

Como descrito por Apple (2006), a perspectiva da interculturalidade funcional deve ser

compreendida como um avanço em direção à perspectiva do Outro, já que passa a problematizar

e a pensar os grupos marginalizados. Essa é uma vitória dos movimentos sociais, na medida em

que não foram dádivas do opressor o reconhecimento do Outro, entretanto, percebe-se que as

negociações para a existência desses grupos se deram da forma mais conservadora, “controlada”

e “segura” possível, o que leva a uma manutenção do padrão de poder, ao perpetuar a estrutura

capitalista, ou seja, aquela que produz a desigualdade e o silenciamento do Outro.

Como descrito por Fleuri (2001), a interculturalidade tem sido motivo de esforço e de

grande elaboração teórica e implementação em políticas educacionais não só no Brasil, mas na

América Latina, orienta principalmente o desenvolvimento de propostas curriculares da

educação básica à formação de educadores.

Se a interculturalidade funcional tem como âmago de seu projeto a inclusão do que é

considerado “diverso”, mantendo intocáveis as relações com o capital, as desigualdades e o

silenciamento do Outro, a perspectiva intercultural crítica traz em seu centro a problematização

das relações de poder que foram naturalizadas pelo discurso hegemônico europeu, questionando

a diferença colonial e buscando um novo paradigma de reconhecimento do Outro, que tenha uma

prática voltada para o questionamento, a transformação da sociedade e da humanidade.

Walsh (2009) nos traz a diferença primordial entre um paradigma e outro. Enquanto a

interculturalidade funcional atende a longo prazo aos interesses das instituições sociais, a

interculturalidade crítica é uma construção de e a partir das demandas dos Outros que sofreram

histórica submissão e subalternização. A perspectiva crítica intercultural é, portanto, um projeto

que busca uma com-vivência Outra, a partir de Outra organização social.

Recordar que a interculturalidade crítica tem suas raízes e antecedentes não no Estado

(nem na academia), mas nas discussões políticas postas em cena pelos movimentos

sociais, faz ressaltar seu sentido contra-hegemônico, sua orientação com relação ao

problema estrutural-colonial-capitalista e sua ação de transformação e criação.

(WALSH, 2009, p.22)

Pensar a interculturalidade crítica é ir além da inclusão dos grupos excluídos socialmente,

segundo Walsh (2009), e da criação de programas “especiais” que permitam a inclusão desses

Page 86: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

84

grupos. A relação com o Estado nessa perspectiva é sempre tensa e necessária, afinal, a presença

do Estado é demandada pelos grupos historicamente negligenciados como meio de assegurar

seus direitos. Entretanto, essa presença não pode ocorrer como uma benesse paternal, que

mantém a invisibilidade do Outro e de suas vozes.

A interculturalidade crítica, como ferramenta pedagógica, possibilita o questionamento

dos padrões de subalternização e inferiorização do Outro, garantindo que maneiras distintas de

ser, viver e se saber mediante ao mundo não sejam concebidas como inferiores a outras formas,

mas possibilitem um diálogo que crie legitimidade, dignidade, igualdade e equidade.

A presença desse Outro (reconhecendo-se como marginalizado e se organizando para

romper com o silenciamento histórico que negou a eles o direito ao acesso à terra, ao trabalho e

a justiça) enfraquece as representações sociais que, a partir da colonização, os produziram como

coletivos inferiores. Daí tamanha resistência e incomodo vindos socialmente de movimentos

sociais, porque, ao se tornarem presenças afirmativas, pressionam por mudanças radicais nas

formas históricas de pensá-los e de organizar a sociedade. (ARROYO, 2014, p. 121)

Dessa forma, a criação pelo Estado, como descrito por Gonh (2011), de fóruns, conselhos

e conferências como meio de institucionalizar a participação desses grupos, tem sido utilizada

pelos movimentos sociais não como forma de uniformizá-los ou de subsumi-los ante a

burocracia, mas de buscar, pela via do Estado, uma forma de se pensar processos interculturais

críticos de criação de um paradigma de educação escolarizada que atenda a seus interesses.

É notório como isso passa a ocorrer no Brasil, principalmente com os movimentos

voltados para as lutas camponesas, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores (as) Rurais

Sem Terra. Na busca pela construção de Outra forma de organização social, o movimento passa

a articular-se para questionar algo que faz parte de uma estrutura social histórica do país, e traz

marcas patentes do latifúndio em sua constituição, atreladas a um longo histórico de escravidão.

O Movimento organizado por sujeitos silenciados historicamente entra em cena e afirma

seus sujeitos de culturas e de saberes, retirando-os do lugar de subalternização. Esse

reconhecimento coletivo está para além da ocupação da terra, pois trazem a afirmação dos seus

lugares de cidadãos de direitos e de produtores de cultura, reconhecendo as dimensões simbólicas

dos sujeitos campesinos e seus objetivos de construção de utopias libertarias.

Há, entretanto, uma tensão que precisa ser evidenciada na aproximação dos movimentos

sociais com o Estado na busca por uma educação Outra. Como descrito por Fleuri (2001), têm

de ser conquistados pelos trabalhadores não só a possibilidade de utilizarem o espaço escolar,

mas fundamentalmente transformá-lo, fazendo com que as contradições referentes ao saber e ao

poder, presentes nas relações entre movimentos sociais e escolarização, sejam evidenciados.

Page 87: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

85

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra20 tem o seu processo de criação entre

os anos de 1979 e 1984, sendo formalmente criado em 1985 no Primeiro Encontro Nacional dos

Trabalhadores Sem Terra, em Cascavel, no estado do Paraná. Outros movimentos associados à

luta pela terra, além de movimentos favoráveis a luta campesina, como a Central Única dos

Trabalhadores, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e Operários, a Comissão da Pastoral da Terra

estiveram presentes junto a trabalhadores de doze estados brasileiros, no encontro de

formalização do Movimento.

Há, ainda, outro marco dessa criação, anterior ao supracitado: em 1979, no município de

Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, aconteceu a primeira ocupação de terras realizada pelo

Movimento, tendo o apoio da Comissão da Pastoral da Terra (CPT).

O surgimento do MST não se restringe, obviamente, às conjunturas políticas e

econômicas que se circunscrevem ao período da articulação de seu surgimento, mas a um

complexo histórico de contradições históricas, principalmente entre a manutenção/criação de

latifúndios e a exploração dos trabalhadores do campo, num país que se caracterizou com agrário-

exportador, pelo menos até a década de 1940. Contudo, restringiremos nossa escrita sobre a

criação do MST às condições históricas imediatas que fomentaram a criação do Movimento.

Segundo Neto (2011), o período que se inicia com a ditadura civil militar trouxe inúmeras

modificações às formas de trabalho no campo. A intensificação dos processos de modernização

passou a exigir trabalhadores que tenham qualificação para o manuseio das tecnologias utilizadas

para realizar o cuidado com o solo, colheita e plantação. Os trabalhos antes realizados pelo

homem camponês passam a ser substituídos por uma espécie de “gestão” das atividades

desenvolvidas pelo maquinário, que passa a ser o “responsável” pelo aumento e desenvolvimento

da produção.

Essa mudança tende a conservar a concentração da terra na mão de alguns, já que o

pequeno produtor é expropriado, passando agora a ser um trabalhador assalariado ou migrando

para áreas periféricas dos grandes centros urbanos. Segundo dados do IBGE, a taxa de

urbanização da sociedade brasileira aumentou em 11% entre os anos de 1960 e 1970, o maior

índice registrado entre as décadas de 1940 e 2000, elevando para mais de 50%, exatos 56%, a

área de população urbana no país.

20 Ou ainda Movimentos dos Sem Terra ou MST. Segundo Stédile a escolha do nome se deu a partir de discussões

sobre o sentido de classe pertencente ao grupo e a um nome que a mídia já os vinculava, de forma pejorativa nos

noticiários. “Fizemos uma reflexão profunda sobre o assunto e aproveitamos o apelido pelo qual já éramos

conhecidos pela sociedade: “os sem-terra”. Aprovamos por unanimidade o nome de Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra. Na verdade, a escolha do nome foi um debate ideológico. Paralelamente, fizemos uma reflexão

no sentido de que deveríamos resgatar o nosso caráter de classe. Somos trabalhadores, temos uma sociedade com

classes diferentes e pertencemos a uma delas. Esse foi o debate. ” (STÉDILE; MANÇANO,2005, p.470)

Page 88: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

86

Todavia, a exaustão da condição do trabalho no campo devido ao agronegócio, não seria,

segundo Caldart (2012), o único ponto para fomentar a criação de um movimento social que

organizasse os trabalhadores do campo. Outros fatores ocorridos durante esse período podem ser

elencados como motivadores.

A presença cada vez mais atuante da Igreja Católica, desenvolvendo os ideais de

libertação propostos pela teologia da Libertação, impulsionou a criação, em 1975, da Comissão

Pastoral da Terra (CPT). Atuando nas periferias das regiões urbanas e nas comunidades rurais, a

CPT tornou-se ponto de referência e de incentivo à organização dos trabalhadores do campo.

Apesar de seu surgimento ser regional, na cidade de Goiânia, logo a CPT espalhou suas ideias,

principalmente, nas regiões Norte e Centro-Oeste, onde ocorriam muitos conflitos devido a posse

de terra, com altos índices de violência.

Caldart (2012) também discorre sobre a chegada de novos sujeitos na cena política, nos

anos 1980, surgidos, principalmente, da pressão popular como reação a já desgastada Ditadura

Militar. Somadas às memórias de lutas enfrentadas no campo, como Canudos e Contestado, há

aquelas que são conceituadas como fatos desencadeadores: ou seja, lutas que estavam na

memória recente de muitas populações e que, vinculadas à força da CPT, os incentivam a seguir

lutando.

Como exemplos desses fatos desencadeadores Caldart (2012) relata: a expulsão dos

índios Kaigang da Reserva Nonai no Rio Grande do Sul, em 1978; a chamada “farsa da peste

suína africana” em Santa Catarina, quando o Estado matou dezenas de porcos de pequenos

proprietários camponeses, nunca se tendo comprovado o surto dessa doença na ocasião; no

Paraná, a expropriação de famílias de pequenos produtores para a construção da Usina Elétrica

de Itaipu, sem a devida indenização; no Mato Grosso do Sul, devido às formas de apropriação de

terras pelos fazendeiros.21

Desse conjunto de contradições e lutas originou-se o Movimento. A primeira grande

decisão a ser tomada seria qual a forma de enfretamento e resistência a ser utilizada, tendo

decidido pela ocupação de terras. Tornou-se também necessário pensar princípios organizativos

e metodologias próprias para sua organização e desenvolvimento, segundo Caldart (2012), a

partir das vivências e lutas cotidianas, vindas das ocupações. Foram criados então os seis

princípios do Movimento.

21 Para compreender mais sobre a história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ver Caldart, 2012 e

Stédile, Mançano 2005.

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87

*Construir uma sociedade sem exploradores e onde o trabalho tem supremacia sobre o

capital;

*A terra é um bem de todos. E deve estar a serviço de toda a sociedade;

*Garantir trabalho a todos, com justa distribuição da terra, da renda e das riquezas;

*Buscar permanentemente a justiça social e igualdade de direitos econômicos, políticos,

sociais e culturais;

*Difundir os valores humanistas e socialistas nas relações sociais;

*Combater todas as formas de discriminação social e buscar a participação igualitária

da mulher. (MST, 1995, p.28)

Esses princípios nos demostram como o Movimento busca romper com o paradigma

moderno/colonial, porque não se limita a pensar exclusivamente o acesso à terra, mas, como

descrito por Walsh (2008), ao analisar os movimentos sociais latinos, percebe-se uma

preocupação com as lutas que envolvem as dimensões políticas, epistêmicas e sociais.

Há uma preocupação com a construção dos saberes que legitimam e organizam suas

práticas. Assim, esses Outros se sabem não apenas vítimas do processo colonial, mas detentores

de conhecimentos que passam a trazer como centrais nas lutas. Esses saberes lhes possibilitam

pensar e organizar de forma marginal a desenvolvida pela sociedade, recusando-se a ser incluídos

em processos históricos como subcidadãos, subalternos e inferiores.

Talvez aí esteja calcado um dos pontos centrais para se compreender o MST como grupo

de resistência decolonial. Ao criar uma nova relação social a partir de valores marginais, ou seja,

combatendo formas de discriminação social e de opressão originárias do padrão

moderno/colonial, em confronto com o projeto individualista do capitalismo, eles se tornam

produtores de um conhecimento que produz resistência, indo de encontro dos saberes

hegemônicos na sociedade.

Afinal, dentro da perspectiva moderna/colonial de desenvolvimento o campo é relegado

ao lugar do atraso, da incivilidade e do que tende a ser superado pelo “progresso”. Quando os

sujeitos do campo passam a pensar e a produzir maneiras de permanecerem no campo, criando

uma lógica Outra que seja alternativa ao projeto hegemônico da sociedade, eles se colocam

dentro da lógica decolonial.

Por isso da afirmação de Caldart (2012), de que o MST ganha características que se

sobressaem a de um movimento social, passando a ter características de uma organização social.

Apesar de trazer em seu centro a luta pela terra, há outras demandas em seus princípios de atuação

na sociedade que a demanda agir em outros campos da sociedade que não apenas nas ocupações

de terras.

Isso passa a ocorrer, ainda segundo a autora, a partir de dois pontos que ela elenca como

centrais. A decisão de que o MST se preocuparia com a identidade do assentamento, ou seja,

mesmo depois de findado o processo burocrático da propriedade da terra pelos trabalhadores,

Page 90: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

88

ainda seriam reconhecidos como parte do Movimento Sem Terra. Quanto a esse ponto, Caldart

(2012) afirma que há uma pressão governamental para que os sujeitos que foram assentados

passassem a ser “com-terra” e que se desvinculassem do MST; entretanto, a dura realidade

vivenciada após a conquista dos assentamentos os levou a outras lutas cotidianas, como escolas,

principalmente para as crianças, bem como créditos especiais para realizarem cultivo da terra.

Daí se desdobra a segunda característica: ao passarem a ampliar a luta do Movimento

para as condições de vida daqueles que estão assentados, passa-se a reconhecer que os

assentamentos seriam “lugar de relações sociais alternativas, apontando para a construção de

novas formas de organização da produção e de desenvolvimento do campo como um todo.”

(CALDART, 2012, p.141). Não se restringindo, portanto, apenas a uma construção distinta de

campo, mas a um novo projeto de sociedade.

Um dos grandes exemplos dessa atuação do Movimento diante de uma construção de

Outro projeto de sociedade é a mobilização realizada contra a privatização da Companhia Vale

do Rio Doce, uma das mais importantes estatais do país e a maior empresa de ferro do mundo,

naquele momento. Segundo Caldart (2012), a maior mobilização ocorrida se deu 1997, na

véspera do dia marcado para o leilão.

A ousadia e a luta pela construção de Outra sociedade passavam a ganhar cada vez mais

pessoas, que comungavam com os ideais propostos pelo Movimento. Como descrito por Stédile

“Ninguém ficava pedindo atestado de atuação. Isso também deu uma consistência maior para o

MST. Ele soube se abrir ao que havia na sociedade. Simplesmente ele não se fechava e não se

fecha em um movimento camponês típico, no qual só entra quem pega na enxada.”.

(MANÇANO; STÉDILE, 2005, p. 33.)

Ao se colocar contra a estrutura de dominação capitalista que os oprime e que

impossibilita a esses Outros existirem em suas terras, ou ao direito de terem acesso à terra, eles

se colocam frente ao modelo pretensamente universal neoliberal, provocam conflitos no âmago

da colonização brasileira pautada pelo latifúndio e se posicionam como produtores de uma nova

forma de organização, partindo de outros saberes para combater o padrão de exclusão da

modernidade/colonialidade. O Movimento não busca ficar à margem da ação do Estado, muito

pelo contrário, busca exigir dele a sua responsabilidade como mantenedor dos direitos das

populações do campo.

Como descrito por Caldart (2012), é necessário ressaltar que foram as escolhas desses

sujeitos de lutarem contra suas situações de opressão que construíram a existência do MST e o

torna possível cotidianamente. “Trata-se da marca da escolha das pessoas de reagir à sua

condição de sem-terra lutando pela terra, e de passar a perceber um problema que lhe parecia de

Page 91: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

89

cada trabalhador, ou no máximo de cada família, como um problema coletivo, e com alternativas

de solução coletivas.”. (CALDART, 2012, p. 124)

4.1 A construção do saber do MST

Apresentadas as parcerias feitas e os avanços realizados nas políticas públicas para o

campo, passamos agora a expor as experiências do MST para a educação e seus princípios

educacionais.

Para a formação dessas parcerias foram importantes os princípios e orientações criadas

pelo MST, que desenvolve em 1999, em um dos seus “Cadernos de Educação”, uma relação de

seus cinco princípios filosóficos e seus treze princípios pedagógicos. Ao abordar o conceito de

educação, o documento considera a importância dos processos de educação desenvolvidos pelas

práticas de formação do MST em processos não escolarizados, com a formação de militantes

para a organização e para as lutas dos trabalhadores (as), enfocando também a importância da

educação escolarizada e da criação de escolas nos acampamentos e assentamentos, além da

formação de Professores (as) e monitores para a educação infantil. Assim a educação é definida:

Um processo pedagógico que se assumo como político, ou seja, que se vincula

organicamente com os processos sociais que visam a transformação da sociedade atual,

e a construção, desde já, de uma nova ordem social, cujos pilares principais sejam, a

justiça social, a radicalidade democrática, e os valores humanistas e socialistas.

(CADERNOS DE EDUCAÇÃO DO MST, 1999, p. 6)

São cinco os princípios filosóficos do MST: o primeiro é a Educação para a

transformação social. Pautado nos ideais de classe e na aproximação com movimentos sociais,

busca-se construir uma educação que forme sujeitos capazes de intervir na sociedade,

construindo a hegemonia do projeto político dos trabalhadores (as), e propondo uma atuação que

não se restrinja a lutas específicas de uma realidade imediata, mas a construção de um espaço

social de transformação. O princípio de Educação para o trabalho e cooperação tem como base

a luta pela reforma agrária, na qual a cooperação constrói novas relações sociais de luta pela terra

e de uma nova organização do campo, que se contraponham a noção de campo criado pela cidade,

como lugar do atraso e da incivilidade.

Há também em seus princípios discussões sobre a Educação voltada para as várias

dimensões da pessoa humana, ou, em outras palavras, uma educação omnilateral, propondo o

desenvolvimento integral do ser humano e de uma intrínseca relação com a práxis. Além dos dois

últimos pontos, Educação com/para valores humanistas e socialistas e Educação como um

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90

processo permanente de formação transformação humana, que descrevem a práxis e a

necessidade de romper com o capital e os valores do individualismo ante a construção da

revolução na sociedade, crendo no ser humano e na sua capacidade de construção histórica da

realidade vivida socialmente.

Descritas as concepções gerais defendidas pela educação do MST e da sua relação com a

sociedade, é necessário apresentar os princípios pedagógicos que dizem da metodologia dos

princípios educativos e das maneiras de organizar e concretizar os cinco princípios expostos.

1º Relação entre prática e teoria.

2ºCombinação metodológica entre processo de ensino e de capacitação.

3º A realidade como base da produção do conhecimento

4º Conteúdos formativos socialmente úteis.

5º Educação para o trabalho e pelo trabalho.

6º Vinculo orgânico entre processos educativos e processos políticos.

7º Vinculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos.

8º Vinculo orgânico entre educação e cultura.

9º Gestão democrática.

10º Auto-organização dos/das estudantes;

11º Criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos educadores/das

educadoras

12º Atitude e habilidade de pesquisa

13º Combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais. (CADERNOS

DE EDUCAÇÃO MST, 1999, p. 24)

No primeiro princípio já se evidencia a motivação da educação como ação para a

transformação social, negando a proposta de neutralidade do conhecimento e propondo uma

relação necessária entre teoria e prática para a transformação do contexto social atual. Descreve-

se da seguinte maneira: “Queremos que a prática social dos/das estudantes seja a base do seu

processo formativo, seja a matéria-prima e o destino da educação que fazemos.” (1999, p. 10).

Somada a essa vinculação entre prática e teoria no processo de ensino/ aprendizagem, a

Combinação metodológica entre processos de ensino e de capacitação surge como uma nova

forma de refletir e atuar, tanto sobre os processos de formação de Professores (as) como sobre as

práticas na educação básica. Os processos de ensino seriam aqueles que se caracterizam pelo

momento que privilegia o conhecimento teórico e na capacitação que “resulta em saberes práticos

ou, como temos preferido chamar, em saber fazer (habilidades, capacidades) e em saber ser

(comportamentos, atitudes, posicionamentos)” (1999, p.12). A questão central não está em

desvincular estes saberes, mas em priorizar dimensões diferenciadas, dependendo do objetivo

formativo.

Sobre o terceiro princípio “A realidade como base da produção do conhecimento” nos

chama a atenção a sua aproximação à relação prática- teoria-prática, partindo da materialidade

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91

do educando para chegar ao todo, porque é para mudar onde se vive que se estuda. Sobre o

vínculo entre processos educativos e políticos, ao se entender como processo político qualquer

forma de manutenção ou transformação da sociedade e de sua organização, a proposta de

educação do MST compreende ser impossível desvencilhar educação e política, e propõe que a

educação seja meio pelo qual possa se problematizar a alienação presente na sociedade. A

educação do MST propõe uma formação política/ideológica dos estudantes que busca

(...) dar ênfase ao estudo da história e da economia política, fazer uma abordagem crítica

e problematizadora da realidade, trabalhar a mística da organização e do conjunto das

lutas dos trabalhadores, estimular e proporcionar a participação dos/das estudantes em

atos e manifestação dos trabalhadores em geral, e do MST em particular, vincular a

escola com a construção da organicidade do assentamento do Movimento. (MST, 1999,

p. 17)

A proposta de vinculação Educação para o trabalho e pelo trabalho diz que o principal

objetivo é educar sujeitos que são trabalhadores e trabalhadoras. A valorização e o amor,

especialmente pelo trabalho no campo, a busca pela superação da discriminação do trabalho

manual pelo trabalho intelectual e o desenvolvimento de hábitos que desenvolvam processos de

postos de trabalho já realizados em assentamento são algumas das questões a serem trabalhadas

nessa vinculação. O trabalho como fonte de produção de instrumentos necessários para a vida e

também como produtor de cultura, equivale a vislumbrar nela uma relação prática privilegiada

para as necessidades de aprendizagem, numa relação dialética entre teoria e prática.

Sobre a Criação de coletivos pedagógicos e formação permanentes dos educadores/das

educadoras, diz-se que

Sem uma coletividade de educadores não há verdadeiro processo educativo. “Nenhum

educador tem o direito de atuar individualmente, por sua conta e sob sua

responsabilidade.” (Makarenko) Parece uma afirmação muito forte? Mas ela é uma

lição também da nossa prática. Um professor ou uma professora que trabalhe só, não

consegue por em ação estes princípios pedagógicos que aqui estamos defendendo. Eles

nasceram de um esforço coletivo e é pela cooperação se que realizam. (MST, 1999, p.

21)

A formação dos educadores do campo deve passar por um processo permanente de

formação em conjunto, organizando aulas e compreendendo que quem educa precisa se educar.

Assim, os coletivos pedagógicos são espaços importantes de autoformação permanente, por meio

da reflexão e discussão da prática educativa.

A escolha pela luta e pela construção de Outra sociedade passa a demandar do Movimento

um cuidado com a construção do saber, não em suas perspectivas abstratas, mas de saberes que

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92

dialogam com suas lutas. Segundo Arroyo (2014), as leituras de mundo que esses sujeitos trazem

do campo, das suas relações com o trabalho e com a produção os fazem demandar novas

pedagogias, que se relacionem com suas formas de reagir e intervir na sociedade.

O Movimento já percebia que suas dimensões de construção de outra sociedade,

construída a partir dos sujeitos camponeses historicamente negligenciados, necessariamente iria

requerer uma educação que dialogasse com as demandas da sociedade. Esse modelo de educação

não se equaciona com uma educação que tem como objetivo a doutrinação e/ou o inculcamento

ideológico dos alunos, mas traz a possibilidade de uma leitura do mundo que se aproxime das

suas históricas lutas, que os possibilitem serem Outros, distintos nos processos educacionais e

não apenas submetidos aos processos de mesmidade.

Essa educação tem como base de seus processos os outros espaços de construção do saber,

os outros saberes e os outros sujeitos que, vindos das lutas travadas de forma coletiva,

cotidianamente, constroem, segundo Arroyo (2014), relações sociais que fujam às relações de

dominação/subordinação que os caracteriza como incivilizados.

Daí se origina duas propostas que se completam: a noção de que o Movimento tem um

papel educador e formador dos sujeitos do campo, e a demanda e busca por outro modelo de

escolarização, que vá ao encontro dos anseios desse coletivo.

Como descrito por Caldart (2014), há que se reconhecer o Movimento como um sujeito

pedagógico, que carrega em si uma intencionalidade formativa daqueles que os constituem, que

transcende os modelos de educação escolarizada, mas que também reconhece e luta pelo direito

desses sujeitos à educação escolarizada como dever do Estado. Ampliar o conceito de educação

para outros espaços da sociedade e para princípios desenvolvidos dentro desses espaços

possibilita que os conhecimentos desse Outro ganhem visibilidade para além do padrão de poder

colonizador.

Como descrito por McLaren (2000, p. 52), é necessário questionar as “sementes da

própria vulnerabilidade” do capitalismo. É necessário questionar a razão burguesa e o privilégio

do cânone científico como porta-vozes do capitalismo, romper com a totalidade da cultura

eurocêntrica e da “cultura branca” como a “base de cálculo cultural”. Assim, cabe aos

movimentos populares questionar e construir uma forma e um meio cultural policêntrico.

Pensar o Movimento enquanto coletividade que busca referência em suas ações e que,

dessa forma, estrutura o seu cotidiano a partir da ação, do coletivo e da identidade nos traz pontos

essenciais, segundo Caldart (2012), para pensarmos a centralidade da identidade pedagógica do

Movimento como coletividade em movimento, que busca a produção desses sentidos coletivos

em cada ação, construindo seus processos pedagógicos básicos por meio de elementos que

Page 95: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

93

constituem essas experiências humanas coletivas como a luta, a organização, a terra, a cultura e

a sua história.

Tal como na lavração que seus sujeitos fazem da terra, o MST resolve, mistura e

transforma diferentes componentes educativos, produzindo uma síntese pedagógica que

não é original, mas também não é igual a nenhuma pedagogia já proposta, se tomada

em si mesma, exatamente porque a sua referência de sentido está no Movimento.

(CALDART, 2014, p. 334)

Não será nossa intenção aqui verticalizar sobre a dimensão do Movimento como

educativo22. Entretanto, a construção coletiva desses sujeitos no Movimento colabora na

construção de outra realidade educativa que, iniciada do lado de fora dos espaços escolarizados,

são levados até eles, a partir da luta por direitos, onde se constrói Outra realidade escolar, pautada

a partir desse Outro.

Não se aceita a escolarização como um meio de retirá-los da ignorância, ou como meio

de incluí-los na sociedade capitalista. Pensa-se uma educação escolarizada que coadune com os

aprendizados pedagógicos vividos pelo Movimento na luta social, na qual esses sujeitos

expressam suas potencialidades de intervenção no mundo para a sua modificação, a partir de uma

lógica que lhes seja própria.

Ao lutarem por um modelo de educação Outro, esses sujeitos não aceitam os padrões

generalistas das políticas públicas que, segundo Arroyo (2013), até hoje são percebidos na

educação voltada para o campo, mas lutam por uma educação que permita ser reflexiva e crítica,

pautada sobre os princípios de solidariedade e que se constrói junto a esse Outro silenciado

historicamente, e não como uma benesse de um conhecimento que vem para iluminá-los ou

libertá-los da ignorância.

Como questionado por Arroyo (2014), como esses sujeitos, que foram ignorados e

silenciados por teorizações, pesquisas e epistemologias, passam a descontruir essas perversas

relações de poder que os subalternizam? Sem desconstruí-las é possível seguir e avançar nos

processos de ensino/aprendizagem?

É necessário o reconhecimento e um olhar positivo para esses saberes, identidades e

culturas, expondo nos espaços escolares como esses coletivos foram e continuam sendo vítimas

de dominação/subalternização. É preciso construir com radicalidade as didáticas, os currículos e

os processos de avaliação, para que não se perpetuem sistemas que inferiorizam as crianças e

jovens do campo. É necessária a construção de espaços escolarizados que os permitam saberem-

22 Para isso, ver a tese de Caldart que foi publicada pela expressão popular com o título “Pedagogia do Movimento

Sem Terra”.

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94

se. A resistência epistemológica advinda de uma resistência política é meio necessário para a

justiça social global, já que essa só ocorre mediante aquela

Tem-se investido mais em buscar alternativas eficazes para que os setores populares

aprendam superando a ignorância, a irracionalidade, o senso comum, a condição de

inferiores, irracionais, sem valores de dedicação do que em tentar superar essa visão

inferiorizante, abissal que impregna o pensamento moderno e a pedagogia moderna.

(ARROYO, 2014, p. 18)

A decolonialidade é justamente esse esforço teórico e prático que busca abandonar as

pedagogias dominadoras para construir uma forma Outra de relação entre os sujeitos que

compõem os espaços escolares e os conhecimentos e as formas de dialogá-lo.

Daí a busca por uma perspectiva intercultural, pois, por meio dela, se possibilita uma

proposta educativa que renove os paradigmas científicos e metodológicos, o que, segundo Fleuri

(2003), traz novas perspectivas epistemológicas, contribuindo para superação de uma atitude de

indiferença e inferioridade frente ao Outro. Constroem-se relações com o Outro que viabiliza

uma pluralidade cultural e social, pautando-se numa educação voltada para a alteridade, a

igualdade de oportunidade e de direitos.

