tese quilombo

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO QUILOMBO IVAPORUNDUVA: evolução histórica e organização territorial e social MÁRCIA CRISTINA AMÉRICO Piracicaba-SP (2010)

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Page 1: Tese Quilombo

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

QUILOMBO IVAPORUNDUVA: evolução

histórica e organização territorial e social

MÁRCIA CRISTINA AMÉRICO

Piracicaba-SP

(2010)

Page 2: Tese Quilombo

1

QUILOMBO IVAPORUNDUVA: evolução

histórica e organização territorial e social

Márcia Cristina Américo

Orientadora: Profª. Drª. Anna Maria Lunardi Padilha

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Universidade Metodista de Piracicaba, como

exigência parcial para obtenção do título de Mestre

em Educação, sob a orientação da Professora

Doutora Anna Maria Lunardi Padilha

Piracicaba, SP (2010)

Page 3: Tese Quilombo

2

BANCA EXAMINADORA

Profª. Dra. Anna Maria Lunardi Padilha (Orientadora)

Profª. Drª. Luiz Fernando Fonseca Silveira - UNIP

Profª. Drª. Márcia Aparecida Lima Vieira - UNIMEP

Profª. Drª. Denise Maria Botelho – UNB

Profº. Dr. José Maria de Paiva - UNIMEP

Page 4: Tese Quilombo

3

AGRADECIMENTOS

O meu percurso até aqui tem sido fruto da convivência com muitas pessoas que

acreditaram neste trabalho, contribuíram para que ele se tornasse possível e que eu

pudesse me constituir como pesquisadora. Temo correr o risco de esquecer de

agradecer a todos.

À minha orientadora Profa. Dra. Anna Maria Lunardi Padilha, que me escolheu e me

incentivou, pela confiança em mim depositada e pela liberdade sempre concedida. Não

mediu esforços para compartilhar seus conhecimentos, experiências e vivências.

Ensinou-me a buscar respostas, a fazer perguntas, a questionar. Nessa relação, a

cada encontro eu fui me constituindo, mudando, transformando. Não tenho palavras

para agradecer e reconhecer o seu trabalho, profissionalismo, seriedade e dedicação.

Ao apoio da Agência de Fomento - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico – CNP´q, pela concessão da bolsa de estudo, sem a qual teria sido

impossível a realização desta pesquisa.

Ao programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba

que acolheu meu projeto. Rendo meu agradecimento às Professoras do Núcleo de

Práticas Educativas e Processos de Interação do PPGE-UNIMEP: Anna Maria L.

Padilha, Maria Guiomar Carneiro Tomazello , Maria Cecília Rafael de Góes e Maria

Inês Bacellar Monteiro. Aos Professores e Professoras de outros núcleos do

PPGE/UNIMEP que tive como mestres: José Maria de Paiva, Cleiton de Oliveira, Elias

Boaventura, Selma Borghi Venço.

Aos professores que fizeram parte da Banca de Qualificação: Prof. Dr. Luiz Fernando

Fonseca Silveira, Profª. Drª. Márcia Aparecida Lima Vieira,, Profº. Dr. José Maria

de Paiva; Profª. Drª. Denise Maria Botelho. A eles agradeço as contribuições,

generosidade e a abertura para interlocução sobre o meu trabalho.

Page 5: Tese Quilombo

4

À Neusa Cezar da Silva, pela revisão do texto da dissertação, pelo carinho e os

momentos que se dedicou aos meus textos, pelas experiências compartilhadas de sua

vivência, pela sua referência de liderança e militância como mulher negra.

À Lara Padilha Carneiro, que realizou o trabalho de revisão dos primeiros textos

sempre dialogando comigo e atenta à construção do conhecimento.

À Angelina Garcia, que deu continuidade ao trabalho de revisão da dissertação, pelo

seu dispor e cuidado com a minha proposta.

À minha psicóloga Silvia Regina Filhinho que me acompanhou nesse processo de

construção do meu “eu”.

Aos amigos: Leandro Eliel Pereira de Morais e Karina Garcia Mollo que não mediram

esforços para partilhar seus conhecimentos sobre o Materialismo Histórico e

Dialético. Como foi bom aprender com vocês, no grupo de estudo, no café, no

corredor, à distância. Obrigada pela partilha, pelas sugestões, por sentar comigo e

contribuir para que esse trabalho fosse tomando forma - conheci em vocês grandes

educadores.

À minha família: aos meus pais que sonharam comigo, incentivaram-me e acolheram-

me nos momentos difíceis, desdobrando-se para que eu chegassem até essa etapa dos

estudos. À Amanda, minha filha, pela compreensão de sempre, cujo tempo de

dedicação aos estudos me privou muitas vezes da sua alegria, carinho e companhia. Às

minhas irmãs Ana e Tânia pelo carinho, apoio, torcida e o acolhimento nas minhas idas

e vindas. Edwilson e Hannah são vocês que me motivam a contar a outra história. Aos

agregados Marquinhos e Cristiano com carinho especial pelas conversas.

Ao Silas, meu companheiro e amigo que me possibilitou realizar alguns sonhos; um

deles foi me apresentar aos meus irmãos quilombolas de Ivaporunduva. Estar entre

eles na “terra de preto”, foi tornar essa caminhada possível. Quantas conversas,

Page 6: Tese Quilombo

5

quantas constelações, quantas passagens pelo movimento negro que foram nos

constituindo. Não tenho palavras para expressar quantas transformações ocorreram

em mim a partir do nosso encontro e vivência. Sem isso não seria possível

compartilhar a história do nosso povo. Minha gratidão a você.

À Viviane Luiz (Vivi), minha grande amiga. Tantas conversas, estudos, trabalhos

realizados juntas. Agradeço o seu apoio, paciência e dedicação desde o início dos

estudos, os quais foram fundamentais para que eu atravessasse os momentos de

crises. A ponte tem sido construída coletivamente.

Às amigas do núcleo, em especial a Elânia Maria Marques Bergamaschi, Claudia Regina

Viera, Ozânea Santana, Cristiane e Elisângela. Conseguimos transformar nossos

momentos de estudo no mestrado em momentos de trocas.

Aos amigos/as, lideranças e militantes que encontrei nas discussões do “movimento

negro” porque muito me ensinaram e contribuíram para que eu me arriscasse a

escrever sobre a nossa história.

De forma muito especial agradeço aos meus amigos quilombolas de Ivaporunduva,

entre os mais especiais, que me acolheram e me ensinaram. Obrigada pelo apoio e pela

troca, sem o qual teria sido realmente impossível realizar esta pesquisa.

Aos membros descendentes dos troncos familiares que originaram Ivaporunduva:

Furquim, Pupo, Marinho, Pedroso, Meira, Rodrigues e Moraes. À pessoa do Ditão –

Benedito Alves - que tanto me ensinou e sua esposa Zilda por quem tenho grande

estima e admiração. Aos filhos: Élson Alves da Silva – o meu primeiro contato com a

comunidade - obrigada por propiciar o acesso a sua família que é tão especial para

mim; à Zica, por tantas conversas e trocas; à Paula, Nhonhozão e família; Neire

(Nhanha) e família e Daniele. Aos Rodrigues, Zé Rodrigues, Maria da Guia, e os filhos

e netos, pela luta, liderança do dia-a-dia. Ao Oriel Rodrigues de Moraes pelo grande

carinho, por não medir esforços para que eu compreendesse o movimento quilombola –

o ser quilombola e por partilhar comigo suas experiências e discussões do Movimento

Page 7: Tese Quilombo

6

Nacional Quilombola e outros movimentos. Pelo abrigo que me deu em seu lar. À

Silvana, sua esposa, com carinho e admiração e ao herdeiro Aquim. Ao Denildo

Rodrigues de Morais – Bico, que não mediu esforços nessa caminhada para

compartilhar todo movimento contra a construção das barragens nos movimentos

sociais - MOAB – MAB. Ao Olavinho, pelo carinho e por estar sempre pronto a nos

receber, pelo seu trabalho e dedicação ao Ecoetnicoturismo. Às jovens mulheres

quilombolas: Jeniffer, Erica, Elvira, Jardeth , Sirley, Clarinha. À família Pupo, Sr Levi

e Dona Senhoria por tanta sabedoria compartilhada, aos filhos: Paulo Pupo – Paulão

pelas muitas conversas, pela acolhida, pela paciência e humildade em nos ensinar a

filosofia quilombola. À Maria Lúcia, quantas caminhadas dentro do quilombo! Agradeço

a família Furquim, na pessoa do Vô Gaspar e Vó Celina que compartilharam comigo a

sua família, seus filhos, netos, seu tempo, histórias e estórias, o carinho e o dispor

para me ajudar a compreender a dinâmica das famílias do bocó. Não tenho palavras

para expressar o que sinto por vocês. Ao Cristiano Furquim por quem tenho muito

carinho e admiração. Ao Toiço que tem me ensinou a alegria de ser uma criança

quilombola quando cheguei pela primeira vez na comunidade. Aos Marinho, que alegria

adentrar nessa família! Quantas conversas, quantas histórias, as noites inesquecíveis

em torno da taipa escutando as história da Dona Cacilda – grande mulher. Ao Sr.

Aparício por quem tenho carinho, aos filhos Laudessandro (Destrói), Laudenes (Pinga),

Laudessandra, Alexandra (Turréis), Alexandre – (Cacá), Setembrino , Leonardo e

Willian. Agradeço a hospedagem e os ensinamentos quilombolas de vocês.

Page 8: Tese Quilombo

7

DEDICO ESTE TRABALHO

À minha mãe,

Cujo apoio e desdobramento foram necessários para que eu concluísse os estudos,

pela referência de sabedoria e encanto, por sua força e determinação.

À minha filha Amanda Naíná

A sua delicadeza, as suas perguntas em busca de entender a sua história, têm sido a

razão de todo esse meu movimento. Nessa experiência fomos nos transformando e

nos constituindo enquanto sujeitos da história.

Page 9: Tese Quilombo

8

RESUMO

Este estudo, em forma de textos, pretende caracterizar a vida da Comunidade Negra

Agroflorestal Quilombo Ivaporunduva, localizada no Vale do Ribeira, no Estado de São

Paulo, focando a evolução histórica e a organização social e territorial dessa

população inserida num contexto rural, em condições de subdesenvolvimento no que

diz respeito ao acesso/ou dificuldade de acesso aos direitos sociais. Com elementos

que caracterizam a pesquisa etnográfica, a investigação traz fragmentos do processo

histórico, narrados pelos próprios quilombolas, acerca da constituição de

Ivaporunduva e descreve como a comunidade tem se articulado para enfrentar

questões políticas, sociais e econômicas que permitam avanços do desenvolvimento

local. Concluiu-se que as relações que os quilombolas de Ivaporunduva mantêm com

outras organizações sociais e o modo como se articulam em defesa de seu território

são ações que os constituem como sujeitos de sua história junto com o outro, e essas

práticas são compreendidas como práticas educativas.

Palavras-Chave: Quilombo – Território – Organização Social

ABSTRACT

This study, in text, aims to characterize the life of the Black Agroforestry

Community Quilombo Ivaporunduva, it is located in Vale Ribeira, São Paulo State,

focusing historical evolution and social and territorial organization of this population

inserted in the rural context, in conditions of underdevelopment, with regard to

access or difficulty of access to social rights. With elements that characterize

ethnographic research brings fragments of the historical process, narrated by their

own, about the constitution of Ivaporunduva and describes how the community has

been articulated to confront the political, social and economic questions that allow

advances of local development. It was concluded that the relations of maroon of

Ivaporunduva keep with other social organizations and how they articulate in defense

their territory are actions that constitute them as subjects of their history along

with the other and these practices are understood as educational practices.

Keywords: Quilombo - Territory - Social Organization

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9

O PERIGO DA HISTÓRIA ÚNICA

É assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como

somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão.

É impossível falar sobre uma única história sem falar sobre poder.Há uma

palavra, na tribo Igbo, que eu lembro sempre, eu penso sobre a estrutura de

poder do mundo, e a palavra é “nkali”. É um substantivo que livremente se

traduz: “ser maior do que o outro.”

Como nossos mundos econômico e político, história também são definidas pelo

principio de “nkali”. Como são contadas, quem as conta quando e quantas

histórias são contadas, tudo realmente depende do poder.

Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de

fazê-la a história definitiva daquela

Pessoa

O poeta palestino Mourid Barghouti escreve, que se você quer destruir uma

pessoa, o jeito mais simples é contar sua historia, e começar com “em segundo

lugar”.

Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação

colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente.

A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que

eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história

tornar-se a única história.

A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua

dignidade.Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada

difícil.Enfatiza como nós somos diferentes ao invés de como somos

semelhantes.

Histórias importam.

Histórias tem sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas história

podem ser usadas para humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um

povo. Mas história também podem reparar essa dignidade perdida.

[...] Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca

há apenas uma história, sobre nenhum lugar, nos reconquistamos um tipo de

paraíso.

CHIMAMANDA ADICHIE

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10

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...........................................................................................................................14

A Vida .............................................................................................................................................15

A Proposta..................................................................................................................................... 27

Primeiro Texto. VIM DE LONGE, VOU MAIS LONGE..................................................... 44

Breve histórico do desenvolvimento capitalista....................................................................47

Formação da População Negra no Brasil...................................................................................51

Relações entre a sociedade escravocrata e a população negra escravizada..................52

População Negra escravizada: rurais e urbanas.....................................................................57

Revoltas e Rebeliões.....................................................................................................................59

Conceituação e Histórico de Quilombo....................................................................................61

Palmares..........................................................................................................................................66

Zumbi - O Mártir da abolição da escravatura do Brasil e Patrono Cívico da negritude

brasileira..........................................................................................................................................71

Abolição...........................................................................................................................................73

Referências Bibliográficas........................................................................................................ 79

Page 12: Tese Quilombo

11

Segundo Texto. QUILOMBO DE IVAPORUNDUVA: LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA,

ATIVIDADES E CONFLITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E

POLÍTICOS................................................................................................................................... 81

Conflitos econômicos e sociais e políticos...............................................................................89

Referências Bibliográficas........................................................................................................101

Terceiro Texto. COMUNIDADE, TERRITÓRIO E MODOS DE VIDA.........................102

Tradição Oral no Quilombo de Ivaporunduva........................................................................112

Referências Bibliográficas........................................................................................................123

Quarto Texto. “SOU NASCIDO E CRIADO AQUI: QUE AS PESSOAS, TANTO

BRANCO QUANTO PRETO, CONHEÇA A HISTÓRIA DESSE

POVO”............................................................................................................................................124

Isolamento....................................................................................................................................134

A Transição e o Incômodo.........................................................................................................142

As Contradições...........................................................................................................................156

Referências Bibliográficas........................................................................................................164

Quinto Texto. “EU ACHO QUE DÁ PARA VIVER AQUI”...............................................166

O Trabalho no Quilombo de Ivaporunduva.............................................................................171

Referências Bibliográficas........................................................................................................189

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................190

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12

APRESENTAÇÃO

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13

A Vida

Nasci no bairro Monte Alegre, na cidade de Piracicaba, estado de São Paulo – uma vila

ocupada pelos trabalhadores da usina de açúcar e fábrica de papel1, em cuja linha de

produção meu pai, que era operário, trabalhou até a aposentadoria. Apesar do baixo

salário, meu pai garantia a alimentação dos cinco filhos e minha mãe trabalhava como

diarista (passando e lavando roupa) para complementar a renda.

Em 1981, após a aposentadoria, foi necessário sairmos da casa em que morávamos, que

estava cedida pela fábrica durante os 25 anos trabalhados. Aos meus nove anos de

idade, mudamos para um bairro periférico na zona oeste de Piracicaba, uma das três

localidades periféricas habitadas majoritariamente pela população negra. Brinco

sempre dizendo que morávamos no “centro” da Vila Cristina, rodeado por cinco pontos

de ocupação irregular, que, assim, iniciaram processos de formação de favelas.

A localidade é ainda caracterizada por péssimas condições de moradia, precariedade

de saneamento básico e segurança, com alto índice de periculosidade decorrente da

marginalização, descaso e abandono dos moradores da comunidade referida.

Presenciei e convivi com o desemprego, miséria, assassinatos, drogas, tráficos,

prostituição e abuso de poder de policiais e autoridades políticas. Considerando a

história da população negra no Brasil, o racismo institucionalizado faz com que os

policiais, invés de promoverem a segurança dos moradores, sejam por eles temidos,

devido a atitudes que denotam preconceito racial, tais como blitz policiais com foco

nos jovens afrodescendentes, por serem estes mais vulneráveis. Em contrapartida, as

autoridades políticas que têm o papel de promover o bem-estar do indivíduo, como

assegurar os direitos constitucionais, mascaram suas responsabilidades com ações

assistencialistas pontuais, geralmente em época de eleição.

Estudei em escolas públicas do bairro onde, em consequência da realidade

socioeconômica e cultural brasileira, a expectativa dos alunos em relação ao futuro

1 Refinadora Paulista e Álcool S/A Paulista e Refinadora Paulista S/A Celulose e Papel

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14

era e ainda é baixa. Reconheço a importância da instituição escolar para a população,

porém ela não consegue abarcar as inúmeras demandas que são de competência de

outros órgãos.

Uma das formas de socialização da família nesse bairro foi o encaminhamento dos

filhos para o contexto da fé evangélica e de seus princípios, os quais foram relevantes

na nossa criação. Porém, a igreja que eu frequentava, especificamente, era

acentuadamente conservadora e limitadora, portanto alienante2, principalmente no

que se refere às questões sociais, econômicas, políticas, de gênero e raça. O

silenciamento dessas questões não promove transformações sociais no sentido de

ultrapassar os limites, tampouco o desenvolvimento do senso crítico para provocar

mudanças e/ou a emancipação dos indivíduos.

Nesse contexto, tivemos dois trágicos e inevitáveis acontecimentos: a perda, por

assassinato, de dois irmãos num período de seis meses. Essa história não é a que eu

gostaria de contar, mas penso que tem relevância compartilhar uma realidade que é

vivenciada pela maioria da comunidade negra; acontecimentos da vida concreta e que

devem fazer parte dos estudos na Academia que, via de regra, pensa a educação

ocidentalizada, modelada e padronizada, por vezes abordando apenas tangencialmente

tais questões (raciais, sociais, econômicas) em função da invisibilidade ou do

silenciamento frente à estrutura de classes da sociedade capitalista, desde sua fase

inicial.

No ano de 1999, diante da necessidade de um projeto que fizesse sentido na vida de

um grupo de jovens negros/as3 na periferia da zona oeste de Piracicaba, foi criado o

Coral Yahwéh, composto por 25 integrantes negros/as, que, além de cantar, passa a

trabalhar com o resgate da identidade negra e com a possibilidade de mudança

2 Utilizo, aqui, o conceito de alienação dado por Marx, ou seja, ação pela qual um indivíduo se torna ou

permanece alheio ao resultado ou produto de sua própria atividade e à atividade ela mesma; à natureza

na qual vive, bem como a outros seres humanos e a si mesmo. (BOTTOMORE, T. Dicionário do

Pensamento Marxista Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.5). 3 O objetivo é de não incorrer no preconceito de gênero supostamente contido na regra gramatical em

que o masculino inclui tanto o masculino como o feminino. Quando uso os substantivos no masculino

refere-se a ambos os gêneros

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transformadora na comunidade, em relação aos jovens expostos às desvantagens da

desigualdade social, política e econômica. O objetivo inicial do grupo era o

fortalecimento da identidade e da autoestima dos próprios membros, considerando

que alguns dos jovens estavam inseridos num contexto de situação de risco e

vulnerabilidade social. Até então o grupo não tinha alcançado uma consciência crítica

sobre o sistema no qual estava inserido, para questionar e propor mudanças.

Em 02 de julho de 2001, o Coral Yahwéh fez uma participação cultural, no I Simpósio

de Educação Inclusão Afrodescendência de Piracicaba, realizado pelo Grupo de

Educação da “Sociedade Beneficente 13 de Maio” e por lideranças negras de

Piracicaba. O objetivo desse evento foi apresentar e discutir as desvantagens e

possibilidades da população negra nos vários segmentos da sociedade: política,

mercado de trabalho, educação, saúde, cultura etc. O simpósio contou com a

participação de pesquisadores/as, representantes de ONG – Organizações não

Governamentais sem fins lucrativos e representantes do setor privado.4

A partir desse evento, o Coral Yahwéh começa a ser identificado como um dos

projetos sociais e populares que genuinamente nasce de um movimento contrário e de

enfrentamento, propondo mudanças à comunidade: vinte e cinco jovens, saindo da

inviabilidade da periferia e tornando-se protagonistas, pela referência positiva, para

outros grupos. Representantes do grupo de Educação passaram a frequentar nossos

encontros, com propostas de discussão de mudanças, por meio do acesso à educação

de nível superior. E o coral caminha na direção de buscar compreender o universo em

que seus integrantes estavam inseridos.

4 Palestrantes do I Simpósio de Educação Inclusão Afrodescendência de Piracicaba: Izildinha B.

Nogueira (USP e Instituto Psique AMMA – Tema: Complexos, Traumas e Bloqueios Psíquicos como

barreira ao desenvolvimento pessoal e social; Ricardo Henriques (Instituto IPEA no Rio de Janeiro e

Universidade Federal Fluminense) – Tema: Exclusão, Afrodescendência e Educação; Representante da

Fundação Palmares – Tema: Educação para cidadania plena; Profª. Dra. Eliane Cavalleiro – Tema:

Requisitos de uma educação traumatizante; Profº Noedi Monteiro – Tema: Afrodescendência no Brasil e

Piracicaba; Dra. Berenice Kikuchi (Associação Anemia Falciforme de São Paulo) – Tema: Educação,

Exclusão e Saúde; Dr. Cláudio Oliveira (CENA-USP) – Tema: Educação, Exclusão e Ciências Exatas.

Page 17: Tese Quilombo

16

Em 2001, ano da Mobilização contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e

Intolerância Correlata e da Conferência Mundial realizada na África do Sul, na cidade

de Durban, promovida pela ONU (Organização das Nações Unidas), ocorreu uma

articulação tanto em nível nacional como internacional (da qual o Brasil fez parte). A

intenção era preparar lideranças da comunidade negra para encaminhamentos de

propostas de políticas reparatórias, ou seja, as chamadas Ações Afirmativas. O Coral

participou, junto com o GT de Educação de Piracicaba, das aberturas de vários

simpósios, conferências e encontros que ocorreram em São Paulo e região durante

aquele ano.

Nesse movimento, a participação do grupo junto aos pesquisadores e estudiosos sobre

a temática da população negra teve relevância no aspecto de desvelar a nossa

realidade. Fortalecia em nós uma resistência contra o status quo que tem sido

mantido com o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, o que manteve as

desvantagens quanto ao acesso à escolarização e ao mercado de trabalho, visando à

manutenção de classes, limitando e delimitando o espaço de ascensão da população

negra.

Interessante notar que as estatísticas do IPEA – Instituto de Estatística Econômica

Aplicada – e do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – apontam

que, mesmo após 121 anos da abolição da população negra no Brasil, ocorrida em 1888,

as desvantagens do grupo negro só têm aumentado em relação ao grupo branco, o que

se reflete nos índices de desenvolvimento humano.

No início do ano de 2002, setenta por cento dos coralistas do Yahwéh iniciam curso na

graduação; inclusive eu, que sou fruto desse movimento de lideranças negras de

Piracicaba. Nesse mesmo ano, ingressei no curso de Licenciatura Habilitação em

Química na UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba. Em meados de julho de

2002, participei da construção do Núcleo AUÊ – Programa de Apoio aos Estudantes

Universitários/as Negros/as de Piracicaba, que realizou encontros, conferências e

grupo de estudos, visando ao suporte à juventude negra universitária, à compreensão

Page 18: Tese Quilombo

17

das consequências do mito da democracia racial brasileira, à invisibilidade dos

problemas do racismo e seus impactos para a população negra e para a sociedade em

geral.

Em agosto de 2003, com base no censo étnico-racial, foi realizado pelo AUÊ-

Levantamento Estatístico e Mapeamento dos/as Universitários/as Negros/as

(LEMUN) nas Universidades e Faculdades públicas e privadas do município de

Piracicaba, que teve como objetivo o mapeamento dos universitários com base na

identidade étnico-racial, origem familiar, trajetória e rendimento escolar, e a

compreensão deles sobre a política de ação afirmativa, cota para a população negra na

universidade e no mercado de trabalho.

Os resultados desse levantamento5 evidenciaram a restrita presença das pessoas

negras nos cursos superiores e a grande maioria está nos cursos considerados, por

alguns setores da sociedade, de menos prestígio e menor possibilidade de ascensão

social. A comunidade estudantil universitária negra era oriunda de escolas públicas,

apresentavam defasagem educacional, a renda familiar e o nível de escolaridade dos

pais eram mais baixos que dos pais dos universitários brancos. Havia um alto índice de

evasão dos cursos por falta de recursos financeiros que subsidiassem as mensalidades

e os custos mínimos para a manutenção dos cursos de tempo integral.

O grupo mobilizou-se no sentido de promover ações emergentes e encaminhar

propostas que tornassem viáveis a inserção e a permanência de alunos

afrodescendentes na universidade. Tais ações, por meio de um programa de apoio,

5Levantamento realizado durante o mês de agosto de 2003 pelo grupo AUÊ-LEMUM, com o objetivo de

quantificar os universitários negros/as em cinco Instituições Educacionais: três universidades e duas

faculdades do município de Piracicaba. Aponto a quantidade geral de alunos matriculados, e especifico o

número total de universitários/as negros/as matriculados: (1) Faculdade de Odontologia - FOP-

UNICAMP - 320 matriculados - zero aluno/a negro/a; (2) Escola Superior de Agricultura Luiz de

Queiroz, Universidade de São Paulo - USP - 1639 matriculados - seis negros/as; (3) Escola de Engenharia

de Piracicaba - EEP de 1877 matriculados, 11 negros/as; (4) Universidade Metodista de Piracicaba-

UNIMEP de 9590 matriculados, 278 negros/as; (5) Faculdade Integrada Maria Imaculada – FMI, 322

matriculados, 24 negros/as.

Page 19: Tese Quilombo

18

buscavam a tomada de consciência dos determinantes da baixa autoestima, da

defasagem educacional, do despreparo profissional e psicológico ocasionados pelos

estigmas e estereótipos atribuídos socialmente.

Em 2004, ainda como graduanda, participei do Núcleo de Estudos e Programas em

Educação Popular (NEPEP/UNIMEP) na Universidade Metodista de Piracicaba, a

convite da Profa. Dra. Márcia Aparecida Lima Vieira - Coordenação Do ALFASOL. O

núcleo propiciava um espaço de leituras, estudos e discussões de temas relacionados à

Educação Popular de Jovens e Adultos, Alfabetização, entre outros. Pautávamos no

referencial teórico de Paulo Freire e autores que discutiam educação libertária e

emancipadora. Num segundo momento, tive a oportunidade de ser bolsista e realizar

estudos, escrever artigos e apresentá-los em simpósios, encontros e congressos

sobre as nossas práticas pedagógicas, a partir da extensão universitária no projeto

ALFASOL-Alfabetização Solidária Nacional, sob a Coordenação Pedagógica da

professora Aurora Joly Penna Mariotti e Coordenação Geral do professor Francisco

Negrini Romero. Na função de coordenação setorial do programa, realizava o

acompanhamento e formação continuada nas visitas mensais em municípios do Estado

do Piauí e Espírito Santo, junto aos alfabetizadores, coordenadores e monitores do

ALFASOL. Eram momentos de reflexões e discussões de textos variados acerca dos

temas: Alfabetização, Educação e Sociedade e Práticas Pedagógicas.

O contexto social nos municípios do Estado do Piauí e do Espírito Santo, nos quais

desenvolvi o trabalho de avaliação e acompanhamento pedagógico, é notadamente

marcado pela pobreza e marginalização social, principalmente referindo-se aos

municípios do Piauí. Foi possível a troca de conhecimento e a discussão sobre a

importância do saber popular. No contato com a realidade social das comunidades do

nordeste, tive consciência de que alfabetizandos e alfabetizadores estavam inseridos

num contexto social, e são dotados de história, cultura e de um modo próprio de viver.

Em 2005, participei do grupo de estudo vinculado à Faculdade de Ciências Humanas da

UNIMEP, denominado África e Educação Popular, sob a Orientação e Coordenação da

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19

Profa. Dra. Márcia Aparecida Lima Vieira, realizando leitura analítica das Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de

História e Cultura Afro-brasileira. Os estudos culminaram em apresentação de artigo

na 3ª Mostra Acadêmica com o tema: “Uma reflexão sobre as implicações das

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para

o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira” e palestra para o Curso de Letras da

mesma universidade com o tema: “A Educação e as Relações Étnico-Raciais”.

Ainda no ano de 2006, tive os primeiros contatos com as Comunidades Tradicionais

Quilombolas do Vale do Ribeira, em especial com o Quilombo de Ivaporunduva, que me

recebeu e me acolheu como participante das suas lutas e conquistas. Na primeira

visita, vivenciei importantes discussões e decisões sobre o projeto da construção de

uma ponte que provavelmente mudará a vida da comunidade, processo que abordarei

mais adiante.

Em 2007, com a presença constante na comunidade de Ivaporunduva, deparei-me com

uma das preocupações das mulheres negras quilombolas rurais, partilhada pelas

mulheres urbanas, conforme pudemos comprovar em outros estudos6, qual seja,

atender ao padrão de beleza imposto pela mídia por meio da televisão (novelas,

comerciais, filmes etc.), revistas e outros meios de comunicação que assessoram o

interesse das empresas de incentivarem o consumo, sem compromisso com a

responsabilidade social.

Observamos nesses estudos que as mulheres negras contemporâneas rurais e urbanas

carregam as implicações psicológicas decorrentes da dominação do colonizador.

Segundo Gomes, “Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que,

historicamente, ensina o negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso

6Em maio de 2010 – Oficina: Beleza na cabeça com saúde integral: a naturalidade da beleza negra – III-

Encontro do ministério AA- Afro Cristão 2010 – 3ª região – Tema: Gênero e Negritude. Em agosto de

2008, participei da Oficina Educação, Identidade, Autoestima e Responsabilidade Social com mulheres

negras de São Paulo. Parceria com a liderança feminina do ministério AA-Afro-Ações Afirmativas na

Faculdade Metodista localizada no bairro Liberdade – São Paulo-SP. Em julho/2006 e janeiro/2007,

ministrei, como facilitadora da Oficina, o tema: Identidade, Autoestima e Responsabilidade Social com

mulheres – Espaço BIA – Beleza Identidade e Autoestima – Piracicaba.

Page 21: Tese Quilombo

20

negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros.” (2003; p.

171). Esses estereótipos, historicamente construídos, podem ser desconstruídos. A

educação é uma forte aliada para a efetivação da valorização da diversidade cultural,

por meio de discussões acerca das distorções históricas, às quais a população negra

esteve submetida em função da discriminação racial, bem como no resgate da

contribuição da população africana e descendentes, para as áreas social, econômica e

política, na História do Brasil. É fundamental o entendimento de que a pessoa negra

não foi escrava, mas escravizada, explicitando assim a condição do opressor, ou do

colonizador. Gomes atesta que:

O negro é o ponto de referência para a construção de identidade do

branco. Juntamente com o índio, o negro concretiza a nossa

sociedade, a nossa cultura, as nossas relações sociais, políticas e

econômica. A educação pode desenvolver uma pedagogia corporal que

destaque a riqueza da cultura negra inscrita no corpo, nas técnicas

corporais, nos estilos de penteados e nas vestimentas, as quais

também são transmitidas oralmente. São aprendizados da infância e

das adolescências. O corpo negro pode ser tomado como símbolo de

beleza, e não de inferioridade. Ele pode ser visto como corpo

guerreiro, belo, atuante presente na história do negro da diáspora, e

não como o corpo do escravo, servil, doente e acorrentado como

lamentavelmente nos é apresentado em muitos manuais didáticos do

ensino fundamental.

(GOMES, 2003, p. 6-7).

Em julho de 2007, realizei, em parceria com a liderança feminina do Quilombo de

Ivaporunduva no município de Eldorado-SP, uma Oficina de Penteados para as

mulheres da comunidade, tendo como fio condutor a temática: Educação, Identidade e

Autoestima da Mulher Quilombola. Essa oficina foi coordenada por três educadoras,

sendo duas pedagogas e uma química7. Utilizamos o tema Educação entendendo que,

objetivando o trabalho primordial da promoção cultural e construindo estratégias de

autoestima, estaríamos contemplando as diferenças grupais, desenvolvendo, assim, as

potencialidades humanas e culturais existentes no grupo de mulheres negras

quilombolas. Realizar esse trabalho teve uma função política, visto que negritude é

7 Educadoras: Viviane Luiz e Tânia Aparecida Américo – Pedagogas, e Márcia Cristina Américo –

licenciada em Química.

Page 22: Tese Quilombo

21

posicionamento. O corpo e o cabelo expressam a identidade étnica, valores e

posicionamento político-ideológico.

Nesse mesmo ano participei da construção coletiva da entidade CEPCE – Centro de

Educação, Profissionalização e Cultura Empreendedora, uma organização não

governamental sem fins lucrativos, junto com lideranças da Comunidade Quilombo de

Ivaporunduva. Minha participação na comunidade foi mais intensa, passei a trabalhar

na implantação e na regularização do projeto Educação, que envolveu a implantação

dos cursos de graduação - EAD (Educação a Distância) da Universidade Metodista de

São Paulo. Após a implantação do CEPCE e do Polo EAD-Eldorado, criamos o núcleo

PAUQ – Programa de Apoio aos Universitários Quilombolas do Vale do Ribeira, de cuja

gestão sou colaboradora. O PAUQ tem como foco criar meios de valorizar os

conhecimentos tradicionais quilombolas, contribuindo com a formação profissional e a

interação entre pessoas das áreas rurais e urbanas. Objetiva-se evitar o êxodo rural.

A partir de então, não deixei de participar da vida desta comunidade.

O discurso do colonizador ainda prevalece. Um dos posicionamentos políticos da

comunidade negra é o de não abrir mão de sua própria cultura e identidade étnica.

Essa população é provida de conhecimento sobre sua formação e as transformações

do seu processo histórico. No entanto, durante muito tempo a história da formação

do povo brasileiro foi descrita por uma única visão, em função de uma classe e seus

interesses e valores, atrelada à relação de poder. Essa história “única” criou

estereótipos e subjugou a dignidade, história, cultura e identidade de um povo. Ainda

nos dias atuais, encontramos histórias em que comunidade negra não se reconhece na

própria história, problema ocasionado pela história única.

Por muito tempo o população negra observou a história de seus antepassados contada

de forma equivocada, e a escravização da população negra e indígena foi sendo

naturalizada. Esses povos têm sido retratados nas seguintes condições: amarrados,

presos em cordas, submissos e espancados e, quando muito, o povo africano vem

associado a uma conotação deturpada e exótica da África e dos africanos. Começar a

Page 23: Tese Quilombo

22

história da população negra brasileira pela sua origem, sem dúvida alguma é dar o

direito à infância negra e à população brasileira de conhecer o outro lado da história,

que mostre tanto a luta e a resistência desse povo ao sistema escravista, como suas

contribuições à produção cultural, artística e econômica do nosso país. Falar da

origem desse povo é considerar as várias áfricas e suas riquezas, corrigindo a

homogeneidade e unificação – forma como os manuais didáticos apresentam o

continente Africano.

Nesta pesquisa, o meu olhar se voltará às descrições e narrativas da história vista

debaixo, ou seja, a história narrada a partir do ponto de vista de homens e mulheres

que compõem a população negra brasileira – a comunidade quilombola de Ivaporunduva.

O que faço neste trabalho, portanto, é transitar pelos espaços da comunidade

Ivaporunduva e escrever a sua história a partir das narrativas dos membros que a

compõem, e que fazem parte integrante de um contexto fundamental da história da

população negra brasileira. Busco articular a discussão dessa comunidade de forma

mais ampla, por essa comunidade se inserir na luta e reivindicações do movimento

negro brasileiro, e, de certa forma, dar origem a ela.

Sharpe (1992, p. 40) em seu ensaio, A História Vista “de baixo”, pontua que “O

interesse na história social e econômica mais ampla desenvolveu-se no século

dezenove, mas o principal tema da história continuou sendo a revelação das opiniões

políticas da elite.” O conceito da história vista “de baixo”8 tem sido utilizado durante

as duas ultimas décadas por historiadores de diferentes países, posição ideológica,

tradições intelectuais também diversas; abrangendo variados períodos, países e

8 A história vista “de baixo” teve origem com os historiadores marxistas ingleses “que escreveram

dentro da tradição marxista ou tradicional da história britânica do trabalho”. (SHARPE, 1992, p. 44). A

fundamentação histórica para essa linha de pensamento foi descrita por Eric Hobsbawm (tornou-se

aparente, em torno de 1789), que ele chamou de “história das pessoas comuns”, declarando que a história

das pessoas comuns como um campo especial de estudo, “tem início com a história dos movimentos sociais

de massa no século dezoito [...]. Para o marxista, ou comumente, o socialista, o interesse na história das

pessoas comuns desenvolveu-se com o crescimento do movimento trabalhista.” (SHARPE, 1992, p. 45).

Page 24: Tese Quilombo

23

histórias. Na formação desse conceito, foram buscadas as contribuições da tecnologia

e das teorias antropológicas, porém

A importância da história vista “de baixo” é mais profunda do que

apenas propiciar aos historiadores uma oportunidade para mostrar

que eles podem ser imaginativos e inovadores. Ela proporciona

também um meio para reintegrar sua própria história aos grupos

sociais que podem ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinham

conhecimento da existência de sua história.

(Ibid, p. 59).

Ao trazer a história de vida da comunidade tradicional quilombola nesses textos, a

partir de narrativas das pessoas que a compõem, pretendo apresentar as

“experiências históricas” de “homens e mulheres, frequentemente ignorada(s),

tacitamente aceita(s) ou mencionada(s) apenas de passagem na principal corrente

histórica.” (SHARPE, 1992, p. 41). Esse mesmo autor menciona que grande parte da

história ensinada nas universidades, em toda parte do mundo, “ainda considera a

experiência da massa do povo no passado como inacessível ou sem importância; não a

considera um problema histórico; ou, no máximo, considera as pessoas comuns como

„um dos problemas com que o governo tinha que lidar‟.” (Ibid, p. 41).

A história vista “de baixo” é compreendida por dois pontos fundamentais: primeiro,

“servir como um corretivo à história da elite”, e o segundo ponto é que sua abordagem

alternativa “abre possibilidade de uma síntese mais rica da compreensão histórica, de

uma fusão da história de experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos

tipos mais tradicionais de história.” (Ibid, p. 53-54).

A partir da história vista “de baixo”, comprova-se que as histórias de certos setores

da população, nesse caso os marginalizados, inferiorizados pelo sistema econômico,

político e social no qual estão inseridos, podem ser descobertas. Para trazer à tona

essas histórias, podem ser utilizados documentos oficiais, semioficiais, oriundos da

oralidade, na construção das memórias para :

Page 25: Tese Quilombo

24

[...] Prover aqueles que a(s) escrevem ou lêem de um sentido de

identidade, de um sentido de sua origem. Em um nível mais amplo, este

pode tomar a forma do papel da história, embora fazendo parte da

cultura nacional, na formação de uma identidade nacional. A história

vista “de baixo” pode desempenhar um papel importante neste

processo, recordando-nos que nossa identidade não foi estruturada

apenas por monarcas, primeiros-ministros ou generais.

(SHARPE, 1992, p. 60).

Reconstruir a história da Comunidade Tradicional Quilombo de Ivaporunduva a partir

das memórias dos quilombolas sobre seu passado, seu trabalho, seus confrontos e

resistências para permanecerem no território, sua organização familiar, seus modos

de pensar, suas críticas em relação ao sistema econômico, político e social no qual

foram e continuam inseridos, implica em não dissociar todo esse contexto, da

estrutura e poder social mais amplos. Sharpe (1992) conclui que “a história vista “de

baixo” deve ser ajustada às concepções mais amplas da história” e ao se “ignorar esse

ponto, ao se tratar da história vista “de baixo” ou de qualquer tipo de história social,

é arriscar a emergência de uma intensa fragmentação da escrita da história.” (, p.54).

***

Page 26: Tese Quilombo

25

A proposta

Em 2008, novos rumos na vida: sem me afastar da Comunidade de Ivaporunduva,

comecei a me preparar para cursar o mestrado. O desejo era conhecer a história

dessa população com a qual tenho convivido desde 2006, agora de um modo

sistematizado, o que implicou em cada volta ao quilombo, buscar outros estudos.

Delinear os objetivos destes textos colocou-me diante dos impasses da escolha. O

estudo que tenho realizado sobre a história da construção e fixação da população

negra escravizada no Brasil aponta que essa população e gerações pós-abolição,

estavam em desvantagens com relação aos outros grupos sociais. Ao fim do regime

escravocrata, pós-abolição, a sociedade entra em transição, submetida às relações

sociais de produção do capitalismo, porém, a estrutura social racista só contribuiu

para aumentar as desvantagens sociais, políticas e econômicas historicamente

acumuladas. Nos dias atuais, os estudos baseados nos levantamentos do IBGE -

Instituto Brasileiro de Geografia e Estáticas e pesquisas do IPEA - Instituto de

Estatística Econômica Aplicada 9 apontam que a população negra vive um ciclo vicioso

de acúmulos de desvantagens.

Alguns pressupostos foram se delineando durante os estudos. A tentativa de nomeá-

los mostrou que as relações entre eles são indissociáveis: a) o processo de

aquilombamento é histórico e dialético, há um ciclo de desvantagens acumulado

durante o processo histórico da formação da população negra brasileira, e é nesse

contexto que a comunidade negra rural agroflorestal Quilombo de Ivaporunduva está

inserida; b) continuar a viver no território supõe constantes embates, no passado com

o poder dos fazendeiros, atualmente com os grandes empreendimentos de barragens

para as hidroelétricas e c) a luta pela sobrevivência e pela posse da terra, por meio da

9 Ler em: THEODORO, Mário (Org.), JACCOUD, Luciana; OSÓRIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei.

As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição.Brasília IPEA-

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2008. HENRIQUES, Ricardo. "Desigualdade Racial no Brasil:

Evolução das Condições de Vida na Década de 90". Texto para Discussão, nº 807, Brasília, IPEA, 2001.

HASENBALG, Carlos e SILVA, Nelson do Valle. Relações Raciais no Brasil Contemporâneo. Rio de

Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992.

Page 27: Tese Quilombo

26

participação no Movimento Nacional Quilombola e de outros movimentos sociais

rurais, assim como as relações que mantêm com outras organizações que os apoiam em

iniciativas e propostas de geração de renda e de desenvolvimento social e econômicos,

são processos educativos.

Assumo o termo “Educação” como um conceito amplo. Tomo os dizeres de Paiva (2011)

para justificar a inserção desses textos na esfera da Educação. Para o autor, a

educação ocorre nas relações com os outros, e é nessas relações que nós nos

constituímos, ocorrendo, assim, “o desenvolvimento do ser homem”. O outro entra nas

relações, “enquanto elemento constitutivo do ser do aprendiz, que é ser com”. E não

como “agente externo” (Ibid, p. 1). Assumo o termo educação no âmbito do

“desenvolvimento do ser homem”. O desenvolvimento não pode ser compreendido como

“objeto de uma instituição particular, mas consequência de todas as relações, de todo

tipo de relações.” (Ibid, p. 2).

