imaginação dialógica e narrativa na construção identitária

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1 MARIA TERESA AZEVEDO MACHADO BARANDELA IMAGINAÇÃO DIALÓGICA E NARRATIVA NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: DESENVOLVIMENTO DE IDEAIS VOCACIONAIS E MORAIS NA ADOLESCÊNCIA. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Faculdade de Psicologia Lisboa 2012 Dissertação apresentada para a obtenção do Grau de Mestre em Psicologia no Curso de Mestrado em Psicologia da Educação conferido pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Orientador: Prof. Doutor James Day Co-Orientador: Prof. Doutor Paulo Jesus

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Dissertação Mestrado Psicologia da Educação

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    MARIA TERESA AZEVEDO MACHADO BARANDELA

    IMAGINAO DIALGICA E NARRATIVA NA CONSTRUO IDENTITRIA: DESENVOLVIMENTO

    DE IDEAIS VOCACIONAIS E MORAIS NA ADOLESCNCIA.

    Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias Faculdade de Psicologia

    Lisboa 2012

    Dissertao apresentada para a obteno do Grau de Mestre em Psicologia no Curso de Mestrado em Psicologia da Educao conferido pela Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias Orientador: Prof. Doutor James Day Co-Orientador: Prof. Doutor Paulo Jesus

  • 2

    Saudade Saudade - O que ser... no sei... procurei sab-lo em dicionrios antigos e poeirentos e noutros livros onde no achei o sentido desta doce palavra de perfis ambguos. Dizem que azuis so as montanhas como ela, que nela se obscurecem os amores longnquos, e um bom e nobre amigo meu (e das estrelas) a nomeia num tremor de cabelos e mos. Hoje em Ea de Queiroz sem cuidar a descubro, seu segredo se evade, sua doura me obceca como uma mariposa de estranho e fino corpo sempre longe - to longe! - de minhas redes tranquilas. Saudade... Oia, vizinho, sabe o significado desta palavra branca que se evade como um peixe? No... e me treme na boca seu tremor delicado... Saudade... Pablo Neruda, in "Crepusculrio"

    Dra. Fanny

  • 3

    Agradecimentos

    A escrita de uma dissertao ocorre tambm pela presena de audincias,

    umas reais e outras imaginadas, umas vezes presentes e noutras mais distantes

    Agradeo a todas as vozes que me acompanharam ao longo deste processo,

    em particular s da minha famlia, na voz do meu pai que me ensinou a importncia do

    trabalho, da minha me que me imprimiu o valor do altrusmo e do meu filho que me

    projecta para o futuro.

    Agradeo aos primos Lurdes e Dimitri, pela partilha constante, pela presena

    nos momentos mais difceis, por estarem l.

    Elisabete, em cuja voz esteve sempre a amizade e a cumplicidade.

    Ao professor James Day por ter trazido a inspirao fundamental a este

    trabalho, mantendo-se como audincia interna privilegiada durante a sua construo.

    Agradeo a sua generosidade e toda a sua disponibilidade.

    Ao Professor Paulo Jesus pela orientao, apoio e encorajamento, por lanar

    continuamente novos desafios, novas interrogaes, por me ter proporcionado um

    belo percurso de aprendizagem.

    E finalmente, um especial agradecimento aos dez jovens que emprestaram a

    sua voz para esta investigao e dessa forma permitiram aceder construo

    subjectiva do seu self moral e vocacional.

  • 4

    Imaginao Dialgica e Narrativa na Construo Identitria: Desenvolvimento de Ideais Vocacionais e Morais na Adolescncia.

    Resumo

    Concebendo a identidade como um processo fludo e dinmico, assente

    num sentido de autoria e construdo ao longo do tempo, e reconhecendo a

    importncia de se realizarem novas abordagens compreensivas ao modo

    como se d a construo de si no domnio do desenvolvimento vocacional,

    a presente investigao visa analisar a interaco entre o desenvolvimento

    vocacional e moral na adolescncia e averiguar a centralidade de tal

    interaco no processo de construo identitria numa amostra de

    adolescentes do Ensino Secundrio. Pretende-se estudar os processos

    subjectivos da reconstruo da tomada de deciso vocacional, bem como

    dos processos subjectivos da construo do self moral e da inter-relao

    entre Eu-Vocacional e Eu-moral. Com este fim, foi adoptada uma

    metodologia predominantemente qualitativa e narrativa, com um enfoque

    dialgico. Procedeu-se realizao de entrevistas individuais e

    apresentao posterior de quatro estudos de caso. Os resultados obtidos

    permitiram discernir entre diferentes padres narrativos, que conjugam

    diversos tipos de posicionamento subjectivo no desenvolvimento de ideais

    vocacionais e morais e da respectiva relao com as audincias

    vocacionais e morais.

    Keywords: Identidade, narrativa, dialogismo, adolescncia

  • 5

    Dialogical imagination and narrative in identity construction:

    development of vocational and moral ideals in adolescence

    ABSTRACT

    Conceiving identity as a fluid and dynamic process, based on a sense of

    authorship and built over time, and recognizing the importance of

    conducting comprehensive new approaches to how self-construction takes

    place on the field of vocational development, this research aims to analyze

    the interaction between the vocational and moral development in

    adolescence and to determine the centrality of such interaction in the

    process of identity construction in a sample of adolescents in secondary

    education. It is intended to study the processes of reconstruction of

    subjective vocational decision-making, as well as the subjective process of

    building the moral self and its relationship with the vocational self. To this

    end, we have adopted a predominantly qualitative and narrative

    methodology, with a dialogical approach. We have carried out in-depth

    interviews and decided to present a set of four paradigmatic case studies.

    The results allow us to discriminate between different narrative patterns,

    which combine several types of subjective positioning in the development

    of vocational and moral ideals and their relationship with the vocational

    audience and the moral audience.

    Keywords: Identity, narrative, dialogism, adolescence

  • 6

    NDICE

    INTRODUO .............................................................................................................. 8

    CAPTULO I - IDENTIDADE NARRATIVA E DIALGICA........................................... 11

    1.1.O desenvolvimento narrativo na adolescncia ............................................. 12

    CAPTULO II - A IMAGINAO DIALGICA NA CONSTRUO VOCACIONAL...... 19

    2.1. Life-designing: o paradigma da construo da vida .................................... 20

    2.2. O Self Dialgico na construo vocacional ................................................. 23

    CAPTULO III DESENVOLVIMENTO MORAL: DILOGO INTERNO E AUDINCIA MORAL ....................................................................................................................... 26

    3.1 A abordagem dialgica da experincia moral ............................................... 27

    CAPTULO IV - ESTUDO EMPRICO ......................................................................... 30

    4.1. Metodologia ................................................................................................ 31

    4.1.1. Objectivos e questes de partida ............................................. 31

    4.1.2. Participantes ............................................................................ 32

    4.1.3. Procedimentos de recolha de dados ........................................ 32

    4.1.3.1. Instrumento ..................................................................... 32

    4.1.3.2. Procedimentos ................................................................ 33

    4.2. Apresentao, anlise e discusso dos resultados ..................................... 35

    4.2.1. Estudo de Caso 1: SM3 .............................................................. 35

    4.2.2. Estudo de Caso 2: SF6 .............................................................. 41

    4.2.3. Estudo de caso 3: SM5 .............................................................. 46

    4.2.4. Estudo de caso 4: SF1 ............................................................... 53

    4.3. Discusso e sntese comparativa ................................................................ 58

    Concluso ................................................................................................................... 61

    Bibliografia .................................................................................................................. 63

    Anexos Anexo I..I Anexo II.II Anexo III....III Anexo IVIV

  • 7

    Anexo V.V Anexo VI....VI Anexo VII...VII Anexo VIII.....VIII Anexo IX.IX Anexo X.....X Anexo XI....XI Anexo XII...XII

  • 8

    INTRODUO

    Ao longo do primeiro ano deste curso de mestrado, a abordagem psicologia

    narrativa despertou o interesse pela investigao das teorias e modelos a ela

    associadas. Foi desta forma que o estudo do desenvolvimento da identidade narrativa

    na adolescncia se tornou a fonte de inspirao fundamental e estruturadora desta

    investigao.

    Partimos do pressuposto de que a construo de significados narrativos

    constitui um dos processos elementares na construo identitria (McLean, Pasupathi

    & Pals, 2007; McLean et al., 2009), e de que essa construo se d quando o sujeito

    reflecte sobre os acontecimentos do passado e antecipa trajectrias existenciais

    futuras, criando uma histria de vida e consequentemente, uma identidade narrativa

    (McAdams et al., 2006; McLean et al., 2007).

    Em simultneo, temos em apreo que um nmero crescente de tericos e

    investigadores tm vindo a conceber a identidade como um processo fluido e

    dinmico, construdo ao longo do tempo e assente num sentido de autoria. Deste

    processo resulta um conjunto complexo de estados do self que so integrados numa

    identidade narrativa. Este carcter plural da identidade assumida pela Teoria do Self

    Dialgico (Hermans & Kempen, 1993; Hermans, 2001; Hermans & Hermans-Konopka,

    2010), em cujo quadro terico o self surge como um processo constante de

    posicionamento e reposicionamento do Eu, no qual mltiplas vozes psico-ideolgicas

    ou posies identitrias do Eu (I-positions) se cruzam e dialogam.

    Estas construes identitrias dependem da aco dos contextos

    socioculturais, pois atravs desta interaco que se d a integrao dos recursos

    semiticos, que por sua vez se manifestam em produo de discurso, em tomada de

    deciso e, finalmente, em momentos de aco. George H. Mead (1910) foi um dos

    autores fundamentais na assumpo terica da importncia da socializao na

    construo da identidade: the counsciousness of self depends primarily upon social

    relations. The self arises in consciousness pari passu with the recognition and

    definition of other selves (1910: 6). Este autor parte dos pressupostos de que a

    linguagem precede o pensamento, implicando, deste modo, interaco social e que,

    por consequncia, a relao com o outro precede a relao consigo mesmo. Nesta

    perspectiva, a intersubjectividade, mediada pela linguagem, precede a subjectividade,

    ou seja, a conscincia de si e a conscincia em relao aos objectos. Considera-se,

  • 9

    neste ponto de vista, que no processo de construo da identidade a dimenso

    relacional se assume como mais relevante do que a dimenso cognitiva.

    So estes contedos que, ao tornarem-se recorrentes, se convertem em

    esquemas auto-interpretativos, padres auto-narrativos ou estilos de auto-descrio

    singulares a cada indivduo, estendendo-se ao longo do seu ciclo vital (Baddeley, &

    Singer, 2007; Jesus, 2010).

