"...que acenda a primeira pedra. ecos da cracolândia de belo horizonte"

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Livro de estreia de Luiz Guilherme, a obra reúne o conteúdo de dois anos de investigação jornalística imersiva no submundo do crack em Belo Horizonte, especificamente naquela que é conhecida como a “Cracolândia”, localizada no bairro Lagoinha e adjacências da região Noroeste da capital. Contrariado pelo tratamento monocular dado pelos discursos midiáticos e determinadas abordagens acerca do tema, local e pessoas, a obra propõe, em sua investigação, inverter a lógica narrativa da realidade social que encontrou. Uma grande oportunidade de escapar da superficialidade jornalística que marca atualmente as coberturas e investigações sobre o tema na capital mineira. Para tal, foi preciso ir aonde ainda não haviam entrado, ouvir o outro lado da história, os verdadeiros protagonistas: usuários de crack, moradores da região e as iniciativas sociais que trabalham com esses segmentos.

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Este livro é resultado do trabalho de conclusão de curso elaborado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Toda a apuração do conteúdo histórico foi embasada nas refefências citadas ao final desta obra.

Janeiro de 2016

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O que a memória ama, fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.

Adélia Prado

Para Yasmin.

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Copyright © Crivo Editorial, 03.2016

...Que Acenda a Primeira Pedra – Ecos da Cracolândia de Belo

Horizonte. © Luiz Guilherme de Almeida, 03.2016

Edição : Haley Caldas, Lucas Maroca de Castro e Rodrigo Cordeiro

Projeto Gráfico: Haley Caldas e Jaison Jadson Franklin

Capa: Haley Caldas

Revisão: Amanda Bruno de Melo

Almeida, Luiz Guilherme de.... Que acenda a primeira pedra : ecos da Cracolândia de Belo

Horizonte / Luiz Guilherme de Almeida ; revisão: Amanda Bruno de Melo ; projeto gráfico: Haley Caldas Martins Barbosa, Jaison Jadson Franklin. – Belo Horizonte : Universo & Cidade, 03/2016.

192 p.

Originalmente apresentado como o resultado do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), elaborado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais, em 2015.

ISBN: 978-85-66019-27-8

1. Política social. 2. Problemas sociais – Belo Horizonte (MG). 3. Projetos sociais – Brasil. 4. Drogas – Aspectos Sociais. 5. Crack (Droga) – Belo Horizonte (MG). I. Melo, Amanda Bruno de. II. Barbosa, Haley Caldas Martins. III. Franklin, Jaison Jadson. IV. Título.

A447q

CDD: 361.1CDU: 304(81)

Crivo Editorial Rua Fernandes Tourinho, 602, sala 502 30.112-000 - Funcionários - BH - MG

www.crivoeditorial.com [email protected] facebook.com/crivoeditorial

“Revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (De-creto Legislativo n°54, de 1995)”

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SumárioPREFÁCIO 7INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO 1 - ANTES DA CRACOLÂNDIA: UM BAIRRO E MUITA HISTÓRIA De Poeirópolis a Lagoinha 25Mudanças, mudanças, mudanças… 29“Tutti Buona Gente!” 31Modernismo, J.K. e o bairro no embrião da metrópole 34Do córrego ao concreto: nasce o IAPI 40Enfim, Metrópole! A boêmia ao estilo Lagoinha 46Um complexo inimigo 51Lagoinha hoje: cracolândia, memória e futuro 53

CAPÍTULO 2 - ENTRANDO SEM BATER Raspa da canela do diabo 57Sorvete sabor c… 60Adílson tem fome de quê? 64O pedreiro que não sabe reconstruir… 67Uma razão especial 72

CAPÍTULO 3 - COM OS DOIS PÉS LÁ DENTRO: PRAZER, CRACOLÂNDIA... Bem-vindo ao inferno onde a pedra não para 75Um coração pulsando 78Cara a cara com a realidade 81Aqui, o Buraco é mais embaixo. E Quente. 84Aviões sem asas 86Propósitos distintos, caminhos convergentes 89O camarote VIP 91

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O turno da madruga 93Todo final é recomeço (?) 97

CAPÍTULO 4 - ECOS… Uma miss sem faixa 101avião que não sai do chão, voa? 104O velho e novo amor... 108“Ser ou não ser, eis a questão” 111Nome do pai: Cracolândia 114Não é justo para quem? 118O nó na garganta… 121...pouco como um rei ou muito como um Zé? 125À espera da primavera 128

CAPÍTULO 5 - CONHECENDO O INIMIGO … e então se fez o crack 133Terra à vista: pedra chega ao Brasil e em Belo Horizonte 138Perfil brasileiro: quem são os usuários de crack? 141Fenômeno “Cracolândia” 149

CAPÍTULO 6 - HÁ QUEM VENÇA Maratona de uma vida 151Falta a de Deus… 155Enquanto o pão não chega... 160Há quem vença 166

GRATIDÃO 181BIBLIOGRAFIA 184

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PREFÁCIO

No livro-reportagem ... Que acenda a primeira pedra – ecos da cracolândia de Belo Horizonte, Luiz Guilherme de Almeida nos convida a deixar de lado o olhar indiferente, com o qual olhamos cotidianamente as pessoas que consomem crack, e a percorrer junto com ele os lugares onde elas passam parte do dia ou da noite, alguns até parte da vida. É um convite a parar e a escutar suas histórias, a se deixar afetar, como o fez o autor, pela existência de quem vive no mundo do crack.

Tanto nas andanças pelo bairro da Lagoinha – do seu passado boêmio a convivência presente com uma cracolândia – como nas paradas para ouvir as histórias de usuários de crack e de moradores, Luiz Guilherme nos mostra o quanto uma rica narrativa jornalística vem de um jornalismo disposto efetivamente a escutar as pessoas. De um jornalismo e de jornalistas que se deixam tocar pela presença e experiência do outro, que são capazes de compreensão mais do que de revelação e julgamento. Foi adotando tal postura que o autor conseguiu tecer, com poderosa escrita, uma narrativa densa e tocante sobre usuários de crack e sobre a cracolândia de Belo Horizonte.

... Que acenda a primeira pedra (...) é um trabalho impregnado pela coragem, rigor e sensibilidade do seu autor. Coragem para encarar um tema tão difícil e delicado, em função dos dramas humanos envolvidos. Rigor na pesquisa e apuração, o que vai na contracorrente de um jornalismo

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tradicional cada vez mais acomodado, preguiçoso, distante das pessoas, dos seus problemas reais e das questões coletivas que os revestem. Sensibilidade no tratamento do tema, na atenção, escuta e respeito às pessoas e suas histórias. É assim que um assunto mal tratado ou tratado de forma inadequada, superficial, na prática jornalística cotidiana, encontra em Luiz Guilherme uma abordagem sensível, típica de um repórter disposto a abrir-se para escutar e compreender o outro.

Com esses ingredientes de um trabalho jornalístico de alta qualidade – apuração exaustiva e rigorosa, respeito no tratamento do tema e das pessoas envolvidas, e a potência da sua escrita -, Luiz Guilherme tece uma narrativa sobre a cracolândia e os usuários de crack que também nos afeta e emociona profundamente. Como não admirar a solidariedade de dona Adélia, proprietária de uma sorveteria encravada na cracolândia, em “Sorvete sabor c...” ? E a sinceridade desconcertante de Davi, em “Ser ou não ser, eis a questão”? E a persistência da jovem Érica, que cotidianamente vai até a cracolândia buscar a mãe, usuária de crack, em “A espera da primavera”? Como não se sensibilizar com a amarga história de amor de Ronaldo, em “O velho e novo amor...” ? Como não chorar ante a definição de vida, de felicidade e de futuro do menino Robinho, em “O nó na garganta...” ?

Impossível não se afetar por esse livro e não se deixar tocar por essas histórias. Impossível segurar as lágrimas ao ler algumas delas ou não sentir, como o autor, um nó na garganta. É um livro que nos provoca, nos convoca,

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nos emociona, nos marca. Impossível voltar a olhar uma cracolândia ou usuários de crack com o mesmo olhar de antes. Impossível olhá-los de novo sem lembrar do livro de Luiz Guilherme e sem ouvir os ecos das histórias reunidas em ... Que acenda a primeira pedra (...).

O livro é um documento importante para Belo Horizonte, um presente de Luiz Guilherme para a cidade, para o bairro da Lagoinha e para as pessoas que entregaram ao autor suas histórias. É um presente também para quem admira uma bela narrativa jornalística e acredita que o jornalismo pode, com relatos assim, cumprir um importante papel na sociedade.

Terezinha Silva Professora colaboradora do Departamento de

Comunicação da UFMG

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INTRODUÇÃO

O Pão Nosso de cada dia…

I.

Os dois tambores cinzas já estão a postos. Acostumados a transportar leite, ali eles cumprem uma função de responsabilidade um pouco maior. Comportam 50 litros cada e são preenchidos até o gargalo, quase transbordando. Não se pode desperdiçar um espacinho que seja. Certamente fará falta. As grossas tampas pretas fazem o trabalho de selar o conteúdo e manter a temperatura fervendo, enquanto são necessários, pelo menos, quatro braços dispostos para arrastá-los até o interior da kombi. O peso de cada um corresponde proporcionalmente ao da função que cumpre; algo difícil de ser carregado, fardo pesado, mas que a duras penas, chega lá. Dentro deles, uma temperada saborosíssima: caridade, afeto, respeito, amparo, esperança, nutrição, esforço, dignidade, amor, empatia….

E claro: sopa da boa.

É quinta-feira, dia de sopão na cracolândia. Todos já sabem que quando cai a noite o ritual se altera um pouco. Mesmo que por alguns minutos, os cachimbos dão uma pausa pra que as mãos se ocupem com outros objetos. Não é o único dia em que alimentos são distribuídos pela

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região, mas é sem dúvidas o mais intenso. Os diversos projetos sociais que atuam na empreitada de distribuir alimentos à população de rua da capital mineira fazem das quintas-feiras uma verdadeira congregação ecumênica. Espíritas, católicos, evangélicos, ateus, estão todos ali em prol do mesmo objetivo: alentar o corpo e a alma daqueles que carecem. Sem fanatismos religiosos ou demagogia. A missão estabelece que não há espaço para interesses próprios de igrejas, centros e afins, mas somente para o interesse coletivo. É chegada a hora de trabalhar.

Antes….

O projeto - Pão Nosso - abre suas portas e sua história. Fundado há 14 anos, tem filiação na força de vontade e na necessidade. Em 2011, a cúpula da Paróquia Santa Catarina Labouré entendia que os limites do bairro Dona Clara, onde está situada, não poderiam ser seu único campo de atuação. O crescimento da população de rua seguia em ritmo alarmante e a intensificação do consumo de drogas na capital preocupava o inquieto Padre Fernando. Naquela época, a paróquia trabalhava apenas localmente, mas o pároco via no trabalho social uma alternativa de auxílio ao quadro que se agravava em Belo Horizonte. Carregava consigo um histórico de êxito, já que havia implantado um projeto parecido quando morava em Governador Valadares. O projeto nasceu, então, da mobilização de toda a paróquia, que propunha uma fórmula já conhecida de atuação, mas que nunca esgotaria sua função social: a distribuição de alimentos.

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O início foi atribulado. Ao comprarem a ideia do projeto, as pessoas vinculadas à paróquia começaram a se organizar para atuar. O saldo de voluntários foi positivo, mas as ações ainda eram incipientes. Cerca de 70 voluntários apareceram, mas sem o comprometimento que os planos de ação exigiam. Era preciso organizar os voluntários e otimizar a proposta. Imbuído nas outras atividades da paróquia, Padre Fernando não seria capaz de coordenar totalmente o projeto e precisava contar com alguém para o posto. Foi quando a história de Afonso Ferreira cruzou definitivamente com a do Pão Nosso.

Desde então, Afonso é o coordenador de atividades do projeto. É um senhor baixinho, com cabelos crespos e grisalhos, de fala e passos mansos. Dono de sorrisos tão receptivos quanto a sua personalidade, não dispensa uma camisa polo rigorosamente para dentro dos jeans, “pra passar seriedade”. Católico fervoroso, foi funcionário público a vida inteira e recusou-se a descansar depois de aposentado. Sentia a necessidade de se empenhar em outra coisa, algo “como um chamado”. Seu trabalho ali é imensurável. É responsável por todas as etapas do projeto, principalmente as de organização logística, administração financeira e executiva. Tudo ali tem um pouco do seu suor, apesar da modéstia que ele mesmo atribui ao seu papel. Ele conta que ao longo dos anos o projeto teve seus altos e baixos, e que no momento vive na linha tênue entre a estabilidade e os prejuízos financeiros, mas sem que desistir torne-se uma opção. “A minha função aqui é muito mais que coordenar, isso qualquer um faria. É não deixar de maneira alguma que isso aqui morra”.

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A sopa quentinha que chega aos moradores de rua e aos usuários da cracolândia passa por processos longos, desconhecidos para a grande maioria. Tudo começa nos contatos de Afonso para que doações e negociações sejam concluídas semanalmente. São inúmeros os fornecedores de alimentos: sacolões, supermercados, padarias, frigoríficos e pessoas comuns. Muito daquilo que é sobejo para comercialização nesses estabelecimentos chega até a paróquia em forma de doações. São peças de carne, frutas, legumes e verduras que seriam descartadas, mas que ali dentro encontram um destino melhor. O contato com revendedores de utensílios descartáveis também é constante, em vista da quantidade necessária para a distribuição dos alimentos. “A gente conta com muitas pessoas amigas, que doam um pouco de dinheiro, tempo ou os próprios alimentos. São parceiros de anos a fio, que ajudam a manter uma causa viva. Sem esse auxílio deles, seria inviável continuar.”

Afonso controla toda a parte financeira com a ajuda de uma pequena equipe. De seu escritório, nos fundos da paróquia, ele faz telefonemas, autoriza pagamentos, coordena o fluxo de caixa e segue angariando outras fontes de renda para o projeto. Tudo é feito de maneira muito simples, utilizando cadernos e livros para a contabilidade, mesclados com alguns raros cliques num computador. Estima-se que, mensalmente, pelo menos R$ 4.000,00 reais sejam gastos com todo o projeto. O dispêndio cobre os custos de aquisição dos alimentos, pagamento de contas e manutenção da estrutura na paróquia, entre outros. A arrecadação é feita através de doações, comercialização

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do artesanato produzido pela comunidade e eventos comemorativos. Afonso faz um verdadeiro malabarismo financeiro para manter tudo funcionando. “É tudo sempre muito na conta. Um mês sobra cem, duzentos, enquanto no outro a gente precisa arrecadar mais. Sempre no limite. O que importa é dar conta e continuar”.

Ao menos de um gasto ali ele está isento: mão de obra. Todo o trabalho é feito por voluntários. Atualmente são 30 pessoas empenhadas no projeto, que atuam em diversas frentes. Enquanto Afonso trabalha com uma equipe reduzida na coordenação, outra, composta apenas por mulheres, trabalha na cozinha. Elas são as responsáveis por todas as etapas de preparação da sopa. São cerca de dez senhoras já aposentadas, algumas ali com mais de 55 anos, que passam suas tardes de quarta e quinta-feira trabalhando. Chegam cedo para lavar, picar, descascar e refogar tudo.

O comando fica por conta de Alaíde. Uma senhora de “60 e poucos anos não revelados, para manter a simpatia!” com disposição adolescente. Enquanto conta causos, ela prepara e prova a sopa constantemente. Nada sai dali de dentro sem seu aval. Ela e as companheiras debruçam-se sobre dois caldeirões enormes num incessante trabalho de mistura e preparação da refeição que dura pouco mais de três horas. O calor na cozinha impecavelmente limpa é bruto, apesar das janelas e dos ventiladores por todos os lados. A qualidade da sopa é ímpar, indiscutível. A broa de fubá com café da chegada abre espaço para uma tigela nada modesta, mas cativantemente saborosa.

