quilombos brasileiros: resistÊncia, repressÃo e

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1 QUILOMBOS BRASILEIROS: RESISTÊNCIA, REPRESSÃO E CONSOLIDAÇÃO Fernando Bueno Oliveira 1 RESUMO Esse trabalho é fruto do estudo, em andamento, acerca dos quilombos brasileiros e se configura como um ensaio a respeito do decisivo papel do negro escravizado no processo produtivo brasileiro ao longo dos períodos Colonial e Imperial. Objetiva demonstrar que a formação dos quilombos representava uma das formas de resistência de maior repercussão para ordem escravista, frente à dependência dos senhores em relação aos seus escravos, importantíssimos, aliás, na produção e na manutenção de suas riquezas. Traz à discussão, à luz de diferentes autores, a formação dos quilombos, como configuração histórica e contínua de resistência ao processo produtivo em voga; enfatiza que as diferentes formas de resistência dos escravos resultaram das inúmeras brutalidades a que eram submetidos; levando-se em conta alguns registros de pessoas pertencentes da alta sociedade da época, ilustra que a força escrava representava a principal forma de obtenção de lucros; o medo de perdê-la gerava constantemente diferentes formas de opressão e castigo. Quanto à formação dos quilombos, Goiás não esteve de fora do cenário nacional, fato que lhe proporcionou o abrigo de um avantajado número de quilombolas. Pensar em quilombos é considerá-los numa representatividade da resistência frente a uma sociedade injusta, opressora e desigual. Os quilombos representavam a forma consolidada de união e de valorização de uma minoria racial desprovida, fora do quilombo, de liberdade de expressão, de sentimentos e de vida. Os quilombos não se configuravam somente como algo delimitado, limitado e isolado, mas detinham o poder que, se utilizado, seria capaz de modificar estruturantes dominantes. PALAVRAS-CHAVE: Resistência. Repressão. Quilombos. Riqueza. Goiás. Considerações iniciais As temáticas voltadas aos quilombos brasileiros são, muitas das vezes, tratadas com bastante superficialidade em grande parte dos trabalhos acadêmicos da área das humanidades. Isso ocorre talvez pelo fato dos quilombos serem, ainda hoje, notados somente como componentes do passado e, de certa forma, como elementos históricos isolados da dinâmica econômica brasileira. 1 Graduado em Geografia (IESA/UFG - 2002). Mestrando do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado pela Universidade Estadual de Goiás, (TECCER/UEG). E-mail: [email protected]

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Page 1: QUILOMBOS BRASILEIROS: RESISTÊNCIA, REPRESSÃO E

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QUILOMBOS BRASILEIROS: RESISTÊNCIA, REPRESSÃO E CONSOLIDAÇÃO

Fernando Bueno Oliveira1

RESUMO

Esse trabalho é fruto do estudo, em andamento, acerca dos quilombos brasileiros e se

configura como um ensaio a respeito do decisivo papel do negro escravizado no processo

produtivo brasileiro ao longo dos períodos Colonial e Imperial. Objetiva demonstrar que a

formação dos quilombos representava uma das formas de resistência de maior repercussão

para ordem escravista, frente à dependência dos senhores em relação aos seus escravos,

importantíssimos, aliás, na produção e na manutenção de suas riquezas. Traz à discussão, à

luz de diferentes autores, a formação dos quilombos, como configuração histórica e contínua

de resistência ao processo produtivo em voga; enfatiza que as diferentes formas de resistência

dos escravos resultaram das inúmeras brutalidades a que eram submetidos; levando-se em

conta alguns registros de pessoas pertencentes da alta sociedade da época, ilustra que a força

escrava representava a principal forma de obtenção de lucros; o medo de perdê-la gerava

constantemente diferentes formas de opressão e castigo. Quanto à formação dos quilombos,

Goiás não esteve de fora do cenário nacional, fato que lhe proporcionou o abrigo de um

avantajado número de quilombolas. Pensar em quilombos é considerá-los numa

representatividade da resistência frente a uma sociedade injusta, opressora e desigual. Os

quilombos representavam a forma consolidada de união e de valorização de uma minoria

racial desprovida, fora do quilombo, de liberdade de expressão, de sentimentos e de vida. Os

quilombos não se configuravam somente como algo delimitado, limitado e isolado, mas

detinham o poder que, se utilizado, seria capaz de modificar estruturantes dominantes.

PALAVRAS-CHAVE: Resistência. Repressão. Quilombos. Riqueza. Goiás.

Considerações iniciais

As temáticas voltadas aos quilombos brasileiros são, muitas das vezes, tratadas com

bastante superficialidade em grande parte dos trabalhos acadêmicos da área das humanidades.

Isso ocorre talvez pelo fato dos quilombos serem, ainda hoje, notados somente como

componentes do passado e, de certa forma, como elementos históricos isolados da dinâmica

econômica brasileira.

1 Graduado em Geografia (IESA/UFG - 2002). Mestrando do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em

Territórios e Expressões Culturais no Cerrado pela Universidade Estadual de Goiás, (TECCER/UEG). E-mail:

[email protected]

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No Brasil, é relativamente recente o estudo direcionado à fuga de escravizados e a sua

relação com a economia brasileira. Destaque aos trabalhos da escritora negra Beatriz

Nascimento (1982; 1985), os quais contemplam os quilombos numa representatividade de

resistência e, ainda, aos trabalhos do escritor Clóvis Moura (1987; 2009), que tece

considerações aos quilombos numa perspectiva de sua vitalidade no processo produtivo

brasileiro.

A escravidão negra no Brasil, ao longo dos períodos Colonial e Imperial, despontou-se

como o meio mais eficiente que os grandes senhores de engenho, de minas e de lavouras

cafeeiras encontraram para a produção e a manutenção de suas riquezas. Entretanto, para que

a força escrava se mantivesse numa condição “ideal”, os senhores se utilizavam de diferentes

meios com vistas a ter-lhe à sua total disposição.