    Daqui surge a possibilidade de se estudarem os processos subjectivos da

    reconstruo da tomada de deciso vocacional, bem como dos processo subjectivos

    da construo do self moral e da inter-relao entre Eu-Vocacional e Eu-Moral

    (Ferreira, Barandela, Jesus, 2010).

    O desenvolvimento vocacional totalmente conseguido, apenas quando,

    inserido no processo global da formao da identidade. Conhecer o significado

    psicolgico e psicossociolgico do processo de construo vocacional, no s

    compreender como se desenvolve o indivduo, mas essencialmente como se d o

    processo de construo de si.

    No domnio da psicologia vocacional, assiste-se ao desenvolvimento de um

    novo paradigma: o paradigma holstico da construo de si ou life-designing (Savickas

    et al., 2009). Este novo modelo posiciona-se sobre a questo de compreender, em

    primeiro lugar, como o indivduo constri a sua vida, procurando identificar quais os

    processos e os factores da construo de si. Por consequncia, torna-se necessria a

    reconstruo ao nvel da interveno, abraando-se o desafio de, no abandonando

    os velhos conceitos, neles inserir novos contedos.

    neste sentido que surge a importncia de se abordar a identidade moral e a

    sua relao com a identidade vocacional, mais concretamente, procurar desenvolver

    um modelo de compreenso da tomada de deciso vocacional que inclua a

    experincia moral do sujeito. Trata-se de abandonar a abordagem cognitivo-

    desenvolvimentista do desenvolvimento tico-moral protagonizada por Lawrence

    Kohlberg (1981) e introduzir um modelo complementar, de enfoque narrativo e

    dialgico, que se alicera na experincia moral do sujeito (Day & Tappan, 1996; Day &

    Jesus, in press).

    Munidos das abordagens tericas referidas e partindo do pressuposto de que

    podemos encontrar uma relao entre a construo de uma histria/identidade moral e

    a construo da histria/identidade vocacional, no sentido do desenvolvimento de uma

    identidade narrativa na adolescncia, coloca-se como objectivo central deste estudo

    desenvolver um modelo de compreenso da tomada de deciso vocacional que inclua

    a experincia moral do adolescente.

  • 10

    Com vista prossecuo deste objectivo geral, definiram-se os seguintes

    objectivos especficos: a) identificar os estilos narrativos tpicos e as ideologias

    pessoais dominantes de adolescentes aps a tomada de deciso vocacional de

    escolha de um percurso formativo no momento da concluso do ensino bsico

    obrigatrio; b) relacionar as ideologias pessoais e a reconstruo subjectiva da tomada

    de deciso vocacional; c) identificar a presena ou ausncia de uma dimenso moral

    no processo de tomada de deciso vocacional, nomeadamente, contrastando a

    audincia moral com a audincia vocacional.

    O estudo emprico assumiu uma metodologia narrativa, com a utilizao da

    entrevista narrativa como meio para aceder aos processos subjectivos de construo

    de significados. Os sujeitos foram entrevistados, seguindo-se uma verso adaptada da

    Life Story Interview, desenvolvida originalmente por D. P. McAdams (1996) Guio

    de Entrevista Narrativa: Verso para Adolescentes. O procedimento bsico comum a

    todos os sujeitos consistiu na entrevista individual, com respectiva gravao udio

    integral e subsequente transcrio completa, recorrendo-se metodologia de anlise

    estrutural.

    Em sntese, estruturamos este trabalho nos seguintes captulos: o primeiro

    captulo que funciona como base comum e transversal a toda a investigao, e onde

    se apresentam as abordagens tericas e empricas ao desenvolvimento narrativo da

    identidade na adolescncia, em geral, e da Teoria do Self Dialgico, em particular.

    No segundo captulo, apresentamos o novo paradigma da construo da vida

    ou life-designing model, centrando a nossa ateno nos modelos de desenvolvimento

    vocacional e na importncia de se orientar a investigao para o conhecimento e

    entendimento de quais os factores e processos se encontram presentes na construo

    de si. Estabelece-se ainda, neste captulo, de que forma a Teoria do Self Dialgico

    pode contribuir para uma melhor compreenso de como os sujeitos constroem

    significados para as suas escolhas vocacionais.

    O terceiro captulo dedica-se ao estudo da perspectiva sociocognitiva e

    dialgica do desenvolvimento moral, destacando-se o papel, no s da narrativa, mas

    tambm da sua teatralizao, introduzindo o conceito de audincia moral.

    Finalmente, o quarto captulo diz respeito ao estudo emprico e centra-se em

    quatro estudos aprofundados de caso.

  • 11

    Identidade

    Preciso ser um outro

    para ser eu mesmo

    Sou gro de rocha

    Sou o vento que a desgasta

    Sou polm sem insecto

    Sou areia sustentando

    o sexo das rvores

    Existo onde me desconheo

    aguardando pelo meu passado

    ansiando a esperana do futuro

    No mundo que combato morro

    no mundo porque luto naso

    Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas

    CAPTULO I - IDENTIDADE NARRATIVA E DIALGICA

  • 12

    1.1. O desenvolvimento narrativo na adolescncia

    A construo de significados narrativos um dos processos fundamentais na

    construo identitria (McLean, Pasupathi & Pals, 2007; McLean & Bean, 2009).

    Reflectir sobre os acontecimentos do passado e falar sobre eles com os outros, so

    aces fundamentais atravs das quais os indivduos edificam a sua histria de vida e,

    em consequncia, uma identidade narrativa (McAdams et al., 2006; McLean et al,

    2007).

    McLean e Breen (2009) estudaram as narrativas de adolescentes entre os 14

    e os 18 anos de idade, relativamente aos processos e contedos do desenvolvimento

    da identidade narrativa, examinando diferenas de gnero e idade nos padres das

    memrias associadas aos pontos de viragem (McAdams, 2005) e nas diferenas de

    gnero associadas partilha dessas memrias, assim como as relaes entre os

    padres narrativos e a auto-estima. Os padres narrativos em foco diziam respeito

    construo de sentido e tom emocional das narrativas, especificados como tom

    positivo ou sequncia redentora (McAdams, 2005). Os resultados mostraram uma

    relao entre a idade e o acrscimo de complexidade no processo de construo de

    sentido, mas sem diferena de gnero.

    A construo de uma narrativa implica a representao de pormenores

    relativos a acontecimentos passados, o que permite a abertura de um caminho para a

    avaliao e interpretao desse passado (Fivush, 2001).

    A nossa hiptese terica de fundo a de que os processos de construo de

    significado na narrativa so os mecanismos atravs dos quais a identidade se constri.

    A construo de significado diz respeito capacidade de um sujeito para aprender

    algo sobre si prprio, a partir das reflexes que faz sobre o passado (McLean & Pratt,

    2006). A construo de significado pode ser observada nas memrias narrativas dos

    pontos de viragem (McAdams, 2005), focando o interesse de anlise na mudana

    ocorrida no sujeito ao longo do tempo. Isto , consideramos que essas narrativas

    produzem o contexto ideal para a anlise do modo como os jovens criam sentido para

    o seu self actual mediante a (re)interpretao do seu passado.

    1.1.1. Identidade de Gnero e Construo de Significado

    Numa perspectiva desenvolvimental, tanto o gnero como a identidade

    devem ser vistos como conceitos em mutao e complexificao permanente, cujo

    sentido se altera em funo de tarefas desenvolvimentais especficas que os sujeitos

    devem enfrentar em determinado momento, assim como em funo dos contextos e

  • 13

    dos aspectos particulares do gnero e da identidade que so privilegiados, em

    detrimento de outros (Fivush & Buckner, 2003).

    Em alguns contextos desenvolvimentais e situacionais, o gnero estar em

    primeiro plano e as diferenas entre rapazes e raparigas surgem maximizadas; ao

    passo que, noutros contextos, o gnero estar em segundo plano, e as diferenas

    entre rapazes e raparigas deixam de se manifestar, destacando-se outras dimenses

    diferenciadoras de cariz predominantemente ecolgico e scio-cultural (dos micro- aos

    macro-sistemas que formam a ecologia de desenvolvimento do sujeito).

    Buckner (2001, in Fivush & Buckner, 2003) estudou um grupo de

    adolescentes de uma escola particular, tendo verificado que quer os rapazes quer as

    raparigas se encontravam focados em questes profissionais e de carreira, quando

    questionados sobre a sua identidade. Concluiu-se que as suas narrativas remetiam

    para questes de sucesso acadmico e de objectivos profissionais, pelo que para esta

    populao, neste momento desenvolvimental, a influncia do gnero parece estar

    relegada para um segundo plano. Desta forma, as implicaes desta argumentao

    so que no podemos considerar o gnero como varivel categorial, por si, mas antes

    uma varivel contextual, isto , se e como o gnero ir sobressair numa narrativa

    autobiogrfica, ir depender dos aspectos da identidade que so mais salientes

    naquele momento particular (Fivush & Buckner, 2003).

    Nesta mesma linha, o gnero destaca-se de modos distintos, em diferentes

    contextos, para o mesmo indivduo, ou seja, vai depender de quem conta a histria de

    vida e de quem a ouve. Assim, uma das razes para que existam diferenas de

    gnero na narrao de histrias diz respeito ao motivo que est subjacente ao acto

    contextualizado de contar a histria (McLean, 2005; Pasupathi, 2006; Pasupathi &

    Hoyt, 2009). Os estudos sugerem que rapazes e raparigas percebem as suas

    experincias de formas diferentes, com as raparigas a enfatizar os aspectos sociais e

    relacionais do contexto, salientando assim as suas relaes interpessoais, enquanto

    os rapazes se vm a si mesmos e s suas experincias com mais distncia e

    independncia dos outros (Fivush & Buckner, 2003; Fivush et al., 2006; Fivush et al.,

    2010).

    1.1.2 Idade e Construo de Significado

    O desenvolvimento da capacidade de construo de sentido surge na

    adolescncia por duas razes fundamentais: a emergncia das tarefas de construo

    da identidade e a emergncia de novas competncias cognitivas, que vm facilitar a

    realizao dessas tarefas (Habermas & de Silveira, 2008; Habermas, & Bluck, 2000).

  • 14

    De facto, o desenvolvimento da identidade uma das principais tarefas neste perodo

    de vida, pois os jovens so impulsionados por factores psicolgicos e sociais para

    explorarem, circunscreverem e definirem as suas possibilidades identitrias. Esta

    tarefa tem uma base cognitiva, de tal modo que Harter (2003, 2006, in McLean &

    Breen, 2009) descobriu que o desenvolvimento cognitivo na adolescncia providencia

    uma capacidade progressiva para reconhecer e conciliar mltiplas expresses

    abstractas relacionadas com o self. Corroborando os fundamentos cognitivos do self

    narrativo, McLean (2009) considera que as tarefas de conciliao de aspectos

    diferentes do self actual constitui um processo anlogo ao de reconciliar aspectos do

    self ao longo do tempo, o que o foco central do desenvolvimento narrativo da

    identidade.

