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1 Quilombos: os primeiros organismos de duplo poder do Brasil 1 Wagner Miquéias F. Damasceno 2 Resumo Trata-se de uma interpretação dos quilombos, sobretudo Palmares, à luz do conceito de duplo poder cunhado na literatura marxista. Para tanto, recuperamos os estudos sobre a quilombagem feitos por Clóvis Moura e Benjamin Péret e percorremos o percurso analítico aberto por Adelmir Fiabani ao coligir e descrever algumas das principais narrativas dos inimigos dos quilombos. Nossa hipótese é que os quilombos foram os primeiros e, até o momento, os únicos organismos de duplo poder no país. Para tanto, dedicaremos atenção à Palmares, argumentando que este quilombo foi a maior expressão da dualidade de poderes no território brasileiro. Palavras-chaves: quilombos; dualidade de poderes; Palmares; Clóvis Moura; Benjamin Péret. Para a construção da ideia de uma sociedade racialmente democrática, foi necessário que se reinterpretasse o passado colonial, diminuindo quando não invisibilizando o papel das revoltas negras na luta contra a exploração e a opressão. Por isso, é plenamente compreensível que alguém como o antropólogo Gilberto Freyre tenha dado tão pouca importância em sua obra às inúmeras revoltas negras e experiências quilombolas nos quatro séculos de escravidão no Brasil. Afinal de contas, a imagem de uma sociedade racialmente harmônica se torna mais tangível aos leitores quando não se fala das inúmeras revoltas negras que ocorreram de norte a sul do país. 1 Este texto é parte de nossa pesquisa de Doutorado, intitulada Raças, Classes Sociais e Trabalho: Uma análise marxista da questão racial no Brasil, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UNICAMP, sob a orientação doProf. Drº Ricardo Antunes. 2 Doutorando em Sociologia – UNICAMP Professor Assistente da Coordenadoria Especial de Museologia – UFSC

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• Quilombos: os primeiros organismos de duplo poder do Brasil1

• Wagner Miquéias F. Damasceno2

• Resumo

• Trata-se de uma interpretação dos quilombos, sobretudo Palmares, à luz do

conceito de duplo poder cunhado na literatura marxista. Para tanto,

recuperamos os estudos sobre a quilombagem feitos por Clóvis Moura e

Benjamin Péret e percorremos o percurso analítico aberto por Adelmir

Fiabani ao coligir e descrever algumas das principais narrativas dos

inimigos dos quilombos. Nossa hipótese é que os quilombos foram os

primeiros e, até o momento, os únicos organismos de duplo poder no país.

Para tanto, dedicaremos atenção à Palmares, argumentando que este

quilombo foi a maior expressão da dualidade de poderes no território

brasileiro.

• Palavras-chaves: quilombos; dualidade de poderes; Palmares; Clóvis Moura;

Benjamin Péret.

Para a construção da ideia de uma sociedade racialmente democrática, foi

necessário que se reinterpretasse o passado colonial, diminuindo – quando não

invisibilizando – o papel das revoltas negras na luta contra a exploração e a opressão.

Por isso, é plenamente compreensível que alguém como o antropólogo Gilberto

Freyre tenha dado tão pouca importância em sua obra às inúmeras revoltas negras e

experiências quilombolas nos quatro séculos de escravidão no Brasil. Afinal de contas,

a imagem de uma sociedade racialmente harmônica se torna mais tangível aos

leitores quando não se fala das inúmeras revoltas negras que ocorreram de norte a

sul do país.

1Este texto é parte de nossa pesquisa de Doutorado, intitulada Raças, Classes Sociais e Trabalho: Uma análise

marxista da questão racial no Brasil, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da

UNICAMP, sob a orientação doProf. Drº Ricardo Antunes. 2Doutorando em Sociologia – UNICAMP

Professor Assistente da Coordenadoria Especial de Museologia – UFSC

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Apesar disso, nas poucas linhas que dedicou ao tema, o próprio Freyre acabou

fornecendo uma pequena amostra da obsessão das classes dominantes em manter

os negros sob seu domínio:

Desde remotos dias coloniais que os homens de governo, no nosso país, preocuparam-se em proibir aos escravos e aos pretos não só a ostentação de jóias como a de armas, considerando-se que umas e outras deviam ser insígnias da raça e da classe dominante. As armas não foram consideradas só insígnias, como vantagens técnicas em caso de luta ou conflito de senhores com servos. Daí, provavelmente, o fato de ter se desenvolvido entre os negros e mulatos livres das cidades – sobretudo do Rio de Janeiro e do Recife – a arte da capoeiragem, através da qual indivíduos desarmados poderiam lutar vantajosamente com polícias e particulares armados (2003, p. 511).

