quilombo do alto do tororó: memória e … da marambaia, no estado do rio de janeiro. também...
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Quilombo do Alto do Tororó:
Memória e Permanência de Quilombolas no subúrbio de Salvador1
Autora: Laura Gomes Nascimento. Resumo: A comunidade do Alto do Tororó
encontra-se no recôncavo baiano e é banhada pelas águas da Bahia de Todos os Santos.
Está fixada, mais especificamente no subúrbio ferroviário de Salvador, próximo à Base
Naval de Aratu em São Tomé de Paripe. O grupo quilombola aí residente é constituído
de aproximadamente de 400 famílias que moram em 200 casas, alguns moradores
trabalham informalmente na região metropolitana de Salvador, mas a maioria obtém seu
sustento das atividades de pesca e mariscagem. A questão antropológica da pesquisa
que me proponho a responder se refere às condições particulares que permitiram a
permanência do grupo no Alto do Tororó, tomando como fonte principal de informação
a memória coletiva do grupo.
Palavras-chave: Territorialidade, memória coletiva, processo de territorialização.
Introdução e o conflito com a Marinha do Brasil:
Este trabalho tem como tema central a análise dos processos de produção e
reprodução das territorialidades da coletividade do Alto do Tororó, a qual se encontra
em pleno processo de territorialização, já que, dentre outros fatores, possui processo
aberto junto ao INCRA desde fevereiro de 2011, temos como foco também a relação
entre estes processos, de territorialização e de produção de territorialidades, sendo estes
apreendidos e compreendidos através da memória coletiva do grupo. O grupo se
encontra em situação conflituosa com algumas empresas localizadas nos arredores do
território e organizações, dentre elas, a Marinha do Brasil. A falta de regularização
fundiária é um problema que afeta diretamente a vida dos moradores do Tororó,
sobretudo quanto ao conflito com a Marinha. Tais limitações os têm impedido de
cultivar roçados e em, alguma medida, reduzido a área destinada às atividades de pesca
e mariscagem, fundamental para a reprodução dos modos de vida e sobrevivência do
grupo.
Outras comunidades quilombolas no Brasil enfrentam problemas com as forças
armadas, exemplo disto pode ser dado pela comunidade quilombola localizada na
1 Trabalho apresentado na 28º Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de
julho de 2012 em São Paulo, S.P. Brasil.
Restinga da Marambaia, no Estado do Rio de Janeiro. Também devemos mencionar o
Território de Alcântara2, disputado por uma base de lançamento de foguetes e a
comunidade de Rio dos Macaco, localizada numa região limítrofe entre Salvador e o
município de Simões Filho, e que também se encontra em situação conflituosa com a
Marinha. Desta forma o problema enfrentado pela comunidade do Alto do Tororó se
repete no país.
As três comunidades supracitadas em conflito com a Marinha, Alto do Tororó,
Marambaia e Rio dos Macaco, foram alvos de diferentes formas de expropriações ao
longo de suas histórias de contato com a referida Organização. José Maurício Arruti em
artigo publicado no Caderno de Debates do projeto Nova Cartografia Social apresenta
as estratégias militares de expropriação das famílias quilombolas na comunidade da Ilha
da Marambaia, sendo a principal delas a própria negação do território como quilombola.
O autor apresenta três dispositivos de precarização da vida na comunidade os quais ele
classifica propriamente como estratégias e outras três ações que ele situa no domínio da
tática. Dos dispositivos de precarização identificados por Arruti na Ilha da Marambaia,
pelo menos dois parecem ocorrer no quilombo do Alto do Tororó.
