quilombo mulheres negras- uma aÇÃo identitÁria · quilombo mulheres negras- uma aÇÃo...

21
1 QUILOMBO MULHERES NEGRAS- UMA AÇÃO IDENTITÁRIA Mirella Santos Maria Até que os leões tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador. (Provérbio Africano) Nessa caminhadura escrita, dilato uma intromissão histórico-social da qual faço delas palavras de força a fim de entender e desconstruir o estrutural colocado a nós como única história. Que bom que existem outras histórias para serem contadas. Preta, mulher, periférica. Durante muitos anos, considerei essas palavras sinônimas de um caso de não pertencimento. Ao tentar entender o que cada uma dessas expressões me dizia, descubro significados, espaços. Diante de uma série de marcadores sociais, me percebi múltipla, ainda que o racismo, machismo e as relações sociais de exploração por muitas vezes atribuíam a mim – como para outras mulheres negras – um lugar social determinado. Somos seres sociais que ocultam e revelam identidades, e a partir delas me vejo construindo culturas. De um modo global da minha inserção, em que os mediadores marcados pelas condições de classe, raça e gênero me possibilitam ou não a processos de emancipação política. Ao observar a dinâmica da nossa sociedade contemporânea, me deparo com uma lógica que prioriza a produção em detrimento de qualquer tipo de relação humana. Essa lógica a qual chamamos de capitalismo, globaliza nossas relações em todas as instâncias, nos dando uma experiência que é fragmentada. Eu não conheço hoje em dia o processo total da construção de referências do nosso dia a dia, pois não está aos nossos olhos. Minha identidade é construída a partir de fragmentações. Coisificamos identidades, retirando sua potencialidade como seres sociais múltiplos 1 . Analisando estudos europeus sobre a genética humana, durante o século XVIII, o critério cor de pele foi fundamental para a construção do conceito das raças, que eram classificadas de acordo com a concentração de melanina: branca (menos), amarela (intermediária) e preta (mais). Essa relação física foi integrada a conceitos psicológicos, 1 Seres sociais que tem múltiplas determinações e não estanques a uma função, categoria, identidade.

Upload: phungkhanh

Post on 11-Feb-2019

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

 1 

 

QUILOMBO MULHERES NEGRAS- UMA AÇÃO IDENTITÁRIA

Mirella Santos Maria

Até que os leões tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o

caçador. (Provérbio Africano)

  

Nessa caminhadura escrita, dilato uma intromissão histórico-social da qual faço delas

palavras de força a fim de entender e desconstruir o estrutural colocado a nós como

única história. Que bom que existem outras histórias para serem contadas.

Preta, mulher, periférica. Durante muitos anos, considerei essas palavras sinônimas de

um caso de não pertencimento. Ao tentar entender o que cada uma dessas expressões

me dizia, descubro significados, espaços. Diante de uma série de marcadores sociais, me

percebi múltipla, ainda que o racismo, machismo e as relações sociais de exploração por

muitas vezes atribuíam a mim – como para outras mulheres negras – um lugar social

determinado.

Somos seres sociais que ocultam e revelam identidades, e a partir delas me vejo

construindo culturas. De um modo global da minha inserção, em que os mediadores

marcados pelas condições de classe, raça e gênero me possibilitam ou não a processos

de emancipação política.

Ao observar a dinâmica da nossa sociedade contemporânea, me deparo com uma lógica

que prioriza a produção em detrimento de qualquer tipo de relação humana. Essa lógica

a qual chamamos de capitalismo, globaliza nossas relações em todas as instâncias, nos

dando uma experiência que é fragmentada. Eu não conheço hoje em dia o processo total

da construção de referências do nosso dia a dia, pois não está aos nossos olhos. Minha

identidade é construída a partir de fragmentações. Coisificamos identidades, retirando

sua potencialidade como seres sociais múltiplos1.

Analisando estudos europeus sobre a genética humana, durante o século XVIII, o

critério cor de pele foi fundamental para a construção do conceito das raças, que eram

classificadas de acordo com a concentração de melanina: branca (menos), amarela

(intermediária) e preta (mais). Essa relação física foi integrada a conceitos psicológicos,

                                                            1Seres sociais que tem múltiplas determinações e não estanques a uma função, categoria, identidade. 