    Desta forma, consideramos que esta capacidade que o adolescente

    manifesta em realizar pensamentos cada vez mais complexos sobre a sua identidade,

    se ir manifestar de forma crescente, com a idade, quanto ao processo de construo

    de significado. Na verdade, o prprio conceito de pensamento formal remete para a

    combinatria das possibilidades e da anlise de cenrios hipotticos que transforma o

    adolescente num designer do futuro.

    1.2. A Teoria do Self Dialgico

    Partindo do pressuposto de que o mundo actual apresenta um carcter

    globalizado, que tem vindo progressivamente a adquirir mais e mais caractersticas de

    diversidade, multiplicidade e dinamismo, torna-se imprescindvel reconhecer que a

    experincia individual vai embeber dessa diversidade, adquirindo ela prpria distintas

    configuraes.

    por este motivo que as abordagens tericas da identidade pessoal tm

    vindo a abandonar o seu carcter positivista que entenderia o conhecimento como

    sendo uma montagem de representaes, que devero espelhar de forma absoluta a

    realidade ou uma interioridade imaculada (dAlte, Petrucchi, Ferreira, Cunha &

    Salgado, 2007). Impe-se o desenvolvimento de novos modelos de compreenso da

    construo da identidade sensveis ao contexto, aos instrumentos semiticos,

    plasticidade ecolgica e dialgica das auto-construes de sentido.

    A Teoria do Self Dialgico (Hermans, Kempen & van Loon, 1992) vem trazer

    um contributo fundamental no domnio do conhecimento sobre a identidade pessoal,

    cujos pressupostos de base derivam do modelo construcionista social e relacional

    (Gergen 1994, 2009), nomeadamente, da noo de que para existir conhecimento,

    tem de ocorrer uma aco sobre o mundo e uma apropriao de instrumentos

  • 15

    lingusticos, discursivos ou simblicos, relacionalmente interiorizados. Da conjugao

    do construcionismo com o dialogismo de Bakthin (1981, 1986, 1990), surge uma

    concepo de identidade que se torna plural, multifacetada e dinmica e que remete

    para a sua construo polifnica e auto-narrativa. O sujeito organiza e d significado

    aos acontecimentos vividos elaborando uma histria com uma ordenao semntica,

    uma trama de eventos com conexes temticas, causais, intencionais e espcio-

    temporais.

    neste domnio que Gergen e Gergen (1988, citados por Hermans, 1996)

    sugerem um conjunto de caractersticas que consideram se encontrarem presentes

    nestas auto-narrativas identitrias. Para a construo da experincia vivida numa

    histria, h que, em primeiro lugar, estabelecer um objectivo ou finalidade (um ponto

    mega que orienta a intriga); de seguida, selecionar os eventos mais relevantes para

    a prossecuo desses objectivos e ordenar esses episdios numa sequncia

    temporal; importa ainda estabelecer relaes causais entre os eventos e demonstrar o

    incio e o final da narrativa.

    Mas, sem a presena da voz e do dilogo, este modelo encontra-se

    incompleto. De certa forma, foi-se acentuando a importncia dos aspectos cognitivos

    em detrimento dos narrativos, ainda que ambos estivessem presentes nos trabalhos

    iniciais sobre o self dialgico (cf. Hermans, Kempen & van Loon, 1992, Hermans,

    1996). Observamos assim que o estudo das narrativas identitrias tem centrado a sua

    ateno nos princpios da organizao e da coerncia da histria, e no tanto no papel

    de quem a narra. Esta opo deriva da noo de que a abordagem narrativa se

    tornaria insuficiente e insatisfatria quando se procurava responder questo: o que

    o self? Is it a story or is it the teller of a story? (Hermans, 1996: 38). Em termos

    conceptuais importava perceber se era possvel distinguir o Eu enquanto contador da

    histria, da prpria histria narrada pelo Eu.

    Adicionalmente, no se encontrava a presena da voz e do dilogo, e dos

    seus contributos, para a construo do self. Assim, Hermans et al. (1992) socorrem-se

    da metfora da polifonia, procurando deste modo demonstrar a presena da

    multiplicidade de vozes e da experincia da co-construo no desenvolvimento da

    identidade. Segundo Hermans, a narratividade deve integrar-se no dialogismo:

    When there is a story, there is always someone who tells the story to

    someone else. It is the dialogical reciprocity between teller and listener that

    makes storytelling a highly dynamic interactional phenomenon. Two forms of

    dialogue structure our daily experiences: imaginal and actual dialogues. In the

    lives of normal people these forms of dialogues are certainly not separated but

  • 16

    rather side by side and even interwoven they are part of our narrative

    construction of the world. (Hermans, 2002: 2.)

    Iniciado este movimento dialgico com um enquadramento polifnico e de

    relao entre as mltiplas posies e vozes do Eu, encontrmos a noo de que a

    construo do Eu se d na relao com uma audincia. Com efeito, o self est em

    constante jogo dinmico com outros interlocutores ou pessoas, que podem ou no ser

    reais e estar ou no presentes. Em funo do momento ou do contexto de vida, o

    indivduo posiciona-se perante estes Outros significativos, respondendo s suas

    interlocues e tomando como feedback mltiplas e distintas formas de avaliao do

    seu self.

    O Eu assume um carcter dinmico dado que se movimenta entre diferentes

    posies e domnios no espao e no tempo. A essas posies so atribudas vozes

    imaginrias, o que por sua vez, permite que ocorra o dilogo entre elas. neste

    carcter multivocal que reside a possibilidade de cada posio ou voz poder

    comunicar s outras os seus desejos e interesses. neste espao de dilogo que se

    partilham as memrias e que exploram as motivaes pessoais (Hermans, 2006).

    Pode dizer-se que estas diferentes vozes e posies do Eu se configuram

    enquanto diferentes personagens de uma histria, inseridas num contexto social e

    cultural, pelo qual so influenciadas (Hermans & Hermans-Konopka, 2010); mas que

    por outro lado, procuram manter a sua individualidade, a coerncia e a estabilidade.

    Munidos desta abordagem inicial Teoria do Self Dialgico, consideramos

    ser pertinente desenvolver as perspectivas mais recentes de Hermans e Hermans-

    Konopka (2010). Esta necessidade prende-se com os objectivos do nosso estudo,

    nomeadamente no que diz respeito compreenso do modo como se realiza a

    reconstruo subjectiva da tomada de deciso vocacional, considerando a presena

    de mltiplas posies do Eu vocacional e do Eu moral ao longo desse processo.

    Os autores definem um quadro terico, segundo uma perspectiva de self e

    identidade fazendo parte de um mundo globalizado (espao), assim como de uma

    histria colectiva em constante mudana (tempo), centrando a sua ateno nas

    concomitantes diferenas e contrastes que se podem encontrar no self.

    Um dos interesses mais particulares do estudo da identidade prende-se com

    o facto de se perceber que os indivduos estabelecem relacionamentos no s com os

    outros, mas tambm consigo mesmos. Isto , pode-se afirmar que as relaes

    particulares que ocorrem entre pessoas, tambm ocorrem dentro do self. De forma a

    ilustrar esta posio, os autores propem que consideremos quatro exemplos: o auto-

  • 17

    conflito (self-conflict); a auto-crtica (self-criticism); o auto-acordo (self-agreement) e a

    auto-consultadoria (self-consultancy).

    Relativamente ao auto-conflito, encontramos duas posies ou vozes que

    impelem o indivduo para direces diferentes, e muitas vezes opostas. No obstante,

    a presena de uma conflitualidade ligeira ser natural nas decises que tomamos

    diariamente, podem ocorrer situaes nas quais o conflito se torna mais grave e

    prolongado no tempo. Este conflito pode sugerir a presena de uma guerra ou

    discusso entre as vozes e, em casos extremos, seguir uma das vozes e no a outra,

    pode trazer consequncias significativas, quer em termos comportamentais como na

    relao que se estabelece com os outros. Contudo, o posicionamento de cada uma

    delas, associado a uma alternncia que radica na dominncia de uma das vozes, far

    com que o perodo de conflito se torne menos intenso, e dessa forma, se consiga uma

    base comum de entendimento. Na realidade, ainda que os conflitos possam trazer

    elevados custos psicolgicos, no os poderamos eliminar totalmente do self, correndo

    dessa forma o risco de comprometer o potencial criativo que a eles se associa. Os

    conflitos trazem o self para um terreno de tenso, contradio e desacordo, mas tero

    em ltima anlise, um papel positivo no seu funcionamento, pois permitem a auto-

    reflexo, a auto-explorao, o dilogo interno e conduzem a ideias ou actividades

    criativas. Deste modo, o conflito tem a funo de promover um maior desenvolvimento

    identitrio.

    Quanto dimenso da auto-crtica, esta resulta, por norma, da comparao

    que o sujeito faz entre as suas aces individuais e as expectativas que o prprio, ou

    os outros, previamente estabeleceram. Nas situaes em que no consegue atingir os

    objectivos a que se props, tende a realizar uma auto-avalio negativa. Mais uma

    vez, a auto-crtica pode ocorrer de forma pontual e momentnea, sem grande impacto

    no self, mas, pode tambm fazer parte de um processo longo e intenso de auto-

    reflexo crtica. Esta auto-reflexo pode constituir uma forma positiva de reflexo

    sobre a vida, ao permitir que o indivduo tome conscincia das experincias anteriores,

    reintegrando possveis conflitos e suas solues, e desta forma, aprendendo com os

    erros cometidos no passado.

    Estabelecer acordos connosco mesmos, tal como com a auto-crtica e o self-

    em-conflito, constitui um fenmeno que pode ser considerado como a expresso de

    uma mente que lida consigo prpria de modo reflexivo. O self-em-acordo pode ser

    visto como uma forma de posicionamento em relao ao nosso self, no qual o

    indivduo julga e recompensa as suas prprias aces. Kenen (1984, citado por

    Hermans & Hermans-Konopka, 2010) refere que o self-em-acordo potencia a

  • 18

    capacidade do indivduo para exercer auto-controlo social, assim como para criar uma

    ordem social no self.

    O self-consultor constitui outra forma de actividade do self na qual existe uma

    similaridade entre o acto de nos dirigirmos a outra pessoa e de nos dirigirmos a ns

    prprios. Quando nos confrontamos com um problema difcil, ou quando nos

    colocamos uma questo complexa, muitas vezes no conseguimos encontrar uma

    resposta no imediato, necessitando de tempo para nos consultarmos a ns prprios.