Segundo Arruti a primeira estratégia se refere ao “dispositivo de precarização da
ilha, que incide sobre o direito à moradia” (ARRUTI, 2010 pag. 111). No caso da
Marambaia, os moradores não têm direito a fazer quaisquer reformas em suas casas, a
maioria feita de taipa, e que precisam ser reformadas esporadicamente, ficando os
moradores em situação de extrema precariedade. Assim como na Marambaia, no Alto
do Tororó os limites do território sofreram significativas expropriações sendo “reduzido
ao espaço da habitação” (ARRUTI, 2010 pag. 111), nas palavras da liderança local do
Alto do Tororó: “foram cercados como bois no pasto”. No Alto do Tororó também
ocorre a interdição, por parte da marinha, de reformas de construções em espaços de uso
comum dos moradores, um exemplo é a “escada do fundo” que liga o “alto do porto” ao
“portinho” (ver croqui e fotos abaixo), local onde ficam as canoas dos pescadores e de
onde os moradores saem para pescar e mariscar. Esta interdição, além de ser um
dispositivo de precarização que incide sobre o direto à moradia, também afeta o direito
lesado pelo “segundo dispositivo de precarização” identificado por Arruti, que é o
2 O Laudo Antropológico do território étnico de Alcântara foi elaborado por Alfredo Wagner Berno de
Almeida. Antropólogo. Coordenador do PNSCA (Projeto Nova Cartografia Social)e do NSCA-CESTU-UEA, pesquisador CNPq e Professor Permanente do PPGA (UFBA).
direito à subsistência, já que a escada é a principal via de acesso às atividades de pesca e
mariscagem, prática fundamental para garantia da subsistência do grupo.
“Escada do fundo” que dá acesso ao Portinho e que a Marinha impede que seja
reformada.
Pescadores do Alto do Tororó no Portinho (localidade onde permanecem as canoas).
Desta forma, a segunda estratégia identificada por Arruti e que também se aplica
a comunidade do Alto do Tororó é o “dispositivo de precarização que incide sobre o
direito à subsistência”. No Alto do Tororó, como na Ilha da Marambaia, áreas antes
destinadas ao plantio de árvores frutíferas foram cercadas e expropriadas
arbitrariamente pela marinha do Brasil assim como também foram impedidos de
cultivar roçados, prática tradicional e fundamental para a complementação da
capacidade de subsistência dos grupos e reprodução do modo de vida dos mesmos.
Apresento na seqüência o perfil geral da comunidade e algumas de suas
características organizacionais. As informações têm como fonte principal o trabalho
preliminar de observação participante e uma entrevista feita com uma liderança política
e comunitária local no dia 12 de março de 2012.
Perfil geral e características organizacionais da comunidade do Alto do Tororó:
A comunidade do Alto do Tororó, certificada pela Fundação Cultural Palmares
como quilombola em 27 de setembro de 2010, situa-se em Salvador e encontra-se no
Recôncavo Baiano sendo banhada pelas águas da Baía de Todos os Santos. Está
localizada, mais especificamente, no subúrbio ferroviário, próximo a Base Naval de
Aratu, em São Tomé de Paripe. A comunidade é composta de 126 famílias, que somam
um total de 426 habitantes. O número de homens e mulheres é proporcionalmente
equilibrado. Sendo que na comunidade existem mais crianças e jovens de até 25 anos do
que adultos e idosos [censo realizado pela liderança comunitária em 19 de novembro de
2011].
O principal tipo de moradia é de bloco de cimento. Até aproximadamente
quarenta anos atrás as casas eram de taipa as quais foram, aos poucos, sendo
substituídas por casas de bloco. Ainda hoje existe na comunidade uma última casa de
taipa que já está parcialmente demolida (foto abaixo). A maioria das casas possui rede
geral de esgoto sanitário instalado pela prefeitura, entretanto a rede de esgoto é
deficiente, já que não se estende a todas as casas. As casas do “alto do porto”, por
exemplo, não possuem esgoto, que é despejado no mato por um tubo. A coleta de lixo
na comunidade existe a cinco anos, na freqüência de duas vezes por semana. Nos dias
em que não há coleta de lixo, o mesmo é depositado em um container, localizado bem
na entrada da comunidade. Antes disso, o lixo era queimado no mato dos quintais de
cada casa.
Última casa de taipa
Os principais problemas de saúde que afetam a comunidade são dengue,
leptospirose (pelo menos três pessoas morreram da doença) e hepatite (houve dois
casos). Antigamente, quando as casas eram de taipa houve muitos casos da doença de
chagas na coletividade do Tororó já que o barbeiro transmissor se esconde
freqüentemente em casas deste material. O posto de saúde utilizado pelos moradores do
Tororó encontra-se na localidade “dos ponte”3. Existem agentes de saúde que atuam na
comunidade semanalmente, eles vão às casas, marcam consultas e medem pressão. O
hospital que atende a comunidade é o Hospital do Subúrbio.