Diante das situações de maus-tratos, os africanos escravizados desconheciam outra

opção que não fosse a de rebelar contra a “ordem” vigente. Rebelavam-se de diferentes

formas, a fuga era uma delas. Os escravos que escapavam e eram posteriormente apanhados,

eram castigados nas mais terríveis proporções.

As diferentes formas de resistência resultavam das brutalidades a que estavam

submetidos, as quais foram muito bem expressas por Clóvis Moura (1987). Diferentes formas

de repressão foram praticadas pelos senhores a fim de manter a “ordem” da escravaria, com a

maior intenção de evitar e/ou eliminar as eventuais fugas.

Por mais que grande parte das temáticas relacionadas a quilombo o limite como

elemento isolado do passado, não se preocupando em estabelecer uma relação com a

economia do Brasil Colônia e/ou do Brasil Império, deve-se considerar que a força escrava

esteve presente na dinâmica econômica brasileira, em seus ciclos econômicos, com exceção

da fase industrial. Na realidade, as agressões a que os africanos escravizados eram submetidos

resultavam do medo dos senhores em perder a mais importante peça geradora e mantenedora

de suas rendas.

Assim considerando, o objetivo desse artigo é o de expressar o decisivo papel dos

negros escravizados para a economia brasileira, considerando, para isso, alguns exemplos que

ilustram perfeitamente a dependência dos senhores em relação aos seus escravos,

importantíssimos, aliás, na produção e na manutenção de suas riquezas. O medo de perdê-los

gerava constantemente diferentes formas de opressão e castigo, o que, consequentemente,

também gerava, dentre os escravos, diversas formas de resistência à ordem escravista. Goiás

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não esteve de fora desse cenário, fato que lhe proporcionou o abrigo de um avantajado

número de quilombolas.

As diferentes formas de resistência

Não é de longa história o estudo direcionado aos quilombos brasileiros. Na realidade,

em concordância com o autor Alex Ratts (2007), houve “demora” da academia em aceitar o

quilombo como linha de pesquisa, com exceção do quilombo de Palmares.

Glória Moura (2006) ao tentar definir o significado de quilombos contemporâneos,

expõe que

Merece destaque a epopeia dos Palmares, em Alagoas, que resistiu por mais de cem

anos aos ataques dos escravocratas. Lá viviam em comunhão ex-escravos, indígenas

e não negros perseguidos pela Colônia. Contudo, em 20 de novembro de 1695,

Zumbi dos Palmares, seu último líder, foi morto, e o quilombo,

destruído. (MOURA, 2006, p. 331).

Sobre os quilombos, não poderíamos deixar de ponderar os trabalhos da historiadora

Beatriz Nascimento, uma das pesquisadoras negras que mais se dedicou ao estudo de

quilombos brasileiros. “Por quase vinte anos, entre 1976 e 1994, ela esteve às voltas com essa

temática” (RATTS, 2007, p. 53). Para a mesma autora o quilombo assumia um significado

amplo de resistência negra em diversos espaços (não somente físicos) (IDEM, IBIDEM, p.

54). Para a definição de quilombo, Beatriz Nascimento contempla

As formas de resistência que o negro manteve ou incorporou na lua árdua pela

manutenção da sua identidade pessoal e histórica. No Brasil, poderemos citar uma

lista destes movimentos que no âmbito social e político é o objetivo do nosso estudo.

Trata-se do Quilombo (Kilombo), que representou na história do nosso povo um

marco na sua capacidade de resistência e organização. Todas estas formas de

resistência podem ser compreendidas como a história do negro no Brasil

(NASCIMENTO, 1985, p. 41).

Os estudos sobre quilombos começam a despontar dentre a intelectualidade brasileira

especialmente a partir da década 1970 (RATTS, 2007). O mesmo autor, ainda em referência à

Beatriz Nascimento, escreve a respeito da crítica dessa pesquisadora em relação à

historiografia sobre os quilombos no Brasil. A crítica partia do “reduzido número de títulos

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dedicados ao tema, que eram em geral muito descritivos, e que generalizavam o termo

quilombo a partir de situações como Palmares” (IDEM, IBIDEM, pág. 57).

Falar de quilombos não é aceitar ou somente expor termos e significados simplistas

que, por muitas vezes, permeiam a academia. Não é tecer considerações descompromissadas

com a realidade desse grupo social. Falar de quilombos é evidenciar, dentre outros sentidos, a

trajetória de vida de determinados grupos sociais no Brasil que, por conta de contextos

históricos e econômicos, foram forçados a resistir contra a obstinação política e econômica

das classes dominantes especialmente ao longo dos séculos XVII a XIX.

A formação histórica dos quilombos no território brasileiro perpassa, antes mais nada,

pelos sentimentos, dentre os africanos escravizados, de sujeição dolorosa nos navios

negreiros, de afastamento mandatório de seus lugares de origem, de tratamento enquanto

mercadorias, de servidão forçosa e de alteração forçosa de seus hábitos, originários de suas

terras natais. Em contrapartida, permeando-os, as diferentes formas de resistência aos poucos

foram se aflorando, resultando, dentre outros eventos, na formação de quilombos,

tradicionalmente entendidos como lugares de escravizados em fuga.

Trabalhos valorosos de Clóvis Moura (1987; 2009), trazem-nos com clareza

cristalizada as diferentes formas de resistência praticadas pelos africanos escravizados ao

longo dos períodos colonial e imperial do Brasil. Na realidade, critica o autor, as literaturas

científicas, até então dos últimos decênios do século XX, preocupavam-se em entender a

dinâmica econômica brasileira dos referidos períodos, por exemplo, sem considerar os

escravizados negros como parte integrante e ativa do desenvolvimento econômico brasileiro.

Clóvis Moura (1987) aponta que uma das primeiras definições de quilombo foi a do

rei de Portugal, em resposta à consulta do Conselho Ultramarino, datada de 2 de dezembro de

1740, em que definia que quilombo era “toda habitação de negros fugidos que passem de

cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões

neles” (MOURA, 1987, p.11).

