movimento de doulas no brasil: trajetÓria das … · humanizada, que não perpetue a violência...

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X MOVIMENTO DE DOULAS NO BRASIL: TRAJETÓRIA DAS ATRIZES NA CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE NÃO VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Inara Fonseca 1 Rosana de Carvalho Martinelli Freitas 2 Stephany Yolanda Ril 3 Resumo: Este artigo narra a formação do movimento contemporâneo de doulas demonstrando como essas sujeitas se inserem na construção de uma cultura de assistência ao parto, tida como humanizada, que não perpetue a violência obstétrica. Tendo como perspectiva a epistemologia e a metodologia feminista (Haraway, 1995; Harding, 1993 e 2002; Salgado, 2008) foram realizadas cinco entrevistas semiestruturadas com doulas que em diferentes momentos e circunstâncias tiveram uma participação ativa no Movimento de Doulas brasileiro. Acreditamos que a narrativa da trajetória dessas mulheres no movimento traga tanto novos elementos para o ativismo político no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, quanto visibilidade para a luta das doulas. Palavras-chave: doulas, movimento de mulheres, humanização do parto, direitos sexuais e reprodutivos. Este artigo tem como objetivo narrar, através de entrevistas com cinco doulas, a constituição do movimento de doulas no Brasil relacionando-o com a construção de uma cultura de não violência obstétrica e, consequentemente, com as mudanças nas diretrizes da política pública de assistência ao parto no Brasil, a partir da criação do programa Rede Cegonha (2011). Interessa-nos compreender: 1) as dinâmicas sócio históricas nas quais surgiram o movimento; 2) quem são essas sujeitas e como o movimento se relaciona com as duas principais redes brasileiras em defesa do parto humanizado; 3) quais as estratégias de ativismo utilizadas na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos. Tendo como fundamento a epistemologia e a metodologia feminista (Haraway, 1995; Harding, 1993 e 2002; Salgado, 2008), escolhemos a entrevista semiestruturada devido a possibilidade a qual nos dá de termos as próprias mulheres como narradoras, entendendo as suas experiências como um indicador da realidade. No enquadre teórico feminista, retomar as experiências é fundamental pois não só coloca as mulheres como centrais na reflexão, como também colabora para a reconstrução do conhecimento a partir de uma perspectiva que as favoreça. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos de Cultura Contemporânea/ UFMT. Cuiabá/Mato Grosso/Brasil. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas/ UFSC. Florianópolis/Santa Catarina /Brasil. 3 Residente do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde, na ênfase Saúde da Mulher e da Criança, no Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Tiago / UFSC. Florianópolis/Santa Catarina /Brasil.

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Page 1: MOVIMENTO DE DOULAS NO BRASIL: TRAJETÓRIA DAS … · humanizada, que não perpetue a violência obstétrica. Tendo como perspectiva a epistemologia e a metodologia feminista (Haraway,

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

MOVIMENTO DE DOULAS NO BRASIL: TRAJETÓRIA DAS ATRIZES NA

CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE NÃO VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Inara Fonseca1

Rosana de Carvalho Martinelli Freitas 2

Stephany Yolanda Ril3

Resumo: Este artigo narra a formação do movimento contemporâneo de doulas demonstrando

como essas sujeitas se inserem na construção de uma cultura de assistência ao parto, tida como

humanizada, que não perpetue a violência obstétrica. Tendo como perspectiva a epistemologia e a

metodologia feminista (Haraway, 1995; Harding, 1993 e 2002; Salgado, 2008) foram realizadas

cinco entrevistas semiestruturadas com doulas que em diferentes momentos e circunstâncias

tiveram uma participação ativa no Movimento de Doulas brasileiro. Acreditamos que a narrativa da

trajetória dessas mulheres no movimento traga tanto novos elementos para o ativismo político no

campo dos direitos sexuais e reprodutivos, quanto visibilidade para a luta das doulas.

Palavras-chave: doulas, movimento de mulheres, humanização do parto, direitos sexuais e

reprodutivos.

Este artigo tem como objetivo narrar, através de entrevistas com cinco doulas, a constituição

do movimento de doulas no Brasil relacionando-o com a construção de uma cultura de não

violência obstétrica e, consequentemente, com as mudanças nas diretrizes da política pública de

assistência ao parto no Brasil, a partir da criação do programa Rede Cegonha (2011). Interessa-nos

compreender: 1) as dinâmicas sócio históricas nas quais surgiram o movimento; 2) quem são essas

sujeitas e como o movimento se relaciona com as duas principais redes brasileiras em defesa do

parto humanizado; 3) quais as estratégias de ativismo utilizadas na defesa dos direitos sexuais e

reprodutivos.