Dentro da comunidade existe uma escolinha de alfabetização para crianças de
até cinco anos de idade que funciona na casa onde é a sede da Associação Comunitária
do Alto do Tororó (ACAT). As aulas acontecem na parte da manhã, mas atualmente os
moradores estão decidindo quem será a professora, pois alguns pais não estão satisfeitos
com a atual que é oriunda da localidade do “corredor” 4. Outro problema enfrentado, é
que as paredes da sede estão rachadas correndo inclusive o risco de desabamento. Os
jovens da comunidade estudam em duas escolas principais: Escola Estadual Marcílio
Dias que é na localidade “dos ponte” e na escola estadual João Caribé. Ambas são
escolas que atendem também à ilha de Maré e são de ensino fundamental e médio. A
líder política e comunitária considera o ensino destas escolas muito ruim e a prefeitura
não fornece transporte escolar.
As principais organizações atuantes na comunidade são a CPP (Comissão
Pastoral da Pesca) que representou um papel importante para obtenção da certidão
emitida pela Fundação Palmares. Três ONGs atuam na comunidade: Estive Biko, Casa
de Taipa e Espaço Quilombo, sendo que as três organizações trabalham em conjunto.
Através da ONG Casa de Taipa a comunidade teve acesso ao “Programa Vida Melhor”,
do governo da Bahia, onde conseguiram embarcações a motor com material de
segurança incluindo coletes salva-vida, bóias e extintores. Ao todo foram entregues três
embarcações com redes e equipamentos de segurança para as marisqueiras e oito
embarcações de barco a motor para os pescadores, também com redes e equipamentos
de segurança. Apesar de todo este material, a maior parte não atende às necessidades
dos pescadores e marisqueiras do Tororó: as redes e os motores vieram incorretos. A
comunidade pediu mil metros de redes de camarão, mil metros de rede de tainheira e
3 Assim como o Alto do Tororó, “os ponte” é uma localidade pertencente ao bairro de São Tomé de Paripe, com o diferencial de estar situada na praia. 4 Outra localidade do bairro São Tomé de Paripe situada próxima à ladeira que vai para a igreja de São Tomé de Paripe.
mil e duzentos metros de rede de bagueira, contudo, foi entregue apenas um tipo de rede
que, segundo os pescadores: “só serve para criança pescar na beira da praia”, os motores
entregues também são inadequados. Através do “Programa Vida Melhor” as
marisqueiras do Tororó planejam organizar uma cooperativa. As mulheres vão receber
uma cozinha comunitária toda montada, aonde produzirão quentinhas e outros produtos
alimentícios para venda. Em relação às políticas públicas a comunidade é atendida pelo
programa “Bolsa Família”, e recentemente pelo referido “Programa Vida Melhor”. O
território do Alto do Tororó também se encontra, como foi dito, em processo de
regularização fundiária, com processo aberto junto ao INCRA desde fevereiro de 2011.
No que se refere às suas próprias organizações a comunidade dispõe, no momento,
apenas da ACAT – Associação Comunitária do Alto do Tororó. Existem também planos
futuros para fundação da Associação de Pescadoras e Pescadores Quilombolas.
Nas atividades produtivas existe uma divisão de trabalho por gênero, enquanto
os homens parecem permanecer a maior parte do tempo dentro da comunidade,
praticando atividades relacionadas à pesca, e desenvolvendo trabalhos na construção
civil como a realização de constantes reformas e ampliações em suas próprias casas, ou
em outras casas da comunidade, muitas mulheres vão trabalhar fora do território do
Tororó, na maioria das vezes, em casas de família dos funcionários da Base Naval de
Aratu. Ocasionalmente, os homens também são contratados por empresas para
trabalharem em reformas de navios, sendo este um trabalho temporário.