Na realidade, onde quer que houvesse a existência do trabalho escravo, surgia o

quilombo ou mocambo de negros fugidos, oferecendo resistência, lutando, abatendo em

diversos níveis as forças produtivas escravistas, “quer pela ação militar, quer pelo rapto de

escravos das fazendas, fato que constituía, do ponto de vista econômico, subtração

compulsória das forças produtivas da classe senhorial” (IDEM, IBIDEM, p.14).

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O mesmo autor, fazendo referência a Édison Carneiro (1947), esse um dos primeiros

autores que analisam criticamente a realidade do quilombo de Palmares, mostra as diferentes

formas de luta dos escravizados brasileiros:

a) revolta organizada, pela tomada do poder político, que encontrou sua expressão

mais visível nos levantes dos negros malês (muçulmanos) na Bahia, entre 1807 e

1835; b) a insurreição armada, especialmente no caso de Manuel Balaio (1839) no

Maranhão; c) a fuga para o mato, de que resultaram os quilombos, tão bem

exemplificados por Palmares. De fato, essas três formas fundamentais de luta

caracterizam, de modo geral, os movimentos rebeldes dos escravos, a quilombagem

no Brasil. Devemos nos lembrar, porém, para que a visão não fique incompleta, de

outras formas de luta usadas pelos escravos: a) as guerrilhas; b) a participação do

escravo em movimentos que, embora não sendo seus, adquirirão novo conteúdo com

sua participação. Finalmente, devemos acrescentar o banditismo quilombola.

(MOURA, 1987, p.14).

Na mesma obra, o autor descreve diferentes situações resultantes da insatisfação dos

negros escravizados: casos de negros bandoleiros (grupos de negros escravizados fugidos que

ainda não tinham um lugar fixo de morada) que atacavam nas estradas e nas fazendas;

quilombolas que fugiam das bandeiras e se escondiam nas matas; quilombolas que se

juntavam aos índios para praticarem desordens, sendo que nesse caso, uma delas, era a

destruição repetidas vezes de um instrumento de morte, a forca; negros que atacavam aos

próprios senhores; negros que se rebelavam nas fazendas, como foi o caso da revolta de

Manuel Congo; negros que praticavam o banditismo individual ou em pequenos grupos.

Geralmente, os negros fugiam para as matas e depois de praticarem desordens se

aquilombavam (MOURA, 1987, pp.16-17). Muitos saíam dos quilombos para atacar fazendas

e povoados mais próximos.

O mesmo autor aplica o termo “quilombagem” para se referir aos movimentos

rebeldes de escravos brasileiros, fatos ocorridos não somente em São Paulo, mas, também, nas

outras capitanias.

Os quilombolas faziam alianças com outros grupos sociais oprimidos, tais como o

faiscador e ao contrabandista de diamantes e ouro, com a intenção de fortalecimento de

relações visando, sobretudo, a sua segurança, haja vista que esses grupos lhes enviavam

avisos cautelosos quando as tropas militares saíam em busca aos quilombos.

As diferentes formas de repressão

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Numa leitura descontextualizada, poder-se-ia haver diferentes opiniões, por parte dos

leitores, carregadas, talvez, por certa indignação da tamanha violência e da periculosidade dos

negros escravizados ou, quem sabe, para os mais romantizados, impregnadas da ideia de

ingratidão desses escravos diante de uma relação de “camaradagem” com os seus senhores,

exemplo que demonstraremos adiante.

Nada contra as diferentes opiniões sobre tal assunto, entretanto, demonstraremos

certas práticas de violência dos senhores em relação aos seus escravos, os quais eram

comumente considerados por seus “donos” como animais ou objetos. Dentre os exemplos

elencados por Clóvis Moura (1987), três nos chamou a atenção por tamanha crueldade. Todos

eles estão ligados à fuga de escravos.

A citação a seguir, retirada da mesma obra, refere-se a um alvará expedido pelo rei de

Portugal e demonstra-nos as atrocidades permitidas pelo próprio Estado sobre os escravos

“fujões”. A íntegra do alvará é a seguinte:

Eu El-Rey faço saber aos que este Alvará em forma de lei virem: que sendo-me

presente, os insultos que no Brasil cometem os escravos fugidos a que vulgarmente

chamam de calhambolas, passando a fazer excesso de se juntar em quilombos e

sendo preciso acudir com os remédios que evitem esta desordem, hei por bem que a

todos os negros, que forem achados em quilombos, estando neles voluntariamente,

se lhes ponha com fogo, uma marca em uma espádua com a leitra F, - que para este

efeito haverá nas Câmaras, e se quando for executar esta pena for achado já com a

mesma marca, se lhe cortará uma orelha; tudo por simples mandado do Juiz de Fora,

ou Ordinário da terra, ou do Ouvidor da Comarca, sem processo algum e só pela

notoriedade do fato, logo que do quilombo for trazido antes de entrar para a Cadeia;

Pelo que mando ao Vice-Rei, e Capitão-General de mar e terra do Estado do Brasil,

Governadores e Capitães-Generais, Desembargadores de Relação, Ouvidores e

Justiça do dito Estado, cumpram e guardem, e façam cumprir e guardar este meu

efeito haja de durar mais de um ano, sem embargo da ordenação do livro 2.o e 4.o em

contrário o que será publicado nas Comarcas do Estado do Brasil, e se registrará na

Relação e Secretaria dos Governos, Ouvidoria e Câmaras do mesmo Estado para que

venha a notícia a todos. Dado em Lisboa ocidental a três de março de mil e

setecentos e quarenta e um. a) Rei (SANTOS apud MOURA, 1987, p.20).

Outro exemplo de crueldade está na tragédia de Isidoro, um negro escravizado fugido

que atuou à frente de cinquenta quilombolas. Moura (1987) em citação, embora longa, à

descrição do escravo Isidoro por Joaquim Felício dos Santos (1924) nos demonstra que

Isidoro era um pardo que fora escravo de um frei Rangel, que vivia da mineração.

