quilombos no sul do brasil

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Laudos Periciais em Antropologia. Ilka Boaventura Leite, Raquel Monbelli, NUER, UFSC

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  • -/~ \ BOLETIM INFORMATIVO DO NUER J\ VOL.3 N3 2006

    Quilombos no Sul do Brasil

    Percias Antropolgicas

  • ~

    'j\ I ' f\NUER

    Realizao

    Projeto Quilombos no Sul do Brasil

    Convnio NUERIUFSC-INCRNSC e RS

    Coordenao de edio

    llka Boaventura leite

    Organizao

    llka Boaventura leite

    Raquel Mombelli

    Ricardo Cid Fernandes

    Diagramac;o e Arte

    Joo Henrique Moo

    Reviso

    Ana Luzia Dias Pereira

    Colaboradores

    Alexandra Alencar

    Lua na Teixeira

    Vanda Pinedo

    Milena Argenta

    Apoio

    INCRNSC e RS

    CNPq

    O Boletim Informativo no3 "Quilombos no Sul do Brasil: percias antropolgicas" uma publicao do NUER

    -Ncleo de Estudos sobre Identidades e Relaes lntertnicas, que faz parte do Laboratrio do Departamento e

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Endereo

    Ncleo de Estudos de Identidades e Relaes lntertnicas- NUER

    Caixa Postal 5245

    Ag. Campus Universitrio!UFSC- Trindade

    Florianpolis- SC- Brasil

    88010-970

    Fone/Fax: (48) 3331 9890 ramal20

    Email: [email protected]

    WWVI/.nuer.ufsc. br

    Boletim Informativo NUER/ Ncleo de Estudos de Identidade e Relaes lnte-rtnicas- v.3, n.3- Florianpolis, NUER/UFSC, 2006.

    1. Antropologia- Peridicos. 2. Qui!ombos- Peridicos. 3. Direito Agrrio - Peridicos. 4.Relaes !ntertnicas - Peridicos 5. Percia Antropolgica - Peridicos

    coo 305.8 909.04

  • SUMARIO

    I. Apresentao ................................................................................................. 5 Fronteiras territoriais e questes tericas: a antropologia como marco .......................... 7 1/ka Boaventura Leite e Ricardo Cid Fernandes

    11. Relatrios Antropolgicos ........................................................................... 17 lnvernadadosNegros .................................................................................................... 19 Raquel Mombelli Jos Bento

    So Roque .................................................................................................................... 131 Ricardo Cid Fernandes, Cindia Bustolin, Lua na Teixeira

    Casca ............................................................................................................................ 187 1/ka Boaventura Leite

    Mapasdosterritrios ................................................................................................... 263

    III. Instituies federais e movimentos sociais: a regularizao fundiria dos qui lombos ..................................................... 279

    Os qui lombo/as no Sul do Brasil: aplicando o Decreto 4887103 atravs do Convenio !NCRA-UFSC-JooPauloLajusStrapazzon ....................................................... 280

    A questo qui/ombola e o ordenamento jurdico brasileiro- Marcelo Beckhausen ............... 283

    O Direito dos Remanescentes das comunidades dos Qui/ambos s Terras Ocupadas e a Atuao do Ministrio Pblico Federal- Maurcio Pessuto ............................................. 287

    A Trajetria do INCRA-RS na Aplicao do Decreto 4887103-Jos Rui Tag!iapietra .. ............. 290

    Um Olhar Sobre a Questo Quilombola- Ubirajara Carvalho Toledo ................................... 297

    Depoimento de Vanda Gomes Pinedo .............................................................................. 299

    IV. Anexos ...................................................................................................... 303 AlnstruoNormativan.21 do INCRA ........................................................................... 304 Comentrios de Claudio Braga ...................................................................................... 308

  • Apresentao

    FRONTEIRAS TERRITORIAIS E QUESTES TERICAS:

    A ANTROPOLOGIA COMO MARCO 1/ka Boaventura Leite e Ricardo Cid Fernandes

    A elaborao de estudos com o objetivo de subsidiar polticas governamentais instau-J-\ra, para os antroplogos e demais pesquisadores, novos e complexos parmetros de

    pesquisa. Por um lado, trata-se de interagir com as tenses estruturais entre Estado e Sociedade. Por outro, trata-se de encarar desafios incorporando recursos analticos criados em diferentes tradies tericas e propondo novos instrumentos, compatveis com as demandas que emergem das lutas sociais.

    A teoria antropolgica vem desempenhando um papel importante neste cenrio, contribuin-do com a construo de uma nova dimenso do direito brasileiro: o direito tnico. A anlise da especificidade cultural, um marco da teoria antropolgica, ultrapassa fronteiras interpretativas e invade o campo das diretrizes polticas e do ordenamento jurdico. O respeito diversidade tni-ca e cultural, amparado em preceitos constitucionais de inmeros pases e reafirmado no direito internacional, emerge como uma importante condio para a conquista da almejada e por vezes utpica cidadania. Inserir nas prticas administrativas e jurdicas a sensibilidade diversidade cultural no tarefa tampouco mrito exclusivo da antropologia. Contudo, desde seus primrdios o conhecimento antropolgico vem propiciando significativas ferramentas tericas que funda-mentam direitos territoriais, sucessrias, patrimoniais, polticos, ampliando aes legais de efeti-vao dos direitos humanos. O momento atual caracteriza-se por uma profunda reviso de prin-cpios que organizam e configuram a sociedade brasileira, dentre eles destaca-se a reafirmao da cultura africana, afro-brasileira, negra e quilombola no Brasil. Neste contexto a antropologia tem sido chamada a refletir sobre e a interagir com processos que fundem teoria, polticas de Estado e movimentos sociais.

    O grande desafio posto antropologia o de se integrar hermenutica do social e cultural que emerge dos movimentos reivindicatrios que lutam pelo seu reconhecimento no campo dos

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    BOLETIM INFORMATIVO DO NUER - VOL. l N l 2006

    direitos sociais e polticos. Integrao aqui implica no estabelecimento de dilogos com as cin-cias jurdicas, que embasam os dispositivos legais e os aplicam em processos que visam mediar ou deliberar sobre conflitos envolvendo interesses antagnicos na sociedade brasileira. Para a antropologia, o dilogo com os diferentes setores da sociedade , ao mesmo tempo, parte de seu papel histrico e uma tradio de pesquisa. A etnografia, nossa ferramenta de pesquisa, valoriza e busca destacar as vozes provenientes de lugares subalternos, que somente podem ser depreen-didas ou reveladas pelas suas trajetrias e projetos de dimenso coletiva, pelas experincias que se consolidam a partir de percursos e verses compartilhadas e, portanto, por formas sociais que fixam valores e padres identitrios com base em pertenas.

    A literatura antropolgica vem fornecendo um amplo campo interpretativo sobre o fen-meno dos grupos tnicos nos diversos perodos e relaes que compem a modernidade tardia. O colonialismo destes tempos configura-se enquanto modalidades do exerccio do poder que se re-produzem nas fronteiras internas das naes, expondo grupos subalternizados numa escala plane-tria nunca antes vista. O conceito de grupo tnico emergiu como possibilidade de problematizar a construo das fronteiras internas e no como programa de reclassificao populacional. A pro-blematizao da condio indgena, cigana ou negra a partir deste conceito deve-se principalmente percepo de que estas condies histrico-sociais constituem processos identitrios cujo padro organizativo torna discernvel, compreensvel, os prprios sujeitos. Visibilizados como excludos histricos, estes sujeitos ingressam legitimamente na ordem jurdica: so grupos tnicos enquanto valorizam a crena na origem comum e a estabilidade de expresses culturais prprias.

    desta tradio que emergem os pareceres e percias antropolgicas que visam ampliar o campo interpretativo e o corpus jurdico em construo na sociedade brasileira atual. No Brasil h uma trajetria histrica da ligao entre a antropologia e a formulao de polticas pblicas - so significativas as contribuies no campo dos estudos sobre sociedades indgenas e seu pa-pel pioneiro na elaborao dos relatrios de identificao territorial. Embora possamos constatar uma trajetria histrica de longo alcance, a demanda pela realizao de laudos periciais em an-tropologia foi sobremaneira impulsionada com a promulgao da Constituio Federal de 1988. Efetivamente, a concepo de um Estado de Direito pautado pelo respeito aos direitos individuais e coletivos implica na criao e implementao de mecanismos de gesto sensveis s realidades e demandas oficiais locais. Assim, em menos de duas dcadas, a produo de laudos periciais antropolgicos se multiplicou exponencialmente.

    Atualmente, antroplogos so procurados tanto para qualificar demandas sociais locais, quanto para aferir a legitimidade de determinadas demandas. Grosso modo, tanto o Estado, quan-to a sociedade, procuram na argumentao antropolgica subsdios para seus planejamentos e aes. Neste contexto, coexistem laudos periciais resultantes da relao profissional estabelecida entre antroplogos e diferentes agentes governamentais e no governamentais. H, de fato, antro-plogos trabalhando em/para ONGS, rgos de governo e empresas. A diversidade das modalida-des de laudos periciais e relatrios, assim como, a diversidade das formas de relao profissional implicadas, so objeto de intenso debate na comunidade antropolgica brasileira. Em pauta est a busca pelo estabelecimento de parmetros de execuo e avaliao que orientem no apenas a insero da antropologia em processos sociais de diferentes naturezas, mas tambm, a insero profissional do antroplogo neste crescente campo de atuao. Para a comunidade antropolgica brasileira este um tema de grande interesse, pois revela, ao mesmo tempo, a importncia e o alcance das anlises antropolgicas e da antropologia enquanto um campo de conhecimento em fase de completar o seu processo de profissionalizao.

  • Apresentao

    Os primeiros relatrios sobre territrios quilombolas produzidos no Brasil tm pouco mais de uma dcada. O perodo atual ainda pode ser visto como etapa inaugural e pioneira. Os traba-lhos de percia precisam ser divulgados, discutidos, contextualizados e amplamente debatidos, para que o campo se consolide e este instrumento seja cada vez mais eficaz no contexto e objeti-vos a que se propem. A principal contribuio da Antropologia se d atravs do reexame destas questes nas pesquisas e anlises focadas em estudos in loco dos processos pelos quais emergem os grupos negros identificados com uma terra brasileira, portanto, destes grupos enquanto forma-dores do Brasil como Nao. Ao descrever e problematizar as concepes de direito que orientam a constituio dos grupos e o acesso terra, as pesquisas antropolgicas dialogam com o campo jurdico, discutindo os efeitos legais das normas e procedimentos adotados. Dialogam tambm com o poder pblico, atravs do exame das aes de incluso e cidadania, as quais envolvem principalmente a regularizao fundiria dos territrios quilombolas.