As relações que os quilombolas mantêm com outras organizações sociais e suas ações

sociais, políticas e econômicas, compreendidas como luta pela sobrevivência, são

práticas que os coloca em contato com sua história e os constituem como sujeitos

dessa história junto com o outro, e são compreendidas como práticas educativas.

Paiva (2011) explica que “ao estar em contato com o outro ocorre uma transformação

do nosso eu.” (Ibid, p. 4). Nestes termos, educação tem que ser tomada como um

processo essencialmente vital, a vida se pondo através dos contatos. Defino a

educação como “aprendizagem da forma de ser” (Ibid, p. 3). Sendo assim, utilizo

educação neste texto como a “primeira e fundamentalmente, ato do

educando/aprendiz” (Ibid, p. 4) nas relações com o outro.

Meu convívio com a comunidade negra quilombola de Ivaporunduva me permitiu colher

relatos de fontes genuínas, os descendentes de Africanos no Brasil, que a partir do

cultivo das memórias de seu povo, ao revisitarem a história do passado, vão

reconstruindo uma identidade. Pude, então, enquanto pesquisadora, evidenciar a

história da formação dessa população negra, que me remeteu ao movimento negro

Page 28: Tese Quilombo

27

brasileiro e me possibilitou entender o papel desses quilombolas e a relações que eles

têm estabelecido com a discussão mais ampla desse movimento social. Busquei nas

obras de autores negros e não negros, compreender a realidade das relações entre

etnias em nosso país. Portanto, a relevância desta pesquisa na esfera da educação,

como diz a autora Petronilha:

Se configura como interesse e esforço para travar conhecimento, na

perspectiva dos afro-brasileiros, da problemática sócio-econômica ,

étnico-racial que enfrentam, bem como de sua história, a partir das

vivências que têm sofrido e construído ao longo da participação dos

antepassados escravizados e de seus descendentes na vida da

sociedade brasileira.

(PETRONILHA, 2001, p. 165).

O que faço junto aos quilombolas é voltar ao passado e trazê-los como parte da

população brasileira, como um dos povos que constituem a nossa nação. Entendo que:

Ignorar a história dos povos indígenas, do povo negro, é estudar de

forma incompleta a história brasileira (...). Se a história ensinada na

escola souber contemplar também a vida vivida no dia-a-dia dos

grupos menosprezados pela sociedade, então estaremos ensinando e

aprendendo a história brasileira integralmente realizada.

(Ibid, p. 161).

Consciente de que não daria conta de abordar todos os aspectos com a profundidade

que merecem, fiz uma escolha entre muitas outras que poderiam ser realizadas.

Correndo o risco de fragmentar uma discussão muito mais ampla sobre a realidade da

população negra e da comunidade de Ivaporunduva, optei por começar. Todo começo

já é continuidade – não somos os primeiros a dizer, outros disseram. E ao final de um

texto há muito mais. Vamos ocupando lugares e construindo saberes, em um processo

histórico que é, portanto, movimento contínuo.

Ao me propor estudar, o que me parecia tão familiar se torna estranho. E é preciso

entranhar para que nasçam questões. Se por um lado, estar entre os quilombolas,

participar com eles de muitas das atividades que lhes pertencem, por tradição, não

me faz um deles, porque ocupamos lugares diferentes; por outro, reconheço que não é

Page 29: Tese Quilombo

28

possível um afastamento tal, que me isente da subjetividade no momento em que me

proponho a escrever sobre a vida deles, sobre sua história e suas lutas. Além disso,

reconheço que é impossível parar o tempo, portanto, qualquer texto representa

sempre um recorte no tempo, no espaço, na história, e nunca uma verdade estagnada.

O passado se encontra no presente que já é o começo do futuro.

O autor Vagner Gonçalves da Silva (2000), no seu livro, resultado de sua tese de

doutorado, “O antropólogo e sua Magia”, desenvolveu pesquisas etnográficas em

comunidades religiosas afro-brasileiras, a partir da observação participante. Ele

descreve seus diálogos com vários antropólogos que o auxiliam na reflexão sobre o

olhar deles para além do que foi registrado em suas etnografias, nas pesquisas de

campo realizadas e concluídas: os caminhos que percorreram as experiências e

expectativas frustradas que se dão no trabalho etnográfico

Sendo necessário o distanciamento para transformar as experiências e memórias

compartilhadas em “dados objetivos” ou “depoimentos citáveis”, o autor aponta que no

trabalho de campo é fundamental ao pesquisador, mais do que se “aproximar” para

entender o discurso dos interlocutores ou observar suas ações, “distanciar-se” para

estranhá-los e também se estranhar para ter uma visão externa, do “ponto de vista

antropológico” (Ibid, p. 71, aspas nossas). Não somos só observadores. Somos

observados.

Na observação participante é importante considerar, enfim, que o

antropólogo é observado também pelo grupo, que geralmente procura

“socializá-lo” ensinando-lhe os códigos de conduta e a forma mais

adequada, do ponto de vista do grupo, de realizar dessa participação e

observação.

(Ibid, p. 71, aspas do autor).

Não me pareceu coerente escrever esta dissertação cujos capítulos tivessem que ser

lidos rigorosamente em uma sequência para que o leitor tivesse acesso aos meus

estudos, com certeza, inconclusos. Mas é preciso que cada um dos textos responda a

uma questão: o que não responde a nenhuma questão é desprovido de sentido, ensina

Page 30: Tese Quilombo

29

Bakhtin (1992). Mas ele não fala de perguntas cujas respostas estejam prontas e

definitivas; para esse autor, não há possibilidade de estabelecer de uma vez por

todas, todos os sentidos da vida, na temporalidade.

No Primeiro Texto apresento o Quilombo de Ivaporunduva: os conflitos econômicos e

sociopolíticos em defesa do território para a manutenção da vida. O Segundo Texto

aborda os modos de vida dos membros dessa comunidade e as relações que se dão no

cotidiano. Já o Terceiro Texto traz fragmentos da história dessa comunidade nas

vozes dos próprios quilombolas. Os quilombolas do Quilombo de Ivaporunduva estão,

neste momento histórico, em fase de reorganização social, política e econômica e o

Quarto Texto refere-se a esse processo. O Quinto e último Texto é uma revisão

bibliográfica - tenho consciência de que ainda restrita e incompleta - da formação da

população negra no Brasil. De certo que muitos autores importantes deixaram de ser

contemplados.

***

A forma de organização dos quilombolas que podemos apreender através da história e

dos conflitos por nós captados na convivência com essa comunidade, diz respeito às

relações sociais construídas. E, para o pensamento marxista, esta materialidade

histórica pode ser compreendida a partir das análises empreendidas sobre uma

categoria considerada central: o trabalho como atividade vital - tipo de atividade

exercida, ou seja, a atividade pela qual a vida é garantida.

Um primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto, de

toda história (...) [é] que os homens devem estar em condições de

poder viver a fim de “fazer a história”. Mas, para viver, é necessário,

antes de mais nada, beber, comer, ter um teto onde se abrigar,

vestir-se etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios

que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria

vida material; trata-se de um fato histórico; de uma condição

fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como há

milhares de anos, executar, dia a dia, hora a hora, a fim de manter os

homens vivos.

(MARX; ENGELS, 1984, p. 33).

Page 31: Tese Quilombo

30

A contribuição do Método Materialismo Histórico e Dialético, na tarefa de

compreender o modo como os quilombolas dessa comunidade significam as suas

relações com o trabalho e a renda nas condições concretas de vida social, para o

desenvolvimento local, diz respeito à necessidade de descobrir, nos fenômenos, na

realidade empírica o elemento mais simples (o empírico) para chegar à categoria

síntese de múltiplas determinações (concreto pensado). Significa que é possível

apreender a realidade, partindo das mais simples manifestações, debruçamo-nos

sobre elas e elaborarmos abstrações.

Para reconhecer o movimento da história de uma comunidade quilombola, seus

conflitos e problemas teóricos e práticos, foi e é necessário manter contato regular e

bem próximo. O que faço é acompanhar de perto suas atividades, absorver valores e

sentimentos, observando, registrando e videogravando o que fazem e dizem, em uma

atitude que pretende ser de quem lá está, mas de lá não é.

Em sua obra “Nos bastidores da pesquisa de Campo”, o antropólogo Gonçalves da Silva

(1997) esclarece que:

[...] na antropologia brasileira, o fato de os antropólogos pesquisarem

grupos pertencentes a sua própria sociedade coloca questões

específicas para a relação entre pesquisador e pesquisado, pois se,

por um lado, „pesquisamos a nós mesmos‟, por outro, não se pode

esquecer a distância que muitas vezes separa as camadas

intelectualizadas dos grupos socialmente excluídos que a antropologia

tem estudado: índios, negros, populações rurais10.

Acima falei dos impasses da escolha. Foi preciso que fosse previsto um tempo – que o

programa exige; um modo de olhar para o problema – as questões teóricas; a opção

por um caminho que eu não desejava que fosse outro - a pesquisa de campo, estar

na/com a comunidade; realizar observações menos espontâneas e mais planejadas;

organizar entrevistas, providenciar os instrumentos das observações e das

10 SILVA, Vagner Gonçalves. Nos Bastidores da Pesquisa de Campo, 1997. In: NAU-Núcleo de

Antropologia Urbana da USP. Disponível em: <http://www.n-a-u.org/nomedoarquivo.html>. Acesso em: 08

ago. 2010.

Page 32: Tese Quilombo

31

entrevistas: o caderno de campo, o vídeo e audiogravadas e transcritas, as

fotografias, as visitas com horas marcadas; a participação atenta nos eventos, festas,

comemorações, manifestações políticas. Não se trata de simplesmente olhar e

descrever – não basta, mas destacar aspectos do que se olha, prestar atenção para

captar as contradições, as relações, o movimento de acordo com o objetivo da

pesquisa.

As observações e entrevistas a membros de comunidades quilombolas apontaram a

significação e resignificação dos fatos históricos que constituíram a comunidade. A

convivência nela e com ela possibilitou o desenvolvimento das anotações em caderno

de campo e entrevistas com as lideranças da comunidade, famílias e jovens, políticos,

sobre os indícios dos significados que seus membros dão às relações em suas

condições concretas de vida social, para identificar: a) as relações políticas,

econômicas e sociais na qual a população quilombola está inserida.

Nas transcrições das entrevistas foram mantidos os nomes originais dos quilombolas

entrevistados, uma vez obtida a autorização para divulgação. Procurou-se, também,

transcrever as falas com a maior fidelidade possível aos modos de falar das pessoas.

Trazer para os textos a história da formação do quilombo de Ivaporunduva, a partir

das vozes e memórias dos próprios quilombolas, exigiu recorrer às contribuições de

Marcuschi (2001) no que ele diz sobre a retextualização, que se refere, no caso deste

texto, à passagem da oralidade para a escrita. O autor coloca que: “para se dizer de

outro modo, em outra modalidade ou em outro gênero, o que foi dito ou escrito por

alguém, devo inevitavelmente compreender o que esse alguém disse ou quis dizer”

(Ibid, p. 47), caso contrário, afirma o autor, é provável ocorrer muitos problemas no

plano da coerência no processo de retextualização. Para ele, a retextualização não é

um processo mecânico nem natural. Refere-se a um trabalho complexo “que interfere

tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem

compreendidos da relação oralidade-escrita” (Ibid, p. 46).

Page 33: Tese Quilombo

32

De acordo com o autor, a proposta deste trabalho não seria propor “uma passagem de

um texto supostamente „descontrolado e caótico‟ (o texto falado) para outro

„controlado e bem-formatado‟ (o texto escrito).” (Ibid, p. 47, grifos do autor). Ele

pontua que o texto oral se encontra em ordem em sua formulação, sem problemas de

compreensão, e na passagem do texto oral para a escrita ele receberá interferências

“mais ou menos acentuadas”, porém não significa que a fala está desorganizada.

“Portanto, a passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é

a passagem de uma ordem para outra ordem.“ (Ibid, p. 47, itálico do autor).

Para se utilizar a retextualização com maior fidelidade possível aos modos de falar,

Marcuschi (2001) nos ensina que “entre oralidade e escrita não existe diferenças

quanto aos conhecimentos que podem ser por elas transmitidos ou gerados” (Ibid, p.

47). Portanto, ao entrarmos em contato com a população quilombola de Ivaporunduva e

suas expressões culturais, foi fundamental a compreensão de que a “fala e escrita não

são dois modos qualitativamente diversos de conhecer ou dar a conhecer.” (Ibid, p.

47).

Toda transcrição é uma espécie de adaptação, e, nesse processo, ocorrem perdas,

como a perda ou substituição de palavras. Os aspectos gestuais e mímicos também

desaparecem. Existem, porém, transcrições que podem ser consideradas um primeiro

formato de retextualização, ao se observar que introduzem pontuações e eliminam

hesitações, apresentam interferência “que podemos designar como uma idealização da

língua pelo molde da escrita. Por trás desta atitude acha-se a ideia de que não se

escreve como se pronuncia.” (Ibid, p. 52).

Ainda esclarecendo do que se trata a retextualização, Marcuschi (2001) coloca que “a

transcodificação é a passagem do sonoro para o gráfico e a adaptação já é uma

transformação na perspectiva de uma das modalidades e que aqui chamaremos

sistematicamente de retextualização.” (Ibid, p. 52, grifo do autor).

Page 34: Tese Quilombo

33

O fluxo dos processos de retextualização adotado nesta pesquisa passa por um

conjunto de ações, considerado pelo autor como Fluxo de ações11, que inicia na

produção oral original – texto base perpassando pela simples transcrição – texto

transcodificado (aqui ainda não ocorre uma transformação com base em operações

mais complexas), que é chamado de retextualização num segundo momento. A

transcrição não deve interferir na produção, deve evitar pontuação, inserções,

qualquer tipo de eliminação ou idealização até onde for possível, por outro lado,

deveriam ser indicados os movimentos do corpo, as marcas do sorriso etc.. Sabemos,

porém, que nesse processo ocorrem várias mudanças, incluindo as perdas em relação

ao texto original. Ao se chegar à produção escrita – texto final - as transformações

deverão ter menos interferência possível em todo o processo. A compreensão está

situada na passagem da representação oral para a transcodificação, que repercute

diretamente no texto final. O autor alerta que “o fato é que sempre transcrevemos

uma compreensão situada, pois não existe uma compreensão natural” (Ibid, p. 73).

Para os leitores interessados em ter acesso à fala original dos quilombolas foram

selecionados trechos vídeo e audiogravados, que se encontram em um CD ROM anexo

a este texto. Com isso, tento diminuir as perdas que sem dúvida ocorreram no

processo de retextualização, entre elas: os silêncios, as marcas do sorriso, os gestos

e os movimentos corporais dos entrevistados que não aparecem nos textos.

Para realizar o trabalho de campo permaneci no Quilombo de Ivaporunduva entre

Março de 2009 e Julho de 2010, por oito períodos de tempo, aproximadamente 15

dias em cada um deles. Para compor os registros e posteriormente organizá-los foram

realizadas visitas a 15 famílias, com as quais realizei entrevistas semiestruturadas12.

Todas foram gravadas em vídeo ou audiogravadas e transcritas. Fiz uma escolha para

tais entrevistas:

11 Ver o Fluxo de Processos de retextualização no Diagrama 1: Fluxo das ações (MARCUSCHI, 2001,

p.72) 12 Foram entrevistados: as três pessoas mais idosas; dois líderes mais antigos; cinco líderes jovens; sete

famílias, no total de 22 entrevistas.

Page 35: Tese Quilombo

34

a) as pessoas mais velhas do quilombo que participaram por mais tempo da história

dele e das relações que os constituíram no passado – constituição da subjetividade na

situação concreta de vida no quilombo. Destaco aqui Dona Arcília Antônia da Silva, a

senhora mais velha do quilombo, agora com 92 anos, moradora do Corgo Grande;

b) os dois líderes mais antigos do Quilombo de Ivaporunduva: atuantes e influentes

nas discussões das políticas nacional, regional e local. Iniciaram na militância e

discussão sobre a temática quilombola no Brasil desde anos 8013. A escolha por essas

duas lideranças foi no sentido de entender a história em movimento da formação

política social da comunidade até os dias atuais;

c) os líderes jovens14, membros descendentes dos principais troncos familiares que

originaram Ivaporunduva. São eles: Furquim, Pupo, Marinho, Pedroso, Meira, Rodrigues

e Moraes. As entrevistas com a liderança jovem tiveram o objetivo de captar indícios

das relações históricas estabelecidas no território, e que continuam em movimento.

Por exemplo, os significados que os jovens atribuem ao trabalho para geração de

renda no território. Essa é uma questão em constante transformação.

Algumas entrevistas foram realizadas nas roças, quando então acompanhei o dia de

trabalho de algumas famílias. Outras entrevistas foram feitas nas casas dos

moradores. Trago relatos de uma palestra proferida pelos quilombolas para

professores visitantes, que foi seguida por um debate no programa do

Ecoetnoturismo que é uma atividade de base comunitária desenvolvida no quilombo

13 Benedito Alves - Liderança Quilombola; Vice Presidente do Comitê de Bacia Geográfica do Rio Ribeira

de Iguape, representantes do MAB e do Comitê Nacional Quilombola, José Rodrigues – Liderança

Quilombola; Vereador Municipal de Eldorado-SP e Representante do MAB e do Comitê Nacional

Quilombo. 14Oriel Rodrigues Moraes – Liderança quilombola - Conselheiro - Conselho Nacional Desenvolvimento Rural

Sustentável– (CONDRAF), Membro - Conselho Curador da Fundação Cultural Palmares; Membro – Comitê

Permanente de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF); Membro Coordenação Nacional de

Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas - (CONAQ), Denildo Rodrigues – Liderança

quilombola- representante da direção do MAB e do Comitê Nacional Quilombo, as famílias que vivem na

comunidade, (idosos, adultos e jovens), Laudessandro Marinho Silva – Associação Quilombo de

Ivaporunduva; Ivonete Alves da Silva Pupo - Liderança feminina – Associação Quilombo de Ivaporunduva,

Cristiano Furquim- Associação Quilombo de Ivaporunduva

Page 36: Tese Quilombo

35

como alternativa de geração de renda à população quilombola, essa atividade é voltada

para grupos específicos de turistas: alunos de escola pública e privada, professores

etc. Em uma vivência de um grupo de professores na comunidade foi gravada a

palestra do Benedito Alves – Ditão e Denildo Rodrigues de Moraes – Bico, que

relataram a história e modo de vida dos quilombola nessa região. Esses relatos

estarão principalmente no Texto “Sou nascido e criado Aqui”.

Alguns membros da comunidade foram entrevistados apenas uma vez. Com outras

pessoas realizei mais de uma entrevista. No momento das transcrições das

entrevistas com os mais jovens, percebi a necessidade de buscar novamente

informações com as pessoas mais idosas da família, no sentido de acrescentar

informações ou mesmo, entendê-las melhor.

Na minha convivência com a comunidade Quilombo de Ivaporunduva por um período de

aproximadamente quatro anos, foi possível constituir relações de mútua confiança e

de certa intimidade, por meio de um processo lento e gradativo com as famílias –

muito antes do início desta etapa de hoje, como pesquisadora: nas festas, nas

reuniões de famílias, nos encontros religiosos, na praça no final da tarde, nos passeios

e caminhadas coletivas na mata e cachoeiras. Participação também em algumas das

ações externas conjuntas com movimentos sociais: discussões e reivindicações em

defesa do território das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, contra as

desapropriações de suas terras para dar lugar às barragens das hidroelétricas

visando a produção de energia para gerar riqueza às indústrias15.

Estar entre eles e com eles supõe um olhar mais cauteloso, um respeito ainda maior no

que se refere às tradições e regras formais e informais estabelecidas. Não ser

15 As manifestações ocorreram em diferentes lugares tais quais: no Ministério Público de São Paulo (27

de julho de 2007); no Ginásio Poli Esportivo Municipal Félix Balois Pupo - Eldorado-SP (09 de julho

2007); na Rodovia Régis Bittencourt-BR-116 (18/08/2009). Essas manifestações acontecem com

comunidades ameaçadas pelas barragens (caiçaras, indígenas, quilombolas e ribeirinhos) e organizações

que apóiam o movimento social, sendo eles: Partido dos Trabalhadores, Movimento dos Sem Terra,

Movimento Social Quilombola, EACONE - Equipe de Articulação das Comunidades Negras, MOAB -

Movimento dos Ameaçados por Barragens do Vale do Ribeira, MAB - Movimento dos Atingidos por

Barragens, ISA - Instituto Socioambiental, e Ambientalistas.

Page 37: Tese Quilombo

36

estranha à comunidade, pelo contrário, manter com ela uma relação mais próxima, foi

elemento constitutivo do caminho percorrido; dessa proximidade dependeu o tipo de

relação entre a pesquisadora e os moradores da comunidade.

A cerimônia de passagem com a liderança é o ponto de partida para tudo. Digo tudo,

porque sem autorização da liderança quem não é quilombola não consegue realizar

nada dentro da comunidade (não tira foto, não faz entrevista, não tem travessia - de

barco do Rio Ribeira de Iguape que dá acesso ao quilombo) e muito menos consegue

realizar pesquisas no ambiente interno do Quilombo de Ivaporunduva.

Contar o tempo de espera de pesquisadores que lá chegaram de surpresa para que

conseguissem uma conversa rápida de quinze minutos com uma liderança quilombola

era um dos entretenimentos principalmente da pequena juventude universitária da

comunidade. Lá, num dos bancos da praça da Vila, universitários observavam e

cronometravam o tempo de espera e a ansiedade do grupo de pesquisa para conseguir

um contato com as lideranças quilombolas e compor a pesquisa de campo, na grande

maioria dos casos, uma tentativa frustrada. Não conseguimos ser observadores sem

sermos observados. Não há um olhar sem ser olhado. “A compreensão não é lugar de

transparência e saturação do sentido, mas lugar de mediação. Compreende-se sempre

sob a forma do processo da palavra, reconstruindo, traduzindo o texto do outro”

(AMORIN, 2004, p. 48). Eu também sou o outro das pessoas com que convivo na

comunidade Ivaporanduva.

Observei um momento de grande frustração e desânimo de um grupo pesquisadores

que após seis horas de viagem, chegando ao Quilombo de Ivaporunduva lá não

encontraram a liderança. E afinal, contar com um retorno para aprovação da pesquisa

de campo ou para conseguir a entrevista não é algo nada animador16.

16 Não existe uma estrutura dentro da comunidade, com restaurantes, pensão, postos de cartões

telefônicos, espaço de acesso à Internet, farmácia, lojas, supermercados etc.. A política da pousada é

focada no atendimento de grupos numerosos, agendados com antecedência. A viagem até o quilombo é

cansativa, dependendo da distância do lugar de origem.

Page 38: Tese Quilombo

37

A autorização para realizar minha pesquisa foi concedida em Março de 2009 pelo

coordenador e vice-coordenador daquela gestão da Associação Quilombo de

Ivaporunduva: Ditão e Zé Rodrigues. Foram eles que deram início à discussão sobre a

posse legal do território do Quilombo de Ivaporunduva e dos quilombos do Vale do

Ribeira. Poder ouvir deles: “Você é da casa”, foi para mim uma declaração de quase

pertencimento à comunidade – de permissão. Olhar e ser olhado, presente. Senti

nessas palavras o peso da responsabilidade.

Surgiu novo desafio no momento em que me apresentei como pesquisadora: ter que me

distanciar de toda relação construída para uma reaproximação das pessoas e famílias

que são minhas amigas, que me recebem em suas casas e dividem os seus espaços e

intimidades comigo, na hora de dormir e de comer ao redor da taipa para escutar

muitas histórias e estórias. A mesma intimidade, mútua e recíproca, com que alguns

quilombolas foram recebidos em minha casa, em várias ocasiões.

Ao voltar para o quilombo em outro momento, agora como pesquisadora, para analisar

as relações que as pessoas quilombolas estabelecem com o território, fui tomada por

certo sentimento de culpa e forte constrangimento, pois eles haviam compartilhado

suas intimidades a uma pessoa amiga e não a uma pesquisadora, e eu sei muito bem

como eles se sentem quando são tratados como objetos/sujeitos de pesquisa - eu não

gosto de ser tratado como rato de laboratório – me disseram um dia. E afinal, de

fato, o assédio de pesquisadores só tem aumentado nos últimos anos.

Pareceu-me mais ético elaborar o tema abertamente com a liderança e as famílias, de

forma a deixar clara a convergência entre o interesse de meu trabalho e o da para

com o interesse da comunidade Quilombo de Ivaporunduva, que é: tornar a causa da

luta quilombola conhecida e respeitada no meio acadêmico.

As entrevistas são, na maioria das vezes, realizadas com as lideranças da associação

do Quilombo ou por indicação deles ou de outras pessoas responsáveis mais

diretamente pelas áreas específicas tais como: barragem, posse de terra, turismo,

agricultura comercial, artesanato, educação, saúde etc. A formação de lideranças se

Page 39: Tese Quilombo

38

dá no processo ao longo tempo aproveitando a vocação política de cada um na

interação com as atividades sociais e políticas, internas e externas, como os

movimentos pela defesa ao território.

Na verdade, esse projeto de formação de liderança, isso daí é um

processo, quando você vai pra um encontro assim, não vai só uma

pessoa tipo esses encontros essas caminhadas não vai só os adultos,

vai pai, vai mãe, vai criança, criança de colo, vai todo mundo, então ali

você está aprendendo e vai passando qual objetivo daquilo que a gente

está fazendo, a criança que está ali está sabendo o que está fazendo.

LAUDESSANDRO MARINHO DA SILVA – 26 anos. Palestra

realizada em 16 de janeiro de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

A liderança na comunidade Quilombo de Ivaporunduva é organizada, hierarquizada e

constituída pela dinâmica das relações entre seus membros. É bastante perceptível o

respeito das pessoas da comunidade com essa ordem hierárquica, principalmente em

momentos decisórios. O coordenador e vice-coordenador da Associação Quilombo de

Ivaporunduva respondem, junto à mesa diretora e esta junto à Assembléia, pelas

interferências que podem e não podem ocorrer na comunidade. Não é possível realizar

qualquer atividade sem o consentimento deles. Somos observadores e observados.

Page 40: Tese Quilombo

39

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: Musa, 2004.

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2001, p. 5.

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Revista Educação e Pesquisa, v. 29, n. 1. São Paulo, 2003.

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23, Rio de Janeiro, 2003.

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Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

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Aurélio Nogueira. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1984.

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THEODORO, Mário (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil

após 120 anos após a abolição. IPEA- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada,

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brasileiras. In: Kabenguele Munanga (org.). 2ª ed. Superando o racismo na escola.

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Diversidade, Brasília, 2005.

Page 41: Tese Quilombo

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história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da

Universidade Estadual Paulista, 1992.

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Núcleo de Antropologia Urbana da USP. Disponível via WWW no URL http://www.n-

a-u.org/nomedoarquivo.html. Capturado em 08/08/2010

SILVA, Vagner G. O antropólogo e sua Magia: Trabalho de Campo e Texto

Etnográfico nas Pesquisas Antropológicas sobre Religiões Afro-Brasileiras. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

Page 42: Tese Quilombo

41

O presente estudo, em forma de textos, pretende caracterizar a

vida dessa comunidade, sua evolução histórica e as suas práticas

sociais, captando e organizando os dados sobre a história e a

organização social/territorial desse quilombo. A tentativa é a de,

estando presente na comunidade e com a comunidade, buscar

indícios dos significados que seus membros dão às relações em suas

condições concretas de vida social. Tais indícios nos aproximam de

ações que essa população desenvolve por meio das lideranças ali

estabelecidas. Considero-as educativas.

Page 43: Tese Quilombo

42

PRIMEIRO TEXTO

VIM DE LONGE, VOU MAIS LONGE

Page 44: Tese Quilombo

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Vim de longe vou mais longe

Quem tem fé vai me esperar

Escrevendo numa conta

Pra junto a gente cobrar

No dia que já vem vindo

Que esse mundo vai virar

Noite e dia vem de longe

Branco e preto a trabalhar

E o dono senhor de tudo

Sentado mandando dar

E a gente fazendo conta

Pro dia que vai chegar

Marinheiro, marinheiro

Quero ver você no mar

Eu também sou marinheiro

Eu também sei governar

Madeira de dar em doido

Vai descer até quebrar

É a volta do cipó de arueira

No lombo de quem mandou dar

Vim de longo vou mais longe

Quem tem fé vai me esperar

Escrevendo numa conta

Pra junto a gente cobrar

No dia que já vem vindo

Que esse mundo vai virar

Noite e dia vem de longe

Branco e preto a trabalhar

E o dono senhor de tudo

Sentado mandando dar

E a gente fazendo conta

Pro dia que vai chegar

Marinheiro, marinheiro

Quero ver você no mar

Eu também sou marinheiro

Eu também sei governar

Madeira de dar em doido

Vai descer até quebrar

É a volta do cipó de arueira

No lombo de quem mandou dar

Arueira - Geraldo Vandré (1967)

Page 45: Tese Quilombo

44

O objetivo deste texto é a discussão mesmo de forma breve, desde a origem do

capitalismo europeu que subordinou o continente africano e o americano ao

escravismo, passando pelas características da escravidão oficializada no Brasil.

Passamos pela sociedade escravocrata e a relação de poder entre os senhores e a

população negra escravizada, apresentamos as estratégias de resistência negra por

meio das revoltas e rebeliões da população africana escravizada e seus descendentes.

O ponto fundamental da nossa apresentação é o processo de resistência negra que se

deu através do aquilombamento durante a escravidão até o evento da abolição,

período no qual o sistema econômico brasileiro está saindo do escravismo e

subordinando-se ao capitalismo monopolista e imperialista.

***

Uma questão pode ser levantada pelo leitor: por que um texto sobre o

desenvolvimento histórico do capitalismo e a formação da população negra no Brasil?

Por, pelo menos três motivos que, nesse momento, consigo vislumbrar. O primeiro diz

respeito à minha intenção de que esta dissertação seja material de estudo de alunos

das escolas brasileiras que não conhecem a história da formação das comunidades

quilombolas – um motivo pedagógico. O segundo motivo é a responsabilidade assumida

de entregar esta dissertação aos líderes da comunidade estudada e, a

contextualização histórica é sempre lembrada por eles – um motivo ético. O ultimo e

terceiro motivo refere-se à contextualização histórica – exigência do método,

portanto. Perceber que viemos de longe pode nos levar mais longe ainda,

parafraseando Geraldo Vandré.

***

Page 46: Tese Quilombo

45

Inicialmente, podemos dizer que o Quilombo de Ivaporunduva vive um dilema: tratar a

questão do desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, a manutenção das

tradições quilombolas. Dito de outra forma, num exemplo atual, o Quilombo se

beneficia da construção da Ponte sobre o Rio Ribeira de Iguape, que auxiliará no

escoamento de sua produção agrícola e, concomitantemente, é ameaçado pela

construção de quatro barragens (Hidrelétricas de Tijuco Alto, Funil, Batatal e Itaoca

ao longo do Rio Ribeira de Iguape), processos complexos de reconhecimento oficial e

posse da terra, pautada na Constituição Federal de 1988, nos artigos 68, 215 e 21617.

Essas questões são específicas do Quilombo Ivaporonduva? É possível encontrar

experiências semelhantes em outros locais? É possível tirar lições da história que

auxiliem uma compreensão mais ampla do processo deste Quilombo, com suas

especificidades? Para responder essa questão, acreditamos que um breve histórico do

desenvolvimento da sociedade capitalista nos auxilie.

Breve histórico do desenvolvimento capitalista

O modo de produção capitalista desenvolveu-se no interior do sistema feudal através

da chamada acumulação primitiva de capitais, “processo histórico que dissocia o

trabalhador dos meios de produção” (MARX, 2002, p. 828). Para que o capitalismo se

desenvolvesse foi preciso que houvesse um proprietário dos meios de produção

disposto a comprar a força de trabalho livre. Liberdade que se refere à libertação

dos vínculos com outras formas de produção seja escravista, servil ou mesmo artesã e

camponesa. A economia política burguesa afirma que esse processo se deu pela

capacidade de trabalho e de economia que parte da sociedade foi capaz, enquanto que

17 Artigo 68: “Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras

é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Garante

também os direitos culturais, definindo como responsabilidade do Estado a proteção das

“manifestações das culturas populares, indígenas e afrodescendentes”. O artigo 215 prevê que “o

Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de

outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. O Artigo 216, estabelece: “Ficam

tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos

quilombos”. Estes artigos representam avanço na História do país, no que se refere aos aspectos de

reconhecimento dos direitos culturais (art. 215 e 216) e direitos fundiários (art. 68) (MALCHER,

2006, p. 17).

Page 47: Tese Quilombo

46

a maior parte, desprovida dessa qualidade, ficou relegada a pobreza. Mas, a história

desse processo “foi inscrita a sangue e fogo nos anais da humanidade” (Ibid, p. 829),

Com o desenvolvimento do mercado mundial, por volta do século XIV e XV, a demanda

por produtos europeus cresceu sem que a capacidade de produção artesanal fosse

suficiente para supri-la. A burguesia mercantil estava diante de um dilema. Ou

destravava as amarras do mercantilismo ou definhar-se-ia. As revoluções burguesas

foram as respostas que essa contradição produziu, colocando em marcha o

desenvolvimento de novas forças produtivas. A burguesia comercial, que já detinha um

poder econômico considerável, passou a controlar o poder político e a liberar todas as

travas para o pleno desenvolvimento capitalista. Tomando como exemplo a Inglaterra,

Marx (2002) descreve o processo histórico original dessa acumulação primitiva.

Desde o fim do século XIV a servidão havia desaparecido enquanto relação social

predominante, preponderando no campo a pequena propriedade camponesa. Além da

expropriação das propriedades da Igreja Católica, dos senhores feudais e das

respectivas monarquias a nova massa de trabalhadores camponeses, servos e artesãos

precisavam se transformar em trabalhadores livres. A expulsão dos camponeses das

terras e o seu cercamento para pastagens para ovelhas, tendo a lã como principal

matéria prima da nascente indústria têxtil, foi o primeiro passo; a proibição das

corporações de ofício dos artesãos completou o processo, que durou alguns séculos.

Na medida em que esses trabalhadores eram expulsos do campo e chegavam às

cidades, eram recebidos com inúmeras leis que puniam a vadiagem, a desocupação e a

pobreza. Eram responsabilizados individualmente por um processo social que não

detinham o controle, como podemos ver nas palavras de Bernard de Mandeville,

filósofo e inspirador de Adam Smith.

Page 48: Tese Quilombo

47

Nos países onde a propriedade está bem protegida é mais fácil viver

sem dinheiro do que sem os pobres, pois quem faria o trabalho? [...]

Se não se deve deixar os pobres morrerem de fome, não se lhes deve

dar coisa alguma que lhes permita economizarem. Se esporadicamente

um indivíduo, à custa do trabalho e de privações, se eleva acima das

condições em que nasceu, ninguém lhe deve criar obstáculos: é

inegável que, para todo o indivíduo, para toda a família, o mais sábio é

praticar a frugalidade; mas é interesse de todas as nações ricas que a

maior parte dos pobres nunca fique desocupada e que, ao mesmo

tempo, gaste sempre tudo o que ganha. [...] Os que ganham sua vida

com o trabalho cotidiano só têm como estímulo, para prestar seus

serviços, suas necessidades. Por isso, é prudente mitigá-las, mas seria

loucura curá-las. A única coisa que pode tornar ativo o trabalhador é

um salário moderado. Um salário demasiadamente pequeno, segundo

temperamento do trabalhador, deprime-o ou desespera-o; um

demasiadamente grande torna-o insolente e preguiçoso. [...] Numa

nação livre onde se proíbe a escravatura, a riqueza mais segura é

constituída por um grande número de pobres laboriosos. Constituem

fonte inesgotável para o recrutamento da marinha e do exército; sem

eles, nada se poderia fruir nem poderiam ser explorados os produtos

de um país. Para tornar feliz a sociedade [isto é, os que não

trabalham] e para que o povo viva contente, mesmo em condições

miseráveis, é necessário que a maioria permaneça ignorante e pobre.

O saber aumenta e multiplica nossos desejos, e, quanto menos um

homem deseje, mais fácil é satisfazer suas necessidades.

(MANDEVILLE, 1728, p. 212, 213 e 328 apud MARX, 2002, p. 717-

718).

Nesse momento, e nessas condições descritas acima, esses trabalhadores, livres de

seus meios de produção de suas sobrevivências e proprietários somente de suas

forças de trabalho estavam à disposição da burguesia, agora, proprietária exclusiva

de novos meios de produção, a nascente indústria.

Não basta que haja, de um lado, condições de trabalho sob a forma de

capital e, de outro, seres humanos que nada têm para vender além de

sua força de trabalho. Tampouco basta forçá-los a se venderem

livremente. Ao progredir a produção capitalista, desenvolve-se uma

classe trabalhadora que, por educação, tradição e costume, aceita as

exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes

(Ibid, 2002, p. 851).

Dessa forma, todo um processo histórico naturaliza-se e a burguesia encontra

condições de explicar sua expropriação violenta como “direito natural” a propriedade,

a liberdade como valor supremo, a democracia (censitária, evidentemente) como

Page 49: Tese Quilombo

48

melhor forma de organização política, a igualdade perante as leis que elas mesmas

formulam, e, não menos importante, o indivíduo como centro do universo.

Evidentemente que esse processo produziu contradições, a nova classe operária

reage, organizando-se cada vez mais, seja através das associações de ajuda mútua,

nas greves, nos sindicatos, nos partidos políticos operários, chegando até mesmo a

uma organização internacional como foi a Associação Internacional dos Trabalhadores

– AIT.

Outro elemento fundamental da acumulação primitiva de capitais foi o processo de

colonização exercido diretamente pela Inglaterra, para ficarmos no exemplo

utilizado, como também pela dominação política sobre outros países. O Império

português foi um modelo disso, na medida em que ficou preso à velha concepção de

que a riqueza era sinônimo de acumulação de metais, não desenvolvendo a produção

real de riqueza através da exploração do trabalho, se submeteu ao desenvolvimento

capitalista inglês. A colonização foi fundamental sob diversos aspectos, propiciando o

controle sobre fontes de matérias primas, mercado consumidor e, através do domínio

sobre o continente africano, do mercado de tráfico negreiro.

A colonização do território brasileiro pelo Império português foi parte desse

processo. A escravização de indígenas e de africanos atendeu as necessidades da

acumulação primitiva de capitais, fornecendo produtos como pau-brasil, açúcar,

metais. Depois que a produção capitalista européia ampliou-se, houve necessidade de

transformar as fontes de matérias primas em mercados consumidores, o que

provocou, com todo apoio inglês, os processos de independência na América Latina.

De forma distinta, o capitalismo provocou, no Brasil e na África, um processo

semelhante ao europeu, a completa transformação da vida social dos povos originários,

que de distintas formas foram submetidos à dinâmica do capital. Os povos indígenas

no Brasil, após a escravização, foram praticamente dizimados, restando apenas

aldeias dispersas lutando por seus territórios. Os africanos foram submetidos a mais

cruel das conseqüências do desenvolvimento capitalista, tendo seu território

Page 50: Tese Quilombo

49

partilhado pelas potências européias, suas riquezas saqueadas e seu povo submetido a

inúmeras formas de exploração. No Brasil, a resistência indígena e negra a esse

processo se deu sob diversas formas, como por exemplo, no caso dos africanos, na

organização dos quilombos, que veremos a seguir.

Sociedade escravocrata e a população negra escravizada

Os muitos conflitos gerados no processo de formação e consolidação social, política e

econômica das comunidades tradicionais quilombolas na região do Vale do Ribeira –

considerada região de APA (Área de Preservação Ambiental), os quilombos da média

Ribeira (Eldorado e Iporanga) no Estado de São Paulo – vêm se arrastando há séculos

por causa das decisões políticas e econômicas tanto do século XVI – sistema colonial

escravista – quanto do século XXI – com o modelo econômico capitalista.

O autor Clóvis Moura, em suas obras Os quilombos e a rebelião negra (1981), A

História do Negro no Brasil e Resistência ao Escravismo (1993), faz uma abordagem

sobre da população negra escravizada na formação do regime escravista, e as

diversas resistências e revoltas em forma de aquilombamento, evidenciando uma

tendência política e estratégica por meio da tática de guerrilhas envolvidas com

outros movimentos políticos. Define a resistência negra como a negação do regime

escravocrata. A presença histórica da população negra no Brasil acompanhou e

participou ativamente da evolução histórica e social da nação brasileira. Trazidos nas

condições de pessoas escravizadas, os grupos étnicos africanos, durante quatro

séculos, construíram a economia e riqueza do Brasil que estava em desenvolvimento.

No entanto, a população negra africana e seus descendentes foram sumariamente

“excluídos” da divisão dessa riqueza18 uma vez que as pessoas negras escravizadas

eram vistas e reconhecidas apenas como força produtiva, sem participação dos

benefícios oriundos da produção.

Esta pesquisa não tem pretensão de aprofundar a temática da escravização indígena

18 MOURA, Clovis. História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 7.

Page 51: Tese Quilombo

50

na colonização do Brasil, o que demandaria uma extensa discussão, no entanto penso

ser relevante esclarecer que as comunidades indígenas passaram por processos

semelhantes ao da população africana no que se refere à colonização e dominação

européia19. Nesse caso, devemos considerar que a resistência bem como a refutação

da naturalização das formas de exploração de um povo sobre outro no regime de

escravização não se descola do processo histórico dessas comunidades.

Martinez (1992), em seu livro “África Brasil: Uma ponte para o Atlântico” discute que,

na exploração da África e das Américas, foram introduzidas trocas comerciais,

religiões monoteístas e também a escravização dos índios e dos africanos.

Conseqüências disso foram o extermínio físico e a desfiguração da cultura e da

história desses povos. Esse sistema, que perdurou por três séculos, foi justificado

por meio das teorias racistas, classificatórias e hierarquizadas que definiam os povos

africanos e indígenas como: primitivos, bárbaros, pagãos e de raças inferiores. A

religião – o cristianismo e o islamismo – com as ações evangelizadoras, tratavam de

justificar a escravização dos indígenas e africanos que deveriam receber a ação

civilizatória das “raças brancas superiores”.

Para facilitar essa obra escravizadora e justificar todos os crimes

inerentes ao estatuto servil, os colonizadores esforçavam-se para

apagar da memória dos cativos as tradições, os valores, as crenças;

reprimiam com ferocidade as manifestações de identidade própria,

até o uso dos nomes pessoais e dos idiomas tribais, incutiam à força

de castigos corporais e de sermões jesuíticos os dogmas de

obediência ao senhor. No auge dessa degradação humana, os próprios

cristãos chegaram a negar que os índios americanos e os negros

africanos pertencessem à condição humana e tivessem uma alma igual

à deles.