Processado como contrabandista foi confiscado a seu senhor em benefício da

Fazenda Real, e condenado a trabalhar nos serviços de Extração, como galé. De

caráter altivo e não podendo suportar a pena que o obrigava a trabalhar de calceta,

um dia limou os ferros, conseguiu iludir a vigilância dos guardas, fugiu do serviço e

atirou-se à vida de garimpeiro. Sucedeu que outros escravos, também condenados,

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imitassem seu exemplo. Reuniram-se e Isidoro constituiu-se o chefe de uma tropa de

garimpeiros escravos [...] Entretinha frequentes comunicações com pessoas

importantes do Tijuco que lhe compravam os diamantes que extraía [...] Câmara foi

o mais acérrimo perseguidor de Isidoro: ainda mais que João Inácio. Declarou-lhe

uma guerra encarniçada; dissimulou patrulhas por toda a parte; bateu-o em

diferentes lugares; empregou os meios de sedução, de ameaças, de violência com as

pessoas que supunha protegê-lo. Isidoro, porém, sempre conseguia pôr-se a salvo de

suas perseguições, já resistindo com a força, já por traças contaminando-lhe os

planos bem combinados. [...] Assaltando de improviso por grande número de

pedestres da intendência, resistiu só e valorosamente por muito tempo até cair ferido

por três balas. Então, o prenderam e ainda o maltrataram, espancaram, feriram, como

se se tratasse de um animal bravio. Isidoro, com as carnes rasgadas e mal podendo

sustar-se, é levado à tortura. Em público, defronte da porta da cadeia, foi amarrado a

uma escada, com os membros estirados e movimentos tolhidos. Dois pedestres

começaram a açoitá-lo com bacalhaus. Logo as carnes rasgam, o sangue salpica e

abrem-se feridas ainda não cicatrizadas [...] Foi recolhido à prisão [...] Isidoro alguns

dias depois, sentindo aproximar-se os seus últimos momentos, declarou que queria

falar com o intendente para fazer-lhe uma revelação [...] Quis falar, tentou erguer-se,

mas já era chegada a sua hora e caiu morto [...] Isidoro depois de sua morte foi

venerado como um santo. Hoje ainda se diz: Isidoro o mártir (SANTOS apud

MOURA, 1987, pp. 22-23).

O terceiro exemplo de violência das que mais nos chamaram a atenção na obra em

análise diz respeito àquela praticada por particulares, ou seja, por “donos” de escravos que

lhes identificavam como sendo exclusivamente “seus”. Clóvis Moura (1987), expõe que “no

Monitor de 5 de julho de 1846 o padeiro francês, Constantino Labrousse, anunciou que lhe

fugira o escravo Gonçalo de nação Cabinda, de 25 anos com ‘uma orelha cortada e muitos

sinais de chicote nas costas’” (MOURA, 1987, p.23). Em citação ao outro anúncio do mesmo

jornal, o autor demonstra que:

Fugiram dous escravos a Caetano Dias da Silva, da vila de Itapemirim, os quais

estavam na fazenda do Limão, um chama-se Manuel Paulo e tem ambas as pás, ou

ombros, pelas costas, a seguinte marca CDS entrelaçados; o outro de nome Luciano,

tem a mesma marca nas duas apás [sic] e em ambos os peitos; dá-se 25$ de alvíceras

a quem os pegar (Jornal Monitor de 5 de julho de 1846 apud MOURA, 1987, p. 23).

A partir de tais exemplos verificamos que o corpo do escravo era equiparado ao dos

animais, violentado, mutilado e espancado até a morte. Do alvará da Colônia aos anúncios dos

jornais, eles eram marcados e tratados como se fossem gados. Somente através de uma luta

constante contra os movimentos de dominação os negros escravizados poderiam conseguir a

sua reumanização.

Sendo assim, conforme demonstra o autor Clóvis Moura (1987), as práticas de

resistência nada mais era que uma reação dos negros escravizados à ação de dominação dos

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senhores. Para ele, “a repressão do aparelho de Estado escravista era de uma violência que

somente poderia ser combatida com uma violência idêntica, em sentido contrário” (p.24).

A força escrava como forma de manutenção da riqueza

Em leitura a diferentes obras que se referem às características econômicas e sociais do

Brasil ao longo do século XIX, apreendemos informações importantes na compreensão da

relação entre senhores e africanos escravizados. Em todas elas, observa-se que o negro

escravo era sempre avaliado como mera peça para a execução de tarefas. Entretanto, uma

“peça” que, na visão de Moura (1981; 1987), era a grande agente responsável pela dinâmica

econômica brasileira nos períodos colonial e imperial, o que nos permite concluir que sem ele,

o africano escravizado, não haveria a mínima possibilidade de sustentar a implantação dos

moldes capitalistas em terras brasileiras.

Não poderíamos deixar de considerar a obra do sociólogo Octavio Ianni (1978) que,

embora seja antecessora à obra de Moura (1987), pode ser perfeitamente aqui encaixada, por

apresentar importantes reflexões acerca da relação entre a escravidão e o capitalismo, temática

a ser abordada nesse pequeno capítulo.

Em consonância com Moura (1987), é oportuno dizer que, na América, a prática

escravista não ocorreu somente no Brasil, mas, também, nos Estados Unidos, no México, em

Cuba, no Haiti, em Porto Rico, na Venezuela, no Peru, no Equador, no Chile, na Colômbia,

no Uruguai, na Argentina, dentre outros. Em todos eles, o grande desafio para as classes

dominantes era o de utilizar o negro escravizado na garantia de manutenção e acréscimo de

suas riquezas.

No Brasil, inicialmente, as famílias advindas da metrópole Portugal contavam com o

apoio do Reino e, desde já, com a chance de aquisição de escravizados advindos do continente

africano, o que lhes possibilitariam a criação e a manutenção de lavouras de cana-de-açúcar e

engenhos. Já ao longo do século XVIII, as famílias provenientes de outros países europeus,

encontravam por aqui a possibilidade de enriquecimento a partir da utilização da força escrava

nas áreas de mineração e, posteriormente, na produção cafeeira.