Tendo como fundamento a epistemologia e a metodologia feminista (Haraway, 1995;

Harding, 1993 e 2002; Salgado, 2008), escolhemos a entrevista semiestruturada devido a

possibilidade a qual nos dá de termos as próprias mulheres como narradoras, entendendo as suas

experiências como um indicador da realidade. No enquadre teórico feminista, retomar as

experiências é fundamental pois não só coloca as mulheres como centrais na reflexão, como

também colabora para a reconstrução do conhecimento a partir de uma perspectiva que as favoreça.

1Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos de Cultura Contemporânea/ UFMT.

Cuiabá/Mato Grosso/Brasil. 2Professora do Programa de Pós-Graduação Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas/ UFSC.

Florianópolis/Santa Catarina /Brasil. 3Residente do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde, na ênfase Saúde da Mulher e da Criança,

no Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Tiago / UFSC. Florianópolis/Santa Catarina /Brasil.

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Para este trabalho foram entrevistadas: Lucía Caldeyro Stajano (doula, 69 anos, branca,

heterossexual, pedagoga, mãe, uruguaia e residente em Campinas, no Brasil, desde a década de

1970), Marilda de Cássia Castro (doula, 55 anos, branca, heterossexual, assistente social, mãe,

servidora pública aposentada, brasileira e residente em Brasília), Ana Lucia Sousa Pinto (doula, 34

anos, branca, heterossexual, educadora física, mãe, brasileira e residente em João Pessoa), Gabriela

Zanella Bavaresco (doula, 36 anos, branca, heterossexual, fisioterapeuta, mãe, servidora pública,

brasileira, residente em Florianópolis) e Juliana Candido Pinto (doula, 28 anos, branca, bissexual,

fisioterapeuta, brasileira, criada na periferia da cidade do Rio de Janeiro). Todas as entrevistadas

assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), estando cientes que seus

nomes seriam utilizados afim de visibilizarem suas trajetórias enquanto ativistas. Lucía foi

escolhida por ser da primeira turma de doulas certificadas do Brasil, Marilda por ter participado do

projeto de implementação de “Doulas no SUS”, Ana Lucia por ter sido – durante o segundo

mandato do governo Dilma Rousseff – a doula do Ministério da Saúde4, Gabriela e Juliana por

participarem das diretorias das associações de Santa Catarina e Rio de Janeiro, respectivamente.

De origem grega, a categoria doula foi utilizada pela primeira vez na década de 1970 para

designar as mulheres que oferecem apoio físico, emocional e suporte cognitivo à mulheres grávidas

e sua parentela. De acordo com Ferreira Jr (2015), em 1976, a primeira experiência de um trabalho

relativo ao da doula foi reconhecida nos Estados Unidos. Na ocasião, a antropóloga Dana Raphael

narrou a vivência de uma parturiente assistida por outra mulher durante todo o parto e a

amamentação. Na década de 1980, com o aumento das cirurgias cesáreas, ocorreu uma

popularização das doulas nos Estados Unidos como tática das mulheres estadunidenses para

evitarem procedimentos desnecessários que conduzissem a uma cesariana.

No ano de 1992, em Chicago (Estados Unidos), a primeira forma de profissionalização das

doulas ocorreu com a criação da Dona (Doulas of North American) Internacional, uma organização

sem fins lucrativos que tem como missão formar, treinar e certificar doulas. A história das doulas no

Brasil está intrinsicamente ligada com o surgimento da organização, responsável pela certificação

da primeira turma de doulas brasileiras.

Doulas: da autodescoberta à auto-organização

4 Embora o cargo oficial da Ana Lucia dentro da pasta da Saúde da Mulher fosse consultora técnica, “doula do

Ministério da Saúde” é como ela foi conhecida dentro do movimento de doulas.

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O primeiro curso de certificação de doulas, segunda entrevistada Lucía, aconteceu no Brasil

em 2003 e foi ministrado pela doula estadunidense Debra Pascali Bonaro5. Na ocasião, por

intermédio de integrantes da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (Rehuna), Debra

ministrou cursos em Brasília e no Rio de Janeiro com o objetivo de preparar multiplicadoras para

capacitação de doulas no Brasil. Vale ressaltar que antes de 2003 já existiam algumas poucas doulas

atuando em solo brasileiro (como a própria Lucía que decidiu em 1985 contribuir como voluntária

no projeto Grupo de Parto Alternativo, da Universidade Estadual de Campinas), entretanto sem

utilizarem o nome “doulas”. As doulas se autodescobririam anos mais tarde.