A história da luta negra contra a classe dominante e o regime escravista foi

calculadamente omitida na literatura consagrada ao período colonial. Esta omissão

sedimentou um imaginário coletivo de que o povo brasileiro é historicamente passivo.

Se nas palavras de Marx, Paris era o “centro de gravidade social” da classe

operária francesa no século XIX (1983, p. 296), podemos dizer que a capitania de

Pernambuco era, além de núcleo econômico do regime escravista, o “centro de

gravidade social” dos negros escravizados no Brasil.

Localizado no território dos atuais estados de Pernambuco e Alagoas, o

Quilombo dos Palmares foi, segundo Clóvis Moura, “a maior resistência – social,

militar, econômica e cultural – ao sistema escravista” (1986, p. 48). Por isso, interessa

aqui tratar das lutas dos negros no período colonial, enfatizando a sua expressão mais

pujante: a quilombagem em Palmares.

Era Palmares, como já foi acentuado por Nina Rodrigues e Édison Carneio, uma imitação dos muitos reinos existentes na África, onde o chefe é escolhido entre os mais capazes na guerra e de maior prestígio entre eles. Esse rei governou até o ano de 1678 quando, havendo negociado a paz com os brancos, perdeu o prestigio entre seus pares e foi assassinado, tendo sido substituído por Zumbi, que passou à História como líder incontestável e herói de Palmares. Além do rei, porém a República era dirigida por um Conselho composto dos principais chefes dos quilombos espalhados pela região. Esse Conselho que constituía, ao que parece, a mais importante instância deliberativa da República, reunia-se periodicamente, quando havia assunto de interesse justificado e importado – a paz ou a guerra etc. – e funcionava na capital de Palmares, sob a presidência do rei Ganga-Zumba (MOURA, 1981, p. 186).

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Segundo o historiador Mário Maestri, estimativas isoladas sugerem uma ideia

aproximada de que, nos períodos de normalidade institucional, cerca de 2 a 5% da

população escravizada encontrava-se fugida, o que revelaria também a pressão da

fuga para os quilombos exercida sobre os escravizados. Considerando que Gilberto

Freyre se referia aos negros como “operários de cor” ou “operários africanos”3 a

provocação de Maestri é ainda mais instigante: “São muito raros os momentos em que

a ordem capitalista conheceu uma atividade grevista sistemática de tamanha

dimensão” (MAESTRI, 2005, p. 10).

Quilombagem e a luta por liberdade

Mas, afinal, o que era a quilombagem? Assumiremos aqui uma das melhores

definições conhecidas, feita por Clóvis Moura:

Entendemos por quilombagem o movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional. Movimento de mudança social provocado, ele foi uma força de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos níveis – econômico, social e militar – e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substituído pelo trabalho livre (1992, p. 22).

Para Moura (1992), a quilombagem expressou a contradição social

fundamental da época: entre os escravos e senhores. Era fenômeno anterior ao

movimento abolicionista e possuía um caráter mais radical, sem mediações entre a

sua dinâmica e os interesses da classe senhorial. Em suas próprias palavras:

“somente a violência, por isto, poderá consolidá-la ou destruí-la. De um lado os

escravos rebeldes; de outro os seus senhores e o aparelho de repressão a essa

rebeldia” (1992, p. 22).

Haviam guerrilhas, saques e diferentes manifestações de luta dos negros no

período colonial. Porém, de acordo com Moura, o quilombo era o “centro

organizacional da quilombagem”.

O quilombo aparece, assim, como aquele módulo de resistência mais representativo (quer pela sua quantidade, quer pela sua continuidade histórica) que existiu. Estabelecia uma fronteira social, cultural e militar contra o sistema que oprimia o escravo, e se constituía numa unidade

3Ver: (2003, p. 681); (2005, p. 322).

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permanente e mais ou menos estável na proporção em que as forças repressivas agiam menos ou mais ativamente contra ele […] Entendemos, portanto, por quilombagem uma constelação de movimentos de protesto do escravo, do qual partiam ou para ele convergiam e se aliavam as demais formas de rebeldia (MOURA, 1992, p. 23).