Ianni (1978) considerando diferentes teóricos, tais como Caio Prado Júnior, Florestan

Fernandes, Roger Bastide, Gilberto Freyre, admite que “em síntese, foi o capital comercial

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que gerou as formações sociais construídas nas colônias do Novo Mundo, provocando dessa

maneira uma intensa acumulação de capital nos países metropolitanos” (pág. 3).

Na mesma obra, o autor tece diferentes reflexões, inclusive, acerca do racismo na

sociedade escravista, quando o negro escravizado era considerado pelas classes mais

abastadas como um ser desprovido de cultura. Critica Gilberto Freyre (1952) e Fogel e

Engerman (1974) que, segundo Ianni (1978), para eles, a escravidão aparece como sistemas

fechados, encerrados em si, sem movimentos estruturais (pp. 84 e 85). Fogel e Engerman

chegam a defender a ideia que o escravismo americano possibilitou um melhor nível de vida

aos escravizados (p. 85).

Percebe-se a desumanização do escravizado brasileiro ao se ler, por exemplo, certas

literaturas da época escravista e as próprias anotações de diários íntimos de senhores(as) de

escravos. A efeito de demonstração ao leitor, elencamos três registros de escritos que

consideram o escravo como mera “peça” ou “máquina” de trabalho, sem nenhuma marca de

impressão sentimental.

Para esse elenco, aproveitamo-nos das leituras efetuadas para a disciplina de

Seminário de Pesquisa, do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Territórios e

Expressões Culturais do Cerrado da Universidade Estadual de Goiás (TECCER/UEG). No

decorrer das leituras, já portando uma visão mais ligada à pesquisa do mestrado, extraímos

importantes elementos que remontam às ideias disseminadas dentre os integrantes da alta

sociedade brasileira à época escravista. Para isso, em referência à alta sociedade cafeeira do

vale do Paraíba, selecionamos o livro escrito pelo Barão do Paty do Alferes e o diário íntimo

da viscondessa de Arcozelo; em marco regional selecionamos anúncios do jornal “Matutina

Meiapontense”. Numa perspectiva de análise que se baseia na forma em que os escravos eram

tratados e do papel que desempenhavam na economia brasileira, tais trabalhos serão

apresentados e discutidos a seguir.

Iniciamos essa discussão tendo como base a obra de Ana Maria Mauad e Marianna

Muaze (2004) na qual evidenciam as memórias da viscondessa do Arcozelo, por intermédio

de seu diário íntimo. Ao tratarem sobre tal diário, as mesmas autoras abordam,

resumidamente, a trajetória do barão do Paty do Alferes, pai da viscondessa.

Como coronel da Guarda Nacional, o barão atuou no levante de escravos liderado por

Manoel Congo na Fazenda Esperança, também chamada de fazenda Freguesia, em 1838. Tal

escravo liderou um movimento de rebelião dentre os escravos da referida fazenda, sendo

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capturado e enforcado na cidade de Vassouras em seis de setembro de 1839. O mesmo barão,

além de ter dado fim a esse movimento atuou, ainda, no cerco do quilombo de Entre-Rios.

Antes de prosseguirmos, é importante constar que os escritos que compõem esse

diário, objeto de trabalho de Maud e Muaze (2004), caracterizam o estilo de vida dos

fazendeiros da região do vale do Paraíba durante a segunda metade do século XIX. Como nos

deixa claro as autoras, a época em que tal diário foi confeccionado era marcada, ainda, pela

“consolidação de uma aristocracia cafeicultora, dignitária do Império, cujo poder provinha da

posse de terras e escravos” (MAUD & MUAZE, 2004, p. 199). Evidenciam, dessa forma, que

os escravos dinamizavam a economia cafeeira e representavam, então, a riqueza de barões do

café.

Conforme a obra citada, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o barão do Paty do

Alferes, herdou, como único filho do casal Francisco Peixoto de Lacerda e Ana Matilde

Werneck, uma imensa riqueza, dentre fazendas e propriedades urbanas. Sobre a sua riqueza,

as autoras dizem que o barão era:

Dedicado e cuidadoso na manutenção de uma vasta riqueza, que compreendia

fazendas, ricas casas de moradia, palacetes assobradados construídos nas vilas da

região – um deles visitado pelo imperador quando de sua viagem de 1858 ao vale do

Paraíba -, além de móveis importados e de um grande número de escravos. (p. 200).

Interessante observar que o mesmo barão, preocupado em repassar ao seu filho os seus

conhecimentos que resultaram em tamanha prosperidade, chega a escrever um livro, do qual

faremos algumas citações. O livro Memória sobre a fundação e custeio de uma fazenda na

província do Rio de Janeiro, primeira edição de 1847, “foi muito bem recebido pelos

cafeicultores, atentos aos conselhos de um proprietário tão bem-sucedido, além de ser

considerado por Taunay um precioso informativo sobre as fazendas da região” (MAUD &

MUAZE, 2004, p. 201).

Nesse livro, dentre informações relacionadas à lida diária numa fazenda, o mesmo

barão repassa instruções sobre a escravatura, assunto que dedica um capítulo inteiro intitulado

com o mesmo nome, orientando ao leitor sobre as melhores maneiras de se aproveitar do

trabalho escravo.

Já nas primeiras páginas de seu livro, o barão admite que os escravos representam a

máxima parte da fortuna de um fazendeiro, devendo o mesmo refletir que “na conservação

desses e na sua saúde e bem-estar, é que consiste a prosperidade da sua indústria” (p. 16).

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Admitindo que a vitalidade dos escravos representa a produção da riqueza, critica a forma que

alguns fazendeiros os tratavam quando diz que “alguns agricultores não atendendo a seus

interesses conservam seus escravos em cloacas úmidas e mal ventiladas, onde adquirem

moléstias ou incômodos insidiosos que posteriormente os levam ao túmulo” (p. 16).