Iniciei trabalhando na preparação do parto, depois pedi autorização para participar dos

partos, como observadora, mas logo no início eu já fui pegando a mão (da parturiente),

fazendo massagem, apoiando o pai pra ser mais incluído. E aí fui fazendo curso de

massagem pra aprender como tocar as mulheres. Depois fiz terapias corporais, fiz formação

em psicodrama, especialização em terapia analítica junguiana, depois em terapia

transpessoal. Nesse processo todo não existia doula (com esse nome) em nenhum lugar. Eu

fui inventando minha forma de atuar e dez anos mais tarde, em um congresso da

Associação Brasileira de Psicologia Perinatal, um palestrante contou que esse apoio que se

fazia no parto tinha um nome e que era doula. Eu lembro que eu comecei a chorar e a

tremer. Daí eu pensei: acho que essa sou eu. Eu sou doula! (STAJANO, 2016)6

Como fruto do curso ofertado pela Dona, as primeiras doulas brasileiras certificadas se

organizaram e em abril de 2003 criaram a Ando (Associação Nacional de Doulas). Nos moldes da

Dona, a Ando atuava com formação, treinamento e certificação de doulas. Juntas, essas mulheres

criaram os primeiros cursos brasileiros de doulas e passaram a oferecê-los para outras mulheres. O

núcleo chegou, inclusive, a realizar cursos em parceria com o Ministério da Saúde durante o

governo de Luís Inácio Lula da Silva. Ainda que a categoria doulas não constasse nas políticas

públicas de assistência ao parto no período, havia um incentivo para capacitação de doulas

comunitárias no Hospital Sofia Feldman. Lucía conta que a Ando se fragmentou em 2009 pela

distância geográfica (elas não moravam no mesmo Estado) e pela baixa adesão de associadas.

Até o ano de 2011, o crescimento das doulas no Brasil deu-se de maneira lenta. O quadro

começou a transformasse quando no governo da presidenta Dilma Rousseff foi instituída pelo

Decreto 1.459, do Ministério da Saúde, a Rede Cegonha. Com os objetivos de: “fomentar a

implementação de um novo modelo de atenção à saúde da mulher e da criança”; “organizar a Rede

de Atenção à Saúde Materna e Infantil”; e “reduzir a mortalidade materna e infantil” (BRASIL,

2011), a Rede Cegonha tornou-se o primeiro programa dentro da política de atenção à saúde das

5Presidente da Organização Internacional MotherBaby Childbirth, membro da White Ribbon Alliance, educadora

internacional de parto Lamaze. Membro da Dona (Doulas of North American) Internacional. 6 Todas as falas de Lucía Stajano foram colhidas através de entrevista realizada pela pesquisadora em 27 de novembro

de 2016, durante a IV Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e Nascimento, em Brasília.

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mulheres a preconizar a existência da doula na assistência ao parto. O fato fortaleceu a categoria

que também utilizava-se do discurso da Rede Cegonha para legitimar sua existência. De acordo

com Marilda, presidenta da Associação de Doulas do Distrito Federal, nesse mesmo ano, o

Ministério da Saúde, via Coordenação da Área Técnica de Saúde da Mulher, liberou uma verba para

o projeto “Doulas no SUS”7 o qual seria implementado por regiões e visava, entre outros, colaborar

para disseminação das doulas, como tecnologia leve de apoio, na assistência ao parto.

Em 2011 saiu a verba. Saiu para a UFBA o dinheiro para fazer no Nordeste, para UFMA

fazer o Norte (apesar de pertencer ao Nordeste, a UFMA ia fazer o Norte, porque é uma

universidade mais atuante), para a Fiocruz fazer o sudeste, para a Rehuna e a UNB fazerem

no Centro-Oeste, e no Sul ia sair para a UFSC. Ninguém pediu o dinheiro, ninguém entrou

com o projeto, só nós. Em 2012 foi quando a gente lançou os cursos pelo Centro-Oeste.