Muitos trabalham informalmente na região metropolitana de Salvador em hotéis,
lanchonetes e lojas de calçados e roupas, enquanto uma pequena minoria trabalha de
carteira assinada, por exemplo, na MDias Branco5. Em torno de 40 moradores da
comunidade trabalham na M.Dias Branco, nas funções de limpeza e empacotamento.
Segundo uma liderança local só uma pessoa trabalha como chefe de turma. Alguns
moradores trabalham como ambulantes na praia vendendo produtos alimentícios como
caldo de sururu, peixe frito, carne do sol, acarajé e cerveja.
Antigamente na comunidade havia artesanato de balaios que era realizado pelos
homens, atualmente as mulheres trabalham artesanalmente com rala-côco, que é a casca
de um marisco. Outro produto artesanal é o azeite de dendê, ele é ainda produzido por
5 Empresa instalada próxima à comunidade há, aproximadamente, treze anos e que trouxe muitos
problemas para os moradores, principalmente devido ao grande impacto ambiental causado por sua
instalação e permanência próxima ao território do Alto do Tororó. Como veremos, a instalação da MDias
Branco, conhecida na comunidade como “Moinho” está relacionada aos muitos processos sociais vividos
pela coletividade.
algumas mulheres da comunidade, como uma prática tradicional que perdura até os dias
atuais também devido à abundância de pés de dendê existentes na parte do território
apropriado pela Marinha. Para complementar a renda muitas mulheres também
produzem licores de jenipapo, cajá, acerola e caju, os quais vendem transportados por
carrinhos de mão nas casas e na praia. Algumas frutas como jaca, manga e açaí também
são coletadas para vender nos arredores do quilombo do Tororó. As mulheres, neste
momento, também estão empenhadas no projeto de iniciar a fabricação de diferentes
produtos alimentícios para venda através da cooperativa que estão organizando e da
cozinha comunitária que receberão do “Programa Vida Melhor”.
Resumindo, nas palavras de Fátima: “quando pinta um emprego de carteira
assinada o pessoal vai trabalhar, ou no inverno quando o pessoal sofre muito pra
trabalhar devido ao frio. Quando se desemprega, volta pra maré, é igual uma onda, vai e
vem, então quando perde o trabalho, volta pro mar. Ninguém nunca deixa de vez o
mar6”.
As crianças participam das atividades produtivas mariscando, vendendo frutas e
ocasionalmente caçando guiamum7 para vender, entretanto, é muito pouco o que se
ganha no total com as atividades produtivas, muitas vezes não sendo suficiente para o
sustento de todas as famílias.
Informações preliminares sobre o histórico de ocupação do território baseado na
memória coletiva construída pelos moradores:
Até o momento, entrevistas exploratórias que realizei com pessoas mais idosas
da comunidade permitiram identificar que algumas famílias vieram, ao longo das
décadas de 40/50, para o Alto do Tororó com a intenção de trabalhar nas fazendas que o
grupo interpreta como pertencentes a Oscar Magalhães e Benjamim de Souza. Segundo
narrativas locais, o terreno onde hoje se localiza a comunidade pertenceria ao fazendeiro
Benjamim de Souza. Além desta área, também fazia parte do território do grupo a
localidade conhecida como praia de Inema, onde hoje se encontra instalada a Base
Naval de Aratu. Esta área, onde também existia uma fazenda, pertenceria a Oscar
Magalhães.
6 Fátima, liderança local, em entrevista cedida no dia 12 de março de 2012. 7 Caranguejo de grande porte também conhecido como caranguejo-da-terra.
Conforme contam os mais velhos8, depois que Benjamim de Souza morreu, uma
mulher chamada Izolina assumiu a administração do terreno e passou a cobrar uma taxa
de trinta réis por mês, por cada casa, que nesta época, eram de taipa. Com sua morte,
foi-lhes informado que o terreno era do Estado e que os moradores não precisariam mais
pagar a taxa.