O que se acolhe na pesquisa como educação intercultural comunga com a noção trazida

por Fleuri (2001) de um campo que entretecem múltiplos sujeitos sociais em suas diversas

perspectivas epistêmicas e políticas, trazendo como importante contribuição para o campo

educacional a concepção de educação, que não pode ser assumida como a simples doação de

saberes, do conhecimento científico, ocidental e “civilizado” para aqueles que são inferiores, mas

pensar a educação como formação de conceitos, valores e atitudes que atuam numa perspectiva

das diferenças dos sujeitos, criando contextos que possibilitem a interação com o Outro, que

desenvolvem suas identidades num ambiente que lhes seja formativo.

Como descrito por Freire (2014) na sua já celebre frase, a educação não ocorre de A para

B e nem de A sobre B, a educação ocorre entre os homens mediatizados pelo mundo. Como

descrito por Zanardi (2010), sob o referencial libertador de Freire o MST vem trazendo e fazendo

emergir uma práxis que possibilita pensar a educação de maneira distinta, e que não entende o

futuro como algo já estabelecido. Assim, o saber que também se quer escolarizado é construído

no mover das histórias e das vidas desses sujeitos, ao longo das trajetórias do campo no Brasil.

Neste contexto, a educação escolarizada promovida pelo MST se constitui em objeto

privilegiado para compreensão dos valores que o Movimento pretende construir. A

educação escolarizada se insere numa ampla moldura, que determina as opções de

determinada comunidade e a concretização de projetos de vidas. (ZANARDI, 2010, p.

97)

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95

A criação de uma identidade dos Sem Terra se consolida com uma situação de opressão

e, como preconizado por Zanardi (2010), na comunhão de um projeto que se quer ser marginal

porque alternativo. A perspectiva de marginalização é abordada em nossa pesquisa como uma

proposição diferenciada em relação à educação escolarizada e ao projeto de sociedade que junto

dela se pretende construir. Logo, a manutenção do desenvolvimento de um conhecimento crítico,

pautado nos e pelos oprimidos, fez da educação escolarizada condição necessária e presente no

Movimento, para que esse sujeitos possam proferir as suas palavras.

A noção de palavra é compreendida em toda a sua complexidade a partir das

contribuições de Paulo Freire. Como descrito por Streck e Domingos (2008), Freire, como um

autor filiado à tradição judaico-cristã, nos traz a dimensão do poder das palavras, ou seja, a

palavra como aquela que tem o poder criativo, fruto de uma tradição político-educativa que

compreende que aprender a ler equivale a dizer a palavra. É por meio dela que se tem uma relação

que não se finda no palavrear, mas que diz de uma integração entre teoria e prática e entre ação

e reflexão.

A escrita de Dussel (2002) corrobora essa perspectiva. Para o autor, enquanto o professor

for o único a ter o que dizer, o único a proferir a palavra, a educação seguirá uma tradição

positivista que não possibilitará a existência de sujeitos, servindo sempre para a objetificação do

aluno. Daí que em ambos os autores, Freire e Dussel, a escuta é tão fundamental quanto a palavra,

afinal, só se pode falar “com” aquele que escuta, caso contrário, realiza-se discursos e depósitos

de conteúdos sobre outras pessoas.

Assim, ter fé nos homens é, segundo Freire (2014), uma prerrogativa necessária às

condições para um diálogo verdadeiro. Para que esse diálogo se efetive é necessária uma intensa

fé nos homens e mulheres com quem se dialoga. Fé na possibilidade de fazer e refazer a história,

fé nas suas condições de ser mais, não como um privilégio, mas como um direito de todos os

homens.

A educação dialógica se distancia daquela que busca levar uma mensagem salvadora aos

grupos oprimidos, mas, como descrito por Freire (2014), em diálogo com esses sujeitos conhecer

para além da objetividade em que estão, conhecer seus níveis de percepção de si e do mundo.

A educação escolarizada (pensada a partir dos saberes, da relação dialógica e da

construção do oprimido) tem de questionar e liquidar com a perspectiva da invasão cultural.

Como descrito por Freire, a invasão cultural é “a penetração que fazem os invasores no contexto

cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade,

ao inibirem sua expansão”. (2014, p. 205)

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96

Essa invasão cultural faz com que, por meio da negação da cultura dos oprimidos, o

opressor, o colonizador, passe a residir dentro dos grupos oprimidos, não sendo mais algo apenas

externo, mas interno, porque agora habita o oprimido em suas concepções de mundo, em suas

formas de organização social, em sua linguagem, já que seus saberes passam a conviver com a

colonialidade deles.

Daí a necessária crença que se deve ter fé nas pessoas, em sua capacidade de ser mais, de

sua vocação para ser mais

(...) e por estarmos sendo assim que nos vocacionamos para a humanização e, que

temos, na desumanização, fato concreto da História a distorção da vocação. Jamais,

porém, outra vocação humana. Nem uma nem outra [...] são destinos certos, sina ou

fato, dado ou dado. Por isso mesmo que uma é vocação e a outra é distorção da vocação.

FREIRE, 2014, p. 37)

A natureza humana diz de um existir que se faz, constrói e se autorrefaz num processo de

vocação ontológica. A desumanização vivenciada nos processos históricos de grupos em todo o

mundo constitui, portanto, a negação da vocação ontológica humana. A luta dos seres humanos

tem de ser aceita de forma antropológica e ética, buscando recuperar a ação humana como de

sujeitos históricos que não sucumbem frente a teorizações sobre o fim da História.

A educação escolarizada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra se

encontra, portanto, além da formalização de um projeto pedagógico, posto que é na

realidade vivida que se dá o conteúdo contido em seu projeto educativo. Assim como a

escola é mais que um prédio, a educação é um projeto orientado pela prática e que

orienta essa prática. É, portanto, a luta que, explicitamente, orienta a educação para,

dialeticamente, ser por essa orientada. A educação do MST se relaciona com a formação

integral dos educandos. A relação do conhecimento que está sendo construído com os

valores desenvolvidos na realidade dos assentamentos é o principal tema gerador do ato

de educar. Nesse sentido, todos se fazem educadores e educandos. (ZANARDI, 2010,

p. 102)

O que se percebe é a construção de uma nova sociedade a partir das vivências das vítimas,

do Outro, que foi negado em suas formas de existir e de reproduzir. A consciência atingida por

esses grupos os faz lutar por utopias, que não se findam no palavrear desconectado da realidade,

mas interligado a uma práxis alternativa ao projeto opressor.

4.2 As lutas pela educação do Campo

Como descrito por Caldart (2012), ao pensar a educação do campo é necessário que

estejamos atentos a três pontos de análise: à dimensão de campo, à concepção de educação e de

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97

políticas públicas. Afinal, isolar uma dessas dimensões empobreceria a concepção e as frentes de

atuação que vêm sendo destacadas ao longo da construção do da educação do campo.

Pensar no campo, segundo Caldart (2012), e numa educação a ele relacionada equivale a

refletir sobre os protagonistas desse processo. São os movimentos sociais que buscam, através

das lutas, novas dimensões de ocupação e produção das terras, enfrentando as políticas

neoliberais do agronegócio.

É somente dentro dessa concepção de campo, como um lugar de produção de cultura e

espaço de luta, que se pode pensar nas disputas por políticas públicas em educação no campo.

Nas palavras de Caldart (2012) o “terreno movediço” das políticas públicas é meio necessário

pelo qual esses sujeitos do campo passam a buscar uma relação com o Estado para que suas

demandas sejam materializadas.

Se a necessidade de aproximação com o Estado, disputando com os outros setores da

sociedade as formas e os conteúdos das políticas públicas, faz os movimentos sociais chegarem

mais próximos das lutas por um Estado mais democrático, Caldart (2012) nos diz que essa

aproximação também faz com que haja uma perda de sua radicalidade, passando a ter de fazer

concessões e estreitamentos, que podem ser compreendidos, por vezes, como avanços e

retrocessos.

Assim como Caldart (2012), defendemos que é necessário um alargamento de

perspectivas, ou seja, para que se construa o projeto de sociedade e de campo que se pauta é

necessário ampliar as lutas e também as alianças, incluindo setores que não estão no campo, e

também avançar na perspectiva de democratização do Estado. Afinal, como a luta pela educação

do campo não se finda exclusivamente nela, não há justificativa para fixar-se apenas na

preocupação com a educação, sem pensar no Estado e nas contradições que daí advém.

Entrar na disputa de forma e conteúdo de políticas públicas, como buscam fazer os

sujeitos da Educação do campo, é de fato entrar em uma disputa direta e concreta dos

interesses de uma classe social no espaço dominado pela outra classe, com todos os

riscos (inclusive de cooptação) que isso implica, mas também com essas possibilidades

de alargamento de compreensão da luta de classes e do que ela exige de quem continua

acreditando na transformação mais radical da sociedade, na superação do capitalismo.

(CALDART, 2012, p.53)

Já a noção de educação pode ser abordada como descreve Hage (2014), no âmbito do

direito a ter direitos, que centrada nos sujeitos coletivos e em suas possibilidades de desenvolver

concepções e práticas pedagógicas recriam a educação e o educativo.

Corroborando esses pontos, Caldart (2012) nos diz que há uma disputa por uma

democratização não somente do acesso à educação escolarizada, mas de outra lógica da produção

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98

de conhecimento, que rompa com a visão hierarquizada característica de uma sociedade marcada

pela modernidade capitalista.

As questões hoje da construção de um novo projeto/ modelo de agricultura, por

exemplo, não implicam somente o acesso dos trabalhadores do campo a uma ciência e

a tecnologias já existentes. Exatamente porque elas não são neutras. Foram produzidas

desde uma determinada lógica, que é a da reprodução do capital e não a do trabalho.

Esta ciência e estas tecnologias não devem ser ignoradas, mas precisam ser superadas,

o que requer uma outra lógica de pensamento, de produção do conhecimento.

(CALDART, 2012, p.44)

O que Caldart (2012) defende é a necessidade de uma problematização sobre a produção

do conhecimento ao discorrer sobre o projeto educativo proposto. Há muito a relação do “diálogo

dos saberes” resulta em aceitar que o conhecimento popular deve ser utilizado apenas como um

artifício didático vazio, que conduz o aluno ao “verdadeiro” saber. A proposta é que se aprofunde

sobre as tensões envolvidas na produção de diferentes saberes

E do ponto de vista metodológico isso tem a ver com uma reflexão necessária sobre o

trabalho pedagógico que valorize a experiência dos sujeitos (Thompson) e que ajude na

reapropriação (teórica) do conhecimento (coletivo) que produzem através dela,

colocando-se na perspectiva de superação da contradição entre trabalho manual e

trabalho intelectual, que é própria do modo de organização da produção capitalista.

(CALDART, 2012, p.45)

Como nos chama a atenção Martins (2012), é necessário compreendermos que, junto a

essa luta por uma educação que seja do campo, nasce de forma indissociável, mas independente,

o movimento Por uma Educação do Campo.

Realizada em 1998, a I Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo, em

conjunto com a Universidade de Brasília (UnB), o Fundo das Nações Unidas para a Infância

(Unicef), a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e a

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), passou a buscar esses meios de se pensar o

Campo e a educação a ele vinculado.

Muda-se, entretanto, para Por uma Educação do Campo por perceber que a demanda pela

educação não se restringe apenas à educação básica, mas também à ocupação dos espaços

universitários.

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99

Desde então, têm-se uma produção sistematizada sobre a os avanços, conquistas e

desafios da Educação do Campo, dispostas nos cadernos Por uma educação do campo.23

Segundo Caldart (2004) sobre as práticas desenvolvidas por esse grupo é necessário salientar que

Um dos traços fundamentais que vêm desenhando a identidade desse movimento Por

uma Educação do Campo é a luta do povo do campo por políticas públicas que garantam

o seu direito à educação e a uma educação que seja no e do campo. No: o povo tem

direito a ser educado no lugar onde vive; do: o povo tem direito a uma educação pensada

desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas

necessidades humanas e sociais. (CALDART, 2004, p. 149-150)

A luta por políticas públicas sobre educação do campo se iniciou, de forma efetiva, em

1997, ano que se comemorou 10 anos do núcleo de educação do MST. Nesse ano se desenvolveu

o I Encontro Nacional da Educação na Reforma Agrária (ENERA), realizado na Universidade

de Brasília, que contou com a participação de representantes do MST e de Professores (as)

universitários que já desenvolviam parcerias educacionais informais com o Movimento em mais

de vinte estados do país.

Nesse encontro percebeu-se a necessidade de se elaborar uma política pública de

educação para o campo, que se vinculasse diretamente às áreas de assentamento. Propôs-se, na

ocasião, buscar uma parceria junto ao Ministério Extraordinário de Política Fundiária (MEPF),

cuja necessidade foi ratificada com uma pesquisa realizada em 1996, encomendada pelo MEPF,

denominada Censo da Reforma Agrária. Essa pesquisa traçou um perfil da escolaridade e do

acesso à educação pelas populações que se encontravam em áreas de reforma agrária. Constatou-

se que a escolaridade da população em áreas de assentamento é inferior à das populações da área

rural. Segundo Clarice (2012), o que também se constatou foi a ausência do poder público,

municipal ou estadual, justificada, muitas vezes, pela alegação de que as áreas de assentamento

são de exclusiva responsabilidade do poder federal.

Dessa necessidade concreta de promover a educação em áreas de reforma agrária em

diálogo com as demandas dos movimentos sociais, tem-se a primeira política pública para o

campo, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), em 1998. O

programa foi institucionalizado através da Portaria nº10/98, com o objetivo de desenvolver

educação formal para os anos iniciais e finais do ensino fundamental e ensino médio, na

modalidade de educação de jovens e adultos (EJA), ensino médio profissional, ensino superior e

pós-graduação (formação de Professores(as) do campo), assegurando, portanto, o direito à

23 Os cadernos publicados “Por uma educação do campo” tiveram os seguintes títulos: 1- Por uma educação básica

do campo (memória) 2- A educação básica e o movimento social do campo 3- Projeto popular e escolas do campo

4- Educação do Campo: identidade e políticas públicas 5- Contribuições para a Construção de um Projeto de

Educação no Campo 6- Projeto Político-Pedagógico da Educação do Campo - 1º Encontro do Pronera na região

Sudeste. 7- Educação do Campo: Campo - Políticas Públicas - Educação

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100

educação. Segundo Molina e Jesus (2010) é necessário ressaltar que desde as primeiras

mobilizações para a criação do Pronera, as experiências e os princípios formativos dos

Movimentos Sociais do Campo forneceram significativas contribuições para o êxito do

Programa.

Em 2009, através da inclusão do artigo nº 33, na lei nº 11.947, o Congresso Nacional

autorizou o Poder Executivo a instituir o Pronera. Em 04 de novembro de 2010, o presidente da

República editou o decreto nº 7.352, que instituía a Política Nacional de Educação do Campo e

o Pronera, caracterizado, no seu art. 1º, com uma política de educação destinada a ampliar e

qualificar a oferta de educação básica e superior às populações do campo.

Como descrito por Hage (2014), outra grande conquista foram as “Diretrizes

Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo”. Essas diretrizes constituem, ainda

segundo o autor, princípios e procedimentos “que visam adequar o projeto institucional das

escolas do campo às políticas curricular nacionais vigentes intencionando legitimar a identidade

própria dessas escolas, que deve ser definida ancorando-se na temporalidade e saberes próprios

dessas escolas(...)” (HAGE, 2014, p. 137) (CNE/CEB. Resolução nº 1, de 3 de Abril de 2002).

Para compreendermos as licenciaturas em educação do campo, vale ressaltar a política

pública denominada PROCAMPO – Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura

em Educação do Campo. Nascido por demanda do Pronera, o PROCAMPO surge voltado,

especificamente, para a formação de educadores para a docência nos anos finais do ensino

fundamental e ensino médio nas escolas rurais.

Segundo Hage e Molina (2016), houve dois editais pilotos, 2008 e 2009, sendo o último

publicado em 2012, no qual é possível perceber que o programa vem se tornando uma política

estruturante de formação de educadores.

(...) o Edital nº 02/2012 da SECADI/MEC (BRASIL, 2012), que aprovou 42 projetos a

serem desenvolvidos em IES, com disponibilização de 600 vagas permanentes para

docentes e 126 técnicos nessas instituições e com a meta de formar 15 mil professores

para atuar na Educação Básica, nas escolas do campo, nos primeiros três anos dos

cursos. (HAGE, MOLINA, 2016)

Conforme expõe os autores, é necessário explicitar que as práticas formativas

desenvolvidas nessas graduações, não podem se desvincular da sua materialidade original da luta

contra o capitalismo e as formas hegemônicas de educação. Em outras palavras, é necessário

compreender como o programa fomenta novas práticas formativas que possam enfrentar a

hegemonia das atuais políticas de formação no Brasil, orientadas pelas teorias da “Epistemologia

Page 103: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

101

da Prática”, que fortalecem e disseminam processos formativos baseados na “Epistemologia da

Práxis”.

4.3 Formação de Professores: do Rural a Educação do Campo

Antes de abordarmos o curso de Licenciatura em Educação do Campo (LeCampo), que é

o objeto da presente pesquisa, é necessário trazermos algumas problematizações sobre o campo

da formação de professores. Consideramos como especificidade da formação decolonial de

professores para o campo uma relação intrínseca com o conhecimento que questiona o

eurocentrismo e as formas de ensino/aprendizagem pautadas na pedagogia moderna.

Disputam esse campo de formação projetos diferenciados de sociedade e de educação. A

intencionalidade na prática formativa do professor responde de forma diferenciada a questões

como: Por que formamos professores? Qual concepção de educação se defende nessa formação?

De acordo com Gatti (2010) há uma fragmentação nos currículos dos cursos de formação

de professores, pois apresentam-se desintegrados. Nos dizeres da autora é necessária uma

“verdadeira revolução” nos cursos de formação de professores para que se possa conseguir uma

formação mais articulada com a prática docente e uma integração dos estágios com as teorias

estudadas no curso.

Um levantamento sobre os cursos de Pedagogia realizado por Libâneo e Pimenta (1999),

apresenta quatro características comuns aos cursos de pedagogia no fim do século XX, no Brasil:

um caráter tecnicista, que relegou o papel da pedagogia à investigação do fenômeno educativo;

um “agigantamento da estrutura curricular”, que fez com que, ao mesmo tempo, tenha sido

construído um currículo fragmentado e acelerado; uma excessiva fragmentação das tarefas

escolares e, por último, uma separação no currículo, no qual há um “bloco”, responsável pela

formação pedagógica de base, e outro que se responsabiliza pelos estudos correspondentes às

habilitações.

Em face dos problemas que se colocam, é inquietadora a questão trazida por Ribeiro

(2015, p.54): “a quem interessa o tecnicismo, instrumentalismo e superficialidade encontrada

nesse tipo de formação? Quem ganha, nessa disputa, com a superficialidade retratada nas

pesquisas? ”.

Diniz-Pereira (2014) destaca-se como um dos principais estudiosos dos diferentes

paradigmas que concorrem no campo de formação de professores. Para o autor, é possível dividir

esses modelos, colocando de um lado aqueles estudos baseados no modelo de racionalidade

Page 104: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

102

técnica, e, em outro, os estudos que se baseiam na racionalidade prática e no modelo de

racionalidade crítica.

Também conhecido como epistemologia positiva da prática, o modelo de racionalidade

técnica busca uma instrumentalização dos problemas educacionais. Advindo da racionalidade

científica, vivenciada nos séculos XIX e XX, esse modelo, parte da concepção de educação como

uma ciência aplicada, confiando à educação uma suposta neutralidade do método científico, a

eficácia e a eficiência no ensino.

Nessa perspectiva, a prática formativa pode ser utilizada dentro das noções de causa e

efeito, sendo as questões educacionais trabalhadas como problemas “técnicos”, que podem ser

previsíveis e solucionados com leis causais para conduzir e controlar os resultados educacionais

práticos. Cabe aos pesquisadores educacionais “puros” a investigação científica e aos

pesquisadores da educação “aplicada” ofertar as respostas às questões científicas dentro das

expectativas que se têm para a educação. Teoricamente, garante-se, assim, que o processo de

educação seria realizado de forma neutra e, portanto, livre das interferências valorativas daqueles

que a conduzem.

Como alternativa à racionalidade técnica, surgiu no início do século XX o modelo de

racionalidade prática, sendo fonte direta das pesquisas desenvolvidas pelo norte americano John

Dewey.

Reconhecendo a realidade educacional como muito fluida para ser conduzida e

sistematizada pela técnica, os teóricos da racionalidade prática defendem que as circunstâncias

educacionais podem ser “controladas” apenas através de um questionamento sobre a atuação

docente na sua prática. Dessa forma, a formação adquirida pelo professor não pode se resumir a

um conjunto de técnicas ou a um “kit de ferramentas”, mesmo que ainda se reconheça a existência

de algumas técnicas e “macetes” a serem utilizados na prática. É, portanto, o processo em si que

conduz a criação de critérios, que dirão como boas, indiferentes ou indesejáveis as práticas que

ajudaram na formação do professor. (DINIZ-PEREIRA, 2014, p.37).

O paradigma da racionalidade prática ganha ênfase a partir dos estudos de Schön, que

desenvolve, a partir dos anos 1980, as principais noções para a análise do professor reflexivo.

Contrastando das dualidades presentes na perspectiva técnica, a escrita de Schön (2000) é

permeada pela noção de que os professores são aqueles que não separam o fazer do pensar, e que

o ato de refletirem na ação faz com que eles construam uma nova teoria, dispensando as

categorias técnicas e teóricas prévias.

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103

Em uma conversação reflexiva, os valores de controle, o distanciamento e objetividade

– centrais a racionalidade técnica - assumem novos significados. O profissional tenta,

dentro dos limites de seu mundo virtual controlar as variáveis em nome do experimento

do teste de hipóteses. Porém suas hipóteses referem-se ao potencial da situação para a

transformação, e, ao testá-las ele inevitavelmente entra na situação. Ele produz um

conhecimento que é objetivo no sentido de que pode descobrir o erro. (SCHÖN, 2000,

p. 70)

Segundo Ribeiro (2015) e Diniz-Pereira (2014), há mais aproximações entre a perspectiva

técnica e prática do que distanciamentos, principalmente quando o assunto é a educação e sua

finalidade. Além disso, ambas as perspectivas diminuem a importância da teoria nos cursos de

formação de professores, colaborando para uma formação rasa, pouco crítica.

Segundo Pimenta (2012), há pontos que aproximam a dimensão reflexiva de formação de

professores da perspectiva técnica, como: há uma noção comum, nas pesquisas realizadas a partir

da noção reflexiva, de que o ensino é o ponto de chegada e partida; assim, há uma

supervalorização dos processos de produção do saber a partir da prática e pouca (ou nenhuma)

relação com as condições que os professores têm para refletir. Deste modo, a prática reflexiva é

feita de modo individual, devido à ausência de objetivos para traçar uma mudança estrutural e

institucional. O conceito de reflexão passa a se associar mais a um oferecimento de treinamento

para que o professor se torne reflexivo do que a uma maneira de refletir sobre a formação docente.

Albuquerque (2013) apresentou um levantamento das teses e dissertações, realizadas

entre 1987 e 2009, que versavam sobre educação do campo e educação rural. Das 433 pesquisas

encontradas – sendo 365 dissertações e 68 teses – a autora produziu cinco grupos de análises24

com os temas mais recorrentes encontrados. Curioso perceber que a temática “formação

docente”, com 37 estudos, tem um quantitativo, consideravelmente inferior, em relação à

temática mais pesquisada – a teoria pedagógica, com 198 trabalhos25.

Entre as conclusões da autora, destaca-se a constatação de que há uma centralidade na

investigação dos saberes que os professores do campo utilizariam no cotidiano. Essa ênfase na

perspectiva reflexiva, ainda segundo a autora, torna-se problemática na medida em que os saberes

são considerados de tamanha especificidade que passam a não serem referências para outros

professores.

Verificamos em relação à educação dos trabalhadores do campo que esta ideia torna-se

uma saída aparentemente viável frente a uma realidade na qual a maioria esmagadora

dos professores não tem sequer o direito de cursar a formação inicial. Esta concepção é

ainda mais devastadora se considerarmos a precariedade da educação em nosso país,

24 Felipe ria educacional, Felipe ria pedagógica, políticas públicas, formação de professores e Outras temáticas. 25 Destes a autora faz uma subdivisão: são 17 estudos na área de Educação do Campo; 03 sobre Escola Rural; 14

sobre Educação Rural e 03 sobre Educação do Campo.

Page 106: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

104

em especial, do trabalho dos professores, frente ao que esta concepção torna-se uma

ilusão a se agarrar. (ALBUQUERQUE, 2013, p.32)

O problema central dessa proposta é que ela se distancia, como descrito por Caldart

(2012), dos objetivos centrais da Educação do campo, ou da sua materialidade de origem,

pautados nas lutas dos trabalhadores (as) organizados em movimentos sociais que lutam pela

negação do campo como um local de atraso, enfrentando o latifúndio, o agronegócio e o projeto

individualista neoliberal.

No que diz respeito ao modelo crítico, como descrito por Diniz-Pereira (2014, p. 40),

“(...) o professor é visto como alguém que levanta um problema”. Entretanto, essa não é uma

característica exclusiva do paradigma crítico, uma vez que, no paradigma técnico e prático, o

professor também é alguém que levanta problemas.

São características fundamentais da problematização crítica: uma historicidade da

educação, que se localiza num plano sócio histórico; o reconhecimento da educação como uma

atividade social, que não se finda numa perspectiva de desenvolvimento individual; ser

intrinsecamente política, ou seja, afeta as escolhas daqueles que estão envolvidos em seu

processo, e, por último, ser problemática diante dos seus propósitos, das sugestões que produz e

do tipo de conhecimento que dá forma.

Constata-se que, enquanto a perspectiva técnica tem uma concepção instrumental sobre a

natureza do trabalho docente, a perspectiva prática é marcada por uma concepção interpretativa.

Distante de ambas, os modelos críticos são marcados por uma visão política explicita. Em Freire,

se desenvolve a noção de uma educação como levantamento de problemas, através do diálogo;

nele também se desenvolve a visão de que a comunidade de pesquisadores se soma à dos

estudantes como co-investigadores. (DINIZ-PEREIRA, 2008).

No Brasil, ainda segundo Diniz-Pereira (2008), o programa de formação de professores

do MST pode ser considerado exemplo de formação docente na perspectiva crítica. Para tanto, é

importante perceber a modificação histórica para a construção desta perspectiva, conforme

abordado a seguir.

A formação de professores para o campo tem um histórico de lutas. Como nos demonstra

Calazans (1993), até a década de 1930 eram inexistentes as políticas voltadas para a educação do

campo, e quase inexistentes eram as preocupações com a formação dos educadores do campo.

Também eram muito precárias e pouco numerosas as escolas localizadas no campo.

Como nos demonstra a pesquisa realizada por Pinho (2009), em Minas Gerais houve a

implantação de um dos mais exitosos cursos de preparação de professores rurais do Brasil,

Page 107: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

105

embora seu início tenha acontecido apenas no final da década de 1940.26 Para a autora, os cursos

normais para formação de educadores do campo eram marcados por uma intensa lógica urbana

e industrial, traços que simbolizavam o modelo de desenvolvimento vivenciado no período do

pós-guerra e que tinham como foco não os ambientes rurais, mas as cidades. Assim, os cursos

recebiam influência dos valores hegemônicos da sociedade, dos padrões, comportamentos e as

dinâmicas sociais da industrialização e da busca pela inserção do Estado na modernização

econômica. Daí o curso de licenciatura equivaler mais a um instrumento de confirmação em

relação à estrutura social, econômica e cultural do país do que a uma ruptura.

O ideário pedagógico para o meio rural, cuja proposição seria a urbanização do campo

e a civilização do habitante, fundamentou-se em uma concepção de educação e de

escola rural diferenciada das escolas nas zonas urbanas, embora baseada na concepção

urbana de educação. As propostas de desenvolvimento das condições e da qualidade de

vida da população rural se fizeram a partir da superação e, talvez, até mesmo, pela

negação do rural pelo urbano. (PINHO, 2009, p.127)

Uma das diferenciações que se percebe na formação nos cursos rurais, segundo a pesquisa

desenvolvida por Andrade (2006), sobre educação rural em Minas Gerais, na década de 1950, é

a existência de um currículo com poucos conhecimentos, diferentes daqueles cursos Normais

voltados para as escolas da cidade.

Comparados aos Cursos Normais para a formação de professores primários, os Cursos

Normais Regionais oferecem uma formação inicial reduzida. A preocupação em

oferecer, no curto prazo de 4 anos, as disciplinas consideradas de conteúdo, a formação

pedagógica e uma formação específica, voltada para o trabalho e à aquisição de hábitos

adequados à vida no campo contribui para esse fato. A análise dos programas

recomendados evidencia, por sua vez, uma profunda diferença no que se refere ao perfil

da formação pedagógica que, nos Cursos Normais Regionais, assumem caráter

eminentemente prático. (ANDRADE, 2006, p. 54)

Corroborando com essa perspectiva, Santos (2010) nos diz que, somada a essa

precarização da formação, os cursos normais rurais passaram a centrar-se numa formação muito

mais técnica, o que faz com que a escola fosse percebida mais como espaço de qualificação de

mão de obra para os grandes latifúndios do que espaço de formação e de aprendizagem.