 2 

 

                                                           

intelectuais, morais e culturais, promovendo uma hierarquização. A ideia de raças

melhores do que outras são um dos nossos complicadores, pois desenvolveu os estudos

de raciologia2, um tipo de pseudociência que ganhou destaque no início do século XX

(MUNANGA, 2003). Cientificamente, hoje, esses estudos são descartados pois com a

Genética Humana3, percebeu-se que de acordo com a teoria de raças estancas, dois

indivíduos pertencentes à mesma raça podiam ser mais distantes geneticamente do que

os de raças diferentes. Essa necessidade imposta deriva da condição de delimitar

identidades, hierarquizando a humanidade, criando um conteúdo mais doutrinário que

científico, pois seu discurso serviu para justificar e legitimar os sistemas de dominação

racial do que como explicação da variabilidade humana (MUNANGA, 2003).

No nosso contexto brasileiro, os mais de 300 anos de escravidão, os sistemas de

opressão sobre a hierarquia de relações inter-raciais, permitiram que surgisse no País a

ideia de raças atrasadas, o que atrapalhava o desenvolvimento de uma identidade

nacional. O negro e o mestiço foram considerados de raças inferiores que não

permitiriam uma nação brasileira se formarem. A partir da recém República Federativa

o debate em torno de uma construção de um ideal de nação e identidade nacional retoma

e se propaga de tal forma, que doutrinas raciais europeias da época, que denotavam uma

preocupação acentuada com a origem multirracial do povo brasileiro, foram uma base

sólida para intelectuais aqui (SCHWARCZ, 1993).

Para amenizar tal situação, identidades unificadoras (identidade mestiça, que antes era

desconsiderada) são trazidas à tona como um símbolo nacional para legitimar a

chamada democracia racial brasileira.

No caso das mulheres negras, a realidade que vivencio como ser humano, muitas das

múltiplas possibilidades de vir a ser, são projetados como inalcançáveis, justamente por

estereótipos que foram construídos ao longo da formação do Brasil especificamente,

mas também a partir do período em que mediações culturais foram realizadas via

Atlântico, criando deslocamentos cruzados e articulados na população negra,

mercantilizando uma produção cultural além mar, processo o qual conhecido como

Diáspora africana4 .

 2 Estudo das raças humanas. 3 Os estudos são os de frenologia - análise sobre a estrutura do crânio de modo a determinar o carácter da pessoas e a sua capacidade mental. 4Em sua Tese Angela Maria da Silva Gomes (2009) Rotas e diálogo de saberes da etinobotânica transtlântica negro-africana: Terreiros, Quilombos, quintais da grande BH, a autora discorre sobre a diáspora. Esse, seria além de um movimento de dispersão compulsória que desterritorializa/reterritorializa

 3 

 

                                                                                                                                                                             

Socialmente construiu-se um lugar para a mulher, criada para tarefas do lar (ideologia

heteronormativa5) ou como símbolo sexual. Dada essa complexidade de relações, as

formações identitárias6 para as mulheres negras são tolhidas e introjetadas de forma a

ocorrer um processo tácito de aceitação dessa condição, assumindo esses lugares

marcados socialmente constituídos.

A ativista e feminista norte-americana Angela Davis traz no livro Mulher: Raça e Classe

(1969) um panorama para compreensão da dinâmica das mulheres negras no período da

escravidão e no pós-abolição nos EUA, do qual podemos realizar aproximações com o

contexto das mulheres negras no Brasil.

A mulher negra no contexto escravagista realizava tarefas próprias para elas, como

tarefas domésticas, do lar de seus senhores ou trabalhos agrícolas em extensas lavouras.

Não havia distinção de gênero para a realização dos trabalhos pelos escravizados.

Independente de ser mulher, eram trabalhadoras úteis. Poucas vezes conseguiam

usufruir da categoria de gênero para serem escolhidas como escravizadas para tarefas do

lar. A exploração tirava a humanidade de homens e mulheres negras. A resistência para

a população negra norte americana sempre existiu, mas próximo da abolição, as lutas

antiescravagistas ganharam mais força e mulheres negras se destacaram (DAVIS, 1969).

Sojourner Truth é uma referência que trouxe para discussão pautas relacionadas às

mulheres negras. Seu refrão do discurso Ain’tnot a woman (E eu, sou uma mulher)

pronunciado em 1851, na convenção de mulheres em Akron na cidade de Ohio. A

feminista continua na contemporaneidade como uma das maiores propagações do

movimento das mulheres do século XIX.