As informações obtidas entre os quilombolas permitiram identificar que havia no
passado do grupo também uma divisão de trabalho por gênero. A grande maioria das
mulheres trabalhava como lavadeiras de roupas para pessoas que viviam em Paripe 9,
tais mulheres buscavam e levavam as roupas, na maioria das vezes a pé, pois não havia
transporte e nem estradas. As roupas eram lavadas nas fontes de água existentes dentro
do território do Alto do Tororó.
Cada uma dessas fontes, meio de sustento para toda a família, recebeu um nome
dado pela coletividade local, pelo qual são conhecidas até hoje, prática que caracteriza
tanto uma forma específica de apropriação do espaço quanto a existência de formas de
sociabilidade próprias entre as mulheres que usufruíam do local. As fontes mais
conhecidas eram: “fonte do Mariango”, “fonte do Quebra”, “fonte do Dendê” e “fonte
da Mangueira”. Na “fonte do Quebra” contam que haviam muitas pedras, havendo
risco de se escorregar e quebrar o pé, a “fonte do Dendê” recebeu este nome pois havia
ao lado da fonte um grande palmeira de dendê e a “fonte da Mangueira”, porque havia
um pé de manga.
O uso comum destas fontes, dentre outros elementos, caracteriza o grupo como
um grupo étnico no sentido organizacional como veremos adiante no marco teórico.
Segundo Alfredo Wagner de Almeida as “terras de preto” são uma variante das “terras
de uso comum” e são organizadas segundo normas específicas em que há um consenso
coletivo da forma de utilização dos recursos naturais disponíveis (ALMEIDA, 2008).
A grande maioria das mulheres também praticava a mariscagem, prática que
perdura até os dias atuais. Capturavam grande variedade de mariscos como sururu,
ostra, sapiro, rala-côco, camarão, tapu, piguari e lambreta. Atualmente a mariscagem
ainda é uma atividade bastante praticada, entretanto devido aos impactos ambientais de
grandes empreendimentos industriais que circundam o território, a quantidade e a
8 Na faixa etária de 70 a 90 anos. 9Depois das facilidades de transporte proporcionadas pela rede ferroviária, a comarca de Paripe, que antes era um julgado, deixou de existir e o local passou a pertencer ao subúrbio de salvador.
qualidade dos mariscos e peixes reduziram drasticamente, o que dificulta ainda mais a
reprodução dos modos de vida da coletividade do Tororó.
As primeiras entrevistas também permitiram identificar que os parentes
ascendentes de algumas matriarcas do Tororó: Dona Tomázia, Dona Zinha, Dona Maria
das Candeias e dona Gustinha têm em comum a mesma região de origem, a saber, o
município de Candeias.
No município de Candeias10
se localizavam, dentre outras localidades, as terras
conhecidas como Matoim e Cabôto (de onde vieram os parentes ascendentes,
respectivamente, de Dona Zinha e Dona Maria das Candeias). Este dado nos permite
preliminarmente supor que os ancestrais de algumas famílias do Alto do Tororó seriam
oriundos deste local. Esta suposição aponta para a necessidade de identificação do
processo de como se deu a “ampliação” da comunidade, ou seja, como e porque os que
chegaram posteriormente se inseriram na comunidade, assim como identificar e
diferenciar as famílias mais antigas das mais recentes e suas relações de parentesco.
Como iniciou o processo de territorialização no Alto do Tororó
A conjuntura dos fatos que marcou o tiro de partida do processo de
territorialização da comunidade do Tororó pode ser representada como o próprio mito
fundador da comunidade sob a identificação de grupo quilombola. Neste sentido,
apropriando-nos de uma idéia de Arruti, o mito de origem da comunidade seria um
conjunto articulado de eventos catalisadores de significados em que a cronologia
perderia o sentido. Assim como em muitas outras coletividades tradicionais, no Tororó
a identidade quilombola foi acionada em um momento de déficit de direitos causado por
uma combinação de eventos ocorridos concomitantemente que funcionaram como
catalisadores do processo de territorialização.
