que quer dizer tudo isto - capítulo 2

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QUE QUER DIZER TUDO ISTO? UMA INICIAÇÃO À FILOSOFIA - Thomas Nagel Capítulo 2 - COMO SABEMOS SEJA O QUE FOR? Se pensares nisso, verás que o interior da tua própria mente é a única coisa de que podes estar certo. Seja o que for em que acredites - quer seja sobre o Sol,a Lua e as estrelas, a casa e o bairro em que vives, a história, a ciência, as outras pessoas, até mesmo a existência do teu próprio corpo - , é baseado nas tuas experiências e pensamentos, sentimentos e impressões dos sentidos. É só a isso que tens acesso directo, quer vejas o livro nas tuas mãos, sintas o chão debaixo dos teus pés, ou te lembres de que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal, ou que a água é H2O. Tudo o mais está mais afastado de ti do que as tuas experiências e pensamentos internos e é só através destes que te alcança. Normalmente não tens dúvidas sobre a existência do chão debaixo dos teus pés, ou da árvore que está lá fora, ou dos teus próprios dentes. De facto, a maior parte do tempo nem sequer pensas nos estados mentais que te tornam consciente dessas coisas: parece que tens consciência directa delas. Mas como sabes que elas existem realmente? Se tentares argumentar que tem de existir um mundo físico exterior porque não verias prédios, pessoas, ou estrelas, a menos que existissem coisas lá fora que reflectissem ou lançassem luz para os teus olhos, causando assim as tuas experiências visuais, a resposta é óbvia: como sabes isso? Trata-se apenas de outra afirmação acerca do mundo exterior e da tua relação com ele, que tem de ser baseada nos dados dos teus sentidos. Mas só podes confiar nesses dados especificos acerca de como as experiências visuais são causadas se íá puderes confiar em geral nos conteúdos da tua mente como fonte de informação acerca do mundo exterior. E isso é exactamente o que está a ser questionado . Se tentas provar a credibilidade das tuas impressões apelando para as tuas impressões, estás a argumentar de forma circular e não chegas a lado algum. Será que as coisas te pareceriam diferentes se de facto tudo existisse apenas na tua mente - se tudo o que tomas como o mundo real exterior fosse apenas um sonho gigante, ou uma alucinação, do qual nunca vais acordar? Se assim fosse, então é claro que não poderias acordar, tal como acontece quando sonhas, porque não existiria qualquer mundo <<real>> no qual pudesses acordar. Portanto, não seria exactamente como um sonho normal ou uma alucinação. Usualmente, pensamos que os sonhos têm lugar em mentes de pessoas que estão de facto deitadas numa cama real numa casa real, mesmo que no sonho estejam a fugir de uma máquina

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Segundo capítulo da obra "Que quer dizer tudo isto" do autor Thomas Nagel.

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Page 1: Que quer dizer tudo isto - Capítulo 2

QUE QUER DIZER TUDO ISTO? UMA INICIAÇÃO À FILOSOFIA - Thomas Nagel

Capítulo 2 - COMO SABEMOS SEJA O QUE FOR?

Se pensares nisso, verás que o interior da tua própria mente é a única coisa de que podes estar certo.Seja o que for em que acredites - quer seja sobre o Sol,a Lua e as estrelas, a casa e o bairro em que

vives, a história, a ciência, as outras pessoas, até mesmo a existência do teu próprio corpo - , é baseado nas tuas experiências e pensamentos, sentimentos e impressões dos sentidos. É só a isso que tens acesso directo, quer vejas o livro nas tuas mãos, sintas o chão debaixo dos teus pés, ou te lembres de que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal, ou que a água é H2O. Tudo o mais está mais afastado de ti do que as tuas experiências e pensamentos internos e é só através destes que te alcança.

Normalmente não tens dúvidas sobre a existência do chão debaixo dos teus pés, ou da árvore que está lá fora, ou dos teus próprios dentes. De facto, a maior parte do tempo nem sequer pensas nos estados mentais que te tornam consciente dessas coisas: parece que tens consciência directa delas. Mas como sabes que elas existem realmente?