    A expresso "comunidade remanescente de quilombos" passou a ser veiculada no Brasil principalmente no final da dcada de 80, para se referir s reas territoriais onde passaram a viver os africanos e seus descendentes no perodo de transio que culminou com a abolio do regi-me de trabalho escravo, em maio de 1888. Alm de descrever um amplo processo de cidadania incompleto, veio tambm sistematizar um conjunto dos anseios por aes em polticas pblicas visando reconhecer e garantir os direitos territoriais dos descendentes dos africanos capturados, aprisionados e escravizados pelo sistema colonial portugus. As terras dos quilombos foram con-sideradas parte do patrimnio cultural desses grupos negros e enquanto tais deveriam ser alvo de proteo por parte do Estado. Contudo, a aplicao dos dispositivos legais passou a depender da compreenso sobre quem so os sujeitos dos direitos referidos no texto constitucional. Os debates suscitados pelo Artigo 68 levaram reviso de velhos estigmas e conceitos, presentes na literatu-ra e nos diversos sistemas classificatrios brasileiros que enfatizavam at ento, a miscigenao como fator predominante na constituio do pas, invisibilizando experincias concretas desses grupos em detrimento do imaginrio que instruiu os projetas polticos que promoveram a pacifi-cao nacional. A ideologia nacional focada na miscigenao como fator de embranquecimento impediu um tratamento compatvel com os problemas herdados do perodo colonial, dentre eles a prpria discriminao com base na idia de raa gerando desigualdades de tratamento no sistema jurdico e administrativo (Leite 2000).

    Como parte da prpria reflexo sobre o Centenrio da Abolio da Escravido no pas, as reivindicaes de organizaes de movimentos negros e setores progressistas, levadas Assem-blia Constituinte de 1988, resultaram na aprovao de dispositivos constitucionais concebidos como formas de compensao e/ou reparao opresso histrica sofrida (Leite 2000). A resse-mantizao do termo qui lombo veio a traduzir os princpios de igualdade e cidadania negados aos afrodescendentes, correspondendo, a cada um deles, os respectivos dispositivos legais:

    1- Quilombo como direito terra, enquanto suporte de residncia e sustentabilidade, h muito almejadas, nas diversas unidades de agregao das famlias e ncleos populacionais com-postos majoritariamente, mas no exclusivamente de afrodescendentes - CFB/88 Artigo 68 do ADCT- sobre "remanescentes das comunidades de quilombos";

    2- Qui lombo como um conjunto de aes em polticas pblicas e ampliao de cidadania, entendidas em suas vrias dimenses - CFB/88- ttulo I direitos e garantias fundamentais, ttulo II, cap. II- dos direitos sociais;

    3- Quilombo como um conjunto de aes de proteo s manifestaes culturais especfi-cas- CFB/88 -artigos 214 e 215 sobre patrimnio cultural brasileiro.

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    O Quilombo emerge como movimento identitrio nos anos 70 do sculo XX, fazendo referncia legislao e aos atos jurdicos que historicamente impossibilitaram os africanos e seus descendentes condio de proprietrios plenos. A inverso deste fato no plano dos direi-tos humanos, culturais e sociais, inscreve uma nova ordem na legislao brasileira dos anos 80, instaurando no plano do reconhecimento estatal novos sujeitos de direito. Expresso e palavra amplamente utilizada em diversas circunstncias da histria do Brasil, "Quilombo" foi primeira-mente popularizada pela administrao colonial, em suas leis, relatrios, atos e decretos para se referir s unidades de apoio mtuo criadas pelos rebeldes ao sistema escravista, bem como s suas lutas pelo fim da escravido no pas. Em seguida, foi tambm expresso dos afrodescendentes para designar a sua trajetria, conquista e liberdade, em amplas dimenses e significados. O caso exemplar o do Quilombo de Palmares, que resistiu administrao colonial por quase dois s-culos. Aps a abolio do sistema escravista colonial em 1888, o quilombo vem sendo associado luta contra o racismo e s polticas de reconhecimento da populao afrobrasileira, propostas pelos movimentos negros com amplo apoio de diversos setores da sociedade brasileira compro-metidos com os Direitos Humanos (Leite 2000).

    A problemtica das terras de quilombos, desde a promulgao da Constituio Federal, em 1988, e partir de fortes presses dos movimentos sociais negros, passou a envolver vrias aes e normatividades institucionais, administrativas e jurdicas, de mbito estadual e federal. O dispo-sitivo constitucional inspirou novos atos e aes de parlamentares de diversos partidos polticos, pareceres de juristas que integravam a Secretaria de Coordenao de Defesa dos Direitos Indivi-duais e Interesses Difusos (SECODID) e a 6a Cmara do Ministrio Pblico Federal. Ademais, surgiram novas pesquisas antropolgicas apoiadas pela Associao Brasileira de Antropologia (ABA). Desse modo, os debates sobre as formas possveis de aplicao do Artigo 68 e sua regu-lamentao em forma de lei ganharam em intensidade e visibilidade.

    O quilombo histrico inspira os grupos negros que reivindicam direitos territoriais e orientam as reivindicaes, aludindo "dvida histrica" que o Estado teria para com os afro-brasileiros. Ao priorizar a "comunidade" remanescente de quilombo e no o quilombola, ou o remanescente, o texto do artigo constitucional instrui a forma como a questo deve ser tratada no campo jurdico. Ou seja, o grupo e no o indivduo o que norteia a identificao destes sujeitos do ou dos direitos. O que deve ser contemplado nas aes , portanto: o modo de vida coletivo e a participao de cada um na vida coletiva o que d a esse suposto sujeito a possibilidade de fazer parte ser includo no processo de reconhecimento. Os usos e usufrutos da terra so aspectos que identificam o sujeito do direito. Em pesquisa realizada no incio da dcada de 80 em Vila Bela (MT), a antroploga Maria de Lourdes Bandeira (1988) chama a ateno para o fato de que uma das especificidades das comunidades negras que o acesso terra ir depender da condio de cada um como um membro do grupo e somente neste sentido que a terra ganha um lugar de destaque na territorialidade negra. A terra, evidentemente, crucial para a continuidade do grupo, do destino dado ao modo coletivo de vida destas populaes, mas no constitui o nico elemento para sua identificao. A territorialidade, porm, foi produzida historicamente em uma condio de alteridade instituda por um modelo especfico de segregao, sendo, portanto, relacional, con-textuai e dinmica. Quer dizer, a terra, base geogrfica, est posta como condio de fixao, mas no como condio exclusiva para a existncia do grupo. A terra o que propicia condies de permanncia, de continuidade das referncias simblicas importantes consolidao do imagin-rio coletivo e os grupos chegam, por vezes, a projetar nela sua existncia. Embora a terra seja cru-cial para reproduo social, os grupos no tm com ela uma dependncia exclusiva. Tanto assim

  • Apresentao

    que a literatura antropolgica registra inmeros exemplos de grupos que perderam a terra, mas que mantm noes de pertencimento que mobilizam a luta pela recuperao de seus territrios -como o caso do Paiol de Telha, no Paran. Trata-se, portanto de experincias de organizao social, que esto diretamente relacionados ao direito territorial, de formas de consanginidade e parentesco, relacionados ao direito sucessrio, e formas e expresses criativas que perfazem a memria coletiva relacionada aos princpios de identificao onde o fentipo atua como um valor operativo, mas no exclusivo no interior do grupo, ou seja dos direitos sociais e culturais Leite (2000).

    Diferentemente dos enfoques que abordam os quilombos exclusivamente como aconteci-mentos atrelados ao passado e ao sistema colonial, Clvis Moura (1981) ir abordar o quilombo como uma forma de organizao (1981), presente, portanto, em todos os lugares onde ocorreu a escravido. Para ele, esta a caracterstica mais significativa desta capacidade organizativa. Des-trudos dezenas de vezes, os quilombos reaparecem em novos lugares, como verdadeiros focos de defesa contra um inimigo sempre ao lado. Por isto mesmo o autor chega concluso que o quilombo vira fato normal na sociedade escravista e desta at os dias atuais. Esse "fato normal" levantado por Moura elucidativo da operacionalidade do termo para descrever o fenmeno na atualidade, j que o deslocamento, o assentamento, a expulso e o reassentamento em reas deter-minadas vem reafirmar mais do que uma exclusiva dependncia da terra, o quilombo faz da terra a metfora que possibilita a continuidade do grupo, expulso de seu habitat e inserido em outro mundo onde a sua condio humana plena lhe foi extrada e negada.

    O antroplogo Jos Jorge de Carvalho (1995) considera que as definies anteriores foram construdas da perspectiva da sociedade branca brasileira, no estando em questo, por-tanto, nenhuma simpatia ideolgica pela causa negra. Para ele fundamental - e est implcito em todas essas definies - a capacidade desses grupos de construir um territrio autnomo e demarc-lo simblica e geograficamente. Isso significa uma enorme capacidade de resistncia, tanto s investidas dos capites-do-mato quanto invaso de caboclos sertanejos e, finalmente, s tentativas mais recentes e racionalizadas de manipulao de cadeias dominiais por parte dos grandes proprietrios.

    O antroplogo Alfredo W. B. de Almeida (1998) aponta para a gnese de sua formao o perodo de transio da economia colonial, cuja unidade familiar suporta um certo processo produtivo singular, que vai conduzir ao acamponesamento, concomitante ao processo de desagregao das grandes fazendas voltadas para a exportao, principalmente as de algodo e cana de acar e a diminuio do poder de coero dos grandes proprietrios territoriais. Com a Abolio mudam-se os nomes e as tticas de expropriao e, a partir de ento, a situao dos grupos ctTesponde a outra dinmica, a da territorializao tnica como modelo de convivncia com os outros grupos na sociedade nacional. Inicia-se ento a longa etapa de segregao vivenciada pelos negros no Brasil, chegando at os dias aluais.

    A antroploga Neusa Gusmo (1995), em suas pesquisas sobre os qui lombos, afirma que as terras de pretos so constitudas com base em fatores tnicos, lgica endogmica, casa-mento preferencial, regras de sucesso e outras disposies que fazem da terra em comum um patrimnio. , assim, uma terra particularizada por fornecer ao grupo que dela usufrui meca-nismos prprios da identificao. tambm espao de atuao individual, familiar e coletiva. Pressupe uma tradio histrica e cultural compartilhada por grupos de descendncia comum, centrada no parentesco.

    Em artigo publicado posteriormente, a antroploga I!ka Boaventura Leite (2000) demons-11

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    BOLETIM INFORMATIVO DO NUER VOL. 3 N 3 2006

    tra que, enquanto uma forma de organizao, o quilombo revela que novas polticas e estratgias de reconhecimento se esboam na atualidade. Primeiramente, atravs da responsabilidade do grupo em definir pleitos com legitimidade e poder de aglutinao, de exercer presso e produzir visibilidade na arena poltica onde os outros grupos j se encontram. Importante considerar que desde os anos 30, os movimentos negros vm defendendo fortemente a idia de reparao e da abolio como "um processo inacabado" enfatizando a "dvida" em dois planos: a herdada dos antigos senhores e a marca que ficou em forma de estigma, seus efeitos simblicos, geradores de novas situaes de excluso. Abdias do Nascimento, por exemplo, senador da Repblica no perodo de redemocratizao e parlamentar constituinte em 1988, reescreve suas teses sobre o quilombismo, reivindicando uma memria anterior ao trfico e escravizao dos africanos. Es-creve: "o quilombismo busca o presente e o futuro e atua por um mundo melhor para os africanos nas Amricas, reconhecendo que esta luta no pode se separar da libertao dos povos indgenas tambm igualmente vtimas de racismo e da sua destruio desumana" (Nascimento, 1991:21-26). Define o quilombismo como um movimento poltico dos negros brasileiros, esclarecendo no se tratar de um modelo segregacionista, mas de um movimento que advoga o poder poltico realmente democrtico, implicando a presena da maioria afrobrasileira em todos os nveis de poder. Trata-se, neste caso, de um projeto que parte da idia de dispora, e como em outros grupos tnicos projeta-se para um contexto que transcende as fronteiras nacionais.