    Este um fenmeno que ocorre frequentemente em situaes tpicas e nas quais

    temos que tomar decises com implicaes importantes para o nosso futuro ou para o

    de outros significativos.

    Em suma, o estudo da presena dos fenmenos identitrios de self-em-

    conflito, da auto-crtica, do self-em-acordo e do self-consultor sugere a presena de

    caractersticas semelhantes s que encontrmos quando nos referimos s relaes

    entre sujeitos e as relaes entre diferentes posies do self. Duas ou mais pessoas

    podem envolver-se num conflito, criticarem-se uma outra, estabelecer um acordo ou

    consultarem-se mutuamente. Do mesmo modo, o self pode ver-se envolvido num

    conflito consigo mesmo, ter de responder a uma crtica interna, necessitar de

    estabelecer um acordo consigo mesmo de forma a corrigir um comportamento

    indesejvel, ou consultar-se quando est perante um problema complexo ou de difcil

    resoluo.

  • 19

    Confisso

    De um e outro lado do que sou,

    da luz e da obscuridade,

    do ouro e do p,

    ouo pedirem-me que escolha;

    e deixe para trs a inquietao,

    a dor,

    um peso de no sei que ansiedade.

    Mas levo comigo tudo

    o que recuso. Sinto

    colar-se-me s costas

    um resto de noite;

    e no sei voltar-me

    para a frente, onde

    amanhece.

    Nuno Jdice, in Meditao sobre Runas

    CAPTULO II - A IMAGINAO DIALGICA NA CONSTRUO VOCACIONAL

  • 20

    2.1 Life-designing: o paradigma da construo da vida

    O domnio da interveno vocacional tem vindo a assistir necessidade de

    lidar com os novos desafios que a globalizao econmica e os rpidos avanos

    tecnolgicos nos impem. Com efeito, importa assumir que do mesmo modo que o

    mundo tem vindo a sofrer sucessivas transformaes, a psicologia da orientao deve

    tambm acompanhar todas estas mudanas. Surge ento o primeiro esboo de um

    novo paradigma, que deriva do trabalho de uma equipa de investigao internacional,

    o Life Design International Research Group, com representantes da Blgica, Frana,

    Itlia, Portugal, Sua, Holanda e Estados Unidos (Savickas et al., 2009): o paradigma

    da construo da vida ou life-designing.

    O incio do sculo XXI veio acentuar as mudanas ao nvel da reorganizao

    do trabalho e dos desafios que se colocam aos profissionais da orientao. Estas

    mudanas implicam o desenvolvimento pelo indivduo de diferentes competncias

    para o mundo do trabalho, no sentido de se tornarem capazes de aprendizagem ao

    longo de toda a vida, aceitarem a flexibilidade em vez da estabilidade, desenvolverem

    capacidades de empregabilidade e de criao das prprias oportunidades. Duarte

    (2004) reala que estas novas concepes sobre o mundo do trabalho acentuam a

    pertena da carreira ao indivduo e no s organizaes.

    Justifica-se assim a reformulao das tradicionais teorias vocacionais do

    sculo XX, bem como dos programas de interveno. Tal verifica-se, em primeiro

    lugar, porque essas teorias assentam nos postulados de estabilidade das

    caractersticas pessoais e do emprego seguro. Em segundo lugar, porque a carreira

    conceptualizada como sendo uma sequncia de estdios fixa, rgida, que urge

    ultrapassar luz da presena de contextos de vida instveis, com consequncia

    directa no comportamento dos indivduos.

    Nesta perspectiva, as actuais correntes tericas e de interveno psicolgica

    vocacional encaram uma crise associada ao seu pressuposto de previsibilidade e

    estabilidade da definio de estdios. Na realidade, ainda que os indivduos se

    apresentem estveis quanto s suas caractersticas pessoais, o ambiente encontra-se

    a modificar-se rapidamente.

    por este motivo que tambm os referenciais tericos devem enfatizar a

    flexibilidade humana, a capacidade de adaptao e a aprendizagem ao longo da vida.

    Assumimos nesta perspectiva que a prpria noo de identidade adopta novos

    contornos, enfatizando-se j no o estudo da identidade, mas sobretudo a procura de

    formaes identitrias. Isto , reala-se a importncia das abordagens dinmicas nas

    intervenes vocacionais de forma a que se encoraje o pensamento criativo e a

  • 21

    explorao de identidades possveis (Oyserman, Bybee & Terry, 2006, Cohen-Scali &

    Guichard, 2008).

    Em face desta nova abordagem construo da carreira, a grande questo

    de investigao entender quais os factores e os processos de construo de si. Esta

    perspectiva social construcionista vem acentuar uma noo de carreira que se

    sustenta num movimento de atribuio de significados a memrias do passado, a

    experincias do presente e a aspiraes para o futuro (Duarte, 2009, p.10),

    organizando-as de forma a que se constituam em temas de vida. Ser pelo significado

    contido nestes registos auto-biogrficos que o indivduo vivencia o domnio da sua vida

    que est associado ao mundo do trabalho.

    A este respeito assume-se que este novo paradigma deve produzir os

    conhecimentos e capacidades especficas necessrias para analisar e lidar com os

    contextos ecolgicos, com dinmicas complexas, com causalidades no lineares, com

    mltiplas realidades subjectivas, e com modelagens dinmicas (Duarte, 2010: 24).

    Neste sentido Savickas e cols. (2009) propem cinco mudanas fundamentais no

    pensamento sobre a carreira: i) Reconhecer que a orientao vocacional ocorre

    perante condies que no possvel controlar, isto , deixar de considerar apenas os

    traos e factores pessoais, estveis e universais, e passar a considerar que o

    indivduo e o seu ecossistema constituem uma entidade complexa e dinmica. ii)

    Acentuar a importncia das estratgias de sobrevivncia e das dinmicas de resoluo

    de problemas, ou seja, perante um mundo do trabalho em que j no existem

    profisses para a vida, devemos centrar o foco de aco no desenvolvimento de

    competncias para responder questo como fazer? e j no na recolha de

    informaes e contedos para dar resposta ao o que fazer?. iii) Optar por estratgias

    de resoluo de problemas que sejam interactivas e que desenvolvam as capacidades

    para a polivalncia, sendo que neste sentido importa deixar de considerar explicaes

    causais simples e lineares, tais como, que as aptides e os interesses so suficientes

    para se ser bem sucedido numa determinada profisso e que esses requisitos se

    mantm estveis ao longo do tempo. Pelo contrrio, as abordagens vocacionais

    devem passar por estratgias interactivas (j no prescritivas) de co-construo e

    acompanhamento da construo de vida do indivduo. iv) Centrar a interveno

    vocacional no poder de aco e de adaptao flexvel do sujeito ao contexto,

    assistindo o processo construo e de reconstruo subjectiva de realidades que se

    configuram em multiplicidade e diversidade. As abordagens tradicionais assentam em

    pressupostos e mtodos cientficos, dos quais se salientam os testes estandardizados

    e respectivas normas estatsticas. Com efeito, com base nos resultados obtidos da

    utilizao destes instrumentos, que os profissionais da orientao transformam as

  • 22

    realidades subjectivas dos seus clientes numa linguagem eminentemente tcnica, no

    raras vezes incompreensvel para eles. Note-se que Savickas (2005) salienta a

    importncia de se conhecer as construes individuais do prprio sujeito acerca das

    suas mltiplas experincias subjectivas. Neste caso, atravs da anlise das narrativas

    acede-se linguagem particular do indivduo, compreendendo no s sua situao

    actual, mas tambm o percurso que realizou para ali chegar. V) Incentivar a

    construo de modelos suportados na anlise das variveis individuais, isto , ao

    adaptarmos a interveno vocacional a cada indivduo tornmo-la mais eficiente, pois

    permite-nos encontrar configuraes estveis de um conjunto de variveis

    psicolgicas, que por sua vez permitem predizer os futuros e provveis

    comportamentos.

    Em sntese, as intervenes para a construo da vida tm de assentar nos

    cinco pressupostos sobre os indivduos e a sua vida de trabalho, acima descritos: as

    possibilidades do contexto, os processos dinmicos, a progresso no-linear, as

    realidades mltiplas e os modelos pessoais. Apoiando-se nestes pressupostos, os

    autores desenvolveram um modelo que, fundamentado no construcionismo social,

    entende que o desenvolvimento da identidade de um indivduo resulta do produto dos

    processos cognitivos e sociais que ocorrem em contextos de relao interpessoal

    (Gasper, 1999 citado por Duarte, 2009). Alm disso, o significado que cada indivduo

    atribui realidade determinado pelo contexto social, cultural e histrico no qual se

    encontra inserido, e co-construdo atravs do discurso que estabelece com os outros

    (Young & Colinn, 2004).

    Deste modo, o paradigma da construo da vida apresenta como metas

    fundamentais promover a adaptabilidade, a narrabilidade e a actividade dos

    indivduos. Este objectivo pode-se cumprir ao serem implementadas estratgias de

    interveno que atentam na procura da identificao das formas identitrias

    subjectivas de cada sujeito. Com efeito, este paradigma apela necessidade de cada

    vez mais ser o prprio indivduo a encontrar as novas formas de aco que lhe iro

    permitir transformar as suas expectativas iniciais em realidades, tornando-o capaz de

    redefinir prioridades, identificar apoios e criar recursos (Savickas et al., 2009).

    Abrem-se, por via deste paradigma, novos terrenos para a investigao em

    psicologia vocacional, visando a produo de modelos abrangentes, contextualizados,

    que permitam uma leitura compreensiva e uma produo de sentido ajustadas s

    necessidades de cada indivduo (Duarte, 2010). Em ltima anlise, trata-se de ajudar o

    indivduo a articular a sua misso pessoal, pelo revisitar da sua experincia narrativa,

    com o fim traar o caminho que lhe permite planear o seu futuro.

  • 23

    2.2. O Self Dialgico na construo vocacional

    Na sua Teoria da Construo da Carreira, Savickas (2005) remete o conceito

    construo da carreira no s para uma reflexo individual sobre a actividade

    vocacional do indivduo, ou seja, uma reflexo objectiva sobre o seu projecto

    vocacional (tais como conhecer profisses, tarefas, etc.); mas tambm para um

    processo de reflexo que se pode focalizar no significado atribudo aos eventos

    vocacionais, nomeadamente, a tomada de deciso vocacional e, neste caso,

    encontramos uma reflexo subjectiva sobre este processo. Esta teoria sustenta-se em

    trs factores essenciais: a personalidade vocacional, a adaptabilidade e os temas de

    vida, de cuja combinao emana uma teoria compreensiva do desenvolvimento

    vocacional. Os temas de vida inserem-se a um nvel pessoal, narrativo e subjectivo do

    desenvolvimento vocacional, sendo que as histrias de vida constituem o fio condutor

    que d sentido aos elementos da personalidade vocacional e adaptabilidade. As

    histrias vocacionais traduzem a unicidade de cada indivduo e permitem explicar por

    que cada um faz as suas escolhas e de que forma contam e recontam os significados

    que do sentido s suas tomadas de deciso.