Acreditamos que Clóvis Moura (1992) conseguiu capturar, como nenhum outro

pesquisador, algo essencial da experiência dos quilombos: era uma organização

resultante das experiências de luta dos negros. Uma organização surgida da dinâmica

de lutas dos negros escravizados que mostrou-se, ao longo dos tempos e em

diferentes regiões, um polo aglutinador das demais “formas de rebeldia” de seu tempo.

Novamente, a quilombagem expressava a principal contradição social no Brasil:

entre escravos e senhores4. Era radical e anti-regime, “visto como uma transgressão

à ordem vigente” (FIABANI, 2005, p. 268). Sua composição social era

fundamentalmente de escravos, responsáveis pela produção social na colônia no

nascente sistema capitalista5.

Além disso, havia uma coletivização das terras entre os quilombolas. Conforme

asseverara o trotskysta francês, Benjamin Péret, “é provável que à necessidade de

defesa coletiva de cada mocambo correspondesse uma produção coletivizada, senão

totalmente pelo menos em parte, e baseada numa mão-de-obra servil” (2002, p. 130).

A maneira como se produzia, podemos dizer que era, na sua essência, um sistema de trabalho que se chocava com o latifundiário escravista tipo plantation que existia na Colônia, com níveis de produtividade muito mais dinâmicos e de distribuição comunitária que era a própria antítese da apropriação monopolista dos senhores de engenho e da indigência total dos escravos produtores (MOURA, 1988, p. 170).

Ademais, a quilombagem era também um movimento abrangente capaz de

incluir diferentes setores sociais explorados e oprimidos6.

Nele se incluem não apenas negros fugitivos, mas também índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar,

4Conforme Fiabani: “De um lado, estavam os trabalhadores negros lutando contra a expropriação de sua força de

trabalho. Do outro, a classe escravista empenhada no retorno dos produtores à escravidão. O quilombo foi

uma clara expressão da luta de classes na produção colonial” (2005, p. 23-24). 5“Transformou-se Palmares no mais sério obstáculo ao desenvolvimento da economia escravista da região”

(1988, p. 165). 6Havia, como registra Clóvis Moura, esparsos contatos entre negros escravizados em diferentes países, mostrando

um incipiente internacionalismo do movimento de quilombagem (1992, p. 27).

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mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas (MOURA, 1992, p. 25).

A quilombagem era, nas palavras de Moura, um verdadeiro “cadinho de

perseguidos pelo sistema colonial” (1992, p. 25)7. Uma organização que abalava o

nascente modo de produção capitalista em seu polo colonial contrapondo-se ao

regime de dominação colonial de tipo escravista.

Como dito anteriormente, Clóvis Moura foi aquele que mais avançou na

compreensão sobre a quilombagem e os quilombos, especialmente ao valorizar a

condição de organização dos quilombos negros. Mas, ainda assim, é preciso dizer

algo mais sobre os quilombos para restituir-lhe o estatuto social que a historiografia

dominante lhe furtou.

Por suas principais características, interpretamos os quilombos como

organismos de duplo poder. Designamos por dualidade de poderes um fenômeno

político e social que se materializa em organismos de duplo poder que rivalizavam em

poder com as instituições socialmente dominantes. Estes organismos, por sua vez,

podem assumir diferentes feições e tamanhos, de acordo com cada tempo e formação

social.

Na História da Revolução Russsa, Leon Trotsky dedicou um capítulo8

específico para tratar do tema da dualidade de poderes, avançando com muita

originalidade ao conceber o surgimento desses organismos em diferentes momentos

da história.

Segundo Trotsky, a dualidade de poderes seria produto e manifestação de “um

estado particular de uma crise social” presente em todos os modos de produção na

história. E, como esclarece, “o regime de duplo poder surge a partir de um conflito

irredutível das classes, e só é possível, em consequência, numa época revolucionária

e constitui um dos elementos essenciais desta”.

Nossa hipótese é que, os quilombos foram os primeiros e – até o momento –

os maiores organismos de duplo poder vistos na história do Brasil.

7“Outra característica, conforme já assinalamos, era a interação com alguns segmentos e núcleos oprimidos pela

sociedade escravista: pequenos proprietários, agricultores, comerciantes, regatões e mascates de um modo

geral” (MOURA, 1986, p. 21). 8Ver: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap11.htm.