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Nada tira dessas senhoras a alegria contagiante que caracteriza o ambiente. Estão ali entre amigas. Proseiam sobre as famílias, suas vidas e as das mais de 400 pessoas que alimentarão em breve com seu esforço. O afeto que dedicam à preparação da sopa é certamente o tempero mais saboroso da mistura. Insubstituível, é justamente ele que move igualmente as outras pessoas no projeto, como faxineiras e os responsáveis pela triagem dos pães e frutas que serão distribuídos. “Fazemos muito pouco ainda” é a frase que mais se ouve ali dentro. Nenhuma cara cansada ou reclamações por canto algum. Já trabalho e empatia transbordam.

Depois de horas na preparação, a sopa é colocada nos dois tambores cinzas que são arrastados para a Kombi do projeto. Junto a eles, garrafas d´água, frutas e pães. Uma equipe de cinco pessoas é responsável pela distribuição nas ruas. Com o veículo estocado e todos os voluntários já presentes, é dada a hora de partir. Os destinos serão os viadutos do Complexo da Lagoinha e a cracolândia.

II.

Todo o processo de distribuição segue uma rotina já estabelecida. Duas pessoas servem a sopa, enquanto outra a entrega junto com os pães para a fila indiana que se forma no local. Mais atrás, no porta-malas, outra pessoa tem a tarefa de repassar a água e as frutas. A quinta pessoa atua como coringa, ajudando em todas as funções, caso necessário. Os que são alimentados já conhecem o

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esquema e antes mesmo da chegada da kombi já formam um esboço de fila. Não há confusão, apesar da quantidade de gente. Cada cabeça tem direito a receber uma unidade de cada item oferecido. Caso ainda sintam vontade, poderão repetir a sopa quantas vezes quiserem. Depois de pouco mais de uma hora embaixo do viaduto Senegal, a kombi parte para a cracolândia.

Ali o funcionamento muda um pouco. Já é noite e o local morbidamente iluminado exige cuidados. Apesar de muitos já esperarem a presença do projeto, é comum que usuários e o próprio movimento do tráfico se assustem com a chegada de um grupo de pessoas num carro. A subida então é feita com cautela, sem aceleração, deixando claro que a Kombi não oferece perigo a ninguém ali. Estacionada na margem direita da rua, bem em meio aos usuários, a distribuição recomeça. Na cracolândia não se forma uma fila exatamente, mas sim pequenas aglomerações que vão chegando aos poucos e rapidamente tomam conta da cena.

A procura pela água é enorme. Sedentos, muitos usuários chegam a preterir a sopa e procuram logo as garrafinhas que ainda restaram. As pupilas arregaladas dão o tom daquela noite: movimento intenso. Os que têm fome recebem seus potes e se sentam por ali mesmo na calçada ou ao redor da Kombi. Enquanto alguns falam bastante, outros estão visivelmente experienciando o auge da noia. Mal conseguem falar, muito menos estabelecer qualquer contato. São homens e mulheres que mais parecem zumbis, tamanha é a sua desconexão com a realidade. Alguns deles precisam ter as mãos amparadas ao receber os alimentos

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para que não os deixem cair logo em seguida. Outros não conseguem nem agradecer ou formular algo. Combalidos, recebem a refeição e seguem na direção oposta, sumindo de vista outra vez.

As mulheres têm preferência de chegada, enquanto os homens costumeiramente pegam um número maior de pães e frutas. A distribuição dura até o último farelo ou gota findarem, sem exceção. Durante o processo, o tempo parece congelar. São tantos fatos simultâneos a serem captados pelos sentidos que quem está ali presente raramente se preocupa em acompanhar o relógio. A câmera é lenta e muita coisa é paradoxal ao extremo. Cenas surreais da degradação humana acontecem ao mesmo tempo em que episódios de companheirismo chamam a atenção. Enquanto alguns usuários estão tão fracos para se levantarem e buscarem o alimento, outros se preocupam em pegar um pouco e cuidadosamente depositar ao lado deles, que uma hora ou outra recuperarão os sentidos e terão fome. Tudo isso se desenrola em meio ao lixo e ao intenso consumo de crack. Algumas pessoas tomam a sopa enquanto fumam pedra.

Algumas das pessoas que trabalham para o tráfico também se aproximam e tomam a sopa. São discretíssimos. Costumam acenar com a cabeça em agradecimento e nada mais. Por imposição do trabalho ou não, recebem os alimentos e voltam ao posto no alto da rua José Bonifácio, onde observam e coordenam o movimento noturno. Alguns moradores de rua que ficam pela outra banda do Complexo da Lagoinha também passam pelo local. Nem

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todo mundo está ali pra fumar crack, mas a presença dele é sentida por todos.

É comum que outros projetos sociais façam o mesmo trajeto. Enquanto a sopa do Pão Nosso vai sendo distribuída, um grupo evangélico sobe a rua de carro, cumprimentando os presentes. “Vejo que aqui tá bem servido!”, grita alguém de dentro da van, que parte em direção a outro ponto. Essa comunhão de apoio vindo das diferentes crenças é algo bastante peculiar na cracolândia. Enquanto alguns grupos optam por uma aproximação religiosa, com atendimento individualizado, outros preferem única e exclusivamente a distribuição de alimentos, sem que haja algum tipo de pregação. Contudo, o fato em comum que os conectam é sempre o mais importante. Estão todos ali trabalhando. Sem distinção, sem lavagem cerebral religiosa ou algo parecido. Não estão ali para arrebanhar fiéis e gostam que isso fique bastante claro.

Quando os alimentos chegam ao fim, todos os que quiseram comer já estão fartos e se dispersaram. Puderam comer e repetir, tamanho o reforço que a refeição proporciona. Alguns usuários guardam as doações para outro momento, já que o crack muitas vezes lhes rouba a fome imediata. A equipe do projeto faz uma última checagem entre eles, perguntando quem comeu ou não. Só fica de estômago vazio quem quiser.

O saldo da noite é comemorado. Mais de 100 litros de sopa foram ofertados, somados aos 400 pães, quilos de frutas e

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garrafas d´água. Tudo isso em pouco mais de três horas. A sensação da equipe do projeto é de mais uma noite de sucesso, mais um trabalho bem-feito, sem sobressaltos. Sentem-se visivelmente gratificados por estarem ali. Abraçam-se, fazem uma oração simples em agradecimento pela noite de trabalho e partem de volta à paróquia. De lá, voltarão para suas casas, onde aguardarão pelas próximas semanas de trabalho.

Para aqueles que ficam na cracolândia, a noite continua.

A pedra não para.

III.

Já são 14 anos de trabalho e empenho constantes para a população de rua de Belo Horizonte. Ininterruptas quartas e quintas-feiras se passaram e muitas outras ainda estão por vir. Equipes e pessoas entraram e saíram ao longo do tempo, mas deixaram um pouco dos seus legados a cada noite. Em retorno, receberam muito como seres humanos. O impacto que esse projeto causa jamais conseguirá ser quantificado ou qualificado. Mereceria um livro por si só, ao menos.

O Catolicismo acredita que, dentre outros tantos predicados, Catarina Labouré tenha se santificado graças à sua dedicação à caridade e ao altruísmo para com os pobres nas ruas francesas do século XIX. “Se observarmos bem as pequenas coisas, faremos bem as grandes” era o seu grande lema.

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O que une o projeto Pão Nosso aos tantos outros que atuam nas ruas e na cracolândia de Belo Horizonte é justamente esse olhar. O da empatia e da caridade ao próximo. Buscam trabalhar num propósito linear, que tenha por onde começar e chegar, com extrema seriedade e dedicação. Da pequena ação à grande. Das primeiras 10 sopas às 400 por noite. Desde seu início, diagnosticou-se a carência por programas que pudessem atender à população de rua belo-horizontina de forma digna, caridosa, empática, livre de qualquer interesse ou pré-julgamento que a sociedade viesse impor. Fossem usuários de crack, mendigos ou prostitutas, a intenção sempre foi a de acolher e desenvolver um trabalho que oferecesse momentos de dignidade a um segmento oculto da população, constantemente marginalizado e visto como pragas sociais.

Dos pequenos aos grandes detalhes, os caminhos desses projetos que se cruzam são longos e tortuosos. As dificuldades até aqui foram e ainda são imensas, de todos os tipos. Uma delas é a falta de reconhecimento pelo trabalho executado. Outra, a baixa adesão daqueles que poderiam fazer muito mais, mesmo que partindo de pequenas ações. Grande parte da população não faz ideia do que acontece embaixo dos viadutos, nas vielas escuras do baixo Centro ou na Cracolândia. Quem são esses loucos que usam drogas ou moram nas ruas? Por qual razão não param? Quem são essas outras que perdem seu tempo alimentando desconhecidos pelas noites?

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As respostas para essas perguntas nunca farão total sentido ou talvez nem existam de fato. Entretanto, caso elas tivessem que partir de algum lugar, este certamente exigiria imersão como principal combustível à compreensão da coisa como um todo. Assim como foi o projeto Pão Nosso para a realização deste trabalho que agora você lê. O projeto abriu caminhos, como um trampolim para o mergulho profundo que a temática exige do jornalista disposto a abordá-la. O acompanhamento próximo, in loco, permitiu que toda uma rede de contatos fosse construída e que os mais diversos personagens – alguns deles contidos aqui, neste trabalho – desabrochassem ao alcance dos olhos, permitindo que suas histórias fossem contadas. Eles são a verdadeira história, essa escrita em páginas da vida real.

Só é possível chegar a algum lugar tendo passado por outros ao longo do percurso. As observações e conversas que culminaram na história acima cumprem esta lógica. Toda a produção a seguir só foi possível devido às possibilidades abertas pelo acompanhamento do projeto. Foi dessa forma que a imersão se tornou possível.

Convido você a (re)fazer esse percurso comigo. Assim como foi para mim, espero que essa realidade seja uma instigante e desafiadora porta de entrada a partir da qual embarcar e conhecer um pouco do submundo do crack em Belo Horizonte. Quando surgiu, de onde veio, como se deu a construção dos cenários históricos, como é a Cracolândia e quem são algumas das pessoas afetadas direta e indiretamente por pequenas lascas de pedra tão devastadoras.

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Enquanto tivermos receio de mergulhar no desconhecido, nunca veremos nada de novo. Continuaremos a ver só aquilo que todos já viram…

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CAPÍTULO 1

ANTES DA CRACOLÂNDIA: Um BAIRRO E mUITA HISTÓRIA

DE POEIRÓPOLIS A LAGOINHA

O bairro Lagoinha carrega consigo um peso histórico dos mais relevantes na construção identitária de Belo Horizonte. Como um intrigante personagem em uma trama, abriga em seu passado a constante dualidade entre o bem e o mal, o bom e o ruim, o gozo ou a tristeza, dificuldades ou vantagens. Guarda pra si e aflora, ao mesmo tempo, histórias potentes dos diversos personagens que deixaram sua marca no local, em tempos longínquos do atual, quando a vida seguia um ritmo menos acelerado, mais romantizado até. A Lagoinha oferece àquele que o adentra a característica peculiar de se auto explicar; sua história ajuda a compreender a da capital mineira e se confunde com ela, desde os áureos tempos de uma sociedade já sepultada, guardando pra si alguns segredos adormecidos. Para conhecer boa parte de sua essência é preciso adentrá-lo de cabeça, partir do marco zero, sem meias histórias….

O ano é 1897 e a então - Poeirópolis - apelido jocoso dado à capital – é solenemente inaugurada a 12 de dezembro, com o nome de Cidade de Minas. A mesma poeira que caracterizava a então recém-nascida Belo Horizonte trouxe consigo da distante Europa a ideia de construir uma

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cidade planejada. Naquela época, a prática de construções e reformulações urbanas pelo poder público era o carro-chefe do desenvolvimento urbano, e visava adequar as cidades a um modelo pré-elaborado. Queriam uma capital diferente das demais do país até então: planejada, pensada, estruturada. Tais grandes transformações no sítio de Belo Horizonte eram justificadas pela ideia de modernização, melhoramento da infraestrutura e da própria estética da cidade, que tinha Ouro Preto – então capital – como modelo mais próximo do moderno. Munidos do discurso e conceito desenvolvimentista, o poder público confere à nova Belo Horizonte seu marco zero.

O provinciano Curral Del Rei cede espaço para a construção da capital do estado. O lugar foi escolhido em parte pelo seu potencial de expansão territorial, clima e cursos d´água nascidos ao pé da Serra do Curral que abasteceriam a população. Através da Comissão Construtora da Nova Capital, instalada em 1894, o antigo arraial recebe o planejamento de uma cidade moderna, com largas avenidas, boa infraestrutura, mas que nascia com um problema de berço, algo então ignorado: carecia de uma identidade em completude. É bem verdade que existia vida anterior aos esboços de mapas, avenidas e traçados de área urbana da nova capital. E como havia. Na área suburbana - fora dos limites da Avenida do Contorno, que demarcava o cinturão urbano - as águas de um pequeno córrego promovido a lagoa, fora dos limites da Avenida 17 de Dezembro no traçado original da cidade, não deixavam mentir. Oportunamente batizado de Lagoinha e inaugurado em conjunto com Belo Horizonte, o bairro já respirava.

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Cravado entre as colônias agrícolas Carlos Prates, Américo Werneck e uma pedreira, o agora oficialmente batizado bairro da Lagoinha compunha a 6ª Seção Suburbana de Belo Horizonte, assim delimitado pela primeira Planta Geral da Cidade de Minas. No traçado original da cidade, estava localizado na área suburbana e correspondia a uma pequena vila que se formara e ganhara corpo nas proximidades do córrego de leito raso, uma vez que em determinado ponto suas águas empoçavam, formando uma pequena lagoa. A região recebia ocupações antes mesmo da inauguração oficial, contribuindo para o primeiro e ainda incipiente recenseamento demográfico da nova capital, que estimava cerca de 13.500 habitantes até então.

Belo Horizonte tinha a missão de aproximar as dispersas vilas existentes que se desenvolveram pelos arredores da cidade, com o intuito de urbanizar de maneira eficiente e igualitária cada seção e seus novos bairros. As ocupações pelo bairro da Lagoinha eram irregulares e desorganizadas. Como a área original do bairro correspondia a uma considerável porção de território, as famílias que migravam para o local iam se assentando de maneira desordenada. Com um espaço tão grande, as famílias iam ocupando porções de terra distantes entre si, sem levarem em conta a noção de bairro que passara a existir com o seccionamento feito pelo planejamento da capital. Dentro do próprio bairro existiam distâncias importantes entre as casas construídas e as vilas assentadas, aspecto também visto em outros bairros que se formavam por toda a capital. Para

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a população de um antigo arraial, desprender-se do seu caráter bucólico e se acostumar com as denominações, os limites e o tal progresso não seria algo de assimilação imediata.

Durante a primeira década do novo século, as notícias da nova capital percorriam o estado inteiro. Não fazia tanto tempo assim que o Brasil deixara de ser um Império para se tornar República e os ventos de mudanças ganhavam as Minas Gerais com a mesma força das elites regionais que já se formavam, naqueles que seriam passos importantes para a consolidação das oligarquias do estado e de sua força política republicana, concomitante à força paulista, que também se destacava. Sendo o estado mais populoso até então e com maior número de representantes na Câmara dos Deputados, Minas Gerais despontava com força e importância nesses primeiros anos de República tanto no aspecto político quanto no econômico, sendo o grande produtor de leite do país e o segundo principal polo cafeeiro, atrás apenas de São Paulo. Naquela época, ambas as produções e tudo aquilo relacionado a elas ditavam os rumos econômicos e políticos da recente República.

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mUDANÇAS, mUDANÇAS, mUDANÇAS…

Belo Horizonte – agora nome oficial, desde 1901 – pegava carona no momento importante do estado e também dava passos por si própria. Passado o primeiro momento da inauguração e adequação à vida na nova capital, era preciso seguir em frente e encarar um processo de urbanização que, por mais que fosse planejado previamente, necessitaria de muito trabalho por parte de todos aqueles que agora optavam pela cidade como destino passageiro ou permanente. A prefeitura seguia investindo em infraestrutura urbana, como o calçamento de ruas, construção de redes integradas de esgoto, abastecimento de água nos bairros, bem como em outras preocupações estruturais que eram naturais de uma cidade recém-inaugurada.