(CASTRO, 2016)8

O programa Rede Cegonha surge acompanhando o contexto sócio histórico brasileiro. No

ano de 2000 o Brasil, junto com mais 189 países, assinou o compromisso de redução de 75% da

mortalidade materna até 2015 no documento Objetivos do Milênio. Entretanto, o impacto dessa

iniciativa não assumiu materialidade visto que permanecemos com elevadas taxas de mortalidade

materna. Entre 2000 e 2009, o coeficiente de mortalidade materna no país era de 65,13 mortes

maternas a cada 100 mil nascidos vivos, sendo o parto e o puerpério responsáveis por 17,1% dos

óbitos maternos (Ferraz e Bordignon, 2012).

A urgência em cumprir os compromissos internacionais (que não foram cumpridos em

2015) concomitantemente com o ativismo do Movimento pela Humanização do Parto e do

Nascimento (focalizado principalmente na Rehuna) que, nos últimos 10 anos, tem desenvolvido

estudos profícuos na tentativa de deslegitimar algumas práticas enraizadas nos saberes obstétricos

(reproduzidos pela a maioria das faculdades de Medicina), como a episiotomia, e de propagar novas

alternativas para as práticas de parturição colaboraram para a implementação da Rede Cegonha.

Diferente das demais políticas, a Rede Cegonha não foi recebida pelos movimentos em

defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres com a mesma satisfação. Enquanto a

representação da Rehuna comemorava a implementação da Rede Cegonha e afirmava-se como

colaboradora “para avanços na proposta de Humanização do Parto e Nascimento, que é atualmente

7 De acordo com o Sistema de Informação de Gestão e Projetos do Ministério da Educação, o projeto tinha como alvo

quatros eixos: a) potencializar a produção e circulação de conhecimento; b) cooperar na disseminação da Tecnologia

Simplificada de Apoio na Atenção ao Parto Normal; c) apoiar a estruturação de um Sistema de Aprendizagem em

Serviço e d) supervisionar a Didática e a Titulação. Disponível em:

<http://sigproj1.mec.gov.br/apoiados.php?projeto_id=99232>. Acesso em: 29 maio 2017 8 Todas as falas de Marilda Castro foram colhidas através de entrevista realizada pela pesquisadora em 19 de maio de

2016, durante a 2ª Convenção Nacional de Doulas, em Brasília.

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Política de Estado do Governo Federal (...) com o cognome Rede Cegonha”9, a da

Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (RFS) teceu duras

críticas a Rede Cegonha10, entendida como substituta da Política Nacional de Atenção Integral à

Saúde da Mulher (PNAISM)11, alertando que o programa representava um retrocesso de 30 anos de

conquistas para a saúde das mulheres.

Frente às críticas da RFS, Esther Vilela (coordenadora da pasta da Saúde da Mulher na

época) veio a público informar que era um equívoco a ideia de substituição já que a Rede Cegonha

era apenas um programa dentro do PNAISM. Ana Lúcia, a doula que atuava como consultora

técnica da área Saúde da Mulher, explica que embora a Rede Cegonha fosse apenas uma estratégia

os investimentos federais estavam focalizados no programa devido ao quadro de violências que as

mulheres grávidas enfrentavam durante gravidez-parto-puerpério.

Tínhamos (Brasil) uma mortalidade materna super elevada, ainda temos! E não só de morte,

mas de morbidade, principalmente, de causas evitáveis. Tínhamos, então, um caos na

assistência obstétrica e a necessidade de reformular todo o sistema. Desde formação dos

profissionais a gestão. (..) Rede Cegonha é um programa dentro da política. (...) E a Rede

Cegonha era o grande projeto, tinha financiamento, tinha fonte. (PINTO, 2016)12

Em 2013 as doulas foram reconhecidas pelo Ministério do Trabalho tendo sido incluídas na

Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). A inserção foi uma das primeiras conquistas das

doulas enquanto categoria organizada. Em 2014, o lançamento do 4º Volume do Cadernos

Humaniza SUS - Humanização do Parto e do Nascimento, desenvolvido e divulgado pelo

Ministério da Saúde, destinou capítulos para tratar das doulas no modelo de assistência ao parto

brasileiro. Nele, também consta a informação que em 2013 o Ministério da Saúde, em parceria com

a Rede Rehuna, realizou 162 cursos de doulas. O número de doulas no Brasil, entretanto, é um dado

difícil de precisar devido ao caráter descentralizado da formação das doulas. No mesmo ano, a

primeira Lei de Doulas (nº 7946) surgiu no Brasil na cidade de Blumenau (SC) com o objetivo de

garantir a presença das doulas nas instituições de assistência ao parto do município. Em 2015, no

Distrito Federal, nasceu a primeira associação com características de um movimento social

exclusivo de doulas. Marilda narra que o desejo de construir uma história própria das doulas, que