(Ibid, p. 15)

Segundo Peregalli (1988), o maior número de pessoas negras escravizadas ficava

concentrado na região do nordeste do Brasil, mas o tráfico negreiro se generalizou

em quase todo o território brasileiro. Os escravos movimentaram engenhos, fazendas,

19 A história da escravização indígena e a colonização do Brasil poderão ser pesquisadas em: RIBEIRO,

Berta Gleizer. O Índio na Historia do Brasil. São Paulo: Ed. Global, 1983.

Page 52: Tese Quilombo

51

minas, cidades, plantações e fábricas. Com a força do trabalho deles e de seus

descendentes, a riqueza do país foi constituída por quase quatrocentos anos. “Os

escravos são as mãos e os pés do senhor de Engenho, porque sem eles no Brasil não é

possível conservar e aumentar a fazenda, nem ter engenho corrente [...]” (SILVA e

BASTOS apud ANTONIL, 1979, p. 38).

Discutir e entender a sociedade que estava sendo construída no Brasil Colônia nos dá

condições para compreender que a escravização negra a partir do tráfico comercial

de negreiros passa a ser um negócio que movimentaria a economia gerando lucro para

África, Brasil e Europa, envolvendo agentes da costa da África tais como:

exportadores, armadores, transportadores, seguradores, importadores, atacadistas e

traficantes. A venda de escravos africanos era um negócio rentável. “[...] a escravidão

moderna foi a forma ideal que o capitalismo comercial encontrou para a exploração da

periferia, isto é, para a exploração das colônias. Logo, o escravismo moderno é um

escravismo capitalista” (SILVA e BASTOS, 1979, p. 144).

Desde o início da produção escravista, houve a resistência da população negra

escravizada. Diante disso, seria pertinente perguntar: por que então a escravização

negra no Brasil durou mais do que a indígena? Devemos considerar que as populações

negras do continente africano representavam, à época, um estoque populacional muito

maior do que a do Brasil. E, ao serem arrancados à força de suas comunidades e

transplantados “a ferros para outro continente, outras terras, águas, frutos, animais

todos desconhecidos, as pessoas negras escravizadas tinham muito menos, no início,

opções para fugir e para sobreviver” (POMAR, 2009, p. 32). Desse modo, para a

grande massa negra escravizada nesse território havia muito menos alternativas, pelo

menos no início de sua chegada nesse continente. Sobrava a alternativa de morrer ou

adaptar-se dentro das condições de vigilância, disciplina e coerção severas do sistema

escravista.20

A autora Kátia M. de Queirós Mattoso, no livro Ser Escravo no Brasil (1988), discute

20 Cf. POMAR, 2009, p.32.

Page 53: Tese Quilombo

52

as formas de organização política, econômica e social dos países do continente

africano que foram explorados pelo tráfico de escravos para o desenvolvimento das

Américas. “Do século XVI ao XIX, a população negra africana tornado mercadoria

indispensável para o Brasil não vem de um continente desorganizado, sem cultura, sem

tradição, sem passado, o cativo africano destinado a servir o desenvolvimento das

Américas remotas tem personalidade e história” (Ibid, p. 24). Apesar disso,

encontramos pensamento, conceitos e teorias – verbais e escritas – de

contemporâneos europeus contraditórias para justificar a escravidão desses que,

infelizmente, ainda são utilizados para legitimar a superioridade de um sobre o outro.

Em 1549, em São Vicente, desembarcou o primeiro contingente de pessoas negras

africanas escravizadas. D. João III concede aos colonos a autorização para a

importação de até 120 pessoas negras para suas propriedades21. Entre 1549 e 1850,

estima-se que mais 40% dos 15.000.000 de africanos escravizados na África foram

trazidos ao Brasil. O tráfico de pessoas negras africanas através do Atlântico, além

de ter sido um crime contra a humanidade, foi considerado também um dos grandes

empreendimentos comerciais e culturais que marcaram a formação do mundo moderno

e a criação de um sistema econômico mundial.

Associando a produção e articulação, o escravo africano foi a solução

ideal, do ponto de vista do capital mercantil europeu, para a questão

da mão-de-obra nas áreas coloniais. Mãos negras cortariam cana,

trabalhariam nos campos de algodão, produziriam tabaco, extrairiam

ouro, colheriam café, serviriam na Casa Grande, desempenhariam

tarefas nas cidades coloniais... nenhuma atividade seria sequer

pensada sem contar com as mãos negras dos escravos.

(PEREGALLI, 1988, p. 57).

O tráfico de homens e mulheres negras iniciava-se na própria África22 quando eram

21 Alguns historiadores apontam que antes dessa data já se encontravam negros/as no Brasil (MOURA,

1992, p. 7). 22 Os africanos trazidos ao Brasil vieram pela rota transatlântica, e as capturas ocorreram em povos de

três regiões geográficas: África ocidental, de onde foram trazidos homens e mulheres dos atuais

Senegal, Mali, Níger, Gana, Togo, Benim, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo

Verde, Guiné e Camarões; África centro-ocidental, envolvendo povos do Gabão, Angola, República do

Page 54: Tese Quilombo

53

caçados como animais, batizados e marcados a fogo com uma cruz no peito,

aprisionados, transformados em mercadorias e classificados nas alfândegas como

objeto de utilidade para pagamento de imposto e exportação. Amontoados em porões

de navios negreiros, eram enviados ao Brasil. Há uma estimativa de que a cada 200

pessoas negras embarcadas, 40 morriam durante a viagem23, devido às péssimas

condições do navio onde eram transportados. “Sangue, vômitos, água salgada, urina,

homens mortos, calor insuportável, escuridão, frio... este era o retrato de um navio

negreiro.” (PEREGALLI, 1988, p. 48).

Segundo esse mesmo autor, ao chegar aos portos brasileiros, as pessoas negras

africanas escravizadas eram colocadas em grandes barracões para engorda e, quando

considerados prontos, homens e mulheres eram expostos nus em praça pública para

avaliação e compra pelos senhores de engenho. Os sinais de depressão e apatia eram

solucionados momentaneamente com estimulantes à base de pimenta, gengibre e

tabaco ou eles eram forçados a dançar aparentando alegria durante avaliação do

exame físico na hora da venda. Os que não atendessem às ordens recebidas tinham

como castigos: socos, tapas, pontapés e ameaças de chicoteamento.

Os laços familiares e tribais eram desfeitos no momento da distribuição aos seus

novos donos. Negros e negras eram levados para os engenhos. Sua nova moradia

passava a ser a senzala, onde ficavam alojados, além de serem mudados os seus nomes

e sobrenomes. Eram marcados a fogo pela segunda vez com as iniciais dos nomes e

sobrenomes dos seus proprietários, o que facilitava o reconhecimento do vínculo de

propriedade e reapropriação no caso de fuga; eram acorrentados, castigados

fisicamente, restritos brutalmente em suas expressões culturais (religião, rituais,

canto, dança, alimento, ética etc.) e em sua língua, pois eram obrigados a aprender e a

se comunicar em língua portuguesa.

Nos domínios rurais, enfrentavam trabalhos exaustivos de até 16 horas por dia, sob

Congo, República Democrática do Congo (ex-Zaire) e República centro-africana, e África austral,

envolvendo povos de Moçambique, da África do Sul e da Namíbia. (MUNANGA, 2009, p. 86). 23 Cf. GENNARI, 2009, p.9.

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54

violência contínua do chicote dos feitores; o tempo de sobrevivência das pessoas

negras após a chegada ao Brasil era de oito anos apenas. De cada 100 crianças que

nasciam vivas, 80 morriam. Das 20 sobreviventes, a chance de chegar à fase adulta

era inexistente. As crianças eram submetidas às mesmas condições de maus tratos

dos cativos da senzala, e a possibilidade de contraírem doenças que as levavam ao

óbito era muito grande. Gennari (2009) detalha os tratamentos recebidos pelos

escravizados quando estavam doentes:

Cativos doentes, cegos ou inválidos são forçados à mendicância tanto

para juntar dinheiro para seus senhores como para obter o próprio

sustento. Em caso de doença terminal, incapacidade total ou morte, são

jogados porta a fora para evitar que os seus amos tenham que arcar

com os gastos do funeral. No Rio de Janeiro, por exemplo, é comum

encontrar o cadáver de alguns escravos pelas ruas da cidade. Quando

isso acontece, um soldado se posiciona sobre ele com uma caixa na qual

recolhe a contribuição dos passantes e o corpo só é removido do local

quando nela se encontra a quantia suficiente para custear as despesas

do enterro.

(Ibid, p. 9). 24

Na senzala, a fome era uma regra e nunca uma exceção: a alimentação dependia das

regras dos proprietários. Alguns forneciam um pedaço de terra para que as pessoas

negras escravizadas trabalhassem aos domingos e, dali, extraíssem seus alimentos;

outros forneciam farinha e carne seca em pouquíssima quantidade em relação ao

número de cativos; não era concedido dia livre. Os considerados mais “generosos”

acrescentavam a comida e um dia livre por semana. Sem contar a reprodução em

24 A população negra escravizada tinha interesse em participar, no séc. XVIII, da Irmandade da Nossa

Senhora do Rosário dos Homens Pretos por causa da garantia de ser tratada com dignidade na cerimônia

fúnebre, uma vez que não a teve em vida. Muitos deles foram enterrados em covas rasas sendo

facilmente desenterrados por cachorros que espalhavam os ossos pelas ruas; corpos eram jogados ao rio

com uma pedra amarrada em torno do pescoço e ainda, no interior de São Paulo, encontravam-se corpos

em frente ao colégio religioso ou deixados nas ruas. As pessoas negras acreditavam que após a morte,

para penetrar no mundo dos seus ancestrais, era necessário cumprir com a cerimônia fúnebre dada pela

Irmandade. Esse descaso com os corpos após a morte era um assombro na vida da pessoa negra

escravizados, pois acreditavam que o desrespeito dos senhores na hora do enterro não lhes permitiria a

continuidade e o acesso às terras dos seus ancestrais. (QUINTÃO, 2009). Ver também: QUINTÃO,

Antonia Aparecida. Lá vêm os meus parentes: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em

Pernambuco (séc. XVIII). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2002 (p.73-108). Para pesquisar sobre

religiosidade tradicional africana ver em: SERRANO, Carlos, Maurício Waldman. Memórias D’Africa: A

temática Africana em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007. Capítulo 4 A África Tradicional – A

religiosidade Tradicional (p. 136-145).

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55

cativeiro, que era utilizada de forma empresarial nos Estados Unidos, e foi adotada

pelo sistema escravista no Brasil.25

Daí a resistência ao escravismo e a busca de liberdade que se dava por meio de

manifestações como incêndio nas plantações, agressão física aos senhores e feitores,

rebelando-se individual ou coletivamente, além de suicídios, assassinatos, revoltas e a

busca desesperada por liberdade através da fuga.

A resistência negra ocorria desde o navio negreiro, quando se jogavam no mar em

protesto à escravidão: tentavam o enforcamento com as próprias correntes, deixavam

de comer ou se entregavam à doença do banzo26, ou seja, depressão por nostalgia.

População Negra escravizada: rurais e urbanas

Os tipos de trabalhos exercidos pelas pessoas negras eram muitos. Não podemos nos

esquecer de que a relação entre os senhores e a pessoa negra escravizada se dava de

forma abusiva sem escrúpulo algum: como mercadoria, o/a negr/a poderia ser vendido,

alugado, penhorado e morto.

Escravos eram um patrimônio contabilizável, um ativo a ser explorado

ao máximo em busca de retorno. (...) todos que conseguissem adquirir

uma meia dúzia de escravos passavam a viver na mais completa

ociosidade, explorando os rendimentos do trabalho dos seus negros, e

a caminhar na rua solenemente com grande empatia.

(GOMES, 2007. p. 247).

As denúncias de crimes contra as pessoas negras escravizadas sempre eram

sentenciadas pelos tribunais como acidentes ou suicídios. A lei não permitia o direito

aos donos dos cativos de tirar-lhes a vida, porém, é fato que os senhores e feitores27

assassinos de pessoas negras escravizadas nem sequer eram incomodados pela justiça

25 Ver: MARTINEZ (1996, p. 31). 26 Morte decorrente da apatia. No dialeto africano significa doença da tristeza, doença da saudade. 27 Segundo Reis e Gomes (1996), os feitores, também conhecidos como capitães-do-mato, nascem como

produto do medo das rebeliões escravas da sociedade escravista. Ocupavam cargos que se expandiram ao

longo do século XVIII. Sua figura é associada à escravidão e sobreviveu até o final desta em todo o

Brasil.

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56

que se preocupava em manter a ordem escravista e não a segurança dos africanos

escravizados. Lembremos que a sociedade colonial brasileira estava enraizada na

violência, ela era rígida, hierarquizada e toda crueldade era direcionada à população

negra escravizada – torturas físicas e psicológicas, estupros, abusos, assassinatos.

Como conseqüência, a taxa de mortalidade era muito alta.

As técnicas concernentes à agropecuária, ao artesanato e à fundição de metais eram

conhecimentos que a população negra africana já tinham desenvolvido anteriormente

em suas terras, embora a experiência deles não fosse aproveitada, pois o trabalho na

agricultura se dava de forma primitiva, significando retrocesso para eles.

A partir da função do trabalho e da localidade, nascem também diferentes classes da

população negra escravizada: urbana e rural. Assim que chegaram aos Brasil, os

negros rurais foram destinados ao campo para plantação de cana, de algodão ou de

café; produção de tabaco, extração de ouro ou para trabalhar como serviçais da casa

grande. A partir do século XVII, teremos a população negra das zonas urbanas que

são chamados de “negros de ganho”, homens e mulheres escravizados que exerciam

algum trabalho nos centros urbanos como: barqueiros, carregadores, oleiros,

marinheiros, ferreiros, carpinteiros, sapateiros, carregadores de lixo, portadores de

recados, acompanhantes etc. As negras escravas eram prestadoras de serviços

domésticos, amas-de-leite, eram utilizadas para satisfazer sexualmente os seus

senhores, e as mais atraentes foram forçadas ao comércio de rua como prostitutas

em tempo parcial ou integral. Os negros entregavam aos seus donos parte do dinheiro

estipulado pelo trabalho realizado, ficando com o mínimo para a sua própria

manutenção; caso não atingissem a meta, seriam castigados e, se ultrapassem a meta

estipulada, poderia ser possível ao negro a compra de sua liberdade. Existia também

no comércio uma espécie de agência de empregos, que alugava os negros para

terceiros e o dinheiro ia direto para a mão do proprietário.

Page 58: Tese Quilombo

57

Revoltas e Rebeliões

Pouco se divulga, mas um dos aspectos interessantes, porém quase ignorado na

história da escravidão no Brasil, foi a participação da população negra escrava e livre

na vida política nacional. De acordo com Moura (1992), as pessoas negras contribuíram

ativamente em quase todos os movimentos sociopolíticos que aconteceram no Brasil no

decorrer de seu trajeto social e histórico. Ainda não considerando os quilombos como

movimento independente, com poderosa atuação, a população negra marcou presença

(às vezes majoritariamente e outras com menor participação) nos movimentos

insurrecionais travados ou projetados na Colônia e no Império, desde o fim do século

XIX até a contemporaneidade tais como: as lutas pela expulsão dos holandeses; luta

pela Independência; Revolução Farroupilha; movimentos radicais da plebe rebelde,

como a cabanagem do Pará, o Movimento Cabano em Alagoas, Inconfidência Mineira e

Inconfidência Baiana. Depois da abolição, a população negra incorporou-se aos

movimentos da plebe, como em Canudos, na comunidade de beato Lourenço e na

revolta de João Candido28. A população negra (escrava ou livre) foi mobilizada pelos

senhores e pelo governo geral para fazer parte dessas lutas, principalmente quando

existia a necessidade de formar núcleos militares. Sua participação se deu das

seguintes formas: o/a escravo/a podia a) aproveitar dessa necessidade e confusão e

fugir para as matas, abandonando os seus senhores e juntando-se a algum quilombo

existente; b) aderir à independência para tentar com isto conseguir a sua alforria

como fora prometida muitas vezes; c) lutar por obediência aos seus senhores ou d)

participar ao lado do português29.

Em sete de setembro de 1822, foi proclamada a Independência do Brasil em relação a

Portugal; no entanto, a situação não mudou muito para a plebe e os escravizados e as

revoltas continuaram, tendo a população negra participado ainda das seguintes

revoltas:

28 Ver: MOURA, 1992, p. 39.

29 Ver: MOURA, 1992. Capítulo V – O negro e sua participação política (p. 39-54).

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58

Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos Alfaiates, em 1798;

Revolta da Cabanagem, no Pará, no período de 1833-1836;

Revolta dos Balaios, no Maranhão, de 1838 a 1841;

Revolta dos Malês, em Salvador-Bahia, em 1835;

Revolta dos Canudos, na Bahia, no período de 1893 a 1897;

Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, em 1910.

Desde as primeiras lutas sociais no Brasil que o negro, ao delas

participar, conseguiu ampliá-las e transformá-las em lutas sócio-

raciais. Isto é: colocou um componente novo, abriu o leque de

participação e reivindicações de etnia negra, que além de explorada

era discriminada racialmente.

(MOURA, 1992, p. 40).

A sociedade escravocrata enfrentou um difícil e persistente problema desde o

começo do período imperial, que foram as revoltas na fazenda, as rebeliões e a fuga

das pessoas negras escravizadas. Enquanto elas se rebelavam, mesmo ameaçadas e

castigadas, incendiando plantações, agredindo e matando senhores e feitores,

assassinando e suicidando-se como forma de resistência ao escravismo; os ex-

escravos se organizaram secretamente; além das revoltas, as fugas isoladas ou

coletivas das pessoas negras assenzalados eram constantes. As recusas, as rejeições,

a fuga e a formação de grupos de negros escravizados fugidos deram origem à

formação dos quilombos, a forma mais consequente de resistência negra à escravidão.

Conceituação e Histórico de Quilombo

Segundo Munanga (2004), a palavra “quilombo” tem origem africana, nascida de

línguas regionais faladas em Angola e na República Democrática do Congo, no dialeto

“umbundo”, e significa “um agrupamento militar composto pelos jaga ou imbagala (de

Angola) e os lunda (do Zaire) no século XVII”.

De acordo com Moura (1985, p.15), em 02 de dezembro de 1740, na consulta do

Conselho Ultramarino, o rei de Portugal definiu quilombo como “toda habitação de

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59

negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham

ranchos levantados nem se achem pilões neles”.

Munanga (2004) traz as seguintes contribuições: Quilombo não era só um local onde

os negros se refugiavam, mas, tratava-se de local democrático e fraterno conquistado

através da fuga de negros escravizados que se organizavam em busca de uma

sociedade livre e digna, que se negavam a viver sob o regime escravocrata se

rebelando e lutando contra o sistema.

Segundos alguns antropólogos, na África, a palavra quilombo refere-se

a uma associação de homens aberta a todo. Os membros dessa

associação eram submetidos a rituais de iniciação que os integravam

como co-guerreiros num regimento de super-homens invulneráveis as

armas inimigas. Existem muitas semelhanças entre o quilombo africano

e o brasileiro, formados mais o menos na mesma época. Sendo assim, os

quilombos brasileiros podem ser considerados como uma inspiração

africana, reconstruída pelos escravizados para se opor a uma estrutura

escravocrata, pela implantação de uma outra forma de vida, de uma

outra estrutura política, na qual se encontram todos os tipos de

oprimidos.

(Ibid, p.71).30

Sua conceituação foi modificada ao longo dos séculos e, atualmente, a palavra

quilombo tem outra definição.

(...) uma comunidade negra rural habitada por descendentes de

africanos escravizados, com laços de parentesco, que vivem da

agricultura de subsistência, em terra doada, comprada ou secularmente

ocupada por seus antepassados, os quais mantém suas tradições

culturais e as vivenciam no presente, como suas histórias e seu código

de ética, que são transmitidos oralmente de geração a geração.

(ISA apud MOURA, 2008, p. 10).

Os quilombos foram considerados a mais típica forma de resistência à escravidão,

30 Os quilombos estavam sujeitos às invasões periódicas das forças de repressão que agiam contra eles.

A necessidade real dos quilombos era de ter uma organização fortalecida para combater os senhores de

escravos que se municiavam de recursos: militares, políticos, jurídicos e terroristas para combatê-los. As

estratégias dos senhores eram apoiadas nas leis da metrópole aplicadas na Colônia, alvarás e outros

estatutos repressivos, promovendo a formação de milícias de capitães-do-mato, e a fabricação e

utilização de aparelhos de suplício e outras formas de repressão não-institucionalizadas, o que se

transformou em costumes (MOURA, 1992, p. 24).

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60

causando preocupação à sociedade escravocrata, pois, conforme aumentava o trabalho

escravista, aumentavam as resistências em forma de aquilombamento. “Onde houve

escravidão houve resistência”, diz Reis e Gomes (1996, p. 9).

Tais quilombos se organizavam por meio da fuga e formação de grupos de negros

escravizados fugidos, também em lugares de difícil acesso tais como serras,

florestas, matas ou selvas. Tendo como objetivo a liberdade, da população negra

refugiada criavam aldeias prósperas e se organizavam socialmente em comunidade aos

moldes africanos, dedicavam-se à economia de subsistência e até ao comércio.

Reis, no livro Liberdade por um fio, no capítulo “Escravos e Coiteiros no Quilombo do

Oitizeiro”, nos ensina que a formação de quilombos e as relações deles com a

sociedade que os cercava é um assunto ainda pouco estudado no Brasil. Ele chama a

atenção dos leitores para o fato de que muitos especialistas têm uma única visão de

todos os quilombos, a partir de uma concepção palmarina – já que o único quilombo

conhecido na história do Brasil é o Quilombo de Palmares, que foi liderado pelo líder

negro Zumbi, na Serra da Barriga, em Pernambuco, atual Estado de Alagoas, no ano de

1678 – imaginando que se tratava de uma sociedade alternativa, de difícil acesso,

isolado da sociedade para reproduzir uma comunidade africana em liberdade. O autor

afirma que

Um grande número de quilombos, talvez a maioria, não foi assim. Os

fugitivos eram poucos, se estabeleciam próximos a povoações,

fazendas, engenhos, lavras, às vezes nas imediações de importantes

centros urbanos, e mantinham relações ora conflituosas, ora

amistosas, com diferentes membros da sociedade envolvente.

Sociedade envolvente e também absorvente, no sentindo de que os

quilombolas circulavam com freqüência entre seus quilombos e os

espaços “legítimos” da escravidão.

(REIS e GOMES, 1996, 332).

Nos quilombos, a organização não era fechada em si mesma, os quilombolas mantinham

relações e se aliavam às outras pessoas também excluídas e oprimidas na sociedade

escravista como: negros fugitivos, índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas

perseguidas pela policia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do

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61

serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas, de acordo com

Moura (1992, p. 15). O autor afirma também que os quilombos, além de grupos

defensivos, ligavam-se frequentemente com contrabandistas de diamantes e ouro e

faiscadores, mantendo com eles um comércio clandestino. Além dessas ligações, os

aquilombados mantinham contatos com alguns segmentos e núcleos oprimidos pela

sociedade escravista: pequenos proprietários, agricultores, comerciantes, regatões31

e mascates de modo geral, além dos assenzalados. A relação de trocas com esses

grupos sempre existiu: alimentos, armas, moedas entre outras coisas, com o intuito de

liquidar seus senhores, armar planos de fuga e receber informações de movimentos

de tropas, receber informações sobre as medidas tomadas pelo aparelho repressivo e

suprir suas necessidades para a sobrevivência.

[...] o quilombo era refúgio de muitos elementos marginalizados pela

sociedade escravista, independentemente de sua cor. Era o exemplo

da democracia racial de que tanto se fala, mas nunca existiu no Brasil,

fora das unidades quilombolas.

(MOURA, 1993, p. 37).

As autoridades tinham a preocupação de combater os quilombos; nesse sentido a

população quilombola precisava suprir as necessidades de sobrevivência (além de se

dedicarem à agricultura, caça, coleta, seqüestros de escravos, recrutamento,

mineração). Era primordial que estivessem politicamente estruturados e para isso

mantinham alianças com lideranças consagradas e com diversos setores sociais para

fugir do sistema opressor escravagista. “[...] os quilombos faziam uma política e

tinham projetos políticos próprios, uma tese na contramão dos estudiosos que

acentuam a reificação da gente escrava e sua incapacidade para pensar e agir

politicamente” (REIS e GOMES, 1996, p. 17).

O quilombo teve uma continuidade histórica que se estendeu desde o século XVI até

as vésperas da Abolição, expandindo-se geograficamente. O aquilombamento existiu

mesmo em regiões onde o número de escravos cativos era baixo. Floriram com viço

31 Regateio: Barganha, comprar por preço inferior (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda,

Minidicionário Aurélio de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993).

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62

especial em todos os lugares onde a escravidão existiu, com exceção dos estados do

Acre, Distrito Federal e Roraima32.

Os quilombos eram organizados politicamente de diversas formas com proporções e

durações distintas. Havia quilombos com oito ou mais homens, assim como compostos

por 25 mil habitantes. Os objetivos primordiais das lideranças quilombolas eram a

defesa familiar, religiosa e especificamente econômica para garantir a sobrevivência.

O binômio economia-defesa era o eixo das preocupações mais

importantes dos dirigentes dos quilombos. Isso porque, se, de um

lado, tinham de manter em atividade permanente grande parte da

mão-de-obra ativa da comunidade na agricultura e em outras

atividades produtivas, de outro, tinham de manter um contingente de

defesa militar permanente, a fim de preservar sua integridade

territorial.

(MOURA, 1993, p. 35).

Moura aborda os sete tipos fundamentais de modelos econômicos para os quilombolas,

dependendo diretamente da área onde estavam organizados.

1. Agrícolas – em todas as partes do Brasil;

2. Extrativistas – característicos do Amazonas;

3. Mercantis – no Amazonas;

4. Mineradores – em Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso;

5. Pastoris – no Rio Grande do Sul;

6. Serviços – os quilombolas saíam do quilombo para trabalhar nos centros

urbanos33;

32 O autor cita os estados de Alagoas, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Pernambuco,

Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe. MOURA, Clóvis. Quilombos – Resistência ao

escravismo. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1993.

33 Moura nos esclarece que os quilombos periféricos de Salvador-BA permutavam com outras unidades da

população que eram produtivas, para prover munições e completar a economia interna com produtos

inexistentes no quilombo. Alguns membros quilombolas exerciam atividades na Capital da Província (como

se fossem livres) e investiam na economia quilombola. “Tinham mesmo em povoados, e até vilas, agentes

secretos que com eles especulavam, comprando-lhes o ouro, peles, poaia e mais coisas que podiam enviar,

fornecendo, em troca, munições e gêneros.” (MOURA, 1993, p. 26).

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63

7. Predatórios – existiam em todas as partes e viviam da prática de furtos

contra os brancos.

Os quilombos não se limitavam às monoculturas; era necessário aproveitar os recursos

naturais regionais e os elementos retirados das fazendas e dos engenhos (sementes e

matérias primas); desenvolviam a policultura-comunitária para suprir as necessidades

dos quilombolas e precisavam produzir excedente para comercializar34. O país se

converteu em um conjunto de quilombos significativos para a compreensão da nossa

história social.

A singularidade dos quilombos era se libertar do sistema escravista, e o caráter

defensivo e a capacidade organizativa sociopolítica dos grupos quilombolas permitiam

a sobrevivência da comunidade; foram destruídas dezenas de vezes e reapareceram e

se reergueram em outros locais como reais focos de defesa contra os seus

perseguidores da sociedade escravista. Para a sociedade escravista os quilombos

“eram uma praga espalhada por todos os cantos e sem remédios. Eram como irmãos,

coligados todos em se tratando de defender o sertão, de sorte que não pudessem

penetrar nem mais aventureiros nem descobridores” (MOURA apud BARROS, 1993, p.

5).

Palmares

Quando falamos de comunidade tradicional quilombola, as pessoas se remetem às

ilustrações que os livros de história trazem: pessoas negras de pé no chão,

carregando uma cesta de mandioca sobre a cabeça, as mulheres com um pano branco

na cabeça, homens com calças de algodão estilo capoeirista, sem camisa com enxadas

na mão, com as roupas de saco de algodão sujas pelo trabalho da roça. Pouco se

34 As armas da República de Palmares eram constituídas de arcos, flechas, lanças, facas produzidas pelo

setor artesanal, as armas de fogo tomadas das expedições punitivas, dos moradores vizinhos ou

compradas daqueles grupos ou indivíduos com os quais os palmarinos mantinham relação de escambos.

(MOURA, 1992, 52).

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64

divulga a existência de aproximadamente 3.50035 comunidades tracionais quilombolas

espalhadas por todo Brasil, de certa forma com acesso aos espaços urbanos, produtos

e serviços tecnológicos. Penso que situar o leitor sobre a importância de Palmares é

primordial para compreender a luta travada à época e o processo de transformação e

os entraves que estão atrelados há séculos, até a atualidade.

Palmares, por mais de um século, existiu resistindo às repressões dos senhores de

pessoas negras escravizada da capitania de Pernambuco e se organizava de forma

vigorosa, aos moldes africanos, construindo ali um real Estado Negro dirigido por uma

oligarquia e cujos partidários regravam-se pela supremacia de um líder. “Palmares, por

sua organização política, econômica, social e cultural, constituiu-se num verdadeiro

„Brasil negro‟ dentro de um „Brasil branco‟” (SILVA e BASTOS, 1976, p. 45).

O quilombo dos Palmares, em uma área de 27 mil quilômetros quadrados, teve sua

formação no final do século XVI, em aproximadamente 1597, iniciando com um número

de 40 negros escravizados fugitivos36. No ano de 1597, durante a noite, um grupo de

escravos fugiu de um engenho do sul de Pernambuco, atual estado de Alagoas.

Armados de foices, chuços e cacetes, sendo perseguidos e restando-lhes somente a

fuga, caminharam vários dias. Conseguiram chegar a um local montanhoso e de difícil

acesso, onde se sentiram mais seguros. Nesse local, em uma das serras, podiam

observar toda a região – um local com muitas palmeiras conhecidas na África. Nasce o

Quilombo de Palmares. Pressionados pela necessidade de manter a sobrevivência, os

quilombolas se organizaram e realizaram incursões nas fazendas e engenhos mais

próximos para “seqüestrar escravos, mulheres, se abastecer de armas, pólvoras,

ferramentas de trabalho, e além de, não poucas vezes, exercer vinganças ateando

fogo nas plantações e matando os feitores.” (GENNARI, 2006, p. 13).

O crescimento demográfico de Palmares é atribuído aos novos membros foragidos que

aumentava de forma ininterrupta (os índios “salteadores”, fugitivos da Justiça de

35 Estimam-se entre 2.800 a 3.500 comunidades, poucas reconhecidas oficialmente – Dados do

Movimento Quilombola Nacional, 2007.

36 Cf. MOURA, 1993, p. 40

Page 66: Tese Quilombo

65

modo geral e elementos de todas as demais etnias ou camadas que se sentiam

oprimidas, compreendendo homens e mulheres brancas37) e aos nascimentos no

interior do quilombo. Entre 1630 e 1635, quando se deu a ocupação holandesa em

Pernambuco, com o enfraquecimento da dominação portuguesa, houve condições para

novas fugas das pessoas negras escravizadas a Palmares.

Em meados de 1670, a população oscilava entre 20 a 25 mil habitantes, entre homens,

mulheres e crianças38. Os palmarinos viviam da agricultura de subsistência, e ali

produziam milho, feijão, mandioca, batata-doce, banana, cana-de-açúcar, além da caça

e da pesca; praticavam também o artesanato e mantinham um pequeno comércio com

populações vizinhas. A palmeira foi uma forma importante de produção extrativa, já

conhecida na África. Com o aumento da população em Palmares, criaram-se diversos

núcleos de povoamento como:

Macaco: o mais importante e o maior povoamento de Palmares. Possuía 1.500

habitações e uma população com aproximadamente oito mil habitantes;

Amaro: habitava ali uma população com aproximadamente cinco mil pessoas em

mil casas;

Subupira: com aproximadamente 800 moradias, centralizava as atividades

militares. Outras povoações palmarinas registradas são: Osenga, Zumbi,

Acotirene, Tabocas, Danbrabanga e Andalaquituche.

Segundo Moura (1993), a comunidade quilombola se aliava a todos os perseguidos e

deserdados da sociedade colonial. No entanto, dentro da comunidade, havia um

governo mantido por um líder eleito e as decisões eram tomadas juntamente com um

conselho em assembléia da qual participavam todos os habitantes adultos,

prevalecendo o igualitarismo .

As regras palmarinas apresentavam um regime rigoroso, através de um tipo de

37 Ver MOURA, 1993, p. 40 38 Idem, 1993, p. 43

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66

“Direito Consuetudinário (costumes)”39; o roubo, o adultério, o homicídio eram pagos

com pena de morte. Em Palmares, tudo era comum aos seus habitantes; sendo assim, o

roubo individual era compreendido como uma lesão do patrimônio de todos. Eram os

líderes que delegavam esse poder aos militares, conforme o seu prestígio. Os mais

conhecidos líderes negros da história de Palmares foram Ganga Zumba e seu

sobrinho, Zumbi.

Vale lembrar que, apesar de os palmarinos viverem em liberdade, as perseguições e

ameaças das autoridades coloniais de uma sociedade escravista nunca cessaram:

Em 1612 se inicia a primeira expedição portuguesa a Palmares que

sobreviveu aos ataques, se intensificou e continuou a crescer.

Palmares foi alvo e resistiu a 27 guerras e destruição de investidas

holandesas e portuguesas que pretendiam tomar e destruir suas terras40.

Em 1654 é o fim da guerra contra os holandeses no Brasil – os holandeses

assinam a rendição e a economia açucareira volta a crescer, assim como o

comércio de escravos e também as fugas para Palmares. Na década seguinte,

Palmares atingiu o seu auge.

Entre o ano de 1654 e 1659, as autoridades coloniais requerem o prejuízo

que a guerra contra os holandeses lhes causou, pedem a recuperação dos

negros escravizados fugidos e organizam várias expedições militares para

capturá-los. No entanto, suas investidas armadas foram fracassadas, pois além

de derrotados, o número de negros escravizados capturados era muito inferior

ao que se esperava e tais negros já não aceitavam ser subalternos e fugiam

39 Idem, 1993, p. 54

40 Com as invasões holandesas em Pernambuco, em 1630, inicia a desintegração da economia nordestina, o

que preocupa as autoridades luso-brasileiras: a fuga das autoridades portuguesas, a emigração dos

senhores de engenho para o sul e a convocação dos militares para o ataque holandês a Pernambuco

geraram uma confusão na organização do sistema de vigilância da população negra escravizada,

oportunizando fugas rumo a Palmares, munidos de armas de fogo, facões, chuços e lanças de seus ex-

senhores. Graças a essa ação holandesa, a massa de pessoas negras escravizadas refugiadas se ampliou,

superlotando o quilombo dos Palmares.

Page 68: Tese Quilombo

67

novamente, retornando a Palmares.

A mando do governador D. Pedro de Almeida, em 1677, Palmares foi atacado

e derrotado pela tropa do sertanista Fernão Carrilho, que recebeu a patente

de “capitão-mor da guerra dos Palmares”. Durante esse ataque, a expedição de

Carrilho, além de destruir o povoamento de Amaro, capturou dezenas de

negros, autoridades locais e dois filhos de Ganga Zumba. A população

palmarina, descontente, acusa seu líder Ganga Zumba de incapacidade de

liderança e irresponsabilidade por ter comandado embriagado um dos mais

importantes combates contra as tropas coloniais, levando-o a assembléia, que

pediu sua destituição, porém esta proposta é derrotada pelas manobras

políticas internas de Ganga Zumba.

Em 1678, Ganga Zumba, depois de várias batalhas travadas contra Palmares

e, sentindo-se ameaçado, aceita o pacto de paz com os portugueses que

promete a liberdade dos quilombolas nascidos no interior de Palmares. Isso

implica na recondução dos demais ao cativeiro, concessão de terra para cultivo

e moradia, liberdade de comercialização dos próprios produtos com povoados

vizinhos e a concessão de título de vassalo da coroa ao líder Ganga Zumba.

Discordando do pacto feito por Ganga Zumba com as autoridades coloniais,

Zumbi e outros companheiros saem contra o líder que perde seu cargo e

retira-se com seus seguidores para Cacaú, terra doada pelo governo português

aos negros que aceitassem o acordo de paz. Zumbi assume o posto que antes

pertencia a Ganga-Zumba. Em Cacaú, Ganga Zumba é abandonado pelas forças

coloniais, traído e morto por seus seguidores que retornam a Palmares.

Em 1680, o capitão-mor André Dias é incumbido pelo governador de

desarmar o quilombo de Palmares, e em troca foi oferecido a Zumbi o perdão e

a liberdade. Zumbi não cedeu, gerando novos conflitos.

Em 1694, Palmares é vencido com o uso de canhões pelas tropas de

Domingos Jorge Velho e do exército. O ataque foi violento, atingindo a todos

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os mocambos palmarinos, 510 pessoas negras foram capturados e as mulheres

e crianças foram capturadas para serem vendidas como escravas – “grande

parte se deixa morrer de fome ou mata os próprios filhos para não vê-los

submetidos ao cativo”. Zumbi escapou com vida e fugiu com 2.000 homens41.

Em 1694, Zumbi reaparece e lidera um ataque à Vila de São Francisco.

No início de 1695, a presença de Zumbi em várias áreas do quilombo antigo é

registrada; em uma dessas investidas de Zumbi, Antonio Soares, homem de

confiança de Zumbi, foi capturado e torturado e acaba declarando onde Zumbi

estava escondido – Serra de Dois Irmãos.

Em 20 de novembro de 1695, Soares chega a Serra de Dois Irmãos, Zumbi

vai ao seu encontro para recebê-lo e é apunhalado. Quando ele cai, os invasores

abrem fogo assassinando os companheiros de Zumbi. Mesmo ferido, Zumbi

morre combatendo até morrer, “matando um homem, ferindo outros e jamais

se rendendo”. A morte de Zumbi, apresentada como uma vitória, é também a

maior das derrotas. O poder colonial consegue a cabeça do líder palmarino, mas

não o que mais queria: a sua submissão (GENNARI, 2006, p.21).

Zumbi - O Mártir da abolição da escravatura do Brasil e Patrono Cívico

da negritude brasileira

Zumbi nasceu em “terra de preto” 42, ou seja, em terras palmarinas, em 1655. Nesse

mesmo ano, na primeira expedição que o Governo de Pernambuco enviou a Palmares,

comandada por Brás da Rocha Cardoso, Zumbi foi capturado e dado de presente a um

41 Ver em MUNANGA, 2004.

42 “Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias destes grupos, uma

denominação também possível para estes agrupamentos identificados como remanescentes de quilombo

seria a de „Terra de preto‟ ou „território negro‟, tal como é utilizada por vários autores, que enfatizam a

sua condição de coletividade camponesa, definida pelo compartilhamento de um território de uma

identidade” (SCHMITT, Alessandra; TURATTI Maria Cecília Manzoli; CARVALHO, Maria Celina Pereira

de. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Ambient. soc. [http://www.scielo.br/pdf/asoc/n10/16889.pdf]. 2002). Ver também: ANDRADE (1988), GUSMÃO

(1995).

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69

padre português chamado Antônio de Melo que habitava em Porto Calvo, nas

proximidades de Palmares. O padre batizou-o com o nome de Francisco, alfabetizou-o

e criou-o, o fez coroinha e nunca lhe tratou como escravo.

Em 1670, quando Zumbi completou 15 anos de idade, para a surpresa do padre Antônio

de Melo, o garoto fugiu para o Quilombo de Palmares, onde recebeu esse nome de

origem africana e se torna sobrinho de Ganga Zumba pela concepção Africana de

família43. Poucos anos após, torna-se líder político e militar. Quando se torna chefe do

quilombo, por seu valor guerreiro, Zumbi volta várias vezes a visitar o padre que o

acolheu e o criou.

No ano de 1671, Zumbi se destacou como líder ao combater heroicamente as

expedições do Capitão André da Rocha e do Tenente Antônio Jacome Bezerra.

Com apenas 17 anos de idade, Zumbi foi eleito Maioral, no ano de 1672, e aos 18 anos

de idade, em 1673, se torna Cabo-de-guerra, após derrotar a tropa de José Bezerra.

Em l676, a tropa do Coronel Bezerra foi combatida por Zumbi, então com 21 anos, e

seus guerreiros resultando em mortes, massacre da expedição e deserções.

Foi em 1678, aos 23 anos de idade, após liderar a revolta contra seu tio e líder Ganga

Zumba, que havia aceitado o fim da guerra com a condição de liberdade restrita

apenas aos nascidos no quilombo – que Zumbi assumiu a liderança e se tornou Rei do

Quilombo de Palmares. Zumbi continuou sua luta por liberdade dos quilombolas

nascidos ou não em terras palmarinas e pelo fim da escravidão.

O rei Zumbi era o maior herói negro da população palmarina. Sua história se espalhou

por todas as senzalas de Pernambuco e Alagoas.

43 Quintão toma emprestada uma constatação da referência do estudo de José Reis sobre “a redefinição

da palavra parente, que passa a incluir todos os africanos da mesma etnia. O africano inventou aqui o

conceito de parente de nação” (QUINTÃO, 2002, p.91 apud REIS, João Jose. A morte é uma festa: ritos

fúnebres e revolta popular no Brasil no século XIX, São Paulo, Editora Schwarcz. Ltda., 1991, p. 55).

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70

A sua coragem e o seu espírito de liderança impressionam também as

autoridades coloniais. Numa crônica encomendada ao governador

Pedro Almeida, Zumbi é descrito como “negro de singular valor,

grande ânimo e constância rara cuja capacidade de ação, juízo e

fortaleza aos nossos serve de embaraço e aos seus de exemplo.

(GENNARI apud FREITAS, 2006, p. 19).

Zumbi, atualmente, é reconhecido como guerreiro, herói, organizador e líder da

resistência armada negra. Lutou bravamente até a morte e hoje é a grande referência

nacional da luta negra no Brasil que busca justiça, trabalho, igualdade e a vida.

Simboliza a luta do negro, a conquista pela liberdade e o fortalecimento da

consciência da identidade negra. A partir de 1971, no dia 20 de novembro, se dá o

primeiro ato evocativo pela população negra brasileira que comemora o Dia Nacional

da Consciência Negra44. O Professor Oliveira Silveira traz uma breve definição:

A Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro

da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa

de sua atuação – a negritude de sua pele – e de agir como um grupo, a

fim de se libertarem das correntes que os prendem em uma servidão

perpétua.

( STEVE BIKO apud SILVEIRA).45

Abolição

Desde l758, quando o Brasil ainda era colonizado por Portugal, já surgiram idéias,

também entre os não-escravos, contra o tráfico da população negra africana e o

cativeiro e pela extinção do elemento servil. “Na campanha pela extinção da

escravidão, alguns intelectuais se destacaram, como Castro Alves, que afirmava ser a

escravidão uma mancha na honra nacional a ser lavada sem perda de tempo”

44 A homenagem a Palmares em 20 de novembro de 1971 foi o primeiro ato evocativo até a sua

implantação oficial, sete anos mais tarde, quando passaria a ser considerada como dia nacional da

consciência negra. Essa data foi lançada nacionalmente em 1971 pelo grupo Palmares, de Porto Alegre, no

Rio Grande do Sul. Para o movimento negro, não havia por que comemorar a data Treze de maio. A

abolição só havia ocorrido no papel, a lei não determinara medidas concretas, práticas, palpáveis a favor

da população negra. Ao retomar a história do Brasil, o Quilombo dos Palmares logo desponta sobre os

fatos históricos. Ver: <http://www.geledes.org.br/afrobrasileiros-e-suas-lutas/origens-do-vinte-de-

novembro.html>. Acesso em: 25 mai. 2010. 45 Disponível em: <http://www.geledes.org.br/afrobrasileiros-e-suas-lutas/origens-do-vinte-de-

novembro.html>. Acesso em: 25 maio 2010.