Por trás da obrigação em atender as necessidades básicas de uma crescente população, os governos municipal e estadual acreditavam que tais investimentos estimulariam a imigração e povoamento da capital, além de incentivar comércios e indústrias a apostarem no local como um polo de expansão em potencial. A apuração histórica trouxe à tona que a importância dada a essa fase de estruturação urbana era tanta que a Prefeitura se viu obrigada a contrair um empréstimo considerável, com intuito de dar sequência às obras tidas como inadiáveis naquele momento.

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A Lagoinha testemunhou de perto algumas dessas mudanças. Não muito diferente de outros bairros suburbanos, encarava seus primeiros anos com dificuldades estruturais que aos poucos foram sendo direcionadas. Em uma capital planejada por setores, viu serem priorizadas as melhorias por toda a faixa central urbana em detrimento dos bairros que mais apresentavam problemas. Viu chegar iluminação e transporte apenas em 1909. Em posição estratégica para o acesso à região periférica, por estar entre a zona rural e a urbana, a Lagoinha recebeu a estação ferroviária que servia como plataforma de desembarque para os produtos que chegavam e abasteciam a capital. Ainda em 1910, com a inauguração do ramal férreo que ligava Belo Horizonte a Divinópolis, surgem os primeiros estabelecimentos comerciais no bairro, oferecendo produtos alimentícios, vestuário e artigos de primeira necessidade. Rapidamente, a gleba agrícola que existia na capital da pré-inauguração tornou-se a região suburbana mais populosa de Belo Horizonte. A Lagoinha pintava como expoente de uma cidade que crescia de fora para dentro, da periferia para o centro, e não o contrário, como previa o planejamento original da capital.

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“TUTTi BUOnA GenTe!”

Em meio a toda essa efervescência, a Lagoinha ganhava corpo e identidade. Belo Horizonte não se ergueu sozinha. Imigrantes de diversas cidades de Minas Gerais e os italianos vindos de outros estados formaram parte do operariado envolvido na construção da capital e enxergaram na Lagoinha a possibilidade de assentamento e início de vida numa nova cidade. Portugueses, turcos e espanhóis também chegaram ao bairro sob as mesmas circunstâncias, estabelecendo-se como os primeiros habitantes permanentes do lugar.

O bairro começava então a incorporar alguns aspectos que o caracterizariam ao longo da história de Belo Horizonte. A proximidade da Lagoinha com o Centro e com a linha de trem fez com que um expressivo número de pessoas fosse se acomodando nas pensões das redondezas e, ao passo que a cidade e sua mixórdia cultural se expandiam, o bairro tornava-se uma área boêmia, dotada de bares, cabarés, restaurantes e de uma vida noturna agitada. Ainda sim, era o bairro do proletariado, que passou a abrigar, aos poucos, os imigrantes que chegavam à capital em busca de oportunidades nas indústrias, bem como os remanescentes da construção da cidade e suas famílias. Naquela primeira década, era possível contabilizar mais de 25 famílias de imigrantes na Lagoinha, como os Marchetti, Gramiscelli, Abramo, Abuid, Vaz de Melo, Bonome, Scotelaro, Vanucci, Brandão, Barreto, Scarpelli, Rocco, Pirolli, Campolina, Varela, Andrade, Lapertosa, Trotta, Nappo, Silveira,

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Carabetti, Scalabrini, Diniz, Thibau e muitos outros que fixaram residência no bairro.

As famílias italianas tinham uma relação especial com a Lagoinha naquele início de século. Muito do caráter ítalo-brasileiro de parte da população belo-horizontina deve-se à chegada e fixação dessas primeiras famílias na região. Eram calabreses, bolonheses, napolitanos, sicilianos, corsos, genoveses, veroneses, venezianos, que, como mesmo dizem, eram “tutti buona gente” - todos boa gente - ajudando a construir o espírito alegre e, mais tarde, boêmio, que a Lagoinha viria a ostentar. A Rua Itapecerica era ponto certo de encontro dos italianos no bairro, que se reuniam ali para ler os jornais vindos da pátria. Ainda na mesma rua ficava o bazar do velho Ugo, que comercializava tudo quanto era objeto usado. Na porta de sua loja ficava de resguardo uma cadela tão velha quanto ele, nomeada ironicamente de - Suamãe - e que passava as tardes catando pulgas e espanando moscas das feridas. A cada cuspida do velho italiano, Suamãe latia alto, assustando os corajosos frequentadores da loja de bugigangas.

Já o bar de Afonso Trota, na mesma Itapecerica, sempre foi propriedade italiana: começou com a família Vanucci e passou para os Pazzini até ser adquirido pelos Trota. Servia como ponto de reunião dos velhos italianos viciados no jogo dos Três Sete – o Passatella – que colocava em disputa generosas quantidades de cerveja. O ganhador era realmente obrigado a beber sozinho o que ganhasse, sendo inúmeras as ocasiões em que o felizardo levantava-se e ia vomitar toda a cerveja para depois continuar a jogar

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e a beber. Logo na entrada da Pedreira Prado Lopes as várias famílias italianas eram comandadas pelos Colatti, famosos por reunirem os amigos todos os domingos para uma farta macarronada que tinha até lista de espera. Em volta da mesa estavam sempre os Nardi, os Colatti, os Franco, os Ferroni, os Ricchi e os Schiaretti. Tudo regado a muita cerveja pendurada no Bar do Leza, um gigantesco comerciante com aparência de Buda e que viria a ser torcedor renomado do antigo Palestra Itália, hoje Cruzeiro.

Ao longo dessa primeira fase, a Lagoinha promoveu, mesmo que involuntariamente, o fortalecimento de uma rede de sociabilidade e satisfação de seus moradores até então ímpares em relação aos que outros bairros da capital demonstravam. Pertencer ao bairro era motivo de afeto, de ligação com suas raízes, de estar em comunhão com o que a nova capital propunha. Ao mesmo tempo em que o espaço urbano de Belo Horizonte se consolidava, a Lagoinha já representava algo maior que um simples bairro. O caráter popular do bairro ajudou a reforçar a imagem de uma cidade híbrida, que contava com culturas e valores distintos.

Tanto Belo Horizonte quanta a Lagoinha se apoiavam nesse traço identitário para se distinguirem de outras capitais, de outros bairros. Ao final da 1ª Guerra Mundial, a capital mineira já contava com cerca de 54.000 habitantes, sendo a região noroeste, onde se situa a Lagoinha, a mais populosa. Novos desafios e significativas mudanças urbanas e sociais viriam à tona com o progresso emergente da época, afetando a vida na capital bruscamente. O bairro ainda tinha muito o que viver, ver e caminhar…

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mODERNISmO, J.K. E O BAIRRO NO EmBRIÃO DA mETRÓPOLE

Em 1920, Belo Horizonte estimava ter 55.000 habitantes em suas zonas urbanas e rurais. Os reflexos da crise que assolou boa parte do mundo devido à Primeira Guerra eram sentidos na economia do município, que enfrentava um verdadeiro arrocho dos cofres públicos. O dinheiro internacional que permitiu ao poder público dar prosseguimento aos investimentos em infraestrutura urbana virou polpudas promissórias dos empréstimos contraídos nos primeiros anos de capital. A população crescia em ritmo exponencial, algo inesperado pelo planejamento original, que calculara uma população máxima de 200.000 habitantes até metade do século. Pouco mais de vinte anos de capital se passaram e mais de um quarto dessa estimativa já havia sido superada.

Diante desse cenário, a contínua necessidade de investimentos em infraestrutura urbana a longo prazo funcionava também como chamariz para que cada vez mais as indústrias escolhessem a nova capital como local de estabelecimento. O dinheiro trazido e movimentado por essas indústrias seria de suma importância nesses primeiros anos de cidade, pois, como descrito, o cenário econômico do município não era dos mais calmos. Era comum, desde então, indústrias forasteiras optarem por se estabelecerem em Belo Horizonte mediante vantagens recebidas, como a diminuição na carga de impostos a que eram submetidas, tudo para que pudessem chegar e ficar

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de vez, investindo no local. Essas alternativas permitiram que a prefeitura continuasse a arrecadar de alguma forma e, a partir daí, muitas escolas e os primeiros hospitais saíram do papel, atendendo assim uma população cada dia mais diversificada.

Outra opção encontrada pela prefeitura era bastante natural. Com uma vasta porção territorial em mãos, o governo enxergou na comercialização de lotes e seções de terra uma atividade lucrativa e que atendia mais de uma necessidade ao mesmo tempo. Ao comercializar porções de terras em áreas suburbanas, a prefeitura conseguia engordar seu caixa arrecadando sobre um produto natural, ao passo que expandia e populava novas regiões. Para se ter uma ideia, ao final da década de 1920, quase 50 novas subdivisões haviam sido aprovadas, contabilizando mais de 1.100 quarteirões e novos e expressivos 14.900 lotes.

Os espaços recém-populados teoricamente sairiam ganhando, já que passavam agora a serem atendidos por uma prefeitura, que deveria oferecer serviços básicos como iluminação pública, transporte e calçamento das vias. A lógica era simples: mais terra, mais gente, mais mão de obra disponível, mais indústrias e comércio buscando serem atendidos… A prefeitura só não contava com um fenômeno inesperado: as subdivisões dos grandes terrenos não seguiam uma legislação coesa naquela época, permitindo aos proprietários dessas terras a criação de vilas distantes das áreas já urbanizadas. A cidade então se dispersava, ao contrário de se aproximar do Centro

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da capital. Era o preço a ser pago para o aumento do perímetro urbano.

A Lagoinha seguia inserida na mesma lógica. Agora um dos primeiros bairros residenciais a receber numeração nas casas e nomenclatura das ruas, cada vez mais se consolidava como o principal bairro suburbano de Belo Horizonte e via seus limites serem expandidos tanto territorialmente quanto financeiramente. Muitas das famílias operárias que lá já se encontravam fixas puderam comprar seus lotes e investir em outros ali mesmo, As antigas colônias agrícolas eram comercializadas por valores inferiores aos lotes situados nas regiões mais centrais, o que facilitou a vida de inúmeros imigrantes que haviam chegado sem nada ao bairro. O caráter de bairro popular se fortalecia a cada dia. A população de baixa renda via com naturalidade essa desmitificação das áreas urbanas centrais, entendendo que, nas zonas suburbanas como a Lagoinha, seria muito mais exequível o sonho de ter um canto próprio e que fosse compatível com suas possibilidades.

Entretanto, nem tudo caminhava reto. Muitas pessoas que chegavam à capital em busca de trabalho buscavam pouso nas imediações do bairro, devido à sua proximidade com o Centro e as pequenas fábricas. Com sua população crescendo consideravelmente, a Lagoinha passou a abrigar além dos trabalhadores da construção civil, muitas pessoas desempregadas. Esse aumento populacional não seguia em ritmo proporcional ao dos investimentos feitos no bairro, o que passou a gerar novos problemas estruturais. A Lagoinha, bem como outros bairros mais antigos, teria

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que esperar. Um caso curioso foi quando a capital, em outubro de 1920, recebeu o então rei da Bélgica, Alberto I. Com o intuito de passar a melhor das impressões em um canteiro de obras a céu aberto, a cidade passou por um processo de maquiagem acelerado. A Lagoinha assistiu apenas algumas de suas ruas principais consertadas, assim como os imóveis de sua fachada fronteiriça com o Centro pintados em tempo recorde. Melhorias que não atendiam a comunidade do bairro como um todo.

A população se via, então, obrigada a adentrar novos rumos e arregaçar as próprias mangas. Muitos desses novos moradores que chegavam ao bairro, desempregados e sem residência fixa, apostaram na ocupação dos lotes na Pedreira Prado Lopes, região vizinha à Lagoinha. Iniciava-se aí um processo de favelização que perduraria anos e data até os dias de hoje, transformando a Pedreira num dos maiores complexos de favelas no contexto sociocultural de Belo Horizonte.

Entre 1930 e 1940 a população da capital atingiu a marca de 214.000 habitantes. O Modernismo chegara de vez à cidade, podendo ser visto nos traços culturais e arquitetônicos espalhados pelas ruas e novas construções. A era do concreto armado, da cidade industrial e do verticalismo chegava para mudar de vez a cara de Belo Horizonte, que deixava aos poucos de ser estigmatizada apenas pelas funções administrativas do estado para dar os primeiros passos em sua consolidação como o principal polo político, econômico e cultural de Minas Gerais.

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A cidade passava por um vigoroso e natural processo de modernização. As construções de novas avenidas proporcionaram uma maior convergência do centro com a periferia urbanizada. Comércio e indústria também caminhavam adiante em expansão e as primeiras casas bancárias mineiras tornaram-se realidade. Um jovem e ambicioso Juscelino Kubitschek fazia da sua administração progressista a grande responsável pelo salto de desenvolvimento e transformação da cidade naqueles anos. Sob seu comando, diversos estudos e propostas foram elaborados para atender aos problemas causados pelo crescimento pelos quais a capital passara desde a sua inauguração. Era notório que Belo Horizonte começava a viver um clima diferente, a sentir seu primeiro gostinho de cidade importante, de cidade grande.

A evolução urbana e social da Lagoinha seguia seu curso. Cravada estrategicamente no caminho da expansão das regiões leste e noroeste, em especial da Gameleira e da Pampulha, era o grande corredor de passagem para bairros afastados como Santo André, Bonfim, São João Batista, Cachoeirinha e Caiçara. Em 1933 é inaugurado o Aeroporto da Pampulha, com toda a pompa, por ser o primeiro da capital. Estando no caminho da nova rota urbana, a Lagoinha recebeu melhorias nas vias de transporte, como o calçamento da antiga - Estrada Velha da Pampulha - que cortava o bairro e seguia em direção à nova atração da cidade. Emergia aí, aliado ao frenético crescimento da cidade, a pedra fundamental para o início do declínio do bairro nos anos que viriam.

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A questão da mobilidade urbana em Belo Horizonte já era problemática desde seus primórdios e, devido à sua localização, a Lagoinha sofreria bastante com as consequências disso. Pagaria um preço alto por estar tão próxima à zona central da cidade. A região que hoje conhecemos por Pampulha era até então bastante atrasada com relação a outras porções da cidade no quesito urbanização e era vista pela prefeitura com grande potencial turístico e de lazer para a população, carente de tais espaços naquela época. Através da construção do Aeroporto, da barragem e do represamento do Rio Pampulha, na gestão de Otacílio Negrão de Lima, a hoje valorizada região entrou definitivamente no mapa da capital em importância urbana.

Com todo esse progresso em pauta, a Lagoinha testemunhou de perto a abertura de novas avenidas como a Presidente Antônio Carlos e Pedro II, importantes vias de acesso que passaram a integrar o Centro da cidade a vários núcleos populacionais da zona suburbana. Recebeu também o Hospital Público de Pronto Socorro Odilon Behrens em 1941, quando JK seguia realizando sua série de empreendimentos na modernização da capital. Esses novos elementos inseridos no cotidiano do bairro trariam um fluxo maior de pessoas, trânsito e importância geográfica à Lagoinha.

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DO CÓRREGO AO CONCRETO: NASCE O IAPI

a Lagoinha daria então sua guinada definitiva na história da capital. Considerado um bairro velho, com muitos casarões das primeiras décadas do século ainda de pé e funcionando como imóveis e comércio, o bairro convivia com um pouco de dois mundos. Era prezado pela proximidade com o Centro da cidade, mas passara a ser visto com outros olhos pela sociedade belo-horizontina quanto àquilo que mais o caracterizava: ser um bairro do povo, popular. A região central recebia uma gama de melhorias e investimentos públicos em seu aspecto urbano, embasados na concepção de uma cidade moderna, limpa e organizada, palatável aos olhos da burguesia. Já o bairro operário não teria a mesma sorte no quesito infraestrutura e benfeitorias.