No contexto brasileiro, nos aproximamos da história estadunidense, mas nossas

mulheres negras aqui tiveram uma vivência diferente, o que trouxe outras

problematizações.

 (por exemplo, através do gueto),a diáspora, abarca mediações culturais produzidas pelos povos africanos. Assim, negros na diáspora africana buscam formas de coesão (quilombos e movimentos antiescravistas), autodefesa e resistência de uma identidade cultural, um sentido (re) territorializadorfrente ao poder hegemônico colonial que, por definição, é desterritorializador, comum em situação de diáspora. 5A heteronormatividade visa regular e normatizar modos de ser e de viver os desejos corporais e a sexualidade. De acordo com o que está socialmente estabelecido para as pessoas, numa perspectiva biologicista e determinista, há duas – e apenas duas – possibilidades de locação das pessoas quanto à anatomia sexual humana, ou seja, feminino/fêmea ou masculino/macho. 6 Relativo a identidade. 

 4 

 

                                                           

No período pós-abolição a mulher negra ficou estanque a um lugar designado a ela.

Inicialmente na luta do Movimento Negro7 as pautas para a mulher deveriam ser em

prol de uma igualdade com o gênero masculino. Com novas discussões e uma maior

participação de fato das mulheres no Movimento, as demandas viriam a ser discutidas e

refletidas pelas próprias.

A emancipação da mulher, tornando-a autônoma em suas ações permitiu mudanças nas

ideologias cristalizadas. A feminista Lélia Gonzalez8 trouxe aqui no Brasil a discussão

sobre espaços para negros e brancos e como são determinados a partir de uma ideologia.

Os espaços demarcados seriam por vezes o que denominados como periferias. Por mais

abrangente que seja, a visão periférica é posta como local precarizado, com pouca ou

nenhuma cultura e violência exposta a todo instante.

Desconstruir estruturalmente a situação de pejoratividade em que se é colocado faz

parte de um processo de autoconhecimento, empoderamento. Diante desse cenário, os

processos de rompimentos com os grilhões que aprisionam corações e mentes se dá, em

geral, em espaços coletivos de pertencimento identitário9. Lugares onde o ser social se

efetiva, superando a condição singular experimentada por cada individuo, mas que na

verdade é vivida e experimentada por muitas pessoas, nesse caso, por muitas mulheres

negras que também tem sua identidade mutilada por esses marcadores identitários. São

os espaços coletivos que podem possibilitar a troca, a reorganização, ressignificação e a

possibilidade de recuperar a condição humana que o racismo, o machismo e o sistema

do capital retira diariamente de nós.

Um dos espaços que está em evidência são os saraus periféricos10. Em São Paulo, a

periferia é localizada afastada das regiões ditas centrais, existindo uma visão de lugar

precarizado, com poucos acessos a questões básicas (saúde, educação, cultura), locais

mais desconsiderados, como bares, galpões, rua, são o enfoque para que a voz se

projete. Nos últimos anos, esse lugar de pertencimento e reconhecimento expandiu-se,

permitindo que vozes possam falar de si.

 7Movimento de uma coletividade, no qual são construídas e descontruídas identidades. O Movimento em discussão é quando esses coletivos ganham maior notoriedade e são conhecidos , como por exemplo o caso do MNU(Movimento Negro Unificado) 8 Feminista brasileira, referência non contexto de construção de novos espaços de discussão sobre a mulher negra, dando destaque a seu trabalho dentro do Movimento Negro nos anos 80. 9 Defender sua identidade. 10Saraus que ocorrem nas regiões periféricas de São Paulo, com potencialidade para o empoderamento de pessoas. 

 5 

 

As mulheres poetas são uma potência nesses lugares. Apesar de ainda ser um espaço

majoritariamente masculino, com poucas mulheres no microfone, temos nossas questões

sendo esbravejadas por pessoas que nos representam.

Propor um espaço de discussão sobre locais de empoderamento para mulheres negras,

entender como um processo da nossa identidade é construída socialmente, entender

espaços de expressões artísticas como marcadores identitários, pluralizar as vozes em

espaços, inclusive os de âmbito acadêmico, foram os impulsos e eixos do Seminário

Quilombo Mulheres Negras.