A instalação da Base Naval de Aratu, em 1970, foi um marco no histórico da
comunidade do Tororó, tendo sido responsável pelo desencadeamento de vários
processos relacionados a questões que abrangem quase que a totalidade das esferas
simbólicas e materiais do grupo como relações de trabalho, territorialidade, parentesco,
10 O município marcou o florescimento da economia açucareira no recôncavo.
relações com a natureza e mobilização política do grupo. A profundidade do impacto
causado foi significativa porque além do que representou a instalação da própria base, a
marinha ainda concedeu “Cessão de Uso” de várias áreas que tradicionalmente compõe
a territorialidade do grupo para exploração das grandes empresas. Um exemplo dessas
localidades é a “ponta do Fernandinho” onde os moradores sempre pescaram e
mariscaram, porém foram impedidos, após a instalação da empresa no local de
realizarem tais atividades, fundamentais para reprodução dos modos de vida do grupo, o
local, curiosamente, foi denominado pela empresa MFX do Brasil - Equipamentos de
Petróleo LTDA (Equipetrol) e pela Base Naval de Aratu como “ponta do criminoso”.
Registrei algumas considerações sobre a relação conflituosa da comunidade do
Tororó com a Marinha do Brasil em tópico específico. Por ora faço referência a apenas
uma parte do desdobramento dessa relação, ocorrido no final da década de 70, quando
um projeto de grande impacto ameaça a retirada dos moradores do território do Alto do
Tororó. Com a construção irresponsável da estrada que liga a Base Naval de Aratu (BA
528) ao estaleiro da Equipetrol, em que, segundo Salvador, antigo morador local e neto
de personagem marcante na história de São Tomé de Paripe, “não foram construídas
alvenarias no talude para evitar o deslizamento de terra”. Com a trepidação de veículos
pesados, já que constantemente transitavam tratores e máquinas na pista, a terra
começou a deslizar, pois como informa Salvador, “o solo é composto de massapé e com
qualquer infiltração de água no solo, surge a possibilidade de ocorrência de
escorregamento de terra”.
Após sucessivos episódios de escorregamento de terra a Prefeitura de Salvador
moveu uma ação que pretendia transferir os moradores do Alto do Tororó para o bairro
“Nova Constituinte”, bairro do subúrbio próximo à Peri-peri. Para Salvador esta foi uma
estratégia dos poderes públicos, articulados com a marinha, para remover os moradores
do território. Mediante alegação da Prefeitura de Salvador de que a comunidade iria
desmoronar, alguns moradores deixaram a comunidade indo morar no bairro Nova
Constituinte, segundo Salvador muitos se arrependeram posteriormente, mas não
puderam retornar pois já não havia mais espaço. Neste contexto de ameaça de remoção
do território, Salvador convidou a Comissão de Justiça e Paz da Pastoral da Pesca que
começou a realizar reuniões semanais com a comunidade, em que as participantes mais
assíduas eram as mulheres do Tororó. A partir desta mobilização foi possível sustar a
remoção. Salvador revela que a partir deste ocorrido os moradores perceberam a
importância e a necessidade da fundação de uma organização que atendesse às
demandas e os interesses da comunidade.
Conjugado ao que foi descrito acima, outra iniciativa, que desta vez teve como
motivação a busca por capital simbólico cultural e artístico, também gerou frutos para a
organização comunitária do Tororó. Há muitos anos um membro da comunidade,
Ariomar, alimentou o sonho de fundar uma biblioteca comunitária na comunidade, em
2001 ele externalizou esta idéia e juntamente com Salvador, começaram a buscar
formas de tornar este sonho real. Foi quando conheceram um casal de belgas que já
haviam fundado quatro bibliotecas na região do subúrbio através de uma ONG chamada
“Espaço Sofia”, eles informaram que seria necessário que eles fundassem uma
associação comunitária de moradores. Foi quando fundaram a ACAT (Associação
Comunitária do Alto do Tororó). Nesta mesma época Salvador, que afirma já ter
consciência da condição de mocambo da comunidade, teve acesso a informações sobre
outros grupos sociais que reivindicavam o reconhecimento como quilombolas como a
Família Silva do Rio Grande do Sul. Simultaneamente Salvador teve contato com
lideranças de moradores das comunidades quilombolas de “Bananeiras”, localizada na
Ilha de Maré, e de Praia Grande, os quais, segundo ele, “já tinham consciência de sua
condição de remanescentes de quilombo”, ou seja, da possibilidade de acionamento
desta identidade.