Com 40 anos de existência, a Lagoinha encontrava-se atrasada estruturalmente, afastada dos investimentos e de fatos novos. Seu oásis continuaria sendo o caráter multicultural, com as famílias de imigrantes cada vez mais assentadas por lá, além dos migrantes que haviam construído patrimônio e não pretendiam sair dali. Prova disso era o carinhoso apelido de “Cantinho da Itália” que recebia de alguns saudosistas daquela época. Contudo, o buraco era um pouco mais embaixo.

O aspecto popular que agradava outrora a sociedade belo-horizontina era agora visto com doses de repúdio. A capital vivia dias pulsantes com JK no governo. O “Prefeito

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Furacão” não media esforços para colocar em prática toda a sua veia modernista e ambiciosa que culminaria anos depois na construção de Brasília. Sua administração era marcada pelas políticas urbanas expansionistas, traduzindo na arquitetura moderna o tal apreço pelo futuro, algo que romperia com os padrões do passado ainda presentes na capital, pra que essa fosse vista como exemplo do amanhã. Eram os primeiros acenos de metrópole que Belo Horizonte daria.

A sociedade da capital vibrava como nunca com os ventos do modernismo, com os cinemas do Centro e as novas universidades que traziam intelectuais de todo canto do país, como Olavo Bilac, Antônio Vilas Boas e Carlos Drummond de Andrade. Definitivamente respirava-se uma nova época, pautada no desenvolvimento urbano e cultural. Tudo aquilo visto como antigo, popularesco, passara então a ser tratado com indiferença, perdera seu valor. A Lagoinha já carregava o fardo da fama e a realidade de ser vista como um bairro degradado, da boemia, do proletariado, da marginalidade e prostituição. Passou a ser isolado, destratado, sinônimo de “povão”. A proximidade com o Cemitério do Bonfim também dava uma força no já instaurado preconceito ao bairro.

Entretanto, o fator que reforçaria todo esse perfil do local estava por vir.

A questão habitacional em Belo Horizonte começava a preocupar. Ao final da década de 1930 a população da capital batia a expressiva marca de 214.000 habitantes,

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bem ou mal alocados dentro do espaço urbano. Em suma, a grande maioria dessa população já se caracterizava por ser de trabalhadores e operários que migravam de outros lugares em busca de emprego nas novas indústrias que se instalavam na capital. Pegando carona num momento de industrialização a nível nacional e municipal sem precedentes, Belo Horizonte passaria, em apenas uma década, de 480 estabelecimentos industriais em 1936 para 1.228 em 1946, caracterizando um crescimento real de 154% dos estabelecimentos e 710% do valor da produção, como informava o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (IAPI).

Tal crescimento vertiginoso já era motivo de preocupação nos gabinetes da prefeitura, agora com um problema ardiloso em mãos: como acomodar e prover condições básicas de moradia para essa porção do operariado? A concessão de lotes já se provara um método arriscado, uma vez que, como visto anteriormente, acabava por criar bolsões periféricos muito afastados da cidade, dificultando todo um investimento de infraestrutura e afins, sem falar nas brechas de legislação que acabavam sempre por favorecer alguém em detrimento de outros.

Edições do jornal O estado de Minas à época relatavam um Juscelino que se questionava. Segundo a cobertura feita naquele período, ele entendia como poucos que era impraticável investir tanto dinheiro na construção de um polo turístico como a Pampulha, destinado à burguesia da capital, sem prover iniciativa alguma de caráter social

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para um problema emergente. Era preciso agir e pensar em alternativas que fossem viáveis aos cofres públicos.

Em uma visita do então presidente Getúlio Vargas à capital no final de 1938, nasce um plano que já vinha sendo colocado em prática em outros pontos do país. Ambos os políticos acreditavam que garimpar novas soluções para a questão habitacional a nível municipal e nacional seria uma saída para o quadro, além de continuar com a toada dos passos modernistas que tanto a nação e quanto a cidade viviam. Os conceitos de racionalização dos métodos de construção e otimização do espaço urbano foram abraçados como pilares do inédito projeto de grandes unidades habitacionais.

A tacada seria inovadora, ambiciosa. Apostar em moradias populares parecia algo natural, mas não seria tão simples. Investimentos precisariam ser feitos e acordos firmados. Pretendia-se gastar pouco para resolver uma questão aguda. Em 29 de novembro de 1940, o contrato assinado por Prefeitura Municipal, Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (IAPI) e Companhia Auxiliar de Serviços de Administração (CASA) oficializava no papel o nascimento do - Conjunto de Habitações Populares Iapi - .

Projetado pelos engenheiros Plínio Catanhede, White Lírio da Silva, José Barreto de Andrade e Antônio Neves, o empreendimento seguiria uma divisão de responsabilidades. À prefeitura cabia a cessão de um terreno com aproximados 70.000m², capaz de abrigar o número mínimo de 3.000

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pessoas entre operários, imigrantes e população de baixa renda, além da urbanização da área, com o provimento de redes e serviços de esgoto, água, transporte, telefonia e eletricidade. Ao IAPI coube o financiamento e fiscalização de toda a obra, enquanto a CASA herdou o anteprojeto e, o projeto executivo, bem como sua execução e fiscalização. O local escolhido foi a Lagoinha, aos pés da Pedreira Prado Lopes – que já manifestava seu processo de favelização – e delimitado pelas avenidas Pedro I, José Bonifácio, Antônio Carlos e as ruas Araribá e José Bonifácio. Arrojado, o projeto contava com algumas áreas verdes, uma praça de lazer dentro do conjunto e até uma igreja, oferecendo à futura população algo até ali incomum para suas condições.

Os nove prédios formavam 11 blocos verticais em formato de U, que totalizavam 928 apartamentos, sendo alguns já mobiliados, e cerca de dez lojas que atenderiam a população do conjunto e do bairro com produtos básicos e alimentos. A idealização e construção do IAPI, enfim, tornava-se um capítulo relevante na solução dos problemas de habitação social na cidade.

O concreto começou a subir na Lagoinha em 1944, e, mesmo incompleto, o conjunto foi inaugurado oficialmente por duas vezes, em 1º de maio nos anos de 1947 e 1948. Inúmeros atrasos no andamento das obras postergaram a entrega final do conjunto, fazendo com que os primeiros moradores só entrassem em suas casas em 1951. Sua inauguração repercutiu no país como o modelo concreto de solução dos problemas habitacionais nos grandes centros urbanos, além de somar ao currículo de

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JK mais uma intervenção urbana modernista, traço que o acompanharia até sua a morte, em 1976.

Por fim, o IAPI abria suas portas para receber toda uma gama estratificada da população proletária de Belo Horizonte, mantendo viva, assim, as raízes de bairro popular que já caracterizavam a Lagoinha. Despercebido propositalmente – ou não – aos olhos da época, é curioso notar como toda a ideologia progressista, de cunho social, “moderno” e urbano que embasava a construção do Conjunto IAPI serviria também como subterfúgio para as desigualdades sociais já notórias da jovem capital mineira.

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ENFIm, mETRÓPOLE! A BOêmIA AO ESTILA LAGOINHA

A partir da década de 1950, Belo Horizonte entrava de vez em sua fase de metropolização. Os mais de 350.000 habitantes da cidade viviam um processo de adensamento da zona urbana central, fenômeno incentivado pela verticalização feroz que marcaria época na infraestrutura da capital. As primeiras edificações passariam a ser demolidas para a construção de edifícios residenciais, algo visto com insatisfação por partes da sociedade belo-horizontina, já acostumada com o centro urbano servindo exclusivamente para comércio e serviços. Contudo, essa mescla assentava-se legalmente no Regulamento de Construções elaborado pelo poder municipal anos antes, que permitia a verticalização apenas na área central da cidade. Estava inaugurada, então, a especulação imobiliária na capital, especialmente nessa determinada área. A construção de edifícios residenciais, como a do Conjunto Archangelo Maletta, em 1957, e a do Conjunto JK, tornou-se o investimento do momento. Toda essa verticalização alteraria de vez a paisagem da região central da capital, traço notado até os dias atuais.

Na Lagoinha, a vida também seguia vibrante. Com o IAPI entregue e sua ocupação acontecendo ao longo dos anos, o bairro vivia novamente dias de ebulição. O hibridismo dos seus traços de ocupação permanecia vivo e cada vez mais acentuado com a chegada dos novos moradores, tanto

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ao novo conjunto quanto à Pedreira Prado Lopes, que também já se manifestava como importante bolsão urbano da cidade. Gente diferente, que trazia culturas e valores igualmente distintos, mantinha intacta a característica do bairro de aglutinar todo tipo de manifestação social àquela época.

A vida da Lagoinha experimentava anos fecundos em todos os aspectos, consolidando o bairro como o centro da boêmia na capital. A multiplicação dos bares, restaurantes e pensões contribuía para que a vida noturna da Lagoinha se destacasse, o que lhe rendia a alcunha de “Lapa Mineira”, em alusão ao famoso bairro da boemia carioca. A Praça Vaz de Melo era parada obrigatória para todos que desciam até a Lagoinha em busca da intensa vida noturna que o bairro oferecia. Hoje situada logo abaixo do Viaduto Leste da Lagoinha, a praça consistia em um quarteirão inteiro entre a ferrovia e a Avenida Antônio Carlos e funcionava como ponto de partida e chegada ao bairro, uma vez que era a única parada de ônibus para todos os bairros e vilas que separavam a Pampulha do Centro da cidade. Para muitos, era simplesmente “Praça da Lagoinha”, já que o nome oficial soava muito formal para os ares ali respirados.

Os cabarés e redutos do samba atraíam todo tipo de gente ao bairro. Artistas decadentes e novatos dividiam ali os mesmos espaços em busca do público, fiel à boêmia que pedia passagem. A sede do Fluminense – um dos primeiros clubes sociais de Belo Horizonte - dominava a sociedade da Lagoinha. Ao redor do clube, à direita da Praça, a Lagoinha oferecia à malandragem as ruas Mauá, Paquequer e Bonfim,

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o reduto da prostituição no bairro. Havia o Automar, com suas mulheres caras; ao lado estava o 245, mais adiante o 433, depois o 590 e o 600: as “casas de pasto”, como a malandragem chamava os prostíbulos naquela época. Os malandros, trajando garbosos paletós de linho branco, calças de casimira, sapatos brilhosos e camisas abertas no peito, carregavam suntuosas correntes de ouro e afiavam suas navalhas para qualquer eventualidade. Não para roubar ou agredir gratuitamente, mas sim para defender território ou as prostitutas que exploravam.

Eram tempos de paz, mas com casos de violência. Presa entre a Pedreira, o Buraco Quente, o Concórdia e o Bonfim, entre outros bairros, a Lagoinha tinha seus momentos de local litigioso. Turmas da região e bairros adjacentes queriam deter algum comando no pedaço, sendo corriqueiras as brigas e invasões. Representando a Lagoinha nas páginas policiais daquela época, Paulo Alemão, Cabecinha e Nêga Duduca compunham a turma que começava a se formar no IAPI a partir de 1961 almejando o controle do bairro. Eram nomes conhecidos do folclore belo-horizontino.

Os botecos eram incontáveis. Ainda na Praça Vaz de Melo ficava o do Fausto, com sua freguesia quase toda composta de italianos que não arredavam pé. Curiosamente, naquele tempo cada boteco tinha a sua freguesia fixa. O bar do Coelho ficava do lado direito de quem vai para a Pampulha, bem no coração da praça. Quando de passagem pela capital, cantores famosos como Nelson Gonçalves eram devidamente servidos no Coelho que, por 500 réis,

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oferecia um PF já famoso na cidade. Quem ousasse não comer tudo era xingado pessoalmente pelo proprietário.

Pela madrugada as opções seguiam atendendo a todos os gostos: o Angu do Jesuíno, a sobremesa do Seu João do Creme, os salgados do Bar do Didi e o cardápio rápido do Marito, uma espécie local de fast-food, formavam a infinidade de lugares na Lagoinha a serem desbravados para encher a pança e se embebedar. Cena cotidiana era ver alguém caído na calçada ou vomitando no meio-fio, misturado ao cheiro ardido de amoníaco que recendia do chão.

Ao topo da Padaria nossa ficava a sede do Terrestre, o Leão da Lagoinha. Sempre fardando sua camisa vermelho sangue, o clube de futebol do bairro contava com uma torcida vibrante quando jogava no campo do Pitangui. Cebola, Blagê, Ireno; Pedrinho, Jonas e Sinval; Neném, Nelson, Lima, Timóteo e Tonho; saber de cor essa escalação era motivo de orgulho no bairro. Os cinemas São Geraldo e Paissandu – onde hoje é erguido o Restaurante Popular de BH – também marcaram época na Lagoinha, trazendo ao bairro os filmes do momento, além de proporcionar um ponto de encontro para os enamorados passarem as tardes e noites em clima de romance.

Toda essa tradição de bairro boêmio permaneceu como marca de representação no imaginário coletivo da capital. A Lagoinha viveu intensamente seus anos de cidade dentro de uma outra cidade, tamanho foi seu auge na vida social belo-horizontina. A derrocada começaria de forma

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um tanto cruel. Movida pelas necessidades urbanas de uma metrópole em expansão, a demolição da Praça Vaz de Melo, em 1981, enterraria na memória da cidade uma Lagoinha pulsante, que respirava por si mesma, para promover a implantação do metrô de superfície – o complexo viário que ligaria os extremos da capital e a expansão da Av. Antônio Carlos. Todo o bairro seria modificado diante das diversas demolições planejadas. Golpeado bem em seu coração, o bairro entraria em processo de franca decadência e deterioramento que perdura até hoje. A Lagoinha nunca mais seria a mesma.

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Um COmPLExO INImIGO

As intervenções urbanas de grande porte começaram na Lagoinha com a construção do Terminal Rodoviário e o túnel Presidente Tancredo Neves, na década de 1970. Anos depois, as demolições de outros espaços do bairro para a construção do – Complexo Viário da Lagoinha – marcaram de vez a sorte do bairro. O conjunto de vias, elevados, viadutos e túnel foi construído na faixa sul da região da Lagoinha no espaço anteriormente ocupado pela Praça Vaz de Melo. Foi idealizado em quatro viadutos que interligariam o Centro e as regiões Leste e Oeste às Avenidas Cristiano Machado, Antônio Carlos e Pedro II.

Ao longo dos anos, o rápido crescimento da cidade fez com que o sistema viário no Complexo necessitasse cada vez mais de intervenções. Em busca de soluções que pudessem otimizar o trânsito na região, outras inúmeras intervenções foram implementadas, como a construção de uma trincheira na altura da Praça do Peixe, outro viaduto de ligação entre as Avenidas Pedro II, Cristiano Machado e Antônio Carlos, além do alargamento das vias da última. Foi e ainda é assim, sob constantes ameaças das intervenções viárias e do distanciamento implicado por elas, que a Lagoinha passou as últimas décadas. Diante de tanto impacto, o bairro sofreu um processo lento e gradativo de esvaziamento, sendo sua deterioração visível e impactante. Para quem o conheceu em outras épocas,

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hoje o bairro vive de um passado no qual não se orgulha tanto, assim como do seu presente. A Lagoinha da boemia ainda se faz presente na memória de quem a viveu, mas, para tantos outros, ela foi sepultado lá atrás.

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LAGOINHA HOJE: CRACOLÂNDIA, mEmÓRIA E FUTURO

Atualmente, a Lagoinha padece. Os anos de intensas transformações em seus tecidos urbano e social desencadearam o processo de degradação que o bairro evidencia hoje. Suas construções, muitas tombadas como patrimônio da cidade, sofrem com a ação do tempo e o abandono. Outras permanecem fechadas, sem qualquer função social aparente. O mau estado de preservação de inúmeras construções e ruas evidencia a descaracterização que o bairro vem sofrendo desde a segunda metade do século passado. O IAPI permanece ali, mas entre as revitalizações e o intenso tráfego à sua porta também sofre com o desgaste. Todo esse cenário de empobrecimento remete à ideia de marginalidade e abandono com a qual o bairro passou a ser estigmatizado. Entre aquilo que ainda pulsa, nota-se um grande número de ferros-velhos nas redondezas, o que em tese contribui ainda mais à já empobrecida imagem que o local adquiriu.