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71

(VICENTINO, 1998, p. 67).

A abolição no Brasil aconteceu depois de um demorado processo. Nas primeiras

décadas do século XIX, as indústrias inglesas avançavam nos mercados em todo

território mundial e a expansão do capitalismo e do trabalho assalariado pedia pela

extinção do trabalho escravo para a ampliação do mercado, o que levou a Inglaterra a

iniciar uma campanha nacional para abolir a escravidão nos países colonizados

trazendo como resultado um duro golpe sobre a sociedade escravocrata. No ano de

1850, o tráfico de escravos da África para o Brasil é extinto, lembrando que o

escravo ao chegar ao Brasil vivia em média de sete a 10 anos. A tendência da

população negra era decrescer, sem condições de se recompor a partir do índice de

natalidade. Inicia aí a crise dos grandes proprietários nordestinos de lavouras de

açúcar que era mercadoria próspera de exportação, sustentada unicamente pelo

trabalho escravo no nordeste. A decadência no mercado mundial teve como

conseqüência, nos anos seguintes, o declínio do sistema escravocrata, decorrente de

alguns fatores: o enfraquecimento do subsolo exaurido pela plantação de cana por

dois séculos, mais as fugas e rebeldias dos escravos e a campanha da Inglaterra para

abolição da escravatura.

Por outro lado, no sudeste se dá inicio à plantação de uma nova cultura: o café. Os

proprietários de café do sudeste – São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais –, diante

da necessidade de mão-de-obra intensa e na impossibilidade de importação de

africanos, inicia o comércio de pessoas negras escravizadas excedíveis (do nordeste

para o sudeste) com proprietários das fazendas e engenhos de açúcar das províncias

de Pernambuco, Bahia e Ceará que está em decadência.

Moura, no livro História do Negro no Brasil (1992), aponta que durante o sistema do

Brasil-Colônia, a escravização estava completamente estruturada. A população

escrava aumentava, nesse momento, por um baixo preço por meio do tráfico, e

simultaneamente a produção para exportação não tinha concorrência significativa no

mercado mundial, o que colocava o sistema escravagista em vantagem; a pessoa negra

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72

escravizada era a trabalhadora e ao mesmo tempo a mercadoria que podia ser vendida

a qualquer momento e muitas vezes com lucro compensador, e quando morria, a

reposição poderia ser feita por um preço baixo e quase sem ônus para os senhores.

Essa situação se inverte em meados de 1870, com as pressões pela libertação dos

escravos no Brasil. O senhor, na economia cafeeira, entrava em um novo universo: o

escravo deixa de ser uma mercadoria barata e fácil de ser substituída. Tal fato foi

motivo de preocupação dos proprietários que passam a ter que protegê-los, pela lógica

do capital, pois, caso contrário, teriam custos e prejuízos na produção. Por outro lado,

aumenta a procura internacional pelo café. O sistema europeu capitalista pressiona as

autoridades do Brasil colônia para que se dê a abolição da escravatura. Apresentam-

se, então, as conveniências de uma abolição gradual para assegurar sua economia,

surgindo as primeiras “leis protetoras” dos escravos. Como denuncia Moura: “de

perseguidos a protegidos”.

A Lei do Ventre Livre custou ao seu idealizador, José Maria da Silva Paranhos,

Visconde de Rio Branco, 41 discursos no senado federal para conseguir sua aprovação,

em 28 de setembro de 1871. Na Lei do Ventre Livre, todos os filhos de escravos

nascidos após essa data eram considerados livres, no entanto, a criança continuaria

sob a tutela do proprietário de sua mãe até os 21 anos de idade, permanecendo

escravizado até então. Essa lei foi promulgada pela Princesa Isabel, que ocupava a

regência em virtude de viagem do imperador, D. Pedro II, ao exterior.

Em 1885, foi decretada a Lei dos Sexagenários, que declarava livres os escravos com

mais de 65 anos, mediante indenizações pagas pelo governo; porém, a lei não paralisou

o processo abolicionista brasileiro, pois um grupo minoritário de pessoas negras

escravizadas se beneficiaria dessa lei, visto que a grande maioria morria antes de

completar 65 anos de idade.

Equivocadamente, essas leis não protegiam os escravos, mas sim os senhores de

escravo. Moura (1993) considera que a Lei do Sexagenário teve uma única função: a

de descartar a população negra escrava não produtiva, que já não tinha condições de

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73

trabalho e saúde e dava despesas aos seus senhores. Já a Lei do Ventre Livre era uma

forma de condicionar a pessoa negra a viver até os 21 anos numa escravidão

disfarçada, trabalhando para o seu senhor.

O sistema capitalista europeu, mais desenvolvido, estava investindo no Brasil em

áreas fundamentais (transporte, iluminação, portos e bancos) para movimentar o

sistema econômico, criando uma contradição no sistema político, econômico e social do

país, pois para o desenvolvimento capitalista precisava-se de trabalho livre e não do

trabalho escravo, para gerar consumo. É bom situar o leitor que nessa época irá

culminar a Guerra do Paraguai, entre 1864 a 1870, e a população negra foi envolvida,

sendo a maioria das pessoas negras convocadas. Nessa guerra morreram cerca de

90.000 pessoas e logo em seguida muitos dos sobreviventes negros foram

reescravizados46. O grande contingente de negros mortos nessa guerra propiciou uma

abertura maior para a imigração; o país precisava mudar rapidamente para relações

sociais de produção de acordo com as regras do sistema capitalista e, para isso,

necessitava de mão-de-obra livre. O novo trabalhador passa a ser o imigrante, que vai

sendo inserido na sociedade brasileira com o “mito de superioridade do trabalhador

branco, importado, que traria consigo os elementos culturais capazes de civilizar o

Brasil” (MOURA, 1992, p.56). Esse autor pontua que foi estratégica a promessa de

liberdade e o envio dos negros à guerra do Paraguai, pois serviu para justificar a

política imigracionista financiada “por parcelas significativas do capitalismo nativo e

pelo governo de D. Pedro II” e também serviu como tentativa para branquear a

população brasileira.

Nesse período temos duas situações demográficas da população negra, escrava e

livre: diminuição da população como consequência da guerra, do envelhecimento e

falecimento de grande parte de seus membros e concentração da população negra nas

províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Em outras províncias, a

economia está estagnada e a população negra vai ser incorporado aos tipos de

46 Ver MOURA (1992, p. 56).

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74

trabalhos regionais de exploração camponesa e da agricultura de subsistência – os

senhores de engenho precisavam de recursos monetárias para investir na dinâmica da

economia em decadência. “O negro é, assim, naquelas áreas, incorporado [...] a uma

economia de miséria.” (Ibid, p. 58).

Começa a fase do escravismo tardio: as fugas em massa das pessoas negras

escravizadas, a impossibilidade do tráfico da população negra escravizada, a pressão

dos capitalistas europeus para a implantação de um novo modelo de “trabalho livre”

desestabilizavam a classe senhoril ou das camadas sociais em desenvolvimento, o que

os fez procurar formas mais seguras de investimento. “O dilema se apresentava

diante dos fazendeiros: ou aceitavam a Abolição compromissada, como o Trono queria,

ou aceitavam a Abolição feita pelos próprios escravos, através de medidas radicais,

com a divisão de terras senhoriais” (Ibid, p. 62).

A Abolição sem reformas foi feita, o ministro conservador João Alfredo promove a

votação de uma lei que determina a extinção definitiva da escravidão no Brasil,

assinada em 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel: a chamada Lei Áurea.

A Princesa-Regente Isabel, em 13 de maio de 1888, em nome do imperador D. Pedro

II, fez saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e

aprovou a Lei Áurea 3.353/88, com o texto mais curto de todos os tempos em nossa

história: “Declara extinta a escravidão no Brasil”:

Artigo 1°: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no

Brasil.

Artigo 2º: Revogam-se as disposições em contrário. Manda portanto a

todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida

lei pertencer, que cumpram e façam cumprir e guardar tão

inteiramente como ela se contém.

(IBGE, 2010)47

Em virtude do jogo de interesse entre o reino e os latifundiários, o Brasil foi o último

país escravocrata a abolir a escravidão. A aprovação da lei desagradou setores da

47 Disponível em <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/104052/lei-3353-88>. Acesso em 25 maio

2010.

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75

aristocracia rural, levando-os a demandar, em vão, altas quantias de indenizações pela

perda do capital investido. As críticas ao Império fortaleceram o movimento

republicano, que perdeu sua última coluna de sustentação política.

Para Moura (1992, p. 62), “o ideal de branqueamento das elites seria satisfeito, e as

estruturas arcaicas de propriedades continuariam intocadas” quando se substitui a

mão-de-obra escrava negra por milhares de imigrantes. A economia se voltou cada vez

mais para a produção do café, enquanto a grande parte do trabalhador nacional

descendente da população africana ficou marginalizada e estigmatizada, juntando-se

ao contingente de homens libertos e livres se dedicando à economia de subsistência.

As qualificações da população negra escrava, liberta ou livre não foram reconhecidas

nem valorizadas.

Os negros, ao serem “libertos”, foram marginalizados e, com isso, relegados à miséria,

ao subemprego, ao desemprego e demais situações de marginalização. A população

negra, ex-escrava é atirada “como sobra na periferia do sistema de trabalho livre, o

racismo é remanipulado, criando mecanismo de barragens para o negro em todos os

níveis da sociedade, e o modelo de capitalismo dependente é implantado, perdurando

até hoje.” (Ibid, p. 62).

A estrutura social, política e econômica pós-abolição não favoreceu a população negra

para que pudessem diminuir as desvantagens acumuladas no período da escravatura,

pelo contrário, ao considerar uma estrutura social racista, só contribuiu para

aumentar as desvantagens que a população negra tinha enquanto grupo, na saída da

escravização, inviabilizando, assim, as condições favoráveis à sobrevivência e

fortalecendo a sua desvantagem histórica acumulada. A população negra foi exposta a

uma situação de marginalidade social no que se refere à inacessibilidade aos bens

materiais e culturais, considerando-se, ainda, o processo de enfavelamento e a nova

composição territorial que compreenderá as favelas como o local da moradia das

pessoas negras “livres”.

Page 77: Tese Quilombo

76

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VICENTINO, Cláudio. História memória viva: Brasil: período imperial e republicano. São Paulo: Scipione, 1998.

Page 79: Tese Quilombo

78

SEGUNDO TEXTO

O QUILOMBO DE IVAPORUNDUVA:

LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA, ATIVIDADE ECONÔMICA E CONFLITOS

ECONÔMICOS E SOCIAIS E POLÍTICOS

Figura 2: Ivaporunduva, na língua tupi significa “rio de

muitos frutos”, vaporu significa fruto, afirma Pinto

(2007)

Fonte Própria (2010)

Page 80: Tese Quilombo

79

Este texto pretende apontar a realidade da comunidade negra Quilombo

Ivaporunduva - localizada na região do Vale do Ribeira, município de Eldorado, no

estado de São Paulo. A população quilombola está inserida num contexto rural, nas

condições de subdesenvolvimento, no que diz respeito de acesso/ou dificuldade de

acesso aos direitos sociais. Com uma história de vida constituída pela/na escravidão,

tem vivenciado os entraves políticos atrelados aos seus direitos fundamentados na

Constituição Federal, os artigos 215, 216 e 68, que lhes garante a posse das terras,

porém, tem enfrentado o problema da expropriação de terras para dar lugar às

barragens. A comunidade vem discutindo e confrontando esses problemas pela/na

articulação política para avanço do desenvolvimento local, mostrando um processo de

conscientização, autovalorização e de reposicionamento da população negra

quilombola na sociedade brasileira. Buscamos compreender os mecanismos que

interferem no desenvolvimento social, político e econômico e as tentativas/caminhos

de superação percorridos nas condições concretas de vida social da população. Tais

caminhos constituem movimentos sociais e desenvolvem ações políticas relacionadas

às perspectivas de garantir a formação das comunidades, contra o processo de

construção do modo capitalista de produção.

***

O Vale do Ribeira está localizado entre a região sul do estado de São Paulo e norte do

estado do Paraná. O acesso à região é pela Rodovia Régis Bittercourt (BR-116).

Abrangendo a Bacia hidrográfica do rio Ribeira de Iguape e o complexo Esturino

Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá está subdividido em: Alto, Médio e Baixo

Ribeira com uma área de 2.830.666 hectares, com 481.224 habitantes. É uma região

com imenso valor cultural e ambiental, devido a seus recursos naturais, habitada por

pequenos agricultores familiares e comunidades indígenas, caiçaras e quilombolas.

.

Page 81: Tese Quilombo

80

Na região existem 57 comunidades quilombolas, considerado o maior número do

Estado de São Paulo48. A formação dessas comunidades teve origem com a exploração

de minérios no século XVII. Com o declínio da exploração da mineração na região, no

século XVIII, os fazendeiros brancos abandonaram suas terras no Vale do Ribeira e

os quilombolas se apropriaram da terra conseguindo manter seus laços históricos e de

parentesco com as comunidades vizinhas da região de Eldorado e Iporanga. Antes da

abolição da escravatura em 1888, as comunidades quilombolas já viviam “livres”.

Segundo o Instituto Socioambiental, “Ivaporunduva é a comunidade mais antiga do

Vale do Ribeira”, anterior até a fundação de Eldorado e da qual se originaram outras

comunidades como o quilombo de São Pedro, Pilões, Maria Rosa e Nhunguara (ISA,

2008, p. 93). O quilombola escreveu49:

48A Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, mapeou 3.524 comunidades quilombolas no

Brasil. A SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial) aponta que de acordo com

outras fontes esse numero pode chegar até 5000 comunidades no Brasil. Disponível em:

<http://www.palmares.gov.br/; http://www.portaldaigualdade.gov.br/copy_of_acoes/Principal.2007-11-

18.5002>. Acesso em 13 ago. 2010 49 SILVA, Laudessandro Marinho. Proposta de Implantação do Cooperativismo para a venda de produtos

orgânicos no Quilombo de Ivaporunduva. Trabalho de Conclusão de Curso em Administração de Empresas.

Universidade São Francisco. Itatiba, 2008.

Figura 3: Localização do Vale do Ribeira

Fonte: Instituto Socioambiental –ISA (2010)

Page 82: Tese Quilombo

81

(...) uma comunidade rural composta por 80 famílias e uma população

estimada de 300 pessoas. (...). Alguns registros citam a origem de

Ivaporunduva ainda no século XVI. Um deles fala de uma antiga

proprietária de terras e de escravos, dona Maria Joana, que teria

adoecido e morrido enquanto se tratava no exterior. Antes de vir a

falecer essa senhora doou suas terras à Igreja construída no local

por seus escravos para que esses escravos pudessem plantar, colher e

cuidar das terras. Sendo viúva e não tendo parentes, os escravos que

ali habitavam ficaram como os únicos herdeiros dessas terras. Esse

fato teria estimulado também a vinda de escravos fugidos de outras

partes do país que resistiram à captura dos capitães do mato por

volta de 1690, formando o Quilombo de Ivaporunduva. O meio de

sustento dessa Comunidade é a produção e venda de banana orgânica,

da cultura de subsistência, ou seja, a plantação para consumo das

famílias.

(SILVA, 2008, p. 10).

O quilombo de Ivaporunduva localiza-se na região do Médio Ribeira, na rodovia SP 165,

que liga Eldorado a Iporanga, ocupando uma área de 2.800 hectares no município de

Eldorado no estado de São Paulo. Encontra-se a 55 km do centro do município à

margem esquerda do rio Ribeira de Iguape que o separa da rodovia. A travessia do rio

Ribeira de Iguape, pode ser feita por pedestres por meio de barco a motor ou pela

balsa. A balsa também é utilizada para travessia de veículo, pelos três quilômetros

que separam o quilombo de Ivaporunduva, da vila, aportando-se próximo ao quilombo

Galvão.

As casas no quilombo não têm cercas e muros; encontram-se ainda, muitas casas

edificadas tradicionalmente com pau-a-pique, as crianças circulam livremente, as

famílias se banham nas nascentes do rio. A comunidade está isolada dos bairros e

quilombos que estão separados pela ribeira (rio Ribeira de Iguape). A presença de

visitantes na comunidade é identificada e controlada pelos balseiros e barqueiros na

travessia. Esses trabalhadores são moradores do quilombo e das comunidades

vizinhas, conhecem os moradores do local pelo nome, sobrenome e pela família com

que geralmente mantêm um grau de parentesco (primo, irmão, compadre, comadre, tio,

tia, primo etc.). Os visitantes são questionados na travessia sobre quem vai visitar, o

que vai fazer e por qual motivo está na comunidade. Após subir as escadarias à

Page 83: Tese Quilombo

82

margem do rio, que dará acesso à igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens

Pretos, outros moradores recebem os visitante com novos questionamentos. Essa

forma de recepção traz certa tranqüilidade às famílias da comunidade: sempre tem

alguém observando e cuidando do território desde a travessia.

.

Figura 6: Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, padroeira da comunidade quilombola de

Ivaporunduva. Tombada em 1972 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico e

Artístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) e restaurada em 2001.

Fonte própria (2009)

Figura 4: Travessia de Barco

A comunidade passa a ter barco a mortor a partir de 2000 –

Parceria entre a Associação Quilombo Ivaporunduva com Instituto

Socioambiental (ISA).

Fonte Própria (2008)

Figura 5: Porto: Travessia de Balsa

A balsa foi inaugurada em Ivaporunduva em 2006.

Parceria entre: Associação Quilombo de Ivaporunduva com o

Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP).

Fonte Própria (2008)

Page 84: Tese Quilombo

83

A principal atividade econômica e fonte de renda da comunidade são a produção e

comercialização de banana que é exercida predominantemente por todas as famílias, o

artesanato, o turismo, ainda em fase de estruturação, porém já é uma atividade que

tem gerado renda as famílias, o manejo de plantas medicinais e recuperação do

palmito juçara, galpão de embalagem e climatização da banana são investimentos que

estão em desenvolvimento para futuras fontes de renda do quilombo de Ivaporunduva.

Essas atividades são projetos da associação do quilombo de Ivaporunduva junto com a

OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e ISA – Instituto

Socioambiental. Outras formas de geração de renda são os programas do governo,

tais como: Bolsa-Família, Renda-Cidadã, além de benefícios, como Pensão e

Aposentadoria. O setor de transporte do município é responsável pela manutenção do

barco e da balsa, e também pelo pagamento dos balseiros e barqueiros. Outros

setores da prefeitura são responsáveis por empregar moradores como funcionários

públicos na área administrativa, no transporte, nos serviços gerais, na educação etc.

Figura 7: Procissão Festa de São João

Fonte própria (2009)

Figura 8: Missa afro

Fonte própria (2007)

Page 85: Tese Quilombo

84

Figura 13: Galpão de Processamento de Ervas

Medicinal - Construído em 2003 – Parceria com

Fundação Florestal/ISA/ Associação Quilombo

Ivaporunduva)

Fonte Própria (2008)

Figura 9: Galpão de Embalagem de Banana

Construída em fev/2003

Fonte própria (2008)

Figura 11: Casa do Artesanato - Construída

em 2005.

Fonte Própria (2008)

Figura 12: Artesãs de Ivaporunduva

Fonte: ISA (2005)

Figura 10: Agricultores de Bananas

Fonte própria (2008)

Figura 15: Pousada

Construída em 2005 pelo governo do Estado de

São Paulo.Parceria entre Associação Quilombo de

Ivaporunduva ISA/ITESP e Petrobras

Fonte própria (2008)

Page 86: Tese Quilombo

85

Há uma Escola de Ensino Fundamental Rural (E.E.F.M.) do Quilombo de Ivaporunduva

fundada em 1982 com duas salas de aula. Uma delas atende alunos entre quatro e

cinco anos na pré-escola mantida pelo município. E a outra sala atende alunos de

primeira a quarta série do ensino fundamental mantida pela rede estadual. As salas

são multisseriadas, atendendo alunos que estão em diferentes momentos de

aprendizagem escolar.

.

O quilombo conta com um posto de saúde mantido pelo

governo municipal desde 2006, que atende

semanalmente a população pelo Programa de Saúde de

Família (PSF); mantém uma agente de saúde que visita

as famílias de segunda a sexta-feira, um médico e

enfermeiros que realizam atendimentos na comunidade

uma vez por semana

O Quilombo de Ivaporunduva tem preservado parte da cultura trazida pelos africanos

escravizados para essa região. Com eles vieram objetos como o pilão, a vasilha de

barro ou madeira; a taipa (fogão a lenha) e a gamela; o conhecimento de ervas que são

Figura 16: Ensino Fundamental – 4ª série

Fonte Própria (2008)

Figura 18: Interior do Posto de Saúde

Fonte Própria (2008)

Figura 17: Escola de Ivaporunduva

Fonte Própria (2008)

Page 87: Tese Quilombo

86

utilizadas como remédios; simpatias; a reza do responso50 – bastante respeitada pelos

membros da comunidade; o mutirão; a roça; e casa de pau-a-pique com o chão de barro

socado e cobertura de sapé.

Conflitos econômicos e sociais e políticos

O legado dos líderes quilombolas e da comunidade de quilombos é a politização ,

expressa na coletividade, compreendendo crianças, jovens e idosos, e que se

manifesta no enfrentamento e na efetiva participação política no sentido de legitimar

e garantir o direito constitucional da titulação da terra de quilombos, cujo posse é,

desde a origem, símbolo de resistência.

Em meados de 1980, as comunidades do Vale do Ribeira contaram com a presença da

Comissão da Pastoral da Terra – CPT, que articulou, junto às lideranças, propostas de

criação de organizações político-sociais para fortalecimento das lideranças regional,

estadual e nacional de comunidades quilombolas. Desse movimento resultou a

consciência e luta política, luta esta que hoje está inserida na Constituição Federal de

1988, nos artigos 68, 215 e 21651.

A partir de 1990 criam-se outras organizações52 para fortalecimento desse

movimento, inclusive na luta que essas comunidades têm enfrentado com os projetos

de barragens que foram aprovados na década de noventa do século XX, pelo estudo de

50 Trata-se de uma oração feita por uma pessoa indicada, dotada do dom, a favor de alguém que perdeu

algum objeto. Após a realização da reza é só aguardar os dias determinados pelo orador que o objeto

aparece no exato lugar de onde sumiu, mas tudo depende da fé da pessoa a ser favorecida.

51 Artigo 68: “Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras

é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Garante

também os direitos culturais, definindo como responsabilidade do Estado a proteção das

“manifestações das culturas populares, indígenas e afrodescendentes”. O artigo 215 prevê que “o

Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de

outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. O Artigo 216, estabelece: “Ficam

tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos

quilombos”. Estes artigos representam avanço na História do país, no que se refere aos aspectos de

reconhecimento dos direitos culturais (art. 215 e 216) e direitos fundiários (art. 68) (MALCHER,

2006, p. 17). 52 EAACONE – Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira e MOAB –

Movimento Atingidos por Barragens (Integrantes da Igreja Católica, ambientalistas, sindicatos,

lideranças quilombolas, indígenas e caiçaras e comunidades rurais).

Page 88: Tese Quilombo

87

inventário hidrelétrico que prevê a construção de quatro barragens (Hidrelétricas de

Tijuco Alto, Funil, Batatal e Itaoca)53 no Rio Ribeira de Iguape com o objetivo de

geração de energia. Com as construções das barragens, aproximadamente 11 mil

hectares de área serão inundados e o desaparecimento das cavernas, unidades de

conservação, cidades, terras de quilombos e de pequenos agricultores será inevitável.

As comunidades quilombolas da região têm se manifestado contra a construção das

barragens ao longo de 20 anos, o que podemos identificar nos relatos de líderes

quilombolas do Quilombo de Ivaporunduva:

53 Ver o mapa: Impacto das barragens proposta no Rio Ribeira sobre o território quilombolas localizado

na porção paulista da Bacia Hidrográfica do Rio Ribeira de Iguape.

Fonte:http:<//www.socioambiental.org/inst/camp/tijuco/mapas/mapa_ribeira_impacto_quilombos_zoom.

gif> acesso: 02/07/2010

Figura 19: Mapa da localização dos territórios quilombolas ameaçados pela proposta da

construção das barragens para o Rio Ribeira de Iguape

Fonte: ISA-Instituto socioambiental (2010)

Page 89: Tese Quilombo

88

Nóis comemoramo esse ano que passou agora, 20

anos luta, e acho que isso foi uma coisa que é

real. Nóis não dexamo abate, já tivemo duas

licencia que nóis caçamo, quando falo nós não

falo nóis Ivaporunduva, é nóis do social. Aí vem

gente de são Paulo, de Brasília do Paraná, muita

gente envolvida nessa luta. Lógico que nós samo

o que embasa por meio legal, tem lei que defende

o quilombo. E quilombo é patrimônio histórico.

Todas as luta onde nóis tamo, nóis somos usado

como uma barra de ferro, num palanque, memo

que não pode ser arrancado de jeito nenhum.

Nem envergá não pode.

BENEDITO ALVES – DITÃO. 55 anos. Palestra

realizada em 16 de janeiro de 2010, no Quilombo

de Ivaporunduva54.

Algumas das 57 comunidades quilombolas, identificadas no Vale do Ribeira, estão

envolvidas em processos complexos de reconhecimento oficial e posse da terra que

envolvem instâncias do governo estadual, como o ITESP (Instituto de Terras do

Estado de São Paulo) e do governo federal, como a Fundação Palmares, SEPPIR

(Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial) e MDA (Ministério

do Desenvolvimento Agrário).

54 A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto (UHE Tijuco Alto) é um empreendimento planejado pela Companhia

Brasileira de Alumínio (CBA), uma das empresas do Grupo Votorantim, para aumentar a oferta de energia

elétrica para seu complexo metalúrgico localizado na cidade de Alumínio, antiga Mairinque, no interior de

São Paulo. A localização da UHE Tijuco Alto está prevista para o alto curso do rio Ribeira de Iguape, na

divisa dos Estados de São Paulo e Paraná, cerca de 10 quilômetros a montante da cidade de Ribeira (SP)

e Adrianópolis (PR), e a aproximadamente 333 km de sua foz, no complexo Estuarino-Lagunar de Iguape-

Cananéia-Paranaguá.

Figura 20: Manifestação Contra as barragens

Rod. Régis Bittencourt-BR-116

Fonte Própria (18/08/2009)

Page 90: Tese Quilombo

89

Os relatos dos líderes Benedito e José Rodrigues denunciam a negação do direito a

terra, na medida em que as construções de barragens tornariam inviável a garantia do

direito constitucional de quilombolas, indígenas e caiçaras, à permanência em suas

terras, desconsiderando que a preservação ambiental se dá em função dessas

comunidades agro-florestais que não apenas subsistem da terra, mas a preservam. O

Quilombo de Ivaporunduva obteve o reconhecimento de suas terras pelo ITESP, em

1997 e, em 2000, obteve esse mesmo reconhecimento pela Fundação Palmares. Em

2003, a comunidade recebeu do ITESP o título de parte de suas terras. Segundo o

ISA, até 2008 essas terras não haviam sido registradas em cartório, em função de

algumas medidas que deveriam ser tomadas pelo Estado. Em 2009, regularizou-se a

documentação, finalizando-se esse processo de reconhecimento. Em 01 de julho de

2010, a Associação Quilombo de Ivaporunduva, após um longo processo e por meio de

ação judicial, conseguiu que a terra fosse registrada em cartório como propriedade

coletiva.

Posições contrárias à preservação dessas terras, pelas comunidades, usam do

discurso do desenvolvimento econômico da região do Vale do Ribeira para validar suas

ações, especialmente no que se refere à construção de barragens. As lideranças

quilombolas, bem como a população das comunidades, reconhecem a necessidade de

desenvolvimento da região do Vale. Sua articulação política, portanto, caminha no

sentido de que não haja apenas uma direção de desenvolvimento econômico, a que

privilegia aqueles que têm interesse na construção de barragens, em detrimento da

cultura, do meio ambiente, da sustentabilidade e, sobretudo, do direito constitucional

que responsabiliza o Estado pela proteção às manifestações culturais populares.

Page 91: Tese Quilombo

90

A população do Vale do Ribeira são contra o projeto do Iguape. Maior

parte da população ribeira, o pessoal que vai perder a terra, nós dos

quilombos, todo mundo é contra. Nós ficamos muito descontente com

isso, porque deveria ser uma avaliação do povo. Já foi muito protesto

pro IBAMA dizendo que não queremos a barragem; e uma coisa muito

esquisita que aconteceu ali, é que me chamaram pra mesa

representando o movimento, uma vez que não chamaram nós pra nada.

Começaram o projeto, o estudo, e não chamaram a população pra

participar do estudo ou pra dar uma opinião, e agora, na audiência

pública, pra justificar algumas coisas que eles querem, então eles estão

chamando nós pro movimento. Eu já falei que eu até saí da mesa, porque

eu não consigo entender esse processo dessa maneira que vem

conduzindo. Uma coisa que eu fiquei muito preocupado e o que o

IBAMA não respondeu: a quantidade de hectares de mata ciliar que vai

ser retirado por causa do lago, o que acontece que enquanto um

agricultor faz uma pequena roçinha pra plantar o seu milho e o seu

feijão ele é barrado, é multado, e isso o IBAMA não soube responder.

Essa região é uma região que não é adequada pra esse tipo de projeto,

enquanto o povo está pedindo desenvolvimento sustentável de acordo

com a região, eles estão aumentando projeto deles.

(JOSÉ RODRIGUES, 2007)55

O depoimento do líder quilombola, José Rodrigues, tem um caráter denunciativo em

relação à incoerência dos órgãos que multam um agricultor familiar que depende de

sua roça para subsistência, porém aprovam ações desfavoráveis ao patrimônio cultural

e às riquezas naturais que as comunidades agroflorestais têm se empenhado em

preservar.

Em 2006 foi aprovado o Projeto da Construção da Ponte na Comunidade Quilombo de

Ivaporunduva proposta pela Associação Quilombo de Ivaporunduva em parceria com a

Secretaria de Política de Promoção de Igualdade Racial. O projeto está sendo

financiado pelo Governo Federal. A ponte, que terá 128 metros de extensão, dará

acessibilidade à rodovia municipal IPG-20 ligando os municípios vizinhos de Eldorado e

Iporanga. As obras realizadas pelo 10° Batalhão de Engenharia de Construção do

Exército tiveram início em 2008 e o término estava previsto para o final de 2009. O

portão da comunidade será aberto para todos, com implicações importantes,

55 Transcrição de entrevista com José Rodrigues, gravada em 2007. Extraída do vídeo da Audiência

pública – Vale do Ribeira. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>.

Acesso em: 02/07/2010.

Page 92: Tese Quilombo

91

mudanças e rupturas na maneira de viver da população. Com a construção da ponte, a

comunidade conquista o direito de ir e vir não tendo a restrições do acesso a outras

localidades.

Houve cautela na discussão acerca da construção da ponte. Uma preocupação da

liderança quilombola foi quanto às implicações e mudanças que poderão ocorrer em

função do desenvolvimento, podendo comprometer o resguardo do espaço e do

território. Questionou-se: Como manter a segurança e preservar as relações

construídas dentro de um espaço que envolve a ancestralidade, os costumes, o valor a

terra, a vida? Como preservar e viver em uma comunidade que seja sustentável?

As visitas de diferentes grupos à comunidade promovem intercâmbios culturais, que

representam tanto aspectos positivos como negativos para os membros da

comunidade. Está sendo considerado o fato de que, após a inauguração da ponte, os

portões do quilombo terão passagem livre para ônibus, carros, ciclistas, pedestres,

atravessadores na busca de comercialização palmitos e de animais, entre outras

coisas que possam extrair da natureza. O modelo de preservação na comunidade terá

que ser repensado.

O ser humano tem consciência do passado, ou seja, do período imediatamente anterior

aos eventos registrados na memória, em virtude de viver com as pessoas mais velhas.

Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado. “O

passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um

componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade

humana.” (HOBSBAWM, 1998, p. 23).

O não desprendimento total ao passado excluiria as mudanças e inovações legítimas.

Se o presente não pode ser uma cópia do passado, traçar a evolução histórica para

conhecer o povo de uma comunidade suscita questões relevantes para o estudo de um

povo ou de uma comunidade. Para Hobsbawm (1998), é necessário reconhecer

semelhanças e diferenças entre o passado e o presente porque o mundo se defronta

sempre com essas duas forças porque a história é previsão do futuro – atividade

Page 93: Tese Quilombo

92

necessária. “Toda previsão sobre o mundo real repousa em grande parte em algum tipo

de inferência sobre o futuro a partir daquilo que aconteceu no passado, ou seja, a

partir da história” (Ibid, p. 49-50).

O sentido de preservação da comunidade Quilombo de Ivaporunduva é notório tanto

nas relações internas e externas, com a natureza. Hoje são utilizados, para cultivo,

30% de toda área do território, nas roças de: arroz, feijão, mandioca, batata-doce,

cará, milho, maracujá e, em maior quantidade, de banana; o que garante um

desenvolvimento local sustentável, e cujo conceito é agregar valor ao produto e ao

serviço, concomitante à preocupação com a manutenção tanto da dimensão ambiental e

territorial, como com a produção natural e com o produto com valores agregados para

a geração de renda.

Para a comunidade se tornar independente dos programas assistencialistas e dos

projetos de ONG, a ponte será uma conquista importante, pois facilitará o

desenvolvimento local sustentável. Nas reuniões, as falas dos membros, lideranças e

produtores de bananas revelaram que a ponte significa, para a comunidade, a

concretização do direito constitucional de ir e vir. Essas falas revelaram, também,

que a comunidade tem consciência de outras implicações, não tão positivas, que o

desenvolvimento lhe trará.

A luta pela sobrevivência tem gerado um novo posicionamento e re-significação do

quilombola contemporâneo, a partir das transformações da sua história, no decorrer

dos séculos que sucederam ao fato de seus antepassados terem sido arrancados da

África e deportados para o Brasil. Por razões históricas e contemporâneas, essas

comunidades tradicionais do Vale do Ribeira são vítimas de um persistente e perverso

ciclo vicioso de abandono, marginalização, pobreza, despreparo, desqualificação,

desemprego, e consequente dependência de programas assistenciais.

Com Índices de Desenvolvimento Humano dos mais baixos do Brasil, e comparáveis

somente a algumas regiões críticas do nordeste brasileiro, o Vale do Ribeira é citado

duas vezes na lista dos 60 Territórios da Cidadania – regiões críticas de pobreza,

Page 94: Tese Quilombo

93

eleitas pelo Governo Federal como prioritárias para programas e investimentos de

desenvolvimento socioeconômico. O que falta, de fato, são iniciativas capazes de

interromper esse ciclo vicioso e iniciar um ciclo de ações de desenvolvimento social,

cultural, político e econômico para a população dessas comunidades. São frágeis e

lentos os benefícios efetivos à comunidade quilombola, trazidos pelos programas

governamentais, tais como o dos “Territórios da Cidadania” e o das “Meso-Regiões

Nacionais”, do Ministério da Integração Nacional, “Luz para Todos”, entre outros, os

quais visam promover ações para a redução da pobreza e das desigualdades regionais.

A experiência de expropriação da terra, vivenciada pelas comunidades ribeirinhas,

quilombolas, indígenas, caiçaras, camponeses, gera concomitantemente o êxodo rural

para os grandes centros urbanos, como também o enfraquecimento dos meios de

produção (agricultura familiar e de subsistência), em função de empreendimentos da

usina para geração de riqueza a partir de energia, desconsiderando o trabalho como

princípio de meio de produção da vida, bem como a preservação socioambiental,

cultural, econômica e política da comunidade. Para Gehlen (1991 apud PESSOA, 1999,

p. 80): “A expropriação dos camponeses significa igualmente a expropriação de seu

saber, do exercício de sua profissão, de sua gestão, de sua cultura, de seus valores de

referência, de suas relações afetivas [...]”.

Muitas regiões do Brasil têm vivenciado o problema da expropriação de terras, para

dar lugar às barragens. As comunidades quilombolas da região do Vale do Ribeira têm

se manifestado contra a construção das barragens ao longo de vinte anos. A luta e

resistência quilombola se dão na articulação política que consiste no legado dos

líderes quilombolas e dos moradores de quilombos à população mais jovem. É

perceptível a articulação política que faz parte do cotidiano da comunidade

quilombola. Para Denildo Rodrigues, liderança jovem quilombola do Movimento de

Atingidos por Barragens – MOAB:

Page 95: Tese Quilombo

94

Nós não somo contra gerar energia, mas nós temos que perguntar

energia pra que? Nosso povo vai ser beneficiada por essa energia?

Quem vai ser beneficiado por essa energia? [...]. Nóis aqui no Vale do

Ribeira a vinte anos tamo questionando, tamo lutando, já ocupamo o

prédio da Votorantim, já ocupamo o IBAMA em São Paulo, já ocupamo

o Ministério Minas energia em Brasília, já ocupamo vários canteiro de

obra de usinas hidrelétrica pra reparação tanto dos atingido que já

perderam suas terras, e que até hoje. Nóis somos contra essa forma

de gerar energia, nóis não somos contra em gerar energia, mas assim,

nóis somos contra essa energia que vai ser construída vai ser gerada

na idéia de tijuco alto, ela é uma energia duma empresa chamada

CBA- Companhia Brasileira de Alumínio, do Grupo Votorantim de

Erminio de Morais, esta energia gerada dessa empresa, não vai

acender uma lâmpada pra ninguém, vai se gerada energia pra produzi

alumínio pra competir no mercado internacional.

DENILDO RODRIGUES – BICO. Palestra realizada em 16 de janeiro

de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

A discussão e as propostas de ações estão presentes no espaço físico da igreja, e

ocorrem em reuniões e em informativos sobre os encaminhamentos de titulações de

terras de quilombos e de projetos que abordam questões relativas à: saúde, educação,

produção e comércio de bananas para o desenvolvimento local. Acontece uma

participação ativa da comunidade quilombola, que envolve crianças, adultos e idosos

em manifestações, como por exemplo, contra barragens, ou no ingresso de líder

quilombola na carreira política como vereador. Essas são ações, entre outras, que

legitimam a politização dos quilombolas no enfrentamento às posições contrárias que

se levantam para impedir a legalização de suas terras, bem como a preservação da

identidade cultural quilombola, que está intimamente ligada à agricultura familiar.

Para José Rodrigues, líder quilombola:

Page 96: Tese Quilombo

95

Os jovens quilombolas por si eles....tem a formação política, porque

assim, a luta do nosso povo é uma luta em todos os sentidos: luta por

educação, luta por saúde, luta por moradia, luta por terra né? Então

dentro dessas luta, nóis, mais velhos, vamos trabalhando e os mais

jovens vão continuando, então eles vão aprendendo a questão política,

porque tudo depende da política né? Essa questão de conseguir esse

objetivo, a questão da política do povo quilombola, já aprende na luta

né? Porque a gente luta por terra, a gente procura saber quem

resolve esses pobrema, quais são as política voltada, então a questão

da formação política, ele aprende logo na caminhada junto com os mais

velhos. Então os jovens quilombolas têm um pouco mais de formação

política porque eles participam da luta pela vida, né? Em todos os

sentidos: saúde, educação. Então isso, a formação, já vem da própria

luta né? [...] O futuro é o seguinte que nóis seja um povo reconhecido

como povo negro que tem o memo direto né? Cumprindo a constituição

brasileira , nóis somos um povo ainda discriminado né? Não somo bem

reconhecidos pela sociedade com...ter direito que todo mundo tem né?

Nós lutamos por melhoramento na educação por outro seguimento

tamém que precisamos, então quer dizer, o nosso povo, é.....nosso povo

tem uma luta em todos os sentidos né?, então eu acho que, por

questão política ele aprende na luta, privilégios, tamém...precisa lutar

pra conseguir alguma coisa. Então nosso povo é na luta ele aprende

tudo, porque ele tem que lutar pra sobrevivência num país desse

racista, que discrimina nosso povo né? Então né, nós temos que agir

dessa maneira, nosso jovens, nosso povo vai aprendendo tudo dentro

dessa luta. Então no futuro nóis queremos que essa sociedade, que

reconheça a nossa gente, como tamém brasileiro que tem direito que

nem tem todo mundo [...] Então eu acho que se nóis continuarmo

lutando nós vamos alcançar esse objetivo que é ter o direito pela vida

em todos os sentido como os outros tem.

JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE. Conversa realizada em 20

Agosto de 2008. Conversa no Quilombo Ivaporunduva56

2008 apud AMÉRICO, 2008 p. 47).

A comunidade está em um momento de transição frente às expectativas no que se

referem às possibilidades de acesso aos bens comuns; o que implica um movimento de

transitoriedade em busca de emprego visto que o trabalho da agricultura familiar não

tem gerado renda suficiente para atender as demandas básicas de consumo. As

evidencias apontam para a falta de acesso aos bens materiais e tecnológicas em

56 A gravação dessa entrevista foi realizada pela Tânia Américo em 2008 quando realizando a pesquisa de campo para

compor o trabalho de Conclusão de Curso em Pedagogia. Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba,

2008. O material foi cedido e retextualizado por mim. Ver em: AMÉRICO, Tânia A. Cultura e Educação

na Comunidade Quilombola de Ivaporunduva no Vale do Ribeira. Trabalho de Conclusão de Curso em

Pedagogia. Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, 2008.

Page 97: Tese Quilombo

96

decorrência da marginalização oriunda da lógica do sistema capitalista. Por outro lado,

o sistema que está disponível para atender as comunidades é contraditório, pois a

população depende totalmente dos órgãos públicos: o Estado e a Prefeitura Municipal;

duas instituições geradoras de empregos e prestadoras de serviços nas áreas da

saúde, educação e transporte.

A influência do poder público local é marcante nessas comunidades. Há fortes

resquícios de coronelismo, também chamado caciquismo57, por conta do que, ainda nos

deparamos com situações, como, por exemplo, a sonegação de socorro e de assistência

médica às pessoas de partidos políticos opostos aos dos governantes locais, entre

outros absurdos. Existe uma inter-relação de dependência entre os programas

assistencialistas financiados pelo Governo, projetos de ONG e mesmo de

Universidades, e as comunidades quilombolas. As comunidades têm sido peças

estratégicas para captação de recursos para pesquisa ou para estudos acadêmicos,

cujos projetos apontam como objetivo central a geração de renda para determinada

comunidade. Porém, o recurso não fica para os membros da comunidade, não são deles

os conhecimentos; os técnicos contratados são de fora ou ligados a ONG e

Universidades e, ao término dos projetos a comunidade volta a ser dependente de

outros projetos – não se concretiza a autonomia desejada; o que me leva a questionar

se a partir do acesso aos conhecimentos, das especializações de nível superior

adquiridas nas universidades, os quilombolas poderiam contribuir com a comunidade.