9Disponível em: <http://www.rehuna.org.br/index.php/seminario/eventos/57-iv-conferencia-internacional-de-

humanizacao-do-parto-e-nascimento>. Acesso em: 30 out. 2016. 10Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/entrevistas/rede-feminista-de-saude-rede-cegonha-e-um-retrocesso-de-

30-anos-nas-politicas-de-genero-saude-da-mulher-direitos-reprodutivos-e-sexuais.html>. Acesso em: 05 nov. 2016 11Durante o governo Lula (2003-2010), o PNAISM foi a principal diretriz no campo das políticas de saúde para

mulheres. 12Todas as falas de Ana Lucia Pinto foram colhidas através de entrevista realizada pela pesquisadora em 28 de

novembro de 2016, durante a IV Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e Nascimento, em Brasília.

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até então estavam mais imersas no movimento de humanização do parto e do nascimento, foi

fundamental para criação da associação.

Tínhamos que desenvolver o Manual das Doulas como produto das capacitações feitas. Foi

uma confusão para desenvolvê-lo. Eu não gostei do Manual. Meu nome saiu como revisora

junto com o de uma mulher da diretoria do Rehuna. Revisei com ela, mas ficou muito mais

com a cara dela, porque ela é a gestora. E ela me lembrava disso sempre. Isso foi uma lição

pra mim. Pensei: “Um dia a gente vai montar a nossa associação e vai deixar essa posição

na história, né”. (CASTRO, 2016)

A necessidade de protagonismo também é narrado por Juliana, diretora de formação e

pesquisa da Associação de Doulas do Rio de Janeiro, como um dos fatores que levaram a criação da

entidade em 2016, após a resolução do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj)

o qual determinou que apenas profissionais formados na área de saúde poderiam atuar dentro de

hospitais.

O que percebo é que as doulas estavam mais inseridas no movimento de humanização do

parto e nascimento com diversos profissionais, da área da saúde e outras. (...) Começamos a

nos perceber como um dos atores do cenário obstétrico e que não podíamos ficar em

segundo plano. (...) Citando o Rio de Janeiro, e acredito que o caso seja reflexo do Brasil,

como fomos só nós as impedidas de entrar nas maternidades pela resolução do Cremerj no

ano passado, não veio ninguém da humanização do parto (movimento) lutar pela gente. Se

não fosse a nossa luta estaríamos impedidas até hoje. (PINTO, 2017)13

Até dezembro de 2016, existiam representações de associações de doulas no Estados de

Santa Catarina, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraíba, São Paulo e no Distrito Federal. Além

da associação de Alagoas. Fica claro através da breve narrativa que a discussão sobre o movimento

de doulas também está engendrada no campo das políticas públicas, “na forma como se elaboram as

políticas institucionais que buscam normatizar e regular as relações”. (Gohn, 2007:42).

Movimento de doulas: um processo em construção

No Brasil, duas principais redes têm atuado na defesa do parto e nascimento humanizado: a

Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (RFS) e a Rede pela

Humanização do Parto e Nascimento (Rehuna). Como narrado, ambas mobilizaram debates, com

argumentos opostos, sobre o programa Rede Cegonha na época de seu lançamento. Embora com

pautas em comum, a diferença de perspectiva é clara a partir de seus objetivos.

Criada em 1991 (Saúde, 2002), a RFS desenvolve trabalhos políticos e pesquisas sobre a

saúde da mulher e direitos sexuais e reprodutivos. Autodeclarada feminista, para além do parto

13 Todas as falas de Juliana foram colhidas através de entrevista realizada pela pesquisadora em junho de 2017, através

de software online de comunicação.

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humanizado a Rede também tem como pautas o fortalecimento do movimento de mulheres, defesa

do Sistema Único de Saúde e descriminalização do aborto. A Rehuna, criada em 1993 (Rattner et

al, 2010), tem como pautas principais: divulgar práticas humanizadas de assistência ao parto e

nascimento (com base em evidências científicas), e incentivar através do conhecimento que as

mulheres tenham mais autonomia sobre seus corpos e partos.

Apesar de direcionamentos diferentes, em distintos momentos a RFS e a Rehuna foram

parceiras na construção de um ideário humanizado para assistência ao parto no Brasil14, tendo a

RFS lançado em 2002 o dossiê Humanização do Parto. Sendo o movimento de doulas novo,

tentamos identificar quem são suas sujeitas a partir do envolvimento do movimento com as Redes.