Muitos moradores se queixam da violência que assola a região. Historicamente próxima às favelas Pedreira Prado Lopes e Vila Senhor dos Passos – antiga Buraco Quente – a Lagoinha se vê às voltas com repetidos casos de criminalidade, corroborados pelo discurso arraigado na mídia que reforça o cenário de abandono em que o bairro se encontra. Tais favelas compõem uma importante rota do tráfico de drogas na capital, expondo o bairro a

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conflitos entre gangues e até mesmo a casos de violência e confrontamento policial. O local convive também com um elevado número de pessoas em situação de rua, aspecto citado por muitos moradores como o grande responsável pela chancela de bairro tido como marginalizado pelo restante da cidade. E é justamente nesse cenário, entre a proximidade com o tráfico de drogas oriundo das favelas a seu redor e o aumento vertiginoso de moradores de rua em suas vias, que a Lagoinha enfrenta hoje as maiores pedras em seu caminho: as de crack.

A pecha de – Cracolândia de Belo Horizonte – infelizmente não foi atribuída gratuitamente ao bairro. Hoje, muito do cotidiano é ditado pelo intenso movimento de pessoas que fazem de todo o seu espaço o principal ponto de tráfico e consumo de crack em toda a capital. Ali o movimento é frenético a qualquer hora do dia, faça sol ou chuva; a Cracolândia na Lagoinha funciona nas 24 horas diárias. Concentrados principalmente nas ruas Itapecerica, José Bonifácio, Araribá, Popular e ao redor – e até mesmo dentro – do IAPI, os usuários de crack tomam conta das calçadas, reviram o lixo e constroem barracos precários nas imediações, dispondo de qualquer material encontrado ali mesmo. Outros espaços como os casarões abandonados, os lotes de casas demolidas, praças, construções e áreas debaixo dos viadutos também servem como cenário para que as práticas do tráfico e consumo da droga ocorram a céu aberto, livremente, sem qualquer intervenção do poder público.

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É diante desse quadro que a Lagoinha sobrevive hoje. Caracterizado no imaginário da cidade como o bairro da boemia, dos operários, do IAPI, das obras para o complexo viário, ele assiste de perto ao enfoque dado pela opinião pública à sociedade belo-horizontina: o da criminalidade, do tráfico de drogas, da Cracolândia.

É pertinente e ao mesmo tempo incômodo refletir sobre a situação do bairro atualmente. Ele detém o poder de transitar na contraposição de um passado célebre – ligado ao aspecto popular e mesmo à má fama – ao quadro atual: um bairro marcado pela degradação urbana e social de seu espaço e memória, seja pela ação do tempo ou pelos reflexos dos problemas que a sociedade brasileira vive como um todo, como o fenômeno social das cracolândias. Quem perde com isso quase que exclusivamente é a Lagoinha.

Assim como foi pensada, à época de sua ocupação, para abranger toda uma população empobrecida, a mácula se perpetua, agora com retoques contemporâneos. Saíram de cena a boemia e a prostituição, dando lugar à criminalidade e outras chagas sociais. É importante pontuar que os próprios moradores da Lagoinha compartilham dessa noção de que o estigma permanece e ganha ares de não ter mais reparo. Porém, eles alimentam o louvável sentimento de pertencimento e de afetividade com o bairro em que cresceram ou com o qual detêm laços de alguma forma, tornando-se testemunhas oculares de tudo que ele se tornou.

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Hoje os problemas da Lagoinha são outros. Seus questionamentos também. Eles desafiam a sociedade belo-horizontina a responder a questões aflitivas. Quais são as soluções? O que fazer para a Lagoinha? Como agir? Qual o futuro do bairro, de seus moradores e sua memória? E a situação atual? Tão velha quanto a própria cidade à qual pertence, a impressão que fica é de que a Lagoinha foi sendo engolida, remetida a um canto cada vez menor, sendo ceifada lentamente daquilo que sempre teve e ainda tem, mesmo que ocultada: vida própria.

Em meio a um passado histórico e a um presente de caos instaurado pelo surgimento de uma cracolândia, tais vidas merecem alguma forma de luz, de espaço, de se fazerem ouvidas. Esta produção tentará, humildemente, oferecer um pouco disso.

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CAPÍTULO 2

ENTRANDO SEm BATER

RASPA DA CANELA DO DIABO

É novato de Cracolândia aquele que não conhece Pretão.

No topo dos seus quase dois metros de altura, é um rosto tão peculiar pra aqueles que frequentam o lugar quanto o próprio vai e vem de viciados entre as vielas. Seu inseparável carrinho de supermercado onde leva “tudo que possui” é metáfora móbil de uma vida marcada pelas constantes trocas de cenários que seu dono já viveu. Minas, Bahia, Goiás…. Pretão é transeunte da própria existência, sempre com os pés descalços, já que sapatos número 47 são mais difíceis de achar de graça que “pedra no chão”. Sua presença física é marcante. Se morasse na Savassi ou em outro local menos caótico, certamente diriam que não sai de uma dessas academias para manter a forma. Como mora nas ruas da capital, é só mais um negão alto, forte, pobre, sujo, que poderia ser segurança em qualquer porta de boate devido ao tamanho, mas ganha mesmo a vida catando reciclados e revendendo-os.

Pretão é Valdecir no R.G., soteropolitano de nascença e com um sotaque inconfundível. A voz grave de radialista da madrugada exige certa adaptação aos ouvidos desacostumados para captar e não perder nada de sua fala.

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Só de Cracolândia são sete anos, mas de crack já inteiram dez. Apesar de não ter pouso fixo, ali se sente em casa. Íntimo da maioria, em especial das mulheres, é apontado como um vigilante delas e por elas. Não que despenda seu tempo exclusivamente à vigilância do sexo oposto, mas claramente parece gostar de manter a ordem e cultivar o respeito pelas meninas por ali, seja numa prosa mais longa ou na breve checagem do “tá tudo bem aí, fia?”. Deve lhe agradar a alcunha de sentinela. Pequenos mimos fazem parte do pacto implícito estabelecido entre ele e elas, sendo corriqueiro ver algumas pegando quantidade maior de pão ou sopa e deixando num canto separado, à espera do dono que não tem hora para aparecer na madrugada.

Quando aparece, além do vidro de pimenta que carrega para incrementar as refeições que consegue, traz também uma história nova. Curioso é a reticência em contar a própria história. “Pra quê? Sou como qualquer um desses morto-vivo que cê tá vendo largado aí. Tenho nada demais pra contar não, sou ninguém de importante.”. Já nas alheias não vê problema. Relata com tristeza aos colegas de vício ainda desinformados que a – Doidinha – tinha sido assassinada mais cedo na Rua Itapecerica, uns 100 metros do local onde estavam. Algumas pessoas em volta lamentam a notícia, enquanto outras já emendam categoricamente que o destino da garota conhecida deles seria esse mesmo. O tráfico costuma cobrar caro pelas dívidas. Pretão traz detalhes do fato com apuração invejável, mas não teve coragem de ver a cena. “Sou macho, mas tem umas covardias que num aguento nem ver”. Esfaqueada, Doidinha ainda fora

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decapitada e teve a cabeça colocada ao lado do corpo, dentro do próprio carrinho de recicláveis.

Nesse dia de vigília ele chegou tarde. Perdeu uma das suas, mais uma. Antes de seguir caminho e ver as outras gurias, dá o motivo pelo qual não larga o crack.

“Fala pra todo mundo aí no tal do seu livro que isso aqui ó – apontando uma pedra de crack – é a raspa da canela do diabo. O dêmo não deixa.”

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SORvETE SABOR C…

A sorveteria de Dona Adélia é quase um oásis num dia de sol escaldante. A temperatura beira a casa dos 31° e a quinta subida da Rua José Bonifácio tornou-se uma atividade física e tanto. É um puxadinho modesto, no primeiro andar da casa, feito dentro da antiga garagem do marido que hoje já não tem nem mais carro. Um tapume cuidadosamente pintado de branco foi colocado na lateral direita e pronto, estava feita a divisória. Tudo bastante simples. Três mesinhas de plástico, poucas cadeiras, balcão de madeira, geladeira, pia e um pequeno freezer. No cardápio, oito sabores de picolés e sorvetes, sendo o de leite condensado o mais sofisticado. Serve açaí também, para deleite de um certo narrador. Nada alcoólico, apenas água e refrigerantes comuns. É dali que ela tira um extra pra completar a renda da casa, estudar a filha e ajudar o marido. Tudo isso bem no meio de uma cracolândia.

Adélia é uma senhora dos olhos verdes, pele branca e cabelos ainda escuros. Sua baixa estatura dá a impressão de ser uma daquelas doninhas interioranas, mas faz questão de ressaltar que “não é tão velha”. Perguntada sobre a idade, sai pela tangente com um riso fácil e da maneira mais clássica: “e vê lá se homem pergunta a idade de uma dama?!”. Vive há muitos anos ali, desde que se casou com o primeiro e único namorado. Dentro da pequena sorveteria, entretanto, ninguém além dela. Com o sol que fazia, era de se esperar ao menos um movimento maior. Afinal, quem não curte sorvete num dia tórrido, boa gente não é.

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É que aquilo ali já foi melhor. Hoje, o pouco que entra já vira muito. Cravado no meio da Cracolândia, o estabelecimento de Dona Adélia padece do mesmo mal que todos os outros comércios e casas ali. A localização e população indesejadas fazem com que muito do movimento comercial migre para outras áreas próximas. “Os clientes se incomodam de ter que passar no meio dos craqueiros pra vir aqui. e quem não iria? infelizmente eu não tenho como levar a sorveteria pra outro canto, do contrário eu faria. Minha clientela é um ou outro amigo, moradores que já tão acostumados a esse inferno aí na porta que você tá vendo”. Ela dá de frente para o muro traseiro do IAPI, local de fluxo intenso de usuários 24 horas por dia. Do balcão assistimos a um início de confusão entre duas mulheres, que por algum motivo, certamente envolvendo pedra, começavam a puxar os cabelos uma da outra. “É todo dia isso aí. Tem dia que é pior, que eles rolam rua abaixo. em outros ficam mais calmos, fumam e escornam por aí mesmo, sem incomodar os moradores”.

Com sabor de nostalgia, Dona Adélia recorda tempos em que aquilo ali era diferente. A rua era mais tranquila, os usuários não haviam tomado conta ainda. Criou o primeiro filho entre aquelas calçadas, enquanto ela e o marido construíam a casa aos poucos. “não eram tempos mais fáceis. Mas certamente, menos loucos. Antigamente a gente saía e voltava pra casa a noite tranquilamente, mesmo morando nos pés da Pedreira. Hoje não. eu não tenho coragem de botar o pé pra fora de casa sozinha quando cai a noite. Meu marido arrisca, diz que com ele não mexem. Me preocupo mesmo é com a menina, que ainda estuda e volta tarde.”

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À medida que o crack foi se espalhando pela capital e a distribuição da Pedreira retomando território, tudo mudou. A Cracolândia tomou conta, expandiu-se, fincou raízes às portas da casa de Dona Adélia. Contudo, nunca fora incomodada mais gravemente. A todo momento algum usuário entra e pede pra que ela faça o favor de encher garrafas d´água. Alguns já são velhos de casa, ela nem se importa. Aliás, seu estabelecimento é um dos poucos, pra não dizer o único, que ainda oferece água para eles. Não que ela não saiba dizer não. “Veja, eu tenho um trabalho danado que é ficarem me chamando pra encher garrafinha. Os botecos aí botam eles pra correr. eu nem tanto. Se vem algum muito louco, causando, eu boto pra fora. Mas normalmente eu cedo. Apesar de não concordar com a vida que eles levam, eu tenho pena. Pena de pensar na mãe, na família deles. Pena deles mesmos, que não enxergam o inferno que entraram sem volta. e como se nega água pra alguém nessa vida?!”.

Testemunha ocular do organismo vivo que é a Cracolândia, Adélia já não se surpreende com mais nada. São tantos os casos que fica difícil para ela escolher o mais impactante. Mas sabe que não gosta dos que envolvem roubo. Na Cracolândia é assim: não se rouba lá dentro. Para isso, existe o mundo lá fora. As regras são implícitas e essa é uma das principais para se sobreviver e conviver normalmente. Roubar ou incomodar morador então, nem pensar. Essa vem lá de cima do morro, do tráfico. Quem a viola geralmente não volta pra contar qual foi a punição. Mesmo assim, Adélia já viu os próprios usuários se roubando, fossem cachimbos, pertences ou tretas de pedra mesmo. “eles resolvem entre si. Mas quando fica mais

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problemático os meninos que trabalham aí botam uma moral. É que eles ficam tão alheios a tudo que perdem a noção. É triste, não gosto de ver gente apanhando”.

Mesmo com os vizinhos indesejados à sua porta, Dona Adélia diz que é feliz ali. Sente-se sob uma redoma de vidro que a isola de tudo que rola lá fora, mas que não a impede de ver e vivenciar uma cracolândia. É uma ilha serena no meio de um mar em constante tormenta. Não pretende se mudar dali. “Daqui só pro caixão. Levantei minha casinha com muito sacrifício, não abriria mão dela só porque o inferno se mudou pra cá. Dizer que gosto dessa realidade seria mentira, mas eles escolheram o caminho das pedras deles, então tão piores que eu. eu escolhi o meu que é ficar. no mundo tem espaço pra todos”.

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ADÍLSON TEm FOmE DE qUê?

“Graças a Deus, essas pedras de hoje pelo menos deixa bater a fome. Antigamente, era os dias de estômago no liso”.

Se existe alguma vantagem que o vício traz hoje, para um Adílson com 14 anos de pedra, é que, pelo menos, ele voltou a sentir fome. Aos 31 anos de idade, ele tem certeza que essa é uma daquelas pequenas vitórias que alguns usuários de crack obtêm em meio a tanta coisa negativa que os cercam ali. Sentir fome é algo incomum pras pessoas que abusam do vício. Na Cracolândia, no auge da noia, toma contornos de dom, sendo pouquíssimos ali os corpos agraciados com o tal. O efeito do crack no organismo do usuário inibe o apetite ao longo do tempo, o que faz com que adquira o conhecido aspecto físico esquelético devido à falta de nutrientes e alimentação, mesmo que mínima.

Adílson se sente privilegiado. Afinal, mesmo com os 14 anos de vício, hoje é capaz de fumar o dia todo e mesmo assim sentir fome. Motivo de orgulho, sabe que nem sempre foi assim. Costumava passar uma semana inteira vivendo de água, pedra e isqueiro, sem saber descrever como se aguentava todo dia diante da fraqueza física. Na noite fria de abril, o copinho de sopa dividindo espaço nas mãos com um cachimbo ainda quente é sinônimo literal de sobrevivência naquele lugar.

Conversar com Adílson é uma experiência interessante. Articulado, fala a língua da rua e tem uma objetividade em

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seu discurso que impressiona. Perguntou, respondeu. Não tem vergonha do vício, das coisas que faz pra mantê-lo, muito menos de fingir o que não é. “Sou viciado mesmo. Gosto de fumar pedra, sei o mal que essa merda faz. Mas é minha sina e aceito de bom grado. não dou trabalho pra ninguém aqui, faço minha atividade sozinho e é assim que vai ser sempre”. Funciona como um mantra para ele essa coisa de ser independente. Tanto que se orgulha de fabricar os próprios cachimbos que utiliza, raramente compra de outros usuários. Pelo contrário, diz que tira um troco vendendo os que produz ali na Cracolândia ou troca por mais pedra. Pacientemente explica como é a produção, que, segundo ele, precisa acontecer quando não está fumando. Dessa forma acredita ser mais produtivo e criativo, além de não tremer tanto. Exibe um curioso modelo feito com peças internas de um computador encontrado no lixo. Tem as iniciais A.S incrustadas na lateral direita indicando posse. É seu cachimbo favorito. “não vendo, nem troco. esse aqui foi meu primeiro na Cracolândia. É como se fosse da família”.