Para Neto (2011), há uma sensível modificação na educação rural, a partir da

consolidação do Brasil, no modelo de desenvolvimento “moderno”, que ocorre no período da

Ditadura Militar. O campo passa a ser visto como o lugar do agronegócio e símbolo do

26 À frente dessa proposta educativa, esteve o Secretário de Educação Abgar Renault (1901- 1995) e, principalmente,

a psicóloga e educadora Helena Antipoff (1892-1974). O primeiro Curso Normal Regional a ter algum sucesso no

país foi o de Juazeiro do Norte, no Estado do Ceará, criado em 1934. Embora se situasse na zona urbana, preparava

professores especialmente para atuarem na zona rural.

Page 108: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

106

capitalismo agrário, sendo necessária a exploração de mão de obra qualificada, que substituiu a

“enxada” pela “empregabilidade”. A demanda da educação no campo não é mais a de manter o

camponês no campo para garantir a alimentação da cidade, mas a de habilitá-lo para a nova

“modernidade”, adequando-o às demandas e necessidades do agronegócio, aumentando a

produtividade e maximizando lucros.

É possível perceber nos estudos sobre a educação rural que nela há um forte vínculo com

a inferiorização das populações do campo centradas pelo poder moderno/colonial. Enquanto a

cidade é compreendida como o discurso hegemônico e único possível para se alcançar o

“desenvolvimento” e o “progresso” da sociedade, o campo é retirado de seu contexto histórico e

colocado à margem como um lugar que em si mesmo representa o atraso, o incivilizado, o

ultrapassado.

Desta forma, segundo Zanardi (2012, p.132), pode-se compreender educação no campo

como uma educação “centrada nos interesses dos opressores latifundiários e das elites urbanas

que, por vezes tratam o camponês com romantismo, para a sua docilização, e, em outras, enxerga-

o como símbolo do atraso, para culpa-lo pela sua situação. ”.

A ruptura com esse modelo de educação no campo está longe de ser atitude benevolência

da burguesia e do latifundiário, mas se atem às lutas que se desenvolvem em razão das

contradições do capitalismo, da exploração legitimada e vivificada através deste sistema.

Ainda conforme Zanardi (2012), a luta por outro modelo de educação tem as suas raízes

nas formas de vida camponesas, que sofreram historicamente com um processo de exploração

econômica, mas que passam a lutar de forma coletiva por justiça social e dignidade.

O campo ganha destaque na pauta educacional tendo como base um projeto que se

diferencie da educação no campo nos auspícios de um projeto de alfabetização realizado no

governo de João Goulart, momento em que Paulo Freire ganha destaque no seu contato com as

populações pobres do Rio Grande do Norte, desenvolvendo uma metodologia de ensino em

favorecimento do interesse e a emancipação dos oprimidos do campo.

Como nos conta Zanardi (2012), a violência imposta pelo golpe militar impossibilitou o

desenvolvimento desse plano de alfabetização voltado para um olhar crítico e historicizado, que

retirasse a dominação daqueles sujeitos e possibilitassem-lhes seu entendimento como Outro, e

não mais como o mesmo colonizado.

A educação voltada para o camponês e pensada por ele é nova. Segundo Caldart (2012),

é um fenômeno atual, que busca a transformação da realidade brasileira, incidindo sobre as

políticas públicas em educação a partir das demandas e dos interesses sociais dos povos do

campo.

Page 109: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

107

Esse movimento passou a ter como objetivo romper com as cercas do latifúndio do saber,

ou, ainda, as cercas do conhecimento, mostrando ser essa uma disputa tão árida quanto aquela

realizada nas ocupações. Busca-se uma escola comprometida com a superação das condições de

opressão desses povos e que lhes possibilitem a construção de Outra alternativa que não se finda

no capital.

Essa construção da educação é baseada no papel ideológico da escola, reconhecendo esse

espaço como uma das possibilidades de construção de uma emancipação que prepara para as

lutas. Não que se defenda uma educação como um ato doutrinário ou uma educação

manipuladora. Buscam forjar uma educação que tenha como principal característica ser reflexiva

e crítica, portanto comprometida, ressaltamos, com a transformação social.

Daí o que se percebe é uma aproximação significativa entre o que se concebe como

educação do campo e sua concepção de educação com a própria concepção de educação

escolarizada e de formação de professores desenvolvida pelo MST. A perspectiva de uma

educação que, por se reconhecer ideológica e preocupada com a transformação social, busca

construir processos de formação de professores que se preocupem com as insurgências dos

sujeitos Outros e do direito desses sujeitos a saberem-se sujeitos de si, de seus conhecimentos e

de suas histórias.

Entre as ações desenvolvidas pelo MST na área da educação, a ocupação dos espaços

universitários e a formação de professores ocupam um papel de destaque, buscando sempre

associar a formação de professores a estratégias e práticas de formação não formais, vivenciadas

no convívio com o Movimento. A preocupação se estende para a formação que abranja, pelo

menos, três áreas de formação: a profissional, política e cultural.

Existem, como nos conta Diniz-Pereira (2008), dois tipos de cursos que fazem parte do

programa de formação profissional e acadêmica do educador do campo no MST. O magistério,

em nível médio, e a Pedagogia da Terra. O magistério foi criado em 1990 e existe atualmente,

mesmo com as alterações na legislação educacional que recomenda a formação em nível superior

para atuação docente. Já o curso de Pedagogia da Terra foi criado em 1998, vinculando o nível

superior à proposta do MST, através do Pronera.

Segundo Arroyo (2012), a criação dos cursos de Pedagogia da Terra vai além de uma

ação corretiva de históricas desigualdades no campo, mas reafirma a luta dos sujeitos camponeses

com seus processos de afirmação política, cultural, social e pedagógica e de acesso à educação

no nível superior.

Esses sujeitos ingressos no curso superior muitas vezes já atuavam no Movimento, em

processos de educação não escolarizada e escolarizada. Quando chegam aos cursos superiores de

Page 110: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

108

licenciatura, segundo Arroyo (2012), levam consigo suas radicalidades políticas, seus valores,

saberes, concepções de mundo e de educação, passando a modificar e a exigir dos cursos o

reconhecimento desses saberes.

Em decorrência disso, podemos destacar duas grandes conquistas na criação de cursos

superiores em parceria com os Movimentos Sociais: a primeira foi o aumento de vagas e do

acesso de pessoas historicamente negligenciadas à educação superior27; houve ainda a

democratização do currículo, que passa a incluir outros saberes e sujeitos.

Quando os movimentos sociais passam a exigir políticas públicas de formação de

professores específicos para o campo, fica evidente a necessidade de um conhecimento Outro

para se construir essa formação. Junto aos teóricos da chamada perspectiva crítica de formação

de professores, percebemos que há questões essenciais para possibilitar a construção de uma

formação Outra.

Ao questionarmos, assim como os teóricos críticos do currículo, a quem serve o

conhecimento escolarizado, a partir de uma abordagem decolonial, deparamo-nos com um

projeto hegemônico eurocêntrico que se apropriou da educação para reproduzir e perpetuar a

ideologia fundada na homogeneização e hierarquização das identidades. Como descrito por

Lander

Afirmando o caráter universal dos conhecimentos científicos eurocêntricos abordou-se

o estudo de todas as demais culturas e povos a partir da experiência moderna ocidental,

contribuindo desta maneira para ocultar, negar, subordinar ou extirpar toda experiência

ou expressão cultural que não corresponda a esse dever ser. (LANDER, 2005, p. 14,

grifos no original)

Ao preservar e reconhecer como único conhecimento válido aquele que os especialistas

produzem, a escola e as universidades reforçam, como descrito por Lander (2005), o metarrelato

colonial dos saberes, que implica na legitimação apenas do saber do colonizador, dificultando

que conhecimentos e sujeitos Outros ocupem esses espaços como lugares democráticos e de

construção de conhecimento.

Para se construir uma concepção Outra de formação, é necessário que o professor não

seja, portanto, um depositário desse conhecimento único europeu, mas que propicie a ele uma

crítica ao seu posicionamento pedagógico-político que quebre com a estrutura de negação da

palavra do Outro. Isso não pode equivaler a depositar no professor “um sentido único crítico”:

27 Segundo um levantamento realizado por Roseno (2014), em 2014 das 112 Universidades públicas do país, 60

mantinham alguma parceria com o MST. Para Martins 2012, entre 2003 e 2007 existiam no âmbito da Pedagogia

da Terra 3.469 vagas no ensino superior em instituições majoritariamente públicas. Além disso, segundo o autor

haviam 22 cursos, nas diferentes áreas, feitos pelo PRONERA pensados na dinâmica do campo.

Page 111: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

109

caso fosse assim, estaríamos mantendo as estruturas de colonização e de dominação sobre os

sujeitos.

Ao se colocar a favor de uma mudança epistêmica e de ruptura com uma pedagógica

dominadora, buscando construir uma sociedade Outra, evidencia-se o projeto ideológico que

comunga com a decolonialidade, que denuncia constantemente a suposta neutralidade dos

conhecimentos eurocêntricos e evidencia que qualquer seleção de conhecimentos é uma relação

política, portanto, ideológica.

Construir democraticamente uma formação desses sujeitos Outros campesinos nos cursos

de licenciatura em Educação do Campo, que rompa com a relação colonizadora do conhecimento

europeu e com o reconhecimento do professor como um depositário de saberes é, a nosso ver, o

maior desafio dos cursos.

Scocuglia (2005), ao trazer as contribuições de Freire para a formação de professores,

aponta um aspecto de compromisso pessoal dos sujeitos para a construção de uma formação

emancipadora, a necessidade de uma reeducação dos professores, que se daria a partir de um

compromisso com aspectos sociais políticos e culturais. Assim, para reconstruir um modelo de

formação é necessário que os sujeitos professores se reeduquem em sua prática.

Para Ribeiro (2016), é importante, se quisermos compreender melhor a relação de Freire

com o conhecimento que forma o professor, é necessário entendermos as questões trazidas por

ele no que se relaciona com a tão mencionada transformação. Para pensar uma formação para a

transformação, que rompa com a dominação moderno/colonial, é necessário um engajamento do

educador com a existência humana, ao lado dos esfarrapados do mundo. Como descrito por Freire

(1997), é necessário não acreditar que a transformação da sociedade virá exclusivamente pela

escola, mas que também sem ela é difícil conceber a mudança.

Como salientado por Ribeiro (2016), a transformação (ou a mudança) em Freire é sempre

compreendida numa dimensão dialética de denúncia e possibilidade histórica do novo, do

anúncio. A formação pautada em um conhecimento eurocêntrico colonizador deve ser

denunciada, para que se possa evidenciar uma concepção que compreenda a história como espaço

do possível, da resistência e de construção de um projeto Outro.

Pensado a partir de um conhecimento Outro, a formação de professores para o campo

deve possibilitar a construção de uma prática emancipadora pelo professor eticamente

comprometido com a humanização dos sujeitos, porque, não sendo mais uma formação a-

histórica, neutra e dominadora, aproxima os conhecimentos das identidades dos sujeitos e

reconhece suas culturas e histórias.

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110

Essa perspectiva é fundamental porque percebe a cultura como lugar por excelência de

disputas de sentidos e vê na formação o espaço necessário a construção de Outra educação do

campo. Como descrito por Ribeiro

A construção curricular não deve ser uma transmissão dos supostos detentores do saber,

e sim uma permanente troca entre todos os sujeitos escolares que possuem o direito de

escolher, optar, opinar, refletir e divergir, pois o conhecimento, bem como o currículo

não são exclusivamente de especialistas, de dirigentes, ou até mesmo dos professores.

Eles pertencem também aos educandos (...). (2016, p. 97)

Por isso, Freire (2014) denuncia a educação bancária, porque compreende nela a

impossibilidade de ser dialógica e de ser construtora de sujeitos problematizadores. A educação

bancaria é silenciadora; reforça o metarrelato universal europeu, conferindo a uns serem os

detentores do conhecimento e a outros serem os portadores das “respostas prontas”, em vez de

aprender a serem questionadores. Como descrito por Freire em Pedagogia da Esperança: “O

problema fundamental, de natureza política e tocado por tintas ideológicas, é saber quem escolhe

os conteúdos, a favor de quem e de que estará o seu ensino, contra quem, a favor de que, contra

quem é.” (2011, p. 110)

A construção das licenciaturas em educação do campo pode aprender com a abordagem

freireana na perspectiva da escuta do Outro: a escuta não é instrumento de conquista, mas de

diálogo, que rompe com a dicotomia dos “especialistas” e dos “que nada sabem”, por uma

construção dialógica realizada de forma horizontal e feita de baixo pra cima.

Para romper com a pedagógica dominadora descrita por Dussel (1997), que compreende

o Outro como um depositário de conhecimento e como órfão de cultura, revisitamos a obra de

Freire (1996), Pedagogia da Autonomia, para encontrarmos nela uma condução outra da

formação e da prática do docente decolonial.

A nosso ver, os pontos trazidos por Freire (1996) coadunam não apenas com os autores

de perspectiva decolonial, mas com a decolonialidade presente na construção de um projeto de

formação de educadores gestado dentro dos movimentos sociais.

Assim sendo, o autor afirma que não há docência sem discência, e que considerar o Outro

objeto a ser formado é ignorar que quem forma se reforma ao formar. É limitada, portanto, a

visão que concebe a formação como via de mão única, porque depositária mantêm um sentido

único do conhecimento, não o problematiza e o historiciza, não constroi uma formação dialética

na relação do aprender e ensinar, mas na relação verticalizada e dominadora da inclusão do Outro

no Mesmo.

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111

Outra razão para problematizarmos o sentido único do conhecimento e do depósito

enquanto prática de formação é compreendermos, como descrito por Freire (1996), que ensinar

exige consciência do inacabamento. Como seres conscientes de nosso inacabamento, é necessário

que a atividade docente não seja repetitiva, mas que propicie estabelecer uma relação entre as

experiências plurais de estar no mundo.

Daí a estreita ligação com a proposta decolonial de construção de uma sociedade Outra,

porque respeitando as experiências plurais reconhece-se que deve fazer parte da formação

docente uma constante convicção com a mudança. Mas essa mudança só é possível quando

abandonada a relação bancária e o sentido único presente no conhecimento eurocêntrico. A

formação pautada a partir do paradigma crítico reconhece que há uma indissociabilidade entre o

direito de ser e o de saber sua História, portanto, o conhecimento é historicamente produzido e

se reconhece que o “o mundo não é, o mundo está sendo” (p. 30, 1996).

E é por reconhecer que o mundo está em processo de construção que a curiosidade se

torna fundamental.

Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que

me insere na busca, não aprendo nem ensino. Exercer a minha curiosidade de forma

correta é um direito que tenho como gente e a que corresponde o dever de lutar por ele,

o direito à curiosidade. Com a curiosidade domesticada posso alcançar a memorização

mecânica do perfil deste ou daquele objeto, mas não o aprendizado real ou o

conhecimento cabal do objeto. (FREIRE, 1996, p. 33)

Estimular o conhecimento, a reflexão crítica e abandonar a passividade do conhecimento

são pontos centrais a uma formação que rompe com a imposição totalitária europeia e que se

preocupa com uma formação Outra.

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112

5 LECAMPO: UMA FORMAÇÃO DECOLONIAL?

Neste capítulo apresentamos o nosso lócus de pesquisa, assim como a análise dos dados28.

Quanto ao local de pesquisa, discorremos inicialmente sobre as lutas para a construção de

parcerias entre o MST e a UFMG para a construção do curso de Licenciatura em Educação do

Campo. Posteriormente, apresentamos o curso a partir do seu Projeto Político Pedagógico,

demonstrando suas especificidades organizacionais, como as áreas de habilitação e a Pedagogia

da Alternância.

A análise dos dados se dará por meio da apresentação dos dois momentos de nossa

pesquisa em campo: as observações realizadas nos espaços comuns do curso e em sala de aula e

a roda de conversa realizada com os sujeitos que compõem a turma da habilitação em Linguagem,

Artes e Literatura.

É importante recuperar e compreender a trajetória da formação do curso de Licenciatura

em Educação do Campo na Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo Roseno (2010),29

em 1990 se inicia a formação de educadores da reforma agrária por meio do Setor de Educação

do MST. O objetivo dessa formação era, em conjunto com professores da Bahia e do Paraná,

construir o setor de educação do Movimento em Minas Gerais e “consubstanciar no Estado, a

proposta de educação do MST, solidificando os conceitos de educação concebida pelo

Movimento.”. (2010, p. 89)

Criado o setor de educação em Minas Gerais, o MST buscou parcerias com a UFMG para

a qualificação em nível superior na área da formação docente de seus militantes, ao notar a

demanda crescente de educadores dentro das escolas instituídas nos acampamentos e

assentamentos.

A demanda pela formação de militantes ainda estava justificada em outros dois pontos:

primeiro, na alta rotatividade de professores nas escolas dos acampamentos e assentamento.

Como esses professores, em sua maioria, vinham da cidade, percorriam longas distâncias até

chegarem às escolas, o que fazia com que eles, muitas vezes, a abandonassem. O segundo ponto

28 Houve a tentativa de realizarmos uma entrevista com o coordenador do curso, entretanto, a ocupação da FaE no

segundo semestre de 2016 dificultou-nos a realização da entrevista. Em dezembro entramos em contato com o

coordenador e ficamos cientes que ele estava de férias e que só retornava as atividades no fim de janeiro. Entramos

em contato novamente em janeiro e fomos informados que ele estava em Portugal realizando estágio de pós-

doutorado. Mandamos as perguntas por e-mail, mas as respostas foram enviadas sem tempo hábil para análise e

inclusão na pesquisa. 29 A dissertação de Roseno (2010) é meio privilegiado para resgatar a história da criação do curso. A autora é

integrante do MST e nos primeiros anos do curso atuou como coordenadora do curso pelo MST dentro do colegiado.

Page 115: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

113

caracteriza-se por um certo distanciamento ideológico dos professores designados das propostas

educativas do Movimento.

Ainda segundo Roseno (2010), outra parceria com a UFMG foi realizada em 2002, mas

voltada à Educação de Jovens e Adultos. Em parceria com a UFMG e também com a

Universidade do Estado UEMG foi criado o projeto Alfabetização, Campo e Consciência Cidadã,

custeado por meio de recursos do Pronera.

Interessa discorrer sobre o sucesso entre a parceria com o setor de educação do MST e a

UFMG, que desembocou na construção de um curso de Licenciatura em Educação do Campo.

Como nos conta Roseno (2010), a proposta apresentada pela UFMG, no ano 2000, tinha como

base a experiência realizada na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do

Sul – UNIJUÍ, ocorrida entre os anos de 1998 e 2001, sendo este o primeiro curso de Pedagogia

da Terra do país.

Como descrito por Arroyo (2014), num quadro de exclusividade pedagógica tão

institucionalizada quanto aquele vivenciado nas universidades do país, é notório reconhecer

como esses sujeitos organizados em movimentos sociais passaram a ganhar força para disputar a

ocupação dos espaços universitários. “Ocupar o latifúndio do saber”, passou a ser um dos grandes

desafios empreendidos pelos sujeitos do MST, objetivando tornar as universidades locais que

articulem o direito à educação do campo, a formação de educadores do campo às lutas pela terra

e a construção de Outra lógica de sociedade.

Em 2003, a UFMG acolheu a proposta de abertura de um curso de nível superior para

formar educadores para e do campo. As reuniões, realizadas com representantes do Incra,

Pronera, UFMG e do MST, já sinalizavam as dificuldades que seriam enfrentadas como as

especificidades que se esperavam para a criação desse curso, sua metodologia em tempo de

alternância e construção curricular, em contraste aos projetos desenvolvidos pela FAE até aquele

momento.

Apesar de haver resistência de alguns professores quanto à proposta distinta do curso, o

processo começou de forma coletiva, culminando, segundo Roseno (2010), na criação do Projeto

Político Pedagógico do curso e dos encaminhamentos burocráticos relacionados. Em seguida ao

parecer favorável à criação do curso, começaram os esforços para a criação do curso num formato

experimental

Nesse sentido, o desenho da proposta curricular do Peterra-MG seria para além da

estrutura curricular dos outros cursos de Pedagogia da Terra que já existia no Brasil.

Para ajudar nessa proposta, o professor Miguel Arroyo teve uma participação

fundamental, pelo seu envolvimento, conhecimento e comprometimento social com os

povos do campo. Dentre as inovações introduzidas pela proposta pedagógica a

Page 116: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

114

organização a partir das áreas de conhecimento se sobressaiu: Ciências da Vida e da

Natureza (CVN), Linguagens, Artes e Literatura (LAL), Ciências Sociais e

Humanidades (CSH) e Matemática (M). (2010, p. 92)

O processo de elaboração do curso se desenvolveu de forma horizontalizada. Era

necessário, portanto, que isso permanecesse quando se pensasse a gestão do curso: uma vez

apresentadas suas quatro habilitações distinta, seria necessário construir uma formação orgânica

entre as áreas, evitando a fragmentação do curso.

Antunes-Rocha (2011) nos diz que o curso foi iniciado mantendo bases dialógicas através

de quatro instâncias de gestão: o colegiado, composto por representantes dos professores(as),

educandos, coordenação da UFMG e dos movimentos sociais; a Coordenação Pedagógica, com

representante da UFMG e dos movimentos sociais; a Coordenação de Áreas de Formação,

constituída por cinco núcleos de Estudos e Pesquisa30, ainda, os Núcleos de Base, que foram

formados pela organização dos estudantes.

O curso foi criado oficialmente em abril de 2005, tendo o aval do Conselho Universitário.

Dava-se início ao primeiro curso de Pedagogia da Terra do estado, chamado futuramente, por

seus participantes, de forma afetuosa, de PeTerra: o sentido apregoado à “terra” era o de matriz

estruturante do curso. Em seguida, a proposta foi encaminhada ao INCRA/MG para aprovação

e, posteriormente, ao PRONERA em Brasília, sendo aprovado em menos de dois meses.

(ROSENO, 2010, p. 94)

Ainda, segundo Roseno (2014), coube ao PRONERA o repasse e a fiscalização dos

recursos financeiros advindos do Ministério da Reforma Agrária; ao INCRA foi dada a

responsabilidade de fiscalização e prestação de contas para liberação de recursos vindos do

PRONERA, e a Faculdade de Educação da UFMG assumiu a gestão financeira do curso, por

meio da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (FUNDEP).

Autorizado o processo de seleção de militantes para comporem a primeira turma do curso,

coube ao MST convocar os movimentos ligados à reforma agrária. Foram convidados os

movimentos: Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais; Centro de Agricultura Alternativa do

Norte de Minas Gerais CAA/NMG; Comissão Pastoral da Terra – CPT; Movimento das

Mulheres Camponesas - MMC e Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA.

Percebemos na construção do PeTerra o que Arroyo (2014) denominou de construção de

Outras Pedagogias. Os movimentos sociais contemporâneos trazem em seu histórico uma longa

30 O Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita - Ceale, o Centro de Ensino de Ciências e Matemática - CECIMIG,

Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação - NETE, Grupo de Estudos sobre Numeramento - GEN e Núcleo de

Pesquisa sobre Profissão e Condição Docente - PRODOC;

Page 117: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

115

história de resistência às pedagogias dominantes, o que os faz lutar constantemente para a

construção de pedagogias decoloniais. São fruto dessa bagagem histórica de rejeição as

pedagogias de subordinação e de consenso e da apropriação e luta pela construção de pedagogias

de resistência, que resultou na construção do Peterra.

O artigo desenvolvido por Horácio, Roseno e Roseno (2011) nos trouxe um pouco da

memória sobre a aula inaugural do curso, realizada no dia 21 de novembro de 2005, no prédio da

Faculdade de Educação da UFMG.

A cerimônia de abertura ocorreu com o desenvolvimento da mística31 realizada pelos

recém-ingressos no curso ao som de foices, para reforçar seus lugares de trabalhadores e

trabalhadoras do campo. Além disso, houve apresentação musical com o artista popular Pedro

Munhoz.

As pessoas convidadas a discursarem na abertura do curso trouxeram em suas falas a

importância da ocupação do espaço universitário pelos povos do campo, a importância da

parceria do MST com a UFMG e a discussão sobre os saberes dos povos do campo nos espaços

universitários. Foram convidados a falar: Armando Vieira, membro da direção nacional do MST;

a reitora Ana Lúcia Gazzola; a coordenadora do curso, professora Maria Isabel Antunes Rocha;

a coordenadora do curso, pelo MST, Sônia Roseno e o professor emérito da FaE Miguel Arroyo.

Como descrito por Horácio, Roseno e Roseno (2011), o professor Arroyo lembrou a

importância da materialização dos direitos, afirmando a importância de ir além de sua mera

positivação. A construção do curso representa a construção do direito de coletivos que se fazem

cidadãos e que se descobrem juntos sujeitos de direitos, superando a visão reducionista trazida

nas teorias pedagógicas de setores populares do campo vistos como subcidadãos.

5.1 Nossa aproximação com a Universidade e com o LeCampo

Nesse momento nos propomos a apresentar os espaços em que fizemos a observação de

campo, que pode ser dividida basicamente em dois grandes momentos: o primeiro contato com

o curso, que aconteceu na recepção dos alunos no Tempo Escola e algumas atividades

desenvolvidas pelos educandos dentro do TE; posteriormente, o período de observação dentro de

sala de aula, onde acompanhei a disciplina Educação, Conhecimento e Cultura, junto à turma de

2012 da área de Linguagem, Artes e Literatura. Além da descrição de nossa observação, descrevo

31 Abordaremos a mística no tópico 5.4.2 A mística no LeCampo.

Page 118: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

116

também o planejamento e desenvolvimento do curso. Antes disso, achamos necessário discorrer

sobre a nossa aproximação com o curso.

O primeiro contato com a coordenação do curso deu-se no primeiro ano da pesquisa.

Encaminhamos um e-mail para os coordenadores do curso, e, em resposta, fui informada que

havia um requerimento padrão para que pesquisas fossem desenvolvidas no curso, sendo

necessário que encaminhasse uma cópia do meu projeto de pesquisa, para que fosse submetido à

análise pelo Colegiado do curso. Vinte dias após a reunião do colegiado, obtive parecer favorável

à realização da minha pesquisa no local.

Posteriormente, foi agendado um encontro com a professora responsável pela

coordenação do colegiado, momento em que pude reforçar o objetivo da presente pesquisa e

apresentar o cronograma da minha presença na FaE. Nesse momento, a professora me informou

como o curso se desenvolvia, contou-me sumariamente sobre o PPP e me questionou sobre os

ganhos da instituição com a minha presença.

O LeCampo atualmente funciona com grande participação de monitores. Estes são

estudantes de cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) da própria instituição, que

desempenham o papel de acompanhamento dos alunos no decorrer do Tempo Comunidade e

auxiliam aos professores com o encaminhamento e a correção de trabalhos e atividades propostas

aos alunos.

Foi demandada como contrapartida à aceitação da realização da pesquisa na FaE e a

presença no curso, que eu atuasse como monitora na disciplina que eu acompanhasse. A

princípio, foi bastante complicado entender qual seria o meu lugar no curso e como se daria essa

minha participação, mas, em pouco tempo, pude aprender, como descrito por Bogdan e Biklen

(1994), a ter uma participação moderada em sala de aula. De forma prática, a minha moderação

se caracterizou por minha intervenção quando havia assuntos relacionados a aspectos teóricos da

disciplina (os quais eu me sentisse apta a tirar dúvidas dos educados), e pelo meu silêncio e

observação nos momentos de discussões das pautas do curso e sobre a organização dos

tempos/espaços escolares.

Fui informada, no primeiro dia de observação em sala de aula, que uma estudante do

doutorado da FaE iria realizar o seu estágio docente na mesma disciplina de minha observação.

Isso me possibilitou distanciar um pouco mais do espaço de monitora, visto que a participação

da doutoranda era intensa nas atividades de sala de aula. Ela foi responsável por ministrar uma

aula, mas em todas as demais foi participante ativa.

Page 119: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

117

5.2 A construção curricular do LeCampo

Ao problematizar a construção do LeCampo, Roseno (2014) destaca a sua proposta

curricular. A matriz do curso, para a autora, é pensada a partir tanto das teorias como das práticas,

o que articulou todos os artifícios de aprendizado, abandonando a concepção de que o saber

universitário é superior ao construído com esses sujeitos no Movimento e em comunidade.

Corroborando essa perspectiva trazida por Roseno (2014), o artigo elaborado por Lima,

Paula e Santos (2011). Os autores foram professores na primeira turma do LeCampo e realizaram

o artigo para resgatar um pouco da trajetória desenvolvida junto aos alunos da primeira turma do

PeTerra, na área de habilitação das Ciências da Vida e da Natureza, evidenciando as orientações

didático-metodológicas da área.

Como descrito por Lima, Paula e Santos (2011, p. 108) a orientação fundamental da

concepção do curso estava em “instrumentalizar os educadores para desenvolver uma pedagogia

comprometida com os anseios de suas comunidades, em suas lutas pela melhoria da qualidade

de vida”. Para tanto, solicitaram aos alunos que, ainda no início do curso, realizassem uma

pesquisa em suas comunidades, a partir de quatro temas geradores:

- Saúde, debatido com suas famílias, com o objetivo de evidenciar os problemas que eram

mais comuns em suas comunidades e quais soluções eram encontradas;

- Trabalho, discutido com os agricultores, buscando entender o universo dos problemas e

cuidados com a terra e a colheita, os conhecimentos e técnicas utilizadas para resolver os

problemas da lida com a terra;

- Disciplina de Ciências, discutido entre dois grupos: entre crianças e jovens, levantando

suas percepções, gostos e desgostos juntos à disciplina; e, ainda, entre os professores,

questionando o entendimento destes a respeito do currículo da disciplina de ciências e seus

maiores desafios;

- Desafios do Educador do Campo, respondido pelos próprios alunos do curso, buscando

demonstrar como eles percebiam a relação do educador do campo com a sociedade e as

expectativas dos sujeitos do campo em relação aos educadores.