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Não nos é possível, e também não é nosso objetivo, verter toda as pesquisas

sobre os quilombos brasileiros. Julgamos apenas conveniente trazer algumas

descrições sobre estes organismos feitas, em diferentes períodos do Brasil, para dar

mais substância à nossa caracterização, centradas em Palmares.

Para tanto, utilizaremos num primeiro momento algumas descrições feitas por

aqueles que comemoraram a queda de Palmares e defendiam o regime escravista,

percorrendo o caminho trilhado pelo historiador Adelmir Fiabani em seu livro Mato,

Palhoça e Pilão (2005).

Palmares e o pavor branco

Contemporâneo do quilombo dos Palmares, o historiador português Rocha Pita

(1660-1739) fora um apoiador incondicional da escravidão negra e apologista da

repressão dos escravistas aos quilombolas. Destes, dizia que fugiam “aos senhores

de quem eram escravos, não por tiranias que neles experimentassem, mas por

apetecerem viver isentos de qualquer domínio” (apud FIABANI, 2005, p. 40).

Rocha Pita fora, talvez, um dos primeiros a descrever o recurso dos

quilombolas às armas:

Com segredo […] dispuseram a fuga e a executaram, levando consigo algumas escravas, esposas e concubinas, também cúmplices no delito da ausência, muitas armas diferentes, umas que adquiriram, e outras que roubaram a seus donos na ocasião em que fugiram (apud FIABANI, 2005, p. 41).

Rocha Pita engrandeceu o Governador de Pernambuco quando este ordenara

a destruição de Palmares, a qual chamava de “República rústica e a seu modo bem

ordenada” (FIABANI, 2005, p. 42).

Uma outra visão sobre os quilombos, agora no período imperial, adveio do

historiador alemão Heinrich Handelmann (1827-1891). Ele relata sobre a frequência e

disposição dos quilombos:

Existiram desde cedo, e certamente em todas as províncias do Brasil (o primeiro exemplo histórico conhecido foi na Bahia, em 1575, destruído pelo governador-geral dali, Luś de Brito de Almeida), e eram em toda a parte considerados uma muito desagradável e temida vizinhança para o fazendeiro; porque não somente os fugitivos, onde podiam, roubavam e danificavam as plantações, mas porque os seus próprios escravos se punham em relações com os quilombolas, lhes

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levavam o que eles precisavam e, afinal, cansados de trabalhar, se refugiavam também no quilombo (apud FIABANI, 2005, p. 47).

Para Handelmann, os quilombos eram enclaves9 dentro do regime escravista,

constituindo-se num “mau exemplo” capaz de desestruturar a organização das

propriedades. Por isso, Handelmann chamava o quilombo de Palmares de “Estado

negro” (FIABANI, 2005).

[…] nos primeiros anos da invasão holandesa em Pernambuco, 1630 e seguintes, quando se evadiu um grande número de africanos da escravidão dos portugueses, não sabemos precisamente quando, nem como; todavia, a circunstância de se haverem logo ajuntado e sujeitado a uma organização coletiva faz-nos supor que eram companheiros de tribo da costa de Angola, ou pelo menos malungos, isto é, companheiros de navio, que sempre conservaram uma grande solidariedade. […] em meados do século 17, havia o ‘Estado negro’ assim alcançado não pequeno grau de poder e florescimento; estava agora em condições de oferecer resistência às forças militares da capitania de Pernambuco (apud FIABANI, 2005, p. 48, grifo nosso).

Handelmann talvez fora o primeiro a compreender em sua inteireza o perigo de

Palmares para o regime escravista como “coisa que não podia de todo ser tolerada,

sem fazer perigar seriamente a existência da colonização branca brasileira; o dever

da própria conservação obrigava a exterminá-la” (apud 2005, p. 49).

A visão de que Palmares – o mais destacado dentre todos os quilombos – era

uma forma de organização social e política é emitida por muitos historiadores da

classe dominante, em diferentes períodos históricos. Nina Rodrigues foi mais um a

descrever Palmares como um “Estado negro” e a exaltar a repressão escravista sobre

os quilombolas. De forma sintomática, para o médico maranhense, Palmares era o

“novo Haiti”10:

A todos os respeitos menos discutível é o serviço relevante prestado pelas armas portuguesas e coloniais, destruindo de uma vez a maior das ameaças à civilização do futuro povo brasileiro, nesse novo Haiti, refratário ao progresso e inacessível à civilização, que Palmares vitorioso teria plantado no coração do Brasil (apud FIABANI, 2005, p. 58, grifo nosso).