Chama-nos a atenção que o barão instrui a se usar ao máximo da força de seus

escravos, inclusive em trabalhos noturnos, colocando que o administrador da fazenda

“ordenará então o serão da noite, ou no paiol ou no engenho de mandioca” (p. 35). Em alerta a

eventuais prejuízos quanto à aquisição de escravos, o barão coloca que alguns escravos

poderiam estar acometidos de enfermidades, portanto, orienta aos fazendeiros a não

adquirirem escravos fiados “porque se vos morrem, estão a pagos, e a perda é menos sensível”

(p. 39).

Outra preocupação do barão dizia respeito à revolta de escravos. Para que isso não

ocorresse aconselhava que

O escravo deve ter domingo e dia santo, ouvir missa, se a houver na fazenda, saber a

doutrina cristã, confessar-se anualmente: é isto um freio que os sujeita muito,

principalmente se o confessor sabe cumprir o seu dever, e os exorta para terem

moralidade, bons costumes, amor ao trabalho e obediência cega a seus senhores e a

quem os governa (p. 39).

Em repúdio às revoltas da escravaria, o mesmo livro instrui a importância dos

senhores na manutenção de uma postura “equilibrada” diante de seus escravos. Sendo assim,

o barão diz que “o extremo aperreamento desseca-lhes o coração, endurece-os e inclina-os

para o mal. O senhor deve ser severo, justiceiro e humano” (p. 41). E continua: “Nem se diga

que o escravo é sempre inimigo do senhor; isto só sucede com os dois extremos, ou

demasiada severidade, ou frouxidão excessiva, porque esta os torna irascíveis ao mais

pequeno excesso deste senhor frouxo, e aquela leva-os à desesperação” (pág. 42).

Ao aconselhar sobre os eventuais castigos denuncia que

Há também alguns senhores que têm o péssimo costume de não castigar a tempo, e

de estar ameaçando o escravo dizendo-lhe – deixa que hás de pagar tudo junto – ou,

vai enchendo o saco, que ele há de transbordar e então nós veremos – e quando lhes

parece o agarram e desapiedadamente o maltratam, e por quê? Porque pagou tudo

junto! Barbaridade! (p. 42).

Com vistas a manter os escravos “sadios” o barão receita que o

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12

O escravo trabalhador de roça deve comer três vezes ao dia; almoçar as oito, jantar a

uma hora, e cear das oito até nove. Sua comida deve ser simples e sadia. Em serra

acima, em geral, não se lhe dá carne; comem os escravos feijão temperado com sal e

gordura, e angu de milho, o que é alimento muito substancial (p. 43).

Das citações acima, pode-se inferir que não ocorrem, em momento algum, sentimentos

de humanidade, mas o interesse em garantir que a força escrava se mantivesse como

mantenedora da prosperidade de seus senhores. Era ela, a força escrava, a grande responsável

pela dinâmica econômica dos períodos Colonial e Imperial.

O segundo exemplo do que nos propomos a tratar diz respeito às anotações da

viscondessa do Arcozelo, ou Maria Isabel de Lacerda Werneck, às quais foram, em partes,

copiladas e analisadas na obra de Mauad e Muaze (2004). Segundo elas, o hábito de anotar o

cotidiano da família foi herdado da sua própria mãe, uma baronesa. Num fragmento do

referido diário as autoras ilustram a fortuna da família da viscondessa, grande parte herdada

de seu pai, o barão do Paty do Alferes:

No Rio de Janeiro – 10 casas na rua da Relação; 2 casas na rua dos Inválidos e a

mobília existente no prédio no 5 da rua Almirante Tamandaré. Em Portugal – na

cidade do Porto, Freguesia do Arcozelo – várias propriedades. No município de

Vassouras as fazendas Arcozelo, Monte Alegre e Piedade, com casa residência com

capela e mais dependências, 4 casas em mal estado; um moinho em mal estado; uma

casa onde se aça o engenho; um rancho para a tropa; uma casa-enfermaria para

velhos (PAULA E PONDE ([19-], p. 137) apud MAUAD & MUAZE, 2004, p.

204).

Constata-se, assim, que a força escrava gerava lucros certos e o aumento do volume de

posses às famílias dos barões do café. Sabe-se, entretanto, que a segunda metade do século

XIX foi marcada pelo processo de libertação dos escravos, tendo seu ponto culminante em

1888, quando é assinada a Lei Áurea. As revoltas de escravos continuam a ocorrer e uma das

estratégias das famílias detentoras da força escrava era a da “aproximação”, acompanhada de

certa generosidade. Dessa forma, uma das preocupações da viscondessa era a de prestar uma

atenção maior em relação aos seus escravos. As mesmas autoras expõem que “todos os itens

ligados a gerencia da casa eram anotados detalhadamente [...] O pagamento de mercadorias

aos escravos [...] Os escravos libertos e os batizados”. E continuam: “numa terceira camada

estão os trabalhadores que sustentam a reprodução da riqueza: nesse caso, a proximidade é a

garantia do controle” (MAUAD & MUAZE, 2004, p. 205).

Em seu diário, os escravos são constantemente citados, fato que simboliza a

preocupação da viscondessa em relação àqueles que se configuravam a força responsável na

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13

manutenção da sua fortuna. Além disso, em consonância com as anotações constantes no

diário, permite-se inferir que para aquela família, não diferente do que ocorreu com a de

outros barões do vale do Paraíba no referido período, o trabalho escravo ingressava numa

situação de franco declínio. Conforme as mesmas autoras,

Os escravos são presença constante e podem ser denominados pretos, mas também

pardos e creoullos, para diferenciá-los dos libertos, da gente da roça e dos feitores.

Evidencia-se, no relato, a decadência gradual do trabalho estritamente escravo, que é

substituído pelo trabalho remunerado, dentro e fora de casa (IDEM, IBIDEM, p.

206).