    Mais do que um tempo/espao do passado, do que a cor da pele ou o fentipo africano, o conceito quilombo diz respeito a uma forma organizativa. A normatividade jurdica integra-se e depende de um refinamento conceitua! da questo das terras de quilombo que provm do conhe-cimento mais detalhado das vrias situaes existentes e, portanto, da colaborao de diferentes reas do conhecimento cientfico. O dispositivo constitucional e a legislao infra-constitucional reconhecem a capacidade de auto-organizao e o poder de autogesto dos grupos. Isto significa tambm pensar o prprio grupo e a sua dinmica- as lutas internas, seus conflitos- como uma parte viva e pulsante da experincia de ser e estar no mundo. Isto significa tambm pensar a con-tribuio da antropologia na construo das dimenses tnicas do direito.

    Muitos dos problemas decorrentes dos primeiros processos de regularizao fundiria j em curso advm da dificuldade em identificar os sujeitos do direito e suas complexas demandas. As tenses entre as conceituaes histrica, antropolgica e jurdica de quilombo expressam uma complexa realidade social. A malha social sob a qual o conceito se debrua tambm revela as inmeras estratgias encontradas pelos grupos locais, dentre elas a prpria miscigenao, uma forma encontrada pelos descendentes de africanos para se introduzirem no sistema altamente hie-rarquizado, preconceituoso e excludente. As situaes que emergiram com o Artigo 68 trouxeram tona estratgias individuais e coletivas para a constituio dos territrios quilombolas nas dife-rentes regies do Brasil. Embora no sendo possvel uma generalizao, esta constatao permite estabelecer correlaes entre os padres de relaes intertnicas j examinados (Leite 2000). As pesquisas antropolgicas desenvolvidas at o momento vm contribuindo sistematicamente para a elucidao dos aspectos que compem a memria oral dos grupos, suas noes e usos das terras, regras de parentesco e usufrutos dos espaos sociais construdos, patrimnio cultural e noes de direitos - aspectos no suficientemente conhecidos ou incorporados pelos legisladores.

    O projeto "Quilombos no Sul do Brasil: estudos antropolgicos com vistas aplicao do Decreto 4.887/03", desenvolvido pelo Ncleo de Estudos sobre Relaes Intertnicas (NUER), atravs de convnio com o Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), con-figura-se como mais um passo dado pela antropologia na direo da reflexo sobre e da interao

  • Apresentao

    com processos que fundem teoria, polticas de Estado e movimentos sociais. Como a prpria cidadania quilombola, os resultados deste projeto apresentam mltiplos significados. Do ponto de vista da interlocuo entre diversos setores da sociedade brasileira e das comunidades quilombo-las, resultou na produo de relatrios circunstanciados sobre trs contextos para instruir os pro-cessos de regularizao fundiria: Casca (RS), So Roque (RS/SC) e Invernada dos Negros (SC). Do ponto de vista terico, este projeto propiciou a ampliao das pesquisas sobre a realidade qui-lombola do sul do Brasil iniciada no projeto "O Acesso Terra e a Cidadania Negra: expropriao e violncia nos limites dos direitos (1998-2004 /NUERCNPq), efetivando um campo de pesquisa e uma rea de conhecimento ainda em consolidao no Brasil. Do ponto de vista acadrrtico, houve significativa integrao entre pesquisadores de diferentes regies e instituies brasileiras, atravs da organizao e participao em seminrios, colquios e congressos, nacionais e internacionais, ativando o interesse e a formao de novos especialistas. Do ponto de vista da interveno social, o projeto Quilombos no Sul do Brasil representou um estmulo fundamental ao debate qualificado sobre este tema na sociedade brasileira, pois promoveu o encontro entre representantes de comuni-dades, pesquisadores, representantes do movimento social, agentes e autoridades institucionais. Nas comunidades, nas salas da Universidade Federal de Santa Catarina, nos gabinetes do lNCRA, nos auditrios do Ministrio Pblico Federal, nas Cmaras Municipais, nas Associaes de Remanes-centes de Quilombos ou nas rodas de chimarro, o Projeto Qui lombos no Sul do Brasil consolidou o dilogo entre perspectivas, fortaleceu a reunio entre cidados e instituies, dando um passo fundamental para um saber e uma prtica democrtica em construo.

    Aqueles que participaram do Projeto Quilombos no Sul do Brasil, moradores das comu-nidades quilombolas, antroplogos, gegrafos, historiadores, estudantes em geral, funcionrios de instituies governamentais e rrtilitantes dos movimentos sociais negros, tiveram aqui as suas vozes registradas. Este Boletim Informativo N.3 do NUER vem, portanto, apresentar alguns dos muitos resultados do referido projeto. Os nmeros anteriores do Boletim tambm so parte im-portante do Programa desenvolvido pelo NUER e enquanto tal tambm devem ser consultados como fonte de informao fundamental sobre o tema: o Boletim n' l, aborda a primeira etapa da elaborao do Artigo 68 e o n' 2 apresenta a legislao que regulamenta o referido Artigo. Agora, neste Boletim n' 3 buscamos divulgar os resultados das pesquisas elaboradas no NUER, os relatrios antropolgicos sobre as comunidades de Casca, So Roque e Invernada dos Negros e tambm os aspectos mais relevantes que integram as reflexes e experincias realizadas nas instituies e movimentos sociais negros que participaram do Convnio.

    Gostaramos de prestar a nossa homenagem e agradecimento especial aos nossos interlo-cutores das comunidades quilombolas, sem os quais nunca poderamos revelar os ricos univer-sos particulares de suas expresses identitrias, suas formas de conceber, elaborar, vivenciar e transmitir as experincias e exemplos hericos, nunca registrados em nossos livros de histria. Sobretudo de nos ensinar, atravs de profcuos e intensos dilogos, que ser quilombola no um simples rtulo para ter acesso s polticas pblicas, mas principalmente, um processo, um proce-dimento por vezes penoso, conflituoso, extremamente complexo, de recuperar a auto-estima para vir a ser protagonista das intensas lutas- por Reconhecimento e Justia- que esto sendo travadas na sociedade brasileira.

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    BOLETIM INFORMATIVO DO NUER VOL. 3 H" 3 2006

    Referncias Bibliogrficas:

    ALMEIDA, Alfredo Wagner Berna de. Terras de preto, terras de Santo, terras de ndio -uso co-mum e conflito. ln Cadernos do NAENUFPA. Belm, 1983, p.163-96 BANDEIRA, Maria de Lourdes. Territrio negro espao Branco: estudo antropolgico de Vila Bela. So Paulo: Brasiliense/ CNPq, 1988 CARVALHO, Jose Jorge (org.). O Quilombo do Rio das Rs: Histrias, tradies, lutas. Salva-dor: EDUFBA, 1995 GUSMO, Neusa M. M. Terra de Pretos, Terra de Mulheres- Terra, Mulher e Raa num Bairro Rural Negro. Braslia: Biblioteca Palmares, 1996 NUER .Boletim Informativo N.1: Regulamentao de Terras de Negros no Brasil. Florianpolis, NUER, 1996, 156p. __ .Boletim Informativo N.2 Territrios Quilombolas. Florianpolis, NUER, 2005, 266p. LEITE, Ilka Boaventura Leite. Quilombos: questes conceituais e normativas. Etnogrfica. Lis-boa, ISCTE, 2000; ver tambm (www.nuer.ufsc.br sesso artigos) __ O Legado do Testamento: a Comunidade de Casca em Percia. Porto Alegre, Ed. Da UFR-GS, Florianpolis, NUER,

  • II Relatrios

    Antropolgicos

  • Projeto Quilombos no Sul do Brasil - NUER

    INVERNADA DOS NEGROS -SC

    Sumrio

    Introduo .................................................................................................................................. 20 I . A comunidade ln vem ada dos Negros ..................................................................................... 26 1.2 Africanos e afrodescendentes no Planalto dos Campos Gerais ............................................ 30 2. A Comunidade da Invernada dos Negros: parentesco. descendncia e o direito terra ......... 40 3. As festas e os laos de compadrio no territrio da Invernada dos Negros ............................. 53 4. A territorialidade sagrada: religiosidade e as visagens ........................................................... 58 4.1 O cemitrio da Corrcdeira ..................................................................................................... 68 5. Territrio e espacial idade social: terra trabalho e memria .................................................... 72 6. Lutas polticas e Judiciais: a diviso das terras e a chegada da Firma .................................... 84 7. Territrio geogrfico e fragilidade ambiental... ..................................................................... I 08 8. Concluso ............................................................................................................................. 116 Anexos de documentos ............................................................................................................. 123 Bibliografia ............................................................................................................................... 127

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    BOLETIM INFORMATIVO DO NUER _VOL. 3 N" 3- 2006

    Introduo

    Este estudo sobre a comunidade da Invernada dos Negros, municpio de Campos Novos (SC), parte dos objetivos propostos no projeto "Quilombos no sul do Brasil: estudos antropo-lgicos com vistas implementao do Decreto 4.887", realizado a partir de convnio' firmado entre o NUER -Ncleo de Estudos sobre Identidade e Relaes Intertnicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA). O projeto produziu estudos antropolgicos, sociais e ambientais para o processo de reconhecimento, demarcao e titulao das terras conforme estabelece os termos do Decreto 4.887 de novembro de 2003.

    As pesquisas produzidas na comunidade da Invernada dos Negros estabeleceram como principal objetivo investigar os vnculos scio-histricos da comunidade com a regio da Inverna-da dos Negros. O objetivo foi compreender de que forma a comunidade constri sua historicidade e cultura, alm de apreender os elementos indicativos do seu pertencmento tnico e marcadores da sua identidade. A identificao e a anlise dos mecanismos em torno do acesso, posse e expro-priao das terras e dos conflitos deles decorrentes tambm foram objeto deste estudo.

    Histrico e contexto da pesquisa O estudo aqui apresentado decorrente de uma longa trajetria de pesquisas e projetos

    implementados pelo NUER, que h mais de 20 anos tem realizado estudos tericos e pesquisas empricas que problematizam a questo da identidade e da territorialidade negra. A execuo do projeto "Plurietnicidade e intolerncias tnicas: Relaes Intertnicas no Sul do Brasil" foi especialmente relevante para o debate, pois revelou, nos contextos de interaes intertnicas em todo o sul do Brasil, a complexa formao de identidades tnicas e comunidades negras, entre elas, a Invernada dos Negros. As investigaes conduzidas pelo NUER buscaram identificar os territrios negros a partir da anlise relacional das fronteiras tnicas que envolvem as populaes afro-descendentes. No entanto, evitava-se qualquer relao simplificadora ou essencializadora no sentido de classificar estas coletividades enquanto quilombos, entendidos antes como uma

    1 Convnio n. 255/2004. 2 Projeto realizado entre 1994-1996, com recursos do CNPq e Fundao Ford. 3 Barth (1996) analisa aformaode identidades coletivas a partire na interaodos grupos sociais.