Gabriela, presidenta da Associação de Doulas de Santa Catarina, afirmou que a entidade não

se relacionava com nenhuma das duas, embora representantes da Associação tivessem participado

da última conferência da Rehuna em 2016. Já Juliana, narrou que a associação do Rio de Janeiro

tinha se filiado a Rehuna e não possuía vínculo com a RFS.

Ana Lúcia quando questionada sobre as redes não possuía dúvidas sobre a relação do

movimento de doulas com a Rehuna, tendo ainda ensaiado sobre a razão do afastamento do

movimento para com a RFS.

Vejo o movimento de doulas como de mulheres e não como feminista. Nem toda doula é

feminista, né. Por exemplo, uma das bandeiras da luta feminista é a descriminação do

aborto, do direito da mulher escolher não ter filhos, não parir normal (...) Então, o

movimento feminista bota a mulher na centralidade do processo e isso bate de frente com

uma parte do movimento, né. (PINTO, 2016).

Embora as entrevistadas se declarassem feministas, o entendimento que o movimento de

doulas é de mulheres foi unânime. Das entrevistadas que compunham diretorias de associações,

apenas Gabriela afirmou que a associação também se declara feminista. A centralização na pauta da

humanização do parto nascimento em detrimento duma visão integral da saúde da mulher também

foi majoritariamente apontada em outras falas.

Tem muita polêmica em relação aborto, sobre a autonomia da mulher mesmo. É muito

incrível como as próprias mulheres têm dificuldade em lutar pela a sua autonomia. E muitas

vezes o movimento se confunde: quer que as pessoas acreditem que o parto natural é

melhor e ponto, não tem discussão. Na verdade a gente tem que acreditar que as mulheres

vão saber o que é melhor para elas. (BAVARESCO, 2017)15.

14 É possível encontrar mais informações sobre no artigo ReHuna – Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento

(Rattner et al,2010). Disponível em: http://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/viewFile/849/812. Acesso

em: 29 maio 2017. 15 Todas as falas de Gabriela foram colhidas através de entrevista realizada pela pesquisadora em 19 de maio de 2017,

durante a 1ª Conferência Municipal de Saúde das Mulheres, em Florianópolis.

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Pensando no geral do movimento, do que conheço, ele é focado no materno-infantil. Não é

focado em outras questões dos direitos sexuais e reprodutivos, não é focado no

planejamento familiar, aborto, nem na perda gestacional (...). Às vezes a gente percebe que

quando uma doula se coloca como feminista ela causa um choque. Acho que isso parte da

identidade da doula, de onde ela vem (humanização, feminista, mãe). (PINTO, 2017).

Lucía conta que na criação da Rehuna ela e outras doulas estavam presentes, estando a

história das doulas ligada ao surgimento da Rehuna – fato que também explica a proximidade.

Entretanto, a não proximidade com a RFS parece estar mais ligada com a multiplicidade das sujeitas

que compõe o próprio movimento de doulas. Como enuncia Juliana, as doulas vieram de dois

movimentos distintos: humanização e feminista. Sendo o ciclo gravídico puerperal (ainda que nem

todas sejam mães) o ponto que as une. Assim, a narrativa discursiva do movimento parece estar em

processo de disputa à medida que as doulas eleitas enquanto representantes estão mais próximas do

movimento feminista que do da humanização. Vale destacar as falas de Gabriela e Juliana: se havia

dúvida sobre a ligação com a Rehuna, não havia nenhuma sobre o posicionamento feminista

individual. Outro fato importante é que recentemente, no 3º Congresso Nacional da Doulas

(Conadoulas), realizando em Brasília, de 25 a 28 de maio de 2017, as representantes redigiram uma

Projeto de Lei federal para as doulas o qual destacava o papel da categoria em situações de

abortamento legal.

O movimento de doulas e questões de direitos sexuais e reprodutivos

As políticas de saúde para as mulheres no século XX, segundo Costa (1999) podem ser

classificadas segundo dois paradigmas: o da saúde materno-infantil ou materno infantilismo e o da

saúde da mulher. O primeiro limitava-se ao atendimento no pré-natal, parto e puerpério (ciclo

grávido-puerperal), e pode ser representado pelo Programa de Saúde Materno Infantil (PSMI), entre

os anos de 1975 a 1983. Com uma tendência a biologizar os corpos das mulheres, o PSMI tem

como foco o binômio “mãe-filho”. O segundo, emerge em 1983, constitui-se de um conjunto de

diretrizes e princípios destinados a orientar toda a assistência oferecida às mulheres das distintas

faixas etárias, etnias ou classes sociais, nas suas necessidades epidemiologicamente detectáveis -

incluindo as demandas específicas do processo reprodutivo e recebeu como nome de Programa de

Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM).