Se tentares argumentar que tem de existir um mundo físico exterior porque não verias prédios, pessoas, ou estrelas, a menos que existissem coisas lá fora que reflectissem ou lançassem luz para os teus olhos, causando assim as tuas experiências visuais, a resposta é óbvia: como sabes isso? Trata-se apenas de outra afirmação acerca do mundo exterior e da tua relação com ele, que tem de ser baseada nos dados dos teus sentidos. Mas só podes confiar nesses dados especificos acerca de como as experiências visuais são causadas se íá puderes confiar em geral nos conteúdos da tua mente como fonte de informação acerca do mundo exterior. E isso é exactamente o que está a ser questionado. Se tentas provar a credibilidade das tuas impressões apelando para as tuas impressões, estás a argumentar de forma circular e não chegas a lado algum.

Será que as coisas te pareceriam diferentes se de facto tudo existisse apenas na tua mente - se tudo o que tomas como o mundo real exterior fosse apenas um sonho gigante, ou uma alucinação, do qual nunca vais acordar? Se assim fosse, então é claro que não poderias acordar, tal como acontece quando sonhas, porque não existiria qualquer mundo <<real>> no qual pudesses acordar. Portanto, não seria exactamente como um sonho normal ou uma alucinação. Usualmente, pensamos que os sonhos têm lugar em mentes de pessoas que estão de facto deitadas numa cama real numa casa real, mesmo que no sonho estejam a fugir de uma máquina de aparar relva homicida pelas ruas de Sobral de Montagraço. Admitimos igualmente que os sonhos normais dependem do que está a acontecer no cérebro do sonhador enquanto dorme.

Mas não poderiam todas as tuas experiências ser como um sonho gigante, sem nenhum mundo exterior fora dele? Como podes saber que não é o que se passa? Se toda a tua experiência fosse um sonho sem nada lá fora, então todos os dados que tentasses usar para provar a ti próprio que existe um mundo exterior seriam apenas parte do sonho. Se batesses na mesa ou se te beliscasses, ouvirias o som e sentirias o beliscão, mas isso seria apenas mais uma ocorrência no interior da tua mente, tal como tudo o resto. Não vale a pena: quando queres saber se o que está dentro da tua mente pode ser um guia para o que está fora dela, não podes apoiar-te na maneira como as coisas parecem - a partir do interior da tua mente - para te darem a resposta.

Mas em que mais podes apoiar-te? Todos os teus dados acerca do que quer que seja têm de vir através da tua mente - quer na forma de percepção, de testemunhos de livros e de outras pessoas, ou da memória - e tudo aquilo de que tens consciência é inteiramente consistente com a hipótese de que não existe absolutamente nada além do interior da tua mente.

É mesmo possível que não tenhas um corpo nem um cérebro - uma vez que as tuas crenças acerca disso vêm unicamente dos dados dos teus sentidos. Nunca viste o teu cérebro - admites apenas que toda a gente tem um - , mas, mesmo que o tivesses visto, ou pensado que o tinhas visto, isso teria sido apenas mais uma experiência visual. Talvez tu, o sujeito dessa experiência, sejas a única coisa que existe, e, de qualquer

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modo, talvez não exista mundo físico - nenhumas estrelas, nenhuma terra, nenhuns corpos humanos. Talvez nem sequer exista qualquer espaço.

A conclusão mais radical a retirar daqui seria a de que a tua mente é a única coisa que existe. Esta posição chama se solipsismo. E uma posição muito solitária, e não houve muitas pessoas que a sustentassem. Como podes aperceber te por este comentário, eu próprio não a sustento. Se fosse solipsista, provavelmente, não estar1a a escrever este livro, uma vez que não acreditaria que existiriam pessoas para o lerem. Por outro lado, talvez o escrevesse para tornar a minha vida interior mais interessante, incluindo, assim, a impressão da aparência do livro publicado, de outras pessoas a lê lo e a comunicarem me as suas reacções, e assim sucessivamente. Poderia até ter a impressão de receber direitcs de autor, se tivesse sorte.

Talvez tu sejas um solipsista: nesse caso, considerarás este livro como um produto da tua própria mente, começando a existir na tua experiência à medida que o fores lendo. Obviamente, nada do que eu possa dizer po~?rá provar te que existo realmente, ou que o livro existe enquanto objecto físico.

Por outro lado, concluir que és a única coisa que existe é mais do que os dados disponíveis certificam. Não podes saber que não há qualquer mundo fora da tua mente com base no que existe dentro dela. Talvez a conclusão correcta, mais modesta, seja a de que não sabes nada para além das tuas impressões e experiências. Pode existir ou não um mundo exterior, e, se existe, pode ser ou não completamente diferente da maneira como te parece não há maneira de o saberes. Esta posição chama se cepticismo acerca do mundo exterior.