  • Relatrios Antropolgicos Invernada dos Negros (SC)

    categoria jurdica e poltica para fins de reconhecimento territorial. Estas pesquisas apontaram a Invernada dos Negros como um territrio negro: "como uma entidade geogrfica historicamente associada por negros e brancos identidade de grupos negros no Brasil", segundo definio de Bandeira (1988). As primeiras pesquisas sobre a Invernada dos Negros estiveram centradas na compreenso da histria local relacionando a especificidade cultural local ao acesso a terras garantido por testamento deixado em 1877 para ex-escravos. A pesquisa tambm registrou a so-licitao do tombamento da rea e a ampliao da rea do cemitrio, comprimida pela intensa plantao de pinus e eucalipto na localidade da Corredeira'.

    A partir do projeto "O acesso a terra e cidadania: expropriao e violncia nos Limitem do Direito'", as investigaes centraram-se na anlise de comunidades negras que obtiveram o acesso e a propriedade da terra atravs de testamento, mas que, embora possuidoras de um do-cumento legal no lograram assegurar e garantir a totalidade das terras herdadas ao longo do tempo. Em decorrncia deste diagnstico, um dos objetivos do projeto' foi a elaborao de um relatrio socioantropolgico sobre a comunidade Invernada dos Negros. Os dados etnogrficos pesquisados demonstraram uma estreita relao entre os vnculos scio-histricos e as formas de organizao social, de uso e de ocupao das terras por parte de uma populao afrodescendente. O relatrio apontou aspectos antropolgicos, histricos e sociais pertinentes ao reconhecimento da comunidade nos termos previstos pela lei, pois o direito constitucional previsto no artigo 68 da ADCT da Constituio Brasileira assegura que "aos remanescentes das comunidades de quilom-bos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos definitivos "7

    Na poca da realizao da pesquisa, os representantes da comunidade optaram pelo adia-mento do procedimento de regularizao das terras, j que ainda pesavam sobre a comunidade as fracassadas tentativas de organizao comunitria em torno da regularizao fundiria, o que resultou na fragilidade da unidade poltica do grupo e em um pagamento muito alto: a perda de mais reas de terras. Alm disso, havia muitas questes no compreendidas com relao aplica-o do artigo 68- como as etapas e procedimentos para a sua efetivao- que acabaram dividindo as opinies do grupo.

    O contexto poltico em 2003 - a partir da retomada das discusses em torno do artigo 68 e da necessidade de sua regulamentao - e os casos noticiados de comunidades quilombolas de todo o pas, curiosamente "descobertas" pela rndia, impulsionaram a comunidade de Invernada dos Negros a retomar o movimento pela regularizao das terras. Em junho de 2003 a comuni-dade envia uma carta ao NUER solicitando auxlio para iniciar o processo de regularizao das terras herdadas em 1877. Em uma reunio ficou estabelecida como ao imediata a solicitao ao Ministrio Pblico Federal para a abertura de um Inqurito Civil Pblico para averiguar a situ-ao fundiria das terras da Invernada dos Negros, o que ocorreu em 27 de maro de 2004. Um documento produzido a partir dos estudos realizados anteriormente pelo NUER sobre a situao da Invernada dos Negros, respaldou a pertinncia e a legitimidade do pleito da comunidade dos herdeiros pelo reconhecimento e regularizao das suas terras, bem como a solicitao da averi-

    4 0 pesquisador responsvel por esta etapa da pesquisa foi Alejandro Labale. 5 O projeto recebeu apoiofinanceiro da Fundao Ford e do C NPq (1998-200 1 ). 6 O projeto contemplava estudos em outras duas localidades do sul do Brasil: a comunidade de Casca, localizada no Rio Grande do Sul, e a comunidade de Paiol de Telha, situada no Paran. 7 Brasil, Constituio da Repblica Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1 988. 11 Anexo l-Carta da Comunidade ao NUER, 2003. 9 Projeto Pr-extenso: Qui!ombosem Santa Catarina: o acesso aterra e o reconhecimento legal/2003. 21

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    BOLETIM INFORMATIVO DO NUER VOL. 3 N 3 2006

    guao jurdica. A audincia pblica realizada na Cmara Municipal de Campos Novos reuniu mais de 200

    pessoas, entre herdeiros e no herdeiros, representantes das organizaes do Movimento Negro, autoridades locais e representantes de instituies federais como a Fundao Cultural Palmares, IBAMA e INCRA/SC, e foi considerada como um dos momentos histricos mais significativos vividos pelos herdeiros at aquele momento. "Foi de lavar a alma", avaliaram os herdeiros so-bre a experincia do evento em que puderam apresentar, sem se sentirem intimidados, as suas interpretaes sobre a expropriao das terras herdadas no passado e tambm para denunciar o preconceito e o racismo vivenciado historicamente. A audincia contribuiu para mudar signifi-cativamente a forma pela qual os herdeiros falavam sobre a expropriao das terras herdadas. Dados que at ento eram restritos ao universo privado passam paulatinamente para espaos de domnio pblico, especialmente nas realizaes das assemblias comunitrias. Aos poucos, as narrativas sobre as questes envolvendo a luta pela manuteno e a posse das terras pela comuni-dade podiam ser lembradas sem o peso absoluto do medo e da coero historicamente presentes na questo das terras.

    A partir desta audincia, o INCRA/SC instala um processo" para iniciar os procedimentos de identificao, reconhecimento e posterior titulao das terras herdadas da Invernada dos Ne-gros, nos termos previstos pelo Decreto 4.887. Posteriormente esta instituio criou um Grupo de Trabalho", para acompanhar os procedimentos de implementao do Decreto na rea.

    Em 20 de junho de 2004, a Comunidade Invernada dos Negros recebe da Fundao Cultural Palmares/Ministrio da Cultura o documento de Certido de Auto-Reconhecimento como "Co-munidade Remanescente de Quilombos"". A cerimnia de entrega do documento pela Fundao reuniu mais de 900 pessoas entre os herdeiros que vivem na localidade e outros que residem nos municpios vizinhos. Este evento se transformou num momento significativo para a comunidade, pois ali foi celebrada publicamente sua ancestralidade escrava, sua territorialidade, sua resistncia em tomo da ocupao das terras e sua luta contra a invisibilidade de sua histria nos contextos local, regional e nacional.

    A partir da entrega da Certido, o INCRA/SC iniciou os procedimentos de implementao dos processos de identificao da rea e o cadastramento dos moradores da comunidade. Em virtude da possibilidade de reconquistar o direito perdido no passado e de retomar para as terras da Invernada dos Negros, muitas pessoas solicitaram o cadastramento, totalizando no momento atual mais de mil fann1ias de herdeiros cadastradas no Sistema da Informao de Polticas para a Reforma Agrria (SIPRA), programa do INCRA para a implementao e a disponibilizao de polticas pblicas".

    O fato de os herdeiros consolidarem, em abril de 2004, uma associao quilombola, reunin-do mais de mil associados com o apoio do Movimento Negro Unificado (MNU), fortaleceu a sua organizao interna e a sua representao como remanescentes de quilombos nas esferas de nego-ciao com os poderes pblicos locais, estaduais e federais. Em 2004, representantes da comunidade da Invernada dos Negros, na condio de comunidade quilombola, participaram de audincia com o governador do Estado de Santa Catarina solicitando a implementao de polticas pblicas nas reas da sade, habitao, trabalho e meio ambiente, e a regularizao das suas terras.

    " Processo 54210.00035412004-40. ,, Ordem de Servio/INCRAJSC(1 O) n./04de 17 de junho de 2004. 12 Anexo 2 -Certido de Reconhecimento da FundaO Cultural Palmares. 13 H que se registrar que o modelo de formulrio segue quesitos voltados para situaes de assentamentos rurais e, portanto, no consegue contemplar as especificidades scios-econmicas e culturais da situao quilombola.

  • Relatrios Antropolgicos Invernada dos Negros (SC)

    O reconhecimento como "comunidade quilombola" incluiu a comunidade da "Invernada dos Negros" no debate nacional sobre a questo quilombola, atravs da participao em diferentes esferas de discusses", como Grupos de Mulheres Negras, CONAQ, CONERUQ, etc

    No percurso dessa trajetria, a comunidade da Invernada dos Negros fortaleceu ainda mais a sua organizao poltica diante do poder local. Com isso, a comunidade vem sendo reconhecida en-quanto uma minoria negra politicamente visvel", tanto em contextos regionais quanto estaduais.

    Metodologia O ponto de partida do atual Projeto Quilombos no Sul do Brasil (NUER!UFSC) foi a de-

    manda realizada pela Comunidade Invernada dos Negros junto ao NUER no sentido de garantir a propriedade e o reconhecimento legal de suas terras. A metodologia utilizada centrou-se na investigao das formas de apropriao, ocupao e uso das terras, nos elementos que compem a identidade tnica e em sua territorialidade. Para isso, procurou-se abarcar tanto uma histria dos negros que se encontra fragmentada em livros, jornais, processos judiciais, documentao carto-rial e de arquivos, quanto e, principalmente, as histrias que se encontram nas lembranas daque-les que descendem de escravos e que continuam vivendo na regio de seus ancestrais. Parte do material documentai s foi "revelada" no atual contexto propiciado pelo Decreto 4.887. Quando o NUER iniciou as pesquisas em 1998, a solicitao de documentos ou o simples questionamento sobre os documentos existentes provocava reaes e questionamentos imediatos: Para que? Para quem? O que seria feito com eles? Muitas pessoas respondiam negativamente sem disfarar o desconforto que a questo provocava: "no h nada, no existe nada", era a fala mais recorrente. Com a possibilidade da regularizao das terras no momento atual e, especialmente, aps a reali-zao da audincia pblica, a desconfiana com relao aos usos dos documentos foi diminuindo e eles, ento, emergiram dos bas, dos fundos das gavetas, das cestas de palhas, dos canudos de taquara -lugar de proteger e guardar documentos antigos e pessoais. Aos poucos os documentos foram sendo disponibilizados equipe de pesquisa. Mais de 70 documentos pessoais importantes foram localizados, entre eles, cartas que informam sobre os processos de expropriao das terras da Invernada dos Negros, recibos de pagamentos de impostos agrcolas e territoriais e jornais que datam do perodo de 1920 a 1960.

    Todos os documentos encontrados foram anexados ao processo de Inqurito Civil Pblico, instaurado pela Procuradoria de Joaaba, entre estes doze documentos" jurdicos arquivados na Casa da Cultura de Campos Novos, referentes s terras da Invernada dos Negros, que foram ana-lisados e se constituram como peas importantes no processo de elucidao e interpretao dos conflitos ocorridos em tomo da posse da terra na regio. Destes, trs documentos foram micro-filmados pelo setor de microfilmagem da UFSC, devido a sua importncia para o entendimento do processo fundirio das terras da Invernada dos Negros, garantindo, desta forma, a preservao dos documentos. Neste momento, o referido est viabilizando a digitalizao deste material, o que permite conceder mais facilmente o acesso ao material a outras instituies e pesquisadores do pas. Os documentos microfilmados so:

    14Reunio da Coordenao Executiva da Articulao Nacional das comunidades Negras Quilombolas- CONAQ (14, 15 e 16 de fe-vereiro de 2004), realizada em So Luiz (MA); o Projeto Zanauand, desenvolvido em parceira com a UNICEF, sobre as condies devida da criana e dos adolescentes quilombolas, de 11 a 12 de novembro de 2003; a Campanha nacional pela regularizao de quilombos; o Encontro das mulheres e das crianas quilombolas, realizado em Braslia (DF), em dezembro de2004. 15 Em 2004, a comunidade da Invernada dos Negros passou a participar do desfile municipal do dia sete de setembro, portando faixa informando sobre a histria e o reconhecimento como comunidade quilombola. 16 Os documentos esto relacionados no anexo de Documentos. 23

  • BOLETIM INFORMATIVO 00 NUER VOL 3 HD 3 - 2006

    1) Ao de usucapio de Joo Garipuna de Souza e outros, datado de 1938, nmero do tombo 2492 (Arquivo Histrico Dr. Waldemar Rupp, Campos Novos);

    2) Ao de diviso do imvel denominado de Invernada dos Negros, que tramitou em Comarca de Campos Novos no ano de 1928, nmero de tombo 1278 (Arquivo Histrico Dr. Wal-demar Rupp, Campos Novos);

    3) Ao de inventrio de Matheus Jos de Souza Oliveira que tramitou na comarca de Campos Novos, no ano de 1877, nmero de tombo 006 (Arquivo histrico Dr. Waldemar Rupp de Campos Novos/SC).

