quilombos e revoltas escravas no brasil

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VO

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J O Ã O J O S É R E I S

Quilombose revoltasescravas noBrasil“Nos achamos em campoa tratar da liberdade”

Embora não tivessem sido as únicas formas de resistência co-

letiva sob a escravidão, a revolta e a formação de quilombos foram

das mais importantes. A revolta se assemelha a ações coletivas

comuns na história de outros grupos subalternos, mas o quilombo

foi um movimento típico dos escravos. É difícil, porém, em muitos

casos, distinguir um do outro. Apesar de muitos quilombos terem

se formado aos poucos, através da adesão de fugitivos individuais

ou agrupados, outros tantos resultaram de fugas coletivas iniciadas

em revoltas. Tal parece ter sido, por exemplo, o caso de Palmares.

Ao mesmo tempo os quilombolas inúmeras vezes saíram de seus

esconderijos para sublevar a escravaria de engenhos e fazendas,

identificando-se perfeitamente ao que entendemos por revolta.

Este artigo é parte de um pro-jeto mais amplo apoiado peloCNPq.

JOÃO JOSÉ REISé professor doDepartamento deHistória da UFBa.

NA OUTRA PÁGINA,

À ESQUERDA,

AMULETO MALÊ, DE

1835; EM REDONDO,

GRAVURA DE

RUGENDAS,

CAPITÃO-DO-MATO,

DE JOHANN M.

RUGENDAS; E

ABAIXO, CAPELA

DO ENGENHO

SANTANA, ILHÉUS

(FOTO DO AUTOR)

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A própria existência do quilombo e so-bretudo sua defesa militar e incursões emterritório inimigo podem ser consideradasrevolta.

Se a relação entre quilombo e revolta eracomplexa, não menos complexas eram as ex-periências dos escravos, e de seus oponentes,face a cada um desses movimentos. Oquilombo podia ser pequeno ou grande, tem-porário ou permanente, isolado ou próximodos núcleos populacionais; a revolta podiareivindicar mudanças específicas ou a liber-dade definitiva, e esta para grupos específi-cos ou para os escravos em geral. Além des-sas questões mais amplas, há outras relativasao contexto histórico mais favorável aosurgimento de quilombos e revoltas, o perfilde seus participantes e líderes, suas motiva-ções e vocabulário. É pensando nessas ques-tões — e outras delas decorrentes — que passoa discutir a resistência coletiva dos escravosno Brasil.

IA formação de grupos de escravos fugiti-

vos se deu em toda parte do Novo Mundoonde houve escravidão. No Brasil estes gru-pos foram chamados de quilombos oumocambos, os quais às vezes conseguiramcongregar centenas e até milhares de pesso-as. O grande quilombo dos Palmares, naverdade uma federação de vários agrupamen-tos, chegou a contar com uma população dealguns milhares de almas, embora provavel-mente não os quinze, vinte e até trinta milhabitantes que os autores citam sem maiorrigor crítico das fontes (1). Um dos responsá-veis por esse número alto foi Johan Nieuhoff,que visitou o Brasil na década de 1640 e es-creveu que havia seis mil quilombolas nos“pequenos Palmairas”, cerca de oito mil nos“grandes Palmairas”, “além de muitos ou-tros” em outros mocambos palmarinos. Nadécada de 1670, provavelmente para justifi-car diante da metrópole seu fracasso contra oquilombo, o governador de PernambucoPedro de Almeida estabeleceu a cifra de vintemil. As mesmas razões podem ter levado umoutro governador, Francisco Brito, a declarartrinta mil (2). A admitir números tão altosteríamos de pensar onde estava todos quandoPalmares caiu e o que lhes aconteceu poste-riormente, pois entre mortos e capturados asfontes não ultrapassam a cifra de dois mil.

Como se repetiu em muitos outros

quilombos, esta população não era constituídaapenas de escravos fugidos e seus descen-dentes. Para ali também convergiram outrostipos de trânsfugas, como soldados desertores,os perseguidos pela justiça secular e eclesiás-tica, ou simples aventureiros, vendedores,além de índios pressionados pelo avanço eu-ropeu. Mas predominavam os africanos e seusdescendentes. Ali, africanos de diferentesgrupos étnicos administraram suas diferen-ças e forjaram novos laços de solidariedade,recriaram culturas. Apesar da falta de dadosmais diretos, considerando a direção do tráfi-co atlântico na época, supõe-se que Palmaresfoi predominantemente um cadinho de gru-pos originários do Centro-Sul da África, gen-te de grupos lingüísticos kikongo, kimbundu,ovimbundo e outros da região Congo-Ango-la. O próprio termo quilombo derivaria de ki-lombo, uma sociedade iniciática de jovensguerreiros mbundu adotada pelos invasoresjaga (ou imbangala), estes formados por gen-te de vários grupos étnicos desenraizada desuas comunidades. Esta instituição teria sidoreinventada, embora não inteiramentereproduzida, pelos palmarinos para enfrentarum problema semelhante, de perda de raízes,deste lado do Atlântico. Teria sido de fatodepois de Palmares que o termo quilombo seconsagrou como definição de reduto de es-cravo fugido. Antes se dizia mocambo (3).Mas lá também esteve presente a cultura doNovo Mundo. Escavações arqueológicas atu-almente em curso na Serra da Barriga têmrecolhido um grande volume de cerâmicaindígena, o que pode significar uma presençaindígena mais importante do que até agora seadmitiu, ou a adoção intensiva pelospalmarinos da cultura material nativa (4).

Nessas comunidades, ao que tudo in-dica, homens e mulheres organizaram a pro-dução de maneira eficiente e desenvolveramestruturas originais de parentesco e de poder,mas não se sabe muito sobre estes e outrosaspectos da organização interna de Palmares.Os autores freqüentemente generalizam paratoda a história de Palmares informações to-madas de fontes que retratam, sem muitovagar, condições locais específicas e momen-tos isolados de uma sociedade composta devários núcleos populacionais, que durouquase cem anos. Por exemplo, a poliandria,comentada por vários autores a partir de do-cumento de 1677, se não foi mais um equívo-

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novembro, sendo sua cabeça exposta em lu-gar público de Recife, para glorificar o feitoe provar aos escravos que o líder palmarinonão era imortal como acreditavam (8).

Depois de Palmares os escravos não con-seguiram reproduzir no Brasil qualquer coisaminimamente próxima do que representara ogrande quilombo. O historiador RaymondKent chama a atenção para desenhos de FransPost sobre mapa publicado na Rerum peroctenium in Brasilia, de Gaspar Barlaeus, emque Pernambuco é emblematicamente repre-sentado, em 1647, de um lado por um enge-nho, do outro por Palmares, aliás a única re-presentação iconográfica do quilombo de quese tem conhecimento (9). Os senhores egovernantes coloniais cuidariam para quenunca mais essa dualidade de poderes e vive-res se repetisse. Silvia Lara mostradetalhadamente como a colônia concebeuestratégias repressivas que, se não puderameliminar a fuga, tentaram manter sob contro-le o número de escravos fugidos e a formaçãode mocambos. Foi nesse processo que se in-ventou o famigerado capitão-do-mato (tam-bém conhecido como capitão-de-entrada-e-assalto e outros termos), instituição dissemi-nada por toda colônia como milícia especi-alizada na caça de escravos fugidos e destrui-ção de quilombos (10).

Como era de se esperar de caçadores degente, os capitães-do-mato não figuravamentre as pessoas mais íntegras da Colônia,sendo freqüentemente acusados dos maioresdesmandos, entre os quais se contava o deroubar escravos, usar indevidamente seu tra-balho e prender e até matar cativos inocentespara obter recompensas. Já em 1716 umaordem régia ameaçava a quem assim agissede “seu posto tirá-lo e castigá-lo como la-drão” (11). Capitão-do-mato não contava,efetivamente, entre as ocupações mais hon-rosas. Em 1833, em Minas do Rio de Contas,Bahia, o coiteiro de um casal de escravosfugidos chamou de “pedestres e capitães domatto”, a título de insulto, um grupo de guar-das nacionais (12). Mas a estabilidade daescravidão e da própria Colônia, depois doImpério, dependia, bem ou mal, dos serviçosdesses homens. Um capitão-mor deles van-gloriava-se disso, afirmando-os necessários“à segurança interna dos Povos e o dominiodos Senhores sobre os Escravos e malfeito-res, que de outro modo ou todos [os escravos]

co de europeus desejosos de enfatizar a “bar-baridade” dos palmarinos, podia estar circuns-crita a um ou outro mocambo mais recente-mente formado, e não todo Palmares, vez quea falta de mulheres que a justificaria já deviaestar resolvida àquela altura (depois de váriasdécadas de história palmarina) nos mocambosmais antigos, demograficamente mais está-veis (5). A historiografia de esquerda, quedesmitificou tantos aspectos de Palmares,criou outros tantos mitos freqüentemente paraservir projetos políticos imediatos. DécioFreitas, por exemplo, num ótimo livro soboutros aspectos, descobriu até “assembléiaspopulares” em Palmares! E a versão muitodifundida de que se tratava de uma sociedadeeconomicamente igualitária e distributiva,reapresentada carnavalescamente no filmeQuilombo, de Carlos Diegues, só é possívelatravés de uma leitura muito parcial das fon-tes. A produção de excedentes para formarestoques em “celeiros coletivos” parece maiscom mecanismos de tributo característicos devárias formações sociais complexas. E é evi-dente que havia uma elite constituída em tor-no dos líderes, com muitos privilégios. Entreestes, não tanto o controle da terra, como seesta fosse a única maneira de dominar emregimes agrários, mas o controle de gente parareproduzir (daí a poligamia dos poderosos) epara produzir, coletar e particularmente guer-rear, saquear e controlar rotas e fontes decomércio, comércio que existia entre ospalmarinos e a sociedade em seu torno. Ocontrole de guerreiros e armas de fogo, porexemplo, deve ter sido uma fonte importantede poder e prestígio, como era na África. Semuito da hierarquia social era resultado daguerra, nem por isso ela deixava de existir epodia ser rígida (6).

O que se sabe mais sobre Palmares, e estámelhor desenvolvido em suas várias versões,diz respeito a sua história militar, pois eraisso que interessava aos adversários respon-sáveis por escrever os documentos conheci-dos sobre o quilombo (7). As várias comuni-dades palmarinas (Macaco, a capital,Subupira, Dambraganga, Tabocas, Osengaentre outras) resistiram quase cem anos, aolongo do século XVII, a várias expediçõesmilitares de Portugal e Holanda, desafiandoduas potências mundiais da época. Macacocaiu em 1694 e seu líder, Zumbi, teria sidomorto no ano seguinte, precisamente a 20 de

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fugiriam, ou se levantariam contra o mesmoPaiz [...] devendo-se a este Corpo [de capi-tães-do-mato] a segurança e tranquilidadeinterna de todo o paiz d’America, e da suasubsistencia” (13). Não satisfeitos com essastropas humanas, os senhores de escravos ain-da recorreram a forças divinas, concedendo aSanto Antônio patente militar, entre outrascoisas, por sua ajuda em encontrarquilombolas (14).

Assombrada com as dimensões dePalmares, a metrópole lusitana procurou com-bater os quilombos no nascedouro. No séculoXVIII quilombo já era definido como o ajun-tamento de cinco ou mais negros fugidosarranchados em sítio despovoado. Essa defi-nição mesquinha, concebida para melhorcontrolar as fugas, terminou por agigantar ofenômeno aos olhos de seus contemporâneose de estudiosos posteriores. Contados a partirde cinco pessoas, o número de quilombos foiinflacionado nas correspondências oficiais.Se não figuravam como ameaça efetiva àescravidão, eles passariam a representar umaameaça simbólica importante, povoando opesadelo de senhores e funcionários coloni-ais, além de conseguir fustigar com insistên-cia desconcertante o regime escravista.

Para este, o problema maior estava exata-mente em que os quilombos, pelo menos amaioria deles, não ficaram isolados, perdidosno alto das serras, além da sociedadeenvolvente. Embora em lugares protegidos,os quilombolas na sua maioria viviam pró-ximos a engenhos, fazendas, lavras, vilas ecidades, na fronteira da escravidão, manten-do uma rede de apoio e interesses que envol-via escravos, negros livres e mesmo bran-cos, de quem recebiam informações sobremovimentos de tropas e outros assuntosestratégicos. Com essa gente eles trabalha-vam, se acoitavam, negociavam alimentos,armas, munições e outros produtos; comescravos e libertos podiam manter laçosafetivos, amigáveis, parentais e outros. Aidéia muito comum, de que os quilombosformavam comunidades isoladas e auto-suficientes não é confirmada pela pesquisa.Edison Carneiro já chamava atenção paraisso. Nem os quilombolas se relacionavamapenas com os grupos excluídos socialmen-te, como a tecer alianças de classe coerentese cristalinas (15). Estes grupos, na verdade,tinham muitos limites na ajuda que podiam

dar para a sobrevivência dos quilombolas.É claro que houve os casos de quilombos

isolados, às vezes topados por expedições queaté desconheciam sua existência, mas as evi-dências para o próprio Palmares, e mais aindapara os quilombos que o sucederam Brasilafora, apontam para uma relação muito maisintensa entre quilombolas e outros grupossociais. Quilombos como os que cercavamVila Rica durante o século XVIII, ou o doCatucá, que se desenvolveu nos arredores deRecife e Olinda entre 1817 e 1840, váriosquilombos instalados em redor de Salvador ede São Paulo nas primeiras décadas do sécu-lo XIX, o quilombo do Piolho nas vizinhan-ças de Cuiabá na década de 1860, osquilombos fluminenses da bacia do Iguaçu eda periferia da Corte, assim como os da peri-feria de Porto Alegre, ao longo do século XIX,todos mantinham redes de comércio, rela-ções de trabalho, de amizades, parentesco,envolvendo escravos ainda assenzalados,negros livres e libertos, comerciantes mesti-ços e brancos. A essa longa cadeia de rela-ções Flavio Gomes, interpretando o fenôme-no em Iguaçu, chamou de “campo negro”,porque constituía um espaço social, econô-mico e geográfico através do qual circulavamos quilombolas, articulando mocambos, sen-zalas, tavernas, roças, plantações, caminhosfluviais e pântanos, alcançando vilas de pe-queno porte e cidades do porte do Rio de Ja-neiro, que possuía mais de 200 mil habitantesem meados do século XIX (16).