Curioso perceber que, apesar dos autores trabalharem com o conceito de tema gerador,

reconhecido conceito freireano para o desenvolvimento das entrevistas, os autores não citam em

nenhum momento alguma obra de Freire sobre a utilização do conceito para a construção do

currículo do curso.

Como descrito por Freire (1967, p.57), a educação deve proporcionar uma “reflexão sobre

si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades e sobre seu papel na nova cultura da

Page 120: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

118

época de transição”, possibilitando assim consciência crítica e compromissada com a existência

no mundo.

Essa perspectiva possibilita construir um currículo que rompe com a suposta inferioridade

ontológica de alguns conhecimentos, vindos dos sujeitos colonizados, porque o conhecimento

que deve estar presente no currículo não é algo dado como “verdadeiro” e “superior” a ser

absorvido, mas compreende seu papel em possibilitar a esses sujeitos a romperem com a

colonialidade do ser dada pela invasão cultural que os alienou e os distanciou de conhecimentos

que os emancipam.

Sobre essa forma de construir o currículo do curso a partir de sondagem inicial e da

identificação das temáticas de grande relevância social ao grupo, os autores argumentam que

É importante deixar claro que nossa opção por dialogar com a cultura dos educadores em

formação e com os anseios de suas comunidades não faz de nossa proposta curricular uma

aventura espontaneísta. A organização do curso que oferecemos não se restringe a atender

demandas exclusivas dos educadores do campo. Outras diretrizes também orientam nossas

ações. (LIMA; PAULA; SANTOS, 2011, p.109)

A escuta dos sujeitos Outros para a construção curricular é de tamanha forma incomum

que os autores sentiram-se na necessidade de justificar que isso não retira do curso a sua

cientificidade. Essa dificuldade de diálogo entre as formas de conhecimento científico e dos

conhecimentos populares nos espaços acadêmicos tornou-se marca de uma modernidade

dominadora e colonizadora que impede que os outros sujeitos e seus saberes estejam na

Universidade. Dessa forma, quando esses se fazem presentes, é necessário ressaltar que a

cientificidade do processo educativo não foi alterada por eles.32

Sendo criado (não como uma doação realizada de forma verticalizada aos sujeitos do

campo, mas como luta desses sujeitos para serem reconhecidos sujeitos de saberes), o curso dá

indícios de uma tentativa de escuta dos sujeitos Outros e de problematizar a noção da

colonialidade dos saberes. Questionar é necessário para que se possa romper com esses aspectos

abandonando uma tradição sufocadora, do silenciamento e da domesticação das culturas que são

dos Outros sujeitos, possibilitando-os, numa perspectiva dusseliana, transcender a fetichização

do conhecimento escolarizado.

Trazer para a formação dos sujeitos educadores suas histórias, e também os

conhecimentos e vivências da comunidade, fazendo-os perceber as inquietações de jovens e

32 Ressaltamos que os autores não trouxeram em seu artigo mais dados para que pudéssemos compreender como foi

utilizada as respostas das entrevistas para a construção do currículo do curso. Mas sinalizaram que “Com o auxílio

dessa sondagem inicial, identificamos temáticas que contemplam conceitos e ideias-chave das ciências da vida e da

natureza e que se apresentam como sendo de grande relevância social” Lima, Paula e Santos (2011, p. 109)

Page 121: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

119

crianças de suas comunidades sobre a relação dos saberes curriculares e a comunidade, rompe

com a lógica da orfandade criticada por Dussel (1977). Os sujeitos que estão em processo de

formação não são órfãos de cultura, de tradições e de conhecimentos, portanto, muito mais amplo

do que simplesmente depositar nesses sujeitos conhecimentos para que eles deixem de ser

“órfãos”, é necessário criar um verdadeiro diálogo, na acepção freireana, entre seus

conhecimentos e os conhecimentos científicos, permitindo a eles que se apropriem do

conhecimento científico que possibilite a eles serem pesquisadores e produtores de

conhecimento, sem que isso acarrete o abandono dos seus conhecimentos.

O processo de formação docente deixa de ser construído baseando-se em um

conhecimento abstrato e universal, e passa ter como base um questionamento das formas de

opressão perpetradas contra os sujeitos e seus conhecimentos. Como descrito por Freire e Shor

(2008, p.48), quando a preocupação se centra numa outra relação com o conhecimento, e não em

simples mudança de métodos e técnicas educacionais, a relação deste com a sociedade se estreita

e se possibilita a formação de um educador libertador.

Se os processos históricos das pedagogias de resistências e dos coletivos decoloniais

foram silenciados ou excluídos, por serem compreendidos como conhecimentos inferiores e não

científicos, as construções de outras pedagogias trazem esses sujeitos e seus conhecimentos para

o centro do currículo e das práticas educativas, buscando desocultar essas histórias. Trazer os

saberes do Outro, camponês, como saberes que devem ser respeitados, conhecidos, investigados

(e não a partir da desses saberes como colonizados, silenciados e inferiores) rompe com a

perversa construção das identidades desses sujeitos como inferiores.

Nessa perspectiva, pensar o fazer educacional é eminentemente um ato político. A

realização de um diálogo para a construção da proposta curricular do LeCampo já demonstra as

escolhas políticas do curso, na construção de uma proposta Outra de formação e de vivência em

nível superior que coadune com processos de resistência decolonial. Como descrito por Freire

(2014), não há como pensar a educação sem que a valoração dada a ela não seja ideológica em

função de interesses de grupos ou de classes.

Daí ser necessário evidenciar quais as visões presentes no Projeto Político Pedagógico,

por ser esse um documento central na construção do curso.

6.2.1. O Projeto Político Pedagógico do curso

O Projeto Político Pedagógico do curso, segundo Roseno (2010) e Antunes-Rocha

(2004), foi criado em 2004, tendo como elemento diretivo a busca pelo acesso a uma educação

Page 122: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

120

de qualidade, gratuita e pública, e como referência a realidade do ambiente rural demonstrada no

Plano Nacional de Educação. Além disso, também foi escrito pensando na expansão da educação

básica do campo associada a um progressivo aumento da qualidade da educação e na busca pela

superação do campo como o lugar do analfabetismo.

Segundo Roseno (2010), o único movimento social que esteve presente na articulação e

na construção do PPP, e que já tinha forte histórico e tradição com setores da educação, era o

MST. Isso contribuiu para que, por vezes, os ideais formativos do MST se associassem de forma

intrínseca ao curso, sendo difícil separá-los dos ideais educacionais do projeto nacional Por uma

educação do campo.

A leitura do Projeto Político Pedagógico33, como um documento central e dinâmico no

entendimento das concepções adotadas, esclarece as escolhas trazidas pelo curso, no que tange à

formação de professores do campo.

O curso visa à formação de professores com atuação nas séries finais do ensino

fundamental e no ensino médio cumprindo uma dupla função: possibilitar uma formação mais

abrangente do professor, o que o permite atuar em diferentes áreas, atendendo de forma

significativa às demandas das escolas do campo, e, ainda, permitir a integração dos conteúdos

curriculares, evitando a fragmentação dos saberes e acentuando a perspectiva de integração dos

saberes escolarizados e os da comunidade. Formados a partir de outra perspectiva, esses

professores passam a ter outros subsídios para uma transgressão, como descrito por Hage (2008),

do sistema seriado nas escolas do campo, além de possibilidades para construir práticas mais

efetivas nas escolas que já atuam em multissérie.34.

A formação por Docência Multidisciplinar (e não por um modelo disciplinar) encontra

respaldo no Parecer 9/2001 – CNE/CP, que fundamenta a resolução sobre as “Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica”. Nesse documento

se firma a necessidade de outra organização institucional, da definição e estruturação dos

conteúdos para que respondam às necessidades da atuação do professor, dos processos

33 Como descrito no documento a estrutura, dinâmica e conteúdo do curso estão ancoradas em dispositivos legais

frutos de históricas lutas do movimento Por uma educação do campo e dos movimentos sociais ligados ao campo

como a Lei de Diretrizes e bases 9.394 de 1996 nos artigos 23, 26 e 28 que afirmam a especificidade e a diversidade

do campo em todos os seus aspectos: social, cultural, política, econômica, gênero, geração e etnia; Parecer CNE/CEB

36/2001 e Resolução CNE/CEB 1/2002 que institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do

Campo; Parecer CNE/CP 009/2001 e Resolução CNE/CP 1/2002 que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para

a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena e

Parecer CEB/CNE/MEC nº 1/2006 que expõe motivos e aprova dias considerados letivos na Pedagogia da

Alternância. 34 Para compreender mais sobre a relação entre multissérie e Educação do Campo recomendamos o artigo escrito

por Hage “A Multissérie em pauta: para transgredir o Paradigma Seriado nas Escolas do Campo” Disponível em:

http://www.faced.ufba.br/sites/faced.ufba.br/files/multisserie_pauta_salomao_hage.pdf

Page 123: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

121

formativos que envolvem aprendizagem e desenvolvimento das competências do professor, da

vinculação entre as escolas de formação e os sistemas de ensino, de modo a assegurar-lhes a

indispensável preparação profissional. (2001, p. 11).

Segundo Antunes-Rocha (2011), a proposta do curso do LeCampo foi pensada dentro de

Outra relação com os saberes, os sujeitos e os espaços. Houve ali a busca por intensa reflexão

sobre os conteúdos, tempos e espaços das propostas dos cursos já oferecidos, num movimento

constante de aprender com o acúmulo já existente e de tentar produzir algo novo.

Como descrito por Antunes-Rocha (2011), quando da construção do PPP do curso, a

comissão responsável considerou necessário discutir as noções de escola e comunidade. A

conclusão a que chegaram é que o curso deveria problematizá-la, bem como atuar numa

perspectiva de compreensão de que escola e comunidade são tempos/espaços distintos e que não

devem ser dissociados, pois se complementam, sendo necessário abandonar a lógica colonizadora

de que os conhecimentos apreendidos na escola deveriam ser transferidos ao campo, como meio

de “libertar” os sujeitos campesinos da ignorância e torná-los superiores e incluídos dentro do

“conhecimento verdadeiro”.

A escola como mediação para aprender a reelaborar formas de pensar/sentir/agir, e não

para manter e/ou substituir formas anteriores. Nessa direção, a Comissão aforou a

alternância como referência para organização dos tempos e espaços do curso. Assim se

afirmaram os conceitos de Tempo Escola e Tempo Comunidade, como processos

contínuos de aprendizagem. (ANTUNES-ROCHA, 2011, p. 44)

A organização curricular do curso, segundo o PPP (2016), apresenta por base os pilares

da terra, trabalho e escola, que se dividem em três áreas de formação: complementar, livre e

específica, sendo esta desdobrada em três núcleos:

Page 124: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

122

FORMAÇÃO TEMPO ESPECIFICIDADES

Formação

Específica

Núcleo de formação na área

64 créditos (TE 51h; TC 13h)

Conhecimentos relativos à formação para atuação

no Ensino Fundamental e Médio

Núcleo de formação em Ciências da

Educação

47 créditos (TE 35h; TC 12h)

Formação necessária para o educador atuar nas

escolas do campo com teorias e metodologias para

articular diferentes áreas do saber

Núcleo de formação integradora

54 créditos (TE 29h; TC 25h)

Conhecimentos que integram toda a formação

específica na prática de ensino e nos estágios

supervisionados.

Formação

Complementar

Perfazem um total de 24 créditos (TE

12h; TC 12h), que os estudantes

cumprem em atividades acadêmicas

complementares

--

Formação

Livre

Serão regulamentadas pelos

colegiados, mas contam de atividades,

eventos culturais, congressos e oficinas

escolhidas e desenvolvidas pelos

alunos. 11 créditos. (TC 11h)

As áreas de desenvolvimento das atividades são:

Seminário Temático – ST

Círculo de Produção do Conhecimento – CPC

Grupo de Trabalho - GT

Oficinas - OF

Trabalho de Campo - TC

Atividade Autônoma - AA FONTE: Elaborado através de dados do Projeto Político Pedagógico do Curso, 2016

Assim, o curso se apresenta com a duração de quatro anos, divididos em oito períodos:

oito períodos de Tempo comunidade (TC) e oito períodos de Tempo escola (TE), sendo que, no

oitavo período, o Tempo Escola é realizado em dois momentos, fevereiro e julho.

5.2.2. A alternância pedagógica

A divisão do curso em TC e TE é marca do desenvolvimento da pedagogia da alternância.

Essa metodologia foi regulamentada pelo parecer CEB/CNE nº1/2006; ainda que sumariamente,

acreditamos ser necessário descrevê-la.

A utilização da pedagogia da alternância no Brasil se iniciou em 1969, no estado do

Espírito Santo, onde são construídas as três primeiras Escolas Famílias Agrícolas (EFA). Esse

modelo de educação vem do final da década de 1930, na França, nascido da insatisfação dos

sujeitos moradores das áreas rurais com o modelo de educação que recebiam. Tanto na França,

quanto no Brasil em 1969, esse modelo de educação buscou aproximar os conhecimentos

escolares da prática; assim, no TC, os pais eram os principais responsáveis pelo aprendizado do

filho, e, no TE, o principal responsável pela educação dos sujeitos era um técnico agrícola.

Atualmente, o Brasil conta com 243 Centros Familiares de Formação por Alternância

(CEFFAs), mantendo atividades em várias regiões, exceto em Alagoas, Paraíba, Pernambuco e

Page 125: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

123

Rio Grande do Norte. Como descrito por Ribeiro (2008), há uma polissemia no conceito de

Pedagogia da Alternância, sendo o termo concretizado de diferentes formas a partir das práticas

dos sujeitos que o alicerçam. Entretanto, acreditamos que a compreensão que reconhece a

Pedagogia da Alternância como aquela que pensa o trabalho produtivo como princípio para uma

formação humanista, e que articula dialeticamente o ensino formal ao trabalho produtivo seja a

que melhor se identifica com a perspectiva apresentada no PPP do Le Campo.

Já o período de TE se desenvolve aproximadamente em trinta dias, ficando os alunos

hospedados em uma pousada nas proximidades da FaE, tendo oito horas de aulas diárias,

divididas em duas disciplinas, uma na parte da manhã outra na parte da tarde. As disciplinas são

ministradas todos os dias da semana, até findarem suas respectivas cargas horárias.

O curso dispõe de quatro áreas do saber para formação: Linguagem, artes e literatura

(LAL), organizada a partir das articulações dos saberes de Língua Portuguesa, Literatura, Língua

Estrangeira e Arte; Ciências da Vida e da natureza (CVN), organizada a partir da articulação dos

saberes da Biologia, Física, Química e Geografia; Ciências Sociais e Humanidade (CSH)

organizada na articulação dos saberes da História, Sociologia, Filosofia e Geografia; e

Matemática, sendo uma área do conhecimento ofertada por ano. Em cada área do conhecimento

são disponibilizadas 35 vagas.

Sobre a formação por área e a utilização da Pedagogia da Alternância, é interessante

perceber as ressalvas sobre esse modelo de formação, indicadas por Molina

Um dos maiores riscos dessa estratégia está na precarização da formação docente, que

pode ocorrer a partir da supressão de conhecimentos disciplinares fundamentais ao

aprendizado de determinados conteúdos, ou mesmo, do acesso a eles de maneira

superficial e insuficiente para garantir o seu verdadeiro domínio. E, há ainda um fator

relevante a se somar ao imenso desafio desta estratégia formativa, no caso das

Licenciaturas em Educação do Campo, a formação em Alternância, o que demanda um

sábio exercício de planejamento dos conteúdos necessários a serem socializados em

cada Tempo Escola e dos períodos disponíveis para tanto. (2015, p. 159)

Sabe-se que há uma heterogeneidade nas Universidades que trabalham com formação de

professores do Campo, entretanto, o cuidado com o conhecimento que está presente na formação

de professores deve ser sempre central, para que não se repita o modelo de formação presente na

educação rural, que apenas destinava conhecimentos básicos à formação desses professores.

Assim, na Alternância, o cuidado também persiste, sendo necessário realizar acompanhamento

sistemático da Universidade nos espaços de TC, evitando que eles sejam espontaneístas e,

principalmente, se ater para que a relação entre TC e TE seja sempre orgânica, evitando sua

dicotomia e a hierarquização dos conhecimentos produzidos em cada tempo.

Page 126: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

124

Reconhecemos que é possível minimizar esses problemas mediante a um trabalho

organizativo e coletivizado entre os docentes das áreas de habilitação específicas, favorecendo a

interdisciplinaridade e, principalmente, como descrito em Molina (2015), Caldart (2012) e

Arroyo (2013) centrar-se no propósito da construção de uma educação materializada nos

problemas reais do campo, e não apenas um saber construído com abstrações teóricas de

conceitos científicos.

Como ressaltado por Caldart (2009) a Educação do Campo deve estar pautada na

democratização do conhecimento: isso quer dizer que a utilização da Pedagogia da Alternância

e das práticas de formação de professores, tanto no TE como no TC, devem estar voltadas para

essa problemática. Essa democratização não significa apenas o acesso ao conhecimento

“historicamente acumulado”, mas uma radicalização que se constitui numa crítica ao modo de

produção do conhecimento, como crítica à ciência moderna, à racionalidade burguesa, além de

promover organicidade entre valores e conhecimento dentro dos processos formativos. A

democratização nessa concepção não é apenas dos conhecimentos e do acesso a eles, mas

também a produção do conhecimento.

A perspectiva decolonial se materializa nesse momento, demonstrando a sua importância

tanto como conceito, quanto como prática, que modifica as formas estruturais de produção de

conhecimento, produzindo um conhecimento Outro, radicalmente democrático. Esse

conhecimento, que não é neutro, é construído por esses sujeitos como forma de se afirmarem

como sujeitos Outros, de romperem com as estruturas que os inferiorizam e os silenciam, e de se

apropriarem de um conhecimento que, ao possibilitá-los seu reconhecimento enquanto sujeitos

Outros, também promove a construção de formas Outras de relações com o padrão de poder

moderno colonial.

Essas formas de produção de conhecimento e esse saber historicamente acumulado não

são neutros e, portanto, perpetuam a lógica da reprodução do capital e não a do trabalho, como

produção humana e produtora de cultura. Não queremos dizer que elas devem ser ignoradas

enquanto tecnologias úteis ao campo e à vida nele, mas a necessidade de se pensar e produzir

outros saberes que tenham, como descrito por Caldart (2009, p. 45), outra lógica de pensamento

e de produção de conhecimento, que fujam à lógica colonizadora moderna.

Isso dialoga com a necessidade de se refletir sobre os paradigmas de construção do

conhecimento, há muito, colonizados pela modernidade. A construção de um curso de

educadores para o campo deve buscar não dicotomizar a divisão entre trabalho manual e

intelectual própria do capitalismo, utilizando a Pedagogia da Alternância como importante meio

para buscar um diálogo com os saberes Outros, propondo a construção de um conhecimento

Page 127: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

125

intercultural, porque, reconhecido seu vínculo histórico, político e social, afirmam processos e

práticas Outras de produção de conhecimento, não se resumindo à simples assimilação de

conhecimento científico.

Para tornar real esse diálogo intercultural, é necessário expor os motivos que

impossibilitam o diálogo, expor as marcas e os sentidos coloniais presentes nas formas de pensar

e de produzir o conhecimento, possibilitando que a decolonialidade emerja das lutas contra essas

formas e sentidos coloniais do conhecimento. Produzir um conhecimento intercultural não pode

ser entendido como um conhecimento “inferior” ao científico, por advir (também) das práticas,

mas sim como um conhecimento com uma lógica distinta de produção.

Assim como Molina (2015) nos adverte sobre os perigos da Pedagogia da Alternância

cair numa relativização e num espontaneísmo sobre o que é conhecimento, Caldart (2009)

também nos diz dos “perigos” de uma aproximação com os saberes populares no espaço

acadêmico. Segundo a autora, isso pode causar um distanciamento dos trabalhadores à histórica

luta que travaram ao acesso à ciência e ao conhecimento que ajuda a produzir pelo seu trabalho,

caindo numa espécie de relativismo; entretanto, a própria autora nos faz uma ressalva

É preciso perguntar se negar a contradição produzida pelo

capitalismo no modo de produção do conhecimento, que absolutizou a ciência ou a

racionalidade científica, ou uma forma dela, ao mesmo tempo em que a fez refém de

uma lógica instrumental a serviço da reprodução do capital e definiu mecanismos de

alienação do trabalhador em relação ao próprio conhecimento que produz pelo seu

trabalho, não é um risco ainda maior para nossos objetivos de superação do capitalismo.

(CALDART, 2009, p. 45)

5.2.3. Docência Multidisciplinar

A parte do PPP dedicada a detalhar as formações específicas por áreas de conhecimento

é a mais extensa, ocupando mais da metade do projeto. Cada área de formação apresenta seu

modelo de formação. Em algumas áreas, como é o caso da CVN e da LAL, é possível perceber

maior detalhamento nos objetivos teóricos e concepções que balizam a estrutura da área de

formação, o que não fica tão evidente nas áreas da CSH e Matemática; isso não impossibilita,

todavia, entender as propostas discutidas nessas áreas. Para facilitar a compreensão do leitor,

retiramos do PPP pontos que possibilitem demonstrar os objetivos de cada área de formação.

Page 128: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

126

Dentro dos objetivos apresentados por cada área, inquieta-nos sua desvinculação com o

campo. Os pontos discutidos nas áreas do saber poderiam ser facilmente confundidos ou

discutidos em outros cursos de licenciatura. Coube à habilitação na área de Matemática ser a

Ciências da Vida e da

Natureza

Línguagem, Arte e

Literatura

Ciências Sociais e

Humanas Matemática

Po

nto

s a

ser

em d

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lvid

os

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s á

rea

s d

o

sab

er

• Conhecer referências

bibliográficas básicas

confiáveis sobre

conteúdos e sobre

abordagens teórico-

metodológicas desses

conteúdos em classe.

• Instrumentalizar o

docente para planejar,

desenvolver e avaliar

atividades pertinentes a

um currículo CTSA.

(Ciência Tecnologia

Sociedade Ambiente)

• Apropriar-se de uma

visão crítica, argumentada

e histórica do

desenvolvimento

científico e tecnológico e

da relação deste com a

sociedade e o ambiente.

Promover a aprendizagem

de alguns conceitos e

ideias-chave da química,

da física, da geologia

e da biologia.

• Apresentar uma

abordagem temática e

integrada de conteúdos

oriundos de diferentes

campos disciplinares.

• Discutir diferentes

abordagens curriculares

avaliadas e questionadas

em pesquisas em

educação

em ciências. (PPP, 2016,

P.12)

1) Habilidades e

competências nos usos da

linguagem oral e escrita,

levando em conta os

diversos gêneros

discursivos e as funções

sociais da língua e da

linguagem;

2) Habilidades e

competências nos usos de

outros sistemas semióticos

e de diversas tecnologias:

televisão, cinema, teatro,

música, pintura,

fotografia, dança,

escultura;

3) Conhecimento e

posicionamento crítico

sobre os usos, funções e

modos de produção e de

disseminação dos meios de

comunicação, das novas

tecnologias, das artes e da

ciência;

4) Concepções de língua,

de linguagem, discurso e

texto, orientadas por um

referencial sócio histórico

e conectadas com as

diversas dimensões da

linguagem: sociológica,

psicológica, histórica,

antropológica, política,

pedagógica, lingüística,

entre outras. (PPP, 2016,

p.27)

A área tem como pergunta

inicial: o que é

imprescindível (da

Geografia, da História, da

Sociologia, Antropologia

e da Filosofia) para a

formação de

educadores/as do campo?

Os primeiros tempos (II e

III) estarão voltados para

os fundamentos históricos

e filosóficos para refletir

sobre os diferentes

percursos do

conhecimento e, ao

mesmo tempo, para

definir os eixos

articuladores da área. Na

formação específica

acontecerão

aprofundamentos em cada

um dos campos

disciplinares, mas sem

perder o elemento

articulador da área e a

formação para a docência.

(PPP, 2016, p. 62)

(...)serão propostas

atividades que resgatem

modos de contar em

diversas situações da vida

cotidiana no campo; com

isso espera-se repertoriar

modos de medir

comprimentos,

capacidades, massas,

áreas e tempo, nas

diversas regiões onde

vivem ou já viveram os

trabalhadores e

trabalhadoras do campo (e

das cidades) e suas

famílias, agentes de

também diversificados

fenômenos migratórios;

será realizada uma

investigação que buscará

compreender modos de

dispor e classificar objetos

por sua forma, material,

utilidade ou outros

atributos, ampliando

assim as possibilidades

variadas para ensaiar a

urdidura de teias de

significação para a

abordagem de conceitos

relacionados aos sistemas

de numeração, de medidas

ou de classificação de

formas geométricas, por

exemplo. Entretanto,

temos clareza que não

revelarão utilidade da

Matemática que a escola

veicula para a solução de

situações da vida prática.

(PPP, 2016, P.77)

Page 129: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

127

única a, ao menos, citar que os conceitos trabalhados terão relação com o campo e com seus

trabalhadores e trabalhadoras.

Alguns conceitos são trabalhados como centrais para a formação nessa área, como língua,

linguagem, texto, discurso e letramento. Permeando essas rápidas discussões, discute-se também

a importância, para o curso, da figura do professor-leitor-autor. Ou seja, para que haja um

envolvimento dos alunos com as leituras, compreende-se que o professor deve antes se apropriar-

se dos diversos domínios e práticas que se vinculam à cultura escrita; deve ser um professor que

lê e que escreve.

Segundo Veiga (2003), existem duas propostas básicas de construção de PPP: uma

relacionada à inovação reguladora e uma que se vincula à inovação emancipatória. Já ressaltamos

antes de dissertar sobre as duas formas, que, para além de colocar o projeto político do LeCampo

em um ou outro projeto, nossa intenção aqui é trazer estudos que nos possibilitem analisar o PPP

do LeCampo.

Para Veiga (2003), a inovação regulatória faz com que a elaboração e o desenvolvimento

do PPP sejam marcados pelo caráter regulador e normativo da ciência conservadora. Assim, seu

caráter de inovação está em uma rearticulação no sistema de forma acrítica de critérios e

conceitos, impossibilitando o desenvolvimento e a articulação de novas relações entre o ser, o

saber e o agir coletivos.

Já seu caráter de inovação emancipatória tem uma procura maior pelo diálogo e a

comunicação com os saberes locais e seus sujeitos, por reconhecer que o PPP tem uma lógica

temporal histórica e social. Na perspectiva da inovação emancipatória, o PPP possibilita pensar

a instituição para além das lógicas reprodutivistas, como local de confronto, resistência e relações

de poder.

Um dos pontos fundamentais para a construção da perspectiva emancipatória, que está

pouco desenvolvida no PPP na área de formação específica, é a relação do conhecimento com o

seu meio. Não há uma descrição mais estreita de como a referida área de formação (LAL) se

vincula à formação de educadores do campo, o que aparenta criar um curso de licenciatura em

Educação do Campo com um amplo histórico de militância e habilitações específicas que

parecem não se aproximar a essa identidade mais ampla do curso.

Nas outras áreas de formação também é possível perceber esse distanciamento entre a

produção do conhecimento na universidade e a sua relação com o campo. Na configuração das

áreas específicas de formação parece haver um distanciamento da principal luta campesina, que

é o reconhecimento de que a luta por ocupar os latifúndios do saber, os espaços acadêmicos, não

Page 130: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

128

se desvincula de seus saberes e suas lutas pela terra, pelo território, pela história e pelas memórias

que constroem em relação com a materialidade do campo.

Compreendendo, como descrito por Caldart (2012), que a escola é mais do que escola

para os movimentos sociais e sujeitos do campo, e que as universidades são mais do que

universidades, porque esses sujeitos buscam uma ressignificação desses lugares e uma

repolitização do tradicional direito à escola, buscamos entender os objetivos trazidos no PPP para

o desenvolvimento do curso.

O objetivo geral do curso é apresentado da seguinte forma

Contribuir na construção de alternativas de organização do trabalho escolar e

pedagógico que permitam a expansão da educação básica no e do campo, com a rapidez

e qualidade exigida pela dinâmica social e pela superação da histórica desigualdade de

oportunidades de escolarização vivenciadas pelas populações do campo. (PPP, 2015, p.

13)

Já os objetivos específicos são expressos da seguinte maneira:

• Formar Educadores para atuação nas séries finais do ensino fundamental e médio em

escolas do campo aptos a fazer a gestão de processos educativos e a desenvolver

estratégias pedagógicas que visem a formação de sujeitos autônomos e criativos capazes

de produzir soluções para questões inerentes à sua realidade, vinculadas à construção

de um projeto de desenvolvimento sustentável do campo e do país;

• Desenvolver estratégias de formação para a docência em uma organização curricular

por áreas de conhecimento nas escolas do campo.

• Formar e habilitar profissionais em exercício na educação fundamental e média;

• Habilitar professores para a docência por Áreas do Conhecimento;

• Construir coletivamente, e com os próprios estudantes, um projeto de formação de

educadores que sirva como referência prática para políticas e pedagogias de Educação

do Campo.

• Construir alternativas para a nucleação da rede escolar. (PPP, 2015)

Como seria a atuação e a construção de um “projeto de desenvolvimento sustentável do

campo e do país”? Esse projeto estaria associado ao bojo do desenvolvimento dos pequenos

produtores? Ou vinculados à lógica da “sustentabilidade” empregada pelo capital? Apesar de o

primeiro objetivo ser o que mais detalha a aproximação entre o curso e a comunidade, não fica

claro qual seria o projeto de sociedade que o curso apoia.