    A transcrio do Documento de Inventrio de Matheus Jos de Souza Oliveira, de 1877, documento que contm o texto testamentrio de doao das terras da Invernada dos Negros aos escravos, tomou-se fundamental pois representa uma pea-chave na interpretao das formas de organizao, uso e ocupao das terras pelos legatrios e por suas geraes familiares sucessivas.

    A pesquisa etnogrfica, devido a sua abrangncia e amplitude, sinalizou para aspectos his-tricos e para os nexos sociais entre os atuais moradores da Invernada dos Negros e o passado. Foram analisadas as intervenes humanas no meio ambiente e as relaes que a comunidade estabelece com o meio externo e a sua configurao sciocultural.

    Para tanto, o conceito de grupo tnico, segundo definido por Barth (1969), instrumento fundamental no entendimento da constituio da Invernada dos Negros como um grupo tnico cuja origem comum acionada e mediada por uma noo de parentesco. Para a teoria antropo-lgica, os estudos de parentesco operam como recorte epistemolgico orientador da anlise e interpretao da organizao social e da cultura de um grupo.

    O trabalho de campo ocorreu em trs etapas: a primeira no ms de fevereiro, a segunda no ms de abril e a terceira do ms de maio. Durante o trabalho de campo foram realizadas entrevis-tas com moradores e lideranas da comunidade, totalizando mais de 120 horas de gravao. Na realizao das entrevistas considerou-se sempre a indicao das prprias pessoas da comunidade, ou seja, os depositrios da histria da Invernada dos Negros, que eram sempre definidas pelos mais idosos ou pelos representantes dos "tronco velho" e, ainda, pelas lideranas das parentelas. Esses so considerados os guardies da histria da comunidade. Alm das gravaes, utilizou-se o recurso do dirio de campo para o registro das situaes em que se realizou a observao parti-cipante (reunies, encontros familiares, festas, composio do espao das residncias, plantaes, etc). Utilizou-se tambm o registro fotogrfico de diversas situaes sociais tais como as reunies, as formas de produo, a disposio das casas e registras dos marcos territoriais, antigas cons-trues, lagos, rios, paisagem, muros de taipa e rvores pertinentes ao registro das fronteiras do territrio da comunidade da Invernada dos Negros.

    Muitos dados etnogrficos foram obtidos atravs da observao participante e do acom-panhamento das reunies e assemblias comunitrias realizadas pela comunidade de herdeiros. Nas reunies, os mais velhos apareceram como os autorizados para disponibilizar as informa-es sobre a vida comunitria das geraes dos herdeiros no passado e sobre as prticas sociais e econmicas dos seus parentes e familiares na atualidade. Os relatos sempre indicavam nomes de outros herdeiros que imaginavam poder contribuir ainda mais com novas informaes. Desta forma, uma rede de informantes foi se constituindo, o que possibilitou aos pesquisadores acessar herdeiros - muitos deles h dcadas residentes fora do espao fsico da rea da Invernada dos Negros - que detinham outras informaes tambm esclarecedoras sobre os usos e a ocupao da rea herdada. O envolvimento dos jovens na pesquisa foi pequeno, pois as falas autorizadas sempre provinham dos mais antigos, dos "tronco velho" e das lideranas de parentelas. Para a

    24 realizao das entrevistas nas casas, os mais jovens se colocavam sempre numa posio de escuta

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    das falas dos seus pais ou avs. A presena de militantes provenientes dos movimentos negros do estado de Santa Catarina,

    junto comunidade, promoveu o esclarecimento sobre as razes da pesquisa e sobre a importn-cia da colaborao dos moradores.

    Neste estudo so abordadas questes que possibilitaram reconstruir as genealogias, a memria das prticas sociais, econmicas e, principalmente, as referncias territoriais da vida comunitria. Sendo assim, procurou-se apontar e analisar os principais conflitos vivenciados pela comunidade na ocupao e manuteno das terras herdadas ao longo de mais de um sculo de ocupao. A questo ambiental, igualmente, foi um dos aspectos analisados, tendo em vista que a comunidade est circundada por urna extensa plantao de pinus e eucalipto, de forma a quase inviabilizar a sua permanncia e a reproduo das suas formas tradicionais de organizao scio-territorial.

    O espao socialmente produzido pela comunidade da Invernada dos Negros um territrio etnicamente delimitado. Segundo Bandeira, "a territorialidade das comunidades negras referida na identidade tnica de cada grupo que as constitui. A posse da terra, independentemente das suas origens patrimoniais, se efetiva pelas comunidades negras enquanto sujeito coletivo configurado como grupo tnico. A apropriao coletiva feita por negros organizados etnicamente como sujeito social. No se trata, portanto, de posse de negros enquanto pessoas fsicas" (1990, p. 8).

    Para o poder pblico municipal a comunidade da Invernada dos Negros designada como localidade de Corredeira- distante 20 quilmetros do municpio de Campos Novos. Em parte, a mudana no nome explicada, conforme os prprios moradores, por relacionar o espao como um lugar de negros. O atual movimento de processo de regularizao das terras fez com que hou-vesse uma reflexo sobre este processo e agora seus habitantes tentam retomar o nome original da comunidade. A Invernada dos Negros o termo utilizado para designar um conjunto de outras pequenas comunidades distribudas por diversas localidades, mas que esto simbolicamente uni-das e articuladas por laos de parentesco, sociabilidade e religiosidade com um passado vinculado a matrizes familiares e o acesso terra transmitido atravs de testamento. As comunidades so as seguintes: a localidade de Manuel Cndido, a localidade de Espigo Branco e a localidade de Arroio Bonito e a da Corredeira. Esta ltima atuando como centro de aglutinao e referncia comunitria. l que acontecem os torneios, as festas e as reunies. o espao da reunio e da unio da comunidade da Invernada dos Negros. Todas as reunies so realizadas na Corredeira.

    A Invernada dos Negros possui uma populao predominantemente negra que provm de descendentes de ex-escravos. Sua origem comum fundamenta o processo de luta pela manuten-o de suas terras e contra a excluso social sofrida pelas pessoas que compem a comunidade. A comunidade, portanto, possui suas demandas de cidadania e de espao de participao nas suas relaes com o Estado. Enquanto minoria tnica: "a comunidade cultiva uma diferena baseada na descendncia e que quer ver este fato reconhecido no Estado" (Banton, 1979: 165). Esta comu-nidade se afirma na contemporaneidade enquanto um grupo tnico, nos termos de Weber (1983), a partir do parentesco, da religiosidade e da territorialidade, na sua ancestralidade negra e na sua descendncia de ex-escravos. J reconhecida oficialmente como remanescente de comunidade de quilombos, busca ver suas terras tituladas e ser reconhecida como remanescente de comunidade de quilombos para, percorrendo o devido processo legal, usufruir o direito constitucionalmente possibilitado pelo artigo 68 do ADCT da Constituio Federal de 1988, recurso para garantir a sua permanncia e direitos territoriais plenos.

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    Snteses dos principais acontecimentos:

    1994 -Projeto Plurietnicidade e intolerncias tnicas no sul do Brasil. 2001 - Projeto O acesso a terra e cidadania: expropriao e violncia nos limitem do direito. Junho de 2003 -Carta ao NUER de solicitao de auxlio para a regulaTizao das terras da Co-munidade Invernada dos Negros. Abril de 2004 -Criao da Associao Comunitria dos Remanescentes da Invernada dos Ne-gros. Maro de 2004 - Realizao da Audincia Pbica em Campos Novos e abertura de Inqurito Civil Pblico paTa averiguao da situao fundiria das terras da Invernada dos Negros. Julho de 2004 -Entrega da Certido de reconhecimento Comunidade pela Fundao Cultural Palmares. Julho de 2004- CTiao do Grupo de Trabalho no INCRA paTa acompanhamento dos processos de identificao, titulao e demaTcao das terras da Invernada dos Negros. Julho de 2004 - Cadastramento de 1000 famlias junto ao SIPRAJINCRA. Dezembro de 2004 -Projeto Qui/ambos no Sul do Brasil- Convnio NUERIUFSC/INCRA.

    1. A Comunidade Invernada dos Negros

    A Comunidade da Invernada dos Negros est situada a aproximadamente 20 quilmetros da sede do municpio de Campos Novos, ocupando uma rea permeada por plantaes de pinus e eucalipto. Vivem ali aproximadamente 150 pessoas, distribudas em 34 unidades residenciais. Contudo, ao consideramos aqueles que vivem em localidades prximas e que se reconhecem como pertencentes Invernada dos Negros, esta populao totaliza mais de 4000 indivduos. Com efeito, h uma rede de relaes sociais que transcende os limites territoTiais da comunidade. Em termos geogrficos e oficiais, esta populao reside nas localidades denominadas Corredeira, Manuel Cn-dido, Espigo Branco e Arroio Bonito. Corredeira a localidade que aglutina o maior nmero de remanescentes de quilombolas e opera como ncleo comunitrio da Invernada dos Negros. As terras ocupadas pela Comunidade da Invernada dos Negros so o suporte simblico do qual se gestou uma etnicidade, forma de ser e viver prprias, com uma constelao tnica consciente de si, reconhecen-do sua validade na interao social com outros grupos, como discutido por Poutignat (1998).

    Renda familiar Os aluais moradores da Invernada dos Negros, em sua maioTia, obtm o sustento faTniliaT

    atravs das atividades combinadas de agTicultura e de venda sazonal de fora de trabalho, na plantao e corte de pinus ou como pees de fazendeiros locais. Alguns executam servios tem-porrios na cidade de Campos Novos, estabelecendo, dessa forma, um trnsito contnuo em busca de trabalho entre a comunidade e a cidade.

    A busca por alternativas de renda familiaT decorrente da progressiva reduo da rea de terra ocupada. Atualmente a rea que cada unidade familiar ocupa restringe-se a um ou trs alqueires de terra (2,4 a 7,2 hectaTes). Tal fato, aliado ao desgaste do solo provocado pelo culti-vo de pinus e eucalipto, agravado pela falta de assistncia tcnica, so fatores que impedem aos membros da comunidade a dedicao exclusiva ao cultivo da terra, forando-os a adota~em outras estratgias de sobrevivncia.