Para a construção da identidade visuala proposta de circularidade traz como união a

forma de cabaças, fazendo relação desse elemento com o feminino, como é bem

oralizado histórias africanas/afro-brasileiras.

Logo do Seminário Quilombo Mulheres Negras

A construção das mesas de discussão possibilitou uma abrangência no contato com

pessoas envolvidas no movimento dos saraus , sociais e de femismo negro que traziam

como pauta a escrevivência de si, a ocupação de espaços, os símbolos

 6 

 

Divulgação da Semana do Seminário

Os dias ficaram definidos como:

Terça feira: Sarau- Quilombo em maturo: O foco da mesa foi a discussão dos saraus

periféricos como espaços de formação, amadurecimento e resistência. As falas de

Elizandra Souza (poeta, articuladora cultural e jornalista do espaço cultural Ação

Educativa) e Érica Peçanha (pesquisadora sobre saraus) contribuíram nas trocas com

público presente, maioria estudante do próprio Instituto que desconhecia tal

movimentação político-cultural.

Érica contou o processo da contextualização sobre o termo literatura marginal, utilizado

nos anos 70 por diversos escritores cariocas que não eram do circuito mais conhecido e

a partir dos anos 2000 por escritores da periferia. Trouxe também um pouco dos

referenciais do seu doutorado, voltado para o processo de produção, circulação e

distribuição literária na periferia, a partir do sarau da Cooperifa.

Ela contextualiza a origem dos saraus, prática europeia de exposição de trabalhos , a

partir da produção e consumo pelas elites. Em São Paulo, no século XIX, os saraus

eram realizados em espaços elitizados, nos quais os artistas realizavam trocas

intelectuais e artísticas. No século XX, as periferias, especificamente em São Paulo, as

praticas de saraus existiam pontualmente. Todavia, na contemporaneidade, ocorre uma

ressignificação na forma de realização dos saraus, ocorrendo em sua grande maioria a

noite, em espaços gratuitos, como bares, o que não é uma escolha aleatória, devido as

características dos artistas com o espaço, que se encontram, bebem alguma bebida

alcoólica, como entretenimento, conhecem novas pessoas, aproveitam ao máximo o que

o espaço proporciona. Qualquer pessoa que quiser se apresentar é bem vinda. .

 7 

 

Muitos poetas lançam seus livros nos saraus, como parte de divulgação e como uma

distribuição com preço mais acessível para a comunidade o que contribui também para

um maior reconhecimento do artista.

Já a poeta Elizandra Souza amplia a discussão trazendo sua relação direta como sujeito-

poeta dentro dos saraus.

Ela descreve seu inicio nesses espaços, a resistência em estar como uma das poucas

poetas mulheres, criar um fanzine e fazê-lo circular para as pessoas, estudar como

prounista numa faculdade de elite. Todos seus projetos a moviam a continuar seus

objetivos.

Atualmente, Elizandra em parceria com outras mulheres negras criou o coletivo Mjiba

,que desenvolve projetos nas periferias para evidenciar a mulher negra. Pelo edital

VAI11, publicou a antologia Pretextos de Mulheres Negras, com poesias de mulheres

negras do Brasil e de Moçambique.

Durante a realização da mesa, no espaço do primeiro andar os expositores traziam seus

trabalhos, o que movimentou esse espaço praticamente deserto do Instituto.

                                                            11 VAI‐ Valorização de Iniciativas Culturais. 

 8 

 

Quarta feira: A mulher negra na arte: essa mesa foi mediada por Alice Maria,

mestranda no mesmo Instituto. Como palestrantes participaram Dulci Lima,

pesquisadora de literatura e feminismo negro e Vanessa Raquel Lambert, artista

visual e pesquisadora em artes plásticas afro-brasileiras e doutoranda pelo

Instituto de Artes Unesp e na mediação Alice Maria, mestranda em Arte Teatro

pelo mesmo Instituto.

Nesse dia, referências de um contexto sobre a representação e produção de negros nas

artes plásticas ficaram em evidência para percebemos e descontruirmos estereótipos

recorrentes no nosso quotidiano.

Dulci Lima trouxe um pequeno panorama do feminismo negro, da pouca

representatividade de mulheres negras na arte e de possíveis caminhos para

desconstruções.