É possível uma forma ainda mais forte de cepticismo. Argumentos similares parecem mostrar que nem sequer sabes nada acerca da tua própria existência e experiência passadas, uma vez que as únicas coisas a que tens acesso são os conteúdos presentes da tua mente, incluindo impressões de memória. Se não podes ter a certeza de que o mundo fora da tua mente existe agora, como podes ter a certeza de que tu próprio exististe antes? Como sabes que não começaste a existir apenas há alguns minutos atrás, juntamente com todas as tuas memórias presentes? A única evidência de que não poderias ter começado a existir há alguns minutos atrás depende de crenças acerca de como as pessoas e as suas memórias são produzidas, o que, por sua vez, depende de crenças acerca do que aconteceu no passado. Mas deFender dessas crenças para provar que exististe no passado seria argumentar outra vez de forma circular. Estarias a pressupor a realidade do passado para provares a realidade do passado.

Parece que não consegues livrar te do facto de não poderes ter a certeza de nada, excepto do conteúdo da tua própria mente no momento presente. E parece que, seja o que for que tentes argumentar para saíres deste dilema, irá falhar, porque o argumento terá de pressupor o que estás a tentar provar a existência do mundo exterior à tua mente.

Supõe, por exemplo, que argumentas que tem de existir um mundo exterior, porque não é crível que possas ter todas estas experiências sem que haja alguma explicação em termos de causas externas. O céptico pode responder de duas maneiras. Primeiro, mesmo que haja causas externas, como podes dizer como são essas causas a partir do conteúdo da tua experiência? Nunca observaste nenhuma delas directamente. Segundo, onde se baseia a tua ideia de que tudo tem de ter uma explicação? E verdade que na tua concepção normal e não filosófica do mundo processos como aqueles que ocorrem na tua mente são causados, pelo menos em parte, por outras coisas fora deles. Mas não podes pressupor que isto é verdade se o que estás a tentar descobrir é como sabes seja o que for acerca do mundo exterior à tua mente. E não há maneira de provares tal princípio olhando unicamente para o que está dentro na tua mente. Por mais plausível que o princípio possa parecer te, que razões tens para acreditares que se aplica ao mundo?

A ciência também não nos ajudará a resolver este problema, apesar de poder parecer o contrário. No pensamento científico usual, confiamos em princípios gerais de explicação para passarmos da maneira como o mundo à partida nos parece para uma concepção diferente acerca da maneira como ele realmente é. Tentamos explicar as aparências em termos de uma teoria que descreve a realidade que está por detrás delas, uma realidade que não podemos observar directamente. É assim que a física e a química concluem que todas as coisas que vemos à nossa volta são compostas por pequenos átomos invisíveis. Poderemos argumentar

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que a crença genérica no mundo exterior tem o mesmo tipo de apoio científico que a crença nos átomos?A resposta do céptico é a de que o processo de raciocínio científico levanta o mesmo problema

céptico que temos vindo a considerar: a ciência é tão vulnerável quanto a percepção. Como podemos saber que o mundo exterior às nossas mentes corresponde às nossas ideias acerca do que seria uma boa explicação teórica das nossas observações? Se não podemos estabelecer a confiança nas nossas experiências dos sentidos em relação ao mundo exterior, também não há razão para pensarmos que podemos confiar nas nossas teorias científicas.

Há uma resposta muito diferente para o problema. Pode argumentar se que o cepticismo radical do tipo de que tenho vindo a falar não faz sentido porque a ideia de uma realidade exterior que ninguém poderia jamais descobrir não faz sentido. O argumento consiste em que um sonho, por exemplo, tem de ser algo do qual possas acordar para descobrires que estiveste a dormir; uma alucinação tem de ser algo que outros (ou tu, mais tarde) possam ver que não está lá de facto. Impressões e aparências que não correspondem à realidade têm de ser contrastadas com outras que correspondem à realidade para que o contraste entre aparência e realidade faça sentido.