Essas relações de alto risco atormentavamsenhores e governantes coloniais e imperiais.Mas os amocambados também assaltavamviajantes nas estradas, às vezes tornando-asintransitáveis, e atacavam povoados e fazen-das, onde roubavam dinheiro e outros bens,recrutavam escravos para fortalecer o grupoe seqüestravam escravas para melhorar ademografia predominantemente masculinados quilombos. Apesar disso não se pode di-zer que uma economia “parasitária” tivessesido o aspecto central das atividades dosquilombos (17). Além de assaltar, roubar esequestrar, também plantavam, colhiam, ca-çavam, constituíam família. Seria tediosolistar aqui quantas vezes os grupos de exter-mínio destruíram roças de milho, frutas, al-godão, cana e outros produtos cultivados pelosquilombolas, sobretudo covas de mandioca,roças que eram arrasadas para os quilombos

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“não tornarem a servir de Criminozo azilo”,como escreveu o capitão-mor que assaltou osquilombos do Orobó e Andaraí na Bahia em1796 (18). Nas áreas de mineração — MinasGerais, Goiás, Mato Grosso, Maranhão — osfugitivos se dedicavam à prospecção de pe-dras e metais preciosos, que trocavam clan-destinamente com taverneiros por produtosnecessários à sua sobrevivência, armas, mu-nição e em alguns casos até compravam aalforria, passando de negros fugidos paranegros libertos. Estudando Goiás, MaryKarasch comenta que os quilombolas foramresponsáveis pela descoberta de inúmeraslavras auríferas, as quais eram posteriormen-te apropriadas pelos caçadores de escravos(19). A caça ao quilombola e a procura doouro caminhavam juntas nas expedições fei-tas ao interior. A entrada realizada em 1769,a partir de Minas Gerais, pelo mestre-de-cam-po Inácio Correia Pamplona, foi saldada porum certo Francisco Camacho, sertanejoversejador da “picada dos Goiases”, que en-tre loas ao comandante arrematava:

“Tudo feito nesta maneirapólvora, chumbo e patrona,espingardas à bandoleira,

entrando duas bandeirasProcurando Negros e ouro,Deus nos depare um tesouro

para garrochiar neste touro” (20).

Edison Carneiro, a propósito, já escreve-ra que “o quilombo [...] serviu aodesbravamento das florestas além da zona depenetração dos brancos e à descoberta denovas fontes de riquezas” (21). Na capitaniae depois província do Rio de Janeiro, as fon-tes sugerem que os quilombolas de Iguaçumantinham um intenso comércio de madei-ras com a Corte e também empregavam-secomo trabalhadores nas fazendas de propri-etários que sabiam estar contratando negrofugido. No Maranhão, em 1867, um juiz dedireito denunciava “a ambição desregrada decertos indivíduos, ambição que os leva asedusir escravos para fugir, tendo em vistatirar vantagens com as colheitas destes que asvendem por modicos preços...” (22). Esta eraaliás uma prática comum, como revelam osanúncios de escravos fugidos publicados em

jornais do Brasil oitocentista, anúncios quefreqüentemente ameaçavam de processo eexigiam indenização dos coiteiros. No sul daBahia, na vila de Barra do Rio de Contas (atu-al Itacaré), em 1806, dezenas de escravos seaquilombaram numa comunidade de lavra-dores que os empregavam no cultivo damandioca. Quando este quilombo, chamadoOitizeiro, foi disperso e uma devassa instala-da para investigá-lo, descobriu-se que os pró-prios escravos dos lavradores eram próspe-ros produtores de mandioca e ativos coiteirosde calhambolas. Repito: escravos que empre-gavam outros escravos (23).

Isolados ou integrados, dados à predaçãoou à produção, o objetivo da maioria dosquilombolas não era demolir a escravidão,mas sobreviver, e até viver bem, em suas fron-teiras. Também não procede, exceto talvezem poucos casos, a idéia de que osquilombolas fugiam para recriar a África nointerior do Brasil, com o projeto de construiruma sociedade alternativa à escravocrata ealém disso numa reação “contra-aculturativa”ao mundo dos brancos (24). Obviamente queos quilombos formados por africanos-natosaproveitaram tradições e instituições origi-nárias da África, como indiquei no caso dePalmares. Mas isso não era um movimentoprivativo dos quilombos. Apesar da vigilân-cia senhorial, o mesmo acontecia nas senza-las. Contudo, tanto nestas como naqueles, porpouco que se conheça realmente da dinâmicainterna de ambos, predominou a reinvenção,a mistura fina de valores e instituições várias,a escolha de uns e o descarte de outros recur-sos culturais trazidos por diferentes gruposétnicos africanos ou aqui encontrados entreos brancos e índios. Este deve ter sido o pro-cesso de formação das culturas afro-brasilei-ras — e escrevo no plural para indicar asvariações regionais e as diversas estratégiasde sincretismo cultural. Mesmo entre ospalmarinos parece ter sido assim. Sobre suareligião, Nieuhoff escreveu: “Eles retêm algodo culto religioso dos portugueses, mas têmseus peculiares sacerdotes e juízes”. Mais dedois séculos depois, em 1877, no quilombodo Limoeiro, Maranhão, foram encontradaspela expedição repressora, segundo seu co-mandante, “duas casas de santos; sendo umacom imagens de Santos, e outra onde encon-tramos figuras extravagantes de madeira,cabaças com ervas podres e uma porção de

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pedras de que em tempos remotos os indíge-nas se serviam como machados, as quais amaior parte dos mocambeiros venera como ainvocação de Santa Bárbara” (25). Essa dis-ponibilidade para mesclar culturas era umimperativo de sobrevivência, exercício desabedoria também refletida na habilidadedemonstrada pelos quilombolas de comporalianças sociais, as quais inevitavelmente setraduziam em transformações einterpenetrações culturais. É óbvio que es-cravos e quilombolas foram forçados a mu-dar coisas que não mudariam se não subme-tidos à pressão escravocrata e colonial, masfoi deles a direção de muitas dessas mudan-ças, pois não permitiram transformar-se na-quilo que o senhor desejava. Nisso, aliás,reside a força e a beleza da cultura que escra-vos e quilombolas legaram à posteridade (26).

Da perspectiva da classe senhorial, osquilombolas obviamente constituíam umpéssimo exemplo para os escravos. Daí ocuidado com que foram reprimidos. EmMinas Gerais, durante a primeira metade doséculo XVIII, autoridades locais e os própri-os governadores, atormentados com a proli-feração dos mocambos, conceberam puniçõesbárbaras contra os quilombolas, como cortar-lhes uma das pernas ou o tendão de aquiles.Foi a metrópole que controlou a sanha dosmineiros, recomendando a barbaridade me-nor de imprimir com ferro em brasa a letra“F” sobre a espádua do fujão e o corte de umaorelha no caso de reincidência. A lei tambémprevia o corte de um braço do quilombola quecometesse “delito capital” e a pena de mortese reincidisse (27). Na Bahia, cincoquilombolas que atuavam perto da capitalforam capturados, julgados sumariamente,enforcados e esquartejados, no início do sé-culo XVIII (28).

Mas nada detinha a fuga e a formação dequilombos. Ambos eram parte irremovívelde relações sociais fundadas na violência dochicote e outras, entre estas o cerceamento delocomoção, trabalho independente, autono-mia cultural e constituição de família e segu-rança para seus membros. Por isso os capi-tães-do-mato, apesar da ajuda de Santo Antô-nio, eram insuficientes para dar conta dosquilombos e periodicamente expedições es-peciais eram montadas para assaltá-los, agru-pando milícias locais (ordenanças), aventu-reiros e índios. Estes últimos se encontravam

dos dois lados, e às vezes mudavam de ladono decorrer do conflito. Como os quilombolas,os índios eram caçados no interior da Colô-nia. Os exemplos são muitos. Os paulistasque venceram Palmares, antes fizeram guer-ra a populações indígenas no Ceará e RioGrande do Norte. Em 1723, o Conselho Ul-tramarino mandou que se organizasse umaexpedição ao sul da Bahia para extinguir ín-dios hostis e destruir um mocambo com cercade quatrocentos habitantes (29). Como nestacorrespondência dos conselheiros do rei, osverbos extinguir e destruir foram os maisusados pela metrópole para se relacionar comíndios e negros rebeldes. Mas como a históriaé cheia de ciladas, os índios também se des-tacaram, em todo o Brasil e em várias épocas,como tropa antiquilombo. Centenas, talvezmilhares, foram usados no assalto final aPalmares, em 1694. Na Bahia colonial atua-ram nesse ofício sistematicamente, sendoresponsáveis, por exemplo, pela destruiçãodo Buraco do Tatu, mocambo próximo aItapoã, em 1763, e do Oitizeiro, no sul daBahia, em 1806 (30). Neste último caso, atropa repressora de cinqüenta soldados eraformada exclusivamente por índios cariris (ouKiriri, como querem os antropólogos) da al-deia de Pedra Branca.

A pressão militar era constante. Daí te-rem sido poucos os quilombos que sobrevi-veram por longo tempo, embora o mesmolugar pudesse servir de esconderijo paraoutras levas de negros fugidos. Em geral osquilombos eram flutuantes e móveis. Alémde formados em parte por escravos que circu-lavam por eles periodicamente, sem fixaremresidência, os assaltos dos capitães-do-matoe milicianos em geral resultavam em mortes,prisões, tortura e na dispersão dos que conse-guiam uma vez mais escapar. Sobretudo osquilombos suburbanos eram obrigatoriamentemóveis, já que a proximidade dos centrosurbanos facilitava a denúncia e repressão. Damesma forma os quilombos dos últimos anosda escravidão, em São Paulo por exemplo,mais dedicados à predação do que à lavoura,tanto pela maior repressão no campo comopelo enxugamento de terras disponíveis àocupação quilombola (31). Daí ser difícil falarsempre, sem maiores explicações, de “comu-nidade quilombola”, porque comunidadepressuporia alguma longevidade, que permi-tisse certa estabilidade, a sucessão de gera-

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ções, o estabelecimento de uma memóriagrupal, de costumes, rituais, valores própri-os, formas consagradas de lideranças queorganizassem politicamente e defendessemmilitarmente o grupo. Os quilombos queconseguiam todas essas características nãoforam muitos e se tornaram cada vez maisraros com a expansão econômica edemográfica para o interior. Mais amiúde oquilombola, se pertencia a uma “comunida-de”, era à comunidade escrava mais ampla,pois, além de continuar circulando pela sen-zala, tendo sido cativo ontem talvez viesse asê-lo amanhã. O escravo da senzalafreqüentemente tinha em seu currículo umaou mais passagens pelo quilombo. Volto alembrar a imagem de “campo negro” propos-ta por Flávio Gomes, melhor do que “comu-nidade” por ele também adotada, para com-preender esses grupos quilombolas mais pas-sageiros.

Apesar das dificuldades da ação repressi-va, os senhores do Brasil, ao contrário de seusiguais alhures, raramente negociaram a paz(32). Uma dessas raras ocasiões foi o tratadocelebrado entre o Ganga Zumba de Palmarese o governador de Pernambuco, Pedro deAlmeida, em 1678, que não deu certo emparte pela oposição interna liderada por Zum-bi. Como os tratados em outras colôniasescravistas, este previa a delimitação de umterritório e a liberdade para os nascidos emPalmares, os quais deveriam no entanto de-volver os escravos fugidos e obviamente re-jeitar a incorporação de novos fugitivos. Comoargumenta Richard Price, tivesse a paz preva-lecido, Palmares talvez pudesse vir a ser umacomunidade muito parecida com a dosquilombolas do Suriname, cujos descendentessobreviveram a nossos dias como um povoautônomo, com identidade cultural e organi-zação política próprias (33). Em Palmareshouve ainda, mesmo sob Zumbi, outras tenta-tivas malogradas de acordo, bem como a idéiade enviar uma missão religiosa para pacificá-lo, esta última veementemente desaconselhadapelo padre Antonio Vieira (34).

Predominou assim a tese, entre senhoresde escravos, governantes e letrados coloniaisdo Brasil, de que Palmares não devia dar cer-to, nenhum quilombo devia. Era um péssimoexemplo para os escravos assenzalados. Alémdisso, e mais importante, temia-se que oquilombo de hoje se transformasse na revolta

de amanhã. Em Minas Gerais pós-Palmaresessa possibilidade entrou na agenda de váriosgovernadores da Idade do Ouro, chegando abeirar a histeria na suposta conspiração es-crava de 1756, que seria liderada porquilombolas (35). A integração entrequilombos e levantes escravos se efetivou emvárias ocasiões durante o ciclo de rebeldiaescrava na Bahia da primeira metade do sécu-lo XIX. Na revolta de fevereiro de 1814, osquilombolas desceram o morro para se unir aescravos pescadores empregados nas arma-ções pesqueiras vizinhas a Itapoã. Pouco de-pois, naquele mesmo ano, foi investigada umaconspiração liderada pelos haussás que en-volvia uma combinação entre quilombos su-burbanos e cantos de trabalho de Salvador. Amais famosa das revoltas iniciada por umquilombo ocorreu em 1826, de novo nas ime-diações da capital. O plano previa a concen-tração de escravos fugidos no quilombo doUrubu, de onde desceriam para Salvador onde,reunidos com conspiradores dali, levantari-am a escravaria urbana por ocasião do Nataldaquele ano. O plano abortou porque um gru-po de capitães-do-mato deu no quilombo, quefoi obrigado a reagir e, com a chegada denovas tropas, terminou perdendo a batalha.No ano seguinte, em São Mateus, na provín-cia do Espírito Santo, escravos aquilombadosameaçaram levantar os das fazendas para in-vadir a vila, mas, como na Bahia, as autorida-des se anteciparam e sufocaram o movimentono nascedouro. Já na comarca de Viana, noMaranhão, mais de duzentos escravos doquilombo de São Benedito do Céu ocuparamvárias fazendas e sublevaram seus escravosem 1867 (36).

Esses episódios sugerem que as autoridadesestavam certas quando imaginavam que umagrande rebelião escrava — ao estilo do Haiti,que bem conheciam — pudesse ter início numquilombo. Isto é paradoxal se considerarmos,como argumentam Donald Ramos e MaryKarasch, que sob certo ângulo a existência dequilombos pode ter funcionado como uma vál-vula de escape para tensões escravistas que deoutra forma explodiriam nas senzalas (37).

IISe os quilombos representaram uma re-

beldia ambígua, as rebeliões escravas cons-tituíram a mais direta e inequívoca forma deresistência coletiva. Quando o escravo cons-pirava uma revolta, ele raramente contava

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com a possibilidade de acordo. Mas nem todarevolta visava a destruição do regimeescravocrata, ou mesmo a liberdade dos es-cravos nela envolvidos. Muitas visavam ape-nas corrigir excessos de tirania, diminuir atéum limite tolerável a opressão, reivindicandobenefícios específicos — às vezes a recon-quista de ganhos perdidos — ou punindo fei-tores particularmente cruéis. Eram levantesque almejavam reformar a escravidão, nãodestruí-la. Nós vamos encontar, ao longo dadiscussão que se segue, revolta de todos essestipos.

Desde que pisaram neste lado do Atlânti-co como escravos, os africanos conspiraramcontra os senhores. A primeira grande rebe-lião escrava no Novo Mundo parece ter sidofeita pelos cativos de Diego Colombo, filhodo “descobridor” Cristóvão, no Natal de 1522.No Brasil não se tem notícias de rebelião negraimportante durante as primeiras décadas dacivilização do açúcar. Em seu estudo sobre osengenhos baianos, Stuart Schwartz declaradesconhecer “insurreições escravas organi-zadas” anteriores ao final do século XVIII,predominando a resistência individual, asfugas e a formação de quilombos. As próspe-ras Minas Gerais, uma região tão florida dequilombos -- o historiador Carlos MagnoGuimarães contou mais de cem --, conhece-ram umas poucas conspirações (em 1711,1719 e 1756), que não chegaram às vias defato (38).