Uma quinta-feira intensa para ele. Arredonda que já vai para sua lasca de pedra número 20 no dia. Nas suas contas, isso dá de 15 a 20 gramas de crack por dia, número bastante alto, cartel digno dos usuários mais pesados. Parar? Sem chance. “Que nada. Ainda tem corre ali no Centro pra fazer, sempre tem uns estudantes voltando pra casa naquelas ruas do baixo Centro. não curto roubar não, mas fazer o quê? Tem que continuar na atividade, parceiro...”.

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Logo que termina a sopa é interpelado por Neguinho, parceiro de Cracolândia. O rapaz chega apressado, já tomou sua sopa faz uns minutos e parece irritado com Adílson perdendo tempo com a prosa. “Cês vão casar ou essa resenha não termina não? Agiliza aí, Adílson. Porra!”. Juntos se ajudam, compartilham pedras, funcionam como sentinela um do outro naquilo ali. As histórias vivenciadas juntos devem ser inumeráveis, mas terão de esperar um próximo encontro. Adílson dá uma gargalhada animada, se despede com um aperto de mão firme e pede que ore por ele.

Posso incluir os estudantes do baixo Centro na prece também?

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O PEDREIRO qUE NÃO SABE RECONSTRUIR…

Cercada por ironias. É assim a lida diária na cracolândia.

Como alguém acostumado a criar, reconstruir e levantar coisas do absoluto nada se veria tão incapaz de fazer o mesmo com a própria vida?

Laudinei tem a resposta na palma da mão esquerda. Na da direita, o cachimbo.

Aos 29 anos recém-completados, o mestre de obras de Coronel Fabriciano perambula pela Cracolândia com seu corpo magrelo quase como um fantasma. Ninguém o vê ali em seu canto debaixo das escadas que levam à Estação Lagoinha, em meio ao emaranhado do lixo e das vidas desconexas umas das outras, ao mesmo tempo em que ligadas pela pedra em comum. Laudinei é só mais um. Loiro, rosto afinado, chinelo de dedo, bermuda e camisa já puídas. Naquela quinta-feira de março ele entrou na fila da sopa pedindo um agasalho para cortar o frio da noite chuvosa e recebeu a negativa. Saiu como se nunca tivesse existido.

Mas existe.

Fuma crack desde os 14 anos de idade, quando ainda morava no interior do estado. Foi apresentado à droga pelas “más companhias e mente fraca”, mesmo vindo de uma família dita como unida e religiosa. É o caçula entre duas

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irmãs da casa. Ao passo que a vinda para a capital trouxe algumas vitórias pessoais, expandiu o leque para o vício que se iniciara ainda adolescente, intensificando-o nos dez anos que tem de Belo Horizonte.

Ao contrário de muitos ali, Laudinei não está acostumado a morar nas ruas. É peixe novo. Saiu de casa em abril de 2015, nove dias após o nascimento de Bernardo, seu segundo filho, do qual já não tem notícias. A também pequena Maria já completara um ano longe do pai, em Campinas, para onde fora levada pela família da mãe. Mesmo com a alegria da chegada do bebê, viu-se mais uma vez incapaz de largar o crack e optou por sair de casa, “para evitar dar mais trabalho à esposa do que o próprio bebê”.

Testemunhar o sentimento de vergonha das pessoas ao desabafarem é inquietante. Instantaneamente, os então vazios olhos verdes se inundam de lágrimas de uma saudade e do arrependimento que ele diz ter sentido na primeira tragada, ainda em Fabriciano. “Saudade de uma vida simples, saudável e digna”, longe das tormentas que o crack o trouxe. Vive de esmolas e favores, de alpendre em alpendre, semáforo a semáforo. Come quando dá, mas garante que não passa fome, pois “sabe dar uma boa ideia e descolar um troco”. Garante também que nunca roubou, mesmo com a Cracolândia me ensinando que acreditar nesse discurso piamente é ser tolo. Para muitas pessoas ali, roubar é mais degradante que o próprio vício, apesar da necessidade de sustentá-lo. Alguns tentam negar esse hábito, numa tentativa de amenizar a decepção que sentem por estarem como estão.

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Mas não foi sempre assim. Profissionalmente, Laudinei é mestre de obras e pedreiro de acabamento. Brada com orgulho que é dos bons e que seu serviço é de qualidade. Cita uma lanchonete na Savassi que reformou quase sozinho e hoje é ponto movimentado no bairro. Naquela época, ganhava R$ 250,00 por dia e mantinha uma vida funcional; Maria havia chegado, estava há dois anos longe do crack e com o casamento caminhando bem. Juntava dinheiro para o maior sonho da vida: um veículo Citroën. Em mais uma dessas ironias da Cracolândia, o objetivo que deveria ser o ponto de mudança positiva em sua vida tornou-se o da atual derrocada. Com menos de um ano, acidentou-se, perdeu o carro, ganhou enormes dívidas com as prestações. Estourou cartões de crédito, pediu socorro às irmãs, resistiu como pode. Desesperado, acabou fraquejando como tantos outros. Desde então, abraçou o vício hibernado e não largou mais.

Já são três anos fumando uma média de 12 pedras por dia. O roteiro é simples: descola R$ 10,00 logo cedo, sobe a Pedreira e compra o que dá. Por esse valor, adquire uma pedra equivalente ao tamanho de uma unha do polegar. Dessa pedra, vai lascando pequenas outras que serão consumidas ao longo do dia. “Tem dia que fumo três duma vez, pá pum! Alguma coisa pra ocupar a mente. Tem outros que fumo mais devagar pois fico muito depressivo, daí a noia bate errado”. O que sente ao fumar? Já não importa. “nem sei descrever mais, apenas vontade de acender a próxima pedra”.

Nesse ritmo, deve 120 reais aos traficantes da favela, dívidas essas geralmente pagas com sangue ou vida. Garante que

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sobe lá quando quer e não tem medo, mas seus olhos claramente dizem o contrário. O cachimbo volta a estalar sem qualquer discrição. Depois de alimentado, a minúscula lasca que sobrou é a última da noite, “pra fechar o dia de cão”. A resina que raspará do bojo do cachimbo ficará pra manhã que viria.“Preciso começar o dia!”. É tudo muito rápido. Pedra no cachimbo, brasa de cigarro por cima, duas ou três tragadas e pronto. O cheiro de borracha queimada característico do crack sobe rapidamente, assim como seus efeitos. Laudinei dá uma golada violenta na garrafa d’água, permanece imóvel por alguns segundos e volta a conversar, sem se importar com um rato que insistia em rondar seus poucos pertences.

Viagem de mais uma tragada ou da vida? Talvez de ambas. Laudinei faz de tudo pra conseguir sustentar o vício. Se poucos minutos atrás não roubava, agora já o faz, até em condições cinematográficas. “estive numa casa espírita ontem. Vi uma chave de carro largada numa mesa e não resisti, já bolei um plano. Achei o maldito pelo alarme, dirigi uns 20 minutos e o trouxe até a Pedreira. Vendi por 10 g de pedra, o que num dá mais que 200 reais. eu não tava noiado na hora.” Os 10g de crack correspondem a uma pedra de tamanho equivalente ao do dedo indicador. Numa cracolândia, as proporções zombam da realidade. Um carro equivale a 10g ou 200 reais. Míseros seis ou sete centímetros de pedra.

Entretanto, nem tudo é noia. É genuína a saudade que Laudinei sente da esposa e dos filhos. As lágrimas e a fala entristecida podem parecer apenas mais um momento em

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que a onda do crack fala mais alto para alguns, mas não é o caso. Parece sentir vergonha de contar a própria história, pois ela o machuca profundamente.

Laudinei pede ajuda e se diz preparado para largar o crack, mas que não conseguirá sozinho. Sabe lidar com as dificuldades que a dependência impõe, mas “tem a mente fraca” e uma “terrível paixão por recair”. Mas não adianta apenas ser internado; trabalhar e mandar dinheiro para a esposa e os filhos é vital. O problema é que comunidades de recuperação nesses moldes têm suas vagas disputadas, sendo que muitas optam pela inserção no trabalho remunerado somente após um longo tratamento de desintoxicação e evolução considerável do quadro de dependência. Laudinei sabe que seu tempo está se esgotando. Reconstruir a própria vida não parece tão fácil quanto levantar uma bela fachada da famosa lanchonete da Savassi.

Pede um abraço, bem como desculpas pelo choro e desabafo. Agradece. Sobe em direção à Pedreira mais uma vez.

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UmA RAzÃO ESPECIAL

Marcelo chega no local de distribuição da sopa causando. É uma dessas pessoas extrovertidas, que falam de tudo e nada ao mesmo tempo com qualquer um que puxe papo. Era maio e naquele entardecer de terça-feira chegou aos berros. “Colé pessoal! Cheguei e quero sopa quentinha, hein. Capricha aí!”

Não aparenta ter mais do que 30 anos, mas o tempo dá mostras de que vem sendo bruto com ele. Fisicamente forte, o corpanzil negro carrega algumas cicatrizes nos ombros, braços e pernas. Vai saber o que as originou. Seu sorriso banguelo pode chocar num primeiro momento, mas se repete tanto que o costume vem logo e o detalhe vira marca registrada, até mesmo cativante. Cortava um vento frio naquela noite, mas talvez por falta de opção no seu guarda-roupa inexistente, vestia uma regata dessas cavadas, bermuda e chinelão de dedo, com um indefectível boné do Atlético-MG.

Recebida a sopa, vai prum canto prosear com outras pessoas, sempre agitado, mas tudo dentro do normal. Num passe de mágica, quase como prevendo qualquer interação, estica a mão e se apresenta. “Minha graça é Marcelo, parceiro! Qual a sua? Firmão aí? Ó, tô aqui pela sopa, mas considero muito o trabalho de vocês também.”

Explico pra ele que o trabalho ali tá longe de ser meu. Enquanto devoramos um potinho de sopa juntos, conta que mora em um abrigo da cidade, mas que lá as pessoas

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são “filhas da puta” pois roubam seus pertences se não ficar em estado de alerta constante. Numa simpatia incomum para o local, Marcelo conversa com a voz arrastada e meio que embaralhando as palavras, como se todas tivessem que sair da sua boca ao mesmo tempo. Um companheiro que testemunhava a cena rasga o rumo da conversa em meio a gargalhadas: “esse aí tá loucão, nem consegue falar direito! Já fumou tudo que podia e veio matar a larica aqui!”.

Marcelo intervém e conta que gosta apenas de maconha, mas que de vez em quando fuma crack por um motivo bastante especial: “Dou uns pegas só quando quero fazer orgia! Adoro uma putaria, rapá! Tem dias que eu cato umas latinhas prum troco, alugo um quarto de motel no Centro, fumo umas três pedras e levo umas amigas pra lá. Só felicidade a noite inteira, cê tem que ver! e dá-lhe pedra. eu funciono feito máquina com pedra na cabeça. Tem nego que não consegue nem sair do chão, mas eu fico firmão sem problema.”. Gaba-se distribuindo mais uma vez o simpático sorriso banguela.

Verdade ou não, Marcelo é peculiar. Mescla toda a sua extroversão com a fala arrastada, num contraste que faz sua personalidade causar dúvidas de como ela realmente é. Talvez seja justamente essa confusão de traços num homem só, mas ele pouco se importa com isso. É um usuário de crack às avessas: fuma pouco e apenas para fazer sexo, diz ele. Algo até então raro, uma vez que a libido das pessoas decresce consideravelmente enquanto sob o efeito da pedra, segundo estudos médicos acerca do assunto. Quando seria a próxima vez que Marcelo se veria nessa situação? A fala embolada some e de prontidão, já

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se afastando da rodinha, se despede. “Hoje! Vou só terminar essa sopa aqui e tô caindo lá pro Centro. Quero ver essas meninas me segurarem de bucho cheio e pedra na mente….”

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CAPÍTULO 3

COm OS DOIS PÉS LÁ DENTRO: PRAzER, CRACOLÂNDIA...

BEm-vINDO AO INFERNO ONDE A PEDRA NÃO PARA

A primeira cracolândia de Belo Horizonte estende-se por um complexo de vielas localizadas ao longo do bairro Lagoinha e da Pedreira Prado Lopes, locais importantíssimos para a história da capital mineira, como vimos nos capítulos iniciais. Um emaranhado de becos que adentram a favela, escorrem pelos lados do bairro e desembocam por uma faixa considerável da Avenida Antônio Carlos, desde a estaçãa Lagoinha do metrô até a altura do Hospital Belo Horizonte. A boca miúda dá conta de que ela surgiu nos anos 2000, quando o comércio de crack voltou a se intensificar nos arredores da Pedreira. Contudo, relatos de personagens que já frequentaram o local remetem a anos anteriores. Assim, não é seguro precisar com exatidão o seu nascimento.

É impossível mensurar o tamanho exato do território do crack nessa região, mas tem-se a clara noção de que é extenso. Durante toda a apuração de campo deste livro, uma segunda cracolândia já começava a se formar na altura do cruzamento das avenidas Antônio Carlos e Bernardo

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Vasconcelos. Ainda na Lagoinha, algumas ruas são mais movimentadas que outras, pois funcionam como ponto de venda e de consumo da pedra, além do intenso tráfego de carros e pedestres que utilizam as vias para ganhar acesso a algum canto do bairro. Em outros becos, onde a maioria das pessoas passa horas sentadas nas calçadas ou simplesmente dormindo, concentram-se apenas as atividades de consumo. As ruas mais ermas do complexo da Cracolândia abrigam pessoas e seus barracos improvisados com qualquer tipo de material disponível. Nesses locais alguns usuários fixam residência, mesmo que por curtos períodos de tempo. É o que eles chamam ironicamente de “hotel”. Entretanto, é no entorno do Conjunto IAPI que o coração da Cracolândia pulsa. Ali, a pedra de fato não para.

Simbolicamente, a Cracolândia começa na rua Itapecerica, situada na saída da passarela da estação de metrô Lagoinha. Simbolicamente porque, como dito anteriormente, os pontos de consumo de crack acontecem em qualquer canto mais abandonado do Complexo da Lagoinha. Entretanto, a rua margeia a Praça Vaz de Melo e ganha norte ao cortar em direção ao interior do bairro. Por ali a presença de usuários já é comum, mas em números menores. Eles se espalham pelas calçadas ou se abrigam embaixo dos viadutos e da passarela; qualquer canto mais afastado vale. Estudantes de uma universidade próxima utilizam o mesmo espaço para chegarem ao outro lado da Avenida Antônio Carlos. O marco zero da Cracolândia de BH se mistura como uma rua qualquer, com o trânsito de usuários e não usuários acontecendo a qualquer hora do

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dia. A rua também é marcada pela alta concentração de estabelecimentos que compram sucata e material reciclável, o que acaba atraindo um fluxo considerável de gente ao local. O consumo de crack ocorre livremente, sem que as pessoas se sintam intimidadas por isso.

Do outro lado da Antônio Carlos, próximo à universidade, os lotes vagos servem como ponto de encontro e aglomeração para alguns usuários que geralmente optam por ficar do lado menos movimentado da região. Em meio à vegetação alta e aos tapumes das obras da prefeitura eles encontram um lugar calmo para sentar e compartilhar cachimbos. O clima é despretensioso já que, a despeito do frenesi de veículos na avenida, as ruas daquele lado são mais vazias e tranquilas. Quase não há pessoas indo e vindo como na outra margem, seja por evitarem o local ou por qualquer outro motivo. É como se o tempo ali parasse e somente o ritmo do crack ditasse as ações. A partir dali, por toda a extensão de ambas as faixas laterais da avenida até o Mercado da Lagoinha, o que se vê são pessoas espalhadas entre os canteiros, perambulando pelos viadutos ou simplesmente caminhando sem rumo certo. Em comum, a inquietante fissura pela próxima pedra.