    Cada unidade familiaT organiza o trabalho agrcola a partir dos seus membros familia~es, 26 distribuindo as tarefas que competem a cada um. Aqueles que detm um pouco mais de terra

  • Relatrios Antropolgicos

    produzem milho e feijo que so comer-cializados na cidade ou estocados para consumo prprio. Nem sempre a produ-o de milho e feijo satisfatria e, em muitos momentos, no conseguem fazer com que a colheita supra a. so poucos os que conseguem obter uma renda fixa mensal e um nmero ainda menor o daqueles que conseguem ter registro de carteira de trabalho. Os proces-sos de terceirizao de servios e as exigncias impostas no mercado do trabalho local acabam excluindo os trabalhadores da comunidade. que apresentam baixos ndices de escolaridade. As dificuldades de obter um servio e uma renda suficiente para se manterem na unidade familiar fa-zem com que muitos jovens saiam da comunidade em busca de melhores condies de vida. H poucos jovens morando na comunidade". A maioria da populao economicamente ativa migrou para outros lugares em busca de trabalho e melhores condies de vida. Esta busca forou uma migrao tanto para a cidade de Campos Novos como para outras cidades prximas. Em Cam-pos Novos, os descendentes dos herdeiros tentam reorganizar suas vida'), acionando as redes de solidariedade dos parentes que saram h mais tempo e que fixaram residncia no~ bairros Nossa Senhora Aparecida. Pedreira e Integrao. Nas cidades vizinbas. a migrao mais intensa ocorre

    11 Um exemplo ilustrativo o de uma famil1a de seis membros (quatro adultos e duas crianas), e CUJa pnnc1pal fonte de renda a aposentadoria, com uma renda mensal que no ultrapassa duzentos reais por ms. Deste valor, aproximadamente 100 reais des-tinam-se ao rancho mensal no mercado da c1dade, para compra de produtos 1ndustnalizados como sal. aucar. caf, arroz etc; 25 rea1s so usados na compra de remdios para presso e outros problemas de sade. Com o restante do dtnhe1ro. devem ser feitas as outras despesas do ms, 1nciU1ndo os gastos com transporte para a c1dade. "A energ1a eltrica f011nstalada apenas no f1nal da dcada de 90. Antes d1sto, mUltas famlias utilizavam como fonte de 1lum1na-o lampannas de querosene e velas de cera. Para aquelas que consegu1ram o acesso luz, houve a possibilidade de aqus1o de alguns eletrodomst1cos como televtso, aparelho de som e geladetra. Atualmente, algumas casas esperam passar por melhonas para que a energta eltnca possa ser 1nstalada Esto em andamento na comumdadedo1s programas do Governo Federal Luz para todos e o Programa de melhona de casas, com fmanoamento da C atxa Econm1ca Federal "Fenmeno semelhante reg1strado em vnas localidades rura1s do Bras1l conforme demonstra pesqu1sa de Abramovay ( 1999). Alm disto, oautorvenftca uma masculrntzaodomundo rural. emfunode uma m1grao marcada pela sada das mulheres. 27

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    BOLETIM UIFDRMATIVD DO IIUEII VOL. 3 11' 3 2006

    para a cidade de Monte Cario. Lages e Curitibanos. ou para Curitiba, distante 300 quilmetros. Nestes lugares. traba-lham como serventes, diaristas, pedreiros e carpinteiros e, em menor proporo. como empregados em empresas locais. Alguns conseguem abrir pequenos neg-cios, tais como bares. oficinas de conser-tos e borracharias. Apesar de as pessoas que migraram apresentarem um padro de vida considerado um pouco melhor do que aqueles que permaneceram da In-vernada (evidenciada pela eventual pos-se de carros, eletrodomsticos e acesso Comunidtule da Corredeira a melhores servios pblicos), a vontade de retornar para a comunidade afirmada por quase todos. Pode-se indicar que isso ocorre porque no processo de migrao a populao no perde seus laos de reciprocidade e de ajuda mtua. So freqentes lli> vis1tas de filhos casados a seus pais, ou dos pais aos seus filhos na cidade. mantendo-se um intercmbio constante entre os parentes. A sada de um jovem da localidade nem sempre tem carter definitivo. Na impossibilidade de garantir o seu sustento ou o da famlia. ou ainda por questes de doena, o retomo no de todo descartado. comum detxar parte da infra-estrutura na Comunidade. como a casa e a roa. sob os cuidados da famlia. at que a nova situao se esta-bilize. Esta prtica refora a idia de que o territrio vivido pelos herdeiros ultrapassa as fronteiras

    geogrficas e, ao mesmo tempo. se reconstitui em outros lugares.

    Perfil etrio Os moradores da Invernada dos Negros, em sua totalidade, pertencem a quatro geraes.

    Um perfil da faixa etria revela que a primeira gerao tem em mdia 60 anos de idade. Um le-vantamentQ20 sobre a atividade profissional entre os mais velhos vem confirmar a prtica secular de permanncia e ocupao das terras herdadas: so agricultores, nasceram. casaram e at hoje vivem ali, confLrmando tambm o padro endogmico de ca

  • Relatrios Antropolgicos Invernada dos Negros (SC)

    Escolaridade Quanto fonnao educacional, a maioria dos moradores l e escreve com muita dificul-

    dade. Outros nunca freqentaram a escola e poucos conseguiram concluir o ensino fundamental. Os prprios membros da comunidade oferecem explicaes para essa situao. Ao relatarem sobre o processo de formao educacional, so constantes as queixas em relao ao cumpri-mento da jornada escolar. A necessidade de trabalhar para ajudar os pais na renda familiar, a alta rotatividade de professores e a m qualidade do ensino so alguns dos fatores assinalados pelos moradores. Em 2001, a escola da localidade da Corredeira, apresentava-se degrada, com suas janelas quebradas, goteiras no telhado e com pouco espao para acomodar as crianas. Quando chovia, no havia condies de prosseguir com as aulas e as precrias condies das estradas de acesso escola impossibilitam, inclusive, a vinda da professora. Em 2003, uma nova escola foi construda pela Prefeitura Municipal, mas as condies de ensino permaneceram semelhantes. As Escola de Manuel Cndido e a Escola Isolada Corredeira so multiseriadas e atendem em mdia 45 alunos", que so separados pelas sries correspondentes. Numa sala so agrupados os alunos de primeira e segunda srie e na outra os alunos de terceira e quarta srie. As crianas chegam at a escola atravs do transporte escolar. Na escola permanecem at o meio dia, quando retornam para suas casas. Segundo relatam os moradores, h muitos casos de repetncia escolar na escola da Corredeira, muitos repetem a mesma srie at trs ou quatro vezes. Com o passar do tempo estes alunos acabam evadindo da escola. Os que conseguem concluir os estudos lem e escrevem com dificuldades. Tal situao dificulta sobremaneira o ingresso destes indivduos no mercado de trabalho, haja vista que a qualificao profissional e a concluso do segundo grau aprecem como pr-requisitos ordinrios de contratao. Sem uma formao educacional minima a comunidade permanece s margens do mercado de trabalho, inserida em atividades de baixa remunerao e de pouca valorizao".

    Sade Quanto sade, a maioria dos moradores no tem acesso fcil aos servios pblicos de

    sade. O atendimento mdico mais prximo dista 15 quilmetros, localizado no distrito de Ibi-cu. Chega-se at l somente a p ou a cavalo, pois, o transporte coletivo, implantado em 1999, circula somente duas vezes por semana e o preo da passagem considerado elevado para muitos moradores.

    Quando chegam at o posto de sade, muitas vezes, no h mdico disponvel e a en-fermeira est autorizada somente a cuidar de pequenos ferimentos ou ento fornecer alguns

    22 No ano de 2000 todos estes alunos foram reunidos na escola da Corredeira, onde uma professora num mesmo espao ministra-va aulas para alunos de 2ae4a sries e para alunos de 1a e 3a sries. 23 A melhoria da formao educacional e a implementaao de projetes educacionais que contemple contedos e abordagens tni-cas, raciais e identidade cultural so uma das reivindicaes da comunidade. 29

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    remdios que no necessitem de receita. Nestas circunstncias, a procura por um mdico no hospital da cidade de Campos Novos considerada a deciso mais sensata. Eles costumam dizer que prefe-rvel ir at cidade, pois assim encontram em um mesmo lugar todos os recursos de que necessitam.

    A maioria dos partos realizada em casa. Poucas mulheres so as que, no final da gravidez, deslocam-se at a cidade e l aguardam o momento do nascimento. O parto feito pelas mes das parturientes ou por parteiras da localidade. Dona Santa uma delas. Moradora do Espigo, na rea da Invernada, ela atende os chamados e encaminha a parturiente para o hospital quando identifica necessidade de cuidados especiais.

    As doenas mais recorrentes verificadas durante a pesquisa foram, entre os adultos, alcoolis-mo, presso alta, cncer de pulmo e problemas hepticos, e entre as crianas, a desnutrio e doen-as respiratrias como bronquite e pneumonia. Estas doenas, que poderiam ser facilmente evitadas, tm matado muitas crianas na Invernada, antes mesmo de serem registradas em cartrio.

    Organizao comunitria A comunidade da Invernada dos Negros possui lideranas que atuam de forma diferenciada

    e em diversas frentes do processo de organizao. Algumas esto centradas na organizao comu-nitria interna enquanto outras se destacam pelas aes nas relaes estabelecidas com instncias externas. Com o processo atual de regularizao das terras muitas lideranas emergiram como in-terlocutoras das demandas da comunidade junto aos poderes pblicos. Antes deste processo, este papel concentrava-se na liderana de Jos Maria Gonalves de Lima, conhecido como Teco Lima. Ele nasceu na Invernada dos Negros, mas deslocou-se para a cidade ainda na dcada de 70. A sua residncia ponto de referncia e de abrigo para os parentes que vm para a cidade para consultar, fazer tratamento mdico, ou resolver problemas. Este fato respalda os laos de parentesco e a fora da relao entre os moradores da comunidade e os da cidade. A sua atuao como liderana tem sido sempre marcada pela implementao das demandas da comunidade como gua, luz, transporte e sade, junto aos rgos pblicos locais, estaduais e nacionais.

    1.2. Africanos e afro-descendentes no Planalto dos Campos Gerais A cidade de Campos Novos est geograficamente localizada no denominado Planalto dos

    Campos Gerais. Os blocos que constituem esta unidade geogrfica so: planalto de Palmas, pla-nalto de Capanema, planalto de Campos Novos e planalto de Chapec".

    Segundo a enciclopdia dos municpios brasileiros, a histria do municpio de Campos No-vos est inserida no processo de delineamento do Brasil Meridional, mais exatamente na relao com as Misses:

    "de cena fonna a crnica histrica desse municpio comea a delinear-se com a expedio che-fiada pelo major Atanagildo Martins que, guiada pelo ndio Jongong, em 1814, tinha por objetivo entrar em contacto com as Misses. Ao ser desviada da rota traada, dado o temor que os ndios guaranis pro-vocavam senz seu guia, essa expedio foi ter aos campos de Vacaria, aps, celtamente, ter palmilhado os campos em que hoje se encontra este mwcpio. No pare dvida, porm, que alguns fazendeiros, procedentes de Lajes, por aqui j se encontravanz d({/initivamente instalados no ano de 1839 ";s.