    Contudo, atravs da Teoria da Construo da Carreira no se oferece uma

    explicao psicolgica para a questo: de que forma os indivduos estabelecem o

    processo de auto-construo de histrias associadas aos temas de vida. partindo

    desta lacuna, que McIlveen & Patton (2007) propem que a Teoria do Self Dialgico

    pode contribuir para uma maior compreenso terica do modo como os indivduos

    constroem significados para as suas escolhas vocacionais.

    Na perspectiva do self dialgico, e como j vimos anteriormente, somos

    autores, narradores e actores de mltiplas posies do Eu. Criamos os temas de vida,

    somos os contadores de histrias e quem as representa. De tal modo, que se pode

    conceptualizar o self dialgico como criador de ideais vocacionais subjectivos, num

    processo que pode passar pela criao de uma nica histria, ou de mltiplas

    histrias, que se compem numa narrativa complexa, estruturada e completa.

    Os autores dividem a sua anlise em vrios nveis de complexidade de

    actuao dialgica. Num nvel mais simples, constatmos a presena de posies do

    Eu na Teoria da Construo da Carreira de Savickas (2005). O indivduo vai

    apreendendo e dando significado a padres consistentes de pensamentos,

    sentimentos e comportamentos, o que se traduz, por exemplo, em padres

    relacionados com interesses ou com valores profissionais. Neste caso, uma pessoa

  • 24

    pode tomar uma posio do Eu de tipo Convencional, segundo a tipologia de Holland

    (1985). Ao assumir essa posio do Eu e dizendo para si mesmo e para os outros,

    numa relao dialgica, que sendo, por exemplo, do tipo Convencional, as profisses

    que so descritas como sendo as mais adequadas so as que lhe so apresentadas

    numa listagem estanque, o indivduo est apenas a ouvir a sua prpria voz. Deste

    modo, acaba por arrogar-se desse tipo de personalidade como se fosse

    verdadeiramente e unicamente o seu.

    Mas, construir a histria vocacional atravs do dialogismo pode ir a um maior

    nvel de complexidade (McIlveen & Patton, 2007). O self dialgico pode assumir mais

    do que uma posio vocacional, manifestando a capacidade de tomar mltiplas

    posies do Eu e dessa forma criar mltiplas histrias vocacionais alternativas.

    Sempre que o individuo passa de posio em posio, colocando-se perante

    diferentes perspectivas da sua prpria autoria, acaba por complexificar e enriquecer

    essas diversas histrias. Em consequncia, enriquece a sua prpria auto-

    caracterizao. Isto , o indivduo passa a assumir uma posio do Eu do tipo

    Realista, mas em simultneo, a do tipo Investigador, podendo ainda tomar uma

    posio que se relaciona com os interesses e influncias familiares, ou dos pares; e

    dessa forma ir criando diferentes protagonistas ao longo da mesma narrativa, cujo

    enredo pode criar uma histria vocacional com sentido.

    Contudo, pode-se considerar existir um nvel ainda mais rico na construo

    do Eu vocacional. Esta narrativa ser produzida quando o self dialgico se move entre

    posies do Eu que comunicam entre si, reflectindo e utilizando o discurso do mundo

    do trabalho como ferramenta para a construo progressiva de uma boa histria

    (McAdams, 2006), e que, em ltima anlise, coerente e significativa. Nesta

    perspectiva, as posies do Eu que o self dialgico adopta no so necessariamente

    inerentes aos aspectos da personalidade vocacional, mas podem ter a ver com outros

    aspectos da vida exterior do indivduo, a ttulo de exemplo, a nvel interpessoal,

    cultural ou geogrfico.

    A par destes contributos da Teoria do Self Dialgico para uma melhor

    compreenso dos processos intrasubjectivos da construo de um projecto

    vocacional, McIlveen & Patton (2007) propem um ltimo nvel de anlise,

    considerando que a Teoria da Construo da Carreira entende que os papis

    adoptados por cada indivduo so claramente modelados por factores sociais e

    institucionais, mas que no consegue, de forma especfica explicar que limites o

    sujeito coloca a si prprio. Atravs do self dialgico, prope-se uma soluo terica

    para compreender de que forma o indivduo nem sempre consegue aceder, em termos

    profissionais, carreira que desejaria. O self dialgico no se distancia dos contextos

  • 25

    sociais em que o sujeito se move, antes pelo contrrio, integra-os na construo

    identitria. Neste sentido, aquele indivduo que foi exposto a experincias ricas e

    significativas associadas ao mundo de trabalho, o que lhe vai permitir negociar entre

    mltiplos discursos acerca desse mundo, provavelmente ir ser capaz de assumir

    mltiplas posies do Eu, que, por sua vez, iro construir mltiplas histrias

    vocacionais. De outro modo, aqueles a quem essa exposio foi cunhada por

    influncias ou constrangimentos sociais, por exemplo, de gnero ou mesmo por

    discursos sociais tendenciosos quanto, nomeadamente, empregabilidade ou ao

    estatuto social, podero apresentar maiores dificuldades em explorar as vrias

    posies do Eu, pelo que as suas aspiraes vocacionais se iro tornar

    inevitavelmente mais limitadas.

  • 26

    Quem ama a liberdade conhece que idntica

    a verdade e a no-verdade o ser e o vazio

    e por isso na sua celebrao a metfora expande-se

    na liberdade de ser a tnue sabedoria

    desse momento e s desse momento em que o arco cresce

    H ento que procurar a chuva dessa nuvem

    ou desdiz-Ia no para o nosso olhar

    mas para um outro rosto de areia que cresce no vazio

    e poder ser de pedra ou de ouro ou s de uma penugem

    O poema o encontro destas duas faces

    de nenhuma substncia quando no vazio do cu

    os anjos se diluem com as mos despojadas.

    Antnio Ramos Rosa, in As Espirais do Silncio

    CAPTULO III DESENVOLVIMENTO MORAL: DILOGO INTERNO E AUDINCIA MORAL

  • 27

    O objectivo do presente captulo centra-se no estudo da perspectiva

    sociocognitiva e dialgica do desenvolvimento moral. A perspectiva sociocognitiva vem

    trazer avanos sobre as teorias dominantes, em particular, a teoria dos estdios de

    Lawrence Kohlberg. As crticas mais marcantes dizem respeito queles que

    argumentam que a abordagem de Kohlberg no tem em linha de conta a natureza

    multidimensional e multivocal do domnio moral. neste sentido que Gilligan (com os

    seus estudos sobre as diferenas de gnero no desenvolvimento moral) vem

    demonstrar que na linguagem que reside a chave para a compreenso da

    experincia moral. Foi a partir dos seus estudos que se abriram as perspectivas que

    visavam a explorao sociocultural do papel fundamental das palavras, da linguagem

    e do discurso na vida moral. Isto , esta perspectiva assume que os pensamentos,

    sentimentos e aces morais so mediados pela linguagem e pela atribuio de

    significado, e como tal situados num contexto sociocultural. Deste modo, o elemento

    fundamental da perspectiva sociocultural a relao que se estabelece entre

    moralidade e linguagem, no sentido em que a linguagem no apenas a expresso de

    um raciocnio moral, mas serve, em primeiro lugar, para criar um significado moral.

    De facto, Gilligan e seus colaboradores apresentaram um conjunto de

    evidncias acerca da forma como o discurso moral constitui um mediador importante

    nas respostas que os indivduos do perante os problemas, conflitos e dilemas morais

    da sua vida. Ao identificar duas vozes distintas, a justia e o cuidado (care), a autora

    veio demonstrar de que forma estas duas vozes representam formas diferenciadas de

    descrever e compreender os problemas morais, bem como, as diferentes abordagens

    e estratgias para a resoluo desses problemas (Gilligan, 1982, 1983; Gilligan, Ward

    & Taylor, 1998; Gilligan & Wiggins, 1987, citados por Tappan, 2005).

    Por seu lado, Tappan (2003) acrescentou que o funcionamento moral

    fundamentalmente uma aco socioculturalmente mediada, quer nas suas dimenses

    cognitiva e afectiva, como na dimenso da aco. A aco mediada pressupe dois

    elementos centrais: o agente, aquele que exerce a aco; e as ferramentas culturais,

    ou seja, os meios que so apropriados do contexto social e utilizados pelo agente. O

    funcionamento moral implica, nesta perspectiva, a presena de um agente e das

    ferramentas culturais, de que ir necessitar para o ajudar a responder ao seu

    problema, conflito ou dilema moral.

    3.1 A abordagem dialgica da experincia moral

    Subsequentemente, Tappan (2000, 2002, 2005) desenvolveu um conceito de

    identidade moral, que no meramente sociocultural, mas tambm dialgico. De

  • 28

    acordo com o autor, a identidade moral no pode ser vista exclusivamente como o

    conhecimento psicolgico de ns mesmos como pessoas morais, decorrente de um

    processo de reflexo ou de acesso ao nosso self; mas antes como um processo

    sociocultural que ocorre num processo de aco mediada atravs do recurso a

    ferramentas culturais. De entre estes recursos e ferramentas esto as orientaes e

    ideologias morais que so transmitidas atravs da linguagem. Nesta perspectiva, o

    desenvolvimento de uma identidade moral diz respeito a um processo de crescimento

    ideolgico, em que cada indivduo se vai apropriar, de modo selectivo, de um conjunto

    de palavras, tipos de discurso e linguagem de outros com quem estabelece o dilogo.

    O funcionamento moral mediado pela linguagem, pelo que o dilogo interno dever

    ter um papel primordial neste processo.

    O dilogo interno ser sempre polifnico, tal como refere Bakhtin (1981),

    nunca constituindo um monlogo puro, em que o indivduo fala numa s voz, mas

    existir sempre um dilogo entre pelo menos duas vozes. Ser este dilogo o motor

    para a construo profunda do funcionamento mental do indivduo.

    Tappan (1997) acrescentou a relao entre dilogo interno e pensamento s

    questes do desenvolvimento moral, argumentando que quando um indivduo se

    confronta com um problema, conflito ou dilema moral, ir responder atravs desse

    dilogo interno como dilogo interno moral, isto , dialogando sobre qual a soluo, da

    mesma forma que o faria para resolver qualquer outro problema ou tarefa da sua vida.

    Este autor prev que este dilogo moral interno ter as mesmas caractersticas

    sintcticas e semnticas dos dilogos internos sem caractersticas morais.