Outra passagem demonstra com nitidez refinada o prenúncio do fim da escravidão,

quando, em ilustração a um fato relacionado ao nascimento da primeira neta da viscondessa e

a necessidade de uma ama-de-leite, as autoras expõem que:

A ama cuidadosamente escolhida foi Agostinha, que partiu acompanhada do

empregado Joaquim para o Rio de Janeiro em 23 de dezembro, após ter recebido

uma gorjeta de 42$000 pelos serviços a serem prestados. Passados cinco dias, no

entanto, Maria Isabel registra que a ama-de-leite escolhida foi comprada e liberta,

obrigando-a a continuar a procurar outra para substituí-la. (IDEM, IBIDEM, p. 212).

O terceiro exemplo que ilustra a vital importância dos africanos escravizados na

dinâmica econômica brasileira nos períodos colonial e imperial está relacionado,

principalmente, às formas de tratamento à que eram submetidos, o que expressa o medo dos

seus “donos” em perder a sua única fonte de renda. Para que o leitor adquira ou reforce tal

visão, consideraremos os ocorridos na província de Goiás por intermédio ao que está

registrado nas folhas do Matutina Meiapontense, “primeiro jornal goiano e que circulou na

cidade de Pirenópolis, de 1830 a 1834” (ALENCASTRE, 1979, p. 9).

A professora Maria de Fátima Oliveira (2013) revisita certos aspectos da história de

Goiás por intermédio das edições do Matutina Meiapontense “detectando a incidência dos

diversos assuntos tratados no mesmo período e a visão de mundo nele veiculada” (p. 01).

Dentre os quinze assuntos principais do referido jornal, está o que faz referência à fuga de

escravos que ocorria na região de Pirenópolis.

Com a intenção de situar o leitor à época das edições do Matutina Meiapontense,

Oliveira (2013) descrevemos, em consonância com a referida autora, os aspectos históricos

conjunturais da Província de Goiás: “posição geográfica interiorana, ausência de infra-

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estrutura, escassez de meios de comunicação, economia de subsistência, esgotamento das

minas auríferas, constantes confrontos com os povos indígenas etc.” (p. 5).

De acordo com a mesma autora, no que diz respeito às fugas de escravos, o Matutina

Meiapontense é prioritariamente voltado para anúncios de fugas e as respectivas recompensas

para quem encontrar um escravo fugido, como mostra o seguinte exemplo:

...fugiu um escravo de nome José, crioulo estatura ordinária, cheio de corpo, cara

redonda, pinta de branco na barba, como na cabeça, com o nariz, e beiços feridos de

bobas; orelhas grossas da mesma moléstia, com um grande calo de ferida na perna

direita, de idade de 40 para 50 anos mais ou menos. O Anunciante promete dar

12$000 rs a quem o pegar, e trouxer, e se for fora da Província dará 30$000 (A

Matutina Meiapontense, 1832, n.º 326 apud OLIVEIRA, 2013, p. 8).

Sobre esse tipo de anúncio a mesma autora diz que “dois aspectos chamaram a atenção

nas notícias sobre esse tema: significativo número de anúncios sobre as fugas, com grande

variação no valor das recompensas e a omissão sobre a vida, cotidiano, alimentação e

tratamento geral dados aos cativos” (p. 9). Esse anúncio se configura como prova suficiente

de que em Goiás a força escrava indubitavelmente mantinha o nível de vida da alta sociedade

rural e urbana.

Em consideração aos três exemplos sugeridos para o presente artigo, pode-se inferir

que a força escrava representava o principal meio de obtenção e manutenção das riquezas de

fazendeiros e barões ao longo do século XIX, configurando-se como a energia necessária na

dinâmica econômica das províncias, conforme propõe Clóvis Moura (1987). Perdê-la

significava o prenúncio do prejuízo financeiro, do declínio econômico e do risco de um

desequilíbrio em pleno tapete da alta sociedade. Tais fatos, conforme elencado, são

observáveis com bastante limpidez no livro escrito pelo barão do Paty do Alferes, no diário

íntimo da viscondessa do Arcozelo e no jornal goiano Matutina Meiapontense.

Entretanto, conforme já exposto anteriormente, nem todos os escravos se sujeitavam

por muito tempo como mercadorias ou meros animais. Grande parte deles se rebelava na

primeira oportunidade que surgisse, o que resultava na fuga e na consequente formação de

quilombos. Segundo os estudos antropológicos, com destaque aos registros considerados pela

Fundação Cultural Palmares, além do quilombo dos Palmares, diversos outros quilombos se

formaram por todo o Brasil, inclusive na Província de Goiás. O próximo capítulo se direciona

a demonstrar que Goiás atraiu um grande número de escravos fugidos ao longo dos períodos

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15

Colonial e Imperial ocasionando a formação de quilombos em diferentes regiões de seu

território.

A constituição de quilombos em Goiás: um breve histórico2

Produções pontuais, tais como a obra de Martiniano José da Silva intitulada “Sombra

de quilombos” (1974) e a de Karasch com o título “Os quilombos do ouro na capitania de

Goiás” (1996), contribuem valorosamente no estudo do processo de escravismo e a

constituição de quilombos em Goiás.

É cabível aqui dizer, ao contrário do que muitos pensam, que as primeiras expedições

percorreram o território do atual estado de Goiás já no primeiro século de colonização do

Brasil. Luís Palacín e Maria Augusta de Sant´Anna Moraes (2001), registram que

Goiás era conhecido e percorrido pelas bandeiras quase que desde os primeiros dias

da colonização, mas seu povoamento só se deu em decorrência do descobrimento

das minas de ouro no século XVIII. Esse povoamento, como todo povoamento

aurífero, foi irregular e instável (PALACÍN & MORAES, 2001, p. 7).

Alguns historiadores consideram que a história de Goiás tem como ponto de partida o

final do século XVII, com a descoberta das suas primeiras minas de ouro, e início do século

XVIII, talvez pela documentação conservada relativamente abundante do século XVII

(PALACÍN & MORAES, 2001). De acordo com esses autores Goiás pertenceu até 1749 à

capitania de São Paulo. A partir desta data, tornou-se capitania independente.