A presença dos sujeitos estudantes, não como depositários do conhecimento, mas sujeitos

que participam da discussão e da construção, como descrito no quinto objetivo, dos projetos e

propostas do curso, consolidam um espaço menos unívoco e mais plural, sendo esses sujeitos

deslocados de objetos de conhecimento a narradores e construtores de políticas e pedagogias do

campo, o que promove a ressignificação dos espaços acadêmicos trazida por Caldart (2012).

Ao trazer a importância dos sujeitos que compõem o curso para a construção de

referências práticas para pautas vinculadas à educação do campo, como os objetivos do curso,

permite que o espaço universitário rompa com as lógicas universalistas, distributivas e

Page 131: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

129

compensatórias, trazendo para os sujeitos do campo formados no curso, a possibilidade da

construção de prática mais horizontalizada.

Parece ser esse um movimento de ruptura com a noção de totalidade do conhecimento

acadêmico, viabilizando a construção de uma pedagógica que não seja dominadora. Como

descrito por Dussel (1977), a ontologia pedagógica de dominação sobre o educando nunca o

permitiu que ele pensasse a si mesmo como Outro, mas sempre o alienou dentro do mesmo,

portanto, oportunizar e propor a escuta e o acolhimento do Outro para pensar os processos

educacionais do campo numa relação face a face é o início da construção de processo decoloniais.

5.3. Os sujeitos pesquisados

Oito sujeitos participaram da roda de conversa. Elaboramos uma tabela que nos permite

visualizar, de maneira primária, suas características básicas.

O perfil dos estudantes que se dispuseram a conversar conosco é similar ao perfil da turma

de LAL acompanhada. Como se percebe, há uma prevalência de alunos na faixa etária entre 20

e 25 anos, sendo maior a presença de participantes do sexo feminino, além de prevalecer o perfil

de alunos solteiros35. Como já comentado, para o ingresso no curso é necessário ser morador de

área rural, mas algumas especificidades podem ser percebidas entre os sujeitos pesquisados.

Júlia, Felipe e João são moradores de área quilombola e se reconhecem como quilombolas.

Bianca é moradora de área indígena, mas não se reconhece com essa identidade.

Para facilitar a visualização dos locais de residência dos alunos que compuseram a roda

de conversa, elaboramos uma ilustração com a localização de seus municípios. Ressaltamos que

não há alunos no curso que residem em Belo Horizonte, a marcação foi feita para identificamos

a localidade da UFMG.

35 É necessário observar que casais que decidem cursar o LeCampo juntos têm direito a quartos individuais durante

a permanência no TE, como era o caso de um casal que fazia parte da LAL.

Page 132: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

130

Elaborado pela pesquisadora

Para compreendermos de forma mais verticalizada a atuação e o relacionamento desses

sujeitos com suas comunidades, perguntamos se alguém entre eles já havia entrado no LeCampo

por meio de movimentos sociais. Dois alunos responderam que sim: são eles Felipe e Pedro. Os

demais disseram que passaram a ter vínculos com associações e sindicatos após o ingresso no

LeCampo. Bianca e Ana disseram nunca terem participado de nenhum movimento social ou

sindicato. As associações mencionadas pelos alunos foram:

Page 133: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

131

ALUNOS ASSOCIAÇÕES/MOVIMENTOS

Pedro Associado ao Movimento Comunitário de Produtores

Rurais

Felipe Diretor de Formação Sindical dos Trabalhadores Rurais e

Representante das Mulheres e Jovens de Jenipapo de

Minas

Lira Secretária da Associação Comunitária de Icaraí.

Gabriela Associada na Associação Comunitária de Pequenos

Produtores Rurais Fazenda Catulé

Júlia Duas associações quilombolas e do sindicato

João Duas associações quilombolas e do sindicato.

FONTE: nossa pesquisa

Entre as atribuições desenvolvidas por esses sujeitos nas associações em que informaram

participar, a de Felipe destaca-se das demais, por apresentar papel de diretividade dentro do

sindicato. Gabriela deixou transparecer em nossas conversas que seu papel na associação a qual

se vincula é apenas de associada, não comparecendo às reuniões e encontros promovidos por

eles. Júlia e João nos chamam a atenção por dizerem participar da associação quilombola e do

sindicato, mas não souberam informar o nome de nenhum dos dois grupos aos quais se

pertencem.

Numa conversa com Gabriela, ela me informou que ela e algumas pessoas que ela

conhece acabaram se associando a sindicatos, principalmente, para conseguirem alguns

benefícios, como linhas de créditos diferenciadas e outros benefícios conduzidos a trabalhadores

do campo, que só podem ser acessados se o indivíduo apresentar vínculo com tais sindicatos.

Não é nossa intenção afirmar que seja essa a situação de todos os sujeitos pesquisados,

mas é possível dizer que há algum distanciamento desses sujeitos dos seus sindicatos e

associações, mesmo sendo vinculados a eles. A participação desses sujeitos não nos pareceu

propositiva e ativa dentro desses ambientes, restringindo-se apenas à presença nas reuniões.

5.4 Observação de Campo

A primeira atividade acadêmica acompanhada foi a palestra “Conjuntura política atual”.

Para compor a mesa foram chamadas quatro pessoas: uma professora da FaE, um representante

da FETAEMG, um Deputado Federal e uma aluna do curso.

Page 134: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

132

Entre as provocações trazidas pelos convidados, foi interessante a fala da professora do

LeCampo sobre a responsabilidade dos alunos com a manutenção do curso, numa leitura muito

clara sobre os desafios do desenvolvimento do curso frente a uma possível ruptura democrática

no país. Tal fato poderia diminuir o repasse de verbas ao curso, o que seria impeditivo para se

realizar o próximo TE. Afinal, o deslocamento dos alunos das suas respectivas cidades, bem

como sua manutenção na cidade – custeio de alimentação e hospedagem, são responsabilidades

financeiras arcadas pelo LeCampo com repasse de verba do governo federal.

Durante o período da tarde os alunos do curso se dividiram para realizarem discussões de

como havia sido o TC: os desafios, as dificuldades e os aprendizados.

Como descrito no plano de ensino do curso, os objetivos da disciplina são

Fazer a discussão teórica e vivência prática da organicidade – por turma – TE e TC.

Organização em Grupos de Trabalho. Apropriação teórica de conceitos relativos à

organização e processos grupais, engajamento social e lideranças.

Foi possível vislumbrar objetivamente a execução dos objetivos dessa disciplina no

encontro do dia 15 de julho de 2016. Nesse dia, os alunos separados em Gt’s desenvolveram

avaliações sobre o desenvolvimento das disciplinas no TE. As avaliações foram compartilhadas

no fim do dia no auditório da FaE, assistida pelos alunos de todas as áreas e pela professora que

conduziu a disciplina.

Entre as observações, considerações e ponderações que os alunos trouxeram sobre o

desenvolvimento do TE, até aquele momento, algo que chamou a atenção, não apenas minha,

mas dos demais alunos foi a fala dos alunos recém-ingressos da habilitação em Matemática.

Conforme registrado no diário de campo 08 de julho de 2016 o aluno responsável por partilhar

as percepções coletivas da sala trouxe um problema vivenciado com alguns professores: “há

professores do curso que desviam o foco ao darem aula, falando de política e religião e não

expondo o conteúdo”.

É curioso perceber que essa crítica trazida pelos alunos se desvincula do propósito basilar

da educação do campo, de ser um conhecimento que relacione teoria e prática ao mundo real; um

conhecimento propositivo, capaz de modificar a sociedade. Assim, a Educação do Campo se

apresenta como

(...) um movimento real de combate ao ‘atual estado de coisas’: movimento prático, de

objetivos ou fins práticos, de ferramentas práticas, que expressa e produz concepções

teóricas, críticas a determinadas cisões de educação, de política de educação, de projetos

de campo e de país, mas que são interpretações da realidade construídas em vista de

orientar ações/lutas concretas. (2009, p. 40)

Page 135: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

133

Os serões de estudo também foram mencionados. Como registrado em meu diário de

campo 08 de julho de 2016 os alunos reafirmaram sua importância, “por nos ajudarem a conhecer

mais sobre os movimentos sociais do campo”. Os serões são atividades complementares

desenvolvidas fora do horário de aula regular dos educandos, com duração de aproximadamente

duas horas, normalmente realizadas no hall do prédio em que estão alojados, no período da noite.

Até aquele dia, havia sido realizado um serão com o tema “Movimentos Sociais I: sucessão da

juventude no campo”.

Esses dois pontos trazidos pelos alunos são significativos para evidenciarmos, alguma

incompreensão e incômodo, por parte dos alunos, quando os professores se aproximam de temas

tidos como “alheios” às disciplinas ministradas por eles. Apesar de não presenciarmos tais

momentos em sala de aula junto à turma caloura, as pontuações trazidas por eles nos permitem

inferir que eles distinguem o que seria um conhecimento que não “se mistura” com política, ou

que não deveria se misturar; mas existe outro saber que, talvez, por não estar em sala de aula,

pode se vincular as discussões políticas, como ocorreu durante os serões.

Aproximar-se dos movimentos sociais como conhecimento teórico desvinculado da

prática e/ou se aproximar da proposta de uma Educação do Campo como teoria, mas distante da

prática, descaracteriza, desestabiliza e invalida a proposta que nasce de transformação social, de

pensar processos de ruptura e de construção do novo, que nascem junto à Educação do Campo.

Daí ser curiosa a presença de alunos no LeCampo que defendam ser necessário separar política

e “sala de aula”, aderindo a uma proposta marcadamente colonizadora sobre a concepção de

conhecimento, indo contra toda a construção teórica que alicerça o curso.36

No dia 18 de julho, os alunos do LeCampo se reuniram para decidir se participariam de

forma coletiva do “Festival Nacional de Artes e Cultura da Reforma Agrária”, que se realizaria

no dia 21 de junho de 2016. Os alunos optaram por ir, entretanto, apensar de não ter números

exatos, é possível afirmar que menos da metade dos alunos presentes naquele TE de fato

compareceram ao evento. É curiosa a ausência dos alunos, visto que o evento tratava de forma

eminente da temática do campo, em suas abordagens políticas, culturais e sociais. Os alunos que

compareceram ao evento participaram da palestra de abertura, que contou com a participação do

coordenador nacional do MST, João Pedro Stédile, e a coordenadora geral do Sind-Ute/MG,

Beatriz Cerqueira.

Page 136: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

134

Seguido ao momento de discussão, houve uma caminhada junto aos militantes do MST

até o local onde estava organizada uma feira com exposição dos produtos produzidos pelo MST.

Acompanhei a feira junto aos alunos da LAL, e o que mais me chamou a atenção foi a curiosidade

dos educandos da LAL sobre a mística realizada no evento. Segundo eles, ela trazia “uma

emoção” que eles não percebiam na mística realizada por eles dentro do LeCampo. Entre as

conclusões as quais pareciam chegar, estava a de que eles nunca haviam realmente feito uma

mística, porque eles nunca haviam lutado e participado diretamente das lutas de movimentos

sociais como aquele grupo que ali estava.

5.4.1. A observação em sala de aula

A observação sistemática foi realizada junto à disciplina denominada “Educação,

Conhecimento e Cultura”. A ementa da disciplina apresentada pelo professor à turma no primeiro

dia de aula se diferenciava daquela que havia recebido na secretaria do curso durante o processo

de escolha das disciplinas a serem observadas. A ementa da disciplina traz os seguintes dizeres

A educação como processo social. Educação e processo de socialização. Análise

sociológica das desigualdades sociais e escolares. Processos educativos em diferentes

contextos.

Como se percebe, há uma proposição para a leitura dos temas voltados para as relações

sociais, não sendo a educação trabalhada exclusivamente como aspecto da escolarização. São

quatro os textos bases indicados na bibliografia básica. Para facilitar a visualização, elaboramos

o seguinte quadro com as referências indicadas:

Page 137: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

135

CONTEÚDOS PROGRAMÁTICOS – BIBLIOGRAFIA BÁSICA

Unid. I: Visão marxiana da sociedade

capitalista

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.

Feurbach: oposição entre a concepção

materialista e a idealista. In.: A ideologia

Alemã. São Paulo. Martins Fontes. 2001.

P. 3-54

Unid. II: O conceito de cultura, suas

variações e implicações para a análise

social das desigualdades.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia.

In: Crítica y emancipación: Revista latino-

americana de Ciencias Sociales. Buenos

Aires: CLACSO. Ano 1, nº 1, jun/2008. P.

53-67.

Unid. III: O capital cultural e a cultura

escolar: desigualdades escolares e

desigualdades sociais.

BONAMINO, Alicia; ALVES, Fátima,

FRACO; Creso. Os efeitos das diferentes

formas de capital no desempenho escolar:

um estudo à luz de Bourdieu e de

Coleman. In: Revista Brasileira de

Educação. Rio de Janeiro: ANPED. Vol.

15, nº: 45, set./dez. 2010, p. 487-594.

Unid. IV: A educação do campo e as

experiências de escolas do campo.

ARROYO, Miguel. A educação básica e o

movimento social do campo. In:

ARROYO, M. FERNANDES, M. A

educação do campo e o movimento social

do campo. Brasília: Articulação Nacional

por uma Educação Básica do Campo.

1999, p. 13-29. Fonte: realizado pela autora a partir do plano de aula da disciplina

Perguntamos ao professor Mário o porquê da escolha desses textos para discussão dos

conceitos de educação e, principalmente, o porquê da escolha de Marx.

Mário: Eu sempre me desafio a preparar aulas e a discutir uma concepção mais ampla,

um objeto mais amplo, para aportar as contribuições da sociologia. Então normalmente

eu sempre faço escolhas que vão dentro de um certo é... campo... que é pensar a relação

Estado e sociedade, o campo do direito, a escola como um direito, né? Essa disciplina

que você acompanhou, eu resolvi discutir a ideologia alemã, porque os alunos [de outras

turmas] sempre reclamavam da ausência de um debate mais conceitual dentro do

marxismo. Eles achavam que eles viam muito pouco Marx, e como eu queria discutir a

relação com o conhecimento, o nome da disciplina é esse inclusive?! Escola,

conhecimento e cultura eu acho.... Como está no título da disciplina eu peguei a

Ideologia Alemã pra discutir um pouco da produção do conhecimento na sociedade

capitalista e a leitura do Marx, pra como é que esse conhecimento é atravessado pela

dinâmica de classe. E os outros textos surgiram inclusive dessa escolha de Ideologia

alemã né? Então tanto é.... o texto da Marilena Chauí é... é.... é.... o.... (o professor

parece ter esquecido o nome do autor; nesse momento sugiro o nome de um autor

trabalhado em sala)

Pesquisadora: É o sobre Bourdieu ?

Page 138: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

136

Mário: Isso! Surgiram muito daí. Muito dessa coisa de relaciona a sociedade,

desigualdade social, perspectiva de classe e conhecimento. Então é isso... Eu acho que

a disciplina tento fazer essa conversa.

Percebe-se que as escolhas teóricas estão centradas na perspectiva marxiana e de autores

que dialogam com essa teoria. Cientes que a proposta da Educação do Campo para a formação

de professores está voltada para uma compreensão mais abrangente de sociedade e de

conhecimento, buscando construir uma perspectiva omnilateral da educação, a escolha de textos

que relacionem e tencionem as perspectivas de educação, conhecimento e cultura parece

comungar com a proposta de formação de professores do campo.

Apesar de não comentado pelo professor Mário como se deu a escolha do texto da última

unidade, escrita pelo professor Arroyo, é possível inferirmos sentidos a essa escolha. Por ser um

dos textos iniciais da proposta de construção da Educação do Campo, esse texto possibilita aos

estudantes articularem os outros textos a pontos específicos da educação básica do campo e de

suas relações com os movimentos sociais, oportunizando um momento de síntese das teorias

apresentadas junto à proposta dos movimentos sociais para a educação do campo.

Foi possível comprovar na sala de aula da LAL o ponto trazido na fala do professor Mário

sobre o pouco conhecimento a respeito de Marx. Durante a primeira aula, o professor indagou à

turma quanto a contatos anteriores com os textos de Marx e se conheciam os conceitos elaborados

pelo autor. Após alguns minutos de silêncio, os alunos disseram conhecer Marx vagamente das

disciplinas de Sociologia e Filosofia do ensino médio, citando alguns conceitos como classe, luta

de classe e proletariado. Mesmo que os alunos tenham citados esses conceitos, nem sempre

sabiam explicá-los, necessitando de uma intervenção do professor.

Percebido o desconhecimento da turma em relação a Marx, o professor enumerou

algumas opções de filmes que possibilitaria a discussão de alguns pontos sobre a teoria marxiana

para serem assistidos na próxima aula, no dia seguinte, e acordou-se, junto à turma, que seria

assistido ao filme “Eles Não Usam Black-Tie”.37

Após o filme, seguiu-se a discussão. Curioso perceber que nenhum aluno da turma

problematizou as relações e os sentidos trazidos no filme dentro dos conceitos abordados na aula

anterior, relacionando-os à greve e aos direitos trabalhistas.

Os comentários trazidos pela turma centraram-se no papel de Tião: segundo eles, a

escolha de Tião em não participar da greve era correta, uma vez que ele precisava se casar e

37 O filme brasileiro de 1981, dirigido por Leon Hirszman, narra a história de um movimento grevista iniciado numa

fábrica e a postura conflitante de dois sujeitos, pai e filho, frente à greve. Enquanto Tião, o filho, se demonstrava

preocupado com questões pessoais, boicotando a greve e delatando alguns colegas de trabalho em troca de aumento

salarial, seu pai se demonstrava um ávido defensor dos direitos coletivos e líder do movimento grevista.

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sustentar sua namorada, que estava grávida. Quando os alunos se dispuseram a falar sobre o pai

de Tião, não pouparam críticas: a principal centrava-se no que os alunos denominaram de falta

de respeito do pai à vontade do seu filho em não participar da greve. Já a outra forte pontuação

trazida pelos alunos estava na análise que realizavam do pai de Tião como um homem “sonhador”

e “esperançoso”, como anotei em meu diário de campo. Ainda, segundo alguns alunos, o pai de

Tião não havia compreendido como “a vida é” e, portanto, se colocava numa luta infrutífera, a

favor dos interesses coletivos.

Observamos que os alunos não trouxeram, ao comentar o filme, nenhuma associação a

experiências vivenciadas no campo, ou relatos de situações análogas. Os traços individualistas

trazidos nas falas dos sujeitos que compõem a turma da LAL nos levam a perceber o

distanciamento destes dos sentidos coletivos trazidos dentro de organizações e movimentos

sociais.

Conforme descrito por Restrepo e Rojas (2010, p. 163), o distanciamento dos sentidos

coletivos provocam a negação da construção de outro mundo, deixando a criatividade e os

interesses pelos seres humanos e pela celebração da vida em um plano secundário, privilegiando

o êxito individual e meritocrático da acumulação de dinheiro. Nessa perspectiva, pensar a

decolonialidade do ser é buscar romper com a narrativa totalizante do capitalismo, que resume

todos os processos a mercadoria, construindo processos Outros de cooperação e de relação com

o Outro numa perspectiva face-a-face, ou seja, uma relação de horizontalidade, e não numa

relação dominadora, onde um se vende e o outro compra.

Por não haver uma problematização dos sentidos de coletividade e de individualidade

para a compreensão das questões abordadas no filme, podemos afirmar, aproximando-nos das

leituras de Freire, que o processo de conscientização não foi percebido na turma naquele

momento. Aqui entendemos o processo de conscientização como de criticização das relações

sociais e, a partir daí, da construção de uma condição para o comprometimento diante do contexto

histórico-social de mudança da realidade. Essa conscientização distancia-se, como descrito por

Freire (1991), da concepção de conscientização como uma “pílula mágica” a ser aplicada nas

pessoas para torná-las conscientes do mundo, aproximando-se de uma concepção de consciência

que nega o fatalismo e concebe a história como construção humana, sendo todas as lutas,

portanto, válidas, necessárias e frutíferas.

Perguntamos em nossa entrevista ao professor Mário como ele percebia os comentários

que a turma realizou sobre o filme:

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Mário: No curso que tem a origem que tem, né? Quer dizer, um curso que surge das

demandas dos trabalhadores e trabalhadoras do campo por uma escola com identidade

do campo, é... um pouco de estranhar esse tipo de fala né? Como é que alguém pode ter

uma posição, de uma saída individual para um conflito que não é individual que é

coletivo né?! Então é... isso de certa forma me surpreende. Mas, ao mesmo tempo eu

acho que isso faz parte da vida social. Quer dizer, é obvio que... formas... e saídas

individuais, posições individuais estão presentes em meio as decisões mais coletivas,

né? Então os alunos podem ter esse tipo de percepção e de posição porque ela circula

socialmente né? Então de certa forma está explicado. E eu acho que a ideia da disciplina

se torna ainda mais necessária, né? Porque se torna mais necessário ainda o debate, né?

Os princípios da educação do campo para a formação de professores, como descrito nos

Cadernos de Educação do Campo elaborados por Caldart e Benjamin (2002) e Arroyo e

Fernandes (1999), pautam-se nos valores da coletividade, corroboramos a perspectiva trazida por

Mário da necessidade dessas discussões dentro da disciplina por ele ministrada, possibilitando

que os alunos reflitam sobre o conhecimento não em uma perspectiva de saída individual e

meritocrática, mas como construção coletiva de uma elevada universalidade dos saberes. Como

descrito por Caldart e Benjamin

Nenhum educador tem o direito de atuar individualmente, por sua conta e sob sua

responsabilidade. Exatamente porque ninguém consegue ser um educador sozinho. O

processo pedagógico é um processo coletivo e por isto precisa ser conduzido de modo

coletivo, enraizando-se e ajudando a enraizar as pessoas em coletividades fortes. (2002,

p. 53)

Percebe-se, já no fim da discussão sobre o filme, que uma das alunas da sala, como relatei

em meu diário de campo 11 de julho de 2016, disse não entender por que a família e os amigos

de Tião o obrigavam a fazer parte da greve, e comparou essa situação à sua como aluna do

LeCampo. Haveria, em suas palavras, uma exigência para que todos sejam militantes, todos

participem da mística, e uma não aceitação de alguns posicionamentos dos alunos. Quando

questionada pelo professor Mário sobre sua fala, a aluna relatou um desentendimento ocorrido

com uma professora do curso. Segundo ela, ao se apresentar afirmando que é moradora de área

indígena, mas que não se identifica como indígena, a professora teria dito que ela mudaria de

opinião e reconheceria sua identidade no decorrer do curso. A aluna relatou ter se sentido

ofendida em seu reconhecimento identitário e desrespeitada em sua opinião.

Segundo Dussel (1977) a relação com o Outro só pode verdadeiramente existir se não for

dominadora; só é relação quando se dá no face-a-face, quando os sujeitos se reconhecem

enquanto iguais, fugindo-se assim das relações em que o Eu subsome o Outro, criando relações

de mesmidade. A fala de Bianca nos chama a atenção para os processos de mesmidade que

ocorrem mesmo em meios que se propõe ser dialógicos.

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Freire (2014) nos chama a atenção para a importância de estarmos atentos à coerência de

nossas escolhas: “Não vale um discurso bem articulado, em que se defendem o direito de ser

diferente e uma prática negadora desse direito”. (FREIRE, 2014, p 45). Reconhecendo que a

educação não é neutra, e optando por uma educação dialógica e, portanto, democrática, é

imperativo que haja coerência entre as escolhas e as práticas, para não ocorrer na mesma relação

de dominação que é imposta aos sujeitos Outros e as suas identidades dentro do padrão

moderno/colonizador.

5.4.2. A mística no LeCampo

O Tempo Escola teve início no dia 04 de julho de 2016, dando abertura a mais um período

de aproximadamente trinta dias, em que os alunos das diferentes áreas de formação se encontram

no campus da FaE. Além disso, também era momento de acolhida do grupo de estudantes

calouros do curso que foram aprovados para a área de Matemática.

A recepção dos alunos ocorreu com a realização da mística, resgatando as bandeiras dos

movimentos sociais como o MST, o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Via

Campesina e a bandeira do LeCampo. Uma das alunas do curso entoa o grito “Educação do

Campo direito nosso...” ao que todos respondem “... dever do Estado”.

É perceptível que a mística carece de emoção nos alunos que a desenvolvem. Ela é

realizada com os alunos lendo pequenos textos escondidos atrás das bandeiras que carregavam,

e suas vozes não transmitiam a energia necessária a quem se lembrava das lutas e das histórias

dos movimentos sociais que carregavam aquelas bandeiras.

Após o fim da mística, foi realizado um momento de cânticos. Foram entregues algumas

letras de músicas que diziam sobre o campo e a educação do campo, e todos os que estavam ali

presentes, professores do curso, alunos veteranos e calouros, cantaram. Nesse momento, o

sentido de coletividade parecia estar presente na unidade que se trazia junto às músicas.

Mas o que seria a mística? Segundo Ademar Bogo (2012), é possível dizer na atualidade

de três sentidos atribuídos à mística: os sentidos religiosos, os atribuídos pelas ciências políticas

e os sentidos trazidos pelos movimentos populares. Os sentidos empregados pelos movimentos

populares são

(...) de fundamentação filosófica, os movimentos populares compreendem a mística

como expressões da cultura, da arte e dos valores como parte constitutiva da experiência

edificada na luta pela transformação da realidade social, indo em direção ao topos, a

parte realizável da utopia. (BOGO, 2012, p. 476)

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A mística passa a ganhar força na América Latina junto a movimentos decoloniais de

resistência, no bojo da Teologia da libertação. Como descrito por Souza (2012) em sua tese de

doutorado sobre a mística como mediadora na formação dos sujeitos do MST, a mística é

apropriada pelo MST como possibilidade de se pensar novas ideais que sejam alternativas e

emancipatórias ao projeto de vida ensejado pela lógica do capitalismo, que retoma os processos

de luta histórica dos sujeitos do campo e cria uma unidade, mesmo que momentânea, em torno

dos ideais do MST.

O Outro nesse instante se reconhece enquanto sujeito coletivo com histórico comum de

negação dos seus direitos e, principalmente, da negação do direito a terem seus direitos. Junto a

essa identidade coletiva passam a buscar formas Outras de organização da sociedade e a

questionar as epistemes vigentes, reconhecendo até mesmo a força educativa que emerge dos

sentimentos.

É dentro da educação popular, como descrito por Streck (2013), que os sentimentos e a

mística se relacionam de forma intrinseca, não como forma de irracionalidade ou de pieguice,

mas como parte da transformação social, ou seja, não se parte do indivíduo, mas do coletivo e

dos sentimentos de uma construção de uma educação e de sociedade Outra.

A realização da mística no LeCampo demonstra ser uma forma de coadunar esses

processos históricos de resistências do campo e da própria construção de um projeto de educação

voltada para Outros sujeitos. Devido a sua forte vinculação com o MST, o curso trouxe desde a

primeira turma, ainda Peterra, uma demanda vinda dos alunos para a realização da mística.

Entretanto, quando o curso se tornou regular, a partir de 2009, houve o ingresso de

educandos desvinculados de movimentos sociais. Não sabemos afirmar qual é atualmente o

número de ingressos no curso que são militante de movimentos sociais, mas foi possível

perceber, em conversas informais, que o curso é marcado pela heterogeneidade de sujeitos e de

suas relações com movimentos sociais, sindicatos e participação na política partidária.

Mas como esses sujeitos que hoje ocupam o curso, depois de se tornado regular,

compreendem a prática da mística? Conversas informais com alguns educandos do curso

demonstram tanto a existência de estudantes que não sabiam o que era a mística antes da sua

entrada no curso quanto estudantes que já conheciam e participavam de forma mais sistemática,

por serem ligados a movimentos sociais do campo.

A turma da LAL trouxe várias vezes a temática da mística em nossas conversas informais,

o que me fez querer observar com um cuidado maior o distanciamento da turma com a mística.

Os estudantes narraram, em uma das conversas ocorridas logo no primeiro dia de

observação, que quando a turma ficou responsável por realizar a mística em um evento do curso,

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eles modificaram os rituais, utilizando algumas técnicas que haviam aprendido sobre o Teatro do

Oprimido, de Augusto Boal. Segundo os educandos, isso gerou certo desconforto em algumas

turmas do curso, que ficaram insatisfeitas com as modificações realizadas. Vale destacar o perfil

das turmas insatisfeitas, marcadas por uma presença maior de educandos advindos de

movimentos sociais.

Como anotado em meu caderno de campo no dia 15 de julho de 2016, a estudante Gabriela

narrou que, após a realização dessa mística “diferenciada”, houve certa indisposição por parte de

alguns professores, que diziam não ter a turma o “perfil de pessoas do curso”. Apesar dos alunos

não dizerem nome dos professores era perceptível que os alunos da LAL se sentiram em algum

momento, ainda no início do curso, deslocados do curso, por não fazerem parte de alguma

militância ou associação, não havendo a identificação com o papel de militante.

As tensões que existiam nesse momento estavam centradas em quem são esses Outros

sujeitos que, apesar de virem do campo e passarem pelo processo seletivo do curso38, não eram

familiarizados com a história de luta vivenciada dentro dos movimentos sociais e,

consequentemente, apresentavam certa resistência ao realizar a mística.

O que compreendemos por realizar a mística não está vinculado a um simples

procedimento burocrático, mas à elaboração de um momento que é produto da experiência dos

sujeitos ali presentes, aproximando-se dos sentidos apresentados por Bogo (2012) de uma

experiência edificada na luta pela transformação da realidade social.

A construção coletiva, o uso do corpo, da afetividade e dos cantos criam outros momentos

para a Universidade, não como momentos de estratégias de ensino, mas formas de pertença ao

mundo, significativos de histórias de lutas comuns nos variados âmbitos da vida campesina.