    24 Atlas Escolar de Santa Catarina/Secretaria de Estado de Coordenao Geral e Planejamento, Subsecretaria de Estudos Geogrfi-cose Estatsticos.RJ: Aerofoto Cruzeiro, 1991 ,p.18. 25 IBGE. Enciclopdia Dos Municpios Brasileiros.RJ: 1959, p.60. 26 Sobre a presena dos negros na condio de escravos na regio ver PEDRO, Joana Maria (org.) Negro em Terra De Branco, Porto Alegre: Mercado Aberto, 7988.

  • Relatrios Antropolgicos Invernada dos Negros (SC)

    qualquer doena, 'fechar o corpo'" contra tiros e facadas e evitar maus olhados de invejosos ou inimigos. E continua: "nas fazendas tambm eram- e ainda so- usados benzeduras para curar doenas dos animais, limparem os terrenos de cobras. Mas quando os males decorriam de 'coisa feita' ou feitiaria ento s com outra feitiaria ainda mais forte era possvel acabar com eles"( Costa, 1982,p.1609 ).

    Estas prticas sociais, ou esta arte de fazer benzees, na expresso de Michel de Certeau", so especificidades da populao afrodescendente desta regio, bem como de outras espalhadas pelo Brasil, constituindo um patrimnio imaterial dos mesmos.

    A presena de africanos e afro-descententes na regio de Campos Novos, onde se encontra a Invernada dos Negros, est relacionada com o processo de colonizao, isto , to antiga quanto presena do colonizador, como demonstram as muitas pesquisas" realizadas por historiadores", relatos de viajantes no sculo XIX, dissertaes e monografias, notcias de jornais, etc.

    Segundo Nilsen Borges, a freguesia de Campos Novos, possua em 1861 uma populao escrava de 13,2% de homens; 11,9% de mulheres; 22,6% de homens pardos e pretos; 21,7% de mulheres pardas e pretas. J no ano seguinte, segundo a mesma autora, o quadro era de: 11,9% de homens escravos; 13,1% de mulheres escravas; 32,4% de homens pretos e pardos; 07,1% de mulheres pretas e pardas(Borges, 2005,p.46).

    J Ancelmo Pereira Oliveira, ancorado em Lazzarini, apresenta a populao escrava no mbito paroquial de Campos Novos (1861- 1872) da seguinte forma:

    "Quanto a populao negra pra l trazidas como escrava, no h quase nada que possa provar com segurana a sua procedncia. O que se tem de mais concreto, so alguns dados demogrficos realizados no mbito paroquial, abrangendo um perodo muito restrito, ou seja de 1861-1872. conforme este levantamento demogrfico, possvel ter o seguinte quadro deste perodo: para um total de 1848 pessoas em 1861, tnhamos uma populao escrava de 530 pes-soas. Este quadro vai assumindo um quadro regressivo. Neste sentido, no ano de 1872, diante de um total de 2.123 pessoas, a populao escrava era de 196 indivduos. Um dado relevante desse levantamento, mostra que num primeiro momento, predominava o grupo feminino entre os escra-vos, ou seja, 270 mulheres, para uma populao masculina de 260 pessoas. J em 1872, estes somavam um total de 103 contra 96 mulheres"(01iveira,l994 p. 34).

    O autor est referindo-se Invernada dos Negros, distante quarenta quilmetros da sede do municpio de Campos Novos, e conforme ele, "por suas caractersticas histricas, pelo processo

    3 Conforme Aurlio Buarque de Holanda: "Fechara corpo. Bras.1.torn~lo supostamente invulnervel a facadas, tiros e mordidas de cobra, mediantes oraes e feitiarias. Ter o corpo fechado: Bras. 1.estar, supostamente, imune de perigos como tiro,facada, etc, graas a amuletos e mandingas. 2.5erinvu/nervel".ln. HOLANDA, Srgio Buarque de. Novo Aurlio: O Dicionrio da Lngua Portuguesa-Sculo XXI. RJ: Nova Fronteira, 1999, 3a. Ed., p. 561. 31 Sobre esta questoverTeorias Da Arte De Fazer. ln. CERTEAU, Miche\. A Inveno do Cotidiano-Artesde fazer. Petrpolis: Voz-es, 1994. 32 No que tange aos trabalhos recentes (monografias e dissertaes) consultar LAZARINl, Srgio. Histria demogrfica da Parquia de So Joo Batista de Campos Novos (1872-1940). Florianpolis: UFSC, 1993 (Dissertao de Mestrado em Histria); MARCON, Frank Nilton. Visibilidade e resistncia negra em Lages. So Leopoldo: UNISINOS, 1999 (Dissertao de Mestrado em Histria); BORGES, Nilsen C. Oliveira. Terra, Gado e Trabalho: Sociedade e Economia Escravista em Lages, SC (1840-1865). Florianpolis: UFSC, 2005 (Dissertode Mestrado em Histria); OLIVEIRA, Ancelmo Pereira de. A Formao do Negro no Espao Rural de cam-pos Novos. Joaaba: UNOESC, 1994(Monografia- "Lato Sensu" em Histria do Brasil). "Consultar, por exemplo: PIAZZA, Walter. Santa Catarina: Sua Histria. Florianpolis: Lunardelli/Ed. UFSC, 1983; CABRAL Oswal-do R. Histria De Santa Catarina. Florianpolis: Secretaria de Educa.3o e Cultura, 1968; SANTOS, Slvio Coelho dos. Nova Histria De Santa catarina.Fiorianpolis: Ed. do Autor, 1977, a. Ed. 33

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    BOLETIM INFORMATIVO DO NUER VOL. 3 N 3 2006

    socioeconmico que a envolveu e pela forma de ocupao do territrio, representa o espao mais significativo da presena negra no Oeste do Estado.(Oliveira, 200J,p. 77).

    Campos Novos, antes de emancipar-se, pertencia VJ!a de Nossa Senhora dos Prazeres de Lages, sendo elevada categoria de freguesia em 1854, quando era presidente da Provfucia o Dr. Jos Coutinho. Em 1869, quando Curitibanos tomou-se Municpio, Campos Novos passou a distrito deste"

    Na segunda metade do sculo XIX o Imprio do Brasil passava por mudanas significati-vas, atingindo as vrias provncias. A Lei de Terras", por exemplo, foi um fator importante, pois se tratava de uma nova regulamentao das terras, deslegitimando a posse/ocupao como meio de acesso legal a terra e qualificando a compra como nico meio legtimo de aquisio de terras".

    Foi neste contexto que Matheus Jos de Souza e Oliveira, homem de bem", buscou legalizar suas terras conforme o documento de titulao expedido em 28.05.1875, vinte e cinco anos aps da Lei de Terras. importante que se diga que, segundo as testemunhas Venncio Manoel Gonalves e Pocidnio Gonalves Brito, Matheus Jos de Souza e Oliveira cultivava as ditas terras por mais de vinte oito, vinte nove ou trinta anos, mais ou menos. Disseram mais, no ato da legitimao: que as ditas terras no eram sesmaria" ou concesses do governo e que no constava ter algum nas mesmas".

    A demarcao da rea teve incio em dezesseis de janeiro de 1875, sendo concluda em 25 de janeiro do mesmo ano conforme o documento:

    "( ... )Ficando assim medidas e demarcadas as terras do posseiro Matheus Jos de Souza e Oliveira, com a rea de cinqenta e um milho, duzentos quinze mil, quinhentos e sessenta metros( ou vinte e trs milhes duzentos e setenta e nove mil quinhentos setenta braas quadra-das)- sendo vinte e cinco milhes seiscentos sete mil setecentos oitenta metros( ou onze milhes seiscentos trinta e nove mil novecentas braas)quadrados(. .. )

    Essas terras so em parte montanhas, sendo em artes boas para as plantaes do pau e parte boas para pastagem(. .. )"".

    No que tange ao processo de libertao da mo de obra escrava, a partir da dcada de ses-senta do sculo XIX, pode-se dizer que os ventos da liberdade sopravam por vrias provncias". Ancelmo Pereira de Oliveira, um dos primeiros a pesquisar sobre a Comunidade da Invernada dos Negros, registrou que "o clima de liberdade era forte tanto na parcela escravizada, quanto

    34 Sobre a genealogia dos Municpios catarinenses. Ver. CABRAl, Oswaldo Rodrigues. Histria de Santa Catarina. Florianpolis: Secretaria de Educao e Cultura, 1968, Anexo III. 35 Renal do Vainfas estabeleceu uma relao entre a lei de Terras e o processo abolicionista: "A Lei n. 601 do Imprio do Brasil, con-hecida como Leis de Terras, foi sancionada em 18 de setembro de 1850, 74 dias aps a aprovao da lei de abolio do trfico atlntico de escravos. Determinou que as terras devolutas do pas, no poderiam ser ocupadas por qualquer outro ttulo que no o de compra ao estado em hasta pblica, garantindo, porm, os direitos dos ocupantes de terra por posse mansa e pacfica e dos possuidores de sesmariascom empreendimentos agrcolas instalados at aquela data (. .. )"ln. VAJNFAS, R o na ldo(Org .). Dicionrio do Brasil Imperial (18221889). RJ:Objetiva, 2002, p.466. 36TEJXEIRA, lua na. Relatrio: Pesquisa Histrica Caso Invernada Dos Negros-A terra herdada (mimeo). Florianpolis: NUERIUFSC, 2005. 37 Segundo Vainfas, 'homens de bem' eram aqueles que reuniam as condies para pertencerem a um certo estrato social, distinto o bastante par autoriz-lo manifestar sua opinio e a exercer determinados cargos. Acrescenta que antes de constituir uma cat-egoria social, a expresso homem de bem ou homem bom, exprimia uma condio.VAINFAS, Renal do (erg.) Dicionrio do Brasil Colonial ( 1500-1808) RJ: Objetiva,2000. 38 Sesmaria, segundo o Dicionrio do Brasil Colonial, organizado pelo historiador Raimundo Vainfas. 39 ArquivoPblicoDoEstadoDeSanta Catarina. Ttulo Definitivo De Terras. MatheusdeSouza e Oliveira. Gaveta. 469, Folhas 1 Ove 11. 40 Jdem.Folhas 18. 41 Sobre esta questo ver MARINHO, Clia de Azevedo. Onda Negra, Medo Branco.RJ: paz e Terra, 1988; MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pnico: OsMovimentosSociaisnaDcadadaAbolio.RJ: Ed. UFRJ; SP: EDUSP, 1994.

  • Relatrios Antropolgicos Invernada dos Negros (SC)

    A presena de africanos e afro-descententes no Planalto Catarinenses constatada por di-versos estudos", bem como por evidncias histricas materiais e i materiais (Sant' Ana, 2003,p.50). A historiografia relaciona a presena deste grupo tnico, sobretudo na condio de escravos, ati-vidade dos trapeiras. Segundo Slvio Coelho dos Santos:

    "foi em funo da necessidade de abastecimento da regio das minas que o Rio Grande do sul foi incorporado economia do Brasil colonial. Os paulistas perceberam que seria um bom ne-gcio comprar o gado que se criava solta e sem dono nas pradarias do Rio Grande, para vender para os trapeiras que abasteciam Minas Gerais. Comearam, ento, a fazer incurses nas coxilhas do Rio Grande. De incio, os paulistas traziam o gado aprisionado pelo litoral at Laguna e a o enviavam em barcos para So Vicente e So Paulo. Ou ento charqueavam, enviando apenas fardos de carne seca.