As revoltas se tornaram mais freqüentes apartir do final do século XVIII, favorecidaspela expansão das áreas dedicadas à agricul-tura de exportação e a conseqüente intensifi-cação do tráfico escravo, que fez crescer apopulação cativa e em particular o seu con-tingente africano. Apenas durante os últimosquarenta anos do tráfico, chegaram ao Brasil31% dos cerca de quatro milhões de africanosimportados ao longo de três séculos e meio(39). Acrescente-se que, durante o século XIX,aconteceram os movimentos pela indepen-dência e revoltas regionais, se difundiramideologias liberais e mais tarde abolicionistas,processos que criaram um ambiente favorá-vel à rebeldia escrava, quando não a envolve-ram diretamente.

Alguns tipos de estrutura demográficafavoreceram, embora não determinassem, arebelião escrava. Um aumento da proporçãode escravos na população, como se deu nesse

período, somado a um maior número de afri-canos, e mais ainda, de africanos do mesmogrupo étnico, reforçava a identidade coletiva,o estranhamento em relação à cultura local eestimulava a consciência de força diante dascamadas livres (40). Onde os negros consti-tuíam maioria da população e os africanosnatos a maioria dos escravos, a cultura e ide-ologia brancas foram incapazes de penetrarem profundidade a mentalidade escrava. Te-mos aí uma questão que começa na estruturademográfica e vai incidir sobre as estruturasmentais ou simbólicas. Os escravos não sesubmeteram aos valores e maneiras dos se-nhores, forjando novos comportamentos einstituições a partir de tradições africanas. Sea influência da cultura local foi inevitável, a“crioulização cultural” se deu em grande par-te através de recriações étnicas e sincretismosinterétnicos no interior da própria comunida-de africana.

Por outro lado, a alta taxa de masculinida-de (proporção homem/mulher) inibiu, em-bora não tivesse impedido totalmente, a for-mação de famílias escravas e o envolvimentodos cativos na rede paternalista senhorial,paternalismo aqui entendido como hegemoniade classe e não harmonia entre classes (41).Tivessem paternalismo senhorial e famíliaescrava estável prevalecido, a solidariedadeétnica e de classe teriam sido provavelmentemais fracas entre os escravos. Estes pensari-am duas vezes antes de colocar mulheres efilhos, e mesmo o senhor e sua família, nalinha de fogo da rebelião. Nos Estados Uni-dos, durante o século XIX, ao lado de outrosfatores como a existência de uma vigilantemaioria branca, tem-se atribuído o númeroreduzido de rebeliões à prevalência da famí-lia escrava, embora os estudiosos divirjamsobre se esta floresceu num ambientepaternalista (42). Já os escravos da Bahia, porexemplo, foram particularmente irrequietosdurante as três primeiras décadas do séculoXIX e tinham o perfil demográfico que aca-bei de descrever, com as conseqüências cul-turais apontadas.

Se os escravos nascidos na África pare-cem ter sido o principal agente impulsor doslevantes escravos brasileiros, os crioulos nãoeram passivos. Além de fugirem e formaremquilombos, os crioulos (negros nascidos noBrasil) possivelmente se fizeram mais pre-sentes do que os africanos em movimentos

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feitos por outros setores sociais, como osmotins anti-lusos na Bahia, em Pernambuco,Sergipe, Rio de Janeiro, Maranhão, entre 1817e 1831, na Balaiada, Farrapos, etc., os quaisdiscutirei adiante. Com o declínio da popula-ção escrava africana depois do fim do tráfico,em 1850, eles responderam pela formação dequilombos e promoção de revoltas, especial-mente nos últimos anos da escravidão. Masantes disso há exemplos de levantes de plantéispredominantemente crioulos.

Em 1789, no engenho Santana de Ilhéus,Bahia, crioulos pararam o trabalho, mataramo feitor e se adentraram nas matas com asferramentas do engenho, até reapareceremcom uma proposta de paz em que pediammelhores condições de trabalho, acesso a roçasde subsistência, facilidades paracomercializarem os excedentes dessas roças,direito de vetar o nome dos feitores escolhi-dos, licença para celebrarem livremente suasfestas, entre outras exigências. Fingindo acei-tar negociar, o senhor prendeu os líderes edebelou o movimento. Trinta anos depois osescravos ocuparam o mesmo engenho por trêsanos, entre 1821 e 1824. Nesta última data,parte deles formou um quilombo nas própriasterras do engenho que só foi dissolvido em1828. Neste ano, o inventário dos bens domarquês de Barbacena, então proprietário doSantana, indicava que dos 222 escravos queali viviam apenas um era africano. Além dis-so o engenho tinha uma demografia equili-brada, com homens e mulheres em iguaisproporções, provavelmente formando famí-lias, e a presença de muitas crianças. Quadroparecido apresentava o engenho Vitória, noRecôncavo baiano. Em 1827, em pleno ciclode revoltas africanas, aconteceu ali uma decrioulos que resultou na morte do feitor e deum seu irmão, após o que os escravosretornaram em paz para as senzalas. Um cen-so feito dois anos antes revela que neste en-genho viviam quatro escravos pardos, 133crioulos, 38 escravas pardas, dez crioulas e32 africanas. Nenhum homem africano. Osexemplos dos engenhos Santana e Vitóriasugerem que, quando eram maioria, os criou-los podiam fazer suas próprias revoltas (43).

Difícil foi, em alguns contextos, a uniãoentre crioulos e africanos na revolta. Na Bahiaos crioulos foram ameaçados de morte e emalguns casos mortos durante levantes africa-nos. É provável que tenham se aliado a se-

nhores contra os levantes sufocados com aajuda de escravos leais. No engenho Santanade Ilhéus, em 1789, os crioulos se rebelarammas, no tratado de paz que propuseram, que-riam privilégios ocupacionais em detrimentodos africanos.

Fora da Bahia há notícia de que os criou-los, apesar de minoritários e alijados da lide-rança, se uniram a africanos na conspiraçãode Campinas, em 1832, e na revolta do Pati deAlferes (ou de Manoel Congo), em Vassou-ras, 1838. Neste último episódio foram leva-dos ao banco dos réus 21 escravos, dos cercade duzentos de uma fazenda em Pati dos Al-feres. Após matarem o feitor de uma fazendavizinha do mesmo proprietário, eles fugiramsob a liderança de Manoel Congo para formarum quilombo. Desses 21, quinze eram africa-nos e seis crioulos, mas de fato a maioriamulheres que se defenderam dizendo teremsido forçadas a participar da fuga em massa.Em Campinas, 28 escravos foram acusadosde conspirarem em várias fazendas da regiãopara matar os brancos e obterem a liberdade.Entre estes escravos, quatro eram definitiva-mente crioulos, outros três, que não declara-ram suas origens, podem também ter sido. Osafricanos, como no caso de Pati do Alferes,pertenciam ao grupo lingüístico banto (44).

Suely Robles Reis de Queiroz criticou-me acertadamente por eu ter, num trabalhoanterior, exagerado e visto além das frontei-ras baianas um certo “pacifismo crioulo” e aausência de escravos bantos em revoltas. Suacrítica procede, aqui estou corrigindo meuexagero, e vem mais correção adiante, mascontinuo achando que alguns grupos étnicos,devido a experiências históricas específicasaqui e na África, foram mais propensos à re-beldia coletiva do que outros. Aquela autoraargumenta que a vida sob a escravidão — ouseja a experiência de classe — unia todos osescravos na luta contra ela. Não é tão simples.Os africanos para aqui trazidos como escra-vos não eram tábula rasa sobre a qual foi sim-plesmente inscrita a nova experiência comoescravos. A própria experiência escrava nãofoi a mesma em todo lugar e todas as épocas,apesar de a escravidão estar em todo lugar eter durado mais de três séculos. Traduzindoem linguagem teórica, classe, etnia e outrasidentidades se relacionam de maneira com-plexa (45).

Retomando a história e continuando a

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discussão, a presença de uma massa escravaafricana considerável não era bastante paraprovocar levantes. A intensificação do tráfi-co atlântico ao longo da primeira metade doséculo XIX tranformou o campo próspero eas cidades maiores em pequenas Áfricas. Nacidade do Rio de Janeiro, por exemplo,concentrou-se a maior população escravaurbana do hemisfério ao longo da primeirametade do século XIX, o que causava temo-res e às vezes rumores de conspiração, sobre-tudo depois da revolta de 1835 na Bahia. Osescravos da Corte não eram passivos, comomostram os estudos sobre criminalidade es-crava, fugas, quilombos, a capoeiragem e aformação de uma cultura afro-carioca pujan-te, farta em símbolos e rituais étnicos, sobreo que temos o notável testemunhoiconográfico de artistas como Jean-BaptisteDebret. Mas só recentemente um historiadorda polícia descobriu uma pequena rebelião,em 1833, numa oficina, logo sufocada, e vio-lentamente (46). No mesmo período os escra-vos baianos faziam tremer Salvador e seusarredores. O Rio de Janeiro tinha em 1838cerca de 37 mil escravos, numa populaçãoglobal de 97 mil habitantes. Em 1849, deuma população de 206 mil, 79 mil (38%) eramescravos. Ao mesmo tempo, 75% em médiados escravos nesse período eram africanos.Salvador tinha uma população de cerca de65.500 em 1835, por ocasião do levante dosmalês, da qual cerca de 42% escravos, apenas4% mais do que o Rio. Os nascidos na Áfricaeram 63%, uma taxa de africanidade 12%menor do que a do Rio. Segundo MaryKarasch os africanos na Corte eram muitos,mas pertenciam a uma grande variedade degrupos étnicos, muitas vezes rivais entre si.Ela considera a diversidade étnica dos escra-vos cariocas uma das “mais importantes ra-zões para a ausência de revoltas escravas noRio” (47). Realmente a mistura de etnias com-prometia o levante unificado e era um fatorcom que senhores e autoridades sempre con-tavam para evitar o pior. O velho moto “divi-dir para dominar”. Um governador do Rio,em 1725, atribuiria à “Torre de Babel” africa-na a falta de um tal levante, e o conde dosArcos fez do incentivo à divisão étnica, naBahia que governou entre 1810 e 1818, umexpediente de controle escravo (48).

Uma das formas de fazer com que os afri-canos não esquecessem suas divisões de ori-

gem era, pensava o conde dos Arcos, permitirque eles praticassem seus batuques livremen-te. Nestes, que o inteligente conde perceberaserem rituais étnicos, cada grupo africanotentava manter sua integridade cultural, difi-cultando a formação de uma frente pan-afri-cana contra os brancos. Os senhores não en-tendiam assim, no que foram apoiados pelaCorte. Em carta para Arcos, o marquês deAguiar ordenava a proibição dos batuquesafricanos na Bahia, embora os permitisse noRio de Janeiro. Mas por que uma políticadiferente para a Bahia? O ministro de d. Joãoexplicou: “além de não ter havido [no Rio deJaneiro] até agora desordens, bem sabe V.Exa. que há huma grande differença entre osNegros Angolas e Benguellas nesta Capital,e os [negros] dessa Cidade, que são muitomais resolutos, intrepidos e capazes de qual-quer empreza, particularmente os de NaçãoAussá” (49). Será que esta “grande diferen-ça”, identificada por homens que viveram aexperiência do governo dos escravos naqueletempo, pode ser tranqüilamente descartadapelo historiador de hoje?

Tanto quanto no Rio, em Salvador coe-xistiam dezenas de “nações” africanas, masna verdade em ambas as cidades havia umaconsiderável concentração étnica entre osafricanos, se entendermos etnicidade comoidentidade recriada no Brasil, a partir da con-vergência de grupos vizinhos, geográfica elingüisticamente, na África. Entre 1830 e1850, na cidade do Rio, os vários grupos reu-nidos sob a denominação de angola chega-ram a aproximadamente 46% dos africanos eem outras estimativas variavam entre 36 e57%. Na Bahia predominavam os escravosoriundos da região do golfo do Benim, os jejes,haussás e sobretudo nagôs. Estes últimoseram, como os angolas, compostos por váriossub-grupos iorubás. No estudo mais comple-to sobre o assunto, Maria Inês C. de Oliveira,utilizando várias séries documentais, contou56% de nagôs entre 1816 e 1850, proporçãoa que só chegaram realmente, e até ultrapas-saram, durante a última década do tráfico. Dequalquer forma, os angolas no Rio e os nagôsem Salvador representavam, durante a maiorparte da primeira metade do século XIX, asgrandes maiorias entre as nações africanasreconstituídas no Brasil. No entanto os nagôsbaianos se levantaram em várias ocasiões eos angolas cariocas não (50).

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também favorecê-la, como aconteceu naBahia. Acrescenta Karasch a facilidade comque os escravos cariocas formaram quilombosnos arredores do Rio, no Corcovado, SantaTereza, Tijuca, que funcionariam como umdescompressor das tensões da escravidãourbana. Mas Salvador também conviveu comesses quilombos suburbanos. Para Algranti,de qualquer maneira, a cidade seria maisdispersiva, e atribui ao campo, mais coeso,maior potencial rebelde. No caso do Rio, dadaa distância geográfica entre campo e cidade,teria faltado maior integração entre as popu-lações escravas urbanas e rurais e por conse-qüência faltado maior animação revolucio-nária. A explicação não convence porque,também na zona rural, pelo menos até mea-dos do século passado, os escravosfluminenses não foram particularmente levan-tados, embora fossem dados ao quilombismo.Enquanto isso, na Bahia os escravos doRecôncavo dos engenhos se rebelaram inú-meras vezes, mais vezes certamente do queos escravos de Salvador e independentemen-te destes. Como não temos informações mais

Então, uma maioria africana entre os es-cravos, e além disso a presença de etnias afri-canas majoritárias, ajudavam mas não eramfatores suficientes para uma maiormobilização coletiva. Os historiadores daescravidão carioca explicam que a capital doimpério era mais policiada e militarmenteprotegida, o que não teria escapado à percep-ção dos escravos. Acho uma ótima hipótese.Para confirmá-la seria interessante um estu-do sistemático, que comparasse, por exem-plo, as forças militares disponíveis e a estru-tura demográfica na Corte com as de outrascidades escravistas. (Em Recife, por exem-plo, provavelmente não tão policiada quantoo Rio, também não aconteceram revoltas.)Leila Algranti e Mary Karasch atribuem àprópria escravidão urbana — que permitiamaior mobilidade, facilitava a “aculturação”escrava e mais oportunidade de alforria, pro-movia a diferenciação ocupacional entre osescravos, etc. — um fator de inibição à rebel-dia coletiva, embora ambas reconheçam queem certos aspectos — como a facilidade delocomoção e reunião — a cidade pudesse

CASTIGO PÚBLICO

NO RIO DE

JANEIRO, POR

RUGENDAS

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detalhadas sobre estas revoltas, não podemosafirmar que sua organização fosse menossofisticada do que as urbanas e suburbanas. Écerto, no entanto, que os escravos ruraisbaianos não viviam isolados, pois andavampelas vilas da região, onde freqüentavamfestas e feiras, e circulavam entre um enge-nho e outro, às vezes do mesmo proprietá-rio. Por isso as revoltas comumente envol-viam vários engenhos (51).