Nos anos 2000, incorporando os debates sobre gênero, é lançada a Política Nacional de

Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) que contou com a participação dos movimentos de

mulheres e de feministas para sua elaboração. A abordagem integral permanecia na PNAISM e as

questões de gênero na saúde, principalmente o que diz respeito a gênero e suas interseccionalidades

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na saúde das mulheres, eram abordadas. Assim, em busca de uma equidade a PNAISM ressalta a

importância de uma assistência que leve em consideração as especificidades das mulheres

indígenas, negras, trabalhadoras rurais, lésbicas, na adolescência e no climatério

Analisando os objetivos específicos da PNAISM é possível dividi-lo em três frentes de

atuação: planejamento reprodutivo no âmbito da atenção integral, atenção humanizada obstétrica e

neonatal (situações de abortamento legal se incluem aqui) e redes de apoio contra a violência em

mulheres. Como explicado, o Programa Rede Cegonha está inserido dentro do PNAISM como

estratégia para mudanças no cenário obstétrico.

Quando questionadas sobre as pautas do movimento de doulas as respostas foram as mais

variadas, da organização da categoria à construção de um sistema anticapitalista. Dentro dos

direitos sexuais e reprodutivos, uma foi unânime: combate à violência obstétrica16. Dialogando com

Alvarez et al (2003), a partir das falas, categorizamos em duas as práticas desenvolvidas pelo

movimento de doulas em busca de uma cultura de não violência obstétrica: advocacy de políticas

(ativismos com objetivo de fomentar políticas de gênero em instituições governamentais) e

identidade-solidariedade (práticas centradas em ideários de solidariedade com outras mulheres).

Talvez por não virem exclusivamente do movimento feminista, no qual as articulações com

o Estado causam tensões17, a inserção dentro do Estado foi uma tática das doulas antes mesmo de se

configurarem como movimento social, como informa Marilda: “Em 2011, nós pensámos em colocar

uma doula pra falar sobre políticas que favorecessem a nós e as mulheres no Ministério da Saúde.

Conseguimos, só que ela tinha um jeito pouco amistoso e acabou sendo expulsa. Daí, as doulas

ficaram de fora”.

Em Santa Catarina, antes da formação do movimento, as doulas conseguiram a aprovação de

uma lei estatal que garantiu a entrada delas nas instituições de saúde públicas e privadas do Estado.

Em Brasília, a lei só foi sancionada após criação e pressão da associação. Já no Rio de Janeiro, a

associação foi criada quase que ao mesmo que a Lei de Doulas (nº 7314) sancionada em 16 de

junho de 2016, fato que deu início ao processo de auto-organização da categoria.

Quando saiu a resolução do Cremerj, nós tínhamos uma doula trabalhando na Assembleia

Legislativa do Rio de Janeiro, que hoje é a presidenta da associação, aí fomos caçar se

existia algum projeto de lei que falava sobre as doulas. Ela achou e fomos batendo de porta

em porta nos gabinetes dos deputados, explicando o que a doula faz, o motivo dela ser

importante no cenário obstétrico, a realidade da assistência ao parto no Brasil e aí o

16No Brasil, de acordo com Abramo (2010), 1 em cada 4 mulheres passou algum tipo de violência durante a assistência

ao parto. 17 É possível encontrar mais sobre o assunto em Encontrando os feminismos latino-americanos e caribenhos. (Alvarez

et al 2003)

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movimento se formou mesmo. Conseguimos derrubar a resolução, aprovar a lei e fundar a

associação. (PINTO, 2017)

Além de Santa Catarina ser o primeiro a sancionar a Lei de Doulas (nº 16869), em 15 de

janeiro de 2016, o Estado também foi pioneiro ao sancionar em 17 janeiro de 2017 uma lei que

tipifica violência obstétrica (nº 17097). Gabriela explica que o processo para aprovação da lei

ocorreu ainda em 2013, como resposta ao caso Adelir Torres (mulher que, em trabalho de parto, foi

levada por policias contra sua vontade e obrigada a fazer uma cirurgia cesariana). Após as

manifestações civis, doulas e outras mulheres ligadas ao movimento feminista e da humanização

começaram um diálogo com as parlamentares na tentativa de encaminhar um projeto de lei sobre a

violência obstétrica.