    No ano de 1728, Francisco de Souza Faria conseguiu abrir uma picada que subia pelo rio Ararangu, atingia os campos de Lages e da seguia para Curitiba e So Paulo. Por esse novo caminho, o gado aprisionado no Rio Grande passou a seguir diretamente para So Pau-lo( ... ) O comrcio de gado, tornou comum pelos dois sculos seguintes a presena de tropas no caminho que seguia do Rio Grande a So Paulo. E, paralelamente, foram surgindo nos locais de pouso e de descanso do gado, especialmente nos campos de Lages, os primeiros moradores permanentes"(Santos, 1977p. 52-53).

    importante notar que na ento Provncia de So Pedro do Rio Grande (hoje Estado do Rio Grande do Sul), onde os trapeiras paulistas faziam suas incurses, a escravido de africanos e afro-descententes esteve intimamente relacionada com a pecuria". Portanto, a presena de africanos e afro-descententes no Planalto e meio Oeste catarinense, no constitui excepcionali-dade; ao contrrio, parte do processo de explorao colonial da regio. Em 1872, a populao na regio do Planalto catarinense somava aproximadamente 14.549 habitantes, dos quais 10,9% eram escravos. Dos demais, 89,1% eram classificados como habitantes livres e 28,5% como par-dos; 2,98% como pretos e 3,24% como caboclos. Portanto, a parcela de no-brancos representava 45,17% da populao. J em 1887, a populao escrava em toda Provncia de Santa Catarina so-mava 4.927 escravos e a populao escrava da cidade de Lages representava 14,94% daquele total (Marcon, 1999,p.22)". Campos Novos, onde est localizada a Invernada dos Negros, foi distrito de Lages at o ano de 1881.

    Quanto chegada dos negros ao Planalto, os primeiros negros a chegarem na regio do Planalto Serrano vieram na condio de escravos, trazidos pelo trapeiro Antnio Correia Pinto, quando, em 1766, a pedido do Morgado de Matheus, governador de So Paulo, chega para fundar o povoado de 'Lagens'. Com a bandeira de Correia Pinto, veio uma populao heterognea, com-posta por ndios 'mansos e forros', mestios, mamelucos e alguns escravos.

    Licurgo Costa, em O Continente Das Lagens"', afirma que parte dos escravos foi trazida de So Paulo, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro; outros so provenientes do litoral de Santa Catarina, sobretudo das vilas de Tubaro, Laguna e Desterro, comprados por fazendeiros e tropei-

    27 Sobre esta questo ver. MAESTRI, Mrio Jos. 28 Sobre esta questo ver tambm BORGES, Nilsen C. Oliveira. Terra, Gado E Trabalho: Sociedade Economia Escravista em Lages (1840-1865). Florianpolis: UFSC (Dissertao de Mestrado em Histria), 2005; BRANCO 29 Publicada no ano de 1982, composta de quatro volumes, dedica o captulo 7 do Volume I escravido, com os seguintes subttu-los: Raas e estatsticas. Alforrias. Compra e Venda. Os Preos. Rigores Municipais. Os Fazendeiros e os escravos. Como se vestiam. O patu dos escravos. Diverses. Festa da Padroeira. 31

  • BOLETIM IIIFORMAnYO DO IIUER VOL. 3 11' 3 200&

    rosque por ali transitavam (Costa,l982, pl80). O autor usou como fonte para suas investigaes, crnicas, jornais, documentos oficiais (recenseamentos), iconografias e tradies orais. Neste sentido, o autor no ficou preso questo do negro no Planalto apenas na conruo de escravo, apresentou, por exemplo, a iconografia de Euzbia Leite, que, segundo ele, foi escrava de Jos Manoel Leite, que participou da Guerra dos Farrapos. Seu falecimento, conforme Costa. foi no ano de 1948 ou 1949, com uma idade aproximada de 120 anos. Acrescentando que: "At alguns meses antes de falecer vinha, freqentemente a p de So Jos do Cerrito a Lages. Como era comum nos tempos da escravido, tomou o sobrenome dos seus Senhores"( ldem,p.J88).

    O autor, ao tratar das relaes entre os fazendeiros e os escravos, argumenta que a docu-mentao existente sobre a vida dos escravos em Lages era escassa, e que pouca coisa teria ficado da traruo oral. Para o autor. as poucas memrias sobre o perodo referem-se aos ltimos anos da escravido. Acrescenta ainda que " ... h cinqiienta ou sessenta anos viviam em Lages alguns destes antigos cativos( .. .). Um deles,- o Ti.o Cipriano- , se comprazia em contar fatos do tempo em que era escravo do vigrio, Padre Camilo Lllis. cujas missas ajudava como sacristo" Idem. lbidem,p./90).

    1o Benedicto Pai}oo Euzebia Lei.Je

    Licurgo relatou, a partir da tradio oral, os feitos de "Tto Banga", um escravo do fazen-deiro Manoel Joaquim Pinto, reproduzindo na obra uma iconografia do velho "pai Joo" monta-do num cavalo. abaixo da iconografia, fragmentos da narrativa oral:

    "Pae Joo, escravo do fazendeiro Manoel Joaquim Pinto, veio da Angola e ficou famoso em Lages de meados do sculo passado (refere-se ao sculo XIX) como 'Mestre Pedreiro'e ex{-mio conhecedor das propriedades medicinais da flora local. Construiu a Capelinha do Rosrio e chamado s presas para atender a um doente pros Lados do Pelotas, desenganado j pelos mdicos. salvou-lhe a vida com suas beberagens. E o paciente riqussimo pagou-o regiamente e ainda em homenagem mudou o nome da propriedade para 'Fazenda Pae Joo'. Era ele conhe-cido corrw 'Tio Banga' e tenninou seus dias como escravo de Victor Alves de Brito que alis, o alforriou ''(Idem, Jbedem, p.190).

    Entre as permanncias culturais de matri~ africana. que o autor denomina crendices e su-32 persties. cita que havia as muita

  • Relatrios Antropolgicos Invernada dos Negros (SC}

    nos grupos, que por motivaes variadas se empenhavam para que a nao se desvinculasse da organizao econmica baseada no escravagismo"(Oliveira, 1994,p.33). Diante desta realidade, foi constatado que alguns senhores de escravos optaram pela manumisso sob condio'', ou mes-mo a doao de terras- tambm sob determinadas condies- a parcela de seus escravos como forma de garanti-los na produo e a perpetuao da propriedade nas mos dos "novos donos": "A perda da funcionalidade do sistema escravista, a pequenez do valor comercial da terra e a pouca expressividade da produo haviam, neste sentido, desestimulado a manuteno, pelas camadas proprietrias, do controle do acesso s terras, viabilizando formas van"adas e, no mais das vezes improvisadas, de uso e cultivo das terras disponveis"(Machado, apud Teixiera,2005).

    Licurgo Costa identificou um certo nmero de alforrias na regio de Lages, por ocasio da Guerra do Paraguai (uma das condies de liberdade era o alistamento no contingente de sol-dados), acrescentando que "em Lages, o juiz de direito, Dr. Francelisio Adolpho P. Guimares patrocinou uma grande subscrio popular para com o seu resultado libertar escravos para o servio de guerra"(Costa, 1982,p.183).

    Em pesquisa recente (tabela abaixo) Nilsen Oliveira Borges((2005,p.133) analisou as formas de acesso alforria em Lages, no perodo compreendido entre 1840 a 1865, a partir dos inventrios e nas escrituras pblicas.

    Ocorrncia de alforrias em Lages atravs dos inventrios de acordo com as formas de acesso e sexo dos escravos (Tabela I)

    41,6

    Condicional 31,2 6 41,6 28,6 10 37,0

    Peclio 12,5 2 16,8 o 2 7,4 21,4 3 11,2

    Ocorrncia de alforrias em Lages atravs de escrituras de liberdade de acordo com as for-mas de acesso e sexo dos escravos (Tabela II)

    Condicional 19 43,2 12 54,5 7

    Peclio 4 9,1 3 13,7

    42 Sobreasvrias possibilidadesdealforriasverVAINFAS, Ronaldo. Dicionrio Do Brasil Colonial(1500~ 1808). RJ: Ed. Objetiva, 2000. 35

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    BOLETIM INFORMATIVO DO NUEA - VOL. 3 1 3 2006

    A leitura que a autora efetuou das referidas tabelas foi a seguinte:

    "Confonne se observa na tabela I, no conjunto de 92 inventrios que apresentavam posse es-crava no perodo de 1840 a 1865, 16 inventrios ( 17,4%) apresentaram alguma disposio especifica

    acerca de alforria, prometendo a liberdade para 27 cativos. Por outro lado, a tabela II que demonstra 44 escravos conseguiram alcanar a liberdade prometida em testamento e legitimadas pelos herdei-ros. Ao todo, excluindo os casos repetidos,foram libertados 59 cativo"(Borges,2005p.133).

    O Testamento de Matheus neste contexto que Matheus Jos de Souza e Oliveira, ao morrer, entre 6 e 7 de outubro

    de 1877, dois anos aps ter legalizado suas terras, legou terras a trs libertos e oito escravos. O testamento foi escrito dois meses antes do falecimento, quando Matheus encontrava-se na cama, vitimado por uma molstia.

    O inventrio, iniciado logo aps o falecimento de Matheus, contendo o translado do tes-tamento, o auto de arrolamento dos bens, a partilha e a reforma de partilha, evidenciam aspectos relevantes para a compreenso da histria da Comunidade Invernada dos Negros: os escravos Margarida, Damzia e Joaquim haviam sido libertos antes do falecimento de Matheus; Domingos, Salvador, Manoel, Francisco, Geremias, Pedro, Jozepha e Innocncia permaneceram na condio de escravos.

    Segundo o inventrio, exceto os trs que j haviam sido libertos, os demais estariam liber-tos aps o falecimento de Matheus, com a condio de acompanharem a inventariante, Pureza Emlia da Silva; ou seja, alforria sob condies, mas todos foram contemplados com uma ddiva da tera parte das terras de Matheus.

    A alforria sob condies estipuladas buscava garantir a obedincia e a lealdade do escravo ao seu senhor. Nilsen Oliveira Borges ao analisar as alforrias condicionais na regio de Lages, teceu as seguintes consideraes:

    "nonnalmente as condies estipuladas envolviam a continuao do trabalho do cativo para com o seu senhor at sua morte, e/ou a seus herdeiros por um detenninado prazo. O tratamento dis-pensado ao escravo alforriado condicionalmente seria o mesmo que a qualquer outro, uma vez que obrigado a continuar no cativeiro, desempenhava os mesmos tipos de servios e rotinas. Alm disso, o escravo alforriado ainda corria o risco de perder sua liberdade, caso fosse considerado ingrato com seu antigo senhor, ou se no cumprisse as condies estipuladas"(Borges,2005,p.l35).

    No testamento Matheus declara no ter tido filhos e ter resolvido deixar para os libertos e cativos, "a minha tera a qual lhes ser dada em Campos e terras lavradia.s dentro da Enver-nada e na linha que divide com meu irmo Joo Antunes de Soum"". (Ver parte do documento transcrito em anexo).

    As terras doadas estariam sob algumas condies, a exemplo de outros casos conhecidos, como, por exemplo, Casca no Estado do Rio Grande do Sul". A anlise do testamento revela as condies quanto ao desfrute da herana. Uma delas era a de que a ocupao deveria ser de usu