Mas se no Rio de Janeiro a concentraçãoétnica não motivou revoltas, ela também nãoexplica, isoladamente, a maior militância dosescravos baianos. No tempo de suas revoltas,entre 1807 e 1820, os haussás não passavamde 17% dos africanos em Salvador, emborarepresentassem o segundo maior grupo afri-cano (perdiam para o jejes em três pontospercentuais, jejes que por sinal não se rebela-ram isoladamente). No tempo das suas revol-tas, entre 1820 e 1835, os nagôs, apesar demajoritários, representavam apenas 28,6%desses escravos, ficando muito distantes dasproporções alcançadas pelos angolanos noRio. No entanto, esses 28,6% se traduziramem 77% entre os réus do levante dos malêsem 1835 (52). Foi uma revolta basicamentenagô. Mas havia algo além da concentração esolidariedade étnicas para explicar os levan-tes haussás e nagôs. Isto é confirmado pelofato de que, tendo alcançado maioria absolu-ta da comunidade africana em meados dodezenove, os nagôs não provocaram, apesarde rumores periódicos, nenhum levante de-pois de 1835. Se considerado estritamente ofator maioria étnica, as condições para um tallevante teriam melhorado bastante desdeaquela data. Com efeito, provavelmente omovimento nagô mais expressivo depois da-quela revolta aconteceu em 1857, uma grevepacífica de ganhadores, que durou dez dias,em protesto contra a postura municipal queos obrigava a pagarem um pequeno imposto,registrarem-se na municipalidade e usaremuma plaqueta de metal com o número desteregistro. Os escravos e libertos, nagôs na suamaioria, pararam a cidade de Salvador, masnão deram sequer um tapa em um branco (53).As dimensões da greve sugerem que a iden-tidade étnica permanecia importante fator deorganização e mobilização, mas como expli-car a desistência de movimentos violentos?

Em primeiro lugar, temos de relembrarporque no período anterior os nagôs, e antes

deles os haussás, se rebelaram com tanta in-sistência, para depois tentar explicar por quepararam. Os escravos trazidos para a Bahiada era das revoltas vieram de uma região daÁfrica conflagrada por lutas políticas e reli-giosas ligadas à queda do império iorubanode Oyo e à expansão muçulmana, capitaneadapelos fulanis, em território haussá e iorubá(54). Foram esses africanos, geralmente pri-sioneiros de guerra, guerreiros unidos porlaços étnicos, aos quais em muitos casos sesomava a comunhão no Islã, que aterroriza-ram a classe senhorial baiana. No ano de 1835,por exemplo, embora a maioria dos nagôs nãofosse muçulmana, a maioria dos muçulma-nos era nagô. Mas essa não foi a única fórmu-la de efervescência escrava. O único movi-mento comprovadamente nagô-muçulmanofoi o de 1835, outros feitos por nagôs, sobre-tudo nos engenhos do Recôncavo, não pare-cem ter recebido a benção de Alá, mas talvezde Xangô, de Ogum. Por outro lado, comovimos, 1835 aconteceu num período rico emconspirações e revoltas dos homens livres,inclusive várias quarteladas, o que enfraque-cia militarmente o controle da população es-crava e fortalecia o moral rebelde. Esta é umahistória conhecida.

A segunda parte da história, a pax baianaque se seguiu a 1835, é menos conhecida.Mudaram os escravos ou mudaram seus se-nhores? Ambos parecem ter mudado. Os se-nhores, depois de 1835, buscaram meios demelhor reprimir e controlar os escravos. Opróprio inquérito e o julgamento dos malêsrepresentaram um ritual de força vivamenteacompanhado por baianos e africanos. Alémdo espetáculo exemplar do fuzilamento dequatro rebeldes e do açoitamento de dezenasde outros, os libertos minimamente suspeitosforam deportados para a África e muitos es-cravos vendidos para fora da província. Asorganizações (como os cantos de trabalho) ereuniões africanas passaram a ser cuidadosa-mente vigiadas e qualquer suspeita deIslamismo investigada e punida. Mais impor-tante é que, após a Sabinada em 1837, oshomens livres dissidentes também resolve-ram parar suas revoltas e logo abraçariam acalmaria imperial.

Quanto aos escravos, sugiro, por enquan-to como hipótese, que os desembarcados naBahia entre 1835 e 1850 eram cada vez me-nos muçulmanos e menos guerreiros, na

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medida em que a guerra em território iorubá/nagô perdia um centro — o conflito político-religioso ligado à dissolução de Oyo e à jihadfulani — para se generalizar, vitimando cadavez mais populações não organizadas mili-tarmente. Os muçulmanos que conspiraramem 1835 e os não-muçulmanos que participa-ram desta e de revoltas anteriores haviam sido,eu suspeito, mais estritamente soldados doque os que lhes seguiram. E eram entre aque-les que as revoltas foram encontrar a maioriade seus líderes, agora mortos, presos ou de-portados.

E quanto ao Rio de Janeiro? Ao contráriodos jovens e não tão jovens guerreiros nagôs ehaussás importados pela Bahia, os importadospela Corte eram meninos e meninas de até 14anos, numa proporção acima de 60% em algu-mas estimativas. Oriundos de uma região emque estados militaristas haviam se transforma-do em regimes mercantis integrados ao siste-ma atlântico de comércio, a grande maioriadesses cativos era, não prisioneiros de guerra,mas escravos e dependentes da elite africanaque os usava para o pagamento de débitoscontraídos na aquisição de bens importados. Aeste comércio, que escalara durante as primei-ras décadas do dezenove, Joseph Miller cha-ma de “liberação de dependentes para a ex-portação”. Por outro lado, os homens livrescariocas, ao contrário dos baianos, não agita-ram as ruas da Corte neste período, pareciammais coesos aos olhos dos escravos. Ou tal-vez pudéssemos dizer que, da mesma formaque os escravos, estavam mais vigiados porum centro imperial que conseguia resolversuas crises dentro do palácio, mesmo que nemsempre isso fosse possível, como durante osdistúrbios surgidos na conjuntura da abdica-ção. Senhores mais unidos, escravos africa-nos menos guerreiros, esta seria, hipotetica-mente, a fórmula básica da pax carioca, naqual, naturalmente, podem ter entrado outrosingredientes mais fracos (55).

IIIA estratégia de “dividir-para-dominar”

tem sua contrapartida naquela de “dividir-para-rebelar”. Já virou um truísmo da socio-logia política que a rebelião das classes su-balternas é facilitada quando as classes domi-nantes estão divididas. É no entanto impor-tante que se insista que essa regra vale tam-bém para os escravos, já que muitos estudio-sos imaginam terem sido eles alheios ao que

se passava em seu redor, sobretudo na arenapolítica, tão preocupados que estavam emservir aos senhores como “coisas” que se-riam (56). A desunião dos homens livres, emtese, favorecia grandemente a rebelião escra-va porque revelava aos cativos a debilidadepolítica dos senhores, afrouxava a vigilânciaindividual e coletiva, e diminuía a capacida-de de retaliação militar.

A onda de transformações políticas eideológicas, algumas revolucionárias, inici-ada no final do século XVIII, influenciougrandemente a rebeldia negra nas Américas,inclusive no Brasil. Os debates em torno dodireito dos homens e das nações à liberdade,além de desmascarar a hipocrisia dos bran-cos, que conciliavam esses princípios com aescravidão, revelaram aos cativos que aque-les estavam em crise. A chamada Conspira-ção dos Alfaiates, em 1798 na Bahia, emboratendo à frente homens pardos livres e liber-tos, principalmente artesãos e soldados, con-tou com a participação de alguns escravos eincluiu em seu programa, de inspiraçãoliberal-francesa, o fim da escravidão (57).

A Revolução Francesa também estimu-lou a rebeldia negra no continente americanopor vias indiretas, através do Haiti. A únicarevolução escrava bem-sucedida no NovoMundo aconteceu em Saint Domingue, futu-ro Haiti, no início da década de 1790. Naque-le momento em que a França se via ela pró-pria dividida por uma revolução, sua colôniaantilhana se dividia entre senhores mulatos ebrancos que se digladiavam pelo poder. Osescravos aproveitaram-se da situação e daretórica revolucionárias do dia para agir. Arevolução haitiana destruiu a mais lucrativacolônia européia de seu tempo e criou umEstado negro nas Américas, se transforman-do num símbolo de resistência escrava emtodo hemisfério, um exemplo de que erapossível vencer os senhores (58).

O haitianismo animou negros e mulatosnos quatro cantos do continente americano,inclusive no Brasil. Luiz Mott elencou váriasrevoltas escravas e conspirações de negroslivres aqui que se inspiraram no que ocorrerano Haiti. Em 1805, apenas um ano após aproclamação da independência haitiana porJean-Jacques Dessalines, seu retrato decora-va medalhões pendurados dos pescoços demilicianos negros do Rio de Janeiro, episó-dio que ganha maior significado se lembra-

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mos que Dessalines era também militar, ogeneral comandante-em-chefe das forçashaitianas que derrotaram os exércitos deNapoleão enviados para recuperar a ilha ereintroduzir a escravidão. Em 1814, na Bahia,os escravos falavam abertamente nas ruassobre os sucessos no Caribe. Na conjunturarevolucionária nordestina de 1824, o Haitiesteve muito presente. Em Laranjeiras,Sergipe, num jantar de “mata-caiados” —como se denominavam movimentos antilusos— deram-se vivas ao “Rei do Haiti” e a “SãoDomingos o Grande São Domingos” (59). Nomesmo ano, durante a chamada Confedera-ção do Equador, em Pernambuco, o coman-dante do batalhão de pardos em missãoantilusa teria distribuído pasquins contendoos versos seguintes:

“Qual eu Imito a CristovãoEsse Imortal Haitiano

Eia! Imitai ao seu povoOh meu povo soberano!” (60).

Ironicamente, quando foi assim saldadoem 1824, Henri-Christophe, o Cristovão doverso, que em 1811 se proclamara rei Henri Ido Haiti, já havia cometido suicídio, após serdeposto em 1820 por uma revolta de seu pró-prio “povo soberano” (61). Mas permanecia“imortal” para o poeta popular pernambucano.

Mais do que as senzalas, entretanto, o Haitipenetrou na forma de medo as casas senho-riais e palácios governamentais. NaPernambuco de 1817 os eventos da ilha anti-lhana são usados como argumento paradesestimular o partido descolonizador. Maistarde (c. 1820-21) um espião francês a servi-ço da coroa portuguesa previu uma reprodu-ção do fenômeno haitiano caso as divergên-cias entre portugueses e brasileiros seaprofundassem. Durante o conflitivo episó-dio da independência na Bahia, opinião se-melhante tiveram um cônsul e um almirantetambém franceses. E as notícias chegadas aPortugal de sua irmã em Salvador, fez JoséGarcês refletir que “se faltasse a tropa, eramoutros São Domingos”. Bem mais tarde, em1867, uma autoridade do Maranhão se lem-brou do Haiti como parte de seu medo de queos brancos fossem massacrados durante umarevolta escrava em Viana (62).

Na conjuntura da Independência brasilei-ra, a própria retórica anticolonial serviu à

rebelião negra. Lembremos que a propagan-da patriótica insistia na imagem da escravi-dão para definir os laços que ligavam o Brasila Portugal: o Brasil seria “escravo” de Por-tugal, as cortes portuguesas desejavam “es-cravizar” os brasileiros. Em 1822, após falarem quebra de algemas e esmagamento degrilhões, o ouvidor de Itu, São Paulo, con-cluía: “Oh! Brasileiros, caros compatriotas!Nunca mais sereis escravos, nem vis colo-nos”. Esse tipo de discurso foi comum emtodo Brasil. Os escravos ouviam aquilo sisu-damente e muitos traduziam o falatório dosbrancos em causa própria, sobretudo os es-cravos crioulos, negros nascidos no Brasilque apostaram na possibilidade de se liberta-rem da escravidão real da mesma forma queos patriotas diziam querer libertar o país dametafórica “escravidão” colonial. Em 1821,de novo em Itu, correu entre os escravos oboato de que as cortes (ou o rei de Portugal,havia dúvida) teriam proclamado o fim daescravidão, mas os senhores e as autoridadesituanas e vizinhas insistiam em mantê-la. Em1822 um grupo de escravos crioulos de Ca-choeira, no Recôncavo baiano, centro daprodução açucareira, peticionou pela liber-dade aos representantes baianos nas cortes.Infelizmente não sei como foi recebida estapetição, mas outros escravos baianos já acha-vam que haviam conseguido a liberdade dascortes e do rei. Segundo o comandante mili-tar de Salvador, o português Ignacio LuisMadeira de Mello, agitadores andavam “in-fundindo nos Escravos as idéas maisLuciferinas para se sublevarem, declarando-lhes, que se achão libertos não só em virtudedo systema Constitucional, como por Decre-tos d’El Rei, que seus senhors têm sonegado;resultando de medida tão malvada [...] acha-rem-se os Escravos de tal forma seduzidos,que, despresando a obediencia, inculcão noseu modo de proceder huma proxima suble-vação”. E acrescentava que a Bahia estavapróxima de repetir “o horroroso quadro, queapresenta a Ilha de São Domingos”. No mes-mo ano aconteceria uma insurreição na vilada Serra, no Espírito Santo. No mês de maioum escravo espalhara o aviso de que os es-cravos de Jacaraipe, Una, Tramerim, Quei-mado e Pedra da Cruz se reunissem para ou-vir do vigário a proclamação da liberdade, “etodos apareceram na ocasião da missa arma-dos de armas de fogo, paus, etc” (63).

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Em toda parte, os conflitos entre os bran-cos, como foi o caso da época da Indepen-dência, favoreceram a rebeldia escrava. EmPernambuco, os escravos apresentaram ar-mas tanto em 1817 como em 1824, dois epi-sódios fundamentais do processo dedescolonização no Nordeste, bem como emoutras revoltas do período regencial, como aCabanada (1832-36). Mas só nesta últimaparece ter havido maior espaço para os inte-resses específicos dos escravos. Na Bahia, aonda de revoltas escravas, presentes desde oinício do século XIX, recrudeceu após a in-dependência paralelamente aos motinsantiportugueses, as quarteladas, as rebeliõesfederalistas. Duas destas, em 1832 e 1837,quando já quase vencidas, acenaram timida-mente para o apoio dos escravos em troca deliberdade. Em nenhum dos casos os escravosresponderam a esses apelos interesseiros. Jáos farroupilhas do Rio Grande do Sul alista-ram escravos dos adversários (e os de simpa-tizantes, depois de devidamente indenizados),que formaram o batalhão de Lanceiros Ne-gros, brutalmente massacrados por Luis Alvesde Lima e Silva, futuro duque de Caxias, em1844, na definitiva batalha de Porongos.Porém, pelo artigo 7 do Convênio de PonteVerde que celebrava a paz, assinado no anoseguinte entre os rebeldes e Caxias, ficariaacordado: “está garantida pelo governo im-perial a liberdade dos escravos que tenhamservido nas fileiras republicanas ou nelasexistião”. Os líderes farroupilhas haviamexigido assim, não que fossem abolicionistas— à exceção talvez do mulato José Marianode Matos —, mas para recompensar os bonsserviços dos escravos-soldados. Eram osmesmos termos das cartas de alforria priva-das, agora tornados políticos porque amplia-dos para uma coletividade que se desejavaagradar para mantê-la mansa. Desconhece-se, no entanto, quantos ex-escravos teriamsido beneficiados — se é que o foram efetiva-mente — e qual o seu destino (64).