    Por seu lado, as descobertas de Gilligan e Attannucci (1988) de que a maioria

    das pessoas apresenta duas vozes nas suas narrativas morais associadas ao conflito

    e tomada de deciso a voz da justia e a voz do cuidado vem representar a

    relao dialgica que parece existir entre estas duas vozes. Acrescenta-se ainda que

    muitos indivduos descrevem a existncia de um dilogo, no sentido literal, entre as

    duas vozes. A voz da justia falando a linguagem da igualdade e da integridade,

    remetendo para uma soluo; e a voz do cuidado, falando a linguagem da

    responsabilidade e do relacionamento, remetendo para outra soluo. Aps algum

    tempo, o indivduo toma uma deciso, sendo capaz de responder ao problema moral

    que enfrentava. Estas descobertas sugerem que os indivduos apresentam uma

    polifonia nas suas reflexes morais, mas tambm, que frequentemente oscilam de

    uma voz para a outra ao resolverem os problemas, dilemas e conflitos morais da sua

    vida.

    Day (1991) acrescenta evidncias empricas que vm suportar a tese das

    vozes mltiplas, e dos mltiplos raciocnios, que caracterizam a vida moral. Segundo o

  • 29

    autor, a vida moral no deve ser considerada apenas do ponto de vista da narrativa,

    mas deve-se atender igualmente sua teatralizao. Introduz o fenmeno da

    audincia moral, como sendo a forma como todos os indivduos, no processo de

    contar a histria acerca das suas experincias morais, identificam outras pessoas,

    reais ou imaginrias, que constituem uma audincia interna perante a qual actuam, e

    pela qual so julgados. Nos estudos de Day, a aco moral ocorre sempre na relao

    com outras pessoas, no sentido em que estas aces so interpretadas em funo

    dessas pessoas, como audincia.

    A consistncia das aces morais estar relacionada com a consistncia da

    audincia a essas aces. Os princpios morais desenvolvem-se e mantm-se, ou

    modificam-se, em funo daqueles que constituem a audincia, e perante quem so

    mentalmente ensaiados. Quando pedimos ao sujeito que recorra memria dessas

    aces morais, mais uma vez sero analisadas e avaliadas perante a mesma

    audincia.

    Deste modo, Day e Tappan (1996) argumentam que podemos compreender o

    juzo moral e a aco moral, apenas quando conseguimos entender a natureza da

    relao entre o actor e a audincia perante a qual representa. Sugere ainda, que o

    desenvolvimento moral deve ser entendido em relao com a formao e

    transformao dessas audincias morais, na presena das vrias experincias morais

    do indivduo-actor ao longo do seu ciclo vital.

    Todos estes trabalhos acentuam a importncia da narrativa no auto-relato dos

    indivduos quando representam os seus dilogos morais internos em resposta aos

    dilemas e conflitos morais.

  • 30

    CAPTULO IV - ESTUDO EMPRICO

  • 31

    4.1. Metodologia

    4.1.1. Objectivos e questes de partida

    No presente trabalho procuramos responder a alguns dos desafios que se

    colocam actualmente pelas novas abordagens de construo da carreira e o

    paradigma da construo de vida ou life-designing, nomeadamente, o da construo

    de modelos abrangentes, compreensivos, e nos quais as diferenas psicolgicas e

    contextuais so consideradas.

    De forma particular, assumimos o nosso interesse em estudar as

    caractersticas dinmicas do self vocacional e moral e da inter-relao entre ambos.

    Partindo do pressuposto de que podemos encontrar uma relao entre a

    construo de uma histria/identidade moral e a construo da histria/identidade

    vocacional, no sentido do desenvolvimento de uma identidade narrativa na

    adolescncia, coloca-se como objectivo central desta investigao desenvolver um

    modelo de compreenso da tomada de deciso vocacional que inclua a experincia

    moral do adolescente.

    Com vista prossecuo deste objectivo geral, definiram-se os seguintes

    objectivos especficos:

    a) identificar os estilos narrativos tpicos e as ideologias pessoais dominantes

    de adolescentes aps a tomada de deciso vocacional de escolha de um percurso

    formativo no momento da concluso do ensino bsico obrigatrio;

    b) relacionar as ideologias pessoais e a reconstruo subjectiva da tomada de

    deciso vocacional;

    c) identificar a presena ou ausncia de uma dimenso moral no processo de

    tomada de deciso vocacional, nomeadamente, contrastando a audincia moral com a

    audincia vocacional.

    Pretendemos, deste modo realizar um estudo exploratrio, dado que no se

    encontra na literatura investigaes que tenham procurado descrever o processo de

    tomada de deciso vocacional, imbuindo-o dos factores do desenvolvimento da

    identidade moral que possam estar presentes nesse momento, bem como do impacto

    da audincia, real ou imaginria, nica ou mltipla, e da sua contribuio para a

    construo de um significado identitrio, narrativo, dialgico e de cariz moral e

    vocacional no perodo da adolescncia.

  • 32

    A opo pela metodologia narrativa prende-se com o objecto em estudo, o

    desenvolvimento narrativo da identidade na adolescncia, e a utilizao da entrevista

    narrativa (life story interview) como meio para aceder aos processos subjectivos de

    construo de significado dos sujeitos. Alm disso, adquirindo este estudo um carcter

    exploratrio a nvel terico, metodolgico e emprico, consideramos que os estudos de

    caso constituem a metodologia mais adequada aos nossos objectivos. Neste sentido,

    Almeida e Freire (2008) sugerem que os estudos de caso so particularmente vlidos

    na observao de fenmenos raros, mas ricos ou importantes do ponto de vista da

    informao contida para questionar uma dada teoria ou contrapor teorias, para

    explorar uma hiptese ou metodologia de anlise (Almeida & Freire, 2008: 126); o que

    valida a nossa opo pela sua utilizao nesta investigao.

    4.1.2. Participantes

    Este estudo contou com a participao de dez sujeitos, contactados

    directamente pela investigadora e convidados para a participao na investigao

    mediante a sua aceitao voluntria e a autorizao dos pais atravs do formulrio de

    consentimento informado (ver Anexo 1). Adoptamos deste modo, uma amostra de

    convenincia (Almeida & Freire, 2008), que rene alunos com idades compreendidas

    entre os 14 e os 18 anos, todos a frequentar o 10 ano de escolaridade numa Escola

    Secundria. Foram convidados cinco rapazes e cinco raparigas, com percursos

    vocacionais diversificados quanto tipologia de curso que frequentam (Curso

    Cientfico-Humanstico ou Curso Profissional), bem como mudana ou no de

    percurso formativo, sendo que para sete dos sujeitos o curso que frequentam

    constituiu a sua primeira opo vocacional e trs dos sujeitos realizaram mudana de

    curso.

    4.1.3. Procedimentos de recolha de dados

    4.1.3.1. Instrumento

    Os sujeitos foram entrevistados, seguindo-se uma verso adaptada da Life

    Story Interview, desenvolvida originalmente por D. P. McAdams (1996) a Guio de

    Entrevista Narrativa: Verso para Adolescentes (ver Anexo XI).

  • 33

    O guio da entrevista estrutura-se em torno dos temas objecto do nosso

    estudo, organizando-se em quatro seces. A primeira seco (A. Captulos da Vida)

    visa identificar os estilos narrativos tpicos do adolescente, sendo-lhe solicitado de

    conte a sua histria de vida. O momento seguinte, a seco (B. Acontecimentos-

    Chave) permite a movimentao do geral para o particular, solicitando ao entrevistado

    que descreva, com algum detalhe, dez acontecimentos-chave da sua histria. Nesta

    seco pretende-se identificar os temas e padres que organizam a histria de vida,

    articulando as memrias do passado (ponto alto, ponto baixo, ponto de viragem,

    memrias de infncia positiva e negativa) com acontecimentos de vida pertinentes ao

    nosso estudo (deciso moral boa e m, deciso vocacional, audincia moral da

    deciso vocacional). Ainda nesta seco, procuramos aceder aos significados que o

    adolescente atribui personalidade moral ou moralidade, tanto em si como nos outros

    e associando-os a profisses tpicas. Deste modo, procuramos responder a um dos

    objectivos do estudo, nomeadamente, identificar a presena ou a ausncia de uma

    dimenso moral no processo de tomada de deciso vocacional, contrastando a

    audincia moral com a audincia vocacional. A seco seguinte (C. Histria Futura)

    suscita a imaginao do futuro, distinguindo-se o futuro real do expectvel, os futuros

    possveis e o futuro ideal. A ltima seco do guio (D. Ideologia Pessoal) pretende

    relacionar as vivncias com as suas interpretaes, solicitando uma exposio

    sistemtica da ideologia pessoal do sujeito, cumprindo-se deste modo o objectivo de

    tentar identificar os estilos narrativos tpicos e as ideologias pessoais dominantes de

    adolescentes aps a tomada de deciso vocacional de escolha de um percurso

    formativo aps a concluso do ensino bsico.

    4.1.3.2. Procedimentos

    O procedimento bsico comum a todos os sujeitos consistiu na entrevista

    individual, com respectiva gravao udio integral e subsequente transcrio

    completa, recorrendo-se metodologia de anlise estrutural (Riessman, 2008). As

    entrevistas foram numeradas e os sujeitos identificados por cdigos SM (sujeito

    masculino) e SF (sujeito feminino) de acordo com o sexo.

    Com vista ao processo de construo de categorias narrativas suportamo-nos

    na posio de que ao abordarmos o desenvolvimento de uma identidade narrativa na

    adolescncia, mais precisamente, no momento da tomada de deciso vocacional,

    assumimos que podemos encontrar uma relao entre a construo da

  • 34

    histria/identidade moral e a histria/identidade vocacional. Deste modo, o objectivo

    central desta investigao trata-se de desenvolver um modelo de compreenso da

    tomada de deciso vocacional que inclua a experincia moral do adolescente.

    Decorrem deste objectivo geral, as seguintes questes:

    1. Quais os estilos narrativos tpicos e as ideologias pessoais dominantes de

    adolescentes aps a tomada de deciso vocacional de escolha de um

    percurso formativo no momento da concluso do ensino bsico

    obrigatrio?

    2. Como se relacionam as ideologias pessoais e a reconstruo subjectiva

    da tomada de deciso vocacional?

    3. Ser possvel identificar a presena ou ausncia de uma dimenso moral

    no processo de tomada de deciso vocacional, nomeadamente,

    contrastando a audincia moral com a audincia vocacional?

    Remetendo para a Teoria do Self Dialgico, a linha de pensamento de base

    passa por perceber a presena de consonncias e dissonncias entre posies

    ideolgicas internas dos sujeitos que radicam em vozes de outros significativos.