Diante da possibilidade e necessidade de reivindicarem o auto-reconhecimento e
a garantia de seus direitos, somado ao sonho da construção da biblioteca comunitária, a
comunidade, sob a liderança de Ariomar e Salvador, se mobilizou e buscou contato com
a Assistente Social da Pastoral da Pesca, Maria José que, segundo Salvador tinha
referências sobre a Fundação Cultural Palmares, pois estabelecia relação de amizade
com a assessora da superintendente da referida Organização. Desta forma eles teriam
obtido a certidão em menor tempo que o demandando pelo procedimento habitual,
tendo sido a comunidade auto-reconhecida como Comunidade Quilombola em 27 de
dezembro de 2010. A partir disso solicitaram a abertura de processo junto ao INCRA
em 27 de fevereiro de 2011.
Esta combinação de fatos, o sonho de fundação da biblioteca comunitária em um
momento de déficit de direitos funcionou como catalisador para o acionamento da
identidade quilombola, podendo ser representado como o mito fundador da comunidade
enquanto sujeito de direito frente aos poderes locais em que, como observa Arruti, o
quilombo aparece como uma gramática moral, ou seja, como a possibilidade de se falar
no plural para estas pessoas (ARRUTI, 2001).
Referencial Teórico
A perspectiva teórica de definição de grupo quilombola utilizada neste trabalho
se baseia na caracterização proposta por Alfredo Wagner, e aceita pela corrente
antropológica mais recente, e que inclusive “têm sustentado a interpretação dominante
da expressão constitucional remanescente de quilombo” (Fábio Reis, 2010), das terras
de quilombos como uma categoria similar às “terras de preto”, sendo esta uma versão
das “terras de uso comum”. Nesta perspectiva os grupos fazem uso dos recursos
naturais disponíveis através de normas específicas de apropriação dos recursos que se
situam além do “direito oficial” instituído pelo Estado. É um direito, para usar um
conceito de Weber, extra-estatal (WEBER, 2002). Neste sentido, como veremos
adiante, o grupo étnico é compreendido como um tipo organizacional que se apropria do
território de uma forma coletiva.
Nos anos 80 se deu a “virada teórica dos estudos sobre etnicidade, inaugurada
com a crítica feita por Frederick Barth (1976) ao conceito estático de cultura” (LEITE
2000, p. 340). É nesta época que se começa a pensar na “territorialização étnica”, ainda
pouco trabalhada no contexto da “formação social brasileira” (LEITE, 2000). Barth
(1998) entende os grupos étnicos, primeiramente, como tipos de organização social,
deste modo, a característica fundamental que define um grupo étnico é a auto-atribuição
ou a atribuição por outros a uma categoria étnica: “na medida em que os atores usam
identidades étnicas para categorizar a si mesmos e outros, com objetivos de interação,
eles formam grupos étnicos nesse sentido organizacional” (BARTH, 1998:194).
A teoria de Barth produziu grande impacto positivo nas discussões acerca do
conceito de quilombo, o que abriu caminho para uma interpretação mais adequada do
termo do ponto de vista antropológico, pois são os atores sociais e sujeitos do direito,
por vivenciarem a reprodução dos modos de vida e as dinâmicas internas dos grupos, os
mais indicados para se autodenominarem remanescentes de quilombos. Foi realizado
um esforço interpretativo, por parte de antropólogos, militantes e nativos, que
possibilitou a chamada “ressemantização do termo quilombo”. O ponto de partida para
essa nova conceituação do termo está na aplicação da concepção hoje vigente de grupo
étnico, à luz das idéias de Barth, ou seja, que tomemos como ponto central o caráter
político-organizativo do quilombo, que tem como finalidade essencial a garantia da terra
e a afirmação de uma identidade própria.
A ressemantização do conceito de quilombo está completamente imbricada com
os processos de territorialização, reprodução e produção de territorialidades, os quais ao
produzirem efeitos reflexivos entre si produzem e transformam a própria territorialidade
das coletividades ao acionarem a categoria quilombola como forma de reivindicação de
seus direitos e a busca pela cidadania plena.