Os escravos do Maranhão participaramativamente do movimento da independência,que lá como na Bahia foi cruento, e dos mo-vimentos antilusos que se seguiram. NaBalaiada (1838-41), o movimento dos balaios(ou liberais bem-te-vis) e o dos escravos,estes liderados por Cosme Bento das Chagas,constituíam movimentos diferentes que con-vergiram apenas na fase final. Como os

farroupilhas, os balaios não tinham um ideárioabolicionista — embora circulasse entre seussegmentos mais humildes uma certa identi-dade racial —, mas Chagas, que se intitulava“tutor e imperador da liberdade”, escreveuem 1840 que “a República é para não havera escravidão”. Esse abolicionismo radicallevou muitos rebeldes bem-te-vis a debanda-rem para o lado da legalidade, facilitando opapel repressor do mesmo Caxias que maistarde sufocaria os farrapos e seus combaten-tes escravos (65).

Guerras externas também podiam enfra-quecer o controle escravo. Os quilombos doMato Grosso floresceram à margem da Guer-ra do Paraguai, engrossando suas fileiras nãoapenas com escravos fugidos, mas comdesertores do exército e homens livres pobresem fuga do recrutamento. Depois da guerraas autoridades tiveram tempo para finalmen-te deslanchar a repressão contra osquilombolas. Num outro extremo do Brasil, oMaranhão, a guerra também repercutiu, le-vando desertores a engrossar as fileiras dosquilombolas, que teriam experimentado “in-cremento excessivo, não só de escravos, comode criminosos e desertores”, queixava a câ-mara de Turiaçu em julho de 1867. Ao mes-mo tempo, autoridades, comerciantes e la-vradores da região alegavam que o recruta-mento de guardas nacionais para o Paraguaidiminuía a capacidade de combate aosquilombos, além de colocar os senhores àmercê de seus escravos (66).

A marcha abolicionista, desde as leis queproibiam o tráfico até as que reformavam aescravidão e por fim as campanhas das últimasdécadas do regime, também contribuíram paraa agitação escrava. No Espírito Santo a lei de1831, proibindo o tráfico externo, teria sidointerpretada como emancipadora por escravosda vila de Itapemirim. A mesma lei tambémentrou na complexa malha de motivações dosconspiradores campinenses, em 1832. Ouçamo que falou o escravo crioulo Francisco:

“Disse que no domingo, indo de recolhi-da para o Sítio encontrando-se na sahidada villa, com Joaquim Ferreiro escravodo capitam Joaquim Teixeira, entrandocom elle em conversa, elle Reo dicera ‘oraTio Joaquim [...] os negros já não vempara o Brazil, não seria justo que nos des-sem tão bem a liberdade?’ ao que lhe res-

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pondera o Joaquim, que alguma coisa dis-so há de acontecer” (67).

Vinte anos depois, de novo no EspíritoSanto, em São Mateus, correu o boato entre osescravos de que “a novíssima Lei de Repres-são ao Tráfico os há libertado da escravidãoque eles, supondo lhes ser ocultada pelos se-nhores, procuram obter por meios violentos ecriminosos”, escreveu o presidente da provín-cia. Vilma Almada interpretou estes e outrosepisódios posteriores, em particular no ano dalei do Ventre Livre, 1871, como resultado deuma leitura libertária pelos escravos da retóri-ca e das notícias abolicionistas. O mesmo acon-teceria em Campos, Rio de Janeiro: os escra-vos ficaram inquietos porque interpretaram asdiscussões em torno desta lei como a aboliçãodefinitiva da escravidão (68).

Durante a fase final da escravidão aconte-ceram levantes escravos e a formação dequilombos em várias partes do país, mas fo-ram na sua maioria movimentos localizados,em geral restritos a uma ou duas fazendas e,nos meses anteriores ao treze de maio, fugasem massa das fazendas de café, com ou semo concurso de agentes abolicionistas. Há no-tícias de muitas conspirações e revoltas emSão Paulo, algumas bem arquitetadas maspouco conhecidas na época porque, segundoMaria Helena Machado, havia uma espéciede censura à imprensa com o objetivo de evi-tar o pânico. Foram comuns os levantes pe-quenos, envolvendo apenas algumas dezenasde escravos que assassinavam feitores e se-nhores particularmente tirânicos e depois seentregavam pacificamente ao delegado local.Mas houve também revoltas que, embora logosufocadas, tiveram tanto o objetivo de puniressa gente como reivindicar a liberdade. Em1882, os escravos da fazenda castelo, emCampinas, se rebelaram aos gritos de “Matabranco” e “Viva a liberdade” — e realmentemataram toda a família de um administradorda fazenda, inclusive crianças, mas não al-cançaram a liberdade (69).

É importante enfatizar, no entanto, que otema da abolição nas revoltas escravas nãoteve de esperar o momento de agitaçãoabolicionista. Se nessa época nem todo le-vante visava a liberdade geral e irrestrita, emépocas anteriores nem todo levante visavaapenas punir feitores, reformar aspectos daescravidão, libertar somente os poucos escra-

vos nele envolvidos ou fugir para formarquilombos. Em 1867, durante a revolta deViana, Maranhão, os quilombolas domocambo de São Benedito retornaram às fa-zendas da região com um programaabolicionista. Num dos episódios do levanteeles obrigaram o administrador de uma dasfazendas conflagradas a escrever uma cartaonde declaravam: “nos achamos em campo atratar da Liberdade dos Cativos, pois a muitoque esperamos por ella [...]” (70). Antes dis-so, como vimos, vários movimentos escra-vos dos anos 20 e 30, no próprio Maranhão eoutras regiões do país, colocaram o mesmoassunto na ordem do dia. A diferença é quenos últimos anos da escravidão, a populaçãolivre que anteriormente estava dividida emtorno de outras questões, agora estava dividi-da na questão específica da escravidão. Comisso cresceram as alianças entre escravos esetores livres, inclusive parte da elite branca,alianças que antes eram ocasionais ou envol-vendo interesses individuais restritos, comofoi o relacionamento dos quilombolas comtaverneiros, lavradores, etc. Na conjunturaabolicionista o campo político da atuaçãoescrava se ampliaria, potencializando o mo-vimento escravo, emprestando-lhe novosconteúdos, mas não um sentido especifica-mente novo. Se o sentido de que falamos é oda liberdade, ele esteve presente no passado,tanto no singular, o da alforria geral, como noplural — o das múltiplas perspectivas de li-berdade escrava, que objetivavam ampliar oespaço de manobra dentro da escravidão.

Isto nos leva a uma discussão importantena historiografia da resistência escrava nasAméricas. Como vimos antes, os rebeldesescravos freqüentemente se apropriaram daideologia liberal e a transformaram em ins-trumento da liberdade escrava. O historiadornorte-americano Eugene Genovese chega aafirmar que, na era das revoluções burguesase das independências americanas, praticamen-te desapareceram os africanismos ideológi-cos que no período anterior, ele acredita, ha-viam orientado a rebeldia negra, como porexemplo a formação dos quilombos. Essa tesejá foi refutada dezenas de vezes por historia-dores de várias regiões e rebeliões nas Amé-ricas, os quais concluíram que nem osquilombos foram um retorno a uma Áfricaperdida, nem as ideologias africanas cederi-am lugar ao novo ideário democrático burgu-

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ês em expansão (71). Se no Brasil este últimodespertou os rebeldes de olho e ouvido naretórica liberal, ou penetrou a senzala na for-ma indireta e africanizada do “haitianismo”,o mesmo não se pode dizer da corrente cen-tral das rebeliões baianas e outros movimen-tos dirigidos pelos africanos. Na Bahia, osmestres muçulmanos formaram a liderançado movimento de 1835 e, durante o levante,seus seguidores ocuparam as ruas usandovestimentas muçulmanas e amuletos conten-do passagens do Alcorão — e não trechos daDeclaração dos Direitos do Homem —, comos quais acreditavam estar de corpo fechadocontra as balas dos soldados. A própria re-volta foi marcada para acontecer no final domês sagrado do Ramadã daquele ano, a festado Lailat al-Qadr, a Noite da Glória, quecoincidia com a popular festa católica deNossa Senhora da Guia (72).

Para os escravos rebeldes, a hora de ata-car nem sempre combinava com o calendá-rio da grande política ou seu universodiscursivo continha contornos precisos. Comfreqüência a melhor hora de atacar estavamarcada no calendário da pequena políticado cotidiano. De acordo com esta a horacerta era aquela em que o senhor baixava aguarda, por exemplo nos períodos de festas,domingos e dias santos. Um número muitogrande de conspirações e revoltas escravasocorreu exatamente nesses períodos, não sóno Brasil, mas mundo afora. O presidenteda Bahia explicou em 1831 que em sua pro-víncia eram “freqüentes as sublevações deescravos, os quais principalmente no tempodo Natal fazem algumas desordens em ra-zão de estarem mais folgados do serviçopelos dias santos” (73). Mas o adjetivo fol-gado, usado pelo presidente, leva ao subs-tantivo folguedo, usado antigamente paradefinir festa. Na festa escrava rolavam lan-ces culturais bastante distantes de qualquerideário “liberal”, por mais amplo, frouxo eabstrato que se considere o termo. Na festaidentidade e solidariedade coletivas erampotencializadas através de rituais que afir-mavam os valores e exorcizavam as doresdo grupo. Ali se instaurava um clima extra-ordinário de liberdade e de reversão ritualdo mundo que os escravos rebeldes deseja-ram perpetuar. As revoltas eram planejadaspara os dias festivos, especialmente as noi-tes festivas, não só porque seus líderes con-

tavam com o relaxamento do controle se-nhorial, mas porque contavam com a reu-nião de escravos possuídos por um espíritode redenção.

Com efeito, oito das 25 revoltas e cons-pirações baianas do século XIX aconteceram,ou estavam planejadas para acontecer, noperíodo do ciclo de festas do verão, entredezembro e fevereiro. Outras também ocor-reriam em dias santos. Eis alguns exemplosda relação festa/revolta na Bahia e em outrasregiões brasileiras:

- Minas Gerais, 1719: levante de negrosminas e angolas planejado para umaQuinta-feira Santa, quando os brancos esti-vessem assistindo à missa;

- Salvador, Bahia, 1807: revolta abortadaplanejada para acontecer a 28 de maio, du-rante as celebrações de corpus christi;

- Itu, Sorocaba, São Carlos (Campinas),em São Paulo, 1809: escravos rurais fugiram,se aquilombaram e planejaram levante para oNatal desse ano, que terminou não aconte-cendo;

- Santo Amaro e São Francisco do Conde,Bahia, 1816: uma revolta que durou algunsdias teve início durante uma festa religiosaem 12 de fevereiro;

- Rosário do Catete, Sergipe, 1824: liber-to alferes do batalhão dos henriques conclamaescravos de engenho e pretos forros para le-vante natalino;

- Cabula, arredores de Salvador, 1826:revolta do quilombo do Urubu, planejada paraacontecer na véspera de Natal, teve de serantecipada porque o quilombo, de onde par-tiriam escravos fugidos para a capital, foiatacado;

- Ubatuba, São Paulo, 1831: outra revoltaplanejada para explodir no Natal, quando osescravos atacariam a população livre na igre-ja durante a missa;

- São Carlos (Campinas), São Paulo, 1832:denunciada em fevereiro uma conspiraçãoenvolvendo os escravos de vários engenhos,“cujo levante seria na ocazião de huma festa,e ajuntamento e brancos”, segundo o depoi-mento de um escravo preso;

- Salvador, Bahia, 1835: o levante dosmalês aconteceu na noite de 24 para 25 dejaneiro, domingo de festa de Nossa Senhorada Guia, na igreja do Bonfim;

- Queimado, Espírito Santo, 1849: revol-ta no dia da festa de São José, quando os es-

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cravos pensavam que seriam alforriados pe-los senhores;

- Taubaté e Pindamonhangaba, São Pau-lo, 1853: conspiração planejada para ocorrerna noite de 16 para 17 de abril, festa de SãoBenedito;

- Porto Alegre, 1868: revolta planejadapara acontecer na noite de São João. O planooriginal previa a noite do Espírito Santo;

- Bananal, São Paulo, 1881: revolta abran-gendo várias fazendas planejada para aconte-cer na noite de São João (74).

Em seu estudo sobre a relação entre re-volta e festa no Caribe Britânico, Robert Dirkscontou setenta levantes e conspirações entre1649 e 1833, dos quais quase um terço acon-teceu ou foi planejado para acontecer duranteas festas de dezembro, o mês da Saturnálianegra. Ele explica no entanto esse padrão deperiodicidade com uma teoria pouco convin-cente de ritos agônicos. Em resumo, a relaçãoentre festa e revolta seria dada pelo relaxa-mento, durante o mês de dezembro, das durascondições de trabalho e alimentação predo-minantes ao longo do ano. Ele enfatiza acimade tudo o fim da fome, atribuindo a revolta amisteriosos processos fisiológicos que pro-duzem a agressividade em pessoas que, apóslongo período de fome, passam a ter o quecomer. Mesmo admitindo o aspecto políticoenvolvido no relaxamento do controle escra-vo, ele o descarta como uma explicação me-nor para o advento da rebelião e dos ritos deconflito (ou agônicos), como a Saturnália. Masa imbricação entre festa e política, creio eu, éo aspecto fundamental aqui para entender arebeldia escrava e outras. E, acrescente-se,política e poder como entendiam e pratica-vam os próprios escravos, como por exemplona instituição de suas lideranças (75).

O líder maior de Palmares era chamado“rei”. Muitos cabeças de levantes intitulavam-se reis e rainhas, que se faziam aqui, ou quereconstituíam algum tipo de autoridade que jáexerciam na África. Durante a conspiração de1719, em Minas Gerais, apareceram dois reis,um para dirigir os negros minas, outro os deAngola. A revolta teria abortado por desacor-do entre os dois grupos, o que confirma adificuldade das alianças interétnicas. Exibi-am ainda título de rei o líder do quilombo doUrubu de Salvador, que também tinha rainha,e Manoel Congo, do quilombo de Pati do Al-feres, que além de rainha tinha “vice-rei”. A

rainha era a escrava crioula Marianna, que teriaresistido com bravura ao assalto da tropa: “nãose entregou senão a cacete e gritava: morrersim, entregar não!!!”, escreveu um contempo-râneo (76). Uma das poucas denúncias de cons-piração escrava na Bahia pós-35 de que se temnotícia envolveu um escravo chamadoBernardo, que se dizia “Príncipe dos Nagôs” eliderava um suposto movimento contra oshomens brancos de Nazaré, no Recôncavo (77).