Se a especialização, nas mais variadas áreas, garantiria o trabalho e a renda a partir

dos recursos naturais disponíveis no território, o que faria com que a população

quilombola não necessitasse procurar os grandes centros urbanos como única opção

em busca de renda. Faz-se necessária uma análise sobre os riscos que uma

57 Esse fenômeno é personificação mais acabada do poder privado no Brasil. Surgido em 1831, com a

criação da Guarda Nacional no Brasil, é identificado com o Brasil de passado agrário, rústico e arcaico,

mas ainda sobrevive em certos estados do Nordeste, como o poderoso “mandão local”. É ele que compra

terras, emprega pessoas, abusa sexualmente de menores, tem amantes em outros locais e domina o poder

local com mãos de ferro.

Page 98: Tese Quilombo

97

comunidade quilombola tem diante de uma sociabilidade altamente complexa (a

capitalista) que subjuga todas as demais.

[...] Nós temos várias fonte de geração de renda, agricultura de

subsistência, aquilo que a gente pranta pro próprio consumo, mas

também levando em consideração porque se nós fosse pensar

simplesmente, puramente na questão do dinheiro não na questão da

agregação do valor aos seus produto, toda essa mata que a gente vê

aqui taria tudo no chão, ou plantado eucalipto, ou prantado pinos,

outra monocultura que dá dinheiro, mas nóis não queremos isso, o que

nóis queremos é conciliar o desenvolvimento humano e com a

preservação ambiental, nós não queremos dinheiro pra nós se...nós

queremos condições pra nóis dá aquilo que o Ditão falou, dá estudo

pros nossos jovens, dá oportunidade pro nossos jovens pra eles tá

formando na cidade e voltando pra comunidade pra contribuir cada

vez mais, não só com desenvolvimento da nossa comunidade, mas

tamém com o desenvolvimento das outras comunidades em volta. Isso

é importante.

DENILDO RODRIGUES – BICO. - 28 anos. Palestra realizada em 16

de janeiro 2010, no Quilombo de Ivaporunduva .

As ações das lideranças quilombolas são pela inserção dos seus jovens no ensino

superior e em cursos profissionalizantes, para que se apropriem dos avanços

tecnológicos na área de ensino, pesquisa, informática, formação de lideranças

quilombolas nas diversas áreas, com o objetivo de encerrar o ciclo de dependência de

programas assistencialistas e de projetos de ONG e mesmo de universidades.

Seguindo a linha de pensamento marxista de Heller (2008, p. 16), se a interferência e

mudanças de valores é resultado das relações e situações sociais – “a própria

produção humana pode ser universal, livre, consciente ou, ao contrário, como ocorre

na alienação especializada, mecânica, escravizada ao salário”.

Na comunidade, pensar sustentabilidade está ainda ligado ao desenvolvimento

coletivo, não se descola dos laços da tradição passada. Existe uma luta constante na

comunidade para manter os jovens na terra. Entendo que a terra provê o sustento e

constitui o homem pelo trabalho ao transformar a natureza, e essa é uma atividade

consciente.

Page 99: Tese Quilombo

98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMÉRICO, Tânia A. Cultura e Educação na Comunidade Quilombola de

Ivaporunduva no Vale do Ribeira. Trabalho de Conclusão de Curso em Pedagogia.

Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, 2008.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a História; tradução de Carlos Nelson Coutinho e

Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

HOBSBAWM, Eric J. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

ISA – Instituto Socioambiental. Campanha contra barragens no Ribeira: Audiência

Tijuco Alto, 2007. Disponível em:

<http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>. Acesso em: 02 jul. 2010.

ISA - Instituto Socioambiental. Campanha contra barragens no Ribeira, 2007.

Disponível em: <http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>. Acesso

em: 02 jul. 2010.

ISA - Instituto Socioambiental. Campanha contra barragens no Ribeira: O que

dizem os movimentos sociais e associações do Vale do Ribeira, 2007.

PESSOA, Jadir de M. Aprender e ensinar no cotidiano de assentados rurais em Goiás.

Revista Brasileira de Educação. 1999, n. 10, p. 79-89.

SILVA, Laudessandro Marinho. Proposta de Implantação do Cooperativismo para a

venda de produtos orgânicos no Quilombo de Ivaporunduva. Trabalho de Conclusão

de Curso em Administração de Empresas. Universidade São Francisco. Itatiba, 2008.

Page 100: Tese Quilombo

99

TERCEIRO TEXTO

COMUNIDADE, TERRITÓRIO E MODOS DE VIDA

Page 101: Tese Quilombo

100

A forma como a comunidade quilombola e, em especial, a comunidade de Ivaporunduva

lida com o passado e enfrenta os embates do presente têm características bastante

peculiares, que são constituintes da própria formação sociocultural desse povo. As

relações que os quilombolas estabelecem com seus antepassados estão presentes nas

suas relações cotidianas, não como cópia, mas como continuidade renovada. Na

continuação deste estudo, busco articular a relação que a população da comunidade

Quilombo de Ivaporunduva estabelece com o território, a partir dos seus modos de

vida, e como compreendem o território e a própria relação com a terra e a floresta,

com a etnicidade e a história da formação da comunidade, contada pelos próprios

quilombolas de geração a geração.

***

Parece-me importante trazer a contribuição do geógrafo brasileiro Milton Santos

(2007), para que se possa esclarecer o conceito de territorialidade. Para esse autor,

o território não pode ser visto unicamente como uma superposição do construído pelo

“homem” sobre o “natural”. O território é o chão, mais a população que nele habita. Aí

os homens constroem o sentimento de pertencimento. “O território é a base do

trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais

ele influi” (p. 96). O autor se refere ainda ao “território usado”, utilizado por uma

população e, como tal, é um campo de batalha, uma arena de luta entre interesses;

mas, diz ele, também é o lócus de possibilidades de solidariedade.

Tenho consciência de que a história que trago, os depoimentos, os relatos, as

fotografias, as memórias e a minha vivência entre os quilombolas – meus

interlocutores – sofrem, enquanto lido com eles, “redução brutal das inúmeras

possibilidades de interpretação da experiência de campo e do difícil exercício de

alteridade realizado” – tomando emprestadas as palavras de Silva (2000, p. 118).

Page 102: Tese Quilombo

101

Em 1994, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) divulgou um documento

elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, com a definição

do termo “remanescente de quilombo”, a partir da resolução do Artigo 68 dos Atos

Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal (CF) de 1988.

Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou

resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação

biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população

estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram

constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas,

sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de

resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida

característicos num determinado lugar58.

Comunidades remanescentes de quilombo são grupos sociais, e o que os caracterizam

é a identidade étnica, que os distingue do restante da sociedade. Identidade étnica é

um processo de autoidentificação, dinâmico e que não se reduz a elementos materiais

ou traços biológicos distintivos.

A identidade étnica de um grupo é a base para sua forma de

organização, de sua relação com os demais grupos e de sua ação

política. A maneira pela qual os grupos sociais definem a própria

identidade é resultado de uma confluência de fatores, escolhidos por

eles mesmos: de uma ancestralidade comum, formas de organização

política e social a elementos lingüísticos e religiosos59.

Na convivência com os quilombolas de Ivaporunduva, para compreender as relações ali

estabelecidas entre os membros da comunidade, observei: as discussões das famílias

em busca de soluções para manter a sobrevivência no território; a maneira como os

quilombolas organizam-se para defender sua terra; o trabalho das famílias na

agricultura de subsistência; as divisões de terra entre os membros da comunidade; as

discussões dos grupos de trabalhos ali estabelecidos; as reuniões, assembléias e

eleições da coordenação da associação quilombo Ivaporunduva; as relações com outras

entidades etc.. Pude perceber que essas relações não ocorrem de forma harmoniosa;

elas são conflituosas. Utilizo aqui uma fala do Zé Rodrigues: “A nossa luta do dia-a-dia

58Ver em: Comissão ProIndio. Disponível em: <http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/i_oque.html> Acesso em: 28 out. 2010. 59 Ver referência n. 27

Page 103: Tese Quilombo

102

vai tê que continuar. Aí nós vamos tê que, cada vez mais, se organizar melhor. Pra ter

uma qualidade de vida boa, geração de renda boa, manter os laços culturais de

amizade e de irmão. Mas eu acho que nós temos mais luta.”

Para Bauman (2001), a palavra “comunidade”, na sociedade moderna, passa por

diversas interpretações e entendimentos. Esse conceito está carregado de sensações

agradáveis e associado à segurança, aconchego e bem-estar no interior de uma

determinada comunidade. O autor pontua, porém, que o conceito de comunidade, como

entendimento comum, só é possível de ser alcançado a partir de uma “longa e tortuosa

argumentação e persuasão”, o que compreende também inúmeras discussões para

solucionar os problemas da vida. Ele acrescenta que:

O acordo comum nunca estará livre da memória dessas lutas passadas

e das escolhas feitas no curso delas. Por mais firme que seja

estabelecido, portanto, nenhum acordo parecerá tão “natural” e

“evidente” [...] Nunca será imune à reflexão, contestação e discussão,

quando muito atingirá o status de um “contrato preliminar”, um acordo

que precisa ser periodicamente renovado, sem que qualquer renovação

garanta a renovação seguinte. A comunidade de entendimento comum,

mesmo alcançada, permanecerá, portanto, frágil e vulnerável,

precisando para sempre de vigilância, reforço e defesa.

(Ibid, p. 19).

Busco compreender o conceito de comunidade para os membros do Quilombo de

Ivaporunduva, a partir de uma fala que retomo da Zica:

[...] Primeiro é pensar na família; na verdade, é pensar na família pra

trabalhar para as famílias. E como quilombo, como comunidade tudo

mundo é família, tudo mundo é sangue de uma forma e de outra, então

você pensa em todo mundo. As pessoas as vezes podem olhar, não

existe união ali ou aqui, mas em quilombo, de uma forma ou de

outra sempre vai existir a união, porque o sangue fala mais alto e as

pessoas na hora de trabalhar, de se unir pra ajudar o irmão, um ajuda

o outro e não fica pensado em querê crescer e deixar o outro pra

trás.

IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança

quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo

de Ivaporunduva

Page 104: Tese Quilombo

103

Ao dizer “as pessoas podem olhar, não existe união ali ou aqui”, Zica pontua que as

decisões e a convivência entre os membros, mesmo sendo famílias, não são

harmoniosas, porém, “de uma forma ou de outra sempre vai existir a união”, ou seja,

mesmo em meio aos conflitos, as tensões e os problemas serão solucionados, pois

existe uma interdependência nas relações para se garantir a sobrevivência.

Há basicamente cinco espaços dentro de Ivaporunduva, onde os grupos familiares

predominam diferenciadamente na ocupação da localidade. As famílias estão em

situações e posições também diferenciadas na comunidade e, muitas vezes, na

dinâmica das relações, elas divergem e convergem em aspectos e interesses

específicos. Está presente a contradição.

Vamos pensar geograficamente, você sabe que Ivaporunduva não é

uma só comunidade, né? Você percebeu? O quilombo são vários

quilombos, cada grupo desse, tem uma situação diferenciada dos

outros. Sim, analisando Bocó, analisando Córgo Grande, analisando

Cortesia, Reversa, analisando Vila você vai ver que são coisas

diferentes, são muito diferentes. Ivaporunduva são cinco grupos. Aí

você vai ver que o jeito de visão das coisas é diferente.

ORIEL RODRIGUES, 38 anos -Liderança Quilombola– Conversa

realizada em 13 de agosto de 2009, no Quilombo de Ivaporunduva.

O Quilombo de Ivaporunduva está vivenciando um profundo e dinâmico processo de

transformação, num momento em que a comunidade discute sua reorganização para um

novo estágio de busca de desenvolvimento e acesso aos bens materiais e outros

conhecimentos o que engloba os tecnológicos. Nesse sentido, minha atenção está

voltada para o fortalecimento das ações reivindicatórias com foco no atendimento das

demandas de acesso a saúde, transporte, educação, cultura e fortalecimento político,

social e econômico, nesse caso, a partir da comercialização dos produtos e serviços

ofertados pelas famílias da comunidade, visando a geração de renda.

O primeiro local que visitei foi a casa dos pais de Zilda60, os Furquim, que fica no

bairro Bocó, retirado da Vila central. As famílias do Bocó são predominantemente de

60 Zilda é a representação da típica mulher “nascida e criada no Quilombo de Ivaporunduva”. Mulher,

negra, mãe e avó, cuidadora dos filhos biológicos e dos vários filhos agregados que vivem com a família.

Page 105: Tese Quilombo

104

sobrenome Furquim. A demarcação do território estabelece os locais para agricultura

familiar, que geralmente são próximos da casa patriarcal. Os filhos, ao casarem-se,

fixam suas moradias em torno ou muito próximo da casa dos pais. Em locais mais

distantes da Vila, tais como Córrego Grande, Cortesia, Reversa e Bocó, encontramos

famílias vivendo em casas edificadas com estrutura tradicional, ou seja, em Capuova61,

como explica Ditão:

Aqui é Capoava, desta forma que era casa antigamente, veja bem, o

escravo saiu da escravidão ele não tinha assim nenhuma tecnologia

pra fazer casa, então óh, aqui tem quatro produto, quatro material.

Se você olhar bem só tem a madeira, o cipó, o barro e o capim esses

quatro produto, quatro material eles faziam a casa deles entendeu? O

cipó fazia o papel de parafuso, dos arame pra amarra, do prego, o

barro pra fazer parede, papel da parede, do broco, o capim o papel

da telha e madeira é a base da casa, do barganho aqui que seria aquela

viga que a gente faz o cimento pra começá a casa, aqui é capoava, ela

é uma casa térmica que na época de calor, igual agora se você entrar

aí dentro tá fresquinho e na época do frio ela é mais aquecida mas

quente não muito fria. Eu nasci numa casa dessa forma

BENEDITO ALVES – DITÃO. 55 anos. Passeio pela Trilha do Ouro -

realizado em 17 de janeiro de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva62.

Uma jovem senhora que traz consigo os costumes tradicionais das mulheres mais idosas da comunidade.

De olhar profundo e observador, ao mesmo tempo desconfiado, Zilda carrega consigo a tranquilidade e

sensibilidade da cura e da vida que vem da terra, da água, das ervas, do mato e das rezas que tanto

respeita. Mulher que aprendemos a respeitar desde o primeiro contato. Zilda me apresentou as famílias

de sobrenomes Furquim, Pupo, Rodrigues, Silva e Marinho, as quais compõem a comunidade. 61 Capuova é o espaço utilizado pelos quilombolas onde eles fazem as suas roças e constroem as suas

moradias - a casa de pau-a-pique que é chamada também por capuova. 62 O relato faz parte de uma explicação sobre os modos de vida dos quilombolas na comunidade

Ivaporunduva. Essa explicação se deu, durante uma atividade do Ecoetnoturismo para um grupo de

Professores – o passeio pela Trilha do Ouro, considerado a rota do trabalho da extração do ouro da

população negra na época da escravização.

Page 106: Tese Quilombo

105

Depois, Ditão conta que “o escravo saiu da escravidão ele não tinha, assim, nenhuma

tecnologia pra fazer casa”. Em algumas passagens da história ele narra sobre quando

o negro fugiu do trabalho escravo e fez a capuova com os materiais que encontrou na

natureza.

Há de se pensar o que seriam os quilombolas na sociedade brasileira, na época da

escravidão, ou seja, nesse contexto seriam pessoas negras fugidas do trabalho

escravo ou abandonados nesse local pelos donos de escravos. Não só a casa de pau-a-

pique, mas os seus meios de sobrevivência demonstram que foram as condições reais e

materiais que determinaram o tipo de moradia e as formas como os quilombolas se

organizaram para produzir a vida, dependendo exclusivamente do que encontraram na

natureza e transformaram. Utilizaram a técnica de produzir a vida com a geração que

os antecedeu, considerando sua força de trabalho que produziu e reproduz, ou seja,

transformando a partir da atividade que aprenderam com os próprios quilombolas. A

história desse povo mostra que ele se organizou para produzir a vida material e

Figura 1: Ditão: Explicando o que é uma Capuova, -

Trilha do Ouro - Quilombo Ivaporunduva

Fonte Própria (2010)

Page 107: Tese Quilombo

106

conservar suas crenças, unindo tradição com o novo que foram criando e

transformando, refletindo no que atualmente são. “Os homens fazem sua própria

história, mas não a fazem como querem; não a fazem, sob circunstancias de sua

escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente ligadas e transmitidas

pelo passado” (MARX, 1997, p. 21).

Nas localidades fora do centro da vila, como, por exemplo, no Bocó, é possível

observar e vivenciar características tradicionais na cultura praticada pelas famílias

quilombolas. No que se refere à estrutura das casas dessas famílias, a mudança não

foi tão brusca, mesmo com a recente chegada da energia elétrica. Tanto para

construir a casa quanto para produzir os móveis (cama, armário, bancos, mesa), são

utilizados as madeiras, tocos de árvores, cipós e bambu, todos eles produtos

reaproveitados da matéria prima advinda da mata.

Para a construção da capuova, o trabalho é realizado em mutirão, ou seja

coletivamente, portanto não carece de renda (ver figuras: 3 e 4). No entanto, os

moradores que estão na Vila, têm adotado gradativamente o modelo de construção de

casa de alvenaria, o que necessita de trabalho especializado e, portanto trabalho

remunerado.

A água do rio Bocó vem de várias nascentes é utilizada pelas famílias para beber e

cozinhar, pescar, banhar e lavar roupas. Ao longo do rio Bocó é comum encontrar as

mulheres lavando roupa dentro rio, enquanto a poucos metros de distância, as crianças

estão também ali nadando, brincando, pulando das pontes feitas com troncos e

saltando dos galhos das árvores (ver figuras: 5 e 6).

A taipa63 utilizada para preparar alimentos foi mantida, mesmo tendo o fogão a gás em

algumas casas (figura 7). A lenha consumida nas taipas é retirada dos galhos caídos na

mata, permitindo que as famílias economizem com a compra de gás (GLP), e diminuam

63

O fogão a lenha que é feito de barro e bambu é chamado pelos quilombolas de taipa. Taipa =

fogão a lenha feito de barro.

Page 108: Tese Quilombo

107

as dificuldades práticas em adquirir os bujões. A família patriarcal, no geral, é bem

numerosa, tendo em média nove filhos, mais os netos, bisnetos e os sobrinhos

agregados.

Figura 4: Barreação da casa de pau-a-pique da Maria

Furquim - Bocó

Fonte Própria (2007)

Figura 3: Preparo do Barro para revestir a casa - Maria Furquim - Bocó

Fonte Própria (2007)

Figura 5: Casa de Pau-a-pique pronta - Bocó

Fonte Própria (2007)

Page 109: Tese Quilombo

108

Tradição Oral no Quilombo de Ivaporunduva

No Quilombo de Ivaporunduva, a história cultural está fundamentada na oralidade,

que ocorre nas interações intra e entre famílias e comunidades quilombolas irmãs. As

rodas de conversa geralmente se iniciam no final da tarde e avançam noite adentro.

São momentos especiais de interação entre os idosos, adultos, jovens, adultos e

crianças, mulheres e homens, todos em torno do fogo, no terreiro das casas ou em

Figura 8: Casa Vó Celina – Bocó

Fonte própria (2009)

Figura 5: Rio Bocó

Fonte própria (2007) Figura 6: Rio Bocó – Vó Celina lavando Roupa Rio Bocó

Fonte própria (2010)

Figura 7: Taipa – Fogão de Barro

Page 110: Tese Quilombo

109

volta da taipa acesa, que aquece a casa de pau-a-pique, no inverno e no verão. Mesmo

em dias quentes de verão, a taipa é mantida acesa para esquentar água, preparar o

alimento e espantar insetos, como borrachudo, pernilongo e moscas. Em alguns

momentos, em meio a conversas, os mais idosos tomam a palavra e dão início à

contação de histórias, que normalmente são seguidas de uma rica discussão ou debate

de idéias, com livre participação de todos.

As mesmas histórias são contadas de diferentes maneiras ou enfoques, mas sempre

ouvidas atentamente como se fosse pela primeira vez. Os personagens recebem o

sobrenome do avô ou da avó de uma das famílias da comunidade. As histórias de vida

presentes nos contos sobre os antepassados, na tradição e nos mitos, são bem

carregadas de significados e valores, normalmente pintados por fatos ou fatores

sobrenaturais impressionantes e marcantes.

Contar história é uma arte que transforma um simples momento da vida em uma

situação mágica e poderosa. Alguns que chegam, espiam, escutam e por ali ficam. O

ensino e aprendizagem acontecem por meio da oralidade. Assim foi e continua sendo.

A história da comunidade quilombola de Ivaporunduva ainda tem sido transmitida de

pai para filho e de geração a geração. Como diz Setiloane, “A memória e a capacidade

de contar história são duas qualidades vitais [...].” (SETILOANE, 1992, p. 13).

Figura 10: Roda de Conversa no Bocó

Jardete, Nhá Neire, Vó Celina e Zica

Fonte Própria (2008)

Figura 9: Roda de Conversa na praça

Fonte própria (2009)

Page 111: Tese Quilombo

110

Ouvi várias vezes nas rodas de conversa, histórias contadas por diversos integrantes

da comunidade, que traziam mitos, por meio dos quais relatavam a formação da

população quilombola; dentre esses mitos, encontramos o da geração dos “neguinho

d‟água”, um dos favoritos dos mais velhos. Na primeira vez que tive oportunidade de

ouvi-la, não utilizei recursos de equipamentos de áudio e vídeo para realizar o

registro, considerando ser um dos contatos iniciais com a comunidade. Naquele

período, o que me saltava aos olhos era a riqueza das narrativas, histórias de vida e

cultura local até então desconhecidas por mim.

Quem me concedeu o relato desse conto foi o jovem Cristiano Furquim, morador do

Quilombo de Ivaporunduva (figura 9). Ao perguntar se ele conhecia a história do

neguinho d‟água, ele disse: “Eu conheço a história da nega d‟água, inclusive existe

descendente dela na comunidade, a Euzébia. Ela é minha parente, mora na

comunidade.” Eu me surpreendi, pois não conhecia essa versão, que na verdade era

inédita, uma vez que as várias versões da história que eu ouvira até então eram dos

“neguinhos d‟água”, mas nunca da “nega d‟água”, o que me fez questionar sobre o

dominante protagonismo masculino nas relações sociais, políticas e econômicas. O meu

olhar brilhou e me enchi de curiosidade: Nego d‟água ou Nega d‟água? Não é meu

objetivo, neste momento discutir questões de gênero.

Pude observar que a tradição oral é conhecida e dominada pelos mais jovens, e os

contos são relatados de várias formas, modificados e re-significados pelas pessoas

que as contam. Os mitos são carregados de histórias e simbologias, valores e fatos

impressionantes, os quais revelam a formação e a transformação da comunidade.

Page 112: Tese Quilombo

111

[...] Quem me contou a história foi meu Vô e a minha Vó. Tinha

gente que ia pescar de tarrafa na ribeira de canoa, os

quilombolas. Teve um dia lá, que eles conseguiram catar essa

nega d‟água na tarrafa. Eles foram catá peixe (risos), e aí eles

pegaram ela, daí falam que foi necessário mais ou menos uns

dez homens pra poder tirar ela da água, que ela era

pequenininha mais era forte que nem um burro (risos). Ela tinha

mais ou menos um setenta centímetros. Dizem que era

pretinha, de cabelo tão duro, sequinho que parecia que ela nem

tinha cabelo, com rosto de gente, normal, detalhes, o dedo dela

aqui (mostra a mão aberta) sabe como é dedo de pato? Têm

aquelas nadadeiras? O dedo dela tinha aquelas nadadeiras no pé

e na mão, eles pegaram ela, levaram pra terra, pra tentar fazer

ela se adaptar na terra, depois fizeram lá aqueles... Como posso

falar...fizeram um ritual deles, pra desencantar ela, chama

desencanto64, se não fizessem o ritual com o sal que jogam o sal

pra fazer com que ela desencantasse, se não fizesse esse ritual

ela desaparecia, fizeram e ela se manteve lá, ela casou com

negro do quilombo. O sobrenome dela agora é Euzébia, Maria

Euzébia dos Santos, ela é mãe, tem os netos descendentes dos

neguinhos da água.

CRISTIANO FURQUIM. 24 anos. Quilombola de Ivaporunduva.

Conversa realizada em 24 de abril de 2010.

Cristiano Furquim, ao relatar o conto da “nega d‟água”, quando enfatiza que “o pessoal

de lá dizem”, ele toma a posição de que precisa acreditar no que os seus avós lhe

contaram. A entrevista, no início, foi bastante pausada, cada palavra foi escolhida e

pensada por ele, cuidadosamente, antes de ser pronunciada. Ao dizer “eles disseram”,

não “eu", foi perceptível seu conflito e sua preocupação com o meu olhar de

pesquisadora, no sentido de um pensar a pesquisa e a crença como elementos

desarticulados, dissociados, como se a pesquisadora teria dificuldade em crer que ele

acredita nas histórias que os avós contaram.

64Cristiano explica a necessidade de realizar o desencanto na Neguinha D‟água para ela não desaparecer.

Para a comunidade: “O encanto lá pra nós é um seguinte, por exemplo, igual se eu achar uma pedra de

ouro lá no quilombo, o ouro ele é encantado segundo (levanta as duas mãos e faz o gesto como se fosse

entre aspas) as pessoas de lá, sim, porque a gente não tem poder sobre ele, se eu pegar um ouro e

colocar em cima da mesa, segundo o pessoal lá, amanhã eu vou chegar aqui ele não vai estar aqui, ele vai

desaparecer, e aí tem que fazer aquele ritual, como ouro, tem que fazer xixi no ouro (risos) ou cortar o

dedo e pingar sangue”. (Conversa realizada em 24/04/2010).

Figura 9: Cristiano Furquim.

Fonte Própria (2008)

Page 113: Tese Quilombo

112

No silêncio das pausas e no entrecruzamento de olhares durante a entrevista, percebi

que havia uma preocupação de Cristiano em assumir que acreditava nos contos do seu

avô. Em alguns momentos, ele conta o mito evidenciando claramente que acredita na

existência dos descendentes da nega d‟água e do nego d‟água que circulam ali por

perto da Ribeira. Em outros momentos, ele deixa dúvida se acredita ou não Ao final da

entrevista, convicto, Cristiano Furquim afirma:

Pesq.: Você acredita que existem os descendentes dos neguinhos

d‟água no quilombo?

Cristiano Furquim: Ah – (fica em silêncio pensativo) – assim, (faz um

novo silêncio) eu acredito;

Pesq.: Pergunto tentando entender: Por que acredita?

Cristiano Furquim: responde convicto – Acredito, porque acredito.

Setiloane (1992), em seu livro “Teologia Africana uma introdução”, explica que:

No seu mito sobre a “gênese” das coisas, é significativo o fato de que

os africanos invariavelmente ensinam que o primeiro aparecimento de

pessoas se deu em grupo, em companhia. Nesses mitos, quer as

primeiras pessoas tenham saído de “um campo de caniços”, quer

tenham saído de “um buraco no chão”, foi como uma comunidade de

homens e mulheres, crianças e animais que vieram [...].

(Ibid, p. 23).

Cristiano Furquim, quando fala dos descendentes da nega d‟água: “Maria Euzébia dos

Santos é mãe de um tio meu que é casado com a minha tia, ela tem os netos

descendentes dos neguinhos da água”, traz uma especificidade da comunidade. Entre

os membros da comunidade existem laços familiares muito próximos; as pessoas são

parentes ou são agregados, que se tornam parentes ao se casarem com alguém da

família. Portanto, primos e primas de primeiro, segundo e terceiro grau casam-se e se

reproduzem entre si. Setiloane (1992) reforça que essa forma de organização social

de instinto gregário é uma característica africana.

Page 114: Tese Quilombo

113

[...] A família africana ampliada é uma expressão proverbial. Num

vilarejo ou cidade segregada africana onde as pessoas tenham podido

estabelecer sem sofrerem a ruptura de remoções forçadas, verifica-

se que um ambiente de grande família se encontra por toda a parte:

toda pessoa é parente de outra. Esses relacionamentos de sangue,

casamento ou por mera associação são baseadas na emoção e tratada

com muito carinho.

(Ibid, p. 23).

A partir dos mitos, o trabalho da preservação do território é abordada e transmitida

aos mais jovens pelos mais velhos. Desde a tenra idade as crianças aprendem sobre os

impactos ambientais: desmatamento das florestas e matas ciliares, assoreamento dos

rios e a extinção de diversas espécies de peixes, inclusive a extinção dos/as

neguinhos/as d‟água que fazem parte da cultura local. No entanto a partir do mito a

criança elabora o trabalho de caça, da pesca e da roça.

Dizem que tinha bastante (Aqui ele está se referindo ao Neguinho

d‟água) e também falam que eles estão sumindo (do Rio Ribeira de

Iguape) pelo fato do desmatamento está sendo muito, e não tem onde

eles se esconderem o rio está diminuindo o nível d‟água, enfim o

impacto ambiental que está fazendo com que eles desapareçam.

CRISTIANO FURQUIM, 24 anos. Conversa realizada em 24 de abril

de 2010.

Na formação e existência do que compõe a natureza, o que é inexplicável é respeitado

e o incompreendido pode se tornar encantado. É notável que a relação dos quilombolas

com a terra seja compreendida por meio das histórias, quer seja dos descendentes da

“neguinha d‟água”, quer seja por crença, como por exemplo, a de que não se deve levar

dinheiro ao acompanhar um grupo que sai para caçar na mata. Segundo a explicação

dada por eles, levar dinheiro é um impedimento para a caça farta, pois os bichos

somem. Nesse caso, cabe ressaltar a analogia: o dinheiro associado à idéia de

consumo. A mata e a terra, estando articuladas à sobrevivência e à sustentabilidade,

pertencem-lhes, porém, tal pertencimento parte de uma relação que vai além da

posse, por indicar uma interdependência entre as pessoas, a terra e a mata. Se as

pessoas dependem da terra e da mata, preservam-na, e isso traz implicações

indissociáveis entre sobrevivência, sustentabilidade e preservação ambiental.

Page 115: Tese Quilombo

114

Cristiano diz: “Se eu achar uma pedra de ouro lá no quilombo, o ouro ele é encantado

segundo as pessoas de lá, porque nós não temos poder sobre ele”, ainda reforça

dizendo que o que existe no território o homem não tem total domínio para controlar,

caso não o preserve.

Setiloane (1992) discute as fontes do conhecimento na tradição africana, no livro

“Teologia Africana uma introdução”. Trata-se de um trabalho apresentado

especificamente à juventude da África do Sul (moderna e urbanizada), que foi

“engolida” pelo mundo ocidental “civilizado”, o qual defende a idéia de progresso,

desenvolvimento, valores e espiritualidade como que inerente à cultura de consumo, o

que, inevitavelmente, gera conflitos e o distanciamento das tradições e da idéia de

constituição de um povo como grupo humano

O processo de internalização de uma visão de mundo ocidental sob o paradigma do

consumo traz consigo um distanciamento histórico, no que se refere aos jovens

mencionados pelo autor. Esquece-se que antes de os exploradores tomarem seus

territórios, havia nas sociedades e comunidades um sistema e uma ordem que

regulavam a vida em conjunto e tornavam possível a realização do indivíduo na vida

pessoal e comunitária. Para o autor, “o analfabetismo nas primeiras comunidades não

significava embotamento nem ignorância, muito menos a incapacidade de desenvolver

as artes” (Ibid, p. 13). Foi possível, assim, que a tradição oral acompanhasse a história

dos povos africanos e de seus descendentes com objetividade.

Tradição oral não é algo que estava lá só pra entreter e afastar o

tédio das longas noitadas. Era um meio de Educar. Os métodos

africanos de educação, o modo como as pessoas eram preparadas para

a vida e a sobrevivência, como a consequente preservação da espécie,

e seus valores e normas, eram tão prosaicos e despretensiosos em

comparação com os modos ocidentais, sofisticados, que têm sido

frequentemente postos de lado como inexistentes ou irrelevantes.

Essas Ditshomô, Dinôôlwane, Iintsomo (histórias populares) continham

invariavelmente um ensinamento moral, com objetivos de formar o

caráter, a fim de criar uma vida comunitária harmoniosa.

(SETILOANE, 1992, p. 14).

Page 116: Tese Quilombo

115

Tendo em vista o declínio da tradição oral na África do Sul pelo desenvolvimento dos

moldes da cultura ocidental, talvez possamos pensar ou prever o que poderá

acontecer com as relações estabelecidas entre as pessoas da comunidade Quilombo

de Ivaporunduva

A história da comunidade Quilombo de Ivaporunduva vem sendo construída por meio

da relação desse povo com a história de seus antepassados africanos escravizados

naquela localidade. História que é passada principalmente pela oralidade, de geração a

geração, e vai sendo transmitida, apreendida, modificada e significada, perdurando

dialeticamente há mais de quatrocentos e cinquenta anos.

A partir do mito da nega d‟água, observamos que a tradição oral está presente no

cotidiano dos idosos, adultos, jovens, adolescentes e crianças da comunidade, como

constatamos no relato de Cristiano.

Zica, uma liderança jovem quilombola me concedeu uma entrevista e explicou sua

concepção de comunidade sustentável, que se contrapõe ao modelo de

desenvolvimento capitalista dominante. Vejamos:

Page 117: Tese Quilombo

116

As pessoas que tem poder, vamos dizer assim, tão

desmatando, construindo indústria e fazendo mundo e

indústria e poluição e aí? O que nóis vamo comê? Na onde

tinha terra e tinha fertilidade nóis fizemo indústria, nóis

poluímos. E aí? Vamos comê nossas empresas? Vamos comê

nossa fumaça ? (ela ri) não, é bem grosso isso aí. Mas é

uma refrexão. Aí vão ficá loco pra vim em cima de nóis que

preservamo isso aqui, que eles achavam que era errado

que nóis deveríamos ter prantado eucalipto feito

pastagem de gado, vamos dizer assim. Aí nóis tamo aqui

sossegadinho, fazendo o nosso fogão a lenha, comida no

fogão a lenha, colhendo aquilo que nóis plantamo e

comendo. E eles lá doido pra viver isso que vivemo aqui

hoje. Aí eles vão viver tudo esse tempo inteiro aí, a vida

inteira e entendê que tudo que eles fizero foi em vão. E

nóis tamo aqui sossegado. Que eles correro, cansaro e não

alcançaro nada, correro, correro, correro, cansaro e não

alcançaro nada, porque não tem o que comê, vai vivê do

que? E nóis? tamo aqui, vivendo sossegado não corremo,

fomo de um passo de cada veiz, é engraçado isso né? (ela

ri). E nóis tamo aqui no nosso pedacinho de terra do

mesmo jeito que era antes, comeno e bebeno, respeitano o

meio ambiente, comeno o nosso peixinho, que se Deus

quiser a barragem não vai saí pra atrapalhá de ter nosso

peixinho de forma artesanal aqui, respeitano a época de

desova, comendo ele na época que pode. Nós não queremos

esse desenvolvimento não. Nós não queremos prantá

eucalipto, eucalipto, eucalipto aqui, pra criá gado, gado,

gado e saí queimano tudo atráis de boi. Pra nóis que somo

da associação num é interessante.

IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos -

Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo

de Ivaporunduva.

Devemos considerar que a comunidade está vivendo e discutindo um processo de

transformação e mudança a partir das propostas de desenvolvimento e acesso aos

bens materiais e culturais do mundo globalizado. Ainda encontramos muito “de

comunidade quilombola” nas relações, mas, de forma gradual, a comunidade quilombola

está sendo pressionada, cada vez com mais força, a entrar no sistema de

Figura 10: Ivonete Alves da Silva Pupo –

Zica e Paulo Silvio Pupo

Fonte Própria (2010)

Page 118: Tese Quilombo

117

desenvolvimento capitalista, cujos valores (cultura do consumo e tecnologia), aos

poucos, estão sendo apreendidos pela comunidade, interferindo em seus costumes, na

sua tradição e na sua espiritualidade.

Para o quilombola Bico, o desenvolvimento da comunidade está interligado à

preservação do território, sem deixar, entretanto, de priorizar o desenvolvimento

humano da população. Ele entende como necessária a apropriação de outros

conhecimentos, principalmente os tecnológicos, no sentido de manter a comunidade de

forma sustentável.

Essa consciência é uma coisa que o povo desenvolveu,

isso aí não é consciência de lá de fora o que eu acho mais

importante que é um aprendizado pensando a 100, 200

anos pra gerações futura, o que caracteriza uma

comunidade quilombola além de todos os laços culturais

e o espaço geográfico. [...] o que nóis queremos é

conciliar o desenvolvimento humano e com a preservação

ambiental, nós não queremos dinheiro pra nós, nós

queremos condições pra nóis dá estudo pros nossos

jovens, dá oportunidade pro nossos jovens pra eles ta

formando na cidade e voltando pra comunidade pra

contribuir cada vez mais, não só com desenvolvimento da

nossa comunidade mas tamém com o desenvolvimento

das outras comunidades em volta. Isso é importante.

DENILDO RODRIGUES - BICO, Palestra realizada em

16 de janeiro de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

A entrada da energia na comunidade e do uso da TV, da Internet, da leitura de

revistas, da chegada de turistas etc. acaba gerando outras necessidades em relação à

apropriação de novos saberes. Os quilombolas querem ter atendimento à saúde;

desejam transportes que supram suas necessidades; exigem educação para suas

crianças e jovens. Voltemos ao que diz Bico: o que nóis queremos é conciliar o

desenvolvimento humano e com a preservação ambiental. A reflexão sobre as

contradições explicitam a dificuldade de se pensar em ética, direitos, igualdade,

acesso aos bens culturais materiais e imateriais quando imersos na lógica do capital.

Digo no Quarto Texto que as necessidades materiais básicas já estão mascaradas

Figura 11: Denildo Rodrigues –

Bico

Palestra 16/01/2010

Page 119: Tese Quilombo

118

pelas necessidades manipuladas pelo sistema capitalista, ou seja, eles estão

capturados por essa lógica.

Gusmão (1992) explica que as comunidades negras, estando em contato com a

expansão da sociedade nacional, passam por um período de confronto e de transição.

O trabalho e seus instrumentos, a alimentação, a vestimenta e a forma de viver até

então desenvolvida para subsistência, estão sendo questionados em resposta à

desagregadora expansão capitalista. A autora ressalta que: “suas terras, tanto quanto

sua força de trabalho, cada vez mais se transformam em mercadorias e perdem a

condição de bens úteis a si e à família”, com isso podemos entender que também

“perdem a condição de bens simbólicos conformadores do universo de sentido e de

significado que permitiu desde sempre, ser, pertencer e se pensar como parte de um

grupo particular.” (p. 118).

As crenças aprendidas com os mais velhos começam a ser questionadas pelos jovens e

adolescentes, dando indícios acerca dos conflitos e distanciamento das tradições que

os jovens e adolescentes estão e continuarão vivenciando. Toiço, um adolescente de

13 anos, morador da comunidade diz:

Aqui os mai véio costuma guarda a quaresma,

sem corta cabelo, sem fazê a barba e sem dançá.

Os mai véio acredita quem desobedecê a essa

regra cria um rabo entre as perna. Eu num

acredito nisso não, porque se for verdade, em

São Paulo tudo mundo ia tê rabo, porque em

cidade grande as pessoa dança, corta cabelo e

faiz a barba na quaresma. Eles obriga nóis a fazê

isso, a gente faiz, por respeito, mas não porque

nóis acredita.

Luciano Furquim – Toiço. 13 anos. Conversa

realizada em 14 de fevereiro de 2007, no

Quilombo de Ivaporunduva65

65 Conversa realizada em 14 de fevereiro em 2007, com Luciano Furquim – Toiço. Contou também com a

participação de Tânia Aparecida Américo, que realizava a pesquisa no quilombo de Ivaporunduva, que

cedeu o material original (áudio) para a transcrição da fala do entrevistado para o presente trabalho.

Figura 12: Luciano Furquim – Toiço

Trilha do Ouro

Fonte Própria (2007)

Page 120: Tese Quilombo

119

Fica uma questão para a continuidade dos estudos. O modelo que os quilombolas

apontam, explicitado tanto na fala do Bico como na da Zica é um modelo articulado à

qualidade de vida para uma comunidade sustentável? A contradição e transição estão

colocadas. Quais serão os próximos passos para uma comunidade sustentável às

futuras gerações?

Page 121: Tese Quilombo

120

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GUSMÃO, Neusa. M. M. . Negro e camponês: cultura política e identidade no meio

rural brasileiro. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 6, n. 3, 1992.

MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Tradução de Leandro Konder e

Renato Guimarães. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: EDUSP, 2007.

SETILOANE, Gabriel M. Teologia Africana uma introdução. São Paulo: EDITEO,

1992.

SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua Magia: Trabalho de Campo e

Texto Etnográfico nas Pesquisas Antropológicas sobre Religiões Afro-Brasileiras. São

Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

Page 122: Tese Quilombo

121

QUARTO TEXTO

“SOU NASCIDO E CRIADO AQUI”

“QUE AS PESSOAS, TANTO BRANCO QUANTO PRETO, CONHEÇA

A HISTÓRIA DESSE POVO”

Page 123: Tese Quilombo

122

Esse texto está marcado por dois objetivos. Um deles é trazer fragmentos da

história da formação do Quilombo de Ivaporunduva pelas palavras do Ditão66. Mas não

é só ele quem narra. Outras vozes se ouvem: de quilombolas mais jovens; adultos;

velhos, bem como de autores que abordam a temática quilombola. Verá o leitor, que

passado e presente não estão separados como querem os adeptos da lógica formal,

nem seguem uma linearidade rigorosa. O outro objetivo é explicitar o que o

“ecoetnoturismo ” representa para os quilombolas de Ivapuranduva. O que poderia ser

apenas uma fonte de renda, e é, não fica a ela restrito. O ecoetnoturismo trata-se de

um trabalho educativo – uma prática pedagógica. Ressalto que as falas dos

quilombolas aqui apresentadas ocorreram em diferentes situações: ora em momentos

de conversas/entrevistas entre mim e eles; ora em palestras proferidas por eles a

grupos de turistas em visita ao quilombo.

***

O conceito de polifonia de Bakhtin (1992) fundamenta o que digo sobre as outras

vozes presentes nas falas do Ditão e dos outros quilombolas que ouvi. Na interlocução

com suas falas estão as de alguns autores. Esse filósofo da linguagem explica que

cada um dos locutores não são os primeiros que:

Rompem pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e

pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas

também a existência dos enunciados anteriores – emanentes dele

mesmo ou do outro – aos quais seu próprio enunciado está vinculado

por algum tipo de relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles),

pura e simplesmente ele já os supõe conhecido do ouvinte. Cada

enunciado é um elo na cadeia muito complexa de outros enunciados.

(BAKHTIN, 1992, p. 297).