No movimento final, da pressão para a aprovação da lei, a Adosc esteve junto. Tínhamos

muitas doulas nas sessões das comissões, porque em volume conseguíamos mostrar que

essa lei era importante. Juntando as doulas com outras pessoas da humanização tínhamos

20, 30 pessoas. Quando a gente apresentou em 2013 eram pouquíssimas pessoas, vindas de

vários lugares diferentes, não tínhamos nem como mostrar que tinha um volume de gente

interessada no tema. (...) Eu particularmente gosto de fazer a interlocução com o Estado.

(BAVARESCO, 2017)

No Distrito Federal, a deputada Erika Kokay (PT) participou das duas últimas conferências

nacionais de doulas tendo firmado o compromisso de levar para tramitação federal a Lei das

Doulas. Além do diálogo com parlamentares, as doulas também estão inseridas em instâncias de

controle social. No Rio de Janeiro, a associação tem representação nas Conferências de Saúde da

Mulher, Fórum perinatal e Fórum das Maternidades da Secretaria Municipal de Saúde. Em Santa

Catarina, Gabriela foi eleita a delegada para Conferências Estadual de Saúde da Mulher de 2017.

No que diz respeito a identidade-solidariedade, as formas de ativismo encontradas foram:

rodas de conversa em Unidades Básicas de Saúde, Grupos de apoio gratuitos a gestante em espaços

privados da cidade, cine-debate para formação e conscientização em pontos centrais das capitais,

voluntariado em hospitais de zonas periféricas com vistas a horizontalizar o acesso ao trabalho das

doulas. As ações são orientadas com vistas a propagar a informação, ponto que parece central para o

movimento para promover não só a autonomia das mulheres como também a melhoria da

assistência.

Considerações finais

Embora a história do movimento de doulas seja recente, a narrativa da trajetória das doulas

entrevistadas nos permite inferir o protagonismo delas na construção de uma cultura de não-

violência obstétrica. Sendo majoritariamente motivadas por suas experiências pessoais enquanto

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parturientes, iniciam ativismos individuais se inserindo em projetos de instituições públicas e

privadas. A disputa pela consolidação de seu papel (num modelo obstétrico tecnocrático e violento

como é o brasileiro) é o principal motivo de auto-organização da categoria, que, no entanto,

mantem-se na defesa do ideário da humanização do parto e do nascimento e, por conseguinte, do

fim da violência obstétrica.

Ainda há uma fissura discursiva no interior do movimento, mediado pelas representantes das

associações que buscam integrar o discurso da humanização do parto e nascimento com o feminista.

Saindo assim apenas do binômio materno-fetal e partindo para uma lógica integral no que diz

respeito aos direitos sexuais e reprodutivos. Enquanto movimento social, as representações em

instâncias de controle social e as tentativas de negociação com o Estado são formas de participação

que objetivam colaborar para a implementação das políticas públicas de saúde da mulher.

Embora as doulas entrevistadas estabeleçam uma forte autocrítica ao movimento de doulas

(devido às dificuldades em avançar em outros debates sobre direitos sexuais e reprodutivos, como a

descriminalização do aborto), ao negociarem formas de efetivação de políticas tanto para

humanização do parto e nascimento quanto para violência de gênero institucionalizada que é a

obstétrica, nos fica claro que o movimento atua em dois dos três eixos principais do PNAISM.

Nesse sentido, se ainda há um descompasso entre as políticas públicas de saúde da mulher e

a realidade obstétrica brasileira, acreditamos que a disputa prático-teórico do modelo de assistência

ao parto, conduz a mudanças no cenário obstétrico brasileiro.

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Acesso em: 22/05/2017

Movement of Doulas in Brazil: trajectory of the actresses in the construction of a culture of

non-obstetric violence

Abstract: This article narrates the formation of the contemporary movement of doulas

demonstrating how these women fall in building a culture of childbirth assistance, considered as

humanized, that does not perpetuate obstetric violence. With the perspective of feminist

epistemology and methodology (Haraway, 1995; Harding, 1993 and 2002; Salgado, 2008), five

semi-structured interviews were conducted with doulas who at different times and circumstances

had an active participation in the brazilian Movement of Doulas. We believe that the narrative of

the trajectory of these women in the movement brings both new elements for political activism in

the field of sexual and reproductive rights and visibility for the struggle of doulas.

Keywords: movement of doulas, humanization of childbirth, sexual and reproductive rights.

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