“Reis” e “príncipes” africanos pontilhama história dos escravos trazidos para as Amé-ricas. No Brasil, Debret descreveu e repre-sentou imagens do funeral de um desses prín-cipes africanos no Rio de Janeiro; JamesWetherell, inglês que viveu muitos anos naBahia, também comentou o respeito dispen-sado pelos africanos comuns a esses aristo-cratas, com direito a beija-mão e outrossalamaleques; há a figura fascinante do ObáII d’África, negro baiano residente na Corteque traçava sua genealogia ao Alafinato deOyo (78). Além de escravos oriundos da elitedirigente na África, deve-se pensar nos reisalegóricos das congadas daqui, que exerciamum papel de autoridade nas festas étnicas, etalvez fora delas se, como suspeito, levavamàs vezes seus súditos a fazerem da festa re-volta. Em 1729, a pedido do governador daBahia que denunciava as desordens causadaspelos “reinados negros”, a coroa os proibiu(79). Posteriormente voltaria a tolerá-los. Defato, em 1760, em Santo Amaro, na Bahia,rei e rainha do Congo participaram das come-morações oficiais em regozijo pelo casamen-to do infante d. Pedro de Portugal (80). NoRio de 1813, a disputa pela coroa doscassanges foi parar no palácio de d. João VI,através de uma petição de uma rainha queacusava o lado adversário de ter-lhe usurpa-do o trono (81). Enfim, havia uma mentalida-de monarquista, por assim dizer, circulandoentre os negros, que parece ter sido recriaçãode concepções africanas de liderança, refor-çadas em uma colônia, e depois um país,governados por cabeças coroadas. É aliásconhecida a popularidade de d. Pedro II entreos negros cariocas, inclusive por sua simpa-tia pelo abolicionismo. A visão do rei comofonte de justiça, comum entre a plebe rebeldena Europa, existia igualmente nas Américas,inclusive entre os escravos (82). Em 1849 osrebeldes de Queimado, Espírito Santo, foramconvencidos por seu líder de que haveria in-

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tervenção da “rainha” para obterem suasalforrias; e em 1832, os conspiradores deCampinas achavam que o imperador esten-deria a abolição do tráfico à da escravidão.Mas em nenhum desses dois movimentos seuslíderes foram chamados de reis.

Muitos dos reis e rainhas africanos po-dem ter se desdobrado em sacerdotes africa-nos. O quilombo do Urubu baiano, esmagadoem 1826, tinha um rei e uma rainha — tinhatambém um candomblé. Manoel Congo, cha-mado rei, era também chamado “pai”, talvezcom alguma conotação religiosa. Não se sabede rei na conspiração de Campinas, em 1832,mas é um dos levantes escravos em cuja de-vassa mais se mencionam feitiços. Pergunta-do sobre o assunto, o escravo Felizardo disseque “estas meizinhas era para amansar aosbrancos para as armas dos mesmos não ofen-derem a elles pretos e se levantaremafoitamente com os mesmos brancos, mata-los, e ficarem elles pretos todos forros”. As“meizinhas” eram raízes em geral feitas evendidas pelos escravos congos da região.Um dos cabeças dessa conspiração, encarre-gado de distribuir as raízes protetoras, era oescravo de nação rebolo Diogo, ou “PaiDiogo”, provavelmente significando, comono caso de Manoel Congo, o que depois veioa ser pai-de-santo (83).

Não apenas os homens participaram eestiveram à frente de revoltas envoltas numalinguagem religiosa. O poeta Luís Gama es-creveu que sua mãe, Luiza Mahin, liberta denação nagô, teria participado de várias cons-pirações na Bahia. O poeta teve o cuidado dedestacar que ela era “pagã que sempre recu-sou o batismo e a doutrina cristã” (84). Tam-bém de candomblé era a escrava nagôZeferina, “rainha” do quilombo do Urubu,que se levantou em 1826. Durante a luta,empunhando arco e flecha, ela se destacoucomo líder e, segundo uma testemunha, “cus-tou muito a entregar-se, antes fazia muitadiligência para se reunir os pretos dispersa-dos” (85). Mulheres participaram pelo menosda fase conspiratória dos movimentos haussás.Em 1814 cinco escravas foram acusadas:Ludovina, Teresa, Felicidade, Germana e Ana.A liberta Francisca, que percorrera oRecôncavo com o companheiro Francisco pre-gando a rebelião, foi condenada ao açoite edegredo para Angola. Em 1835 nenhumamulher foi às ruas lutar, e não há indício de que

alguma tenha participado do seu núcleo diri-gente na fase conspiratória. Mas muitas erammuçulmanas, sabiam e apoiavam o levantede seus homens, 31 das quais foram posterior-mente investigadas e a maioria punida.

Mas o papel da liderança religiosa na re-volta escrava não se reduziu apenas a expres-sões de maior densidade africana. É sabidoque os escravos cristianizados criaram noNovo Mundo uma forma peculiar de catoli-cismo crioulo que às vezes inspiraram-nos àrevolta. Em 1836 escravos baianos se junta-ram à plebe livre católica na destruição de umcemitério construído para fazer valer a proi-bição dos enterros nas igrejas. Libertos eescravos associados a irmandades se integra-ram a este movimento em defesa da liberdadede ocuparem sepulturas em espaço sagrado.Os rebeldes de Queimado foram convenci-dos por seu líder, o escravo Elisiário, de que

XANGÔ, ORIXÁ DO

MARTELO

BIPARTIDO, DOS

RAIOS, QUE POSSUI

LUGAR DE

DESTAQUE NO

PANTEÃO IORUBÁ

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o missionário capuchinho Gregório de Beneiria persuadir seus senhores a alforriá-los nodia de São José. Os escravos vestiram suasmelhores roupas e se dirigiram à igreja paraouvir a boa nova durante a missa festiva. Eratudo engano. As circunstâncias não são mui-to claras, mas sugerem que só escravos cató-licos e devotos daquele santo, cuja igreja aju-daram penosamente a construir, poderiamatribuir tal poder ao padre (86). Em Vassou-ras, 1847, foram escravos devotos de SantoAntônio que teriam se envolvido numa cons-piração com data marcada para o dia de umoutro santo, São João. Robert Slenes suspeitada “cumplicidade” de Santo Antônio em umavasta conspiração, no ano seguinte, da qualparticipavam escravos identificados com a“protonação bantu” espalhados por váriosmunícipios do vale do Paraíba e sul de MinasGerais (87). Esses bantos podem na verdadeter trazido a devoção antonina da própriaÁfrica, se recordarmos que o catolicismoestava bem assentado na região do Congo-Angola. Neste sentido o catolicismo pode tersido marca de identidade e até de continuida-de africana no Brasil, como aconteceu emoutras terras (88).

Mas nós não tivemos o nosso Nat Turner,fiel seguidor da Bíblia, que em 1831, emSouthampton, Estados Unidos, lideroumessianicamente a mais violenta rebeliãoescrava naquele país (89). O catolicismo dosnegros brasileiro, uma economia religiosa dotoma-lá-dá-cá entre fiéis e santos, talvez nãoservisse para aventuras milenaristas (90). Nãohá notícia segura de que irmandades negrastivessem participado de rebeliões escravas,exceto na hipótese antes levantada de quealguns de seus reis teriam sonhado transfor-mar fantasia em realidade. Há, novamente naBahia, a possibilidade de que um dos líderesdo levante de 1814 tivesse algumenvolvimento com irmandades, já que foradesignado “presidente das danças de suanação” (91). Mas esta descrição se adapta maisa um sacerdote de religião africana do que aum festeiro de irmandade, que seria umasegunda e secundária hipótese. Acho entre-tanto improvável que, individualmente, mem-bros de irmandades negras não tivessem par-ticipado de alguma das muitas revoltasbaianas e de outras. E se foram à guerra, de-vem ter pedido licença ao santo de devoção.

Com efeito, Santo Antônio reapareceu em

São Paulo na última década da escravidão,quando os africanos, bantos e outros já esta-vam reduzidos a minoria. Ele veio, acompa-nhado de deuses africanos, para mostrar queideologias religiosas, e até messiânicas, po-diam servir aos objetivos abolicionistas dosescravos melhor do que ideologias seculares.Foi o que aconteceu em 1882 na fazendaCastelo, em Campinas, no episódio há poucoreferido. Sufocada a rebelião descobriu-se,tal como cinqüenta anos antes na mesmaCampinas, uma complexa teia conspiratóriaenvolvendo líderes que distribuíam “bebidapreparada com raízes” para fecharem o cor-po. Os líderes, segundo o depoimento de umescravo, “entretinhão continuadamente osescravos da fazenda em sessões de feitiçaria,nas quais abertamente pregavão a desobedi-ência aos senhores, o roubo e o assassinato defeitores e proprietários agrícolas”. A imagemde Santo Antônio fazia parte dos rituais decurandeirismo de João Galdino Camargo, nãodiretamente vinculado ao movimento de 1882,mas que era procurado pelos escravos embusca de proteção mística e saíam soberbosde sua tenda de milagres. Essas histórias, eoutras mais, foram descobertas nos arquivospor Maria Helena Machado, que coloca emnovas bases a resistência escrava coletiva nosanos finais da escravidão. Esses escravos re-beldes objetivavam a liberdade através de umalinguagem religiosa sincrética, em avançadoestado de crioulização, que combinava ele-mentos do registro religioso africano, especi-almente banto, àqueles do catolicismo popu-lar e mesmo do espiritismo. Algo muito pró-ximo do que se entende hoje como a umbandapaulista. Tínhamos lá uma umbandaabolicionista (92).

Naturalmente não só o aspecto religiosoentrava na lógica de formação da liderançapolítica escrava. Os líderes dos movimentosescravos em geral não eram gente nova naterra. O africano terminava a travessia doAtlântico traumatizado, sem energias, nãodesembarcava do tumbeiro planejando a pró-xima revolta. Os líderes rebeldes eram versa-dos no modo-de-vida dos brancos, negrosladinos, freqüentemente com alguma profis-são, experiência urbana e não raro libertos. Aliderança do levante malê de 1835 era forma-da por escravos e libertos que viviam e traba-lhavam em Salvador há pelo menos mais dedois anos. Em Pati do Alferes, 1838, os líde-

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res eram artesãos (carpinteiros, ferreiros) eaté um escravo feitor. O cabeça, ManoelCongo, era ferreiro e caldeireiro. Em 1832,em Campinas, o suposto líder da conspiraçãoque pretendia dizimar a população branca elibertar seus escravos era João, um negro forrobarbeiro, que morava em São Paulo. Além decurandeiro, o líder do levante da fazendaCastelo em 1882, Felipe Santiago, entre 40 e50 anos de idade, era crioulo forro natural doMaranhão, casado, oleiro e dono de um sítio.

Os libertos, que podemos considerar oselementos mais privilegiados, a elite da co-munidade africana no tempo da escravidão,constituíram a liderança de muitas revoltasescravas. Sem dúvida eles ocupavam posi-ções estratégicas na estrutura social, a partirdas quais podiam conspirar eficientementecontra a classe senhorial. Possuíam habilida-des nas artes e ofícios, como armeiros e ferrei-ros que podiam fabricar armas; por circularementre os livres, tinham acesso a informaçõesprivilegiadas sobre seu governo, estado deespírito, seus medos e fraquezas; em suas ca-sas se refugiavam escravos, que faziam reuni-ões conspiratórias, guardavam dinheiro paraarmas e munições, as quais eram ali tambémguardadas; os libertos tinham uma mobilidadegeográfica que lhes permitia fazer a ponte entreescravos rurais e urbanos, e divulgar mais fa-cilmente as idéias de rebeldia; por fim, a suaposição privilegiada e independente represen-tava um modelo da possibilidade de um mun-do sem o governo dos senhores. As autorida-des entendiam o perigo representado pelosforros. Em meados do século XVIII, a câmarade Mariana, Minas Gerais, pediu ao governometropolitano que dificultasse as alforrias eobrigasse os forros a usarem passes para circu-lar entre uma e outra freguesia. A metrópoleachou as medidas arbitrárias, mas recomen-dou que fossem expulsos da região os pretos epardos libertos suspeitos de cooperar comnegros fugidos, receptando produtos rouba-dos por eles, dando-lhes abrigo e fornecendo-lhes armas e munição (93).

O papel de liderança dos libertos emmuitas rebeliões escravas — caso de Cosmedas Chagas no Maranhão, de alguns dos mes-tres muçulmanos na Bahia, de João Barbeiroe Felipe Santiago em Campinas — demons-tra que os laços de solidariedade e as aliançasextrapolavam os limites da escravidão.Freqüentemente, a identidade étnica e a reli-

giosa funcionaram como o elo entre essesgrupos diferenciados. Na Bahia, a revolta de1835 foi produzida principalmente por cen-tenas de escravos e libertos nagôs e outrosnegros islamizados. Nesse caso a religiãoamalgamou com solidariedade étnica e aomesmo tempo permitiu a aliança interétnica,principalmente entre nagôs e haussás, escra-vos e forros. Os forros, é verdade, podiam seencontrar dos dois lados da peleja. Eram, porexemplo, bons capitães-do-mato. A denún-cia da conspiração malê partiu de duas liber-tas, uma das quais acusara o companheirotambém liberto. Em 1831, numa conspiraçãoque previa a adesão dos escravos de váriaspropriedades em Ipojuca, Pernambuco, osescravos do engenho Genipapo mataram umfeitor que era forro, mas correu a suspeita deque teriam se levantado por estímulo de “ne-gros [libertos] do Recife vendedores de miu-dezas”, segundo escreveu o senhor daqueleengenho (94). Enfim, o liberto teve um papelpolítico relevante nos movimentos escravos...e contra estes.

Os escravos dispunham de poucos recur-sos políticos, mas não desconheciam osmecanismos das relações mais amplas depoder. No Brasil da segunda metade do sécu-lo XIX eles identificaram rapidamente asbrechas abertas pelo tímido liberalismo vi-gente e freqüentemente levaram seus senho-res aos tribunais em defesa de direitos garan-tidos em lei (95). Mas ao longo da longa his-tória da escravidão, tiveram pouco ou ne-nhum acesso às leis do Estado. Entretantonão se acomodaram. Inventaram estratégiaspara negociar no dia-a-dia melhores condi-ções de vida com os senhores, e quando nãoencontraram espaço para a negociação, eperceberam condições favoráveis, eles se re-belaram individualmente ou se uniram narevolta, fazendo política com uma linguagemprópria, ou com a linguagem do branco filtra-da por seus interesses. Embora fossem derro-tados na maioria das vezes, os escravos re-beldes marcariam limites além dos quais seusopressores não seriam obedecidos. Hoje, elesinspiram o povo negro do Brasil em suaslutas pela cidadania plena. Canta CaetanoVeloso:

“E o povo negro percebeuQue o grande vencedorSe ergue além da dor”.