Já a Vanessa Raquel Lambert Souza evidenciou no contexto da história da arte a mesma

questão de representatividade de mulheres negras , trouxe referências de artistas negras

que trazem suas questões em suas obras.

 9 

 

Já no corredor do Instituto ocorria a performance “Qual é o pente?” realizada pela

artista visual Juliana dos Santos.

Com um pente de ferro, recorrente na memória de algumas mulheres negras, ao lembrar

da sua utilização por mães, avós, tias, entre outras e tantas mulheres, que queimavam

seus cabelos com esse modelo de chapinha, na qual o ferro é aquecido no fogão e

aplicado nos cabelos, de forma a alisa-los .

Após o alisamento, Juliana demonstrava maneiras de “ajeitar” o cabelo, para que ficasse

“bonito”, como comumente escutamos no dia a dia, em que cabelo arrumada é um

cabelo alinhado, liso, sem armação.

 10 

 

Sem resultados confortáveis, a artista mergulha os cabelos em uma bacia de chá de

carqueja, pois quando mais nova, sua avó realizava esse banho em seus cabelos afim de

que crescesse mais rápido. Ao molhá-los, os cabelos retornam a forma crespa. Nesse

performance, Juliana traz a tona a discussão da ditadura do cabelo liso e suas

consequências. Além disso, evidencia-se o direito de escolha da pessoa em ter o cabelo

que bem preferir, mas sempre tendo a consciência de que cabelo crespo não é ruim.

Quinta feira: Negritude e Literatura: discutia-se, pensando na perspectiva de saraus e

sua relação com a literatura, onde está presente a negritude.

Mesa mediada por Giselle dos Santos, mestra pela UFBA que tem uma pesquisa sobre

mulheres negras cubanas.

Contribuindo na discussão, participaram Cintia Ribeiro, produtora do Museu Afro

Brasil e Marcio Farias, auxiliar de acessibilidade da mesma Instituição e co-

coordenador do Núcleo de Estudos Afro Americanos (Nepafro)

Ter na mesa um homem para uma discussão de mulheres negras foi um desafio

cauteloso, pois desde o início, quando surgiu o recorte de gênero, a proposta era o

empoderamento das mulheres negras. Marcio trouxe sob a perspectiva de um homem

negro, sem tirar o protagonismo das mulheres negras e sendo parceiro na discussão,

contribuindo a partir da experiência dele como homem negro.

O conceito negritude é discutido como categoria identitária e essa construção promove

consciência de si e nos permite ter também autonomia.  

 11 

 

O autor Richard White é trazido como referência a partir do livro Filho Nativo (1940),

no qual o debate raça é evidenciado.

O sofrimento do homem negro é evidenciado, em detrimento do sofrimento da mulher

negra. Essa discussão perpassa pela estética (corrente naturalista) explicitando uma

verdade mas não faz as verdadeiras mediações.

No trabalho da autora Toni Morrison, existe além de uma qualidade estética uma

superação das mediações as quais não se encontram no trabalho de Richard White, por

ela evidenciar as questões que perpassam para as mulheres negras. Um livro em que se

observa essa superação é o Jazz (1992).

Já Cintia trouxe a dimensão estética da literatura negra e como as questões de negritude

estão, começando sua fala com a pergunta: a conversa pode ser de verdade ou de

isopor?

Falar de uma literatura que representa mais de cinquenta por cento da população

brasileira não é uma tarefa fácil. Falar de um eixo fundamental para essa literatura que é

a oralidade, vinda das raízes africanas é de suma importância. É uma grande ferramenta

de comunicação, que possui cor, forma, textura. A arte também tem cor. Isso é visível

numa galeria, num museu.

Com essa fala, a palestrante faz uma provocação ao público, perguntando se alguém já

tinha pensado na sua própria cor no nosso contexto de sociedade brasileira.

O que ser uma mulher negra entrando numa loja de perfumes importados? O que é ser uma mulher branca entrando numa loja de perfumes importados? “O que é ser uma mulher negra tratada como princesa numa narrativa? O que é ser uma mulher branca tratada como princesa numa narrativa? Bem, é o normal. A gente espera que a princesa seja branca, que ela tenha uma coroa, que ela seja loira, que ela tenha traços europeus, que ela venha com uma historicidade que não representa mais de cinquenta por cento dessa população.