Para a legitimação e legalização do território – uma luta contínua desse povo - os

quilombolas precisaram revisitar/retomar o processo histórico dos seus

antepassados. Rememorar o passado é tomar consciência das implicações da

66 Ditão - Benedito Alves é um líder quilombola que atua na sua comunidade e é respeitado na liderança

quilombola nacional. Atualmente é vice-presidente do Comitê de Bacia Geográfica do Rio Ribeira de

Iguape, representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Page 124: Tese Quilombo

123

escravização da população negra no Brasil. “O passado é, portanto, uma dimensão

permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores

e outros padrões da sociedade humana.” (HOBSBAWM, 2010, p. 22). O sentido do

passado possibilita uma análise das mudanças na sociedade que está em

transformação e movimento constantes e contraditórios.

Diante da complexidade da temática da escravização da população negra, que ocorreu

durante séculos, bem como das suas múltiplas implicações (econômicas, sociais,

psicológicas) na vida das vítimas do escravismo, SCHAFF (1991), em sua obra

“História e Verdade”, menciona as diferentes visões que os historiadores apresentam

de um mesmo acontecimento, segundo os diversos sistemas de valores nos quais se

baseiam, cujos interesses de classes são muitas vezes opostos e as concepções de

mundo divergentes.

É importante nos atermos ao fato de que a história desse processo de escravidão foi

contada sob a ótica de quem escravizou, e não da de quem foi escravizado, portanto,

sob uma perspectiva eurocêntrica, em função de uma ideologia, de sistemas de valores

expressos no interesse de classes opostas, e privilegiando uma classe em detrimento

a outra. “Toda escolha e todo encadeamento de fatos pertencentes a um grande

domínio da história, história local ou mundial, história de uma raça ou de uma classe,

são inexoravelmente controladas por um sistema de referência no espírito daquele

que reúne os fatos.” (SCHAFF, 1991, p. 69).

Com o objetivo de receber grupos de alunos de escolas públicas e privadas,

pesquisadores, professores e grupos de turistas, É possível considerar o

ecoetnoturismo uma atividade formativa também para os quilombolas, pela maneira

como eles trabalham a História da Cultura Afro-brasileira ao oferecerem a rica base

de informações de que disponibilizam. A programação normalmente conta com:

palestras proferidas pelos líderes do Quilombo; “trilha do ouro”, uma caminhada na

mata pela antiga trilha da extração e transporte de ouro, por onde passava a

população negra escravizada – essa caminhada pode ser estendida até o cemitério

Page 125: Tese Quilombo

124

velho; visitas a cachoeiras; oficinas de artesanato; barreação; sessão de contos e

causos; apreciação da comida típica etc.

Em uma das visitas de um grupo de professores, após o almoço e um breve descanso, o

grupo se reuniu na varanda da pousada para o primeiro contato com a história da

formação da comunidade Quilombo de Ivaporunduva, contada pelo Ditão:

Eu sou nascido e criado aqui [...] comecei minha luta, o

que me colocou dentro dessa luta, né, a dificuldade

daqui (pausa) há bastante tempo atrás, na época era

isolado, não tinha estrada, não tinha nada, nada, nada. O

jornal quando a gente lia uma notícia, já tinha nove anos

na cidade já tinha acontecido. Então a dificuldade era

muito grande [...].

BENEDITO ALVES – DITÃO – 55 anos. Palestra

realizada em 16 de janeiro de 2010, no Quilombo de

Ivaporunduva (figura 1).67

Certa tarde, eu pedi ao Vô Gaspar para compartilhar comigo a sua história de vida no

território quilombola. Ele iniciou me dizendo:

67 Dialogo realizado no dia 16.01.2010, no Quilombo do Ivaporunduva, durante uma palestra proferida a

um grupo de educadores de Campinas (Alunos da pós-graduação do curso de Educação de Jovens e

Adultos-EJA-UNICAMP) que estava participando de uma vivência no quilombo.

Figura 1: Benedito Alves- Ditão

Fonte Própria (janeiro/2010)

Page 126: Tese Quilombo

125

Eu fui nascido e criado aqui. Não era quilombo nesse tempo ainda. Meu

pai era daqui memo, morreu cum 70, minha mãe morreu cum 80 ano, e

depoi ficô o nosso familiar daqui. Intão eu sô fio daqui memo do

quilombo. E aqui num tem perigo de morrê de fome. Eu fui em poca

cidade desse mundo. Fui só em dois Estado fora do estado de São

Paulo e no lugar qui eu passei num vi lugar gostoso de vivê qui nem

aqui. Aqui, se tem vontade comê um peixe ocê come. Quarqué coisa qui

quiser comê, um parmito, quarqué coisa. Ocê entra nesse mato tem

cipó, tem uma madeira, uma lenha si ocê qué fazê um fogo no fogão de

lenha e quarqué coisa qui ocê quisé, ocê entra nesse mato e acha e

pega. Ninguém curpa a pessoa, porque é nosso, né. Ninguém briga um

co outro, porque é nosso e tem. A água boa que nem essa nossa daqui

eu nunca encontrei, limpa e boa água, nascente memo da mata[...]

Então o tipo da gente viver aqui eu me sinto muito feliz.

GASPAR FURQUIM, quilombola, 72 anos - Conversa realizada em 03

de agosto de 2009, no Quilombo de Ivaporunduva.

Quando Vô Gaspar se apresenta, dizendo: “Eu fui nascido e criado aqui”, ele mostra

sua relação com a terra, e ainda nos dá mais um dado “não era quilombo nesse tempo

ainda”, ou seja, informa que está aqui antes mesmo dessa terra ser reconhecida como

terra de quilombo. Vô Gaspar continua afirmando sobre o quanto ele pertence e está

enraizado nesse território, quando diz: “meu pai era daqui memo, morreu cum 70,

minha mãe morreu cum 80 ano, e depoi ficô o nosso familiar daqui” não deixa dúvidas

da sua relação com esse território, como no trecho “então sou fio daqui mesmo”, ou

seja: eu tenho uma identidade quilombola.

Ele continua provando o quanto conhece e pertence a sua terra: “quarqué coisa qui ocê

quisé, ocê entra nesse mato e acha e pega”; e encerra dizendo: “E ninguém curpa a

pessoa, porque é nosso, né. Ninguém briga um com o outro, porque é nosso e tem ”.

Consegue finalizar a conversa, afirmando sua relação de pertencimento coletivo a

essa terra abundante que também lhe pertence, que lhe dá água e alimento todos os

dias, seu sustento e a sua vida - ”é só entrar e pegar”. Essa afirmação da identidade

quilombola atrelada a território está presente também nas falas de outros membros

da comunidade.

Page 127: Tese Quilombo

126

Num início de noite no Quilombo de Ivaporunduva, pedi à Dona Cacilda que me

concedesse uma entrevista e contasse como era o trabalho do Puxirão68 na

comunidade, ela também inicia assim: “Eu sou nascida e criada aqui. Antigamente o

trabalho o povo fazia bastante roça e tinha a sobrevivência deles era a roça [...].”

A certeza da descendência é um fator fundamental para a identificação quilombola. É

bem possível que a insistência em reafirmar o pertencimento ao território quilombola

ocorra devido à necessidade de fortalecer essa identidade e, assim, firmar um

posicionamento no histórico e contemporâneo trabalho de defesa do próprio

território. Duas falas marcam a posição desses quilombolas:

Meus pais morava aqui e num foro escravo, e do pai do

meu pai pra frente é perigoso que eles fossem.

Conheci meu avô muito male má. Ele num era escravo

ainda, mai o pai do meu avô pra lá já era escravo. Eu

num sei quanto ano foi a escravatura, faiz muito

tempo isso, uns quatrocento ano mai ou meno e nem os

mai véio nosso num conhecero isso aí. Nói só tem a

maior certeza que nascemo aqui memo nesse lugar.

GASPAR FURQUIM, quilombola - 72 anos.

Conversa realizada em 03 de agosto de 2009 no

Quilombo de Ivaporunduva (figura 2).

68 A população de Ivaporunduva utiliza a palavra puxirão para se referir ao mutirão, que se refere ao

grupo de pessoas trabalhando juntas na realização de determinado serviço – que, no caso, é o trabalho

coletivo de plantação de arroz, feijão entre outros produtos.

Figura 2: Vô Gaspar

Fonte Própria (2010)

Page 128: Tese Quilombo

127

Meu antepassado foi escravo, e o povo daqui, né, os escravos que veio

pra qui foram trazido de Moçambique, então somo descendente do

povo moçambicano, chegou por volta de 1539, trazido pra explorar o

ouro em pó aqui no rio, Rio Bocó, afluente do Rio Ribeira. Desde essa

época, por volta de 1650, Ivaporunduva é quilombo. Difícil, né, pela

história do próprio Brasil que começou por Porto Seguro, Cananéia e

São Vicente. Cananéia é vizinho aqui de Iguape, né, e aí foi

exatamente por Iguape que subiram rio acima e aqui onde nóis tamo

aqui (ele está na frente da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos)

se acamparam, Maria Joana que era dona dos escravos trouxe a

negrada, aqui se acampou, aqui, pra explorar ouro no Rio boco

(BENEDITO ALVES, 2007).69

De acordo com Munanga, os africanos trazidos para o Brasil, pela rota transatlântica,

são povos de três regiões geográficas: África ocidental, África centro-ocidental e

África austral. Da África Ocidental foram trazidos homens e mulheres dos atuais

Senegal, Mali, Níger, Gana, Togo, Benim, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, São Tomé e

Príncipe, Cabo Verde, Guiné e Camarões; da África centro-ocidental vieram os povos

Gabão, Angola, República do Congo, República Democrática do Congo (ex-Zaire) e

República centro-africana, e da África austral, temos os povos de Moçambique, da

África do Sul e da Namíbia. (MUNANGA, 2009, p. 80).

69 Disponível em <http://www.youtube.com/comment_servlet?all_comments=1&v=dDP7rwfbq0w> .Acesso

em 31.07.2010. Vídeo produzido por Dácio Bicudo,2007.

Figura 3- Mapa da rota transatlântica da população negra

escravizada no Brasil

Fonte: T.P. África (2008)

Page 129: Tese Quilombo

128

Foi possível identificar a origem étnica das populações de africanos-descendentes no

Brasil, por meio das “resistências linguísticas e culturais que caracterizam as

contribuições africanas na cultura brasileira contemporânea.” (Ibid, p.92). Os

elementos encontrados foram fundamentais para distingui-las, a partir do trabalho de

comparação “com suas áreas regionais e étnicas da África Tradicional”. (Ibid, p. 92).

Ditão nos explica:

Aqui nóis consiguimos chegar a Moçambique, né. O pessoal daqui

veio de Moçambique, mas a gente sabe que não veio só de lá, veio de

outros países tamém, de outras aldeias africana e que misturo, né.

Aqui é que tá aqui no nosso meio, não dá pra identificá hoje. O que deu

pra se aproximá, isso foi pesquisado. Essa aproximação ela saiu

através da forma de falá, do formato do rústico, do formato de corpo

dus objeto de uso, arquitetura da casa. Tudo isso aí foi juntado do

que se aproximô-se, foi com eles, moçambicanos. Então a gente fica

satisfeito, chegô perto, ficô perto de alguma coisa. Eu, pelo menos eu,

eu me falo, eu sou moçambicano. A gente não sabe do que veio. O

negro devido a história, o pessoal que estuda história sabe, que no

navio ali já extrapolava tudo, acabava com tudo nossa identidade; era

quando vendia de um dono pra outro, vendia pra você tira meu nome e

meu sobrenome, já metia um ferrão na minha costas pra marcar o seu

nome. De repente você vendia pra outro e pra outro. Não quero o

nome dela, eu quero o meu nome dela agora e tornava a marcar o

nome, entendeu? Mema coisa de colocar nome num animal, né. E

quando hoje se aproxima a verdadeira origem, eu fico contente falar

a verdade.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de 2010, no

Quilombo de Ivaporunduva.

Page 130: Tese Quilombo

129

Voltemos ao que disse Ditão:

[...] chegou por volta de 1539, trazido pra explorar o ouro em pó aqui

no rio, Rio Bocó, afluente do Rio Ribeira. Desde essa época, por volta

de 1650, Ivaporunduva é quilombo. Difícil, né, pela história do próprio

Brasil que começou por Porto Seguro, Cananéia e São Vicente,

Cananéia é vizinho aqui de Iguape, né, e aí foi exatamente por Iguape

que subiram rio acima e aqui onde nóis tamo aqui ele está na frente da

Igreja Nossa Senhora do Homens Pretos) se acamparam, Maria

Joana, que era dona dos escravos, trouxe a negrada, aqui se acampou

aqui, pra explorar ouro no Rio Bocó

(BENEDITO ALVES, 2007).70

No século XVI, chegaram os primeiros europeus no Vale do Ribeira, em busca de ouro,

e com eles foram trazidos os primeiros africanos escravizados para trabalhar nos

garimpos, na exploração de ouro71. Ivaporunduva surge no século XVII, antes da

fundação do município Xiririxa, posteriormente denominado Eldorado. Sua origem se

deu a partir da atividade mineradora de dois irmãos: Domingos Rodrigues Cunha e

Antonio Rodrigues Cunha, com seu grupo de negros escravizados. Ivaporunduva é a

primeira e mais antiga comunidade quilombola do Vale do Ribeira. Ela dá origem a

outras comunidades: São Pedro, Pilões, Maria Rosa e Nhunguara. No mesmo período, a

mineira Maria Joana72 também chega e se instala em Ivaporunduva para a extração do

ouro nessa localidade; o que acontecia por meio da exploração do trabalho dos

africanos-descendentes escravizados. (ISA, 2008).

Em meados de 1791, a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos

(tombada como patrimônio histórico, em 1972) foi construída em Ivaporunduva com o

trabalho da população negra escravizada. Com o declínio da extração de ouro na

70 Disponível em <http://www.youtube.com/comment_servlet?all_comments=1&v=dDP7rwfbq0w> .Acesso

em 31.07.2010. Vídeo produzido por Dacio Bicudo. 71“Na época do descobrimento do Brasil, o Vale do Ribeira foi um dos primeiros locais explorados pelos

colonizadores, pois era em Cananéia que terminava o domínio português e começa o espanhol,

determinado pelo Tratado de Tordesilhas. Ainda hoje, em Cananéia pode ser visto sobre uma pedra o

marco “Linha de Tordesilhas”. Alguns historiadores sustentam que nesta região já havia europeus antes

de 1500” ISA. 2007, p. 9 72 Nos documentos do ISA (2008), encontramos o nome da mineira dona das terras e das pessoas negras

escravizadas de Ivaporunduva como Joana Maria, porém vou utilizar Maria Joana, que é o nome pelo qual

os quilombolas a identificam.

Page 131: Tese Quilombo

130

região, a população branca desloca-se para outras localidades, especialmente para o

estado de Minas Gerais. Em 1802, Maria Joana liberta seus escravos e doa-lhes suas

terras.

Por outro lado, a parcela da população negra sob escravidão e a outra parcela fugitiva

- deixadas pelos donos de escravos na região -, estabelecem residência e área de

cultivo, que se inicia com a agricultura de subsistência. Esses negros recebem outros,

vindos de diferentes localidades, fugidos do trabalho escravo, procurando, então,

manter sua sobrevivência nessa área. (ISA, 2008, p.93).

Ao dar continuidade à história, Ditão problematiza a liberdade concebida por Maria

Joana aos seus escravos, da forma como tem sido contada em alguns documentos:

A chegar uma época depôs que Maria Joana morreu, que quilombo ficou

feito dono da terra. [...] o quilombo tinha um aliado forte que era

ouro. No primeiro momento quando ficaram livre do trabalho escravo,

mas não eram livre porque não tinham carta de alforria, eles

conseguiam fazer amizade com algumas pessoas, em troca daquilo que

eles precisavam, tirava ouro abaterava. [...]. O quilombo naquela época

foi escravo, ficou num local muito longe, pra podê fazer o registro de

nascimento tinha que ir lá Iguape. Daqui em Iguape, pelo rio, é quinze

dia de viagem, pra ir e voltar, tem que contá com o bom tempo. Se

chegá lá na beira do mar, o mar tivé agitado, tem que esperá o mar

tranquilizar pra entrar dentro do mar com a canoa e dar a volta e

entrar. E veja bem, imagine a situação, negros que não tinha a carta de

alforria quinze dia dentro do rio, ele tava numa situação bastante fácil

para o predador. Então, dessa forma, o que é que aconteceu, ele não ia,

porque se ele fosse, ele corria esse risco. Mas ele tinha o cemitério. Ele

tinha a semente. Ele tinha o ouro, certo? E esse foi os aliado dele, essa

organização que eles fizeram foi muito forte nesse sentido.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Silveira (2000) analisou as Cartas de Alforria Escritas no Brasil do Século XIX. O

autor explica que houve uma época na história em que a liberdade das pessoas negras

escravizadas só poderia ser concebida em algumas circunstâncias por morte natural

do cativo, por concessão de alforria ou manumissão, ou por disposição de um diploma

legal. Silveira afirma que a concessão da liberdade pelos senhores de escravos jamais

Page 132: Tese Quilombo

131

poderá ser entendida como do cativo, pois esta dependia da benevolência do Senhor

de escravo, nesse sentido “não podia ser encarada como uma conquista dos negros

escravizados” (Ibid, p.41). As cartas eram registradas em cartórios na presença de

testemunhas; entre a concessão e o registro poderia demorar anos a ser

concretizada. No caso de ingratidão da pessoa negra escravizada essa concessão

poderia ser revogada pelo dono de escravo. “Vale registrar que o negro escravizado,

não gozava dos direitos comuns aos homens livres” e “estava sujeito às condições

ditadas pelo senhor” (Ibid, p. 41 - itálico meu).

Assim sendo, cabe ressaltar que, no período entre 1539 a 1802, ou seja, por mais de

260 anos, houve a exploração intensiva do trabalho forçado não remunerado da

população negra africana e de seus descendentes, no Ivaporunduva; trabalho que

gerou riqueza advinda da extração do ouro, que não foi dividida com os trabalhadores

negros ali escravizados.

ISOLAMENTO

Após 1802, com a morte de Maria Joana, a comunidade quilombola de Ivaporunduva

não experimentou a liberdade de fato, pois esses quilombolas estavam expostos aos

fazendeiros e aos seus capangas, que caçavam pessoas negras fugitivas, para

reescravizá-las em outras localidades. Além da caçada aos negros, a comunidade

quilombola recebia frequentes agressões e ataques de coronéis e de grupos

organizados, que tentavam tomar dos quilombolas o território de Ivaporunduva.

Page 133: Tese Quilombo

132

Nóis conseguimo um documento que relata um pouco dessa história, né.

Ele fala assim: que o rei de Portugal, ele mandou algumas pessoas pro

Brasil e desceu na bacia do Paraná, saindo por Iguape alguns

companheiros e um dessas pessoas ficou no arraial de Ivaporunduva,

marcando do arraial cinco dia e ele marcou. Assim que ele assistiu,

quando alguém veio, né, pra tentar capturar alguns negro, eles já tinha

a organização deles, eles meteram o cacete nesses caras, né, e não se

entrega.

[...] ele dizia assim: “esses negros, ninguém mete a cara com eles

porque ninguém conseguiu. Eles dizia assim: bota rédea! Botar rédea, no

que eu penso na minha linguagem mais simples é assim: adomá um burro,

adomá um cavalo, botar rédea, bota arreio, muntá. O cara é xucro. Os

negro daqui ele cumparô com animal xucro, porque não conseguiu adomá

e pra nós foi bom, pelo menos ele não muntô ne nóis. Ele respeitô.

[...] Além dessas história aqui que aconteceu, além das brigas, questão

que tiveram pra podê ficar aqui, muita briga, muita confusão, muita

gente tentou na mão grande é tomar a terra deles. Quando não deu na

mão grande, foram pro judicial.

[...] Mas a briga era tão forte contra os coronel que eles tava tomando

a terra do pessoal daqui dos Cueio, e aí, chegou uma época, né, que

prendeu daqui da família alguns na cadeia em Eldorado, qui era chamada

de Xiririca, na época, né [...]. Naquele tempo quem mandava, até hoje é

assim, quem manda na cidade pequena é o padre, o juiz e o delegado. O

que eles falá tá perfeito. A decisão que ele tomá é sequência. Hoje

inclui o prefeito tamém. [...] aí eles conseguiram então, do juiz, a

sentença a favor de Ivaporunduva, e os coronel não, não ganharam a

terra. O coronel que ia ganhar a terra era Coronel de Eldorado, que era

Xiririca.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Os relatos do Ditão mostram a resistência da população de Ivaporunduva às

constantes ameaças, e os enfrentamentos que tiveram que fazer para permanecer em

seu território. Esses embates pela sobrevivência e pela posse do território

aconteceram em diversos momentos, de formas diferentes ao longo da história, e

permanecem até os dias atuais. Os desafios que vêm sendo enfrentados e as

conquistas realizadas pelos quilombolas estão ligados ao profundo sentido de

identidade, resistência e pertencimento ao território.

Page 134: Tese Quilombo

133

A autora Gusmão (1992) explica que, para as comunidades negras contemporâneas, a

terra não é uma realidade física, uma “coisa”, ela é entendida como um “ente vivo” da

vida coletiva. A terra representa, no interior do universo negro, um patrimônio comum

das comunidades “de fatores étnicos, da lógica endogâmica, casamento preferencial,

regras de sucessão e outras disposições”, as condições que a posse da terra foi

conquistada – na coletividade – sendo ela indivisível pela própria história. “A terra

torna-se território” e sobre ele a comunidade negra vai construir sua territorialidade.

(Ibid, p. 119).

A territorialidade supõe identificação e defesa por parte do grupo;

supõe tradição histórica e cultural construída através do tempo.

Supõe uma relação espaço/tempo particular de constituição da

comunidade negra e de sua vivência. Resulta da apropriação exclusiva

do solo via seu ordenamento simbólico, e engendra o conjunto de

relações vividas como passado, como presente

(Ibid, p. 119).

Entre outras, algumas das práticas de subsistência foram mantidas pelas famílias

quilombolas, como, por exemplo: o cultivo das roças, a pesca, a caça, a extração do

palmito (para a alimentação); o uso de plantas medicinais (para a cura), e a extração

da madeira e do cipó (para a construção de moradias). Essas práticas vieram

garantindo o sustento e a proteção da comunidade até os dias atuais.

Page 135: Tese Quilombo

134

Aí então, o desenvolvimento tamém da técnica de sobrevivência,

ninguém sabia lê e ninguém sabia escrevê, mas sabia certinho qual era

a lua de pescá de pegá pexe, qual era a lua de prantá o arroz e o

feijão. Não é o mesmo tempo, a época de prantá arroz não é a mesma

época de prantá fejão, entendeu? Então são épocas diferente. A

gente sabe que o almanaque tá indicando, tem os técnicos agrícola,

tem um monte de profissionais que indica certinho, compra um cartão

de semente de qualquer pranta, tá marcando ali qual o tempo

direitinho de prantá. Naquele tempo, não existia isso. Qual era o

indicativo deles: a lua, o relógio deles. O sol e o galo, né, o galo

cantava madrugada, sabiam que era hora de levantar. À tarde, na

roça, a corujinha cantava. Tem uma corujinha que só canta de

tardezinha, óia lá, tenho que ir embora. Quando em janeiro, eles

chamava a contagem de Salomão, (Ditão conta no dedo) um, dós, três,

quatro, cinco, sês, através desses sês dias, eles sabia até junho o que

qui ia acontecer na questão crimática. Eles sabiam: liam o tempo, se

chove, se não ia chovê, se ia dá seca, é, e se era bom pra prantá de

acordo com o dia, né, dia um significa janeiro, dós fevereiro, daí por

diante, até dia seis, quando era em julho começava a contagem, de

julho ia até dezembro. Isso pra eles era um livro de suma importância,

porque direcionava a vivência deles com a terra. Isso era um ponto.

Outra questão era assim, eles não era agrônomo, mas sabe, aqui no

Vale do Ribeira, a terra não é igual como é igual pra produtor de São

Paulo, é bom pra cana em toda parte, aqui não, aqui é pedaço de chão,

uma parte é bom pra fejão e outra parte já é bom pra milho, às veis a

parte que é bom pra milho não é bom pra fejão, outra parte é bom pra

arroz, eles sabiam certinho, roçavam, faziam a roça nesses local,

serviu pra nóis, porque hoje, com a lei, a gente não pode fazer novas

abertura, então aquelas abertura que eles fizeram é o que nós tamo,

está servindo pra nóis hoje, eles sabiam certinho; a gente fica

admirado ao começar a pensar isso aí.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Houve a necessidade do trabalho coletivo para manter a subsistência individual e da

comunidade; e desse trabalho, cheio de significados, deu-se a “produção da vida”.

Dona Cacilda explica como era o trabalho no Puxirão na comunidade. Ela inicia assim:

Page 136: Tese Quilombo

135

Então de antigamente o trabalho era, o povo fazia bastante

roça e tinha a sobrevivência deles, era a roça. Então, esse

negócio de fazenda não tinha, não existia esse negócio de

fazenda que tem hoje em dia pra pessoa trabaiá, compra uma

roupa, um sapado, se mantê, não tinha. A gente coia muita

pranta de arroiz e fejão, daquele que tinha que comprá as veste

da gente. Comprá ropa, comprá sapato, comprá coberta, comprá

loça, comprá tudo é com aquilo. Então, quando dava o mês de

agosto a gente já não tinha arroiz mais. Aí, acaba comendo

fejão com farinha e carne, só. Nóis tinha nossa roça e todo

mundo tinha, e quando precisava de fazer puxirão todo mundo

se ajudava e ia fazer a roça do outro. Mutirão é ajuntar as

pessoas, vamos dizer, eu saia daqui da minha casa e ia lá no

Ivaporunduva. Falava assim: óia, amanhã eu vou fazer um

ditório73. Mutirão? Era o baile de noite, forró de noite, e

quando era ditório era dias pagos. Eu ia lá e eu pagava o dia pro

cê, por exempro, a gente não tinha dinheiro pra pagá os dia das

pessoa e tudo mundo precisa, eu ia lá eu trocava com a minha

quarta de faria, e o meu dia eu trabaiava pro cê, eu trocava com

a minha quarta de faria. O otro trocava com dôs quilo de carne

de porco, outro com a minha quarta de fejão. Era assim, a gente

fazia meio troca com troca. A gente fazia assim: quando o otro

ia fazê a roça dele era assim, a mesma coisa. O dono do puxirão

[...] secava daquele memo arroz quatro o cinco arquere de

arroiz, ponhava no sór, secava, depoi juntava naquele pilão que

tem aí, ficava socando arroiz, un quinze dias socando arroz.

Quando tinha um cinquenta quilo de arroiz pilado, chamava as

pessoa pro puxirão. Quando era cedo não tinha esse negócio de

pão, bolacha, não tinha. Era arroiz e fejão, pra pessoa comê e i

pra roça. Ia armoçado, bem dizê. Primero ia roça. Aí depois, se

quisesse fazê de prantação, era a mema coisa. Se quisesse fazê

de coieita, a mesma coisa. [...] Eu trabaiava aqui na minha roça,

trabaiei com quinze-vinte pessoa, chamava tudo as turma das

Cortesia. Daqui, os mai veio. Chamava ali de Ivaporunduva,

vinham trabaiá pra gente. Ali era coiê arroiz que fica acamado

de arroiz coído. Correndinho, à tarde a gente ajuntava aquele

monte de arroiz, deixava aqueles cupinzão de arroz tudo

muntuado, pra outro dia começá tudo de novo, coei muito arroiz,

muié, cheguei a coiê oitenta airquere de arroiz. [...] Eu tinha um

sonho de vê os meu fio vê o que eu vi.

DONA CACILDA DA SILVA MARINHO - 63 anos. Conversa

realizada em 20 de julho de 2010, no Quilombo de

Ivaporunduva.

73 Dona Cacilda explica que ditório era a troca de mão de obra, em dia de trabalho: para limpar uma roça,

plantar, derrubar o mato, colher, ou troca de um dia de trabalho por alimento.

Figura 4: Dona Cacilda –

Socando café

Fonte própria (2010)

Page 137: Tese Quilombo

136

O trabalho na agricultura de subsistência (principalmente na lavoura de arroz), do

preparo da terra até a colheita, esteve fundamentado nas trocas recíprocas de

trabalho e de produtos, entre laços de parentesco intracomunidade e entre

comunidades irmãs. A prática da troca de trabalho era conhecida pela comunidade

como “ditório”. Para Gusmão (1992, p. 119), essa forma comunal é sem dúvida terra-

território, entendida como um universo particular e único, o que constitui a memória e

a tradição.

Em uma manhã, Dona Cacilda me levou para conhecer a sua mãe, Dona Arcília Antônia

da Silva, uma das senhoras mais idosas de Ivaporunduva, moradora do Corgo Grande.

Nessa localidade, os moradores são predominantemente do tronco familiar do

Marinho. Ao redor da casa matriarcal estão as famílias da primeira, segunda e

terceira gerações, isto é: filhos, netos e bisnetos. Os dois irmãos, Claudio e Vandir,

agricultores, lembram, saudosos, de como ocorria o puxirão na roça do seu pai:

Figura 6: Dona Cacilda – Travessia

de Canoa no Rio ribeira de Iguape

– Indo ao Trabalho na roça

Fonte Própria (2010)

Figura 5: Família da Sr. Aparício e Dona Cacilda

Ao redor da Taipa

Fonte Própria (2010)

Page 138: Tese Quilombo

137

Um tempo aqui nóis cuía muito mais arqueire de arroiz. Antigamente,

nóis fazia por que não tinha otro jeito, era só o arroz e o milho e era

bastante roça. Agora nóis temo a orde pra fazê só dois hectar por ano

por famia. Papai fez puxirão aqui e veio gente de Nhunguara, São

Pedro, Sapatu, Batatal e Pilões, era cem ou cento e poucas pessoa

aqui.

VANDIR RODRIGUES DA SILVA – Quilombola - Agricultor familiar.

Conversa realizada em 21 julho de 2010, no Quilombo de

Ivaporunduva.

Claudio, irmão de Vandir, completa:

Fazia roça grande porque tudo dependia daquela roça. Era pra comprá

ropa, carçado, era tudo daquele arroiz, fejão e mio.

CLAUDIO RODRIGUES DA SILVA - Quilombola - Agricultor familiar.

Conversa realizada em 21 de julho de 2010 no Quilombo de

Ivaporunduva.

A produção de arroz, feijão e milho era negociada na base de troca, com um o único

comerciante, próximo de Ivaporunduva. Vandir explica: “[...] Levada no Imael ali, eu ia

com papai daqui pra lá. Nós levava na canoa vinte saco74 de arroiz na canoa e trinta

mão de mio”.

74 Um saco de arroz equivale a 50 quilos.

Figura 7: Dona Arcília Antonia da Silva e os Filhos: Vandir Rodrigues da Silva

e Claudio Rodrigues da Silva

Fonte Própria (julho/2010)

Page 139: Tese Quilombo

138

Perguntei para Cláudio e Vandir: O que seria uma mão? É uma medida?

É um tipo de medida, só que em espiga, o mio em

espiga. Quatro espiga é um atílio, 16 é uma mão.

Aquele é um preço. Daí, nóis levava no Imael,

chegava lá, era uma carça pra mim, outra pra ele,

uma botina pro pai. Nóis não carçava não, nóis

era pé no chão. Nós ia em casa de Imael, a fia

dele que fazia a carça pra nóis. O memo preço do

pano era o preço que ela cobrava pra faze as

carça. O dinhero ficava tudo ali. Tudo comprava

com o arroi. Nói aguentemo uns poco de escravo.

Antigamente ele não dava valor nas coisa que se

tinha, porque não tinha outro pra comprá. Então,

você entrega pro preço que eles queria. Era só

chegá e entregá. Se não levasse, lá ficava

encaiado e quando coia, cê já tava deveno.

VANDIR RODRIGUES DA SILVA – Quilombola -

Agricultor familiar. Conversa realizada em 21 de

julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Assim sendo, entre 1802 e aproximadamente 1960-70, a população negra do Quilombo

de Ivaporunduva viveu isolada, mas não menos ameaçada e explorada. Explorada, por

um lado, pelo comerciante do qual se tornou dependente, sobrevivendo da produção

Figura 8: Fonte Própria (julho/2010)

Figura 9: Sra. Arcília Antonio da Silva. 15 anos e Dona Cacilda Socando arroz no pilão

Quilombo Ivaporunduva- Reversa

Fonte própria (julho/ 2010)

Page 140: Tese Quilombo

139

fruto do seu trabalho coletivo na agricultura, assim como das práticas de escambo e

de outras formas de trabalho coletivo, como: construção de moradias, pesca, caça e

defesa do território. Dessa forma, pelas experiências e aprendizados ao longo dos

anos, a agricultura tem sido entendida pela comunidade quilombola de Ivaporunduva

como estratégia crítica do passado, do presente e para as gerações futuras. No

entanto, para isso, precisam garantir a posse definitiva das suas terras, ter acesso a

técnicas atualizadas de agricultura sustentável e obter espaço para a comercialização

de seus produtos e serviços.

TRANSIÇÃO E O INCÔMODO

Retomo à fala de Ditão, do início deste texto, quando ele se apresenta ao grupo:

Eu sou nascido e criado aqui [...] comecei minha luta, o que me colocou

dentro dessa luta, né, há bastante tempo atrás a dificuldade daqui

(pausa) há bastante tempo atrás na época era isolado, não tinha

estrada, não tinha nada, nada, nada, o jornal quando a gente lia uma

notícia já tinha nove anos na cidade, já tinha acontecido, então, a

dificuldade era muito grande [...]

Quando Ditão relata que uma notícia publicada na cidade demorava nove anos para

chegar à comunidade, pretende demonstrar a dimensão do isolamento em que eles se

encontravam. Sem estrada ou ferrovia, todo transporte de pessoas ou da produção

precisava, necessariamente, ser feito por canoas, no remo, através do caudaloso e

perigoso Rio Ribeira e seus afluentes. Na comunidade não chegava luz elétrica,

telefone, escolas e quaisquer serviços públicos de saúde e segurança, que pudesse

lhes garantir os direitos da cidadania brasileira. Sua terra coletiva, donde chegaram e

viveram por séculos, não era reconhecida como tal no âmbito jurídico-político. Então,

ao dizer “eu comecei minha luta, o que me colocou dentro dessa luta”, Ditão se vê

numa caminhada para uma nova etapa, uma etapa de transição da comunidade para a

inevitável franca interação com a desagregadora expansão e desenvolvimento

capitalista.

Page 141: Tese Quilombo

140

Como explica Gusmão: as ações coletivas surgem pela experiência vivenciada pela

população negra na escravidão. Os atos grupais coletivos advêm do enfrentamento da

austeridade do branco. Mobilizada pela escravização, ocorreu a construção das ações

coletivas pelas famílias negras com base na sustentação individual e grupal. Porém,

tais famílias enfrentam os problemas da economia relacionada a pequenos agricultores

(baseada na subsistência) e de parentesco e propriedade. Esses problemas, tanto no

passado como no presente, caminham sempre juntos, atrelados “à realidade mais

ampla em termos de trabalho e do mercado de terras” e “o negro rural é produtor de

bens de subsistência e, ao mesmo tempo, é força de trabalho à disposição do capital,

mas também é um negro”. Essa relação com o sistema envolve a transformação da

realidade histórica no tempo. (GUSMÃO, 1992, p. 117).

A coleta do palmito da mata para consumo alimentar das famílias, assim como o uso de

outras plantas e de animais, era uma prática absolutamente normal, antiga e

sustentável. Quanto ao palmito, a coleta acontecia em ínfimas proporções e eram

cumpridas as taxas de renovação natural do palmito Juçara. No entanto, a partir dos

anos 1960-70, iniciou-se uma forte e crescente pressão de demanda por consumo e,

consequentemente, por coleta de palmito, promovida por interesses lucrativos de

setores empresariais, os quais, com apoio dos órgãos públicos e políticas

governamentais, promoviam a coleta. Aos quilombolas, por um lado limitados a uma

mínima área agriculturável em suas próprias terras no trabalho de cultivo de

coivara75, por imposição de uma legislação ambientalista e, por outro, sob pressão dos

intermediários e indústrias de palmito, restou a única alternativa do árduo trabalho

de extração do palmito nativo da Mata Atlântica, para que, assim, pudessem obter

alguma renda e, com ela, comprar alguns bens necessários, sem sair do seu território.

É nesse momento que surge a circulação da moeda na comunidade. As famílias

começam a entrar no mercado de consumo, e a partir daí tem início uma crescente

75 Agricultura de coivara, na qual acontecia com a plantação de arroz, derruba-se uma área de vegetação

e depois queimada para preparar a terra para a roça, seguida de uma rotação de culturas e de local para

descanso da terra. Ver em BORNIA (2006, p. 34).

Page 142: Tese Quilombo

141

degradação de alguns valores, princípios e práticas coletivas fundamentais, as quais

vinham garantindo, até os dias de hoje, a sobrevivência digna da comunidade.

Se, por um lado, com a extração do palmito e a circulação da moeda, as famílias

quilombolas entram para o mercado de consumo; por outro lado, e contraditoriamente,

com as leis de proteção ambiental76 proibindo e criminalizando as atividades do

extrativismo do palmito Juçara77 e limitando os espaços para agricultura de

subsistência dentro do território, a comunidade fica desprovida de outros meios de

renda.

76 Ver em: Legislação do Meio Ambiente e Lei Federal (nº 4.771, de 15 de setembro de 1965) das APAS –

Áreas de Preservação Ambiental. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/inst/leg/amb.shtm>.

Acesso em: 23 ago. 2010. 77 A área do Quilombo de Ivaporunduva ficou restrita a um espaço dentro Área de Preservação

Ambiental (APA), conforme determinou a legislação, limitando as atividades produtivas dentro do

Quilombo Ivaporunduva.

Page 143: Tese Quilombo

142

Nos quilombo, eu sei a realidade. Por exemplo, eu sei a realidade nossa

aqui, por que acabou o palmito da Mata Atlântica? Quem cortou o

palmito? Foi nossos pais. Por que ele cortou o palmito? Pra garanti o

fejão na mesa. O governo, na época, fez uma política voltada pras

empresas contra o pobre. Que ele queria? Tirá o povo pobre do mato

e levá pra cidade pra cria as área de preservação pra recebe dinheiro

da Alemanha. E o que paga o verde desse país que são o maior

investimento, é o alemão, né? Quanto mais o estado tivé mata verde

contínua, mais recebe. E aí o que aconteceu, pra tirá a riqueza do

mato ele incentivô fábrica de processamento de palmito na cidade. E a

fábrica era legal. Produzia produto ilegal. Qué dizê, processava

produto ilegal, mas ela era legal. Quem é que ia preso? Quem levava

chibatada da policia? O parmitero. Bom, fez a fábrica, os dono, a

maioria era cara de São Paulo, de Santos, Sorocaba, empresário rico.

Fábrica bonita, feito bem caprichado. Você vinha do mato, carga no

burro de palmito. Você tinha que tomá muito cuidado, escondê o

palmito, passá em local pelado onde o helicóptero não pode passá,

muito cuidado, é mema coisa do traficando de droga. Escondido. Aí,

quando você ponhá o palmito no caminhão do dono da fábrica, acabô o

pobrema[...] Hoje o povo de Ivaporunduva tá dando exempro, nós tamo

levando pro mato, repovoando a mata com aquilo que foi responsável,

foi colocado na mesa pra nóis come. Nós temos aqui 250 alquere de

palmito prantado de uma veis. E a ideia é prantá mais. Então nóis

tiramos a semente desses palmito do quintal, oh , porque no mato não

tinha mais matriz entendeu? Isso é uma consciência que nóis

adquirimo através da nossa luta, da nossa organização. Olha, pessoal

lá traís (ele fala do tempo dos seus pais) o nosso quilombo tava

lascado, precisô i prô mato tirá palmito ilegal pra colocá comida na

mesa. Agora não, nóis temo otra alternativa de renda pra economia

das famia, pra podê ganhá.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Conversa realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Portanto, Trabalhadores: mulheres, homens, jovens dignos e responsáveis por algumas

dezenas de anos, justamente aqueles que não abandonaram suas famílias e sua

comunidade, para buscar trabalho – emprego nas grandes cidades, tornam-se

criminosos e perversos inimigos da natureza. A contradição está posta.

A grave consequência é que foi necessária a busca de trabalho por muitas pessoas do

Quilombo de Ivaporunduva em outras localidades, inicialmente em Eldorado e, em

seguida, nos grandes centros urbanos, como São Paulo-capital, Santos, São Vicente,

Iguape, Curitiba-PR. Nesses locais, os homens são empregados como trabalhadores

Page 144: Tese Quilombo

143

temporários: na construção civil, como bóia-fria, diaristas; e as mulheres quilombolas

dedicaram-se ao trabalho na produção doméstica. Algumas pessoas constituíram

família e por lá ficaram.

E naquele tempo, né, eu saí daqui e fui trabalhar na rodovia dos

bandeirantes São Paulo a Campinas, na construção da estrada [...] Aí o

Zé Rodrigues,78 tio dele aqui (aponta o Bico), também deu uma saída

pra São Paulo. Essa saída foi boa, foi muito bom pra adquirir

experiência, nós era caipira, até pra pegar ônibus em São Paulo tinha

dificuldade, caipira mesmo aqui do sítio [...] aí, é, mas foi legal porque

é desse tempo que eu comecei, por conta da dificuldade. Em São Paulo

já tinha grupo de consciência negra79 que já trabalhava, e aí, a igreja

católica conduziu algumas pessoas daqui pra acompanhar esse grupo

pra compreender o porque a situação estava desse nível, e a gente não

podia sair, é, dessa situação. A gente percebeu que tinha gente

lutando, pra vê se a situação do povo negro melhorava, tanto negro

urbano como (Ditão, faz círculos gesticulando com as mãos, como se

quisesse se incluir, “nós quilombolas”, porém ele, à época, não sabia a

definição de quilombolas, mas sim como negros rurais) nós

quilombolas, nem falava quilombo, nós nem sabia o que era quilombo, aí

com a constituição federal nós aprendemos a falar quilombo, nós

falava nós somos de Ivaporunduva. É só isso, né. Ivaporunduva é uma

comunidade histórica, antiga, que foi, é escravo, uma comunidade

habitada com muito escravo, com descendentes de muitos escravos e

continua até hoje.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Conversa realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Estudos realizados na década de 80 apontam que o bairro de Ivaporunduva era

ocupado por caipiras negros, sem ter vinculo com as Terras de Quilombos80. A partir

78 José Rodrigues – conhecido como Zé Rodrigues, é liderança quilombola, hoje vereador do município de

Eldorado. Zé Rodrigues e Ditão são articuladores políticos desde o início dos movimentos sociais, cujas

discussões contribuíram para a formação e fortalecimento do movimento quilombola consciente e a

formação política dos quilombolas. 79 “Para Joel Rufino dos Santos, movimento negro é: (...) todas as entidades, de qualquer natureza, e

todas as ações de qualquer tempo [aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefesa física e

cultural do negro], fundadas e promovidas por pretos e negros (...), entidades religiosas [como terreiros

de candomblé, por exemplo], assistenciais [como as confrarias coloniais], recreativas [como „clubes de

negros‟] e políticas [ como o Movimento Negro Unificado]; e ações de mobilização política, de protesto

anti-discriminatório, de aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e

folclóricos – toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui

movimento negro” (Santos, 1994,p.154 apud PETRÔNIO, 2007,p.102). 80 Ver em: QUEIROZ, R. S. Caipiras negros no Vale do Ribeira: um estudo de antropologia econômica.