9“Território, região, terreno ou reduto situado em território alheio: Os aliados tinham enclaves no território

inimigo”. 10Seria interessante analisar, comparativamente, as diferentes experiências de luta dos negros durante o período

escravista, no futuro.

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E, como não poderia ser diferente, nas poucas linhas que dedicou às lutas

negras, em sua vasta obra, Gilberto Freyre também exprimiu opinião negativa, porém

emblemática, sobre Palmares. Dizia de Palmares que se tratava de uma “ditadura

parassocialista” (2003, p. 149).

A partir da primeira metade do século XX surgiram autores como Édison

Carneiro, Benjamin Péret e Clóvis Moura que se notabilizaram por estudos sobre os

quilombos de caráter profundamente diferente daqueles que vimos acima.

Como assinalara Carneiro, Palmares era tido pelo poder escravista como o

principal inimigo de portas adentro:

Os Palmares constituíram-se no “inimigo de portas adentro” de que falava um documento contemporâneo, de tal maneira que o governador Fernão Coutinho podia escrever ao rei (1671): “Não está menos perigoso este Estado com o atrevimento destes negros do que esteve com os holandeses, porque os moradores, nas suas mesmas casas, e engenhos, têm os inimigos que os podem conquistar...” (2011, p. 07).

Assim, Palmares era mais do que um constante chamado à fuga, era “uma

bandeira para os negros das vizinhanças – um constante apelo à rebelião, à fuga para

o mato, à luta pela liberdade” (CARNEIRO, 2011, p. 07).

Benjamin Péret, quando no Brasil, escreveu importante ensaio sobre o

quilombo dos Palmares, em 1956. Um ensaio que se tornou conhecido apenas trinta

anos depois de sua publicação, através de Clóvis Moura.

Péret não teceu louvores aos colonizadores brancos, como a maior parte dos

analistas que o precederam. Ao contrário, reconheceu nos quilombolas seres

humanos em busca de sua liberdade roubada. Além disso, reconheceu em Palmares

uma organização que se enfrentava diretamente com o sistema colonial e, como

assinalara Fiabani (2005), foi o primeiro a analisar a luta dos quilombolas como uma

luta de classe.

Como trotskysta, viu o antagonismo inconciliável entre o quilombo e o

escravismo colonial ao dizer, por exemplo, que “os negros revelam-se inimigos

declarados dos brancos e travam com eles uma luta decisiva. Um dos dois deve

desaparecer, o quilombo ou os brancos” (2002, p. 126, grifo nosso). Além disso,

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conjecturou sobre as causas da derrota de Palmares, sob a influência da teoria da

revolução permanente11.

Teria o quilombo conseguido sobreviver se tivesse conseguido ultrapassar essa situação, arrastando todos os negros a um combate pela abolição do cativeiro no Brasil? Vimos que, na sua melhor época, o quilombo constituiu um apelo implícito à emancipação dos negros, mas esse apelo resultava da oposição que apresentava com a escravatura. Permaneceu sempre uma manifestação involuntária, produto automático da situação criada pela existência do quilombo. E este, por sua vez, fora engendrado pela força das circunstâncias. Nascera de um salve-se-quem-puder individual e não de uma ação refletida e combinada tendendo a transformar a sorte dos negros transportados ao Brasil (2002, p. 134-135).

Entretanto, acreditamos que o teor desta sua conjectura fundou-se na premissa

de que havia um regime de escravidão dentro de Palmares. À semelhança de Carneiro

(2011), Péret foi um dentre aqueles que erroneamente sustentaram que havia

escravidão em Palmares:

Inclinamo-nos, tanto mais, em acreditar que a evolução da fuga individual à reivindicação coletiva de abolição do cativeiro era impossível no século 17, quando os próprios negros haviam instituído a escravatura no quilombo […] o apelo que, em épocas anteriores, emanava dos Palmares perdia assim toda eficácia (2002, p. 135).

Concordamos com o historiador Mário Maestri, ao avaliar como improcedentes

as afirmativas de escravidão no interior da formação social palmarina. Em ensaio

sobre a contribuição historiográfica de Benjamin Péret, Maestri assim argumenta:

A escravidão produtiva era inviável em Palmares. Ao discutir a “escravidão” palmarina, Péret não atentou ao necessário desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção imprescindíveis ao nascimento da produção escravista. Os palmarinos viviam uma economia essencialmente natural. A [sic] uso da terra era livre. A produtividade da agricultura palmarina era baixa. O produtor palmarino garantia escassamente seu sustento e produziria um magro excedente (2002, p. 66).