Esses Outros sujeitos, na construção do giro decolonial, conceito descrito por Maldonado-Torres

(2008), constroem formas de negar o ocultamento de suas histórias e de si como sujeitos.

Entretanto, na turma em que observei, percebi que, apesar do potencial decolonial da

mística como promovedora desses Outros sujeitos e de Outras práticas, na turma da LAL a

mística aparece muito mais vinculada a processos burocráticos do que a processos

emancipatórios e de sentimento de coletividade.

Como tomado nota no caderno de campo no dia 11 de junho, uma aluna comentou em

sala de aula que tinha presenciado a mística em outro curso ofertado pela FaE, o FIEI, curso de

38 O processo seletivo do curso é diferenciado porque exige que sejam moradores do meio rural os sujeitos,

comprovando isso através de documentação específica e de uma carta de encaminhamento de algum sindicato ou

movimento popular da sua região.

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Formação Intercultural de Educadores Indígenas, e que tinha chegado à conclusão que não se

realizava mística no LeCampo, porque segundo contava, “faltava emoção nas nossas místicas”.

Durante a roda de conversa, a mística foi um dos assuntos trazidos por uma aluna do curso

que comentou sobre o seu sentimento e desenvolvimento

- Mas foi depois que eu vim para cá, que eu conheci os movimentos sociais, a primeira

vez que eu vi uma mística eu falei '”Gente do céu, o que é isso", né? Será que eu tô no

lugar certo? Ai depois... houve até alguns questionamentos meus com as pessoas que já

faziam parte dos movimentos sociais, que a gente já chegou assim... até a... porque... eu

senti que isso estava sendo imposto, né? E quando é uma coisa muito imposta não tem

essa boa recepção. Mas, aí depois a gente foi conversando e aí a gente vai vendo que

tem coisas que vão surgindo naturalmente, igual a mística hoje, toda segunda feira como

é agora, a gente vê a mobilização das turmas, para poder fazer. E aí já vai dando uma

acalmada mesmo, mas no primeiro momento eu tive esse estranhamento.

-Mas hoje você gosta de participar da mística?

- Eu participo. (Bianca)

Como percebido na fala de Bianca, ela associa a existência da mística no curso não como

um ritual nascido neste, mas como uma extensão dos sentidos das lutas dos movimentos sociais

que foram incorporados ao curso. Assim, um dos desafios vivenciados pelo curso está em como

não totalizar as práticas nascidas dentro do MST, que hoje compõe o curso, dentro dos outros

sentidos e vivências trazidos para dentro do curso por seus integrantes.

Já o comentário tecido por Felipe , ao ouvir o relato de Bianca, durante a roda de conversa

traz outros sentidos sobre o mesmo tema

Igual você tá falando a questão da mística, a mística é um processo de super... de

formação mesmo. A mística é ao mesmo momento que você vai colocar e relembrar o

histórico de luta é... ver o que já se conquistou. E aí você vai projetar o futuro. É através

do passado, do presente e do futuro. Pra quem convive no contexto e sabe de todas as

lutas que foram pra conquistar o LeCampo, a mística é... você tá lá... você arrepia. É

uma coisa. (Felipe )

Como sujeito participante de sindicato na região onde mora, o discurso de Felipe se

aproxima de uma perspectiva militante e demonstra as relações de poder e de sentidos que estão

atribuídos à mística, aproximando-se dos sentidos voltados à percepção do coletivo.

Já existe farto material acadêmico, em diferentes áreas do saber, que se debruçaram sobre

a compreensão da mística e sua aproximação com os aspectos da religiosidade, da identidade

coletiva e da resistência vinculados a movimentos sociais especialmente ao MST, como as

pesquisas desenvolvidas por Coelho (2011) e Bogo (2000). Entretanto, não encontramos

pesquisas que buscam analisar os sentidos atribuídos à realização da mística dentro dos cursos

de Formação de professores, uma vez que nem todos os sujeitos que ali estão compartilham de

um mesmo histórico de lutas e crenças em uma utopia coletiva como em movimentos sociais.

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Assim, pensando nos sentidos atribuídos à maior parcela da turma da LAL sobre a

mística, nota-se um sentimento, por vezes, de cumprimento burocrático de seu desenvolvimento.

É valido ressaltar que esta não é desenvolvida apenas no início do TE, havendo, dentro de cada

sala de aula, um grupo que se responsabiliza por pensá-la e desenvolvê-la, como parte da

organicidade do curso, sendo, portanto, parte constante do mesmo.

Após a mística, houve o acolhimento da turma recém ingressa no curso (habilitação em

Matemática), com um ritual que, segundo os alunos me relataram, ocorre todos os anos. É dado

aos alunos um anel de tucum e uma flor de girassol artificial; o anel de tucum é feito a partir de

uma palmeira da Amazônia. Os membros religiosos ligados à teologia da Libertação foram os

responsáveis por difundir o uso desse anel como símbolo da aliança com as causas indígenas e

populares. Assim, aqueles que o carregam demonstram se preocupar com as causas dos

oprimidos e da construção de uma sociedade mais justa.

O girassol é entregue por ser o símbolo da educação do campo, mas não apenas do

LeCampo. Diferentemente do símbolo do anel de tucum, há inúmeras explicações e apropriações

que os cursos, movimentos e sujeitos neles envolvidos fazem do símbolo do girassol. A

explicação mais comum diz da relação que a flor tem com o sol, sempre o seguindo e se

orientando por ele; assim também seriam os trabalhadores (as) do campo, que tem no trato com

a terra, as estações do ano e a natureza uma relação muito próxima.

As pessoas responsáveis pela entrega do anel de tucum e do girassol aos calouros eram

alunos da turma de Ciências Sociais e Humanas, ou seja, da turma que havia entrado um ano

antes. Uma aluna veterana do LeCampo explica aos alunos da turma de Matemática que cabe aos

que entregaram os símbolos aos recém ingressos serem seus respectivos padrinhos e madrinhas,

e que quaisquer dúvidas sobre os espaços escolares da FaE, ou mesmo sobre o desenvolver e a

organicidade do curso, deveriam ser retiradas com eles.

Esse ambiente de coletividade e de comunidade formado na recepção dos educandos no

Tempo Escola, além de romper com os laços do individualismo (muito presente na vida

acadêmica), traz ao curso o sentimento de que as pessoas que ali estão são responsáveis pela sua

sequência e andamento.

A recepção dos calouros e a abertura do TE é finalizada com um café da manhã coletivo,

no qual professores e professoras do LeCampo se reúnem com os monitores (as) e alunos (as).

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5.5 A voz do Outro?

O que é ouvir o Outro? Reconhecemos que é difícil empreender tal tarefa, afinal significa

buscar compreender o Outro como sujeito da ação. É preciso cuidado para, dentro da nossa

pesquisa, não subsumirmos o Outro, reforçando na análise as características de mesmidade

sofridas por eles nos processos de colonialidade. É árduo, todavia, distanciarmo-nos da nossa

perspectiva de ouvinte.

Diante do exposto, questionamos: quais os sentidos atribuídos aos alunos à sua escolha

em um curso de licenciatura em Educação do Campo? Como se deu essa escolha? Cientes de que

a educação não é neutra, e de que a razão para a criação dos cursos de licenciatura do campo está

vinculada à disputa pela ocupação da universidade como espaço de poder e saber e, portanto, de

legitimação do que é tido como conhecimento, propomo-nos a conhecer quem são esses sujeitos

que ocupam esse curso e quais foram suas motivações.

5.5.1. Os sujeitos do curso e sua institucionalização

Apesar de nascido de demandas de movimentos sociais do campo para garantir a

formação de seus militantes como educadores em áreas do campo, o curso veio modificando seu

público após a sua condição de curso regular da FaE, a partir de 2009. Sendo assim, buscamos

compreender por que esses sujeitos, mesmo com fraca adesão a movimentos sociais, ou mesmo

desvinculados, optaram por se matricular no LeCampo.

Dos oito participantes da roda de conversa, seis apresentaram respostas similares ao

porquê da escolha do curso.

LIRA: Eu quis fazer o curso por uma indicação de uma ex professora nossa, que formou

aqui na FAE. E ela me indicou. (...) E o meu sonho, assim... na verdade... não era ser

professora, só que a partir do momento que eu comecei a minha vida escolar como

estagiária realizando as atividades do PIBID, despertou em mim essa vontade de levar

a diante essa profissão. GABRIELA: - Então a licenciatura não era sua primeira opção? - Não, foi a segunda.

Não foi uma escolha minha, na verdade, foi o que apareceu ali na hora.

JÚLIA: Ela [minha madrinha] fez licenciatura aqui. Me explicou para que que era,

voltado para o campo, para nossa realidade, lá do campo. Eu me interessei muito, mas

na época, eu queria fazer psicologia. Eu ia fazer psicologia. Mas, aí eu fiz inscrição para

aqui, para o curso, e aí antes deu passar em psicologia eu passei aqui. Ai no caso eu

comecei a estudar.

JOÃO: Assim, é... a respeito de querer fazer licenciatura, eu optava por um outro curso,

entendeu? Mas se fosse para fazer a licenciatura também eu optaria por outra área, seria

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a matemática né? Mas aí né, como eu cai no português, na LAL né? Ai a gente foi

desenvolvendo e eu fui identificando né?

BIANCA: E ai a minha prima que formou na turma de 2011, que a gente fazia debate

aqui né? E ai ela me contou do curso. Contou da facilidade que é... assim... digamos...

Quando eu falei isso um dia até falei não é que é fácil não, até me repreenderam. Esse

curso aqui não é fácil não. Ela me contou de como é que era o desenvolvimento do

curso, e me interessou bastante. Né? Por conta deu ter filho, e eu fui tendo um filho

atrás do outro. E isso dificultou muito.

ANA: No meu caso, eu digo, que o curso me escolheu. Por que? Porque eu tinha

terminado o ensino médio em 2002 só voltei para o curso superior através desse curso,

né, foi em 2014. Então devido à família e tal, o curso conciliava mais com as atividades

né? Que eu levo na minha vida normal e se fosse um curso regular e talvez eu não

conseguiria devido a isso

Pode-se traçar como comum a essas respostas a vontade que os sujeitos apresentam de

terem um curso superior. As quatro primeiras respostas são marcadas pelo desejo desses sujeitos

de realizarem outros cursos de graduação, mas, por algum motivo, não conseguiram o ingresso

neles e acabaram optando pelo LeCampo. Já nas últimas duas opiniões das participantes percebe-

se a vontade de realizar um curso superior e impossibilidade de cursá-lo em razão da

incompatibilidade entre os horários da graduação e o cotidiano dos participantes da pesquisa.

Pedagogia da Alternância foi um diferencial para que optassem pelo LeCampo.

Como se percebe, as escolhas desses sujeitos não estão marcadas pela influência de algum

coletivo ou de movimentos sociais, distanciando-se dos discursos de identidade coletiva e de

compromisso com o grupo social de sua comunidade, geralmente vinculados aos docentes que

ingressam em cursos com forte presença de movimentos sociais.

Para podermos olhar com maior cuidado para o perfil dessa turma, achamos necessário

compreender como o curso constrói a sua formação de público e como movimentos sociais, como

o MST, interferem na escolha desses alunos.

Como nos conta Antunes-Rocha (2011, p.46), houve duas entradas com editais

diferenciados nos anos de 2005 e 2008. Para participar do processo seletivo, era necessário que

os candidatos residissem ou desenvolvessem práticas educativas dentro de acampamentos e/ou

assentamentos e apresentassem uma carta escrita pelo líder comunitário confirmando que atuam

ou possuem residência no campo. Dessa forma, mantinha-se a especificidade de público através

de três pontos: público atendido pelo Pronera, público de reforma agrária e de movimentos

sociais.

O perfil que se buscava nesse momento estava estreitamente relacionado ao objetivo do

curso, ainda como projeto piloto, que, como nos conta Zárate (2011), era a formação de

professores para atuarem especialmente em assentamento da reforma agrária. Sendo o objetivo

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do curso direcionado a um público específico dentro do campo, era maior a aproximação com os

movimentos sociais e a coesão entre os interesses do curso e seus ingressos.

Num artigo publicado pela primeira turma do LeCampo (Turma Vanessa dos Santos), os

alunos relataram seus olhares sobre o curso e descrevem uma identidade em comum aos que

ingressavam no curso; além da vontade de serem educadores, havia um histórico de luta e sonhos

coletivos que pareciam unificar a turma

Para a grande maioria, era a primeira vez que nos encontrávamos. Vimos que

conhecemos algo em comuns: a opressão, a exclusão, a repressão, sonhos tolhidos,

utopias e projetos coletivos a construir. Nesse ínterim, cada história individual completa

a nossa formação, à medida que partilhamos da mesma indignação e da possibilidade

do novo. (TURMA VANESSA DOS SANTOS, 2011, p. 164)

Esse discurso corrobora o de outros estudos feitos sobre o LeCampo, como o artigo

publicado pelas professoras Antunes-Rocha, Martins e Machado (2012), que focaliza as turmas

iniciadas em 2005, 2008 e 2009. Segundo as autoras, os estudantes que ingressavam no curso,

nesses momentos, eram percebidos como sujeitos coletivos. A entrada e permanência no curso

representavam não apenas seus interesses, mas de um coletivo, o que provocava inquietações e

modificações na lógica da universidade, principalmente devido as práticas isolacionistas e

competitivas.

Entretanto, a partir do ano de 200939 o curso tornou-se regular, o que obrigou a instituição

a modificar a especificação contida no edital para que fosse garantida a universalização do acesso

às vagas na universidade. Entretanto, era necessário que alguns critérios fossem mantidos, para

que não se perdesse a especificidade do curso, voltado para o campo e aos seus sujeitos. Assim,

o novo edital tinha como objetivo universalizar a oferta, mas se atentando à sua especificidade.

Como descrito no PPP do curso, os atuais critérios específicos para ingresso no curso são:

Declaração de vínculo com a família produtora rural, redigida de próprio punho;

“Carta de Intenções”, redigida de próprio punho e assinada, com no máximo

duas laudas, explicitando o(s) motivo(s) pelo(s) qual(is) pretende cursar a Licenciatura

em Educação do Campo, destacando: sua identidade como sujeito que reside/trabalha

no campo; experiências em educação do campo; ideias/propostas que considera como

relevantes para a promoção do direito à Educação do Campo.

Documentos comprobatórios da condição “residir e/ou trabalhar no espaço

socioterritorial do campo”. (PPP, 2015 p.114)

39 As turmas de 2009 e 2010 emergem como curso regular no âmbito do Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidade Federais REUNI.

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Constatamos que não são apenas as formas de ingresso que se modificaram após o curso

se tornar regular, mas também os objetivos que norteiam sua a existência. Se nos anos de 2005 e

2008 o objetivo se centrava numa prática especialmente voltada aos assentamentos de reforma

agrária, após 2009 seus objetivos, como dispostos no PPP, passam a ser mais amplos, buscando

a expansão da formação de educadores do campo para a educação básica do e no campo.

Essa modificação permite que compreendamos as mudanças do perfil dos ingressos no

curso. Apesar de mantida a especificidade de alunos com aproximação com o campo e seus

modos de vida, essa aproximação não se dá, necessariamente, mediada pela participação em

movimentos sociais. Isso modifica os sentidos de ingresso na universidade, que, como percebida

nas respostas dos estudantes do LeCampo, passam a se distanciar da noção de sujeitos coletivos,

e se aproximando de interesses e perspectivas individuais no ingresso na universidade.

As noções decoloniais trazidas no bojo do desenvolvimento dos movimentos sociais,

pensadas na superação coletiva das formas de opressão perpetradas contra os sujeitos do campo

e suas formas de pensar e construir um outro projeto de educação, não encontram lugar dentro

de um discurso hegemônico. Assim, o acesso à universidade é pautado, dentro desse discurso

totalizante, com uma lógica de benefícios individuais e de aposta numa possibilidade de mudança

do status econômico.

Como descrito por Frigotto (2012), há uma aproximação dos interesses individuais ao

acesso à formação superior como estratégia de enfrentamento do desemprego e inserção no

mercado de trabalho, vinculando à educação a noção de capital humano40. Em uma sociedade

neoliberal, essa lógica suprime os direitos coletivos e universais e centra-se no indivíduo. Na

educação, faz com que os sujeitos se preocupem com as noções vinculadas a competências,

empregabilidade e empreendedorismo, e que se distanciem de uma educação emancipadora e

preocupada com a construção de novas relações sociais.

Amplia-se o objetivo disposto no PPP para a formação de professores, não apenas nas

áreas de reforma agrária, mas para atender também as demandas percebidas no campo por

formação docente, dessa forma, o público que passa a compor o curso torna-se heterogêneo, o

que não implicou no distanciamento do curso das discussões sobre uma formação de educação

do campo pensada de forma contra-hegemônica, mas nas disputas de sentidos atribuídos a fazer

parte do curso.

40 Entendemos por Capital Humano, segundo Frigotto (2012), a lógica de investir nos indivíduos para buscar

promover o aumento de sua produtividade levando-os a uma mobilidade social. A educação nessa perspectiva é

mera adaptadora a um sistema que necessita de um sistema produtivo para a manutenção e crescimento do capital,

buscando produzir tanta conformidade ou consenso quanto for capaz.

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A entrevista com o professor Mário é reveladora quanto à modificação do perfil desses

sujeitos.

MÁRIO: Eu não peguei o curso quando ele tinha uma relação muito forte com o MST

e com os assentamentos, as pessoas que são mais antigas do curso falam que as

primeiras turmas eram muito marcadas, por um certo ethos, né? De identificação com a

luta campesina e com a luta pela terra. As turmas atuais eu acho que elas já não têm

tanto esse vínculo, mesmo que tenha se mantido o critério para os alunos para se

matricularem, né?

A presença de sujeitos muito mais plurais, que estão além da simples dicotomia de

pertencer ou não a movimentos sociais, caracteriza a heterogeneidade da turma, percebida na

diversidade de opiniões, percepções e tipos de envolvimento com essas formas de organização

coletiva que diretamente modificam os sentidos empregados por esses alunos na sua prática e em

seu processo de formação como educadores do campo.

Percebo ainda a preocupação com o perfil de ingressos no curso entre os próprios alunos.

Em uma das conversas, realizada no dia 15/06/2016 entre alunos de turmas com número maior

de militantes, pude perceber a tensão de posicionamentos: os alunos militantes não são adeptos

a tamanha abertura, argumentando que esta enfraquece os sentimentos de luta e a identidade

militante do curso. Por outro lado, os alunos que não pertenciam a movimentos sociais, mas que,

em função do curso, passaram a conhecê-los, defendem a abertura do perfil de ingressos,

acreditando ser essa uma oportunidade de trazê-los para os movimentos sociais vinculados às

causas campesinas.

Entretanto, como dito, a pluralidade de pessoas que participam do curso não se resume às

que já participam ou às que, um dia, passarão a participar de movimentos sociais, mas também a

pessoas que não são adeptas às causas de movimentos sociais. O professor Mário comentou um

pouco sobre esses perfis presentes na turma da LAL em que realizei a observação.

Eu acho que isso vem se intensificando [modificação no perfil de estudantes do curso],

a turma que você teve e você fez a observação, pra mim é a turma que mais tem essa

característica, inclusive pessoas que tinham uma posição muito clara dentro da sala de

crítica, as concepções e as percepções de uma escola do campo, inclusive de um ponto

de vista conceitual e até mesmo um certo marco ideológico assim, tinham alunos que

por vezes, além de não se reconhecerem como do campo, ainda se diziam e se

colocavam numa posição muito de crítica a... vamos chamar... uma certa orientação,

política e ideológica que o curso tem. Bem, eu não sei como resolve isso.

Constatar que o fato dos movimentos sociais serem sujeitos centrais na construção do

curso alimentou expectativas entre professores e alunos quanto ao perfil de alunos que

ingressariam. Também nos escritos de Caldart (2012a) e Arroyo (2012, 2007) é possível notar

essa expectativa com relação ao perfil de alunos para comporem a formação de professores para

Page 151: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

149

o campo: sujeitos que tenham algum engajamento em lutas sociais e que participem de

movimentos sociais e sindicatos, sujeitos que tenham participado do que Arroyo (2007)

denominada “tomada de consciência coletiva”, que faz com que esses sujeitos sejam

questionadores e que se afirmem junto às suas identidades coletivas, ao saberes e culturas

presentes no campo.

A busca por esse perfil converge para a própria concepção que o projeto de Educação do

Campo tem, não apenas de educação, mas de sociedade. Como nos diz Caldart (2012), a educação

do campo não nasce de uma crítica à educação, mas de uma compreensão Outra de sociedade

que busca romper com a exploração e negação do Outro, entendendo a escola e as universidades

como importantes lócus a serem disputados para a construção desse Outro projeto de sociedade

pela construção de um conhecimento que rompa com o projeto hegemônico.

A escrita de Molina (2015) nos é esclarecedora quanto à relação do perfil de ingressos no

curso e o desenvolvimento da Educação do Campo.

É a inserção concreta nas lutas pela terra; pela manutenção dos territórios; pelo não

fechamento e pela construção de novas escolas; pela não invasão do agronegócio nos

assentamentos; pelo acesso à água; pela promoção de práticas agroecológicas e pela

garantia da soberania alimentar, enfim, por tantos e tão relevantes desafios concretos

que enfrentam os camponeses, que, podem, verdadeiramente, dar sentido à concepção

e ao perfil de educadores do campo, dignos deste nome, para o qual foi concebida a

proposta de formação das Licenciaturas em Educação do Campo.. (2015, p. 165)

Não obstante, em um dos meus primeiros dias de observação, anotada em meu diário de

campo no dia 05 julho 2016, a aluna Bianca, durante uma conversa, disse se sentir desconfortável

com tamanha pressão vinda dos professores para que os alunos se tornassem militantes. Perguntei

a ela como isso se dava; ela me disse morar em área indígena, mas não se reconhecer como tal,

já foi motivo de tensões, como no fato de alguns professores dizerem que ela sairia do curso se

reconhecendo/preocupada com as questões indígenas.

Além disso, Bianca narrou um episódio ocorrido em sua cidade onde, segundo conta, um

grupo de indígenas havia entrado em uma fazenda e, além de quebrar algumas partes da

propriedade, fizeram um churrasco com os animais que lá estavam. No intuito de entender um

pouco mais sobre sua narrativa, perguntei a situação da fazenda e sobre quem eram esses sujeitos

que ali entraram, se ela os conhecia. Fui interrompida. Antes que eu terminasse de falar, ela disse

que o nome que ela dava a isso era roubo, que ela não defendia ladrões e não se reconhecia junto

a eles. Pela sua exaltação, percebi que o assunto da conversa a incomodava de forma particular

e optei por encerrá-la.

Page 152: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

150

Como descrito por Dussel (1977), a dominação se transforma em repressão quando o

oprimido tenta buscar algum meio de libertar-se da opressão que sofre, mas a pressão social o

oprime e o chama de “incivilizado”. Assim, ocorrerá sempre quando o oprimido tentar se libertar

da situação que está enfrentando de forma a promover a ruptura com o padrão de poder, porque

as normas culturais introjetadas ensinam que aqueles sujeitos estão agindo de forma “desordeira”

e “bárbara”.

Tanto na fala do professor como na conversa com Bianca é possível inferir que a

hegemonia presente no curso faz com que os sujeitos presentes em sua construção não demandem

a construção de um saber Outro para realizarem a sua formação como educadores do campo;

distanciam-se assim de conhecimentos que busquem uma emancipação do Outro, aproximando-

se da inclusão do Outro no Mesmo.

Na contramão da perspectiva emancipatória passa-se, por vezes, a ter como demanda no

curso de um conhecimento que adapte os movimentos sociais ao padrão de poder e a uma

pedagogia de característica funcional, que retirem esses sujeitos da sua situação de “rebeldes”,

colocando-lhes na condição de civilizados. O Outro é, portanto, como o diferente, o mau, aquele

põe a unidade em perigo, como descrito por Dussel (1977), e assinalá-lo e inseri-lo no sistema é

necessário para que a ontologia possa descansar em paz.

Distanciando das perspectivas até aqui apresentadas sobre o porquê da escolha desses

sujeitos pelo LeCampo, o aluno Felipe é enfático ao dizer que a sua escolha pelo curso se deu

por ser um curso voltado para a licenciatura em Educação do Campo. Ele retira o foco do curso

da sua área de especificidade e ressalta ser um curso voltado para o campo.

FELIPE : Escolhi pelo fato de ser licenciatura em Educação do Campo. A nossa

formação é em licenciado... Licenciatura em Educação do Campo. Mas, numa área

específica que é a Língua, Arte e Literatura. É.. Aqui, o curso eu conheci, o curso,

através da minha irmã e por causa também que ela já estava no curso, e através em 2012,

quando eu participei de um encontro em 2012 na FETAEMG da juventude que a

professora Isabel estava lá falando sobre o curso, foi... eu me interessei mais a fazer o

curso e conheci como realmente funciona o curso. Então quando eu cheguei aqui eu já

sabia tudo como funcionava o curso.

O primeiro ponto de distanciamento da resposta de Felipe às demais está na sua

vinculação a eventos realizados pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de

Minas Gerais, a FETAEMG. Entre os alunos que participaram da roda de conversa, Felipe é o

único que já entrou no curso possuindo forte vinculação com sindicatos41 em seu município de

41 Ver quadro de categorização dos alunos que integram a roda.

Page 153: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

151

moradia, o que nos permite inferir sua identificação com a proposta do curso, aproximando-se

ao perfil descrito por Molina (2015).

Para Molina e Sá (2013), a presença de um perfil militante é, também, importante para o

curso, porque tenciona as relações não apenas com a Universidade, mas com os docentes que os

formam, cobrando a realização de “uma outra abordagem sobre o conhecimento e sobre a escola

nas suas relações internas e com o contexto onde ela se insere. ” (2013, p.417)

Na fala do professor Mário essas tensões não parecem ocorrer com a turma do LeCampo,

por perceber nos alunos do curso um reconhecimento e uma legitimidade muito forte do espaço

da Universidade

Primeiro porque existe a legitimidade da formação que os alunos vêm buscar aqui, ela

já está dada porque eles adoram a UFMG. Eles acham que aqui é o suprassumo do

reconhecimento acadêmico. Teve vários alunos falando isso aquele dia, ne? Como é

que estudar na UFMG, isso dá... um selo de qualidade.

O segundo motivo apresentado por Mário está na proposta de escolarização vinda do

projeto de Educação do Campo: há uma aposta na escola, o que facilita a relação de formação

desses professores, sendo diferente, segundo ele, da sua atuação como professores do curso de

Formação Intercultural Educadores Indígenas (FIEI), onde ele diz perceber distanciamento e um

desconhecimento da UFMG como os educandos do LeCampo possuem.

Eu acho que um pouco do que a escola do campo se propõe é criar uma identidade pra

escola do campo que tenha como perspectiva de formação e de carreiras escolares que

sejam próprias para o campo, mas que seja marcadas pela lógica da escolarização.

Enquanto os indígenas não. Eles não tão aqui pra isso, entendeu?. Eles querem se

apropriar da linguagem acadêmica, da linguagem cientifica pra.. é se posicionarem

contra hegemonicamente. Eles querem usar as armas dos brancos contra os brancos. E

eu acho que as populações do campo esse contra não é tão contra assim, entendeu? É

contra numa perspectiva de classe assim, contra no sentido de vamos lutar contra o

latifúndio, contra as formas de expropriação de homens e mulheres do campo, mas

vamos lutar por uma escola escolarizada, a gente acha que a escola é a saída de alguma

forma, entendeu? Enquanto as populações indígenas têm uma certa desconfiança disso,

a escola é algo doutrinador.

As teorizações de Caldart (2012, 2013) sobre a da Educação do Campo e seu próprio

lema, “Educação do campo, direito nosso dever do Estado”, criado pelos movimentos sociais,

nos remetem a aproximações com a perspectiva trazida pelo professor Mário. Há, de fato, uma

luta dentro dos movimentos sociais e do projeto de Educação do campo por uma escolarização e

pelo acesso ao conhecimento científico. Entretanto, como descrito por Arroyo (2014) e Zanardi

(2012), há uma busca e uma disputa pela construção de um conhecimento escolar Outro que

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152

nasça junto à construção de um projeto alternativo de sociedade e que seja capaz de competir

com a totalidade em que se formou o capitalismo e os discursos.

A escola é reconhecida como importante meio para a construção desse Outro projeto de

sociedade, logo, disputar os sentidos da formação dos professores para o campo é disputar os

sentidos das escolas do campo. Possibilitar uma formação de professores do campo crítica é

possibilitar uma formação de sujeitos que analisem os processos históricos que lhes negaram o

direito de saberem-se e de se apropriarem da palavra que realiza a leitura do mundo.

Como descrito em Dussel (1977), essa apropriação da palavra só se realiza quando há

uma relação face a face, quando não se tem processos de formação que buscam subsumir o Outro

dentro do projeto do Mesmo de maneira totalizante e colonizadora. Pensar a formação de

professores do campo é romper com a lógica da totalidade presente na universidade, como aquela

que arroga a si a universalidade do conhecimento para a “salvação” dos sujeitos que dela fazem

parte, entregando aos sujeitos nela presentes a mercadoria chamada “conhecimento”, mesmo

acreditando na lógica da escolarização.

Assim, o conhecimento que forma o educador do campo é aquele que permite a ele dizer

a palavra, como descrito em Freire (2012), e não apenas esgotar o sentido da educação em

processos mecânicos de escolarização. A formação de educadores do campo requer que a palavra

dita seja crítica e libertadora, que rejeite as construções hegemônicas que compreendem os

sujeitos do campo como “incivilizados” e “baderneiros”, mas que seja palavra problematizadora

e que, mesmo sendo mediada por conceitos científico-tecnológicos universais, não impossibilite

a contextualização da palavra pronunciada.