Segundo o que é apresentado na vasta documentação histórico-geográfica, na qual se

encontram fontes históricas escritas e primordiais no processo de construção da historiografia

goiana, os colonizadores que chegaram à antiga capitania de Goyaz por meio de entradas e

bandeiras vieram em busca de riquezas, notadamente minerais como o ouro, o diamante, as

esmeraldas, os cristais e outras pedras preciosas. Quando aqui chegaram, os bandeirantes por

meio da força e agressão transformaram os indígenas em escravos e cativos de guerra, os

quais “procuravam escapar na primeira oportunidade que tivessem” (KARASCH, 1996 p.

242).

2 Este capítulo se configura como uma versão revisada de parte de nosso artigo publicado nos Anais do XIII

Encontro Regional de Geografia realizado em Anápolis-GO no ano de 2014.

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Quando se fala em bandeirantismo, paulatinamente, lembramos da mão-de-obra

escrava, oriunda do continente africano e utilizada em massa nas minas de ouro. Assim, pode-

se afirmar que a chegada do bandeirante tem relação direta com a evolução econômica do

país. Com o início da exploração das minas de ouro em Goiás, durante o período colonial, a

população passa a ser constituída por africanos e seus descendentes, que marcam a região dos

arraiais do ouro, através da formação de quilombos. Para Karasch (1996, p. 242) “[...] os

“maus-tratos e a brutalidade nas minas ou nos engenhos com freqüência levavam os africanos

à revolta e, se bem sucedidos, a formar quilombos nas montanhas vizinhas”.

Entende-se que é a partir da formação de agrupamentos quilombolas, o momento em

que há uma assimilação ou reconhecimento forçoso do território que passavam a habitar.

Associa-se à ideia de reconhecimento forçoso de um local, a opinião de que como estavam

constantemente sendo procurados pelos senhores das minas, escolhiam regiões por eles

consideradas de difícil acesso. Dessa forma, “embora muitas regiões do Brasil oferecessem

refúgios ideais para os quilombolas, a Capitania de Goiás deve ser considerada entre as

melhores para esse fim pela inacessibilidade de seus esconderijos naturais” (KARASCH,

1996, p.68).

O Estado de Goiás possui o seu histórico preenchido de situações que culminaram na

formação de quilombos em suas terras. De acordo com a historiografia goiana, com a

descoberta das minas, milhares de escravos foram trazidos à Goiás para trabalharem na

extração de ouro, pois “ao se divulgar a riqueza das minas recém-descobertas, acorria, sem

cessar, gente de todas as partes do país. Pelos registros da capitação, sabemos que, dez anos

depois, em 1736, já havia nas minas de Goiás 10.263 escravos negros” (PALACÍN &

MORAES, 2001, p. 12). Outra quantidade de escravos chegava à Goiás numa situação de

fuga: vieram escravos fugidos de diversas áreas de lavouras de cana-de-açúcar e de extensões

de mineração até mesmo dos territórios de outros estados brasileiros.

É importante considerar a trajetória apontada por Gusmão (1992), quando se trata da

realidade dos “povoados negros”, revela-se “uma trajetória resultante das condições de

inserção no sistema produtivo como escravo, depois como trabalhador na roça familiar e, mais

recentemente, num padrão associado a este, trabalhador assalariado para o capital”

(GUSMÃO, 1992, p. 27). O negro rural é então, o “pequeno produtor de bens de subsistência

ao mesmo tempo em que é também força de trabalho à disposição do capital” (IDEM,

IBIDEM, p.117).

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Com a decadência da mineração, a atividade agropecuária possibilitou, provavelmente,

a continuidade e/ou formação de agrupamentos negros rurais em todo o Estado: Cedro em

Mineiros (BAIOCCHI, 1983); (SILVA, 2003); Kalunga em Cavalcante, Monte Alegre de

Goiás e Teresina de Goiás; Moinho em Alto Paraíso (BAIOCCHI, 1991; 1999); (PAULA,

2005); (MARINHO, 2008), Mesquita dos Crioulos em Luziânia, dentre outros, cada qual com

as suas trajetórias sócio-espaciais.

Considerações Finais

A escravidão no Brasil foi caracterizada, principalmente, pelo intenso trabalho braçal e

pelas violentas formas de “correção” a que os africanos escravizados eram submetidos. Tudo

isso culminou nas mais diferentes formas de resistência da escravaria, especialmente, a fuga e

a posterior formação de quilombos.

Os senhores e “donos” de escravos produziam e mantinha suas riquezas por

intermédio da força escrava, o que lhes garantiam a intensa produção nos engenhos,

posteriormente, na mineração e, depois, nas lavouras de café. Os exemplos utilizados nesse

artigo nos ilustraram isso, haja vista que conforme nos deixa claro Clóvis Moura (1987;

2009), a força escrava foi decisiva na produção e manutenção da riqueza de grandes

fazendeiros.

Digno de nota é a questão do estudo relacionado aos quilombos brasileiros. Pensar em

quilombos não significa pensar em algo isolado no passado (Moura, 1987), ou, ainda, em uma

mera delimitação territorial em que os negros escravizados se refugiavam. Pensar em

quilombos, conforme os pensamentos de Beatriz Nascimento (1982; 1985) é considerá-los

além de um espaço delimitado, além de uma simples forma de reconstituição da cultura

africana, ou seja, deve-se levar em conta de que eles, os quilombos, representavam a

resistência do negro escravo frente a uma sociedade injusta, opressora e desigual.

Representavam, acima de tudo, a forma consolidada de união, de valorização de uma minoria

racial desprovida, fora do quilombo, de liberdade de expressão, de sentimentos e de vida.

Os estudos sobre os quilombos no Brasil não podem ser restritos ao passado, mas

devem considerar o presente, até porque, mesmo após a Abolição da Escravatura, os negros

não deixaram de ser maltratados, discriminados e apartados do convívio social. O fato é que

os quilombos não desapareceram, os guetos negros permanecem e a discriminação racial no

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Brasil nunca deixou de existir. As representatividades negras, o movimento negro e as

militâncias de intelectuais têm lutado e defendido os direitos dessas minorias com vistas a

uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais tolerante.

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