 12 

 

Em espaços da periferia paulistana a discussão é latente, construindo uma estética

própria, porque é nesse lugar em que a maioria da população negra reside e que magens

cristalizadas como essas constituem os estereótipos que estruturam nossa sociedade.

A literatura, tendo cor, no sentido de trazer na escrita um posicionamento político em

relação a questões etnicorraciais, é um dos espaços em que identidades são construídas e

descontruídas.Com o mito da democracia racial, o qual sua desconstrução perpassa por

esses pontos intrínsecos de opressão, silenciamento, é mais do que importante trazer

esses apontamentos.

Sexta feira: Poesi-ar meu quotidiano

Uma mesa viva e latente de 2 poetas, com trajetórias que se entrecruzam, ao falar de que

mulheres negras são elas e seu fortalecimento pelos saraus, nas escritas, na mesa de

discussão. Essa mesa, mediada por Giselle dos Santos teve como grandes participações

as poetas Tula Pilar e Jenyffer Nascimento.

Tula falou de sua trajetória que hoje é intrínseca a poesia, música, dança. A fala da

poetisa, escritora Tula Pilar fala do seu medo de se identificar dessa forma. Ela percebeu

que sua escrita também a colocava como escritora. Sua vida era a de empregada

doméstica, passadeira de lavanderia e ela enfatiza que a cor da pele foi uma questão que

a atinga e preferiu não citar Ela aproxima suas vivências as da escritora Carolina Maria

de Jesus12.

                                                            12Escritora brasileira, de escrita forte e importante, pouco reconhecida na literatura brasileira. Seu livro mais conhecido é a obra “Quarto de despejo”. 

 13 

 

Os saraus estão em alta, trazendo muitas referências de vozes e Tula fala das poesias da

periferia como locais em que uma realidade é exacerbada, diferente das poesias que ela

considera como “elitizadas”.

Ela também enfatizou a diferença de tratamento quando ela declamava suas escritas,

como ela era mais valorizada depois que falava alguma poesia.

Um dia fui a um lugar chique, e já levei a revistinha pra vender né... ai as pessoas já ficaram ah, é a revistinha de moradora de rua... ah, mas ela é moradora de rua.. e ficou muito tempo esse titulo.. ah, moradora de rua, e as pessoas tinham aquela ojeriza, aquele nojo e tal... ai depois que eu declamava mudava todo o esquema... ah, você escreve, que estudo você tem??

As suas percepções são latentes e quebram com qualquer estereótipo que provavelmente

já a julgariam, por ser mulher negra. Sua performance denominada “Carolina”

evidencia toda essa força, trazendo seu espaço e seu protagonismo.

Já a fala da Jenyffer Nascimento, poeta da zona sul, frequentadora de saraus desde 2007

(principalmente Sarau da Cooperifa, Sarau do Binho e Sarau da Fundão. Seu contato

com saraus a arrebatou, pela força de se ter muitas pessoas escutando vozes

empoderadas. No seu trabalho, ela incorporou a literatura periférica no seu trabalho.

Mas ainda ela não escrevia de dentro de si para fora.

 14 

 

Pelo viés do quotidiano, Jenyffer se sentiu próxima e confortável para começar a

escrever.

No Sarau do Binho, que tem um aspecto mais aberto, Jenyffer maia a vontade para

declaar seus textos. È um sarau em que se pode declamar, cantar, dançar. A partir de um

chamado de novas poesias, Jenyffer começou a levar suas escritas.

O aplauso para ela sempre foi bonito, pois a incentivava a continuar. Por mais que

viessem desconfianças sobre sua autoria nos textos, ela se fortalecia para ter sua voz,

seu espaço.

Sábado: Sarau Quilombo Mulheres Negras

O último dia do seminário propôs realizar um sarau, no qual, o espaço estava aberto

para quem quisesse levar alguma poesia, alguma música, alguma voz. Tivemos no dia a

participação da Camila Brasil e do grupo de rap Odisséia das Flores.

Camila Brasil é cantora, frequentadora principalmente do Sarau do Binho. Ela trouxe

um pocket show com algumas músicas que ela costuma cantar nos saraus.

 15 

 

Novamente enfatizo, Camila é uma cantora branca, que teve sua importância nesse

espaço, de estar na luta, em parceria, sem tirar a voz das mulheres negras e seu espaço

de fala.