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Um CORAÇÃO PULSANDO

Localização: coração da Cracolândia. A Rua José Bonifácio forma esquina com uma das pistas da Antônio Carlos e sobe em direção ao IAPI, circundando o conjunto por toda a sua parte traseira cercada por um muro alto, monocromaticamente cinza, sem vida. São cerca de 300 metros de extensão, sendo também a rua frontal do Hospital Odilon Behrens e porta de acesso à Pedreira Prado Lopes. O cenário é assustador. Indiferentemente do dia ou da hora, homens, mulheres, jovens, velhos, crianças, pretos, brancos, todo o tipo de gente se mistura nas calçadas, entre sacos de lixo a céu aberto, se enfiando entre cada vão dos carros estacionados ou recostados ao longo do muro. Para quem sobe a rua, o lado direito é o lado do consumo, onde os usuários circulam livremente e se acomodam para fumar crack. Do lado esquerdo, as moradias, botecos e mercearias que ainda resistem à desolação. Nesse lado é incomum ver alguém consumindo: lei de cracolândia. Em respeito aos moradores e donos dos imóveis, eles não mexem com o outro lado da rua, apenas em interações normais, ou quando vão atrás do – avião - mais próximo para comprar pedra. O sobe e desce de pessoas é intenso, mas elas não se misturam. Quem é do crack permanece na sua banda; moradores e transeuntes na outra.

Por toda a extensão da Rua José Bonifácio não se encontra barracos improvisados. Nessa área o fluxo exige que

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as calçadas estejam livres para as atividades do crack. Levantar um barraco ali seria sinônimo de se apropriar de um espaço que não é seu, mas de todos os usuários. Alguns até arriscam deixar seus poucos pertences num canto ou adaptar um resto de sofá aqui e ali, mas quase sempre esses são consumidos pela cracolândia de alguma forma. Viram lixo ou até mesmo carvão. Contudo, é comum ver moradores de rua dormindo no local, espalhados nos cantos onde o fluxo estiver mais calmo naquele momento. Alguns se arriscam deitando debaixo dos carros estacionados, abraçados aos seus pertences, evitando que sejam roubados enquanto aproveitam as raras horas de sono de que o crack permite desfrutar. Encostados nos muros, outros tantos formam rodas de fumo de duração variada. Alguns aparentam pertencer a um grupo familiar e passam bons minutos ali, entre uma pipada e outra. Outros se formam repentinamente e assim também se dissolvem: tudo vai depender do quanto de pedra cada um vai colocar na roda.

Quem mora do outro lado assiste a tudo numa espécie de camarote infeliz. Privados da liberdade que tinham em outros tempos, sentem-se obrigadas a conviver com uma realidade que não escolheram, ao contrário, foi-lhes imposta. Bem na porta de suas casas e comércios se deparam com estranhos de toda parte da cidade, alguns com mais de 24 horas no local, outros com anos. É comum ouvi-los dizer o quanto se sentem privados de simples práticas como abrir a porta à noite, ou simplesmente caminhar com segurança ali. Mesmo assim, o discurso

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é quase unânime quando indagados se têm interesse de se mudarem dali: não. Já estão acostumados, nasceram na Lagoinha, não abrem mão daquilo ali. Para quem está de fora é difícil compreender, mas necessário respeitar. É sentimento de pertencimento, difícil de ser explicado. Todos nós sentimos algo semelhante com relação a algum lugar neste mundo. O deles acaba por ser ali, em meio a uma cracolândia. Essa coexistência entre os usuários de droga e os habitantes se dá de forma curiosamente pacífica, apesar das insatisfações existentes. Como dito, um grupo respeita os limites do outro naquele microcontexto e ambos seguem o jogo. Seja qual for o lado da rua a que pertençam, estão mais que calejados com aquilo ali.

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CARA A CARA COm A REALIDADE

Numa cracolândia, as coisas tendem a ser bastante efêmeras. A transitoriedade das histórias, dos personagens e dos episódios dá ao local a conotação singular de um freak show trágico. Tudo ali, se observado cuidadosamente, é passível de linhas e mais linhas de anotações, áudios extensos, descrições profundas. É preciso escolher um recorte. São tantos elementos em um só cenário que os olhos desacostumados se perdem em meio ao fluxo e a tudo o que rola simultaneamente.

Enquanto um grupo fuma num canto, duas mulheres se agridem a ponto de se cortarem, tudo por um pedaço de material que servirá para a confecção do novo cachimbo. Mais adiante, pessoas literalmente rolam entre os sacos de lixo em busca de lascas de crack imaginárias, experienciando o auge da noia. Em outro ponto, um homem desce de um carro desses modelos novos, de roupa social, sapatos limpos e aparência contrastante com a sujeira do local para, sem qualquer cerimônia, dividir um cachimbo com rostos conhecidos por ele que já se encontram na atividade, como se o aguardassem. É impossível focar numa só coisa que acontece ali, variado é o cardápio da degradação humana simultânea. E isso tudo em apenas um dia, porque no seguinte serão novas histórias, novos personagens, novos episódios… O set de filmagem é a vida real e para muitos ali na cracolândia, ser protagonista da própria vida já não é tarefa exequível.

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O perfil de quem frequenta o local não foge muito à triste realidade traçada na pesquisa da Fiocruz que veremos adiante. Em ampla maioria são moradores de rua que fazem do crack o subterfúgio mais barato – e eficiente – que encontram para aplacar a própria miséria humana. O nível de mendicância é alto. Muitas dessas pessoas se alimentam quando algum tipo de doação chega até elas. Quando muito, comem do próprio lixo. As relações estabelecidas ali são perenes. Envoltos num vício que os equaliza, os frequentadores de uma cracolândia constroem as relações entre si baseados na premissa da pedra: estão todos ali pelo mesmo motivo e fim. Isso não quer dizer, contudo, que relações de amizade e colaboração não possam existir pelos cantos do lugar. É comum vê-los compartilhando algum alimento entre os mais chegados, bem como os convidando para o próximo cachimbo ou, por vezes, dividindo um pouco da água que possuem, matando a sede implacável que vem com o crack. Desses pequenos episódios, se formam rodas de prosa, nas quais compartilham histórias, misérias e quase nenhuma perspectiva.

É difícil também estabelecer uma relação constante com aqueles que não estão literalmente envolvidos no crack. Foram inúmeras as vezes em que o contato previamente estabelecido com os moradores fora completamente “esquecido” por eles. O que em um dia era uma fonte de informações valiosas sobre o cotidiano do lugar, no outro era um mero “não me recordo de conversarmos”. Se foi por arrependimento dos relatos, medo ou qualquer

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outro motivo, a resposta nunca me foi conclusiva. Fato é que tudo ali é muito oito ou oitenta em se tratando dos diferentes comportamentos observados. Seja de moradores, trabalhadores, usuários… Não há como julgá-los. Se o ditado diz que “cada cabeça é uma sentença”, para tal julgamento seria necessário entrar no âmago daquelas que compõem o lugar: seus motivos, medos, reclamações, alegrias, planos. Uma quimera.

A impressão, ao conviver a fundo com uma realidade tão desconectada da vigente no dito “mundo real” é a de sempre absorver apenas fragmentos de um todo. Por mais que inúmeras pessoas tenham cedido seu tempo e suas histórias, elas nunca eram completas, pois suas vidas sempre estavam demarcadas pelo antes e depois do crack, seja ele fumado ou simplesmente vivido à sua porta. Esses recortes temporais causados pela pedra jamais poderão simbolizar tudo que as pessoas numa cracolândia são.

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AqUI, O BURACO É mAIS EmBAIxO. E qUENTE.

Bem no topo da Rua José Bonifácio fica a entrada para o “Buraco Quente”. O local é o principal acesso à Pedreira, Prado Lopes bem na esquina com a Rua Araribá que, subindo, dá acesso ao território da Pedreira, enquanto que, descendo, contorna o lado esquerdo do Conjunto IAPI até desembocar na Avenida Antônio Carlos lá embaixo, já de cara com a atual estação de ônibus de mesmo nome. A Rua Araribá é o local mais crítico da cracolândia. Seu diferencial em relação à José Bonifácio é a visibilidade que a rua dá para quem passa pela Antônio Carlos, tornando essa porção da Cracolândia a mais exposta ao restante da cidade. Para quem desce a rua, o lado esquerdo é composto por diversos botecos vazios de fraca iluminação e forte cheiro de fritura, de aspecto depressivo, comungando da sombriedade que o restante do local exala. Algumas pequenas mercearias, farmácia, salões e lojas ainda tentam sobreviver, mas pagam o preço da localização ingrata. Os clientes são escassos, restritos apenas à população do bairro que não se importa em transitar ali.

Do lado direito, o muro do Conjunto IAPI continua servindo de recosto para os usuários. Pela calçada, muitos deles consomem a droga, vendem, dormem, conversam, fazem praticamente de tudo. A quantidade deles ali é, por vezes, maior que na rua de cima. Na Rua Araribá, o cenário é depressivo. Há sujeira por todo canto, entre lixo, sobras de construção, pedaços carcomidos de móveis e

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muito mais. Moradores que simplesmente sobem a rua procuram não cruzar olhares com os diversos pontos de consumo da pedra, demonstrando um nível particular de inserção naquele caos. São pessoas que vivem na região e não possuem outra opção de acesso que não seja a rua mais movimentada da Cracolândia. Dessa forma, não abdicam de caminhar passivamente em meio aos usuários, por vezes levando crianças, compras, seguindo suas vidas normalmente. Apesar da constante impressão de serem observados pelos olheiros, ao menos externamente o medo não transparece nos semblantes e cotidianos das pessoas ali. Já estão acostumadas, naturalmente inseridas, tão arraigadas quanto os próprios usuários no modus operandi da Cracolândia.

Usuários não se retraem por motivo algum. Naquela porção do urbano, o espaço é deles. E quem passa ou olha para lá assim o faz por pura vontade própria. O território é todo tomado pelo crack. Homens e mulheres se acomodam nos espaços disponíveis de calçada e consomem tranquilos o seu ouro bege, experienciando o auge da debilidade física e psicológica que os efeitos da droga proporcionam, fazendo gestos desconexos ou mantendo conversas sem sentido. Outros simplesmente vagam. Feito zumbis, os olhos arregalados temperam um pouco de angústia, noia e perdição, sem foco algum. Alguns, inconscientemente ou não, optam por se entregar por inteiro e acabam pelo chão imundo do local, em meio ao lixo, cachorros de rua e carros. O trânsito, apesar de reduzido em comparação a outros pontos do bairro, não intimida muito as pessoas ali.

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AvIõES SEm ASAS

Por toda a extensão das ruas Araribá, Popular e José Bonifácio é possível testemunhar a presença dos aviões. Essas pessoas contratadas pelo tráfico são encarregadas pelo reabastecimento e comercialização da pedra. Trabalham em turnos variados, assim como os olheiros, estes responsáveis pelo monitoramento, vigilância e sistema de alarme para o tráfico. Qualquer situação ou presença suspeita passa pelos olhares atentos desses caras. Conhecem quem é quem ali como a palma da mão. Não há cracolândia que funcione harmoniosamente sem o intermédio desses dois postos. O avião geralmente começa no ramo quando jovem, instigado pela possibilidade de ascensão rápida e dinheiro fácil. Contudo, alguns entram para o tráfico já adultos, o que, segundo alguns deles corresponde à preferência dos traficantes locais Os adultos lidam melhor com o dinheiro que circula, respeitam mais facilmente a hierarquia que existe dentro de uma rede de tráfico, além da maior discrição com que são capazes de trabalhar. Um autêntico “plano de carreira”.

Os aviões mais velhos concentram-se num boteco logo na entrada do Buraco Quente, enquanto os outros ficam em pontos estratégicos do território. A pessoa que quiser pedra precisa entrar em contato com algum deles. Se é um novato no lugar, é geralmente apresentado aos aviões por um usuário mais calejado à custa de uns tragos futuros. Outros detêm o privilégio de subir até a boca sozinhos.

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Caso contrário, já existe uma relação estritamente comercial entre as partes. Avião e viciado não se misturam: mais uma regra de cracolândia. São raros os casos em que os próprios aviões consomem crack. Há de se lembrar que estão ali a trabalho e somente gozando de muito respeito e complacência dos chefes das bocas que outra substância além da maconha poderá ser consumida em turno de trabalho. Eles também não permitem que se roube nas imediações da favela e da Cracolândia. É mantendo esse tipo de ordem que os negócios fluem e todo o mundo sai contente. Ou, pelo menos, vivo. Eles recebem os pedidos dos usuários, coletam a grana e sobem até as bocas fornecedoras. Em pouco tempo retornam com a quantidade de pedra a ser distribuída. Esse ciclo se repete ostensivamente, 24 horas por dia.

O perfil de um avião na Cracolândia de BH exige indiferença, mas também certo jogo de cintura. Ética do empregador: é proibido demonstrar qualquer tipo de intimidade com os usuários, especialmente os mais pobres. Eles estão ali a todo momento, envolvidos pela droga, fumando de cinco em cinco reais. O lucro com eles é certo, logo, não interessa criar qualquer tipo de vínculo, pois sempre voltarão. Já os outros tipos de compradores exigem um método peculiar.

Surpresa ou não, existem pessoas que sobem à Cracolândia de carro. Não é só o isqueiro do morador de rua que queima pedra na cidade. Se os usuários mais pobres têm o privilégio de praticamente morarem onde a droga brota,

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os mais abastados, ironicamente, precisam deslocar-se do luxo ao lixo para sustentarem o vício. Num dia normal, é comum testemunhar pessoas em carros chegarem até a entrada e, discretamente, iniciarem uma comunicação por gestos com os aviões que a essa altura já se prontificaram. Quando motorizado, somente quem é autorizado ou conhecido na Pedreira Prado Lopes é que pode subir, sem exceção. Como esses são poucos, é aí que entram os aviões. Feito um primeiro contato e averiguação à distância, o motorista acena discretamente quanto quer. Rapidamente, o avião retruca confirmando a quantidade e o valor total com as mãos, numa espécie de mímica já decorada por todos os envolvidos. Dado o sinal positivo do comprador, o avião vai até a boca, busca a pedra e entrega em mãos pela janela do carro, tudo monitorado pelos olheiros espalhados em pontos estratégicos. O crack exige um comércio tácito: simples, direto, objetivo.

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PROPÓSITOS DISTINTOS, CAmINHOS CONvERGENTES

Como uma simbiose, IAPI e Cracolândia se confundem em alguns momentos. Os muros do conjunto, que em tese funcionariam como isolamento natural entre um local e outro, praticamente ganham vida. Todo o coração da Cracolândia é delimitado por eles, que servem de abrigo natural para os usuários consumirem suas pedras e comporem aquele cenário. Os usuários têm o costume de saltá-los, mesmo durante o dia, para fumarem nos barrancos que circundam o interior do conjunto. O local proporciona maior privacidade para o consumo, mesmo que ela, em contrapartida, arrancada dos moradores. Curiosa é a forma com que esses muros atuam, tais quais elementos físicos que convergem duas realidades distintas numa só. São sinônimos práticos de uma droga que invade os muros da sociedade. Servem de metáforas para traduzir uma epidemia social cada vez mais manifestada em nossa sociedade e que recusamos a encarar da forma mais sensata: como caso de saúde pública. Nossos muros, sejam eles sociais, de classe, preconceitos, quaisquer que sejam, já não separam, não resguardam, não distinguem uma realidade que tentamos ocultar. Pelo contrário, eles trazem à tona, elevam, potencializam, permitem o acesso para que vejamos a olhos nus a desolação que aporta com o crack em nossa era.

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Dentro do IAPI os usuários tendem a respeitar um pouco mais o espaço comum. Mesmo que o trânsito seja livre pelas quadras do conjunto, não é regular que as pessoas utilizem o interior do local como ponto de consumo, apenas os barrancos laterais anteriormente citados. Entretanto, vale ressaltar a curiosa relação que os moradores da Pedreira têm com o espaço do IAPI. Compostos por rapazes em sua maioria, alguns grupos descem da favela até o interior do conjunto, utilizando a espaçosa pracinha ali existente como local de resenha e encontro. Costumam jogar futebol nas quadras do lugar em meio aos poucos residentes que animam uma pelada. Ali também fumam um baseado sempre que possível, sem incomodar ou serem incomodados. Uma relação serena entre moradores do IAPI e PPL impera, fruto de uma rotina já engendrada no contexto deles. Bem como a da Cracolândia ao lado.