11Péret chega a formular interessantes perguntas: “Teriam eles conseguido libertar os escravos do Brasil? Não é de

crer. Uma sublevação geral e simultânea nas capitanias de Pernambuco e de Alagoas poderia pôr à sua

disposição o armamento considerável dos seus senhores. Mas poderiam eles utilizar todos os tipos de armas

que caíssem em suas mãos, a artilharia por exemplo? Pode-se duvidar disso. Mesmo assim, a reivindicação

explícita da abolição da escravatura, sustentada de armas na mão, teria tido tão grande repercussão que a

emancipação dos escravos teria sido consideravelmente antecipada” (2002, p. 136).

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Por outro lado, Maestri12 destaca, também, que não haviam condições sociais

para o estabelecimento de uma organização escravista em Palmares:

Fortes antagonismos sociais internos levariam à rápida aniquilação de Palmares. É difícil compreender por que os palmarinos investiriam na repressão e coerção de segmentos sociais escravizados que lhes garantiriam um excedente econômico muito reduzido (2002, p. 66).

Diferentemente do proletariado industrial, classe social que viria a lhe substituir,

os trabalhadores negros escravizados viviam dispersos em unidades produtivas

afastadas entre si, o que lhes conferia uma considerável desvantagem organizativa

frente aos colonos brancos, gozadores do apoio de um Estado ultramarino.

Por fim, cumpre destacar que há um traço de subestimação de Péret acerca do

papel desempenhado pelas mulheres na organização quilombola e na auto-defesa

dos quilombos, ao não considerá-las como parte integrante desse contingente militar:

Foi a partir do momento em que os negros se viram na obrigação de enfrentar uma dupla tarefa, cada qual a exigir todos os seus esforços – a defesa dos Palmares e a agricultura – que tiveram de recorrer ao trabalho servil. É, contudo, provável que, no quilombo, a escravatura tenha sido precedida de um período de divisão do trabalho mais ou menos sistemática, uma parte da população dedicando-se à agricultura enquanto a outra a protegia. Sem dúvida, nesse momento, foram os campos confiados às mulheres (PÉRET, 2002, p. 129).

Em outra passagem é possível notar, mais uma vez, esta visão:

Na realidade, a palavra governo adquire um conteúdo um tanto concreto somente quando da introdução da escravatura nos Palmares. Para que fosse adotada essa medida, foi preciso que uma multiplicação dos combates obrigasse grande parte da população masculina a abandonar a lavoura pela defesa do quilombo. A partir dessa época, os Palmares revestem a forma definitiva, que conservarão até a sua dissolução (PÉRET, 2002, p. 132).

Ao contrário. As mulheres cumpriram importante papel na quilombagem,

projetando figuras do porte de Aqualtune e Dandara. No entanto, é necessário

reconhecermos que, mesmo no pouco que se disse sobre os quilombos, tratou-se de

“apagar” a importância das mulheres na quilombagem.

12Ademais, Maestri destaca que “a documentação conhecida não assinala ‘escravos’ palmarinos incorporando-se

às forças escravizadoras ou entregando-lhes informações, em troca da liberdade. Engana-se Péret: o ‘mulato’

que revelou o esconderijo de Zumbi era um de seus mais próximos homens, e não um escravo palmarino

traidor” (2002, p. 66-67).

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Ainda sobre o papel das mulheres nos quilombos, vale a pena lembrar as

observações de Clóvis Moura acerca da organização familiar e das relações sexuais

entre os quilombolas caracterizadas, pela força das circunstância, por poligamias e

poliandrias.

Palmares reproduzia, dentro das suas fronteiras, a desproporção de sexos existente na população escrava, isto porque os senhores preferiam comprar, para os trabalhos do cito, homens jovens e mulheres as quais erma destinadas à escravidão doméstica, cujo número era insignificante em relação à grande massa de escravos trabalhadores na agroindústria açucareira […] Calcula-se que para cada mulher havia três ou mais homens, com variações regionais. Este fato irá refletir na composição, por sexos, da população palmarina, com desequilíbrios evidentes na organização familiar (1988, p. 174).