Após a apresentação da Camila, o grupo Odisséia das Flores se apresentou, fechando o

seminário de forma potente, trazendo vozes de mulheres negras em evidência.

As cantoras, moradoras da região de Franco da Rocha, representaram no espaço do

Instituto de Artes o que praticamente nunca acontece naquele lugar.

 16 

 

Todo o processo de construção do Quilombo Mulheres Negras possibilitou ampliar

discussões praticamente inexistentes no ambiente acadêmico do Instituto de Artes.

Stuart Hall, no livro Da Diáspora, evidencia esse movimento da cultura das margens

estar em evidência em um trecho no capítulo Que negro é esse na cultura popular negra:

Dentro da cultura, as margens, embora continuem periféricas, nunca foram um espaço tão produtivo como o são hoje, o que não se dá simplesmente pela abertura dentro da dominantes dos espaços que podem ser ocupados pelos de fora. É também o resultado de políticas culturais da diferença, de lutas em torno da diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos na cena política e cultural. Isso é válido não somente a raça, mas também diz respeito a outras etnicidades marginalizadas, assim como entorno do feminismo e das políticas sexuais no movimento de gays e lésbicas, que é resultado de um novo tipo de políticas culturais (HALL, 2010, p. 150).

A discussão desde o início foi conflitante. O Quilombo Mulheres Negras de. Falar sobre

a periferia, sobre gênero e raça é pouco realizada na Universidade. Por quê?

Temos uma estrutura politica, social, cultural do que se é proposto na Universidade, que

converge com uma influência fora das vivências de mais de cinquenta por cento da

população brasileira. Influências europeias, norte americanas.

A urgência de discussões que tragam o sujeito para a história e que ele tenha voz para

apresentá-las é latente e antes, durante e depois do Seminário, ficou visível que há muito

o que se refletir e colocar em prática.

Nos saraus os caminhos pelos quais as poetas negras perpassam vão desde histórias de

suas infâncias, os primeiros contatos com o racismo à brasileira, os envolvimentos

afetivos mal resolvidos, a relação com o cabelo crespo e a ditadura do cabelo liso.

Esses acontecimentos permeiam o quotidiano, valorizando “o conhecimento, enquanto

expressão de cultura de um povo, com suas complexas redes de relações e de valores”

(COUTINHO, 2006, p. 39).

 17 

 

Com esse conhecimento, as práticas dentro dos saraus tornam-se constantes, permitindo

um empoderamento contínuo, consciente de suas ações ao por exemplo, uma mulher

negra declamar uma poesia sobre a experiência de conhecer seu próprio cabelo, antes

inferiorizado. A ação, na prática promove um entendimento das complexidades que a

nossa estrutura social coloca (mulher, negra, pobre).

Como Paulo Freire no livro Pedagogia do Oprimido (1987) descreve, [...] se o momento

já é o da ação, esta se fará autêntica práxis se o saber dela resultante se faz objeto da

reflexão crítica. Nesse sentido, é que a práxis constituía razão nova da consciência

oprimida [...] (p. 29).

Um espaço no qual a arte é praticada através de múltiplas linguagens, que dialogam

com o quotidiano dos praticantes e os permite ter consciência como seres sociais,

capazes de refletir e discutir sobre o poder de si mesmo e de sua presença no mundo.

Um lugar de pertencimento e empoderamento de mulheres negras através da poesia, da

música, do debate que se fortalece e pode compartilhar com outras pessoas suas

experiências.

Os saraus realizados nas periferias de São Paulo exercem uma referência política de

mobilizar suas comunidades, causar crescentes rugosidades no espaço através de uma

proposta que além de cultural, é educacional, no sentido de ser um lugar de

aprendizado, fora do ensino tradicional , seja escolar, seja por instituições culturais, que

promove interações práticas, agregando ao conhecimento dos frequentadores, tirando do

lugar comum discussões que variam de simples à complexas. A práxis, com cita Paulo

Freire: “é a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (1987, p.

21).

Isso demonstra como as questões étnico raciais, de gênero e de classe não podem ser

ofuscadas, visto que no Instituto há alunos que são negros, indígenas, pobres, mulheres.