Dizer a palavra é central nessa perspectiva Outra de construção da formação de

educadores do campo, porque rompe com o silencio em que os seres do campo têm sido

colocados historicamente, permitindo-lhes pensar e dizer o novo através de processos que findam

com a colonialidade a qual seus corpos e suas ideias foram enquadrados e subjugados

historicamente. Para existir humanamente, é necessário dizer a palavra, pronunciar o mundo e

modificá-lo.

Isso transcende, conforme descrito por Walsh (2011), fazer da escola processos de “maior

escolarização”, para que as pessoas sejam incluídas na lógica do mercado e possam nele ser bons

produtos, ou de pensar como incluir “os diferentes” dentro de uma sociedade exclusiva por

essência. O projeto de educação bancário corrobora essa perspectiva, subsumindo o Outro dentro

do Mesmo; já o projeto libertador faz com que as pessoas se tornem mais conscientes, livres e

humanas, construindo em coletivo Outro projeto de educação, de formação docente e de

sociedade.

Page 155: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

153

5.5.2 O que é ser educador do campo para esses sujeitos?

Compreendido que as escolhas desses sujeitos para a realização do curso estavam

vinculadas mais a um sentimento de realização pessoal no ingresso no ensino superior do que a

ligações com movimentos sociais, nos questionamos como esses sujeitos veem a sua atuação

como professores do campo. Quais os sentidos em ser professor do campo?

Um dos sentidos recorrentemente descritos pelos pesquisados está em ensinar aos sujeitos

do campo a “boniteza em ser do campo”: ensinar a eles a valorização de suas culturas, crenças e

linguagens, problematizando junto a eles a compreensão da cidade como um lugar superior ao

campo.

É vasta a literatura sobre educação do campo que converge para essas perspectivas, afinal,

a luta é por uma educação que seja do e no campo. Essa perspectiva liquida o projeto moderno,

que insiste em uma dimensão única de civilização (a urbana). Buscar construir a permanência

desses sujeitos no campo não está atrelado a uma dominação “às avessas”, que obrigaria esses

sujeitos a ficarem no campo, mas possibilita pensar a resolução de problemas de forma coletiva

e de buscar construir outra lógica para o campo e para a permanência nele.

Pensar a permanência desses sujeitos no campo, como elaborado pela Educação do

Campo, é problematizar as relações do Brasil como um país eminentemente agrário-exportador,

que se sustentou sobre as bases do latifúndio e da escravidão. É problematizar a noção do campo

como lugar do atraso e buscar elucidar os contornos históricos e as consequências do padrão de

poder moderno colonial sobre os sujeitos, sobre o acesso a seus direitos e em seus sentidos de

mundo. É necessário reconhecer a colonialidade do ser e do saber, desmitificando a naturalização

dos discursos totalizantes e desvelando as relações de poder que existem nele, para que se

empreenda uma postura decolonial de crítica a essa opressão e se permita a construção de planos

de existir humanos pautados em outras relações epistêmicas e econômicas.

A permanência não é entendida pela necessidade de alocar-se dentro do projeto

hegemônico como coadjuvante, mas da construção de outro mundo possível. Ser incluído seria

como introduzir o Outro no Mesmo, o que inviabilizaria a construção de Outro projeto de

sociedade. Assim, a luta não está na inclusão, mas na transformação.

Entretanto, por vezes, o que percebemos nas respostas dos sujeitos pesquisados é uma

estreita relação com a lógica da inclusão.

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154

LIRA: Pra mim o que é ser e a importância de ser um educador do campo, além de levar

uma educação de qualidade para aquele sujeito que tive lá no campo. É tenta mostrar

para eles, que o mundo não é... que a beleza do mundo não é sair do campo e ir para a

cidade. (...) E também juntamente a importância de me tornar uma professora do campo

é levar isso para alunos de um jeito que eles entendam a importância de permanecer no

campo, né? E preservar a cultura, né? Que eles trazem de suas famílias, e não ficar

apenas na visão de algo ruim que o campo é atrasado, que o campo não vai fazer com

que ele se torne um sujeito bem sucedido na vida.

PESQUISADORA: E como que o professor pode ajudar eles a serem sujeitos bem

sucedidos na vida?

LIRA: E nada mais do que um professor, né? Do campo, pra levar isso pra eles. Porque

talvez um colega ou alguém da família fala e aí eles vão e ficam com isso pra eles. Ai

as vezes se o professor fala ó... eu também fui... Sou filha de agricultores, consegui fazer

a faculdade e tô aqui com vocês e vocês também podem conseguir. Né? Pode ser um

médico veterinário voltado para o campo, pode ser uma psicóloga para atuar no campo

na área da educação, então o campo é algo maravilhoso e eles precisam de alguém que

reforce isso pra eles.

Como descrito por Freire (1967) há vários tipos de consciência. A consciência transitiva

ingênua é aquela em que o sujeito já percebe a existência de uma contradição social, contudo,

ainda tem ações no campo do conformismo. Afinal, compreender a consciência não é apenas

perceber os modos de ver o mundo, mas suas formas de agir sobre eles.

É interessante perceber que a fala de Lira sobre ser educador do campo se distância das

lutas e das dificuldades apresentadas para a sobrevivência no campo, aproximando-se quase

ingenuamente de sentidos vinculados à “beleza do mundo” e à “preservação da cultura”, porque

romantiza as relações no campo, sendo assim, não consegue ser crítica em face dos problemas

existentes no campo, distanciando-se da construção de uma educação que seja autônoma.

Os sentidos por ela atribuídos a “ser bem-sucedido na vida” estão amparados em sua

própria história: uma moça filha de agricultores que conseguiu fazer faculdade. Isso a possibilita

permanecer no campo, mas distante do trabalho com a terra. Assim, o educador do campo passa

a ser exemplo de alguém que se sobressaiu no meio do campo, porque nele permaneceu, mas

longe do trabalho na lavoura.

Como descrito por Quijano (1995, 1992), o padrão de poder colonial não se consolida

apenas junto à dominação no campo do poder econômico, mas também na construção de um

discurso hegemônico da hierarquização e construção de um único sentido de trajetórias de vida

que, quando naturalizadas, passam a ocultar as outras narrativas; quando não conseguem ocultá-

las, passam a inferiorizá-las.

Mesmo que a fala de Lira traga a necessidade do retorno ao campo, o sentido da existência

do campo encontra-se fora dele, na aquisição de algo que possibilite àquele sujeito permanecer

ali com uma condição distinta dos demais sujeitos, distanciando-se dos ideais políticos da

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155

Educação do Campo, dos princípios de educação propostos pelo MST e da própria concepção

ampliada de educação construída pelo MST.

Um processo pedagógico que se assumo como político, ou seja, que se vincula

organicamente com os processos sociais que visam a transformação da sociedade atual,

e a construção, desde já, de uma nova ordem social, cujos pilares principais sejam, a

justiça social, a radicalidade democrática, e os valores humanistas e socialistas.

(DOSSIÊ MST ESCOLA, 2005, p.61)

O mito sacrifical da negação do Outro, proposto por Dussel (1993) para analisar as

relações de negação do Outro colonizado, pode ser estendido à nossa análise. Em comparação,

a função do educador do campo seria conduzir os alunos do campo à inclusão por meio da

educação, garantindo a eles permanecerem no campo, mas com uma posição distinta daqueles

que permaneceram trabalhando na terra. O Outro continuaria a ser negado mediante outra forma

de racionalidade que o libertaria e o conduziria a uma adaptação social.

Nessa perspectiva, a racionalidade totalizadora presente na figura do professor não

conduz a processos dialógicos de relação face-a-face, mas a processos individuais e de doação

de saberes que possibilitariam a esses sujeitos se incluírem no sistema.

Outros alunos também se aproximaram da compreensão trazida por Lira ao serem

questionados sobre a importância em ser um educador do campo

ANA: Principalmente, por que a maioria dos pais dos alunos do campo não possui a

formação escolar, a maioria tem o primeiro grau incompleto outros não chegaram a

estudar, então é um trabalho até de... de.. de... Consciência da comunidade, porque às

vezes os pais que não concluíram nem o primeiro grau pra eles os filhos concluírem ou

chegarem no ensino médio já formou, já está pronto. Eu falo isso, por experiência

pessoal. Eu tive sim o incentivo de estudar, mas depois que eu conclui o ensino médio

meus pais não incentivaram tanto, e isso acontece ainda nas comunidades.

GABRIELA: Eu acho que o maior desafio de nós como educadores do campo, é...

porque a gente vê... E eu acredito que todo mundo passou por isso... no ensino médio,

principalmente no ensino médio, que é a fase decisiva de que você vai fazer... ou se

você vai fazer faculdade ou se vai trabalhar fora ou se vai pra cidade grande. Acho que

é tentar levar pra esse alunos que tem forma deles permanecerem ali com vida digna,

eles não, nós como sujeitos do campo, temos direito como qualquer um outro.

João: É ensinar que o campo não é isso... O campo é muito mais que isso, o campo é

um lugar como uma cidade. Entendeu? E não é porque tá no campo também que não

pode fazer uma faculdade, não é porque tá no campo que ele não pode ser um

empresário, ai é isso.

A dificuldade apontada por Ana pode nos levar a reflexões sobre a relação da comunidade

e escola do campo: como os professores do campo podem motivar os alunos a irem à escola?

Como podem se aproximar dos pais para que eles levem os filhos à escola? Quando respondidas

através da relação dialógica entre comunidade, professores e escola, essas perguntas podem

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156

conduzir a processos decoloniais de existência da escola do campo, porque cessa a violência que

impede o Outro a falar e se propõe a ouvi-lo, construindo com eles uma educação

verdadeiramente do campo, porque feita com eles.

Como descrito por Freire em pedagogia da autonomia

Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são

saberes necessários à prática educativa. Viver a abertura respeitosa aos outros e, de

quando em vez, de acordo com o momento, tomar a própria prática de abertura ao outro

como objetivo da reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. A razão ética

da abertura, seu fundamento político sua referência pedagógica; a boniteza que há nela

como viabilidade do diálogo. (FREIRE, 1996)

Todavia, o direcionamento que Ana confere à sua fala não está voltado ao diálogo com a

comunidade. Parece já existir um sentido fixado à escola do campo, e esse sentido deve ser

transferido aos pais, familiares e aos próprios alunos do campo: a universidade.

Compartilhando de uma perspectiva semelhante, Gabriela nos traz que, em sua

concepção, o maior desafio da educação do campo está em auxiliar os jovens do ensino médio a

fazerem boas escolhas e estarem cientes de seus direitos. Entretanto, essas escolhas se resumiriam

a apenas duas possibilidades: ao fim do ensino médio, resta ir para a cidade ou realizar um curso

superior; não há, entre suas opções, a possibilidade da permanência como trabalhador do campo.

Assim, a permanência com “vida digna” no campo se resume a ter conhecimento dos seus direitos

e das possibilidades de realizar um curso superior “como qualquer outro” tem direito a realizá-

lo.

Há também na fala de João a presença marcante da importância da inclusão do Outro

camponês dentro do projeto de mesmidade capitalista. Como descrito em sua fala, “não é por

morar no campo que não se pode ser um empresário ou fazer uma faculdade”. Ser empresário e

ter curso superior seriam meios de se distanciar da lógica do trabalho no campo com a terra e se

manter no campo com certa distinção social.

Nas três falas, há uma fixação muito forte de sentidos que se aproximam à lógica de uma

interculturalidade funcional e se distanciam de uma relação dialógica de educação. Como

descrito por Walsh (2007), na lógica funcional há fortes traços de integração dos grupos: a lógica

moderno/neoliberal e pouca preocupação em compreender os processos que os produziram como

marginais ao sistema. Não há uma discussão trazida pelos sujeitos pesquisados sobre as

desigualdades que geraram as distorções de oportunidades da cidade para o campo para o acesso

ao ensino superior, ou qualquer questionamento mais amplo sobre o acesso ao ensino superior.

Page 159: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

157

Outrossim, é necessário ressaltar que eles reconhecem não haver uma espontaneidade do

sistema que os faria ingressar nele. Como descrito por Gabriela, é necessário “saber de seus

direitos” para conseguir acessá-los, demonstrando a consciência das disputas de poder e de

fronteiras políticas que existem para assegurar a manutenção da hegemonia capitalista, e até

mesmo a sua inclusão neles.

Como traços da interculturalidade funcional, há uma exaltação do indivíduo e de seus

méritos para conseguir permanecer no campo junto a um novo status que não seja o de

camponeses. O termo multicultural, como descrito por Walsh (2007), nos remete a uma aparente

ruptura com a hegemonia, uma vez que se aceita a inserção da língua, de partes da cultura e da

organização desse Outro no seio da hegemonia, não para romper com as estruturas, mas para

administrar a diversidade, evitando sua radicalização e a ocultação dos conflitos e lutas sociais.

Ser educador do campo, na perspectiva apresentada por esses sujeitos, se aproxima da

noção freireana de educação bancária, na medida em que mantém os sujeitos educandos imersos

no mesmo nível de consciência ingênua e reproduz a acriticidade, reprimindo a curiosidade e

corroborando a construção de uma educação que se distancia da problematização e da leitura do

mundo.

Também se aproxima da noção da ontologia pedagógica formulada por Dussel (1977), na

qual se critica a ação dos sujeitos professores serem tidos responsáveis por depositar nos sujeitos

do campo os saberes necessários para se completarem devido as suas faltas e atrasos, e se

incluírem no projeto de mesmidade, não mediante a uma nova racionalidade insurgente, mas a

partir de uma racionalidade castradora, dominadora, moderna e colonial.

A Educação do Campo, como conceito que nasce da prática e das demandas dos sujeitos

do campo organizados em coletivos, destaca-se por pensar a educação de forma vinculada ao seu

meio que, conforme Caldart (2013, p.263), concebe intencionalidade educativa na construção de

novos padrões de relação social, novas formas de produção, outros valores e compromissos

políticos.

Estar sempre atento a esses objetivos da Educação do Campo é pertinente por

compreendermos que a luta pelas licenciaturas não é um fim em si mesmo, mas se constitui em

um meio que propicia o acúmulo de forças para a construção de Outro projeto de sociedade e de

campo, no qual se rompa com o padrão moderno de colonização e se permita visualizar e

enfraquecer as relações coloniais que subjugam os saberes dos povos do campo.

Em dissonância às falas desses sujeitos, estão os sentidos atribuídos por Felipe para ser

educador do campo

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158

FELIPE: Logo quando eu já entrei, eu já... uma coisa que já veio de antes é ser um

educador do campo... eu acho assim... é... ter a capacidade de... de... é... derrubar os

muros da escola igual a gente fala. Porque muitas vezes, a escola ela tá muito separada

da vida do aluno. Isso aí é algo assim... que... nós como educadores do campo temos

que estar atentos. O aluno tá lá na escola, mas muitas vezes, lá na casa dele está passando

dificuldade, igual a própria comunidade que ele participa a questão da... do... da escola

numa comunidade tradicional quilombola mesmo, ela de forma nenhuma pode ta

separada dessa relação que tem na comunidade, da cultura da comunidade, é.... e falar

de educação do campo também, é valorizar essa organização que tem também na.... nas

comunidades.

Essa perspectiva apresentada por Felipe , além de se distanciar das demais, aproxima-se

de um dos desafios apresentados por Molina para a expansão da educação nas licenciaturas em

educação do campo.

Promover e cultivar um determinado processo formativo que oportunizasse aos futuros

educadores, ao mesmo tempo, uma formação teórica sólida, que proporcionasse o

domínio dos conteúdos da área de habilitação para a qual se titula o docente em questão,

porém, extremamente articulada ao domínio dos conhecimentos sobre as lógicas do

funcionamento e da função social da escola e das relações que esta estabelece com a

comunidade do seu entorno. (...)A proposta e o desafio é realmente materializar práticas

formativas durante o percurso da Licenciatura em Educação do Campo que sejam

capazes de ir desenvolvendo e promovendo nos futuros educadores as habilidades

necessárias para contribuir com a consolidação do ideal de escola edificado por este

movimento educacional protagonizado pelos camponeses nestes últimos 15 anos: uma

Escola do Campo (MOLINA, 2015, p. 153)

A fala de Felipe busca associar três critérios a escola do campo: a cultura da comunidade,

seus problemas e suas formas de organização. Essa construção de educador do campo vinculado

às questões do campo se articula, como demonstrado por Molina (2015), à compreensão da

educação do campo construída ao longo dos mais de 15 anos de construção da Educação do

Campo. Pensar uma escola que rompa com os muros da escola é legitimar a construção de um

processo de formação de professores diferenciada, e construir uma educação do campo que não

aceita a inclusão nos processos de Mesmidade nem as marcas da colonialidade dos saberes desses

sujeitos do campo.

A luta dos movimentos sociais pela ocupação das políticas públicas voltadas à educação

e pela construção de políticas específicas às lutas do campo está centrada, como descrito por

Arroyo (2007), na luta pela terra. Não em uma terra abstrata, mas na terra enquanto território de

produção da vida, cultura e de identidade que se vincula ao lugar do campo.

Em comunhão com o primeiro princípio filosófico do MST, “Educação para a

transformação social”, a educação que rompe com os muros da escola é aquela que possibilita

uma educação com sujeitos capazes de intervir na sociedade, que pensem a construção de um

espaço social de transformação e possibilidades, não de determinismos.

Page 161: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

159

Essa aproximação da escola e da comunidade transcende a idas de pais e mães em

reuniões para ouvirem falar sobre o rendimento do seu filho ou filha; essa aproximação que

derruba os muros da escola, pensada e gestada dentro dos movimentos sociais e base para a

formulação de políticas públicas diz de uma apropriação, por parte desses sujeitos de suas

histórias, que problematiza a totalidade histórica colonizadora, que ora os oculta e ora os coloca

como incivilizados.

Assim, o educador do campo se distancia e rompe com a compreensão única de sentidos

empregados à escola e à sua prática docente, porque agora se pauta não na condução do aluno à

vida acadêmica, mas nas possibilidades que também podem inclui-la; autônomo e crítico, o aluno

do campo consegue discernir sobre suas escolhas.

Complementando a perspectiva trazida por Felipe, a fala de Pedro é bastante significativa,

trazendo maior sensibilidade em suas impressões sobre o vínculo entre escola e campo.

PEDRO: É, é... professor, que atua no campo, ele é muito mais do que aquele professor

que reproduz conhecimento. Mas que faz a mediação entre o teórico com a prática e faz

com que o aluno produza o seu próprio conhecimento. Como é que aquele aluno vai

usar aquilo que ele aprendeu dentro de uma sala de aula é... no seu cotidiano. É... ele

também vai buscar trazer para a escola a comunidade, porque a escola em si ela já da

abertura a participação da comunidade, desde o PPP até nas reuniões de pais e mestres.

A fala de Pedro aproxima-se da perspectiva apresentada pelo MST (1995) na sua

descrição sobre os princípios pedagógicos da educação, que, já em seu primeiro aspecto, ressalta

a importância da relação entre a prática e a teoria. Há assim uma superação da escola como o

lugar de depósito do conhecimento teórico para posterior prática, e um rompimento do professor

como aquele que passa as verdades e os conhecimentos “superiores” aos alunos. Existem

processos sociais que são formativos, tanto junto a prática do professor para a construção do

conhecimento a ser discutido em sala de aula, quanto junto ao aluno do campo, que passa a

ressignificar esse conhecimento frente às suas práticas sociais.

O saber articulado pelo educador do campo não pode, portanto, ser um saber que se

distancia desse Outro, não podendo se dar no campo da Mesmidade. Se assim o fosse, lhe

impossibilitaria de articular junto a sua prática. Segundo nos conta Zanardi (2013), esse é o saber

contextualizado, ou seja, aquele que dialoga com a experiência não só de educadores e

educandos, mas da comunidade.

Esse distanciamento da escola com a comunidade pode ser percebido de forma muito

clara na fala de Bianca, apesar de não ser esse o direcionamento empregado por ela para concluir

a sua fala.

Page 162: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

160

BIANCA: Porque eu como educadora do campo, eu me deparo muito com aquele aluno

cansado, sabe? Que ele tem que trabalhar, tem que ajudar o pai na roça. E ai quando ele

faz, termina o nono ano, ai fala; não não vou estudar mais não! Tenho que trabalhar! E

aí é uma luta pra você conseguir, que aquele aluno permaneça na sala de aula, todo dia.

Chegou o caso do... da... dos professores irem na casa conversarem com os pais, eu

encontrei o aluno na rua e perguntei, mas porque você não ta indo pra escola? Porque

minha mãe falou que eu não preciso estudar mais não. Que eu tenho que ajudar meu

pai. E aí você vai na casa, trabalha, conversa, com o pai, né? Olha é muito importante...

ele diz: não é nada! Não é importante não! É.... ele tava estudando e ai cortou o... cortou

o bolsa família, também não mandei ele mais não. Mas, não gente! A importância de

você manter o seu filho na escola não é para você receber de um programa social, um

benefício, isso aí você ta buscando futuro pra seu filho. Né? É muito... é assim... um

trabalho que se você não tiver amor você não faz.

A necessidade de os filhos ajudarem no trabalho com a terra junto à família, a evasão da

escola e uma aparente “falta de sentido” no papel da mesma frente à comunidade parecem ser

pontos centrais trazidos na fala de Bianca ao caracterizar a sua prática docente. Entretanto, a

conclusão a que ela chega na análise desses fatores distancia-se daquelas empregadas por Felipe

e Pedro, que, em síntese, se resume ao papel da escola junto à comunidade, não em uma

perspectiva salvacionista, mas em uma perspectiva dialógica de relação do conhecimento com o

meio.

A perspectiva trazida por Bianca ressalta a importância do amor pela escola e pela sua

profissão mesmo com os problemas percebidos. Como descrito em várias oportunidades por

Freire, é necessário que o ato de educar seja amoroso:“Amor é um ato de coragem (...) Onde quer

que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de

sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso é dialógico. ” (2014, p. 45)

Entretanto, a fala de Bianca não parece se vincular a essa perspectiva trazida por Freire

(2014), mas se aproxima de um amor missionário, que reconhece e aceita os problemas existentes

no campo, numa perspectiva ingênua de fatalidade e de impossibilidade de modificações.

Portanto, é um amor que não busca pelo diálogo sua resolução, mas que compreende os

problemas como inexoráveis.

Perguntamos aos alunos se eles se sentiam preparados para atuarem em sala de aula, se o

curso lhes possibilitava serem educadores do campo, considerando todas essas perspectivas e

sentidos que eles já haviam trazido em nossa conversa, embora todos já estiveram em sala de

aula seja atuando pelo PIBID ou sendo regentes de turma.

As respostas de Pedro e de Ana destacaram-se das demais, por trazerem pontos de

destaque à organização do LeCampo.

Page 163: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

161

PEDRO: Eu acho assim, que em questão de formação, devido a ser um curso que ele é

contextualizado é... com a cultura camponesa, e com essa questão da defesa das políticas

públicas é que, na maioria das vezes a gente não vê como discussão nas instituições de

ensino é de garantir a instrução básica gratuita e de qualidade a esses alunos do campo.

Ser um “curso contextualizado” remete-nos aos escritos de Arroyo (2007) sobre a

importância de cursos de formação de professores do campo se distanciarem de uma perspectiva

generalista, mas que verticalizem as problemáticas reais e as contradições existentes dentro das

escolas do campo. Rompe-se com a lógica do conhecimento neutro e universal e se constrói um

conhecimento necessário a qualquer grupo, apropriando-se de um conhecimento que dialoga com

os problemas e possibilita soluções.

A fala de Pedro vai ao encontro da perspectiva trazida por Molina (2015). Segundo a

autora, um dos desafios contínuos da Educação do Campo está em formar educadores que sejam

capazes de questionar a realidade das escolas do campo e que indaguem a realidade, buscando

construir elementos que propiciem a compreensão do porquê das escolas do campo estarem sendo

fechadas, negando a esses sujeitos uma educação no campo e a construção de uma Educação do

Campo.

Já a fala de Ana é marcada pelos sentidos coletivos encontrados no campo junto a sua

organicidade

ANA: Eu destaco a organicidade do curso. Porque ajuda muito no viver coletivo porque

ser educador também é lidar com a diversidade e com o viver coletivo. Então eu destaco

a organicidade a forma que tem, na união da turma em GT, de quando surge um

problema a forma coletiva de resolver, então esses é um dos diferenciais. Porque na

iniciação básica, não generalizando, mas existe um certo individualismo. As vezes a

gente não vê a pessoa tão preocupada com o coletivo e com o social. É só o aluno no

individualismo, e a formação do Le Campo quebra essa barreira do individualismo.

O conceito de organicidade nasce junto ao MST e, segundo Bahniuk e Camini (2012, p.

334), “significa o movimento orgânico presente em suas estruturas organizativas e as relações

entre elas”. No LeCampo, a organicidade se apresenta como uma tentativa de transpor as práticas

sociais já consolidadas nos movimentos sociais, que abrange planejamento e condução da

organização para a proposta pedagógica do curso. Essa prática foi direcionada ao curso na

primeira turma do LeCampo, que, por sua forte vinculação aos movimentos sociais, conseguiu

transpassar esse modelo.

Page 164: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

162

Atualmente a organicidade do LeCampo se divide nos seguintes Grupos de Trabalho

(GT’s): cultura42, mística43, cuidado44, comunicação45, formatura46, finanças47 e disciplina48.

Cada turma, portanto, dispõe de sete GT’s, que se encontram semanalmente para resolverem as

demandas que lhes cabem; devem também se encontrar semanalmente com os GT’s

correspondentes das outras habilitações por área. Dos encontros por GT’s que incluem outras

turmas saem não apenas os planejamentos, mas também a elaboração de relatórios e balanços

das ações realizadas, que são socializadas a todas as turmas em plenária.

Ainda, segundo as autoras Bahniuk e Camini (2012), nas escolas do campo próximas aos

movimentos sociais é comum utilizarem a organicidade do movimento como base de organização

das escolas

Na escola, a Organicidade refere-se às várias formas de organização vivenciadas pelos

educadores e educandos, bem como à relação da escola

com a comunidade acampada e as instâncias do Movimento [...] exercita-se a

organização e aprende-se a desenvolver a coletividade [...]. Os tempos educativos, como

tempo aula, tempo formatura, tempo auto-organização, tempo trabalho, entre outros,

desafiam a escola a mover-se, estimulando formas mais participativas de gestão. Estes

tempos são uma tentativa de buscar desenvolver a formação humana em todas as suas

dimensões: cognitiva, política, estética, afetiva [...]. (BAHNIUK E CAMINI, 2012, p.

336).

É curioso perceber na fala de Ana, que apesar dela destacar a importância da organicidade

como importante elemento formador, ela não trouxe exemplos de vivência prática ou de

possibilidades da utilização da organicidade para contribuir com sua prática. Dessa forma, sua

pontuação sobre a importância da organicidade para romper com o individualismo fica meio

desconectada de sua atuação docente. Entretanto, compreendemos que a preocupação de Ana em

romper com sentidos individuais da educação dialoga com o nascimento da organicidade

enquanto base de organização das escolas.

42 O GT de cultura é responsável por organizar as noites culturais que ocorrem durante o TE aos sábados e na

divulgação e viabilização de idas a eventos que ocorrem em Belo Horizonte. 43 O GT de mística é responsável por organizar o desenvolvimento das místicas se atentando a questões como quando

elas irão ocorrem, quem serão os responsáveis pela realização e quantas vezes por semana. 44 O GT de cuidado ocupa-se do cuidado com a saúde das pessoas da turma, principalmente enquanto estão no TE.

Caso seja necessário levar ao médico, fazer exames ou simplesmente comprar remédios o GT torna-se responsável. 45 O GT de comunicação aproxima-se ao de cuidado, sendo responsável por auxiliar as pessoas que passam por

algum tipo de problema no curso no decorrer no TE que o afasta das atividades e das pessoas do curso, como por

exemplo, saudades de casa. 46 O GT de formatura como o próprio nome sugere se responsabiliza por cuidar das questões relativas a formatura

da turma 47 O GT de finanças é responsável por arrecadar e gestar o dinheiro arrecadado para demandas do curso, como a

formatura, alguma despesa na área de saúde que algum aluno não consiga pagar. 48 O GT de disciplina é responsável por cuidar da disciplina dos alunos em sala de aula, advertindo em caso de

conversas paralelas, por exemplo.

Page 165: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

163

5.5.3. A alternância pedagógica

Dois alunos, Júlia e João, apontam a Pedagogia da Alternância como fundamentais em

seus processos de formação de educadores do campo

JÚLIA: Uma forma interessante que eu acho é a forma de alternância. Porque você vem

aqui você fica um mês, você pega o conteúdo e você... como é que eu falo? Aprende

aqui na Felipe ria, aí você vai e fica seis meses tentando desenvolver o que você

aprendeu aqui em prática, lá no campo.

JOÃO: A alternância sabe, porque a gente teve uma disciplina com a Isabel, explicando

tudo de como foi construída a pedagogia da alternância e aí a gente faz esse intermédio

ai de TC e TE. Pra gente saber o que faz lá e o que faz aqui e isso é muito importante

pra nossa formação como educação do campo. No mesmo tempo que você está aqui na

faculdade tendo aulas e adquirindo seu conhecimento e tem um momento que você vai

tá lá no campo vendo a realidade você vai tá podendo pegar esse conhecimento que

você... você... absorveu aqui, né? Não é bem essa a palavra. Mas, ai você pode tá

pegando esse conhecimento pra poder ta desenvolvendo lá, de tá podendo observar

outras realidades lá, você sai daqui com outra visão, você chega lá com uma visão mais

crítica uma visão mais detalhada, de vários aspectos da escola e da comunidade e dos

alunos em geral.