Essa dupla organização assinalada por Moura (1988) no quilombo dos

Palmares (sexual e familiar), contribuiu para equilibrar a relação entre os gêneros e

para ordenar a família quilombola de forma diferente daquela surgida do casamento

monogâmico senhorial.

Considerações finais

Como vimos, todos aqueles que narraram a história social como um cortejo dos

vencedores sobre os vencidos, ao descreverem os quilombos e Palmares,

descreveram também o temor de classe que sentiam frente a uma organização cuja

existência questionava a escravidão e seu regime.

“Estado”, “Estado negro”, “República rústica”, “Novo Haiti” etc, todas estas

expressões aludem a um fenômeno político. Isto é, se referem ao poder.

Os quilombos foram organismos que surgiram da dinâmica das lutas, em

diferentes regiões e com diferentes tamanhos13. Nestes organismos os quilombolas

se armavam para promover sua autodefesa, organizavam a produção, a distribuição

de víveres, trocavam mercadorias e produziam formas de justiça quilombola14.

13“Esses quilombos tinham vários tamanhos e se estruturavam de acordo com o seu número de habitantes. Os

pequenos quilombos possuíam uma estrutura muito simples: eram grupos armados. As lideranças, por isto,

surgiam no próprio ato da fuga e da sua organização. Os grandes, porém, já eram muito mais complexos”.

(1986, p. 17). 14Ver: Fiabani (2005, p. 51-52).

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Palmares era um Estado apenas na medida em que todo organismo de poder

traz consigo uma forma estatal embrionária, com justiça própria, armamento popular

etc. Não era uma forma estatal acabada, posto que não haviam divisões de classes

internas que lhe exigiam.

Tendo optado pela luta contra os brancos, o quilombo não podia deixar de tirar as consequências imediatas de sua escolha. Esta implicava uma organização militar, um comando, uma tática, uma estratégia, por todos admitidos e unificados, bem como um serviço permanente de guarda e de informações. Isto não significa de modo algum que os negros dos Palmares tivessem conseguido uma organização perfeita (2002, p. 126).

Ao longo da história, diferentes organismos de duplo poder foram criados como

mecanismos de luta organizada contra a exploração em uma dada formação social. A

existência desses organismos põe em xeque as instituições de poder vigentes,

abalando profundamente o regime de dominação. A partir daí, a sorte de uma dada

sociedade passa, então, a coincidir com o desenlace da luta encarniçada entre os

organismos de poder, sem possibilidade alguma de conciliação.

Nestes casos, a impossibilidade de conciliação social não decorre apenas do

programa ou exigências políticas que o organismo insurgente empunha. Mas,

sobretudo, por terem à testa a classe social explorada acaudilhando os demais

setores explorados e oprimidos armados.

E isto se aplicava a Palmares, onde os negros trabalhadores eram o eixo

político e social e acaudilhavam os demais setores explorados e oprimidos armados

num “cadinho de perseguidos pelo sistema colonial”. Assim nos fala Moura,

reproduzindo a descrição de Duvitiliano Ramos sobre Palmares:

que a sociedade livre era regida por leis consagradas pelos usos e costumes; que não existiam vadios nem exploradores nos quilombos, mas, sim, uma ativa fiscalização como sói acontecer nas sociedades que se formam no meio de lutas, contra formas ultrapassadas de relações de produção; que, em 1697, já existiam, nascidos e crescidos, habituados àquele sistema, nos quilombos, três gerações de brasileiros natos, somando provavelmente a população de dezesseis aldeamentos para mais de vinte mil indivíduos (1986, p. 38-39).

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Clóvis Moura acertadamente demonstrou que a quilombagem foi um dos

elementos mais importantes “no desgaste permanente, quer social, econômico e

militar, no processo de substituir-se o trabalho escravo pelo assalariado” (1992, p. 32).

Defendemos que os quilombos foram os primeiros e – até o momento – os

maiores organismos de duplo poder vistos na história do Brasil. E avaliamos que isto

é de particular importância, para negras e negros brasileiros.

Leon Trotsky deu grande importância à existência e desenvolvimento dos

organismos de duplo poder em suas elaborações. De tal sorte que, no Programa de

transição da IV Internacional (2008), disse destes que eram o “ponto culminante do

período de transição”. Analisar, em retrospectiva, as experiências quilombolas nessa

ótica pode nos permitir criar pontes entre uma tradição negra de luta e as táticas e

estratégias do proletariado negro, no presente.

Referências

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