O processo de territorialização é um processo estranho e exterior ao grupo, assim
como os próprios conceitos de quilombo, e de território, que são categorias situadas no
âmbito da academia e das instâncias jurídicas e não no universo ou no cotidiano nativo.
O processo de territorialização se dá através da ação do Estado sobre estes grupos como
forma de execução das políticas públicas determinadas na letra da lei. Ao acionarem a
identidade quilombola como forma de acesso a políticas públicas e democratização dos
direitos, os quilombolas são coagidos a internalizarem e traduzirem estas categorias para
eles mesmos, coletivamente, o que gera efeitos específicos para toda a coletividade,
tanto no sentido interacional quanto estrutural. A adesão a tais categorias requer que
sejam pensadas, repensadas e discutidas coletivamente seus significados e implicações,
o que altera e transforma as relações já existentes dentro do próprio grupo, por exemplo,
entre as lideranças comunitárias ou políticas e os demais componentes do grupo, entre
homens e mulheres, jovens e idosos e todas as outras dimensões e clivagens do grupo.
Um dos principais efeitos da ação do Estado sobre a territorialidade do grupo é a
exigência da definição de um território fixo e congelado, caracterizado por todos os
“ins” que definem um território quilombola no sentido legal, ou seja, um território
inalienável, imprescritível, indiviso, impenhorável e coletivo. Tais determinações
impostas operam transformações nas relações do grupo, tanto com o próprio território,
incluindo os recursos naturais disponíveis e suas localidades, quanto nas relações
internas dos atores sociais que compõe o grupo, assim como nas relações que ocorrem
entre os demais atores externos que interagem com o grupo. O que anteriormente a tal
imposição operava de acordo com uma lógica, específica e local, de uso e permanência
no território, é transformado em nova relação ainda específica ao grupo, porém diferente
da anterior, mas que conserva a forma com que as coisas se transformam, o que para
Sahlins (1997) é denominado “tradição”. Conforme destaca Paul Little, “Aqui o
conceito de tradicional (de comunidade tradicional) tem mais afinidades com o uso
recente dado por Sahlins (1997) quando mostra que as tradições culturais se mantêm e
se atualizam mediante uma dinâmica de constante transformação”. (LITTLE, 2002:23).
Desta forma o processo de territorialização é um processo que ocorre de “fora
para dentro”, ou seja, por determinação da relação com a esfera Estatal. Sendo uma via
de mão dupla, impulsionados por este processo, ocorrem também os efeitos provocados
pelo grupo sobre o território, sobre o próprio processo de territorialização e sobre a
própria territorialidade do grupo. Segundo Almeida (2006), “o processo de
territorialização é resultante de uma conjunção de fatores, que envolvem a capacidade
mobilizatória, em torno de uma política de identidade, e certo jogo de forças em que os
agentes sociais, através de suas expressões organizadas, travam lutas e reivindicam
direitos face ao Estado”. (ALMEIDA, 2006: 88).
Contudo é importante não confundirmos processo de territorialização com
territorialidade, enquanto o primeiro, conforme exposto, tem um caráter mais
institucional que se dá de fora para dentro, o segundo, que é o que tenho como ponto
principal e recebe maior ênfase neste trabalho, não sendo possível, contudo, realizar
uma análise desvinculada do primeiro processo, é a perspectiva interna, o que temos de
“mais nativo” na relação entre os moradores e o território ocupado por eles, é o que está
construído na memória coletiva do grupo, pois como nos elucida Halbwachs (1950), o
pensamento coletivo não considera as leis, abstrações feitas das condições locais onde
elas se aplicam, ele se prende anteriormente a estas condições. A territorialidade
apresenta-se nas relações existentes que independem de qualquer contato ou
determinação das instancias estatais ou jurídicas, mas que evidentemente não são
impermeáveis aos efeitos do processo de territorialização, sofrendo importantes
impactos e transformações.
Referências
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. “Terras de quilombo, terras indígenas
“babaçuais livres”, “castanhais do povo” faxinais e fundos de pasto: terras
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