As falas de Júlia durante a roda de conversa foram bastante pontuais, o que dificulta uma

análise mais elaborada sobre os pontos trazidos por ela, embora seja possível perceber que há ao

menos um ponto de convergência entre a fala de ambos: a noção de que no Tempo Escola você

adquire conhecimentos, e no Tempo Comunidade você o repassa à comunidade.

Apesar de João afirmar sair com uma visão mais crítica do curso, em razão da prática da

Pedagogia da Alternância, suas falas não trouxeram elementos que nos permitisse caracterizar

essa visão crítica e detalhada do campo. Como dito anteriormente, a fala de João e de Júlia

aproximam a Pedagogia da Alternância a uma formação dicotomizada. Essa perspectiva se

distancia da proposta da Alternância tanto vinculada tanto à Educação do Campo tanto aquelas

ainda utilizadas nas Escolas Famílias Agrícolas. Como descrito por Silva, em sua pesquisa

seminal de doutoramento, a concepção que se tem da Pedagogia da Alternância, quando

articulada ao campo, deve estar voltada para a

(...) valorização das experiências de alternância enquanto uma escola e uma educação

vinculada às condições de vida, interesses, necessidades e desafios enfrentados pela

população rural. Uma escola e uma educação específica e diferenciada que, enraizada

na cultura do campo, contemple no processo de formação os valores, as concepções, os

modos de vida dos grupos sociais que vivem no campo (...). Uma escola com e uma

educação que contribua para a formação humana, emancipadora e criativa da pessoa;

orientada por princípios de justiça e solidariedade. (SILVA, 2003, p. 243)

Page 166: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

164

Apesar de João e Júlia apontarem o potencial formativo da Alternância como diferencial

em sua formação como educadores do campo, não há convergência entre suas falas e a leitura

que a proposição da Educação do Campo traz da Alternância, ou seja, distanciam-se de seu

potencial em construir um saber historicamente localizado e problematizador das situações

concretas vividas pelos povos do campo.

Em ambas as falas é muito presente a noção de “pegar o conhecimento” adquirido no TE

e leva-lo para o TC. Essa noção aproxima-se de uma lógica de assimilação dos conhecimentos

do mundo urbano, moderno e colonial pelo campo. Assim, o TC passa a ser muito mais um

espaço de prática para o deslocamento do conhecimento científico, do que um espaço para a

produção de um conhecimento Outro, que, como descrito por Maldonado-Torres (2008), propicie

a construção de um giro-decolonial dos conhecimentos a partir das tradições orais, histórias,

canções e saberes dos povos colonizados.

Negando uma metodologia espontaneísta de produção de conhecimento, a Alternância

pode proporcionar uma formação de professores pesquisadores, que, ao dialogarem com o saber

do campo e com as noções acadêmicas, produzem um saber Outro que transgrida com a noção

do campo como um ambiente que apenas se contrapõe a cidade, reconhecendo-o como lugar de

cultura e de construção de saberes que lhe é próprio, abandonando a universalidade dos

conhecimentos modernos/coloniais.

A perspectiva da Alternância pensada nesses pressupostos enfraquece os dois pontos

fundacionais e essenciais, descritos por Lander (2005), da sociedade moderna colonial. A

construção da sociedade industrial liberal, como o fim unívoco de todas as sociedades, passa a

ser contestada, uma vez que o Campo passa a ser reconhecido como produtor de culturas e de

conhecimentos, e não como um lugar inferior que precisa da lógica industrial para se civilizar e

modernizar. O segundo ponto diz da ruptura com o conhecimento universal europeu, uma vez

que o “fim” das culturas não é unívoco: formas Outras de produção de conhecimento passam a

ser compreendidas como válidas, abrindo espaço para uma pluralidade de conhecimentos.

5.5.4 Movimentos sociais e a materialidade do curso

Também perguntamos aos alunos do curso como eles viam a relação do professor do

campo com o conhecimento, e se o conhecimento tinha algum poder transformador. Nesse

momento, os alunos do curso começaram a nos contar algumas experiências, que consideram

exemplos do poder transformador do conhecimento.

Page 167: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

165

JOÃO: Pois é, a esse respeito desse conhecimento eu acho que ele transforma, na minha

comunidade e no município de Ouro Preto em geral tem uma grande população de

jovens, ne? Que atua na licenciatura em educação do campo, ne? E depois desses jovens

entrarem na universidade que apareceu lá... nas reuniões lá... eles fizeram a criação de

uma escolinha pras crianças tipo uma pre escola, onde os jovens da licenciatura em

educação do campo são voluntários e dão aula pra esses meninos e toda semana tem,

entendeu? Então já muda a forma de tá levando esse conhecimento daqui e está levando

pra eles lá, entendeu?

A organização de alunos e ex-alunos do curso, enquanto grupo, para buscarem formas de

resolução dos problemas da comunidade, nos aponta para um sentimento de coletividade, que se

inicia no curso, mas o transcende. Os professores do curso se colocam aqui como agentes que

propõem e se articulam para a modificação de suas comunidades, rompendo com os laços do

individualismo, demonstrando uma preocupação com a negação de um direito a crianças de suas

comunidades.

Não foi contado na roda de conversa se há ações paralelas à atuação dos alunos para

exigirem da prefeitura educação escolarizada ou creche para essas crianças. O reconhecimento

de uma mobilização desse tipo por parte dos alunos implicaria aqui também em uma análise do

reconhecimento do “direito a ter direito” pelas crianças da comunidade.

Pedro iniciou contando que havia um encontro dos Jovens Gerazeiros que se reuniam

uma vez por mês, mas foi Gabriela quem forneceu detalhes sobre esses encontros.

GABRIELA: Eu ia seguir mais ou menos a mesma linha de raciocínio dele [do Pedro].

Esse coletivo [Jovens Gerazeiros] surgiu justamente da necessidade que a gente viu,

que a gente tinha lá um número enorme de alunos da educação do campo, aí tinha a luta

dos gerazeiros e dos quilombolas, das comunidades tradicionais de lá de Rio Pardo e

nesse coletivo a gente já conseguiu se organizar, participou do... do... do... a gente já

produziu dois seminários da Educação do Campo e estamos indo para o terceiro agora

no primeiro semestre de 2016.

PESQUISADORA: Com os alunos nas escolas?

GABRIELA: Com os alunos, a comunidade, a gente participou da... a gente conseguiu

colocar algumas... no plano decenal do município, a gente conseguiu colocar algumas

ementas da educação do campo pras escolas, a gente já está conseguindo se mobilizar

foram 16 ementas que conseguimos colocar, pras escolas do município. O município

não é pequeno e o município de Rio Pardo de Minas é o maior do alto Rio Pardo e...

todas as escolas são consideradas escolas do campo, ai diante disso a gente viu a

necessidade de... que não tinha nada relacionado a escola do campo e no plano decenal

a gente conseguiu colocar.

Apesar de Gabriela não deixar claras as formas de participação e atuação do coletivo para

conseguirem alterações no Plano Decenal do Município, nossos estudos sobre as dinâmicas de

criação do plano decenal nos levam a inferir que eles participaram como coletivo ou sociedade

civil organizada nas reuniões ou audiências públicas que culminaram em sua construção.

Page 168: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

166

É interessante perceber que o primeiro ponto que, segundo Caldart (2009, p. 60), deve ser

intensificado pelos sujeitos que constroem a educação do campo é a “pressão por políticas

públicas que garantam o acesso cada vez mais ampliado pelos camponeses, do conjunto dos

trabalhadores do campo, à educação. ”.

Já a fala de Lira sobre a relação entre Educação do Campo e o conhecimento a ele

veiculado é bastante interessante

É... muitas vezes a gente nos deparamos com alunos que tem o pensamento... talvez

bastante é... controverso do que é a realidade, ai o conhecimento que a gente adquire

aqui faz com que a gente consiga mostrar pra aquele aluno que ele pode estar vendo

aquilo de uma forma totalmente individual meio que errada do ponto de vista do

coletivo. Muitas vezes a gente pode se depara com um aluno que... tenha uma visão

que a política não deve existir e que não se deve ficar envolvendo com politicagem

e ficar totalmente fora disso. E aqui no curso como a gente estuda essa parte a

gente vê que é necessário você está dentro desse contexto. Então ai você vai e chega

naquele aluno e fala tal filosofo falou isso e isso... é... a gente viu isso quanto estava

na faculdade, talvez você poderia ir por outro caminho. É nesse momento o que a gente

aprendeu pode ser muito útil pra transformar o pensamento dele que lá na frente poderia

não ser muito bom pra ele.

Lira desenvolve as noções de coletividade e política, dois sentidos centrais para a

Educação do Campo e seu papel como educadora, relacionando-os com o conhecimento, a

importância da coletividade e a importância da participação política como forma de modificação

da sociedade.

Seja com autores da Educação do Campo como Arroyo (2013) e Caldart (2009), seja nos

escritos do MST (1996) e também nos escritos de teóricos decoloniais como Dussel (1997ª),

Freire (2014) e Walsh (2014) há uma concordância da centralidade das formas de coletividade

que se constrói quando os sujeitos se reconhecem Outros, colonizados e explorados, e passam a

reivindicar, lutar e a construir de forma coletiva histórias Outras, distintas daquelas de opressão

vivenciadas historicamente. Uma das formas de se lutar, ensinadas por esses coletivos, está

também no campo da política, como é o caso da Educação do Campo: houve luta para se

constituir a Educação do Campo como política pública específica para o campo através,

inicialmente, do Pronera. Compreender o campo da política como meio de conquista de direitos

reflete o grito cotidiano que ecoa dentro da FaE pelos alunos do LeCampo “Educação do Campo:

direito nosso, dever do Estado”.

Curiosamente o desfecho da fala de Lira não converge para toda a concepção teórica e

prática vivenciada pelos movimentos sociais e pelas práticas decoloniais, mas para uma acepção

de conhecimento desvinculado da prática, da coletividade e de sua própria acepção de política.

Page 169: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

167

Mas por que esses sujeitos se mantem tão fixos aos sentidos de permanência no campo,

se eles se mantêm tão distantes dos sentidos de trabalho com a terra? Chamou a minha atenção

no curso uma reunião realizada no auditório da FaE com as turmas no dia 20/08, como anotado

em meu caderno de campo. Para conseguir falar à frente do auditório, em função da dispersão

dos sujeitos, era necessário falar ao microfone com um volume de voz um pouco mais elevado,

porém não foi essa a estratégia utilizada pelo monitor, que também já foi professor do LeCampo.

O monitor João pegou o microfone e cantou “Não vou sair do campo pra poder ir pra escola...”

e os alunos responderam “(...) educação do campo é direito e não esmola”. Ele repetiu isso por

três vezes até que todos voltaram à atenção para ele e se silenciaram.

Músicas e palavras de ordem parecem ser comuns no desenrolar do curso, buscando

sempre lembrar aos sujeitos os sentidos e as vinculações da licenciatura com a vida no campo.

No evento “Festival Nacional da Reforma Agrária” os alunos também levaram músicas e gritos

de ordem. Ao fim da roda da nossa roda de conversa, quando ainda os agradecia pela conversa,

Lira gritou “Educação do Campo...” e todos responderam “(...) direito nosso, dever do Estado”

sendo comum, em momentos que as turmas se reúnem para fazer alguma atividade, a presença

dos gritos e dos cantos.

É interessante perceber que sempre é reforçado junto aos alunos esses sentidos de

importância de permanência no campo por professores do curso. Apesar de não perceber isso na

fala do professor Mário, as falas dos professores e monitores que coordenavam a disciplina

“Processos de Ensino-Aprendizagem” e principalmente, as falas na palestra de acolhida das

turmas expunham de forma significativa a demanda por tal permanência: não para a fixação,

como reforçam os professores, mas para a transformação, incentivado aos alunos participarem

de movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos em suas cidades.

Entretanto, parece-nos que os pontos trazidos sobre o coletivo carecem de sentido junto

aos alunos que conversamos na roda de conversa. Assim, o retorno ao campo e a presença parece

se dar muito mais numa lógica que afirma o indivíduo do que qualquer outra coisa.

Sentimos ainda a necessidade de saber se esses sujeitos se sentiam preparados para serem

educadores do campo. Como eles percebiam a formação até o quinto período do curso? Eles

reconheciam que a formação lhes possibilitaria serem educadores do campo? Há unanimidade

na resposta: todos dizem se sentir preparados para serem educadores do campo. Contudo, a

resposta de Ana e João nos chamam a atenção.

ANA: Eu me sinto preparada aqui dentro do curso, eu penso... porque não é uma

formação só como educador, mas é uma formação política, que a gente aprende é

um processo de abrir os olhos. A gente não assiste mais uma reportagem com a mesma

Page 170: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

168

visão de antes, com uma visão crítica a questão da lida com o social a formação que a

gente tem para isso e principalmente no caso do curso como educador do campo é

essencial.

JOÃO: Eu me sinto preparado, e o curso faz essa preparação sabe, para você ser

educador do campo. Como eu já disse, eu já tinha um conhecimento a respeito dessa

educação, antes da gente vir pra cá, mas depois que chegou cá a gente foi aperfeiçoando

ela mais e mais e hoje em dia você olha a realidade que está no campo com outros

olhos.

Segundo esses sujeitos, eles se sentem preparados para serem educadores do campo,

principalmente porque o curso lhes forneceu uma leitura política do mundo e, consequentemente,

das relações de poder que existem no campo e em suas escolas, bem como na construção do

projeto de uma Educação do Campo.

Essa concepção coaduna com as referências teóricas decoloniais utilizadas por nós, como

Dussel (1993), Arroyo (2012), Caldart (2012) e Walsh (2010), porque denunciam que a educação

não é neutra e evidenciam o lado político dos projetos educacionais que se dizem neutros.

Salientamos aqui a importância de Freire (2014b), que dedicou a esse tema a escrita do livro

“Política e Educação”, demonstrando que a relação com o conhecimento sempre é mediada por

um projeto de sociedade e de construção do mundo.

Outrossim os teóricos da Educação do Campo também evidenciam essa convergência e a

importância de ter clara a relação entre o projeto educacional e político. Entretanto, a fala desses

sujeitos sobre a importância da política e da educação se distancia do conceito freireano de

palavra: não percebemos, ao longo da roda de conversa, exemplos de atitudes que evidenciassem

modo Outro de ação sobre o mundo.

Ao serem solicitados a elencarem pontos no curso que considerem diferenciais em sua

formação, eles dizem

ANA: Eu destaco a organicidade do curso. Porque na iniciação básica, não

generalizando, mas existe um certo individualismo. As vezes a gente não ve a pessoa

tão preocupada com o coletivo e com o social. É só o aluno no individualismo, e a

formação do LeCampo quebra essa barreira do individualismo.

PEDRO: Eu acho assim, que em questão de formação, devido a ser um curso que ele é

contextualizado é... com a cultura camponesa, e com essa questão da defesa das políticas

públicas é que, na maioria das vezes a gente não vê como discussão nas instituições de

ensino é de garantir a instrução básica gratuita e de qualidade a esses alunos.

Apesar dos sujeitos lançarem em seus argumentos palavras centrais para a construção de

sentidos decoloniais de seus processos de formação, destacando pontos chave da construção

histórica da Educação do Campo esses conceitos parecem, por vezes, esvaziados de sentidos

junto a esses sujeitos. Há uma dificuldade de articulação desses conceitos com sua atuação

Page 171: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

169

docente e em algumas narrativas é possível perceber conflitos entre suas falas e a proposta de

uma Educação do Campo.

Há fortes sentidos de individualiadade presentes nas falas desses sujeitos, aproximando-

se assim do que Walsh (2014) definiu como interculturalidade funcional. O acesso a universidade

não como meio de ruptura ou questionamento do padrão de poder, mas sua mera inclusão a ele.

Entretanto, como um campo de disputas e como espaço de diálogo compreendemos que

esses aspectos são constantemente disputados e, portanto, podem ser resignificados. Daí ser

interessante os momentos em que narram as experiências coletivas que transcendem o período

de tempo de formação na universidade, reunindo alunos em suas cidades formados no curso para

discutirem sobre a educação em suas regiões.

Page 172: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

170

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi intenção, nesta dissertação, realizar uma análise do curso ofertado pela UFMG, o

LeCampo. O especial cuidado que tivemos de ouvir os sujeitos que compõem o curso, em

conjunto com a análise do PPP e dos planos das disciplinas observadas, não significou uma

comparação entre o prescrito e o vivenciado, mas a busca por uma análise mais ampla, que nos

possibilitasse evidenciar referencias da (de)colonialidade presentes em diferentes aspectos do

curso.

A luta e conquista do curso em si expressa marcas da decolonialidade. Conquistado no

bojo da organização nacional de Universidades, movimentos sociais e sujeitos campesinos na

construção de uma educação que seja do campo e no campo, o LeCampo representa a luta

empreendida em Minas Gerais poe meio da articulação entre MST e a UFMG para garantir o

direito dos povos camponeses a um curso de licenciatura que os reconheça como sujeitos Outros

produtores de cultura e de histórias.

Outrossim, o curso nasce estreitamente vinculado às lutas para a construção de uma

sociedade Outra, tendo forte vínculo com os movimentos sociais do campo e apresentando como

objetivo, conforme descrito no PPP, a formação de professores especificamente para os

territórios rurais. É possível perceber, por meio da proximidade com as áreas de assentamento,

movimentos sociais e sujeitos Outros, que a criação do curso não é um fim em si mesmo, mas

meio para a construção dessa sociedade Outra iniciada na luta pela terra.

Daí ser notória uma ruptura com estruturas moderno-colonizadoras, visto que, para a

construção dessa sociedade Outra, problematizou-se o conhecimento hegemônico, eurocêntrico,

articulou-se à formação desses sujeitos os conhecimentos que traziam de suas lutas dentro dos

movimentos sociais, suas vivênciais e suas formas de organização em Grupos de Trabalho

(GT’s), para a construção de uma nova proposta de educação e de organização do espaço

universitário.

A conquista desse espaço de forma coletiva rompeu não apenas com os sentidos únicos

de conhecimento, mas também problematizou a marca do “sucesso pessoal” que se vincula ao

acesso à universidade em uma sociedade capitalista. A ressignificação do espaço acadêmico

como de luta e de ocupação do “latifúndio do saber” trouxe uma ampliação dos seus sentidos

que, pautados na coletividade, buscam romper e questionar as desigualdades e os sentidos

acadêmicos que os concebem como inferiores por serem sujeitos camponeses.

Outra marca decolonial do LeCampo é a construção do curso de maneira mais

horizontalizada rompendo com a pedagogia dominadora que compreende os sujeitos Outros

Page 173: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

171

como depositários de conhecimento contando com a presença de representante dos movimentos

sociais e dos alunos do curso em sua coordenação.

A utilização da Alternância Pedagógica, conquista histórica dos movimentos de Educação

do Campo, é também entendida como traço decolonial do curso, porque reconhece a comunidade

como espaço de aprendizado assim como o espaço acadêmico, diminuindo as distâncias entre o

que seria considerado “o” conhecimento e os “demais conhecimentos”, passando a desenvolver

os processos de formação de forma mais dialógica.

Todavia, significativas mudanças ocorrem no curso a partir de 2009, ano que o curso

torna-se permanente na FaE. A expansão e a institucionalização dos cursos de Linciatura passam,

portanto, a ter de ofertas Processos Seletivos Especiais para garantir o ingresso desses sujeitos

camponeses à Educação Superior. Daí a importancia do uso de estratégias variadas, como as

utilizadas pelo LeCampo, que incluem elaboração de memorial e comprovação de moradia no

campo. Hage e Molina (2016) são enfáticos em ressaltar a importancia da seleção e do debate

dos critérios no curso para evitar sua descaracterização.

No LeCampo, após sua institucionalização, é possível perceber que novos sujeitos passam

a compor o curso. Em sua maioria são filhos (as) de camponeses criados no campo, mas que nem

sempre possuem vínculos com movimentos sociais e associações comunitárias; ou seja, são

sujeitos que apresentam vínculos frágeis com as organizações coletivas camponesas, que lutam

a favor dos direitos dos sujeitos Outros e para estes não sejam subsumidos dentro da lógica da

mesmidade moderna e colonizadora.

Daí parece se originar um dos principais desafios do LeCampo na atualidade: como

conduzir um curso pensado de forma tão intrínseca às lutas e sujeitos vinculados a movimentos

sociais, quando os sujeitos que ingressam no curso distanciam-se cada vez mais desse modelo?

É possível perceber nos teóricos que pensam a Educação do Campo na atualidade, como

Molina (2015), Hage e Molina (2016), Arroyo (2014) e Caldart (2009), um delineamento do

perfil dos sujeitos que se espera para compor os cursos de Licenciatura em Educação do Campo.

Esses teóricos acabam por fazer a defesa do ingresso de sujeitos que já tenham algum vínculo

com as causas sociais do campo e que reconheçam a necessidade de uma construção de sociedade

Outra. Mesmo sem abandonar a caracterização desse perfil, Molina (2015) nos diz que a

expansão dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo pode trazer uma ruptura com a

identidade do curso, e que é preciso estar atento para que tal situação não ocorra. Afinal, caso os

cursos de Licenciatura em Educação do Campo percam sua vinculação com a terra, com o campo

e com as demandas dos sujeitos Outros camponeses, eles não se diferenciariam dos demais cursos

de licenciatura.

Page 174: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

172

Foi possível perceber na maioria dos sujeitos que participaram da roda de conversa um

distanciamento desse ideário de aluno presente nos escritos dos teóricos da Educação do Campo.

Possuindo fracos vínculos com os coletivos campesinos, esses sujeitos não objetivavam fazer o

curso porque este se volta para as questões do campo e, em muitos casos, não tinham como

objetivo profissional serem professores; suas escolhas estão centradas no “ganho pessoal” de

realizar um curso numa universidade pública.

O ingresso de sujeitos com fraca articulação a movimentos sociais não se dá sem conflitos

com as formas de organização do curso e com o seu projeto político, visto que o curso ainda

mantém muito da organização pensada a partir das turmas piloto. Daí, por exemplo, tamanha

resistência à mística, momento de grande importância para os movimentos sociais, mas de pouco

sentido e vinculação aos sujeitos que atualmente compõem o curso. Outro ponto que destaca

esses conflitos foi a fala de Bianca, quando nos diz que a professora, ao saber que ela não se

reconhece como indígena, responde que a aluna “sairia do curso reconhecendo sua identidade

indígena”. Essa fixação de sentidos e de identidades nos parece traços de uma tentativa de

subsumir o Outro em processos de mesmidade, suprimindo o diálogo e fazendo prevalecer a

imposição de sentidos únicos.

Esses conflitos também podem ser percebidos na concepção do curso sobre a participação

e o engajamento em movimentos sociais. Foi perceptível, na observação de campo, que os

professores incentivam os sujeitos a participarem de movimentos sociais, sindicatos e da vida

política partidária. Não obstante, essa vinculação acontece de forma acontece com forte viéz

burocrático, apresentando pouca organicidade na presença e na contribuição das discussões

promovidas pelas referidas associações

Reconhecendo que a proposta de criação das Licenciaturas em Educação do Campo não

finda em si mesma, mas é meio necessário para se pensar a educação como instrumento

privilegiado para a construção de uma sociedade Outra, acreditamos que um dos cuidados

centrais ao qual o curso deve se ater é de, mediante a esses conflitos, não perder os seus traços

decoloniais, de vínculo com os sujeitos campesinos e com um propósito Outro de sociedade, com

o inédito viável, porque reconhecemos nessas as bases que fazem com que o LeCampo se

diferencie dos demais cursos de licenciatura.

Parece-nos que o único instrumento que se tem para mediar essa tensão está no diálogo

entre o curso e os sujeitos que o compõe. Ou seja, uma postura saudosista das primeiras turmas

do LeCampo e críticas à “falta de perfil” dos sujeitos que hoje o compõem não parecem ser

caminhos que conduzam a uma resolução dessas tensões, mas ao seu aprofundamento.

Page 175: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

173

Parece-nos, portanto, necessário que o LeCampo desenvolva, com seus professores,

coordenadores e monitores, em conjunto aos alunos, os sentidos primários da luta por uma

educação construída junto aos sujeitos do campo, desvelando os sentidos históricos que fizeram

a cidade ser reconhecida como “superior” ao campo e demonstrá-los a importância dos coletivos,

organizados em movimentos sociais, para a construção dos direitos dos povos do campos e da

luta para o reconhecimento de que são eles sujeitos que tem direito a ter direitos.

Dito de outra forma, acreditamos que é necessário que os sentidos de resistência a lógica

moderna colonial sejam construídos juntos aos alunos, reconhecido o distanciamento desses

sujeitos com as resistências campesinas a essas formas de opressão. Como descrito por Freire

(2014), isso não pode equivaler a depositar nos sujeitos uma “consciência crítica” e/ou uma

obrigatoriedade para participarem/vincularem a movimentos sociais, mas um esforço no sentido

de construir junto a esses sujeitos os sentidos de coletividade e de uma consciência crítica a

respeito dos problemas enfrentados pelo Campo. Como foi evidenciado na fala de Bianca, aonde

a professora tentou impor um sentido, uma identidade Outra a aluna, distanciando-se da postura

de contrução de sentidos e aproximando-se de dominação do Outro pelo Mesmo.

Acreditamos que a partir desse diálogo é possível evitar o rompimento com as

caratersíticas essenciais da construção do LeCampo, possibilitando a reconstrução de alguns

organizações trazidos das turmas piloto e construção de novos aspectos junto a esses sujeitos.

Não cabe a nós nomearmos esses aspectos, mas acreditamos que pelo diálogo é possível que

esses sujeitos construam em conjunto esses pontos que, para ambos, carecem de serem

modificados.

Assim, consegue-se problematizar junto aos alunos a concepção, comumente trazida por

eles na roda de conversa, de que a função primeira do professor do campo é conduzir o maior

número de sujeitos possível para a Universidade. Todavia, essa compreensão distancia-se

daquela almejada pelos movimentos sociais, reduzindo os sentidos da educação básica ao

ingresso a universidade e distanciando-se do paradigma crítico de formação de professores. Se

couber ao professor apenas conduzir os alunos a universidade, qual a necessidade de apropriar-

se de um conhecimento Outro? Qual a necessidade de que esse professor se aproprie de um

conhecimento decolonial que se propõe a ser crítico da modernidade? E, principalmente, qual o

vínculo da escola com o projeto Outro de sociedade?

A propriação dos espaços universitários por esses sujeitos Outros sem o questionamento

dos sentidos moderno/coloniais do acesso à educação superior potencializa uma possível

interculturalidade funcional à construção da Educação do Campo, pois fornecerá o acesso desses

sujeitos a esses espaços sem o devido questionamento dos padrões de poder e desigualdade do

Page 176: MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE …

174

projeto social e epistêmico. Cabe aqui retomar a fala de João, que diz “(...) não é porque tá no

campo que ele não pode ser um empresário, ai é isso.”. Ou seja, não é porque se está no campo

que não se pode participar do capitalismo e das suas estruturas.

Como descrito por Fanon (2008), é comum que os colonizados, diante de estruturas de

colonização, compreendam (erroneamente) que, quanto mais se assimilar os valores da metrópole

e quanto mais se distanciar dos seus valores “selvagens”, melhor colocado na sociedade

colonizadora ele estará. Essa lógica de inclusão do Outro no Mesmo, ou nas palavras de Freire

(2014), o sonho do oprimido é virar opressor, é um dos cuidados que se deve ter no dialogo junto

aos sujeitos que compõem o curso.

Dessa inclusão funcional ao sistema capitalista nos pareceu vir os sentimentos de retorno

desses sujeitos ao campo. Todos os sujeitos, sem nenhuma exceção, mencionaram a importância

de voltar para o campo. Entretanto, esse retorno, na quase totalidade das falas dos sujeitos, parece

se distanciar da importância com a lida com a terra, aproximando do destaque da ocupação de

outro status social, ou seja, distanciar-se da terra, da lavoura e do trabalho no campo.

Há pelo menos um aluno que se posiciona de forma diferente dos demais. Seu vínculo

aos sindicatos pode explicar sua aproximação com uma abordagem interculturalidade crítica. O

que, para nós reporta a importância dos movimentos e sindicatos no fortalecimento do curso.

O MST, enquanto movimento marginal ao sistema capitalista, traz cotidianamente essa

marginalidade para dentro das instituições acadêmicas. Calart (2012, p. 226) nos diz que “a

educação pode ser mais do que educação, e que escola pode ser mais do que escola, à medida

que sejam considerados os vínculos que constituiem sua existência.”. Assim, cabe também ao

Movimento ser tensionador para que o curso não perca a sua radicalidade e seu vínculo com os

movimentos e as lutas por uma sociedade Outra, especialmente num momento em que os

educandos começam a desenvolver uma consciência crítica das problemáticas do campo.

Reconhecer que a educação pode ser mais do que educação parece-nos mais do que

compreender a educação como x, mas lutar pela defesa pela defesa de um projeto que vá além

da escolarização e da lógica meritocrática da sociedade capitalista. É pensar a educação como

proposta política de sociedade, de atuação em comunidade; é pensar as vivências dentro dos

movimentos sociais e no campo como processos formadores de sentidos e de conhecimento que

não podem ser suprimidos por um projeto totalitário. Assim sendo, é possível a Universidade ser

mais que Universidade, quando compreendemos nela, um dos espaços de desenvolvimento dessa

construção Outra de sociedade, forjada a partir dos sujeitos Outros.

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