    Consideramos que a maior consonncia se ir correlacionar com uma maior

    estabilidade identitria. Isto , as mudanas (de curso, de expectativas) so uma

    resposta dissonncia. Neste caso, os sujeitos estaro a corrigir uma dissonncia

    entre posies vocacionais e posies morais; ou entre vrios Eu Moral e Eu

    vocacional; ou ainda pela dissonncia na relao com a audincia. Por outro lado, de

    acordo com a nossa prpria conceptualizao consideramos que a prpria intensidade

    da dissonncia se correlaciona com a necessidade de mudana, necessidade essa,

    que pode associar-se a um carcter afectivo, cognitivo ou prtico.

    Com vista anlise qualitativa de contedo das entrevistas, definiram-se

    categorias de construo narrativa, ou seja, a discriminao do estilo narrativo tpico,

    identificando o tom emocional, as consonncias e dissonncias entre posies do eu,

    estabilidade e mudana de projecto vocacional; e por outro lado, categorias de auto-

    interpretao e auto-avaliao ideolgica do sujeito, no sentido da compreenso dos

    seus valores religiosos, pessoais e morais, e da sua relao com a reconstruo

    subjectiva da deciso vocacional. Inclumos ainda na nossa anlise a categoria que

    pretende apreciar a presena ou ausncia de uma audincia moral e de uma

    audincia vocacional, procurando aferir contrastes entre ambas.

  • 35

    Optamos por apresentar a anlise de apenas quatro das dez entrevistas

    realizadas, por considerarmos conterem elementos suficientes para uma anlise

    aprofundada das questes em estudo.

    4.2. Apresentao, anlise e discusso dos resultados

    Os resultados sero apresentados de modo qualitativo e selectivo, atravs da

    ilustrao e da interpretao das categorias narrativas de maior pertinncia e

    significado na organizao identitria dos sujeitos e na construo de uma abordagem

    ideolgica, moral e vocacional, ao seu projecto vocacional.

    4.2.1. Estudo de Caso 1: SM3

    O participante SM3 um jovem de 14 anos de idade, que se encontra a

    frequentar o 10 ano de escolaridade, no Curso Cientfico-Humanstico de Lnguas e

    Humanidades, tendo sido essa a sua primeira opo vocacional.

    a) Categorias narrativas: life story e estabilidade ou mudana vocacional

    A anlise da histria deste sujeito revela a presena de uma trajectria de

    vida marcada pelas perdas interpessoais (pai e av), verificando-se que estrutura a

    sua narrativa em torno dessas perdas, em particular a morte do pai.

    O seguinte excerto representa essa vivncia:

    44 SM3: O ponto mais baixo foi em 2009 quando o meu pai faleceu.

    45 Bati mesmo no fundo. Porque no foi uma morte espontnea, por assim

    46 dizer, foi uma morte progressiva. Porque ele morreu de cancro, foi-lhe

    47 diagnosticado o cancro em Setembro de 2008 e ele faleceu em Agosto

    48 de 2009. () E depois naquele vero j estava mesmo o ms de

    49 Agosto, teve o ms de Agosto todo no hospital e foi a as ltimas

    50 semanas. Eu ia l visitar o meu pai e era muito mau. Um menino de 13

    51 anos ver assim um pai no normal. Todos da minha idade costumavam

    52 ter o pai em casa, iam ver cinema com ele, iam ver tudo, divertiam-se a

    53 ver futebol e naquelas frias

  • 36

    O carcter do sujeito que sofre essa perda exprime-se pela privao de

    experincias de vida normais. No entanto, essas perdas acomodam-se na sua

    narrativa de tal modo, que se verifica a sua restaurao, quando integra a perda numa

    histria que se torna completa e coerente:

    80 SM3: Sim. Esse, foi um ponto baixo, o falecimento do meu pai,

    81 mas tambm foi um ponto de viragem para mim positivo, porque a partir

    82 da tornei-me muito mais maduro. () E o meu nvel de maturao est

    83 muito mais sustentado e elevou-se muito. E sinto-me muito mais maduro e

    84 adulto, por assim dizer.

    No fundo, o sujeito cresce, ao reconhecer totalmente o impacto da perda que

    sofreu, e subsequentemente, integrando-o e acomodando-o na sua identidade. A um

    primeiro Eu-que-perdeu-o-pai sucede o Eu-que-amadureceu, notando-se aqui uma

    verdadeira autoria na construo do self.

    Ao referir-se ao seu amadurecimento enquanto pessoa, este jovem comea a

    esboar aqui princpios ideolgicos pessoais de solidariedade, cuidado e

    responsabilidade para com os outros:

    251 SM3: Sinto que estou a fazer algo de bom e sinto que tenho

    252 que olhar nos olhos deles a ver se a minha mensagem est a ser

    253 passada para eles. Esinto sinto as responsabilidades tambm a.

    254 Porque a tem que se ser muito responsvel na atitude que tomo.

    82 SM3: () tenho muitas mais responsabilidades porque

    83 agora somos menos na famlia. s a minha me que trabalha para

    84 ns os dois.

    Esta estabilidade narrativa, no sentido de uma boa histria, est tambm

    presente enquanto estabilidade vocacional. Quando questionado sobre a sua opo

    escolar refere:

    291 SM3: Este processo de orientao vocacional foi muito fcil

    292 para mim e foi muito foi fcil porque eu sempre adorei esta rea das

    293 letras. Andei sempre envolvido nesta rea das letras, com muitas

  • 37

    294 actividades.

    O sujeito no adopta diferentes posicionamentos relativamente a possveis

    alternativas vocacionais imaginadas e, deste modo, no introduz qualquer inovao ao

    processo de deciso vocacional, mas pelo contrrio, produz-se um efeito reforador da

    sua posio inicial.

    b) Categorias ideolgicas: valores pessoais e a reconstruo subjectiva

    da deciso vocacional

    Em termos morais, assume a posio de boa pessoa, lder e mediador de

    conflitos, sendo capaz de recorrer com facilidade sua memria auto-biogrfica para

    descrever um episdio em que toma uma boa deciso:

    208 SM3: Eu costumo ser no seio dos meus colegas, eles

    209 costumam ver-me como um lder, sim. E como um mediador de conflitos.

    210 E l na escola de E. costumava haver muitas brigas entre colegas e era

    211 eu que costumava ir l atenuar os conflitos e todas essas vezes de

    212 todas as vezes que me recordo dessas ocasies, orgulho-me dessas

    213 ocasies e do que fiz, porque porque optei sempre pelo bem. E o

    214 professor reconheceu-me por isso, porque eu fui delegado l muitos anos

    215 na escola EB 2,3 porque os meus colegas reconheciam-me como

    216 mediador de conflitos e como um lder, e os professores tambm. Foi

    217 nessas ocasies todas em que senti que fiz algo de bom em detrimento

    218 do mal.

    Ideologicamente apresenta uma crena voltada para o bem social, com

    preocupaes de ordem tica e moral, quer no sentido do bem e do mal:

    602 SM3: Bem ajudar uns aos outros. Somos no vivemos

    603 sozinhos. Somos 6 bilies e temos que viver juntos uns com os outros.

    604 E dou exemplos de pessoas populares a esse nvel, como o Nelson

    605 Mandela e Madre Teresa de Calcut. Pessoas bondosas, que ajudam

    606 umas s outras. Ao mesmo tempo h situaes de pessoas que

    607 pensam s nelas, na sua felicidade e no ajudam as outras, s pensam

    608 nelas. Tem o exemplo, no sei se posso dizer, nojento, entre Aspas, da

  • 38

    609 Casa Pia. Foi um acontecimento ainda por cima, o Carlos Cruz, que

    610 o membro mais meditico l dentro e era o que eu pensava que no iria

    611 fazer isso, o que fez. E parecia ser uma pessoa bondosa e no era.

    Como no que diz respeito justia e injustia:

    617 SM3: Voltando quele exemplo anterior meu uma pessoa justa

    618 avalia os argumentos de cada um, o que que envolve a cada um fazer

    619 o que faz e essa uma pessoa justa, imparcial. Uma pessoa injusta

    620 deixa-se levar pelos seus sentimentos e isso vai levar implica essa

    621 injustia nas suas aces, quando se deixa levar mais pelas suas

    622 determinaes sentimentais e vai ser injusto.

    Presentes ao longo de todo o seu discurso esto auto-descries de

    competncia e capacidade acadmica, de um Eu que acredita que capaz:

    301 SM3: Mas eu acreditei nas minhas capacidades nas lnguas e

    302 sei que posso ter muito sucesso nas lnguas e humanidades e optei por

    303 lnguas e humanidades. E foi a minha primeira escolha. J antes da

    304 orientao vocacional j sabia que era a minha escolha.

    E um Eu que projecta uma vida de sucesso para o futuro:

    560 SM3: Vou terminar agora o secundrio, penso que com boas

    561 notas. Pelo curso que estou a ter indicia que com uma boa mdia.

    562 Depois ir para a universidade e () quando terminar a universidade, vai

    563 haver ali um acontecimento que vai marcar a minha vida e que vai virar

    564 para um ah uma vida profissional de sucesso. isso que eu sinto

    565 que vai acontecer.

    c) Categorias morais: audincia moral e audincia vocacional

    No que diz respeito presena de audincias morais ou vocacionais,

    verificamos que, no caso deste sujeito, elas esto em consonncia com as suas

    posies ideolgicas internas, radicando nas vozes de Outros significativos. Apesar de

    no dar uma voz autnoma e independente aos interlocutores que invoca quando

  • 39

    refere a tomada de deciso vocacional, eles esto presentes e mantm um discurso

    consonante com a sua narrativa, por exemplo, atentemos no seguinte excerto:

    335 SM3: Sim, eu falei com o meu primo que economista e ele

    336 foi pelas reas das cincias sociais. E ele falou-me tambm das sadas

    337 profissionais, como psiclogo, e que seria melhor optar por outra rea,

    338 mas depois de eu lhe transmitir a minha capacidade que tenho nas

    339 lnguas, ele concordou com a minha escolha () ajudou-me e sabe as

    340 capacidades que eu tenho e o sucesso que posso ter nesta rea e o que

    341 depois posso alcanar.

    Temos aqui expressa a audincia vocacional associada ao momento da

    tomada de deciso. Por outro lado, no domnio da audincia interna, surge o pai como

    audincia privilegiada, dando-lhe voz (em discurso directo):

    375 SM3: Perguntava-lhe se estava a tomar a deciso certa? E ele

    376 Sim, vai em frente filho. Era sempre assim que ele me dizia. Motivava-

    377 me sempre e no era preciso dizer muito mais. () Ele transmitia muita

    378 confiana e muita motivao.