São Paulo: FFCH/USP, 1983.

Page 145: Tese Quilombo

144

dos anos 80, os dois líderes de Ivaporunduva (Benedito Alves e José Rodrigues)

entram em contato com o Movimento Negro em São Paulo.

Eu lembro que nós comecemos nos anos 80 a civilizar aqui, até época

86 a 88 pra tentar fazer que o território dos quilombos descendentes

de escravos tivesse direito à constituição. Aqui tinha um grupo que

sempre a gente viajava pra São Paulo em 86, que a gente se reunia no

Ipiranga, discutindo leis que beneficiasse o povo negro brasileiro, né.

Nós era aquele negro que entendia pouco disso, mas a gente tava

sempre ajudando, tentando, entende. E hoje entedemo a importância

disso. Que foi através daquelas coisas, que hoje nós temos a

constituição, temos algum direito, tivemos que brigar por ele, pelas

leis. Mas tendo uma brecha nós vamos brigar.

JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE – Líder Quilombola. Conversa

realizada em 09 de julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Nesse momento o movimento negro estava numa postura de enfrentamento ao

racismo, e traz à tona o pressionamento político em uma crescente mobilização nos

espaços públicos. A partir da pressão política e mobilização social da população negra,

ocorreu o reconhecimento da manutenção e o aumento das desigualdades raciais da

população negra no Brasil principalmente por estudiosos e pesquisadores como

Octavio Ianni (1987); Oracy Nogueira (1998); Fernando Henrique Cardoso (2000);

Florestan Fernandes (2007) e Hasenbalg, Carlos. A. (2005). Foram apresentadas

demandas e debates “à necessidade de formulação de políticas publicas específicas e

setoriais que se deve a mudança observada.” (THEODORO, 2008, p. 15) 81.

81 “Reconhecida a injustificável desigualdade racial que, ao longo do século, marca a trajetória dos grupos

negros e brancos, assim como sua estabilidade ao correr do tempo, a discussão passa progressivamente a

se concentrar nas iniciativas necessárias, em termos de ação pública, para o seu enfrentamento. Nesse

sentido, o avanço é expressivo. Ele se explica, em parte, pelo avanço observado nos diagnósticos,

pesquisas e análises sobre a temática no país, herdeiras dos estudos pioneiros sobre as desigualdades

raciais no final da década 1970. Mas, sobretudo, pela progressiva mobilização e atuação do Movimento

Negro e de sua crescente presença no espaço público, apresentando demandas e debatendo a

necessidade de formulação de políticas públicas especificas e setoriais, que se deve a mudança

observada.” (THEODORO, 2008, p.15).

Page 146: Tese Quilombo

145

(...) foi muito importante no final dos anos 80, nós corremo atrás dos

direitos, e a gente não conseguiu ninguém pra apoiá a não ser o bispo.

Ele já morreu, morreu lá no nordeste, nem sei que estado, o Dom

Aparecido. Só ele, e o repúdio do poder político do Vale do Ribeira

que agrega 23 município, então que é ligado a Metodiocesana de

Registro (Mitra Diocesana - de Registro) e aí ninguém mais a favor. O

prefeito metendo nóis no jornal tuda semana, judiando memo de nóis.

E o governo não tinha parâmetro na lei do estado que pudesse. [...] O

que a gente fez, isso eu achei que foi uma força muito forte nossa, é,

sento com o bispo, fizemos um projetinho, porque precisava de um

profissional pra juntar tuda essa fala que tô falando no papel e

pesquisá, onde tinha alguma coisa que falasse de Ivaporunduva,

museu, igreja, onde tivesse qualqué coisa pra juntá, porque pra pegá

pela árvore geológica não existia em Ivaporunduva. Ficamos quase 200

anos sem história, sem registro no papel, porque como o cara ia

registrar óbito, essas coisas. Naquele tempo não existia essas coisas,

o cara nascia, juntava com mulher, produzia filho, crescia, morria, e

governo não sabia. Então, por esse caminho não dava pra reconhecê

Ivaporunduva. Tinha que entrar por outro caminho, essa

característica, esses indicativos que pudesse ajudá foi importante.

Mas como pagava? Tivemo que busca dinheiro, conseguimo então que

as cartas francesas arrumou uma verbas pra pagar.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Conversa realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Ditão faz menção à participação da Igreja Católica82 na formação da liderança

quilombola e à participação dos quilombolas nas discussões levantadas pelo movimento

negro. Ivaporunduva é uma comunidade de forte tradição católica. É vedado qualquer

tipo de participação de igrejas evangélicas em Ivaporunduva. Na década de 1980, a

presença da igreja católica local, com forte vínculo com o movimento político da

82 As Irmãs Pastorinhas, Maria Sueli Berlanga e Ângela Biagioni, iniciaram estudos bíblicos com as

mulheres quilombolas de Ivaporunduva. Os trechos bíblicos estudados pelo grupo, relatavam a “força da

mulher” para superar momentos de dificuldades, no sentido de despertar o potencial político entre elas.

Mais tarde, os homens passam a se integrar nesses estudos. Começa, então, um processo de mudança na

dinâmica da comunidade, dando início à organização política da Comunidade de Ivaporunduva. A advogada

Dra. Michael Mary Nolan, é reconhecida pela comunidade como referência jurídico-política. Ela conseguiu

realizar os acordos entre os órgãos governamentais - na Justiça Federal de São Paulo, envolvidos na ação

judicial pela posse legal da terra do Quilombo de Ivaporunduva. Mais sobre o trabalho da formação

política da comunidade, ver: PAZ, M. R. P. Identidade Quilombola e Políticas Públicas. 2001.

(Dissertação) Mestrado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. São

Paulo, 2001, p. 69-91.

Page 147: Tese Quilombo

146

esquerda, realizou trabalho de formação política na região e em Ivaporunduva,

resultando em mudanças social, política e econômica na dinâmica da comunidade.

Vô Gaspar, na mesma entrevista em que relata que não existe lugar melhor que o

quilombo para se viver, não descarta as dificuldades enfrentadas pelos quilombolas

para ficar no território:

[...] naquela época o povo era mai simpre, quase num

intendia de lei, a lei passava por lá, nói num fazia conta,

o grandão qui ficava deitano e rolano em riba do povo,

sabe? E saiu uns par de esperto qui entendia das coisa,

saiu pra fora pra intendê e procurá o direito e colocá no

papel. Intão foi ino assim, ia, andava quase o Brasil

intero, aí um cansava e vortava, otro entrava, e assim

foi ino com o documento até agora. E agora tá bem

movimentado, bem organizado o quilombo.

GASPAR FURQUIM, quilombola, 72 anos. Conversa

realizada em 03 de agosto de 2009, no Quilombo de

Ivaporunduva

O incômodo das lideranças com as condições que a população quilombola estava

vivendo (a invisibilidade, o isolamento, as ameaças dos fazendeiros para que os

quilombolas deixassem aquela terra, a falta de acesso aos direitos constitucionais,

como: escola, saúde, transporte etc.) transforma-se em prática social, e se constitui

em luta pela terra, pela sobrevivência de seus membros em condições de

aquilombamento. Essa prática é compreendida por eles como um trabalho político, de

ação e movimento, que busca organizar e reivindicar melhorias locais.

A obtenção e canalização da água, que antes era retirada de várias nascentes que

cortam a região, foi um acontecimento muito importante para a comunidade, embora o

processo de negociação com os órgãos da prefeitura tenha sido demorado. A

prefeitura prometeu os materiais para a canalização (canos e caixas d‟água), porém só

cumpriu a promessa depois que os quilombolas ocuparam a sede da prefeitura. Todo o

trabalho de mão-de-obra foi realizado pelos membros da comunidade, organizados em

Figura 10: Vô Gaspar

Fonte Própria (agosto 2010)

Page 148: Tese Quilombo

147

mutirão. Ao final da obra, a comunidade comemorou, de acordo com a tradição

quilombola (uma celebração que se inicia com as pessoas na igreja, e depois elas

seguem em procissão pelo caminho da água canalizada). Essa celebração termina com

um baile. O Prefeito de Eldorado compareceu “para inaugurar mais uma das suas

obras.” (PAZ, 2001, p. 83)83.

Antes da canalização, a comunidade dependia de buscar água no rio para uso

doméstico, utilizando-se de baldes e outros utensílios; enquanto o banho e a lavagem

da roupa aconteciam no próprio rio. Em algumas localidades aonde a canalização não

chegou, a população ainda faz uso dessas práticas, as quais dificultam a vida das

famílias. Outra questão importante a salientar diz respeito ao saneamento. No

quilombo de Ivaporunduva, por exemplo, não há programa de saneamento básico,

algumas casas dispõem de fossa, mas a maioria não. As casas distantes da vila são

desprovidas de banheiro, obrigando as pessoas a fazerem suas necessidades

fisiológicas na mata, ou a alguns metros da sua casa. Supõe-se que seja potável a água

que vem da serra, utilizada para beber e na preparação alimentos, porém não foram

submetidas a testes, nem se conhece estudos ou pesquisas sobre a qualidade dessa

água e nem sobre o tratamento de esgoto local.

Como já foi dito, cada conquista das comunidades quilombolas só foi conseguida depois

de longo processo reivindicatório, como, por exemplo, a mencionada Escola de Ensino

Fundamental Rural (E.E.F.M.) do Quilombo de Ivaporunduva, fundada em 1982. A

reivindicação, em seguida, foi relativa ao transporte: pediu-se que o ônibus que

transporta as crianças fizesse uma parada mais perto do porto (rio) para embarque e

desembarque dos alunos do ensino médio, moradores em localidades mais distantes da

escola.

As reivindicações continuaram, principalmente ao vigorar a carta magna, que

caracteriza a discriminação como crime. O crescente envolvimento e luta da população

negra brasileira também pressiona o governo para a aprovação do artigo 68, dos atos

83 Ver em: PAZ (2001, p. 83).

Page 149: Tese Quilombo

148

das disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que dispõe sobre o direito da

posse da terra por remanescentes de quilombos84.

Depois qui saiu a lei pra formá o quilombo, intão nóis aceitemo e

trabaiemo em cima pra formá o quilombo. I nói fiquemo lá na Vila

quatro noite cum advogada expricano pra nóis como qui funcionava o

quilombo. Intão nói trabaiemo em cima desse projeto de quilombo,

fumo, fumo trabaiano e intão se formô o quilombo.

GASPAR FURQUIM, 72 anos. Conversa realizada em 03 de agosto de

2009, no Quilombo de Ivaporunduva.

Em 1989, a Advogada Dra. Michael Mary Nolan, junto com a comunidade, planejou o

processo jurídico de regularização da terra e também a criação da Associação

Quilombo de Ivaporunduva, fundada em 14 de julho de 1994. Revisitar a história dos

seus antepassados e provar que eram descendentes das pessoas negras escravizadas,

e estavam na terra há mais de 400 anos, foi um processo longo para os quilombolas.

84 Artigo 68: “Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras

é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Garante

também os direitos culturais, definindo como responsabilidade do Estado a proteção das

“manifestações das culturas populares, indígenas e afrodescendentes”. O artigo 215 prevê que “o

Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de

outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. O Artigo 216 estabelece: “Ficam

tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos

quilombos”. Estes artigos representam avanço na História do país, no que se refere aos aspectos de

reconhecimento dos direitos culturais (art. 215 e 216) e direitos fundiários (art. 68). (MALCHER,

2006, p. 17).

Page 150: Tese Quilombo

149

Conseguimo contratá um etnólogo da Bahia, um baiano, e um topógrafo

daqui de Registro pra fazer a demarcação; naquele tempo não tinha

GPS, tinha que marcá naquele aparelho de topografia, pra marcar de

pedacinho a pedacinho, entendeu, e nosso povo concordou: vamo mete

a cara no mato todo mundo, aí quem que vai sabe onde que é a divisa

hoje? Aí o afinado Benjamim que já morreu, Silvestre tá vivo, o pai do

Destrói, o mais antigo, a divisa era aqui, o meu avô dizia que daqui

desse morro ia até nessa barra de corgo; dessa barra de corgo ia até

no pé de jequitibá lá em cima; de jequitibá descia no pé de figueira

branca; da figueira branca ia até no pé de cedro, e ali nóis fomo

naquela direção e foi ohhh... um mês, nóis conseguimo fazê entrar aqui

na beira da Ribeira, dá toda volta aqui pelo mato, lá onde tá aquele

último espigão lá, e desce pra lá daquele primeiro pastos ali, bem no

canto do pasto tá nossa divisa e fizemo a demarcação terra. A medida

da condição que ele dava aí dós mês, três mês, ele troxe pra nós, ele

termino o mapa da área. [...] O trabalho do etnólogo demorô um poco,

mais ele pesquisô aqui, pesquisô nas cidade do Vale do Ribeira,

pesquisô em São Paulo, foi buscá em todo lugar que ele podia achá o

que falasse de Ivaporunduva, ele pesquiso, né, aí saiu então o

documento antropológico de Ivaporunduva. Nós com a posse desse

documento, nós fomos até São Paulo, né, com o advogado e

protocolamo. Lá, exigindo do governo então reconhecesse

Ivaporunduva uma comunidade quilombola, e titulasse nossa

comunidade. Foi uma confusão da desgraça, puta que pariu. O primeiro

em São Paulo que chegou, né, e aí houve uma confusão danada, a

associação da antropologia questionou por essa falta de registro.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

As leis referentes ao reconhecimento das terras não eram bem definidas. Ditão

aponta as dificuldades em provar a história:

Page 151: Tese Quilombo

150

Mario Covas criô então naquela época lei e que ordena o ITESP pra

reconhecê e titulá as terras de quilombo, porém só área de conduta,

área que não tivé pobrema. Isso foi a coisa ruim que ele fez no

documento. Área que tivé probrema não resolve. E agora imagina

vocês, quilombo 400 anos, qual o quilombo que não tem pobrema? Tô

falando de ocupação, tô falando de ocupação de terceiro, qual é o

quilombo que não foi ocupado? É preto, tudo analfabeto, o que não

sabe lê e escrevê, contando a letra é alvo fácil, pra quem qué adquiri a

terra, adquiri a terra de graça, baratinha a troco de banana, então

aqui aconteceu muito isso nos quilombos, então foi a parte difícil pra

nós aqui[...]. Aí precisou bons advogados pra defendê, até que, em 97,

um acordo, né, que houve em Brasília, e assim voltaram, saiu

Ivaporunduva, Rãs, Conceição das Criolas, alguns quilombos no Brasil

reconhecido nesse pacote, e Ivaporunduva foi junto, e aí fui pra

Brasília e voltei, voltei alegre pra caramba, aí contemo pra

comunidade, foi uma alegria, né.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

No dia primeiro de julho de 2010, o Quilombo de Ivaporunduva entra mais uma vez na

história de luta, resistência e conquista pela terra, sendo a primeira comunidade

quilombola no Brasil a ter o registro da terra, como explica José Rodrigues:

Pelo que vejo no Brasil, nós somos um dos pioneiros

do registro de terra coletiva, o juiz não tinha

modelo pra se basear. Foi criado pelas leis, foi

criado um modelo, eles tiveram dificuldade. Aqui no

Brasil, pela lei da terra, o dono é um, é aquele ou

aquele; quer dizer, quando se fala em coisa coletiva,

fica difícil, porque não é moda, nunca ninguém fez.

Então pra nós é, foi muito importante esse

conhecimento em ter direito a registrar. Espero

que isso seja muito modelo pro resto do Brasil, que

outras comunidades do Brasil eles usem isso pra se

legalizar legalmente na terra, pra ter seu direito ao

registro de sua propriedade.

JOSÉ RODRIGUES - ZÉ RODRIGUE. Conversa

realizada em 18 de julho de 2010, no Quilombo de

Ivaporunduva.

No dia 09 de julho de 2010, a Associação Quilombo de Ivaporunduva realizou uma

assembléia geral com os membros da comunidade, para celebrar o registro da terra.

Figura 11: Zé Rodrigue – Quilombola -

Vereador Município do Eldorado-SP

Fonte Própria (julho/2010)

Page 152: Tese Quilombo

151

Maria da Guia85, Coordenadora da Associação, iniciou a assembléia dizendo que

estavam reunidos para comemorar um momento de vitória da comunidade. Em seguida,

ela pediu um minuto de silêncio em reverência aos quilombolas mortos nos embates em

defesa da vida no território. Lembrou que aquele momento de celebração só foi

possível pela continuidade do trabalho de luta e resistência que teve início há mais de

400 anos, pelos seus antepassados, e continuidade pelos seus descendentes, por meio

do trabalho e ações políticas em 24 anos de luta no processo político-jurídico de

reconhecimento, titulação e, naquele momento, o registro da terra (figura 8).86

Esses mais velhos, uma coisa muito importante que foi lembrado aqui,

foi esse povo que morreu. Eles não tinham interesse de sair daqui,

sempre eles queriam prantar seu arroz seu fejão, e queriam que seus

filhos, seus netos seguisse a mesma viagem. Quer dizer, isso deu

força para nós tá aqui hoje, porque têm muitos, aqui, que devia estar

fora hoje. Mas eles reconhecem seus ancestrais e tão aqui, a luta, a

cultura dos seu antepassado, e isso é pra nós, e muito importante, e

nós temos que passar pros mais novos. Eu tô com 50 anos, tem muito

da minha idade, nós vamos daqui um dia tá mais velho e até morrendo,

esse valor tem que acompanhar a viagem.

JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE – Líder Quilombola – Assembléia

da Associação Quilombo de Ivaporunduva. Realizada em 09 de julho

de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Na celebração do registro do titulo da terra, a Dra. Michael, advogada da Associação

Quilombo de Ivaporunduva, comemora: “A terra é de vocês e ninguém pode tirar, ela

está registrada definitivamente no cartório. Eu prometi mais de vinte anos atrás, que

a gente lutaria para fazer isso, agora eu terminei minha tarefa, vocês são donos”.

85 Em 12 de julho de 2009, a comunidade, em assembléia da Associação Quilombo de Ivaporunduva,

decide pela primeira vez, em votação, por uma liderança feminina - Maria da Guia – Coordenadora da

Associação por um período de dois anos (até julho/2011). Ela reconhece e tem acompanhado o percurso

das lideranças quilombolas que antecederam à dela, inclusive a de seu marido, José Rodrigues, nas ações

que foram primordiais para a comunidade, voltadas para: as necessidades de defesa, posse e

regularização das terras; processo de articulações políticas contra as barragens; as parcerias de

desenvolvimento sustentável para os avanços da comunidade. 86 Em 1997, deu-se o primeiro reconhecimento de suas terras pelo ITESP; em 2000, a comunidade

obteve o reconhecimento pela Fundação Palmares e, em 2003, recebeu, do ITESP, o título de parte de

suas terras; Em 02 de julho de 2009, finalizou-se o processo de reconhecimento, regularizando-se a

documentação.

Page 153: Tese Quilombo

152

Zé Rodrigue, também expressa a alegria pela conquista da titulação da terra:

[...] As leis, tem as leis, e você tem às vezes que brigar pra que ela

seja cumprida. Eu lembro que aqui, essa comunidade, nós somos

titulado, contemplado com o titulo de direito, direito nosso. E ficamos

aí quase 15 anos sem registrar o titulo, 16 anos atrás nós entramos na

justiça e hoje o juiz deu a sentença que os cartórios tem que

registrar. E ganhamo através de uma ação pública, ganhamo o direito

de registro da nossa terra. Então hoje nós fomo no cartório junto

com o pessoal do INCRA, né? É, registramos o título. E uma coisa que

o Estado é réu, o Estado foi réu. Porque nós tivemos que brigar

contra o Estado, entendeu? Pra que o Estado nos liberasse o registro

da titulação, entendeu? Então quer dizer que não tem mérito nenhum

de governo, se você for ver, de Estado nenhum. É mérito da nossa luta

com a justiça. A justiça foi feita. Nós tivemos o registro registrado.

É claro que depois do registro registrado, tem que trabalhar as ações,

aí a dever do estado de trabalhar desenvolvimento, melhorar essa

coisa das ações que já vem sendo feita, mas tem que melhorar mais. A

luta pelo registro do titulo foi nossa com a justiça. Nós agradecemos

muito os nossos companheiros jurista que nos deram a sentença ao

nosso favor, nossos advogados, a Dra. Michael, que foi uma pessoa

muito legal com a gente, dês do começo ela estava lá com ação, muitos

procuradores públicos que nos ajudaram, então, nós devemos muito a

isso. E hoje nós temos o título registrado. Nós podemos bater no chão

e dizer: essa terra é minha, essa terra é nossa, do nosso povo, e aqui

podemos sobreviver nossas gerações, sem risco de podê perder um

dia.

JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE. Conversa realizada em 18 de

julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Figura 12: Assembléia Geral da Associação Quilombo de Ivaporunduva –

Quilombo Ivaporunduva - Celebração pelo Registro da Terra

Fonte própria: 09 de julho de 2010

Page 154: Tese Quilombo

153

AS CONTRADIÇÕES

O Líder Zé Rodrigue exprimiu algumas preocupações ao falar que a comunidade está

entrando em uma nova fase, com novos problemas e com novas discussões:

[...] A luta não acabô. A nossa luta do dia-a-dia vai tê continuar. Aí nos

vamos tê que cada vez mais, se organizar melhor. Pra ter uma

qualidade de vida boa, geração de renda boa, manter os laços

culturais de amizade e de irmão. Mas eu acho que nós temos mais luta

[...] mudou o tempo, organizou muita coisa, mas aí assim, começou

tamém aumentar os problemas, como vem a cada vez mais, e pra

manter essa coisa que aquele pessoal que nós lembremos deles aqui,

queria que nós mantesse, nós vamos ter que fazer muita luta ainda.

Nós temos uma ponte aí, daqui a pouco nós vamos ter que colocar uma

guarita pra não mudar nossa cultura, nossos modos de vida.

JOSÉ RODRIGUES – Zé Rodrigue -Líder Quilombola – Assembléia da

Associação Quilombo de Ivaporunduva, realizada em 09 de julho de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Observa-se na fala de Zé Rodrigue vários tipos de preocupação com: a organização

quilombola, a construção das barragens, a qualidade de vida, a geração de renda, a

manutenção dos laços culturais, que significa a coletividade, e também a ponte que foi

construída na comunidade e seria inaugurada, em 23 de agosto 2010, pelo Presidente

do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva. Essa ponte, como já foi apontado, tem múltiplos

significados para essa comunidade.

Para entendermos melhor essas preocupações de José Rodrigues, comecemos pela

construção das barragens. No decorrer da história da formação da comunidade

Quilombo de Ivaporunduva, foi possível acompanharmos o empenho da população

quilombola para manter a sobrevivência dentro do seu território. Ela precisou

trabalhar e se organizar de forma individual e coletiva. Ao iniciar a luta pela posse da

terra, há 20 anos, simultaneamente se iniciou também o trabalho da comunidade nas

ações e movimentos políticos contra a construção das barragens, como já foi

abordado em texto anterior; porém, a problemática da barragem não termina com o

Page 155: Tese Quilombo

154

registro da terra. Jose Rodrigues fala sobre a posição que a população quilombola

deverá assumir contra a construção das barragens87 nessa nova fase:

A região é um potencial econômico muito grande, nós temos mina de

ouro, nós temos muitos minérios, ns temos muita água, aqui tem

grande potencial hídrico´, né. Existe uma lei que diz que quilombo é

patrimônio nacional. Então não pode depredar. Se tiver algum projeto

que vai atingir de qualquer maneira, não positivo pra esse território,

não pode ser feito. Por exemplo, no caso da barragem, vai pegar de

cheio o quilombo, é claro que não é viável. Não tô falando que não é

viável o recurso hídrico no Brasil, eu tô falando que, em lugar onde vai

causar o impacto, com patrimônio cultural e impacto muito grande com

a questão ambiental, não é viável. No caso aqui, vai ser mais difícil pro

setor de energia pranejar uma coisa de aproveitamento hídrico aqui.

Porque tem os patrimônio cultural nacional que, no caso do quilombo,

que tem que ser preservado. Então vai ser mais difícil. Isso pra nós

ganhá fôlego pra nós tentá, é, melhorar a luta.[...] E até forçar uma

nova discussão na questão energética brasileira, que tamém não pode

viver só de recurso hídrico, aquilo que a gente fala, a questão

energética tem que ter mais pesquisas, mais estudo e outra forma de

gerar energia que não seja só recurso hídrico, porque nóis vamo perde

rio, todos os rios brasileiro, vamos perder nossas matas, né? Então

quer dizer, nós não podemos pagar muito caro o nosso

desenvolvimento. Nós temos que achar maneira de minimizar o mínimo

possível o custo, principalmente ambiental e social desses projetos de

desenvolvimento. [...] nós temos que pensar no desenvolvimento,

desde que ele não atrapalhe. O que nos temos que fazer, por exempro.

[...] Tem muitos países aí na Europa que tem suas leis que protege e

são bem desenvolvidos, eles criam alternativa de energia de vários

tipos de desenvolvimento que não agride o meio ambiente. [...]

Criatividade nós temos, falta pensá. Capacidade nós temos, falta fazê.

Falta vontade política de fazer. Nós temos feito a nossa parte, né,

tanto é que essa comunidade aqui, desde 1539 que nós vivemos aqui, e

as matas tá do mesmo jeito, não tem degradação nenhuma.

JOSÉ RODRIGUES – Conversa realizada em 18 de julho de 2010, no

Quilombo de Ivaporunduva.88

87 Na década de noventa do século XX, o governo federal aprovou o estudo de inventário hidrelétrico que

prevê a construção de quatro barragens: Tijuco Alto, Funil, Itaoca e Batatal ao longo do rio Ribeira de

Iguape.A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto (UHE Tijuco Alto) é um empreendimento planejado pela

Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), uma das empresas do Grupo Votorantim, para aumentar a oferta

de energia elétrica para seu complexo metalúrgico localizado na cidade de Alumínio, antiga Mairinque, no

interior de São Paulo. A localização da UHE Tijuco Alto está prevista para o alto curso do rio Ribeira de

Iguape, na divisa dos Estados de São Paulo e Paraná, cerca de 10 quilômetros a montante da cidade de

Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR), e a aproximadamente 333 km de sua foz, no complexo Estuarino-

Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá.Com as construções das barragens, aproximadamente 11 mil

hectares de área serão inundados, será inevitável o desaparecimento das terras de quilombos e pequenos

agricultores, cavernas, unidades de conservação e cidades.

Page 156: Tese Quilombo

155

Ditão discute os impactos que a construção das barragens poderá causar à

comunidade, dando exemplos das interferências ocorridas na organização social do

quilombo, durante o período de construção da ponte89.

Temos barrageiro90 no Brasil que vive disso, igual quem faz estrada,

né? Taqui acabô o serviço, vai pra outro lugar. Muitos desses

barragero quando vem prum lugar que nem igual a esse aqui, esses

lugar ele fica, e os municípios não está preparado pra receber na

questão de educação, na questão de saúde é principal, não tem,

nós aqui, quando dá esse negócio de uma epidemia de gripe, aí entope

o hospital de gente e fica nego distribuído lá pro corredor, porque

não tem lugar. Imagine mais uma quantidade de gente na região, então

isso são preocupação tamém que traiz, e outra questão é filho: oi, foi

feito uma ponte ali; oi, tem uma criança em Ivaporunduva que é

resultado da ponte. Imagine umas duas mil pessoas aqui [...].

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

A obra de construção da ponte foi realizada por 50 trabalhadores91, vindos de

diversos estados do Brasil, que ficaram em um alojamento improvisado pela

construtora responsável pela obra, próximo à comunidade (do outro lado do rio, fora

do quilombo). Poucos trabalhadores quilombolas (das comunidades de Eldorado e

Iporanga/SP) foram contratados para esse trabalho, o que de fato contribuiria para

que se mantivesse a segurança das famílias e se preservasse a dinâmica e os costumes

dos quilombolas.

88 Ver a entrevista do Zé Rodrigue sobre a discussão das barragens, gravada em 2007. Vídeo da

Audiência pública – Vale do Ribeira. Disponível em:

<http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>. Acesso em: 02 jul. 2010.

89 Dados retirados do diário de Campo na data de 20.07.2010 – A obra da construção da ponte deu inicio

em outubro de 2008 com a previsão de terminar em agosto de 2010. No mês de junho de 2010 os 50

trabalhadores finalizaram o trabalho da construção da ponte e deixaram o alojamento localizado ao lado

do Rio Ribeira de Iguape no Quilombo de Ivaporunduva, vieram outros trabalhadores (esses são

funcionários da prefeitura do município Eldorado) para trabalhar na estrada. A inauguração da ponte

estava marcada para o dia 16 de julho 2010 – com a presença do Presidente do Brasil - Luiz Inácio Lula

da Silva, foi adiada devido à chuva constante que interrompeu a finalização do trabalho; a inauguração

será re-marcada para agosto/2010.

90 Barrageiros – são os trabalhadores (contratados pela construtora responsável pela obra da construção

das barragens) – identificados dessa maneira pelos quilombolas.

91 A construção da Ponte foi financiada com recursos do Governo Federal; aprovada em 06 de outubro de

2006; realizada pelo Exército Brasileiro. Concedente: Ministério da Integração Nacional; executor: 10º

Batalhão de Engenharia de Construção; empresa Contratada: Consórcio Etama/Arvek. A construção da

obra teve início em novembro de 2008 e foi até julho de 2010.

Page 157: Tese Quilombo

156

A preocupação trazida pelo líder Ditão é com as famílias e com a estrutura social da

comunidade, uma vez que os trabalhadores, vindos de fora, não têm vínculo com a

terra nem respeito à ancestralidade, ou relação de irmandade com membros da

comunidade, podendo, assim, interferir e desestabilizar a sua organização social92.

No município, os serviços que atendem à população nas áreas da saúde, educação,

transporte, segurança, emprego, moradia etc. são municipalizados, e os serviços para

atender às necessidades da população nessas áreas têm sido precários e/ou

inacessíveis93. Muitos motivos de preocupação vêm ocorrendo na comunidade,

principalmente, em relação a: controle (ou descontrole) da taxa de natalidade;

aumento acelerado de usuários e/ou dependentes de drogas (licitas e ilícitas) e uso

abusivo do álcool. O crescimento excessivo de usuários de álcool entre mulheres,

jovens e adolescentes tem aumentado a violência doméstica (a agressão física e

psicológica), causando mudanças no convívio social da comunidade. Parecem

pertinentes as preocupações dos quilombolas, caso a construção das barragens seja

aprovada: a violência velada que começa a fazer parte do cotidiano dessa população

tende a se tornar explícita, por falta de ações políticas em diversos setores da

sociedade. Um exemplo seria a própria construção de barragens, que levaria à

expropriação das terras dos quilombolas, fazendo com que eles perdessem o seu

vínculo com o território e com os seus meios de produção.

Os quilombolas de Ivaporunduva têm resistido à violência simbólica e mesmo à real

(poderíamos dizer), que tem sido imposta pela expansão desenvolvimentista do

capitalismo. Essa resistência está presente nas ações políticas, na história de vida dos

quilombolas de Ivaporunduva, construída em meio aos conflitos diante de um sistema

que lhes tem negado os direitos como parte integrante que são da população

brasileira. Os avanços (mesmo limitados e lentos) na passagem dos quilombolas de um

92 As interferências dos ponteiros92 ocorreram a partir das entradas deles no quilombo para compra de

produtos nos bares, uso de orelhão e, aos poucos, passaram a frequentar os espaços de lazer da

comunidade. Com alguns desses trabalhadores entram, na comunidade, as drogas (lícitas e ilícitas) e

também acontece de esses trabalhadores buscarem relacionamentos “rápidos ou enquanto estiverem

empregados no local”, sexo (muitas vezes sem prevenção contra DST‟s e gravidez) com adolescentes,

jovens e adultos, sem levar em consideração compromissos de relacionamentos já estabelecidos no local,

além das consequências desses atos às gerações futuras. 93 A estrutura do tratamento de saúde no município (atendimento médico para a população,

acompanhamento na gestação, epidemia, odontológico etc.) é quase inexistente. Há falta de equipe

médica e de estrutura física para atendimento das necessidades básicas da saúde da população do

município. Os quilombolas estão em locais isolados, a 55 km do hospital de Eldorado-SP (que geralmente

faz o encaminhamento para a cidade de Pariquera-açu-SP, a 35 km de Eldorado). No caso de violência,

agressão física, assassinato, atropelamento, desaparecimento de pessoas, entre outras denúncias de

agressões, o setor de segurança pública não tem tomado as providências para assegurar os direitos da

comunidade, principalmente dos quilombolas que estão isolados, literalmente, do centro urbano.

Page 158: Tese Quilombo

157

sistema de escambo para o de renda, no sentido de produzirem a vida, têm se dado a

partir de ações políticas.

Manter a sobrevivência tem sido um embate constante dos quilombolas com os

setores públicos da sociedade brasileira. Esses embates têm sinalizado que tudo o que

foi sendo construído nesse território quilombola tem sido reivindicado e arrancado

dos ministérios públicos com o poder das ações dos movimentos políticos e sociais

dessa população.

Nesse sentido é pertinente a preocupação do José Rodrigues, quando ele diz que: [...]

A luta não acabô. A nossa luta do dia-a-dia vai tê que continuar [...] Nós temos uma

ponte aí [...]. A preocupação com a ponte se remete à entrada do desenvolvimento, que

tanto pode ser pautado no conceito de uma comunidade sustentável como no de

desenvolvimento sustentável.

Para Diegues, no seu texto “Sociedade e comunidades sustentáveis”, o termo

desenvolvimento sustentável “acabou sendo transformado, no Brasil, numa dessas

porções mágicas destinadas a curar todas as enfermidades crônicas de que sofre a

sociedade moderna.” (DIEGUES, 2003, p. 1). Desse modo, tornou-se preocupante o

consenso sobre o significado do termo “desenvolvimento sustentável”, que tem sido

distorcido quando utilizado por diferentes grupos sociais.

Desenvolvimento sustentável, para alguns setores do movimento ambientalista,

significa a proteção do verde, independe da realidade social envolvida; para os

empresários, significa o desenvolvimento que garante a sustentabilidade da taxa de

lucro, baseada na criação e venda de equipamentos e produtos contra a poluição; para

setores governamentais, pode significar empréstimos internacionais a organismos

financeiros obrigados a projetos socioambientais em seus critérios de aprovação de

projetos no item ambiental; no âmbito internacional, o conceito é utilizado de forma

mais ampla, para se referir às causas sociais e econômicas da degradação ambiental e

da rápida e crescente marginalização das áreas de preservações ambientais dos

países.

Mesmo com a ambiguidade de várias propostas de desenvolvimento sustentável

formuladas pelas elites, Diegues (2003) nos convida a resgatar o conceito que melhor

exprime o sentido de sustentabilidade, o qual está atrelado “ao de bem-estar e

Page 159: Tese Quilombo

158

qualidade de vida das comunidades e sociedades humanas. Nesse sentido, a

sustentabilidade [...] é um conceito plurifacetado que envolve as dimensões sociais,

econômicas e políticas” (Ibid, p. 1).

A noção de sociedade sustentável está baseada na noção expressa por Chambers

(1986 apud DIEGUES, 2003), que entende que os grupos e pessoas, sobretudo os mais

empobrecidos, devem ser considerados sujeitos e não objeto do “desenvolvimento”.

Para esse autor, o meio ambiente e o desenvolvimento “são meios e não fins em si

mesmos”. O autor se refere, ainda, à sustentabilidade dos modos de vida, para a qual,

a prioridade das políticas públicas deve ser a qualidade de vida, e não o crescimento

econômico. Desse modo, é importante se pensar em “comunidades ou sociedades

sustentáveis” e não desenvolvimento sustentável.

É necessário que as comunidades pensem e se estruturem em termos

de sustentabilidade própria segundo as suas tradições culturais, seus

parâmetros próprios e sua composição étnica específica. Isso não

invalida as conquistas universais hoje consolidadas nos princípios da

Declaração dos Direitos Humanos e outras declarações e acordos mais

universais que devem estar na base da sustentabilidade, sob o prisma

da participação democrática na construção das sociedades

sustentáveis. (DIEGUES, 2003, p. 4).

Robinson (1990) entende que o conceito de “sociedades sustentáveis” é mais

apropriado, por ser mais amplo do que desenvolvimento sustentável. O autor define

sustentabilidade “como a persistência, por um longo período, de certas

características necessárias e desejáveis de um sistema sociopolítico e seu ambiente

natural” (ROBINSON, 1990 apud DIEGUES, 2003, p. 5).

A sustentabilidade é um princípio ético, normativo, e não existe apenas uma única

definição de sistema sustentável. Não existe sociedade sustentável sem a

sustentabilidade ambiental, social e política; portanto, trata-se de um processo e não

de um estágio final, que pressupõe um sistema sociopolítico sempre em

transformação.

Page 160: Tese Quilombo

159

O autor também faz menção ao valor intrínseco do mundo natural e suas formas de

vida, incluindo a humana. Para ele, os princípios sociopolíticos estão atrelados à

distribuição equitativa da riqueza gerada, à participação política da população nas

decisões, às liberdades democráticas e à satisfação das necessidades básicas.

Pergunto sobre o significado da abertura dos “portões” do quilombo para o

desenvolvimento. Qual modelo de desenvolvimento? A custa de qual sustentabilidade?

O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL CAPITALISTA?

Page 161: Tese Quilombo

160

Figura 16: Ponte de Ivaporunduva

Fonte Própria (julho/2010)

Figura 14:

Sr. Aparício –

Travessia de canoa

Fonte Própria (2010)

Figura 13: Travessia de

barco motor

Fonte Própria (2008)

Figura 15: Travessia

de balsa

Fonte Própria (2006)

Page 162: Tese Quilombo

161

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Page 164: Tese Quilombo

163

QUINTO TEXTO

“EU ACHO QUE DÁ PARA VIVER AQUI”

Page 165: Tese Quilombo

164

O processo da formação histórica da comunidade Quilombo Ivaporunduva esteve

fundamentado pelas/nas ações socioeconômicas e políticas em movimento e em

transformação. Em um primeiro momento como pessoas escravizadas, num segundo

momento pela resistência e luta para manter a sobrevivência no território. Nesse

movimento, as terras de preto são uma realidade agrária brasileira, são áreas que

passam a ser reconhecidas no âmbito jurídico-político por meio de lutas sociais. O

nosso movimento é no sentido de entender como a população quilombola tem

significado as suas relações com o território para manter a sobrevivência em suas

terras. Ivaporunduva tem enfrentando um crítico dilema entre desenvolvimento e

preservação do patrimônio natural e cultural, um modelo conservador-tradicional onde

as forças se organizam de forma bipolar e enfrentam-se de forma antagônica, tais

como: urbano x rural, desenvolvimento econômico x preservação ambiental,

fazendeiros x ambientalistas, e ainda tem sofrido com o projeto de construção de

barragens ao longo do rio Ribeira de Iguape. Esse texto é continuidade do anterior.

Trazendo os relatos das famílias, jovens e lideranças, pontua um novo momento de

reorganização socioeconômica e política em busca de uma comunidade sustentável

***

Page 166: Tese Quilombo

165

Uma coisa especifica minha são as minhas comunidades são os meu

povo, que nós precisamos fazer com que a sociedade pague um pouco

dessa dívida social, que o estado, o Brasil deve pra nós, e que ela

sempre se enrola, se enrola e cada vez mais, eles tentam, a sociedade

mesmo, as leis tentam nos diminuir algumas coisas, mas nós temos que

brigar pra que essa dívida seja paga. É uma dívida muito grande que

não tem dinheiro que pague, mas tem que fazer alguma coisa pra

melhorar isso, nosso povo tem que ter qualidade de vida, tem que ter

chão pra sobreviver, tem que ter terra pra sobreviver, pra prantá,

pra colhê, pra criá seu desenvolvimento, tem que ter uma boa

educação e saúde.

JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE. Conversa realizada em 18 de

julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

A comunidade discute uma reorganização socioeconômica e política que envolve a luta

pelos direitos sociais de: comunidade sustentável (que eles se sustentem na própria

terra) e conhecimento. As lutas sociais dos quilombolas são originárias na formação

histórica da população negra no Brasil, uma vez que vivem em “uma sociedade plural,

mas não resolvida a nível de direitos.” (GUSMÃO, 1992, p. 120).

No seu relato, o quilombola Zé Rodrigue se remete às experiências vividas

historicamente pelos seus antepassados, nas quais se orienta a luta no presente. Para

a autora Gusmão, esse processo surge como confronto com o „outro‟, seja empresa

mineradora, o fazendeiro, empreendimento turístico, empresa privada,

empreendimento público, terceiro setor etc., sendo “então moldada pelo „tempo de

agora‟ – „tempo de luta‟, mas encontra subsídio no „tempo de antes‟, naquilo que foi a

vida coletiva, a vida no grupo.” (GUSMÃO, 1992, p. 119).

Toda essa formação de Ivaporunduva que teve vários estágio, eu só

resumo em três estágio: Primeiro estágio: o estágio que nóis era

escravo; segundo estágio: o estágio de resistência, e terceiro estágio:

agora nóis estamos lutando por direito e desenvolvimento. E dentro

desse estágio de lutar por direito e desenvolvimento, o conhecimento

é muito importante.

DENILDO RODRIGUES DE MORAES - BICO. Palestra realizada em

16 de janeiro de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Nos últimos 10 anos, tem crescido o reconhecimento sociopolítico e a legitimidade da

luta dos quilombolas pela posse da terra; simultaneamente vem ocorrendo o

Page 167: Tese Quilombo

166

fortalecimento político da liderança quilombola e a sua busca por uma comunidade

sustentável.

A partir de 1960, a bananicultura94 veio aos poucos se estabelecendo como a principal

atividade econômica da comunidade, cuja produção passa a ser realizada em regime de

agricultura familiar. A venda desse produto não era diferente das experiências do

passado, vivenciadas pelos quilombolas com a produção do arroz e da carga do palmito;

pois as bananas eram também vendidas para os atravessadores, e o ganho pela

atividade de todo trabalho dos quilombolas era limitado. Mais uma vez, seu trabalho

era marginalizado e seus produtos submetidos à negociação injusta.

Era o único meio que os quilombolas tinham para vender suas

mercadorias. Para não perder seus produtos, essa comunidade

submeteu-se a trabalhar como uma mão-de-obra barata, ou seja,

produzia muito com um lucro pequeno.

(SILVA, 2008 p.20).95

A comunidade passa pelo período de politização dos membros e lideranças quilombola,

por meio da interação com o movimento da esquerda socialista, com membros da

Igreja Católica (de forte vínculo com o movimento político da esquerda) e com outros

movimentos sociais. O envolvimento dos membros da comunidade com os movimentos

sociais (que garantiu a politização das crianças e adolescentes) foi fundamental para

94 A região do Vale do Ribeira se destacou como principal região produtora de banana do país. Por volta

de 1960, a bananicultura se estabelece como atividade econômica na Comunidade Ivaporunduva, porém

sua produção, como as de outras populações tradicionais e de agricultura familiar, era sempre

marginalizada, se limitava às possibilidades de ganho desvalorizadas e dependentes dos atravessadores

para a venda de suas produções, limitando, de forma injusta, o ganho com essa atividade. A partir de

2002, com a aprovação de projetos para organizações financiadoras, que previam recursos para

melhorias na produção e comercialização da bananicultura, essa atividade passa a ser o foco principal da

economia da comunidade. (ISA, 2007, p. 16). 95 Laudessandro Marinho da Silva – quilombola morador do Quilombo de Ivaporunduva.