De acordo com esta posição, a ideia de um sonho do qual nunca possas acordar não é de modo algum a ideia de um sonho: é a ideia da realidade o mundo real em que vives. A nossa ideia das coisas que existem é apenas a nossa ideia daquilo que podemos observar. (Esta teoria chama se por vezes verificacionismo.) Por vezes, as nossas observações estão erradas, mas isso quer dizer que elas podem ser corrigidas por outras observações tal como quando acordas de um sonho ou descobres que aquilo que pensavas ser uma cobra era apenas uma sombra na relva. Contudo, se não houver qualquer possibilidade de uma perspectiva correcta sobre como as coisas são (quer seja a tua perspectiva ou a de outra pessoa qualquer), a ideia de que as tuas impressões do mundo não são verdadeiras não faz sentido.

Se isto é verdade, então o céptico está a iludir se quando pensa que pode imaginar que a única coisa que existe é a sua própria mente. Está a iludir se porque não pode ser verdade que o mundo físico realmente não existe, a não ser que alguém possa observar que ele não existe. E o que o céptico está a tentar imaginar é precisamente que não existe ninguém que observe isso ou qualquer outra coisa - com excepção, é claro, do próprio céptico, mas ele apenas pode observar o interior da própria mente. Portanto, o solipsismo não faz sentido. O solipsismo tenta subtrair o mundo exterior à totalidade das minhas impressões, mas não o consegue, porque, se o mundo exterior fosse subtraído à totalidade das minhas impressões, estas deixariam de ser meras impressões e tornar se iam, ao invés, percepções da realidade.

Será bom este argumento contra o solipsismo e o cepticismo? Não, com certeza, a não ser que a realidade possa ser definida como aquilo que podemos observar. Mas será que somos realmente incapazes de entender a ideia de um mundo real, ou de entender um facto acerca da realidade, que não pode ser observado por ninguém, humano ou não?

O céptico sustentará que, se existe um mundo exterior, as coisas são observáveis porque existem, e não o contrário: a existência não é o mesmo que a observabilidade. Apesar de termos a ideia dos sonhos e das alucinações a partir dos casos em que pensamos poder observar o contraste entre as nossas experiências e a realidade, parece seguro que a mesma ideia pode alargar se também aos casos em que a realidade não é observável.

Se tal for verdade, parece seguir se que pensar que o mundo poderá consistir apenas no interior da tua mente não será uma ideia destituída de sentido, ainda que nem tu nem qualquer outra pessoa possam descobrir se isso é verdade. E, se isso não é destituído de sentido, mas uma possibilidade que tens de considerar, parece que não existe qualquer maneira de provares que ela é falsa sem argumentares de forma circular.Portanto, pode não existir qualquer caminho para fora da prisão da tua própria mente. A isto chama se, por vezes, o dilema egocêntrico.

E, no entanto, mesmo depois de ter sido dito tudo isto, tenho de admitir que é praticamente impossível acreditar seriamente que todas as coisas no mundo à tua volta podem não existir na realidade. A nossa aceitação do mundo exterior é instintiva e poderosa: não podemos pura e simplesmente livrar nos dela

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com argumentos filosóficos. Não agimos apenas como se as outras pessoas e coisas existissem: acreditamos que elas existem, mesmo depois de termos sopesado todos os argumentos que parecem mostrar nos que não temos motivos para mantermos esta crença. (Podemos ter fundamentos, dentro do sistema geral das nossas crenças acerca do mundo, para crenças mais particulares acerca da existência de coisas particulares, tal como um rato numa caixa de sapatos, por exemplo. Mas isso é diferente, pois pressupõe a existência do mundo exterior.)

Se a crença no mundo exterior às nossas mentes nos é tão natural, talvez não necessitemos de a fundamentar. Podemos, pura e simplesmente, deixá la em paz e esperar que tenhamos razão. Na realidade, é o que a maior parte das pessoas fazem depois de desistirem da tentativa de provarem a crença no mundo exterior: mesmo que não consigam apresentar razões contra o cepticismo, também não conseguem viver com ele. Contudo, isso quer dizer que nos agarramos à maioria das nossas crenças comuns sobre o mundo face ao facto de (a) elas poderem ser totalmente falsas e (b) não termos qualquer base que nos permita rejeitar essa possibilidade.

Restam nos, portanto, três questões:

1) Faz algum sentido a possibilidade de o interior da tua mente ser a única coisa que existe ou, mesmo que exista um mundo exterior à tua mente, ele ser totalmente diferente do que pensas?

2) Se qualquer destas hipóteses é possível, existe alguma maneira de provares a ti mesmo que essa hipótese não é de facto verdadeira?

3) Se não podes provar que existe seja o que for fora da tua própria mente, será correcto continuares a acreditar na existência do mundo exterior?