    Por outro lado, quando analisamos a presena de interlocutores na resoluo

    de dilemas, constatamos que se mantm, sendo que perante o dilema vocacional os

    interlocutores so os primos e outros significativos, reportando-se na sua resposta

    primeira pessoa, descrevendo a sua prpria deciso vocacional; e quando solicitado a

    resolver o dilema moral, os interlocutores so os pais, no se encontrando contrastes

    entre a audincia moral e a audincia vocacional.

    Em sntese, este caso ilustra a construo de uma identidade narrativa

    radicada na estabilidade, em que o sujeito adopta vrias posies do Eu em relao

    ao Outro (Eu enquanto filho, Eu bom aluno, Eu bom amigo) e em relao a si mesmo

    (Eu orgulhoso de mim mesmo), numa sintonia integrada de posies no espao e no

    tempo que caracterizam um self sem dissonncias, e que apesar de marcado por

    episdios negativos, segue uma sequncia redentora (McAdams, 2006).

    O tom emocional da narrativa, que sendo positivo, de optimismo e esperana,

    mesmo aps uma situao de vida de perda e bastante dolorosa, assume a funo de

    criar unidade e sentido para a sua vida. Ao apoderar-se deste mito pessoal de

  • 40

    perfeio, responsabilidade e sucesso, quase mgico, este jovem procura criar uma

    histria que reunifique o passado, o presente e o futuro.

    Esta consonncia expressa-se tambm nas auto-avaliaes ideolgicas do

    sujeito, com uma moralidade que atravessa toda a sua narrativa de forma consistente,

    no sentido de contribuir de forma positiva para a sociedade em que se encontra

    inserido (McAdams, 2009), e antecipando um Eu do futuro com sucesso e uma histria

    de vida feliz. Contudo, esta uma moralidade rgida e absoluta, que ainda no

    progrediu para um desenvolvimento moral flexvel, aberto, relativista quanto ao

    entendimento da realidade.

    A reputao familiar, social e escolar parece ter que estar protegida de

    qualquer tipo de ameaa. Verifica-se a presena de uma auto-atribuio de

    competncia tenaz e vigorosa, o que o pode obrigar a uma cuidadosa vigilncia,

    dominando deste modo o receio de no conseguir cumprir o esperado. O seu discurso

    transmite alguma estereotipia social, assim como, o respeito rgido e inflexvel pelas

    normas e regulamentos. A sua maior vulnerabilidade poder situar-se no medo da

    perda deste estatuto, dado que j assumiu um compromisso com um determinado tipo

    de projecto de vida.

    Do mesmo modo, no domnio vocacional, encontramos uma nica histria,

    consistente, mas no-dialgica, uma vez que o sujeito no se posicionou perante

    vrias possibilidades ou alternativas, mantendo constante a sua posio inicial

    (McIlveen & Patton, 2007). A sua narrativa est isenta de mltiplas posies do Eu

    vocacional e desse modo, esto ausentes os dilogos ou discursos promotores de

    reflexes diversificadas sobre o mundo vocacional. Raramente falando como se fosse

    um Outro, adopta uma posio auto-reflexiva, no abrindo espao de autonomia e

    independncia para outras vozes, o que fica expresso, por exemplo, pela ausncia de

    discurso directo. Ao no questionar, quer a si como ao outro, no estimula nem

    desenvolve a sua capacidade de ser criativo ou de ser espontneo, mantendo-se

    numa posio fixa, rgida e aparentemente imutvel.

    A sua boa narrativa, nas dimenses da histria de vida, moral e vocacional,

    no corresponde na realidade a um adequado processo de desenvolvimento

    identitrio. Demasiado coerente para ser verdade, esta perfeita consistncia no

    significa que de facto consiga a unidade e o sentido para a vida, pois perante as

    dificuldades ou contrariedades, poder soobrar. Na realidade, uma boa histria seria

    muito mais aquela que poderia permitir alguma ambiguidade, que flexvel, que se vai

    modificando e desenvolvendo medida que o prprio sujeito tambm se desenvolve.

  • 41

    4.2.2. Estudo de Caso 2: SF6

    A participante SF6 tem 15 anos de idade e encontra-se a frequentar o Curso

    Cientfico-Humanstico de Artes Visuais, tendo sido essa a sua primeira opo.

    a) Categorias narrativas: life story e estabilidade ou mudana vocacional

    A histria de vida desta aluna caracteriza-se por instabilidade, insegurana e

    a perda de uma pessoa significativa. O tom narrativo ambivalente, pois contrasta

    momentos de extrema felicidade, com outros de grande insegurana e medo.

    Atentemos nos seguintes excertos:

    23 SF6: Mas sentia-me livre. Porque ns andvamos l a correr

    24 pelos campos a fazer assim umas (risos) brincadeiras assim meias

    25 coisas Ns ramos frescas. E eu sentia-me livre porque era uma

    26 sensao de liberdade boa, muito boa.

    Referindo-se a umas frias passadas na companhia das primas, expressando

    sentimentos de profunda alegria e felicidade. Ou pelo contrrio, quando descreve um

    episdio com o pai:

    327 SF6: Ah (silncio) Foi uma vez eu no sei que idade que

    328 tinha, mas eu lembro-me que estava em casa da minha av tambm,

    329 estava a minha me e estava l o meu pai. E o meu pai pegou-me ao

    330 colo e saiu pela porta e comeou a caminhar e eu sei que me senti com

    331 medo que ele me levasse, com medo que ele me levasse para longe da

    332 minha me, para longe da minha av,para longe de l. E tive medo. Quer

    333 dizer, eu no sei se foi bem medo, mas eu sei que no queria e que

    334 pronto.

    Ao longo do seu desenvolvimento foi conseguindo encontrar estratgias de

    superao dos maus momentos, nomeadamente, tornando-se uma excelente aluna.

    neste domnio que revela um maior nvel de auto-conscincia, encontrando-se

    perfeitamente assimilada pela aluna a noo de que possui excelentes competncias

    cognitivas e que por esse motivo pode apropriar-se de um bom auto-conceito

    acadmico

  • 42

    Contudo, e quando nos referimos ao domnio emocional, mantm-se a

    expresso de alguma ambiguidade em relao ao que sente. Quando questionada

    sobre se o facto de se considerar ou no uma pessoa feliz declara que:

    728 SF6: Acho que sou feliz. Uma pessoa no completamente

    729 feliz.Nunca pode ser completamente feliz. Mas, acho que tambm

    730 ningum completamente infeliz. H sempre h momentos. H h

    731 momentos muito felizes... h momentos felizes, h momentos infelizes e

    732 momentos muito Infelizes. E ainda h alguns intermdios mas pronto.

    Esta elocuo parece transmitir alguma tenso interna, evidenciando um

    movimento posicionamento e reposicionamento de posies do Eu, que no deixa de

    ser fundamental na construo identitria.

    No domnio vocacional, e apesar das dvidas e incertezas quanto ao curso a

    seguir, no realizou qualquer mudana, encontrando-se certa de que realizou a

    escolha mais acertada.

    b) Categorias ideolgicas: valores pessoais e a reconstruo subjectiva

    da deciso vocacional

    As categorias ideolgicas mais salientes nesta participante remetem para

    valores associados famlia enquanto factor de estabilidade e continuidade. A famlia

    surge como fio condutor da narrativa, assegurando alguma consistncia no

    desenvolvimento identitrio, tal como fica expresso no seguinte excerto, a propsito de

    uma memria de um acontecimento feliz:

    32 Psi: Porque que essas memrias so importantes?

    33 SF6: So importantes por que fazem parte de mim, fazem parte de

    34 como que eu me vou descobrindo.

    Assim, emerge uma forma de auto-organizao do Eu, como meta-Eu,

    tomando-se a si prprio como objecto de reflexo. Este constitui um esforo para dar

    sentido aos seus movimentos de posicionamento e reposicionamento.

    Do mesmo modo, encontramos estes movimentos constantes de

    posicionamento do Eu, quando consideramos o Eu vocacional e a reconstruo

    subjectiva da tomada de deciso vocacional. Neste caso, encontramos uma intensa

    polifonia associada ao momento da tomada de deciso vocacional, expressa em

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    posies opostas, contraditrias, mas em simultneo desafiantes e promotoras de

    desenvolvimento. Num rico dilogo interno, a aluna tenta descortinar qual o caminho a

    seguir, recorrendo a um jogo de dilogos de dominncia e submisso, de relevncia e

    de excluso, culminando numa deciso segura e coerente com o seu self. A indeciso

    esteve presente no incio deste processo e a seguinte reconstruo subjectiva expe

    parte desses mltiplos posicionamentos:

    441 SF6: mas eu media os prs e os contras de cada rea. Foi

    442 Por exemplo, se eu for para cincias posso ser biloga e antroploga.

    443 Eu gostava de ser antroploga. Se for para as artes, posso vir a ser

    444 designer e arquitecta. E ento de que que eu gosto mais? A

    445 arquitectura ou a antropologia? E foi um bocado isso tentei medir

    446 mais ou menos as coisas o que que pesava mais dentro de mim,

    447 para o que que eu me inclinava e uma coisa que ajudou muito foi um

    448 filme ().

    c) Categorias morais: audincia moral e audincia vocacional

    Se, por um lado, a voz do Eu (e os seus diversos posicionamentos) tem um

    papel fundamental na tomada de deciso desta aluna; por outro, o Outro tem tambm

    uma presena significativa nos seus processos mentais de construo da tomada de

    deciso. Neste caso, comeamos por apreciar de que forma se apropria do dilogo

    interno, ou audincia interna, para dar significado s suas opes. A aluna refere uma

    multiplicidade de vozes, quer reais quer imaginrias, que a dado momento abafavam

    a sua prpria voz, apoderando-se de uma autoridade sobre o seu self que, de certa

    forma, a assustou. O seguinte excerto demonstra essa vivncia:

    474 SF6: Ui! Sei l! Eu acho que falava com muitas pessoas.

    475 assim, porque eu tinha muitas vozes na minha cabea. Tinha as vozes

    476 dos meus colegas todos a dizer para ir para artes. Ah sei l fiz

    477 alguma pesquisa na internet sobre algumas profisses e li entrevistas

    478 de alguns arquitectos e de vrias profisses e tinha as vozes dessas

    479 pessoas todas a dizer-me os prs e os contras daquela profisso. E

    480 estava a tentar processar aquilo tudo. Tinha as vozes todas l e a

    481 minha voz parecia que estava meia abafada, meia assustada.

    482 Psi: Mas a tua voz dialogava com essas vozes?

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    483 SF6: A minha voz tentava excluir algumas das outras vozes. Eu

    484 tentava escolher s aquelas mais fortes e