SILVA, Laudessandro Marinho. Proposta de Implantação do Cooperativismo para a venda de produtos

orgânicos no quilombo Ivaporunduva. Trabalho de Conclusão de Curso em Administração de Empresas.

Universidade São Francisco. Itatiba, 2008.

Page 168: Tese Quilombo

167

tornar os jovens adultos deste momento mais politizados, o que nos remete à fala de

Bico sobre o terceiro estágio: o “de lutar por direito e desenvolvimento (para o que) o

conhecimento é muito importante”.

Entrou a molecada aí correndo pra estudá, a comunidade começou a

incentivá a educação, que os jovens fosse formá, tem os resultado tá

aqui [aponta o Laudessandro], fio do cumpadre Aparecio, que foi pra

replanejá o quilombo, né, e como tinha que repranejá o quilombo,

aproveitá certo o potencial existente daqui, tinha muita, tinha e ainda

tem até hoje muito aproveitamento por pessoas de fora, mas quem

tinha que aproveitá isso era nóis.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de

2010, no quilombo Ivaporunduva.

Com a fundação da Associação Quilombo Ivaporunduva, em 1994, a comunidade entra

em uma nova fase, a de buscar direitos político e socioeconômico à população

quilombola. Com exceção da agricultura de subsistência do cultivo de arroz, feijão,

mandioca, batata doce, milho e do cultivo de vegetais, as outras atividades foram

sendo introduzidas na comunidade por meio de mútuos esforços e investimentos dos

setores públicos, do terceiro setor e da comunidade quilombola. Dessa forma,

procurou-se valorizar os recursos naturais disponíveis no território, com a proposta

de geração de renda à comunidade. O que se espera desses investimentos é que tais

programas sejam direcionados à sustentabilidade da comunidade.

Associação quilombo Ivaporunduva tem como missão lutar pelos

interesses de direitos sociais, culturais e territoriais, assegurados às

comunidades remanescentes de quilombo através da constituição 96Federal de 1998. Desenvolve, autonomamente, ou com apoio de

parceiros, ações e iniciativas voltadas à manutenção e valorização de

identidade cultural, à conservação ambiental e ao desenvolvimento

sustentável das comunidades do Vale do Ribeira.

(PUPO, 2009, p. 18.)97

97 Paulo Pupo – é uma liderança jovem morador do Quilombo de Ivaporunduva. Ver esse artigo em: PUPO,

PAULO. Comunidade quilombola do Vale do Ribeira. In. Promovendo os direitos de Mulheres, crianças e

jovens de comunidades anfitriãs de turismo do Vale do Ribeira. Alessandra Blengini Mastrocinque;

Martins, Alessandro de Oliveira dos Santos e Vera Paiva São Paulo: Instituto Ing_ de Planejamento

Socioambiental, 2009.

Page 169: Tese Quilombo

168

O Trabalho no Quilombo de Ivaporunduva

Os trabalhos que movimentam a economia de Ivaporunduva, hoje, são: a produção e

comercialização de banana orgânica e convencional (principal atividade econômica na

comunidade, realizada por quase todas as famílias); o artesanato da palha de

bananeira e o Ecoetnoturismo. As duas últimas estão sendo implantadas. Mesmo em

fase de reajustes, essas atividades têm gerado renda às famílias da comunidade. A

agricultura de subsistência (arroz, feijão, mandioca, cará, frutas, verduras etc.), a

partir deste ano de 2010, passa a ser geradora de renda para as famílias que mantêm

esse tipo de agricultura98. O manejo de plantas medicinais, a recuperação do palmito

juçara e a fábrica de processamento de banana são investimentos que estão em

desenvolvimento. A expectativa é de que esses produtos se tornem futuras fontes de

renda para o quilombo Ivaporunduva.

Em relação à agricultura comercial, as famílias trabalham em suas roças pelo regime

de agricultura familiar, especialmente na bananicultura orgânica e na convencional99.

Esses produtos são necessariamente vendidos coletivamente, via associação, gerando

uma interdependência nas relações entre as famílias produtoras de banana, podemos

dizer que, em nome do mesmo interesse: a venda do produto para a geração de renda.

98 As comunidades do Vale do Ribeira, a partir de 2010, passam a comercializar os alimentos produzidos

na agricultura familiar, por meio de sua Associação ou Cooperativa, com Prefeituras dos Municípios da

região do Vale do Ribeira-São Paulo. A partir de políticas públicas e da publicação da Lei Federal n.

11.947/2009, artigo 14, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) transfere os recursos

financeiros às prefeituras dos estados, para alimentação escolar dos alunos da educação básica das

escolas públicas e filantrópicas. As prefeituras, por sua vez, utilizarão 30% do recurso na compra dos

produtos da agricultura familiar das comunidades tradicionais: indígenas e quilombolas, assentamentos

de reforma agrária. Disponível em: <htpp://www.mda.gov.br/portal/saf/programas/alimentacaoescolar>.

Acesso em: 19 ago. 2010.

Page 170: Tese Quilombo

169

No quilombo, o importante é a unidade, a gente trabalha meio que

unido, entendeu? Igual, por exemplo, pra vender a banana, a gente

precisa um do outro, porque a gente não tem uma produção total pra

fornecer. Pra colocar 300 caixas de banana, digamos, pra colocar em

cima do caminhão pra vender em São Paulo nós não temos. Por isso que

eu preciso unir, 100 caixas sua, 100 dela, 100 minha, pra manter,

depois vai revezando. Lá, na realidade a gente não tem muita disputa

pra trabalhar, a gente necessita mais de união do que disputa.

CRISTIANO FURQUIM. 23 anos. Conversa realizada em 24 de abril

de 2010.

A população quilombola, desde seus antepassados, vem produzindo artesanalmente

seus objetos (esteiras, abanadores, pilões, tipitis, peneiras e colheres de pau) para o

uso doméstico diário, e não como decoração. Para isso, utilizam matéria-prima (cipós,

madeira e taquara) extraída da mata. Ainda hoje encontramos esses objetos rústicos

sendo produzidos na comunidade e vendidos para turistas e visitantes. O artesanato

da palha de bananeira, por exemplo, é uma das atividades desenvolvidas para a

geração de renda, realizada predominantemente pelas mulheres artesãs100 (figura 1,

2, 3 e 4).

100 Esse projeto foi realizado por dois anos (2007 e 2008) entre a Associação Quilombo Ivaporunduva,

Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) e ISA.

Figura 1: Palha de Bananeira – Matéria

prima do artesanato

Fonte própria (2010)

Page 171: Tese Quilombo

170

As mulheres quilombolas estão em todos os espaços: na agricultura familiar de

subsistência e comercial; na produção artesanal; como cuidadoras do lar, responsáveis

pela educação dos filhos, pela limpeza da casa e pela criação de galinha caipira e do

porco; no Grupo de Trabalho da pousada, exercendo função de cozinheiras, auxiliares

de cozinha e faxineiras. A liderança feminina é percebida na produção e venda de

artesanato. As mulheres destacam-se predominantemente nos espaços privado e

doméstico associados à assistência do tipo social. Estão presentes, ainda, na

Figura 4: Casa do artesanato

Fonte própria (2010)

Figura 3: Laudessandra – Artesã

Fonte própria (2010)

Figura 2: Dona Cacilda preparando a fibra da bananeira – Artesã

Fonte própria (2010)

Page 172: Tese Quilombo

171

exploração sustentável da natureza, efetuada na mata e na água dos rios, pela caça e

a pesca, desenvolvidas desde seus antepassados para prover o sustento das famílias.

Em 12 de julho de 2009, a assembléia da Associação Quilombo de Ivaporunduva

decide, por voto, pela primeira vez, por uma coordenadora feminina, Maria da Guia,

que passa a exercer o cargo de Coordenadora da Associação, por um período de dois

anos. Ela reconhece e tem acompanhado o percurso das lideranças quilombolas que a

antecederam, inclusive a de seu marido, José Rodrigues.

Em 2005, Maria da Guia disse, em uma entrevista, o que as mulheres quilombolas têm

dito e com o que têm se preocupado: “Queremos formar as crianças dentro dos

nossos costumes, uma educação voltada para o trabalho que fazemos para que, no

futuro, eles possam administrar a comunidade”. (Relato da quilombola Maria da Guia

In: BITTENCOURT, 2005, p. 35).

Em 2009, na nova fase após a eleição, em uma conversa no banco da praça, Maria da

Guia me disse que os homens lutaram muito pela questão da terra, as crianças: elas

cresceram, a comunidade precisa fazer algo para que elas possam valorizar todo o

trabalho que foi feito por eles até agora101.

Existe o trabalho da liderança que está fundamentado nas ações reivindicatórias do

grupo, para que haja fortalecimento econômico, político e social da comunidade, em

diferentes espaços sociais. Esse é um trabalho que visa à formação da população

jovem na comunidade.

101 Conversa realizada em 17 de agosto de 2009, no Quilombo de Ivaporunduva.

Page 173: Tese Quilombo

172

Antigamente, sabe, nós ia pros encontros pra São Paulo, pra outros

estado, ia eu e Zé Rodrigue, e não tinha mais ninguém que fosse, hoje

não, nós temos gente da comunidade pra ir pra qualquer estado e

qualquer país, pra discutir a política pra nóis, então a gente percebeu

que tem bastante gente na comunidade, tanto jovem quanto menina,

que tão preparado pra discutir a política.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Ditão define o que é o trabalho de uma liderança na comunidade:

Nós temos aqui, um pouco mais, um pouco mais de 400, 410 pessoas, e

a liderança a gente não elege, a gente elege coordenação de

comunidade, isso elege. Liderança é aquela pessoa que se destaca. O

que eu entendo como líder. Não sei se vocês entende da mesma forma,

é aquela pessoa que defende o povo, que luta por um ideal, esse é um

líder. Independentemente se ele teve em coordenação da associação,

da cultura, do governo, ou seja, mas em todos os espaços que ele

ocupar ele defende uma causa, quanto pra um, como pra todo. Uma

causa legal, legítima e outra, sem exigir remuneração.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 24 de julho de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

O Ecoetnoturismo é um programa de geração de renda na comunidade, coordenado e

administrado pela associação. O turismo étnico trabalha com grupos específicos:

alunos de escolas públicas e privadas, professores, pesquisadores. Nesse programa,

todo trabalho é desenvolvido pelos próprios quilombolas em funções como: artesanato,

monitoria ou guia turístico, cozinha, limpeza, palestra de boas-vindas, plantação e

colheita dos alimentos oriundos da agricultura familiar etc. Toda renda gerada pelo

programa é fruto do trabalho dos quilombolas.

Paulo Pupo explica que a Associação Quilombo Ivaporunduva espera que com as

atividades de ecoetnoturismo, a comunidade possa alcançar:

Page 174: Tese Quilombo

173

Melhorais da qualidade de vida das famílias quilombolas, através do

aprimoramento e potencialização das atividades econômicas locais;

geração de novos postos de trabalho na comunidade, através da

diversificação das atividades econômicas locais; diminuição do êxodo

da população quilombola, em função do aumento das oportunidades de

trabalho e renda, bem como da autoestima das pessoas da comunidade

e maior autonomia e independência da comunidade na sua relação

como o mercado mais justo, e rentáveis economicamente, para os

produtos das atividades econômicas locais.

(PAULO PUPO, 2009)102

O Ecoetnoturismo realizado pela comunidade tem características específicas de

participação, cooperação e autogestão dos membros da comunidade, e procura

valorizar o modo de vida e a cultura tradicional quilombola, por meio de passeios,

compartilhando e apresentando a história desse povo. Ditão tem assumido que se

trata de uma prática educativa. Ele diz:

O turismo tamém era uma coisa assim estranha pra nóis, buscou

informação, correu atrás, hoje o turismo étnico no quilombo é

realidade. Uma das coisa aqui importante no turismo é essa questão

que a gente tá colocando assim, resumindo um pouco aqui a historia,

né, que é interesse das escolas. Vocês são grupos de educadores, a

gente recebe aqui, além de professores, bastante escolas de São

Paulo. Infelizmente as escolas públicas não tá vindo mais, as

particulares estão saindo na frente, e tão saindo na frente. Eu fiquei

contente quando você que falou (aponta uma das professores) que é

grupo de educador, porque esse é a nossa intenção, nós não temos

mecanismo de divulgação de multiplicação da nossa história, que as

pessoas tanto preto como branco conheça a história desse povo103.

E vocês são multiplicadores disso aí. Vocês vão contribuir de uma

outra forma. Vocês vão se apossar de outra coisa, e eu entendo; como

professor, vocês vão distribuir isso aí. Isso pra nós é importante, é

muito importante mesmo.

BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de

2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

102 Ver em: Mastrocinque, Alessandra Blengini; Martins, Alessandro de Oliveira dos Santos; Paiva, Vera.

Promovendo os direitos de Mulheres, crianças e jovens de comunidades anfitriãs de turismo do Vale

do Ribeira. São Paulo: Instituto Ing_ de Planejamento Socioambiental, 2009.

103 “...que as pessoas tanto preto como branco conheça a história desse povo” compõe parte do titulo

do terceiro texto.

Page 175: Tese Quilombo

174

Ao pontuar, no terceiro texto, que o trabalho com o “ecoetnoturismo ” no quilombo de

Ivapuranduva não fica restrito a uma atividade de geração de renda, entendo esse

trabalho como um processo educativo – uma prática pedagógica. Quando Ditão fala

com os profissionais da área de educação que participaram de uma vivência no

Quilombo Ivaporunduva, assim se expressa: “Eu fiquei contente quando você que falou

(aponta uma das professores) que é grupo de educador, porque esse é a nossa

intenção, nós não temos mecanismo de divulgação, de multiplicação da nossa história,

que as pessoas tanto preto como branco conheça a história desse povo”. Ele mostra

com isso que a proposta dos quilombolas é a de compartilhar sua história com alunos

de escolas públicas e particulares, professores, pesquisadores etc., como uma forma

de trazer a discussão da população negra brasileira e sua formação para o meio

acadêmico, tornar a história da formação da população negra brasileira viva, de modo

a podermos criticar o nosso sistema social, político e econômico.

Figura 6: Ditão. – Caminhada pela Trilha do Ouro

– Quilombo Ivaporunduva

Fonte própria (2010)

Figura 5: Denildo Rodrigues de Moraes – Bico –

Palestra para o Grupo de Professores

Fonte Própria (2010)

Page 176: Tese Quilombo

175

Ficou evidenciada, em minha pesquisa, a relevância do trabalho de interesse coletivo

para a consolidação das relações e laços sociais do povo quilombola, ao longo de

séculos. Esse foi e continua sendo um compromisso assumido individualmente e pelas

famílias do quilombo Ivaporunduva, quando juntam esforços no trabalho cooperativo

da defesa do território, construção das casas, na agricultura, na caça e na pesca. Vale

considerar o que os quilombolas falam sobre o trabalho que realizam. Zica diz:

Figura 7: Olavinho – Caverna do Diabo

Fonte Própria (2010)

Figura 8: Cachoeira do Meu Deus

Fonte Própria (2010)

Page 177: Tese Quilombo

176

Eu vejo um trabalho coletivo, um trabalho é... que possa organizar

todo mundo, pensar junto e desenvolver aquilo que já existe, não

introduzir nada, mas desenvolver o que já existe pra chegar num

ponto final. Hoje, hoje além das roças né, que a gente trabalha na

forma de lavoura, pras famílias pra geração de produtos assim

internos, também tem a questão da banana, que pessoal trabalha

orgânico, que as famílias trabalham. Hoje o desenvolvimento

sustentável aqui está sendo basicamente a banana, que é trabalhado

nas famílias; que todo mundo tem um pouquinho, e aí a associação

entra com a parte burocrática pra conseguir comércio pras

famílias da comunidade, que é pra quem ela defende, que somos

nós também a associação. Então a forma de desenvolvimento ela

traça aí, via associação, ela pega todos, faz com que tudo aquilo que as

pessoas produzam vendam um pouquinho, além de outras fontes

também de venda que tá tendo agora que é de outros produtos além

da banana, que são as hortaliças, leguminosas, tubérculos, né? Que

são coisas que tá tendo outras fontes de venda nas escolas, na

prefeitura, tudo também via uma organização que tem, que a

associação também está tentando trazer isso pra nós aqui, pra

também, além da banana, pegar esses produtos que a comunidade já

produz pra sua sustentabilidade, no caso né [...].

IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança

quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo

de Ivaporunduva.

A fala de Zica chama nossa atenção para pensarmos o trabalho na comunidade como

“coletivo”; que supõe atividade consciente e é organizador da vida social - pensar

junto e desenvolver a partir do que já existe. Pois, assim é que o homem se constitui

cotidianamente no processo de hominização. Zica pontua que “não introduzir nada,

desenvolver o que já existe pra chegar no ponto final”. Ao pensar na relação homem e

natureza, o sentido do trabalho é a sobrevivência, diferentemente de como o trabalho

se apresenta no capitalismo: “pervertido e depauperado, cuja finalidade vem a ser a

produção de mercadoria.” (ANTUNES, 1995, p. 123-124).

Esse sociólogo do trabalho, no livro “Adeus ao trabalho?”, enfatiza que o homem ao

produzir e reproduzir a sua existência a partir do trabalho se constitui como ser

social. Esse processo se desenvolve por meio da cooperação social na produção

Page 178: Tese Quilombo

177

material. Sendo assim, a partir do trabalho é que, cotidianamente, o homem se

constitui como humano e se distingue de todas as formas não humanas.

O trabalho consciente permite ao homem, no contato com a natureza, transformar a

matéria em objeto pensado. Sobre o trabalho, Marx enfatiza que:

Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por

isso, uma condição de existência do homem, independentemente de

todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de

mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida

humana.

(MARX, 1983, p. 50 apud ANTUNES, 1995, p. 123).

A definição dada por Marx nos permite entender “o trabalho como a única lei objetiva

e ultra universal do ser social; ou seja, trata-se também de uma lei histórica, à

medida que nasce simultaneamente com o ser social, mas que permanece ativa apenas

enquanto esse existir.” (LUKACS, 1979, p. 99 apud ANTUNES, 1995, p. 123). Por meio

do trabalho, observa-se a dupla transformação. O homem que trabalha é

transformado pelo seu próprio trabalho; ele atua e domina a natureza, ele subordina,

transforma e exerce o seu poder sobre ela. Por outro lado, os objetos e as forças da

natureza são transformados em objetos de trabalho, em matérias primas etc., como

meio de obter o poder sobre outras coisas, de acordo com a finalidade. (ANTUNES,

1995, p.123).

“Se na formulação marxiana, o trabalho é o ponto de partida do processo de

humanização do ser social”, na sociedade capitalista “o trabalho é degradado e

aviltado. Torna-se estranhamento” 104. O sentido do trabalho seria a realização do

individuo, porém, no capitalismo, ele se reduz à única possibilidade de subsistência do

despossuído; assumindo as palavras de Marx: “a precariedade e perversidade do

trabalho na sociedade capitalista”. Desfigurado, o trabalho torna-se meio e não

104 Antunes (1995, p. 132, nota 14) utiliza a expressão “trabalho estranhado” e não “alienado”. O

estranhamento refere-se à existência de barreiras sociais que se opõem ao desenvolvimento da

personalidade humana.

Page 179: Tese Quilombo

178

“primeira necessidade” de realização humana. (MARX, 1983, p. 147/158 apud

ANTUNES, 1995, p. 123-124).

A comunidade Quilombo Ivaporunduva tem discutido e buscado o conceito mais amplo

de „desenvolvimento‟ para uma „comunidade sustentável‟; passando, evidentemente,

pelas políticas públicas, no sentido de que a comunidade possa alcançar a desejada

qualidade de vida. A sociedade precisa admitir que essa população é constituída, em

especial, “[de] sujeitos sociais organizados, possuidores de um bem fundamental como

a terra, e que hoje lutam para preservar as bases essenciais de sua existência”

(GUSMÃO, 1992, p. 121) o que exige de todos nós um olhar atento, que reconheça “a

não-uniformidade do meio rural e da sua própria questão negra brasileira.” (Ibid, p.

121). A necessidade de organização e inserção nos movimentos mais globais das lutas

sociais, no campo, permitiu à comunidade negra quilombola o apoio de entidades e

partidos, o que foi necessário para que ela pudesse utilizar dos instrumentos de

embates frente ao Estado “que historicamente (lhe) tem sido adverso.” (Ibid, p. 121).

Para José Rodrigues:

Cultura desenvolvimentista quilombola tem que ter investimento, tem

que ter estudo, né; o que a comunidade faz, o que a comunidade tem,

pra melhorar, tentar melhorar aquilo que já tem, respeitando a

cultura e respeitando o sustentável. Nós temos condições de ter toda

estrutura dentro do prano do desenvolvimento sustentável. E um tipo

de políticas pública que estamos discutindo faz tempo, precisamos

mais de apoio nisso. Nós trabalhamos agricultura orgânica, pra fazer

com que isso tenha uma boa produção, melhor qualidade, dentro do

sustentável tem que ter investimento [...]

JOSE RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE. Conversa realizada em 18 de

julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.105

Em uma conversa com a Zica, perguntei como ela pensa o desenvolvimento sustentável

para a comunidade, no que tanto insistem:

105 Ver a entrevista do Zé Rodrigue sobre a discussão das barragens, gravada em 2007. Vídeo da

Audiência pública – Vale do Ribeira. Disponível em:

<http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>. Acesso em: 02 jul. 2010.

Page 180: Tese Quilombo

179

O desenvolvimento sustentável pra mim é isso: trabalhar todo mundo

junto, num querer ultrapassar ninguém em nada, deixar ninguém pra

trás e desenvolver sozinho. Aqui na comunidade, como eu vejo, todo

mundo vê de uma forma, né. Pra aqui em Ivaporunduva, todo mundo

trabalha junto, pensando num só objetivo, melhorar aquilo que a

comunidade tem, pra vender com qualidade, e pra não perder também

a essência nossa, que é cultivo da lavora, o trabalhar na roça também

pra ter a nossas produções pro consumo interno também, que é uma

segurança alimentar que a gente não vai ter em lugar nenhum se

perder isso né, porque as nossas condições, não dá pra disputar,

deixar de plantar na terra o que a gente pode colher e comprar no

mercado, comprar lá fora achando que é melhor que é viável sendo que

pra nós não tem fundamente nenhuma.

[...] Primeiro é pensar na família, na verdade, é pensar na família pra

trabalhar para as famílias. E como quilombo, como comunidade tudo

mundo é família, tudo mundo é sangue de uma forma e de outra, então

você pensa em todo mundo.As pessoas as vezes podem olhar, não

existe união ali ou aqui, mas em quilombo, de uma forma ou de outra

sempre vai existir a união, porque o sangue fala mais alto e as pessoas

na hora de trabalhar, de se unir pra ajudar o irmão, um ajuda o outro

e não fica pensado em quere crescer e deixar o outro pra trás.

IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança

quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo

de Ivaporunduva.

Na comunidade, pensar sustentabilidade está ainda ligado ao desenvolvimento

coletivo, não se descola dos laços da tradição passada. Acompanhei o dia de trabalho

na roça, do jovem Laudines, junto aos seus pais. Ele é filho de Dona Cacilda e Sr.

Aparício. Pedi para ele falar um pouco como era viver em Ivaporunduva, e se dava para

viver de forma sustentável. Ele iniciou dizendo:

Page 181: Tese Quilombo

180

Trabalho aqui mesmo em Ivaporunduva, pra mim mesmo, com minha

mãe e com o meu pai, e eu mesmo pranto. [...] trabalho com meu

palmito, com cultivo da banana, ajudo minha mãe prantá fejão. Sou

universitário, faço meu curso de Gestão de Pequenas e Médias

Empresa. [...] Dá pra vivê, sim, aqui, porque eu memo tô aqui vivendo,

cultivando e vendendo minhas coisas, palmito, mandioca, banana, taiá,

batata, todo tipo de legume e verdura [...]. Viver aqui é sustentável,

sim, porque a gente também coleta o que a gente mesmo pranta, não

precisa trabalhar pros outros pra pegar dinheiro pra se fazer

compra. Então a gente mesmo faz nossa prantação pra não precisar

comprar na cidade, no mercado, que a alimentação vem com veneno,

agrotóxico. Aqui você sabe o que você pranta, a terra é bem adubada.

A gente pranta o que nossa mãe, pai, bisavô ensinou. Dá pra vivê

sossegado.

LAUDINES MARINHO DA SILVA, 23 anos. Conversa realizada 17 de

julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Acompanhar a vida do jovem quilombola, Laudines, levou-me a compreender que existe

uma luta constante na comunidade para manter os jovens na terra. Entendo que a

terra provê o sustento e constitui o homem, pelo trabalho ao transformar a natureza,

e essa é uma atividade consciente. A apropriação de outros conhecimentos tem sido

uma estratégia da comunidade para manter a sua sobrevivência no território. Muito

forte a convicção de que “não precisa trabalhar pros outros pra pegar dinheiro pra se

fazer”. Produzir para a própria comunidade, na própria comunidade. Parece-me ser

assim que os quilombolas conceituam ser “sustentável”. Algo como: é possível que nos

sustentemos em nossa terra. (Eu acrescentaria, “com o que nela podemos produzir”).

Page 182: Tese Quilombo

181

Figura 9: Laudines – Indo ao Trabalho

Fonte própria (julho/2010)

Figura 12: Sr. Aparício – Roçando o Bananal

Fonte própria (julho/2010)

Figura 10: Laudines, com os pais: Sr. Aparício e Dona Cacilda

Trabalho Agricultura Familiar

Fonte própria (julho/2010)

Figura 11: Laudines – Tirando mandioca

Fonte própria (julho/2010)

Figura 13: Laudines

Fonte própria (julho/2010)

Page 183: Tese Quilombo

182

Zica me explica o retorno dos universitários para a comunidade. Eles nomeiam esses

universitários106 como „técnicos‟:

Esses técnicos são pessoas que são nossos, como posso dizer... eles

vão se formar mas pra entender a nossa causa, a nossa luta e voltar

pra ajudar a nós a defender isso. No caso um...um... professor na área

de educação, vai ajudar a defender nossos filhos, nossos irmãos, até

nós mesmo, a partir do aprendizado da educação básica. Por que? pra

quando chegar no ensino médio tá preparado pra prestar o vestibular

e ter igualdade com o outro. Então nós vamos discutir aqui com a

Secretaria de município, de Estado, pra melhorar a qualidade da

educação dos nossos pequenininhos aqui na nossa comunidade. Quando

se pensa em técnico agrônomo, é pra nós tê qualidade na nossa

produção e também eliminar essas pessoas que vêm de fora assim, não

que são negativa pra nós, elas são boas até certo ponto, mas tem um

momento que a gente tem que fazer sozinho. A partir do momento que

tem gente aqui dentro, vamos deixar os nossos fazerem pra nós. Não

precisamos contratar alguém de fora. A gente faz um projeto, o

governo quer investimento em alguma coisa aqui pra desenvolver a

comunidade, contrata pessoas de fora, e se a gente tem eles aqui

dentro, o trabalho é melhor, a gente conhece, a gente convive, e eles

conhecem e convive, e eles conhecem o dia-a-dia, a forma de viver de

cada um, então eles vão respeitar isso, com certeza o trabalho vai ser

melhor. Então os nossos técnicos são os nossos olhos, os nossos

ouvidos pra entender aquilo que a nossa comunidade, em alguns

pontos, não tem estudos e não entende, a nossa boca pra falar porque

sabe nosso sofrimento também, endenteu?. E ajuda a nóis a

desenvolver aquilo que a gente tem, pra nóis correr atrás do mercado

que seja acessível pra nóis também, que esteja dentro da nossa linha

de trabalho, pra desenvolver a comunidade no sentido coletivo. Então

ele, pra nóis, eles significam isso, significam mudança pra comunidade

de forma coletiva [...] eles também são pessoas da nossa comunidade e

tem visão social de trabalhar esse lado pela comunidade,

independente da vida particular deles, já tem isso como consciência,

como forma de luta, pra devolver aquele ensinamento que ele teve na

comunidade.

IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança

quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo

de Ivaporunduva.

O momento é de reorganização social, econômica e política da comunidade, o que

implica em dar continuidade às atividades em processo de geração de renda, pelos

próprios membros da comunidade, inclusive retomando algumas dessas atividades, as

106

Os Jovens Graduados, Pós-graduados e Universitários estão na figura da capa desse texto.

Page 184: Tese Quilombo

183

quais, no final do prazo estipulado perderam o recurso financeiro de iniciativas e

investimentos do terceiro setor ou de empresas públicas e privadas. Termino este

texto trazendo, mais uma vez, a voz de Zica. Quando lhe pergunto se é possível viver

na comunidade e conciliar o modo de vida quilombola de hoje com o das futuras

gerações, escuto:

Eu acho que dá pra viver aqui107 tranquilamente, sem pensar em sair

pra outro lugar, porque... você tem a terra, a terra, ela é fonte de

vida, tudo que você pranta você vai colher. Mas é lógico que tudo tem

um tempo você vai pranta feijão, por exemplo, de final de julho a

novembro, então você vai colher ele nesse período no máximo até

dezembro cê vai colher[...] mas você tem várias outras coisas que você

pode produzir na terra também, além do feijão, arroz, o milho, batata

e mandioca, também pode trocar, aquilo que você tem mais, com

aquela outra qualidade que a outra pessoa e ou até mesmo outra

comunidade tem mais, que funciona muito bem. Basta ter uma linha de

comunicação que isso também funciona. Então, você pranta, você

colhe, você se alimenta, e pra necessidade que você precisa de

dinheiro, que não tem como, precisa comprar um remédio de repente

que você toma seus medicinais no fundo de casa, caseiro não funciona,

precisa comprar um sal, óleo por exemplo, aí entra, essa questão

desse dinheiro extra da banana, que que é um complemento pra

pessoa tentar melhorar a qualidade de vida e viver bem, mais não quer

dizer que precisa mudar a forma de viver, e sim complementar só

aquilo que falta [...] Peixe você pesca artesanalmente, galinha você

cria, porco você cria. Só pensar, põe a cabeça pra pensar e vamos

voltar. Porque nossos antigos viveram assim, eram muito mais

saudáveis do que nóis, não tinha câncer, não tinham tuberculose[...]

IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança

quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo

de Ivaporunduva.

Se no primeiro momento, o da escravização, o trabalho da população negra de

Ivaporunduva foi covardemente aviltado pelo sistema escravista brasileiro, o qual

perdurou, nessa localidade, por aproximadamente 263 anos, numa segunda etapa,

caracterizada pelo isolamento ou abandono, por aproximadamente 168 anos, o

trabalho dessa população teve os seguintes desdobramentos: a) Produção e

reprodução da existência, por meio do trabalho cooperativo, para atender aos

107 “Eu acho que dá pra viver aqui” compõe o titulo do Quarto texto.

Page 185: Tese Quilombo

184

interesses da coletividade e b) Trabalho para produção de excedentes agrícolas, para

troca com mercadorias básicas necessárias à sobrevivência. No segundo momento,

despreparada para o capitalismo, a comunidade quilombola precisou exercitar práticas

de produção de excedentes para troca com outros produtos básicos que não existiam

na comunidade. Sem condições de negociação, tornou-se refém do único comerciante

local.

Numa terceira fase, já caracterizada por uma maior interação com a sociedade de

consumo, a partir dos anos 1960-70, com as limitações da legislação ambiental à

produção agrícola e coleta de palmito, a vida ficou difícil e quase inviável para muitas

pessoas na comunidade. Muitos quilombolas foram para as cidades em busca de vender

sua força de trabalho para construtoras - no caso dos homens -, e para famílias da

classe média, como domésticas ou faxineiras - no caso das mulheres. Eles deixam de

produzir o que é deles, no lugar que é deles. Seria muito forte dizer que estariam em

processo de enfavelamento?

Já no contexto mais contemporâneo, nos últimos 10 anos, a desilusão com cidades

para onde foram e com o sistema capitalista traz de volta muitas pessoas ao quilombo.

Por outro lado, alguns jovens, agora formados em cursos superiores, retornam à

comunidade, ávidos no sentido de trabalhar no território, conciliando os

conhecimentos adquiridos à prática da agricultura, da educação, da administração, à

implantação de um sistema de produção de banana para comércio, em áreas produtivas

individualizadas bem definidas.

Configuram-se modos diferentes de vida na comunidade. Basta que nos lembremos: a

ponte sobre o Rio Ribeira facilitará o transporte de pessoas e viabilizará o

escoamento da produção, mas também vai trazer outro modelo econômico e social. A

chegada da energia elétrica dá à comunidade acesso à tecnologia, mas pode corrompê-

la também. Crescem os dilemas, os conflitos de idéias e a ansiedade diante da

chegada do modelo de sociedade capitalista, baseado no mercado de trabalho e no

mercado de consumo.

Page 186: Tese Quilombo

185

Ficam minhas indagações para os próximos estudos: nesse sistema, as necessidades

materiais básicas estarão mascaradas pelas necessidades manipuladas pelo sistema

capitalista e, consequentemente, a força de trabalho da comunidade voltar-se-á para

formas de conquistar o dinheiro (capital/renda) para a compra ou troca por produtos

ou serviços. E nesse processo, a comunidade estará, enfim, refém, como o estão

milhões de trabalhadores manipulados e inconscientes na sociedade capitalista.

Há uma multiplicidade de fios ideológicos entrelaçados. Contraditoriamente uma

Ponte e muitas pontes. Para onde?

Page 187: Tese Quilombo

186

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, RICARDO. Adeus ao trabalho? 3. ed. São Paulo: Cortez; Campinas,

SP.: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1995.

BITTENCOURT, AnaCris. Ivaporunduva, terra de lideranças e conquistas. In: Meio

Ambiente e Democracia. Revista Democracia. Rio de Janeiro: Editora Ibase, 2005.

BORNIA, Fátima B. B. L. Turismo etnocultural no quilombo Ivaporunduva: uma

contribuição ao planejamento participativo. Centro Universitário SENAC – Campus

Francisco Matarazzo. Trabalho de conclusão de Curso – Pós-Graduação em

Planejamento e Marketing de Destinos e Produtos Turísticos. São Paulo, 2006.

GUSMÃO, Neusa. M. M. Negro e camponês: cultura política e identidade no meio

rural brasileiro. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 6, n. 3, 1992.

ISA - Instituto Sócio Ambiental. Banana Orgânica no quilombo de Ivaporunduva:

uma experiência para o desenvolvimento sustentável. São Paulo, 2007.

1 PUPO, PAULO. Comunidade quilombola do Vale do Ribeira. In. Alessandra Blengini

Mastrocinque; Martins, Alessandro de Oliveira dos Santos e Vera Paiva Promovendo

os direitos de Mulheres, crianças e jovens de comunidades anfitriãs de turismo do

Vale do Ribeira. 1ed. São Paulo: Instituto Ing_ de Planejamento Socioambiental,

2009.

SILVA, Laudessandro Marinho. Proposta de Implantação do Cooperativismo para a

venda de produtos orgânicos no quilombo Ivaporunduva. Trabalho de Conclusão de

Curso em Administração de Empresas. Universidade São Francisco. Itatiba, 2008.

Page 188: Tese Quilombo

187

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[..] a escravidão nem sempre existiu e algumas sociedades

humanas não tiveram escravos. Em suma, a escravidão não foi

universalmente difundida, ao contrário do que diziam alguns

escravagistas. Portanto, não deriva de uma espécie de constante

antropológica, no sentido de que não está automaticamente

ligada à presença do homem.

(PÉTRE-GRENOUILLEAU, 2009, p. 55)

Page 189: Tese Quilombo

188

O presente estudo, em forma de textos, pretendeu caracterizar a vida da

comunidade Quilombo de Ivaporunduva, sua evolução histórica e as suas práticas

sociais, captando e organizando os dados sobre a história e a organização

social/territorial desse quilombo. A tentativa foi de, estando presente na comunidade

e com a comunidade, buscar indícios dos significados que seus membros dão às

relações, em suas condições concretas de vida social. Tais indícios nos aproximam de

ações que essa população desenvolve por meio das lideranças ali estabelecidas.

Ao revisitar a história da formação da população negra no Brasil, parti do princípio de

que não há justificativas para qualquer forma de escravização, e que ela nunca existiu

em algumas sociedades humanas; o que não nos permite considerá-la uma prática

natural e nem universal.

As diversas formas de resistência dos africanos e seus descendentes escravizados no

Brasil mostram que também eles não consideravam a escravização natural, nem

universal. Nesse sentido, os quilombos presentes na sociedade brasileira são prova

viva de que esse povo não se permitiu no passado e seus descendentes continuam não

se permitindo aceitar o sistema escravagista opressor.

Ao se abrirem os portões das senzalas, possibilitando às pessoas negras iniciarem a

corrida por mobilização social junto aos outros grupos, comprovou-se que o grupo

branco já estava a quilômetros adiante, política e economicamente, do grupo negro.

Essa era a condição inicial da população negra liberta.

Toda discussão trazida pelos quilombolas, por meio de seus relatos, mostra o caminho

percorrido por esse povo em direção à superação das desvantagens provocadas pela

desigualdade que os afeta, tanto no sentido socioeconômico quanto no político. Os

relatos também mostram que essa superação ocorre em cada ação individual e coletiva

direcionada à luta política para fazer valer seus direitos constitucionais à: terra,

educação, saúde, moradia, trabalho e a tantos outros aspectos que constituem o

homem.

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Muitos estudiosos e pesquisadores contemporâneos assumem que a superação da

desigualdade social e a diminuição das desvantagens socioeconômica e política

impostas pelo sistema econômico brasileiro, que transitava do sistema escravagista

para o capitalismo, significaria que com a abolição e com o desenvolvimento econômico

previsto ao país, ocorreria a mobilização e status socioeconômico da população

brasileira de todas as cores. Nesse processo, a população negra que estava em

desvantagem total com relação ao grupo branco, transitaria, ascendendo para as

camadas médias. Com o tempo a tendência seria o desaparecimento da estratificação

social, as barreiras e desvantagens que a escravização impôs ao grupo negro.

Prova-se que isso não ocorreu e que as desigualdades raciais, socioeconômicas e

políticas só têm aumentado nos últimos anos para a população negra.

Toda ação, discussão e reivindicação confrontada pelo movimento negro com o poder

público a partir das décadas de 1980-90, foi no sentido de que a sociedade brasileira

reconhecesse o ciclo cumulativo de reprodução das desigualdades raciais entre a

população branca e negra, herdada pelo sistema escravagista. Esse reconhecimento,

com o aumento da pressão política negra e as contribuições das muitas pesquisas

acadêmicas a partir dos estudos sobre a temática racial tomadas por base os dados

PNDA/IBGE, comprovam as reivindicações do movimento negro. E sob pressão

política, esse movimento deu contribuições importantes para a população negra e não

negra como a efetivação de políticas de combate às desigualdades raciais em alguns

setores da sociedade brasileira: educação, saúde, posse de terra, trabalho das

instituições públicas (que têm sido adotadas timidamente pelas organizações

privadas).

Provou-se que a redução dessas desvantagens acumuladas só será possível por meio de

luta política e da efetivação de políticas públicas para a mobilidade socioeconômica da

população negra brasileira.

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As discussões sobre a Reparação Histórica da população negra brasileira,

descendente da população africana que foi escravizada no Brasil, têm vindo à tona por

meio das Políticas de Ações Afirmativas que se justificam como uma solução

emergente para a desmistificação do discurso da falsa democracia racial.

Todo movimento da população negra perpassa, também, pelo reconhecimento da

sociedade brasileira que admite a contribuição histórica da cultura negra que compõe

a nação, além do direito às suas diferentes raízes culturais. Inclui-se, nesse caso, a

história da cultura africana, encarada nos bancos escolares, muitas vezes, de forma

preconceituosa, discriminatória e apolítica, ou seja, a partir da visão da classe

dominante, focada em um sistema de valor.

Observamos que o processo de aquilombamento é histórico e está em transformação

e em movimento, portanto é dialético. Ao revisitar a história da comunidade Quilombo

de Ivaporunduva, um fragmento da população negra brasileira, identificamos que há

um ciclo de desvantagens acumulado durante o processo histórico da formação dessa

população, iniciada no sistema escravagista. É nesse contexto que a comunidade negra

rural agroflorestal Quilombo de Ivaporunduva está inserida.

Parte dos relatos dos quilombolas foi trazida para os textos com o objetivo de se

compreender melhor que o fato de a comunidade Quilombo de Ivaporunduva continuar

a viver no território supõe constantes embates: no passado, no sistema escravagista,

por meio de fugas; em um segundo período, com o poder dos fazendeiros; atualmente

a luta tem sido com o poder público, por direito à posse da terra e contra os grandes

empreendimentos de barragens para a construção de hidrelétricas.

As desvantagens acumuladas pelos quilombolas durante a escravização e o

“esquecimento” dos nossos governantes, pós-abolição, só têm provado que a luta desse

povo por direito e sobrevivência tem sido uma constante contradição nesse sistema,

ou seja, na lógica do capital. Nesse movimento de confrontos e resistências contra o

Estado e seus empreendimentos capitalistas, no sentido de gerar energia para obter

riqueza e lucro, as reivindicações dos quilombolas por saúde, escola, terra,

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transporte, moradia e pelo direito de ir e vir acontecem por meio da participação no

Movimento Nacional Quilombola e de movimentos sociais rurais, ribeirinhos, indígenas,

caiçaras, MST, MOAB, MAB, entidades ambientalistas, entre outras organizações,

com as quais eles estabelecem relações. Tais organizações os apóiam em iniciativas e

propostas de geração de renda e de desenvolvimento político, social e econômico.

Compreendo esses movimentos como processos educativos, e são nessas relações que

a comunidade se constitui como sujeito social de direitos.

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Para que os leitores possam acompanhar alguns dos textos falados sem perder a estrutura da

narrativa, um CD- ROM acompanha a dissertação. Os conteúdos estão sequenciados da

seguinte ordem:

01. Documentário do Quilombo Ivaporunduva – Eldorado – SP. Nesse documentário

utilizamos a fala do Ditão – Benedito Alves, utilizada no texto das paginas: 130 e 132;

02. Explicação do Ditão – Benedito Alves - sobre os modos de vida dos quilombolas na

comunidade Ivaporunduva, durante uma atividade do Ecoetnoturismo para um grupo de

Professores – utilizada no texto da pagina 107;

03. Conversa com a Zica – Ivonete Alves – a fala utilizada no texto está inserida na pagina

119;

04. Conversa com a Zica – Ivonete Alves – foi utilizada fragmento da fala dessa conversa

em vários textos, inseridas nas paginas: 105, 179, 182, 185 e 186;

05. Conversa com Dona Cacilda – a fala utilizada no texto está inserida na pagina 138;

06. Conversa com Zé Rodrigue - a fala utilizada no texto está inserida na pagina 155;

07. Conversa com Zé Rodrigue - a fala utilizada no texto está inserida na pagina 157;

08. Conversa com Zé Rodrigue - a fala utilizada no texto está inserida na pagina 181.