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NOTAS

1 Embora existam várias versões de Palmares, quatro livros formam sua bibliografia básica: Ernesto Ennes, As Guerras nos Palmares,São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1938; Edison Carneiro, O Quilombo dos Palmares, 4a ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1988(orig. 1946 em espanhol e 1947 em português); Décio Freitas, Palmares, a Guerra dos Escravos, 5a ed., Porto Alegre, 1984 (orig.1971 em espanhol e 1973 em português); e Ivan Alves Filho, Memorial dos Palmares, Rio de Janeiro, Xenon, 1988. Para um balançocrítico da historiografia palmarina, ver a “Apresentação” de Waldir Freitas Oliveira ao livro de Carneiro acima.

2 Johan Nieuhoff narrou sua experiência brasileira em: “Voyage and Travels into Brazil, and the Best Parts of the East Indies”,in Awnsham e John Churchill, A Collection of Voyages and Travels, Londres, H. Lintot & J. Osborn, 1744, vol. II, pp. 1-135.Ver sobre o cálculo de Pedro de Almeida, entre outros, Freitas, Palmares, p. 108. Já Nina Rodrigues, (Os Africanos no Brasil,4a ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1976, p. 76) e outros autores antes dele duvidaram dessas estimativas. Stuart B.Schwartz (Slaves, Peasants, and Rebels, Urbana, U. of Illinois Press, 1992, p.123) contesta a cifra de 20 mil palmarinos, quese verdadeira equivaleria ao número de escravos nos engenhos pernambucanos de meados do século XVII. Freitas (Palmares,p.65) duvida de 30 mas admite 20 mil. Alves Filho (Memorial, p.47) cita 30 mil sem reservas.

3 Schwartz, Slaves, Peasants, and Rebels, pp. 125-8, para mais detalhes.

4 Pedro Paulo Funari, “A Arqueologia de Palmares e sua Contribuição para o Conhecimento da História da Cultura Afro-americana”, in João José Reis e Flavio Gomes (orgs.), História do Quilombo no Brasil, São Paulo, inédito a sair pela editoraCompanhia das Letras.

5 Minhas observações sobre poliandria seguem sugestões de Richard Price (“Palmares como Poderia Ter Sido”, in Reis eGomes, op. cit.).

6 A historiografia “de esquerda” sobre Palmares inclui, entre outros, Décio Freitas, Ivan Alves Filho e o pioneiro EdisonCarneiro, este último o menos afetado pelo marxismo algo esquemático dos demais, porém dado a excessos culturalistas.Ver também a interpretação surreal-trotskista de Benjamin Péret: O Quilombo dos Palmares, Lisboa, Fenda, 1988. Eu nãoacho que se possa abolir a política da obra historiográfica. Ninguém é santo. Só refuto programar a interpretação da históriaapenas para servir ideologias. Discordo deste e outros tipos de servidão.

7 Ver particularmente Alves Filho, Memorial.

8 Carneiro, O Quilombo dos Palmares, pp. 164-5; Ennes, As Guerras nos Palmares, pp. 258-61, documentos 38 e 39.

9 R. K. Kent, “Palmares: An African State in Brazil”, in Journal of African History, 6:2, 1965, pp. 168-9. Como já lembrou StuartSchwartz (Slaves, Peasants, p. 134, no 65), Kent demonstra dificuldade em entender o português dos documentos que usa,distorcendo freqüentemente seu conteúdo, além de fazer considerações etnográficas infundadas.

10 Silvia H. Lara, “Do Singular ao Plural: Palmares, Capitães-do-mato e o Governo dos Escravos”, in Reis e Gomes, op. cit.

11 Arquivo Público da Bahia (APEBa), Ordens Régias, vol. 8, doc. 92-A.

12 Sumário de culpa de João José Ferraz, 1833, Arquivo Municipal de Rio de Contas, doc. não catalogado.

13 APEBa, Ordens Régias, vol. 86, doc. 78A.

14 Luiz Mott, “Santo Antônio, o Divino Capitão-do-mato”, in Reis e Gomes, op. cit.

15 Edison Carneiro, “Singularidades dos Quilombos”, in Carneiro, O Quilombo dos Palmares, pp. 15, 19, 22-3 sobre circu-lação de quilombolas pela sociedade livre. Um bom artigo que sistematiza a inserção do quilombola na “sociedade livre” éo de Thomas Flory, “Fugitive Slaves and Free Society: the Case of Brazil”, in The Journal of Negro History, 64: 2, 1979, pp.116-30. Clóvis Moura (Os Quilombos e a Rebelião Negra, 4a ed., São Paulo, Brasiliense, 1985) adverte para o fato de queo quilombo “nunca foi [...] uma organização isolada”, mas enfatiza seus contatos solidários com escravos e outros setoressubalternos. (Ver, por exemplo, pp. 18, 22.) Ver também, do mesmo autor: Quilombos: Resistência ao Escravismo, 3a ed.,São Paulo, Ática, 1993, pp. 24-5. Em seu livro já clássico, Rebeliões da Senzala (4a ed., Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988,cap. 3), Moura amplia mais o quadro de alianças. As muitas contradições das alianças entre quilombolas e outros setoresem Minas Gerais são discutidas por Carlos Magno Guimarães, “Mineração, Quilombos e Palmares”, e Donald Ramos, “OQuilombo e o Sistema Escravista em Minas Gerais”, in Reis e Gomes, op. cit.

16 Ver os artigos em Reis e Gomes (op. cit.) escritos por Donald Ramos, Eurípedes Funes, Carlos Magno Guimarães, MaryKarasch, Marcus J. M. de Carvalho, Luiza Volpato, Flavio Gomes, Mário Maestri e João Reis. Mais sobre o campo negro deIguaçu e outras áreas do Rio de Janeiro em Flavio Gomes, Histórias de Quilombolas (Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995),e quilombos em torno da Corte, Mary Karasch, Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850, (Princeton, Princeton U. Press, 1987,pp. 311-5); e em Minas Gerais, Carlos Magno Guimarães, A Negação da Ordem Escravista). São Paulo, Ícone, 1988. Aindasobre Minas, e enfatizando essa “integração” social dos quilombolas, Kathleen Higgins (“Masters and Slaves in a MiningSociety: a Study of Eighteenth-Century Sabará, Minas Gerais”, in Slavery & Abolition, 11:1, 1990, pp. 65-8). Sobre osquilombos suburbanos em Salvador, Bahia, João J. Reis Rebelião Escrava no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1986, pp. 65-7); e em São Paulo, Magda Maria de O. Ricci “‘Nas Fronteiras da Independência’: um Estudo sobre os Significados daLiberdade na Região de Itu (1799-1822)”, (Dissertação de Mestrado, Unicamp, 1993, pp. 62-3).

17 Conforme sugeriu Stuart B. Schwartz (“The Mocambo: Slave Resistance in Colonial Bahia”, in Richard Price (org.), MaroonSocieties, New York, Anchor Books, 1973, p. 211), posição que no entanto o autor não mais adota, conforme Schwartz,Slaves, Peasants, and Rebels (p. 109).

18 APEBa, Ordens Régias, vol. 86, doc. 78A.

19 Mary Karasch, “Os Quilombos do Ouro na Capitania de Goiás”, in Reis e Gomes, op. cit.. Ver também Moura, Rebeliõesda Senzala, pp. 108-14, sobre quilombolas mineradores.

20 Anônimo, “Notícia diária e individual das marchas [...] que fez o Senhor Mestre de Campo [...] Inacio Correa Pamplona[...]”, Anais da Biblioteca Nacional, 108 (1988), pp. 76-7. Discussão detalhada deste documento é feita por Laura de Melloe Souza, “Violência e Práticas Culturais no Cotidiano de uma Expedição contra Quilombolas” (in Reis e Gomes, op. cit.).

21 Carneiro, “Singularidades dos Quilombos”, p. 25.

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22 Apud Mundinha Araújo, Insurreição de Escravos em Viana, 1867, São Luiz, Sioge, 1994, p. 42. Os quilombolas doMaranhão também se dedicavam à prospecção de ouro, à lavoura de mandioca e outros alimentos, e ao fabrico de farinha(pp. 68, 71, por exemplo).

23 João J. Reis, “Escravos e Coiteiros no Quilombo do Oitizeiro: Bahia, 1806”, in Reis e Gomes, op. cit.

24 Tese de autores como Arthur Ramos, Edison Carneiro e Roger Bastide. Ver balanço das interpretações sobre quilombobrasileiro em Guimarães (A Negação, pp. 17-24), e sobretudo a “Introdução” de Gomes a seu Histórias de Quilombolas.

25 Apud Assunção, “Quilombos Maranhenses”.

26 Sobre formação da cultura afro-americana no Caribe, com implicações óbvias para o caso brasileiro, ver o já clássicoensaio de Sidney Mintz e Richard Price, The Birth of Afro-American Culture (Boston, Beacon, 1992, orig. 1976), cujosautores, no entanto, adotam um modelo de formação rápida de uma cultura afro-americana, modelo que não deve sergeneralizado para todas as situações e regiões. Especificamente sobre quilombos, ver: Richard Price, “Introduction”, in R.Price (org.), Maroon Societies, pp. 1-30; e Price, “Resistance to Slavery in the Americas: Maroon and their Communities”,in Indian Historical Review, 15: 1-2, 1988-89, pp. 71-95. São importantes também vários trabalhos de Price sobre osquilombolas Saramaka do Suriname, entre os quais destacaria o genial First-Time (Baltimore, The Johns Hopkins U. Press,1983), e sua continuação Alabi’s World (Baltimore, The Johns Hopkins U. Press, 1990), onde pratica o modelo interpretativoesboçado em 1976 no livro em parceria com Mintz. Price argumenta que a cultura escrava no Suriname demorou mais dese “crioulizar” ou “afro-americanizar” porque, ao contrário da cultura quilombola mais isolada, naquela a comunicação coma África se mantinha através dos africanos que eram periodicamente incorporados pelo tráfico aos plantéis nas fazendas,engenhos e cidades.

27 São todas medidas bem conhecidas da legislação antiquilombo das Minas Gerais, discutidas pelos autores arroladosao longo dessas notas que discutem a região. Ver também: Julio Pinto Vallejos, “Slave Control and Slave Resistance inColonial Minas Gerais, 1700-1750”, in Journal of Latin American Studies, 17 (1985), pp. 1-34; Schwartz, Slaves, Peasants,and Rebels, pp. 109-12.

28 APEBa, Ordens Régias, vol. 13, doc. 120A.

29 APEBa, Ordens Régias, doc. 6.

30 Sobre o Buraco do Tatu, Schwartz, “The Mocambo” (pp. 222-3).

31 Ronaldo Marcos dos Santos, Resistência e Superação do Escravismo na Província de São Paulo (1885-1888), SãoPaulo, IPE/USP, 1980, pp. 30-4.

32 Tratados de paz foram celebrados pelo poder colonial na Jamaica e Suriname, por exemplo, episódios bastante conhe-cidos da história quilombola nas Américas. Ver os trabalhos de Price citados na nota 26 sobre o Suriname. Sobre a Jamaica,ver entre outros: Barbara K. Kopytoff, “Colonial Treaty as Sacred Charter of the Jamaica Maroons”, in Ethnohistory, 26: 1(1979), pp. 45-64; e Mavis Campbell, The Maroons of Jamaica, 1655-1796, Trenton NJ, Africa World Press, 1990, cap. 5.Houve também “tratados” entre cimarrones e colonos em Cuba e no México: Patrick J. Carroll, “Mandinga: The Evolutionof a Mexican Runaway Slave Community, 1735-1827”, in Comparative Studies in Society and History, 19: 4, 1977, pp. 492-3.

33 Price, “Palmares como Poderia Ter Sido”. Na entrevista dada à Folha de S. Paulo referida na nota 6 Décio Freitas chegaa conclusão semelhante. Moura (Rebeliões da Senzala, pp. 216-7) analisa com sobriedade a posição de Ganga Zumba.

34 Ver, por exemplo: Carneiro, O Quilombo dos Palmares, pp. 127-9; e Freitas, Palmares, pp. 123-4. Sobre a missãoreligiosa: Ronaldo Vainfas, “Deus contra Palmares: Representações Senhoriais e Idéias Jesuíticas”, in Reis e Gomes, op.cit. Ver também: Alves Filho, Memorial dos Palmares, pp. 133-5.

35 Moura, Rebeliões da Senzala, pp. 112-3; Pinto Vallejos, “Slave Control and Slave Resistance”, pp. 24-5.

36 Sobre as revoltas baianas: Reis, Rebelião Escrava; e Stuart Schwartz, “Cantos e Quilombos numa Conspiração deEscravos Haussás na Bahia”, in Reis e Gomes, op. cit.; Vilma P. F. de Almada, Escravismo e Transição: o Espírito Santo(1850-1888), Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 167. Sobre o Maranhão: Assunção, “Quilombos no Maranhão”; e sobretudoAraújo, Insurreição de Escravos.

37 Ramos, “O Quilombo e o Sistema Escravista”; e Karasch, Slave Life, pp. 324-5.

38 Leslie B. Rout Jr., The African Experience in Spanish America, Cambridge, Cambridge U. Press, pp. 104-5; StuartSchwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Cambridge, Cambridge U. Press, 1985, pp. 469-70;Guimarães, A Negação da Ordem Escravista, pp. 137-42; Pinto Vallejos, “Slave Control and Slave Resistance”, entre outros.

39 Thomas W. Merrick e Douglas H. Graham, Population and Economic Development in Brazil, Baltimore, The JohnsHopkins U. Press, 1979, p. 51.

40 Estes são alguns dos fatores listados no artigo clássico do sociólogo jamaicano Orlando Patterson, “Slavery and SlaveRevolts: a Socio-Historical Analysis of the First Maroon War, 1665-1740” (in Price (org.), Maroon Societies, pp. 246-92).Eugene Genovese (From Rebellion to Revolution, New York, Vintage, 1981, pp. 11-2) acrescenta outras “condições geraisque favoreceram revoltas massivas e guerras de guerrilha” escravas.

41 Ver Eugene Genovese, Roll Jordan Roll, New York, Pantheon, 1974, passim, esp. pp. 3-7.

42 Ver a interpretação paternalista em: Genovese, Roll Jordan Roll; idem, From Rebellion to Revolution, esp. cap. 1; e aantipaternalista em Herbert Gutman, The Black Family in Slavery and Freedom, New York, Pantheon, 1974.

43 Reis (“Recôncavo Rebelde”, passim e pp. 113-5), sobre a revolta do Vitória. Sobre as do Santana, Stuart B. Schwartz,“Resistance and Accommodation in Eighteenth-Century Brazil”, Hispanic American Historical Review, 57, 1977, pp. 69-81;João J. Reis, “Resistência Escrava em Ilhéus”, Anais do APEBa, 44, 1979, pp. 285-97. O inventário de Barbacena, que sódescobri depois de publicado este último artigo, está no APEBa, Judiciária. Inventários, maço 2738.