Para quem tem voz, seja a forma como for, tem o direito de falar. Somos indivíduos

num coletivo. As nossas especificidades não dão espaço. Pois lutemos então, afim de

descontruirmos os estereótipos negativos e de fato ocuparmos espaços, voz, movimento,

tomando o cuidado de não ficarmos na essência, apenas no cultural estanque. Trazer

também as dimensões sociais e políticas, de forma dinâmica. Ou ficaremos no lugar de

natural, como Hall descreve:

“O momento essencializante é vulnerável porque naturaliza retira da história a

diferença, confunde o que é histórico e cultural com o que é natural, biológico e

 18 

 

genético” (2010, p. 156). Engessar o conceito mulher negra é não permitir que seja

dinâmico e traga essas questões para o embate nos espaços dos saraus.

O ser enquanto múltiplo estando no sarau e se empoderando é uma possibilidade de ter

seu espaço de voz.

Ao descontruir os simples olhares desconfiados algumas percepções foram modificadas,

as quais serão aprofundadas e vivenciadas, nos próximos caminhos. Aqui, temos

somente um arremate provisório.

Ao continuar a caminhada, uma poética fica mais latente, abrindo para discussão suas

questões políticas, sociais, culturais, educacionais dentro de espaços aos quais a

conversa ainda não estava no ponto.....por mais vírgulas que tenham nessas linhas....... --

-Arremate----------

Bibliografia

BERND, Zila. O que é Negritude? São Paulo, Editora Brasiliense. 1988.

CANDIDO, Antonio. Direito à Literatura. São Paulo, Editora Duas Cidades/Ouro sobre

o azul, 1969.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A situação da mulher negra na

América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA,

Empreendedores Sociais e Takano Cidadania (org.). Racismos Contemporâneos. Rio

de Janeiro: Takano Ed., 2003.

DAVIS, Angela. Women: race and class. USA. Random House. 1983.

FANON, Frantz. Os condenados da Terra. UFJF. Salvador, 2006.

GONZALEZ, Lélia. Lugar de negro. Rio de Janeiro, Editora Marco Zero, 1982.

______. Mulher Negra. Mulherio, São Paulo, ano 1, n. 3, 1981.

 19 

 

______. Racismo e sexismo na cultura brasileira. São Paulo, ANPOCS, pp. 223-

244.1983.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG.

Editora UFMG. 2003.

LIMA, Dulcilei da Conceição. Desvendando Luíza Mahin: um mito libertário no

cerne do feminismo negro. Mestrado, Faculdade de Letras, Universidade

Presbiteriana Mackenzie, 2012.

MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo, Coleção Fundamentos.

Editora Ática. 1988.

______. Quilombos: resistência ao escravismo. São Paulo, SP. Editora Ática.1987.

MUNANGA, Kabenguele. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. Scielo,

São Paulo:[s.i], edição 50, 2004. Disponivel em:

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142004000100005&script=sci_arttext>

acesso em 18 de janeiro de 2015

______. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus

identidade negra. Petropolis, Rj: Vozes, 1999.

______. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e

etnia. In: BRANDÃO, André Augusto P. Programa de Educação sobre o Negro na

Sociedade Brasileira. Cadernos PENESB n.5. Niterói: EDUFF, 2003.p.15-34.

PEÇANHA, Erica. Literatura Marginal: os escritores da periferia entram em cena.

/Erica Peçanha. Disponível

em:<http://www.edicoestoro.net/attachments/057_LITERATURA%20MARGINAL%2

0%20OS%20ESCRITORES%20DA%20PERIFERIA%20ENTRAM%20EM%20CEN

A.pdf>. Acesso 22/Nov.2014.

 20 

 

RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Eu sou Atlântida: sobre a trajetória de Beatriz do

Nascimento. São Paulo, SP. Imprensa Oficial e Instituto Kwanza. 2006.

RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. Selo Negro. 2010.

______. Os lugares da gente negra: temas geográficos no pensamento de Beatriz

Nascimento e Lélia Gonzalez. In: SANTOS, Renato Emerson dos(org). QUESTÕES

URBANAS E RACISMO.1ed. Petrópolis: ABPN,2012. 400 p.p 216-243.

REYES, Alejandro. Vozes dos Porões. São Paulo, Editora Aeroplano. 2011.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e

questões raciais no Brasil-1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras,1993.

 21 

 

Se você está construindo uma casa e um prego quebra, você

deixa de construir, ou você muda o prego?(Provérbio Africano)