44 Queiroz, Escravidão Negra, pp. 207-32. Sobre o quilombo de Manoel Congo ver: João Luiz Pinaud et alii, InsurreiçãoNegra e Justiça, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura/OAB, 1987, onde se encontra transcrita a devassa. O estudo maiscompleto sobre o assunto é Gomes, Histórias de Quilombolas, cap. 2.

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45 Suely R. Reis de Queiroz, “Rebeldia Escrava e Historiografia”, in Estudos Econômicos, 17, 1987, pp. 25-7. Neste mesmovolume de Estudos Econômicos (pp. 131-49) esclareço alguns pontos do que discuto em Rebelião Escrava, objeto doscomentários de Queiroz.

46 Thomas Holloway, Policing Rio de Janeiro, Stanford, Stanford U. Press, 1993, pp. 112-4. Deste mesmo autor sobrecapoeira, “‘A Healthy Terror’: Police Repression of Capoeira in 19th-Century Rio de Janeiro”, Hispanic American HistoricalReview, 69 (1989), pp. 637-76. O trabalho mais rico e criativo sobre capoeira no período é de Carlos Eugênio L. Soares: ANegregada Instituição, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1994.

47 Karasch, Slave Life, p. 325.

48 A imagem da Torre de Babel é de uma carta do governador Luis Monteiro para o rei, em 5/7/1726, reproduzida na íntegrapor Vallejos (“Slave Control”, p. 33). Sobre a política de controle escravo de Arcos: Reis, Rebelião Escrava, pp. 69-73.

49 Marquês de Aguiar ao Conde dos Arcos, 22/3/1814, APEBa, Ordens Régias, vol. 116, doc. 89.

50 Karasch, Slave Life, cap. I, sobre distribuição étnica dos escravos do Rio. Sobre a Bahia, Inês C. de Oliveira, “RetrouverUne identité: Jeux Sociaux des Africains de Bahia (vers 1750 - vers 1890)”, Doutorado, U. de Paris IV, 1992, cap. II, esp. p.104; Reis, Rebelião Escrava, pp. 116, 119, 169 e segs. A direção e o volume do tráfico baiano no período é assunto do clássicode Pierre Verger, Fluxo e Refluxo (São Paulo, Corrupio, 1988). Robert Slenes (“‘Malungu Ngoma Vem!’: África Encobertae Descoberta no Brasil”, in Revista USP, 12, 1991-92, pp. 48-67) trabalha com a noção de uma “protonação bantu”, envol-vendo angolas e outros grupos bantos, para entender a reinvenção étnica entre os escravos do Sul do Brasil.

51 Leila Algranti, O Feitor Ausente, Petrópolis, Vozes, 1988, pp. 152-3; Karasch, Slave Life, pp. 324-6; Holloway, (PolicingRio de Janeiro, p. 114) também atribui ausência de insurreição no Rio ao bom policiamento. Sobre revoltas rurais baianas:Reis, “Recôncavo Rebelde”.

52 Cálculos da demografia africana baseados em: Maria José de S. Andrade, A Mão-de-obra Escrava em Salvador, 1811-1860, São Paulo, Corrupio, 1988, pp. 189-90.

53 João José Reis, “A Greve Negra de 1857 na Bahia”, in Revista USP, 18, 1993, p. 28. Nesta data os nagôs eram 77% dosescravos africanos matriculados como negros ao ganho em Salvador.

54 Não quero entrar aqui na discussão sobre se os levantes malês baianos foram jihad. Acho que não, e explico por que emvários trabalhos, em especial “Um Balanço dos Estudos sobre as Revoltas Escravas Baianas” (in J. J. Reis (org.), Escravidãoe Invenção da Liberdade, São Paulo, Brasiliense, 1988, pp. 87-140) e Reis e P. F. de Moraes Farias, “Islam and SlaveResistance in Brazil” (in Islam et Societé au Sud du Sahara, 3, 1989, pp. 41-66).

55 Karasch, Slave Life, pp. 31-5; Joseph Miller, Way of Death, Madison, Wisconsin U. Press, 1988, cap. 2 e pp. 388-9. ManoloFlorentino e José Roberto Góes (“Estratégias de Socialização Parental entre os Escravos nos Séculos XVIII e XIX”, textoinédito, Gráfico 1) encontraram dados discordantes de Karasch: apenas 16% de escravos importados teriam até 14 anos.A diferença pode ser atribuída a duas razões: 1) os dados de Karasch cobrem 1830-52 (período do tráfico ilegal), os deFlorentino e Góes 1822-33 (tráfico ainda legal até 1831) e podem ter ocorrido mudanças na composição etária; 2) os deKarasch são de africanos importados, os de Florentino e Góes africanos reexportados para fora da cidade. É possível quea maioria das crianças ficasse na cidade. (Agradeço a Marcus Joaquim M. de Carvalho que, embora refletindo sobrePernambuco, me lembrou a estrutura etária dos escravos bantos vindos para o Brasil e suas implicações para a rebeldia.)Sobre tensões e distúrbios no Rio: Gladys S. Ribeiro, “‘Pés-de-chumbo’ e ‘Garrafeiros’: Conflitos e Tensões nas Ruas do Riode Janeiro no Primeiro Reinado (1822-1831)”, in Revista Brasileira de História, 23-24, 1991-92, pp. 141-65.

56 Para uma crítica contundente dos “reificadores” da gente escrava, ver: Sidney Chalhoub, Visões da Liberdade, São Paulo,Companhia das Letras, 1990, pp. 37-43. Também importantes são as considerações de Silvia Lara (Campos da Violência,São Paulo, Paz e Terra, 1988, cap. IV).

57 Katia M. de Queirós Mattoso, A Presença Francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798, Salvador, Itapoã, 1969;Luís Henrique D. Tavares, História da Sedição Intentada na Bahia em 1798, São Paulo, Pioneira, 1975.

58 O estudo clássico sobre esta revolução é: C. L. R. James, The Black Jacobins, 2a ed., New York, Vintage, 1963. Umainteressante interpretação recente, que enfatiza a tradição quilombista dos cativos haitianos no desenlace do movimento,diminuindo a importância dos “ideais democrático-burgueses”, é: Carolyn Fick, The Making of Haiti, Knoxville, The U. ofTennessee Press, 1990.

59 Luiz Mott, Escravidão, Homossexualidade e Demonologia, São Paulo, Ícone, 1988, pp. 11-8.

60 Marcus Joaquim M. de Carvalho, “Hegemony and Rebellion in Pernambuco (Brazil), 1824-1835”, Doutorado, U. of IllinoisUrbana-Champaign, 1989, pp. 66-7 e nota 86; Glacira Lazzari Leite, Pernambuco 1824, Recife, Massangana, 1989, p. 102.

61 Robin Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery, 1776-1848, Londres, Verso, 1988, p. 257.

62 Carlos Guilherme Mota, Nordeste 1817, São Paulo, Perspectiva, 1972, pp. 118-20, por exemplo; João J. Reis, “O JogoDuro do Dois de Julho”, in J. Reis e E. Silva, Negociação e Conflito, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 90-1, 94;Araújo, Insurreição de Escravos, p. 50.

63 Sobre Itu, Ricci, “Nas Fronteiras da Independência”, pp. 222-6, 258; sobre a Bahia, Reis, “O Jogo Duro”, p. 92, e APEBa,maço 2860 (Proclamação de Madeira de Mello, 29/03/1822); sobre o Espírito Santo, Almada, Escravismo e Transição, p. 166.

64 Um estudo pioneiro sobre a participação escrava nos movimentos do período é: Moura, Rebeliões da Senzala, cap. 2.Ver também, entre outros: Mota, Nordeste 1817, passim; Dirceu Lindoso, A Utopia Armada, São Paulo, Paz e Terra, 1983;Carvalho, “Hegemony and Rebellion”; Reis, Rebelião Escrava, cap. 2; Paulo César Souza, A Sabinada, São Paulo, Brasiliense,1987, cap. 7; Mário Maestri, O Escravo Gaúcho, Porto Alegre, Ed. da Universidade, 1993, pp. 76-82; e Helga I. L. Piccolo,“A Questão da Escravidão na Revolução Farroupilha”, in Anais da V Reunião da SBPH, São Paulo, 1986, pp. 225-30. Vertambém, sobre a participação negra nos movimentos “brancos”: Lana Lage Lima, Rebeldia e Abolicionismo, Rio de Janeiro,Achiamé, 1981, pp. 71-5.

65 Maria Januária V. Santos, A Balaiada e a Insurreição de Escravos no Maranhão, São Paulo, Ática, 1983; Assunção,“Quilombos Maranhenses”.

Page 26: Quilombos e Revoltas Escravas No Brasil

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66 Luiza R. C. Volpato, Cativos do Sertão, São Paulo/Cuiabá, Marco Zero/Universidade Federal do Mato Grosso, 1993, pp.186-97; Araújo, Insurreição de Escravos, pp. 79, 84-5, 135-8, por exemplo.

67 Apud Suely R. Reis de Queiroz, Escravidão Negra em São Paulo, Rio de Janeiro, José Olympio, 1977, p. 220.

68 Almada, Escravismo e Transição, pp. 167-74; Lana Lage da Gama Lima, Rebelião Negra e Abolicionismo, Rio de Janeiro,Achiamé, 1981, p. 93.

69 Maria Helena Machado, O Plano e o Pânico, Rio de Janeiro/São Paulo, Edufrj/Edusp, pp. 73, 92-4. Sobre resistênciaescrava e seu impacto sobre as populações livres, inclusive o movimento abolicionista, ver, além deste livro: Santos,Resistência e Superação do Escravismo, esp. cap. II, e Célia Maria M. de Azevedo, Onda Negra, Medo Branco, São Paulo,Paz e Terra, 1987.

70 Apud Araújo, Insurreição de Escravos, pp. 33-4.

71 Genovese, From Rebellion to Revolution. Entre seus muitos críticos: Michael Craton, Testing the Chains, Ithaca, CornellU. Press, 1982; e Fick, The Making of Haiti.

72 Reis, Rebelião Escrava, pp. 136-55.

73 APEBa, Correspondência do Presidente, vol. 679, fl. 140.

74 Luiz Mott, Sergipe del Rey, João Pessoa, Fundesc, 1988, pp. 68-9; Reis, Rebelião Escrava; Queiroz, Escravidão Negra,pp. 164, 166-7, 219; Afonso Cláudio, Insurreição do Queimado, Vitória, Editora da Fundação Ceciliano Abel de Almeida,1979; Santos, Resistência e Superação do Escravismo, pp. 38-9; Maestri, O Escravo Gaúcho, p. 74; Machado, O Plano eo Pânico, pp. 214-5 (outros exemplos de festa e revolta, pp. 183, 214 e 220).

75 Robert Dirks, The Black Saturnalia, Gainsville, U. of Florida Press, 1987, especialmente cap. 7. O autor baseia suasconclusões em experiências feitas na década de 1940, em laboratório, com pessoas, nos Estados Unidos. Ver também: JoãoReis, “O Levante dos Malês: uma Interpretação Política”, in Reis e Silva, Negociação e Conflito, pp. 120-2, sobre o timingda revolta escrava. Para uma comparação com o fenômeno na Europa: Ives-Marie Bercé, Fête et révolte, Paris, Hachete,1976.

76 Sobre a participação das mulheres na revolta de Pati de Alferes, ver: Maria Cândida G. de Souza e Jeannette Q. Garcia,“A Mulher Escrava e o Processo de Insurreição”, in Pinaud et alii, Insurreição Negra, pp. 115-35, salvo engano o únicotrabalho sobre a escrava rebelde no Brasil.

77 Idem, ibidem, pp. 74-6; Vallejos, “Slave Control”, pp. 30-1; Carlos O. de Andrade e Salete Lemos, “Quilombo: Forma deResistência”, in Pinaud et alii, Insurreição e Justiça, pp. 29-30; Reis, “Recôncavo Rebelde”, pp. 121-6.

78 Jean-Baptiste Debret, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, São Paulo, Martins, 1940, II, pp. 181-6; James Wetherell,Brazil, Liverpool, Webb & Hunt, 1860, p. 5; Eduardo Silva, Prince of the People, Londres, Verso, 1994.

79 APEBa, Ordens Régias, vol. 23, doc. 106 e vol. 24, docs, 46 e 46A.

80 Francisco Calmon, Relação das Faustíssimas Festas, Rio de Janeiro, Funarte, 1982 (fac-símile do orig. 1762), pp. 52,57-8.

81 Ver Algranti, Feitor Ausente, pp. 145-47; Leila Algranti, “Costumes Afro-brasileiros na Corte do Rio de Janeiro”, in Boletimdo Centro de Memória da UNICAMP, 1, 1989, pp. 17-21 publica na íntegra e comenta o documento relativo a este notávelepisódio.

82 Eric Hobsbawm (Primitive Rebels, New York, Norton, 1959, esp. pp. 119-21) estudou o fenômeno na Europa.

83 Ver Queiroz, Escravidão Negra, pp. 216, 219.

84 Ver Sud Menucci, O Precursor do Abolicionismo (Luís Gamama), São Paulo, Nacional, 1938, p. 20.

85 Testemunho de d. Balthasar da Silveira, APEBa, Revoltas, maço 2845.

86 Cláudio, Insurreição do Queimado, esp. caps. II e III.

87 Slenes, “‘Malungu’”, pp. 64 e segs.

88 Ver John Thornton, “On the Trail of Voodoo”, in The Americas, 54: 3, 1988, pp. 261-78; idem, “African Dimensions of theStono Rebellion”, in The American Historical Review, 96:4, 1991, pp. 1101-3.

89 Stephen B. Oates, The Fires of Jubilee, New York, Perennial, 1990.

90 Ver Laura de Mello e Souza (O Diabo e a Terra de Santa Cruz, São Paulo, Companhia das Letras, 1986), sobrereligiosidade popular colonial.

91 Ver João J. Reis, (“Différences et Résistances: les Noirs à Bahia sous l’esclavage”, in Cahiers d’Études Africaines, 125,1992, pp. 15-34), sobre irmandades e política escrava.

92 Machado, O Plano e o Pânico, cap. 3.

93 APEBa, Ordens Régias, vol. 55, doc. 21A. Ver mais detalhes sobre tentativas de controle dos libertos em Minas em:Guimarães, “Mineração, Quilombos e Palmares”.

94 Carta de Francisco de Paula Negromonte, 27.11.1831, Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, II-33, 5, 46. Sobre aposição ambígua dos libertos, ver também Guimarães, (ibidem).

95 Ver por exemplo: Chalhoub, Visões da Liberdade; Keila Grinberg, Liberata, a Lei da Ambigüidade, Rio de Janeiro, RelumeDumará, 1994; e Eduardo Spiller Pena, “Liberdades em Arbítrio”, in Padê, 1, 1989, pp. 45-57.