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O CAmAROTE vIP

Quase ao final da Rua Araribá, antes de chegar na Antônio Carlos, um lote de frente para avenida marca a última artéria do coração da Cracolândia. Entre a Rua Popular e Araribá, o terreno baldio com pouco mais de 100 m² traduz pra quem passa pela via de acesso a verdadeira imagem da Cracolândia belo-horizontina. Fica entre o Conjunto IAPI e um galpão pintado em amarelo berrante, atualmente uma distribuidora de bebidas. Entre os frequentadores do local, corre o boato de que, muito em breve, o misterioso proprietário derrubará e cercará tudo aquilo ali. O camarote estaria, então com os dias contados. Até lá, as já fragilizadas cercas de arame ao redor do terreno não acuam quem quer que seja. Os buracos feitos nelas reforçam o processo de apropriação que o consumo de crack exerce no local. Através deles, usuários ganham acesso ao interior do terreno e fazem dali uma espécie de área VIP. Para entrar e permanecer ali, é preciso que um dos moradores dos vários barracos improvisados permita. O número das precárias moradias varia de acordo com a época de observação. Durante alguns meses, cerca de dez barracos foram construídos no local, com tapumes, tábuas, lonas, cavaletes de propaganda política, uma gama de material infindável. Todos eles eram ancorados nas cercas que delimitam o espaço, funcionando praticamente como uma parede para os abrigos. Casais com algumas crianças residem ali, naquele que pode ser considerado como o único assentamento da Cracolândia.

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Em meio à vegetação crescente, terra e entulho, os ocupantes do lote fazem dali um espaço mais privativo, mesmo que suas misérias sangrem expostas a céu aberto para toda uma população que transita pela avenida e assiste à cena. Naquele quadrado, poucas pessoas entram para consumir crack, apenas as que contam com o aval dos moradores. Apoiados no que sobrou de um muro de frente para a Antônio Carlos, os seletos frequentadores compartilham baforadas e histórias de vida, comumente ligadas pelo vício. Ao sair, o fluxo frenético da Araribá está logo ao lado, recusando-se a parar por um minuto que seja.

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O TURNO DA mADRUGA

Durante a noite a Cracolândia convulsiona. O contexto diurno é caracterizado pela agitação do trânsito de moradores, carros, ônibus, comércio paralelo e usuários indo e vindo de todos os lados. Sob a luz do dia é possível constatar que a Cracolândia é como um organismo vivo. A frenética divisão e interação do espaço entre todos os elementos diurnos deixa a sensação de que uma hora ou outra aquilo ali clamará uma pausa, como que para restabelecer as energias para o outro dia. Quando cai a noite, as portas do comércio cerram, os veículos mínguam, liberando as ruas, enquanto os moradores vizinhos já não se arriscam a caminhar por ali.

Restam, então, os usuários. Eles se multiplicam.

Pode-se dizer que, ao menos em estimativa dada pela observação, a população da Cracolândia belo-horizontina dobra em quantidade quando o sol se vai. A concentração de pessoas vai aumentando à medida que a noite chega, agora sem ter que dividir os espaços com os carros, ônibus ou moradores que fisicamente ocupam o local durante o dia. Agora, a Cracolândia é literalmente só deles. Sem carros estacionados, as ruas Araribá, José Bonifácio e Popular recebem um número maior de moradores de rua e usuários em geral, ausentes durante o dia devido às obrigações de trabalho e perambulação pela cidade. Devido à proximidade com o Centro da cidade, o bairro Lagoinha é ponto referencial de alguns projetos sociais

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que distribuem alimentos para a população de rua. São diversos segmentos das igrejas católicas, evangélicas, centros espíritas e pessoas comuns que saem no período da noite para prestar solidariedade e oferecer um pouco de conforto ao pessoal. A concentração na região favorece aqueles que buscam alimentos e também o crack.

O cenário noturno assemelha-se com o visto durante o dia, mas com uma concentração bem maior de pessoas. Em algumas noites, filas são formadas para a compra do crack diretamente na boca, uma vez que nesse período a atuação dos aviões ainda existe, mas tende a diminuir. Mesmo assim, um número de figuras do tráfico é notório. Já em terreno da Pedreira, algumas bocas organizam os usuários em grupos para que não haja confusão, muito menos tormento aos moradores. É permitido comprar pedra a um pequeno grupo por vez, enquanto outro espera a sua lá embaixo. Já acostumados com o desenrolar daquilo, os usuários respeitam toda uma hierarquia e fazem a coisa fluir naturalmente, apesar da agitação costumeira pelo consumo da pedra.

Em meio à penumbra da noite e dos escassos postes de iluminação do lugar, as luzes que são vistas vêm dos isqueiros e cachimbos que trabalham incessantemente ao longo da madrugada. Em todo canto da cracolândia é possível vê-las, singularizando uma pessoa diferente, uma outra história desconhecida. São como vaga-lumes em meio à escuridão, piscando hora sim, hora não. São pessoas de carne e osso vistas como meros pontos de luz no meio do breu. Quem sabe não seja assim que preferem

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serem vistas? Sem rosto, sem nome, somente pontos desconhecidos de luz, como todos os outros ali.

Há pouco silêncio na noite da Cracolândia. A todo momento as conversas mais loucas, nos tons mais agudos rasgam qualquer traço de quietude que ouse se aprochegar. Por vezes a histeria toma conta, quando um carro surge de algum lugar, geralmente as Kombis dos projetos sociais. Nessa hora, aqueles que sentem alguma fome ou sede se agitam para pegar um pouco de pão, sopa ou água oferecidos. Em noites normais, a Cracolândia é uma autêntica Torre de Babel. As pessoas de todos os lugares conversam sobre tudo e qualquer coisa em todos os cantos. Mesmo com o consumo aumentando, as pessoas tendem a conversar mais também. Formam grupos de conversa entre elas, sem muito critério. Ao se misturar entre eles é possível escutar nas rodas as experiências do dia que tiveram, o que testemunharam pelas ruas, o que fizeram. Algumas falam abertamente do passado com outras pessoas que acabaram de conhecer, enquanto outras só escutam, seja pela fixação da noia ou porque são bons ouvintes mesmo. Enquanto durante o dia o clima parece de alerta e atividade constante, a Cracolândia noturna goza de uma paz até então impensável. Mesmo com muitas pessoas conversando, vagando aleatoriamente em busca de pedra ou com seus velhos e barulhentos carrinhos de supermercado arranhando o asfalto esburacado, a noite na cracolândia segue um ritmo próprio, desde que não seja incomodada.

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É que tudo ali é muito tácito. As pessoas que frequentam uma Cracolândia raramente são novatas nesse mundo. Estamos falando de gente que vive diariamente o mesmo contexto por anos a fio. Elas estão cansadas de saber como funciona tudo aquilo e como precisam proceder pra que tudo permaneça harmoniosamente funcional. E conseguem. Salvo algumas discussões, pequenas brigas aqui e ali e gente surtando nos efeitos da pedra, a Cracolândia tem tanto alguns ritos diversificados quanto sua própria paz. E assim eles abraçam mais um dia que já está prestes a nascer…

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TODO FINAL É RECOmEÇO (?)

Do coração da Cracolândia até as imediações do Hospital Belo Horizonte, o que se vê são focos desencontrados de usuários que se espalham pelos canteiros gramados dos viadutos Senegal e Congo. Outros lotes vagos também servem de concentração para essas pessoas, agora em menor número. Já pra dentro dos bairros, os pontos de consumo são incalculáveis, muitos até imperceptíveis, uma vez que não seguem rotina e demarcação definida como na Cracolândia. Devem-se considerar, também, outros pontos que transpassam o hospital. Seria egoísta e delimitador traçar um território definitivo, engessado. Existe um coração, suas artérias, suas veias. Talvez essa seja a metáfora de representação territorial mais condizente com a Cracolândia de BH.

A Cracolândia é organismo vivo. Ela transita, não se aquieta, está em constante mudança, mesmo que com os mesmos personagens envolvidos em sua trama. Seus espaços são tão voláteis quanto os efeitos da própria pedra que a batiza. O tempo ali passa tão devagar para quem não consome crack que muitas vezes tem-se certeza de que o relógio mente descaradamente. Durante esse lapso temporal, o misto de sensações brota como convite a reflexões mais profundas sobre o que somos, o que queremos e o que fazemos de nossas vidas. Ela proporciona àqueles que a exploram de peito aberto uma real e quase palpável dimensão da angústia humana; da desolação, da falta de perspectiva. Seu cheiro

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e gosto – que de fato possui, podem acreditar – remetem duramente à completa falência da dignidade humana.

Ninguém é feliz numa Cracolândia. Não pode existir felicidade num lugar onde tudo perece, queima, vira lixo ou perde a identidade. Onde as pessoas morrem por dentro e por fora na mesma velocidade aterrorizante. Não há um pingo de esperança nos sorrisos que, mesmo inebriados, não convencem totalmente serem sinceros. O crack e tudo o que vem com ele são sim pedaços de um inferno na terra. É apenas gastando sola de sapato numa das muitas cracolândias espalhadas pelo país, colocando a bunda na mesma calçada que os – crackeiros - e ouvindo suas vozes, seus demônios, sentindo suas idiossincrasias na pele que podemos dizer com todas as letras: não há o menor traço de felicidade no inferno. Nem o crack mais poderoso é capaz de oferecer a certeza de felicidade permanente aos usuários que se afundam nesse inferno. O mais triste é saber que eles mesmos sabem disso. Nada do testemunhado parece ser real, contudo, dolorosamente é.

São existências execradas de seres humanos que lamentavelmente perderam no jogo da vida. Por escolhas próprias ou não, caíram de cara no fundo do poço. Se mesmo assim não são vistos como dignos de recuperação e esperança por uma sociedade doente como a nossa, que ao menos sejam dignos de amparo. Dignos de empatia. Os pré-julgamentos ganham tônica quando as próprias histórias dessas pessoas valem menos do que a pedra que elas fumam. Julgamos sumariamente sem qualquer

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conhecimento de causa, sem conhecer as razões de estarem ali. Julgamos, única e exclusivamente, pelo ato de julgar, que tanto nos apraz.

e aquele que nunca julgou por julgar, que atire - ou acenda - a primeira pedra…

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CAPÍTULO 4

ECOS…

UmA MiSS SEm FAIxA

Em maio, Bruna completou dois anos de idas e vindas à Cracolândia. Dois anos de uma realidade impensável para a então jovem de 18 anos que morava com os pais no bairro Camargos, divisa entre os municípios de Belo Horizonte e Contagem. Naquela época, a vida era branda. A família nunca foi rica, longe disso. Mas não faltava comida, teto, amigos, namoros, tudo como manda o manual da vida pacata para uma jovem adulta. Uma bela adulta. Hoje prestes a completar 22, apesar do preço abusivo que o crack cobra diariamente da sua beleza e corpo, não restam dúvidas de que sempre foi uma mulher muito bonita.

Saía com os amigos para festas, especialmente para os forrós, recordados com a dose de saudade exata para não serem apagados da memória. Num desses, conheceu um homem mais velho, à época com 32 anos, que a atraiu no minuto em que a chamou pra dançar. Parecia bem de vida, vestia-se bem, português em dia, aparência boa, ar misterioso, seria um boto-cor-de-rosa em chão mineiro? A dança virou um namoro intenso entre os dois e, mesmo com os pais não aprovando a diferença de idade, preferiam alguém mais velho para a filha do que qualquer um dos rapazotes sem juízo do bairro. Nos primeiros meses saíam

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juntos sempre e para Bruna o sentimento só aumentava, assim como a confiança.

Uma festa em Belo Horizonte marcaria para sempre sua vida. O namorado abriu o jogo e assumiu que fumava crack há um tempo, mas que ao contrário dos “noias da TV”, levava uma vida normal. De fato, trabalhava como vendedor e com esforço tocava um curso na faculdade, como tantas outras pessoas. Um viciado funcional, também como tantos outros entre nós. Nunca dera um deslize, já que fumava aos finais de semana em casa, longe da namorada. “naquele sábado, ele insistiu tanto pra que eu experimentasse e fumasse junto que não resisti. Me assustou a ideia de cara, mas eu tava muito na dele, jovem, apaixonadinha, trouxa. Fomos pra casa dele e fumei crack a primeira vez na vida”.

Sábados como aquele tornaram-se constantes para o casal, agora juntos no vício. Bruna passou a gostar cada vez mais. Em sua cabeça, essa sensação diferente com alguém em quem confiava valeria a pena o risco. Passaram meses assim, vivendo uma versão entorpecida de Bonnie e Clyde, sem que a família percebesse nada. Até que, ao retornar de uma viagem, o namorado decidiu terminar o relacionamento alegando falta de tempo e sentimento. O baque foi forte e deu início à derrocada de Bruna. Depressiva, passou a ficar cada vez mais isolada, em casa, consumindo crack escondida enquanto os pais não estavam. “eu fui descendo uma ladeira sem volta. Comecei a fumar todo dia pra esquecer das coisas, do filho da puta que me apresentou a pedra principalmente. Pegava com alguns conhecidos, mas acabei

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precisando vir na cracolândia quando não tinham. Foi aí que conheci o segundo inferno da minha vida”.

Voltando mais cedo do trabalho, seu pai a surpreendeu no ato. Chucro, não pensou duas vezes antes da sova e a colocou para a fora de casa, dizendo que “não botaria os pés ali outra vez se continuasse a fumar essa merda”. A mãe nada poderia fazer. Desnorteada e fragilizada, Bruna se entregou completamente ao vício. “Sinto muita saudades da minha mãe, muita mesmo. Sei que ela já veio aqui me procurar, me escondi pra não me ver nessa situação. Do meu pai, nenhuma”.

Faz dois anos que perambula pelo Complexo da Lagoinha e mudou bastante sua personalidade desde os tempos dos forrós. “não sou de longe a mesma pessoa. Desgracei minha vida. Olha o meu estado, cara! Vamo ver até onde isso vai dar”. Não gosta de falar sobre como consegue sustentar o vício financeiramente. Apesar de sujos, os cabelos castanhos até os ombros ostentam um anelado bonito, desses que parecem pequenas molas. Usa um singelo arco branco pra domar o volume dos cachos. No rosto carrega olhos igualmente amendoados, um poder de penetração instigante, desafiando qualquer um que os cruzam a manter o olhar inalterável, enquanto o corpo tem a magreza que as modelos de passarela tanto buscam. Garante que não vem do crack e sim do “lado da mãe” na família.

“O pessoal até brinca aqui que eu sou a Miss Cracolândia! Hahaha! Vê se pode!”

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AvIÃO qUE NÃO SAI DO CHÃO, vOA?

Cléber não tem asas, mas voa. Aliás, sempre quis voar.

Na gíria do tráfico, - avião - é a pessoa delegada às funções de revenda e distribuição da droga nas esquinas e entradas da favela. Fazem o meio-campo entre traficante e clientela, sem que o primeiro tenha que colocar o pé na pista. O - vapor – por sua vez, é o olheiro responsável por monitorar e alertar sobre qualquer movimento suspeito na entrada das favelas – e evaporar assim que o detecta. O avião está uma escala acima dele na hierarquia do tráfico. Precisa ganhar a confiança do traficante ou gerente da boca, seja através do trabalho diário, da troca de favores ou mesmo por pequenos testes, crimes na maioria das vezes. Uma vez efetivado, receberá uma área específica de trabalho e, em parceria com outros aviões, será responsável por comercializar as drogas e ser o elo necessário entre clientes, mercadoria e fonte.

Pelo menos na região da Cracolândia, é proibido aos aviões consumirem qualquer coisa além de baseados enquanto trabalham. Ordens superiores. Não recebem tanto pelo trabalho, uma vez que tudo depende do fluxo de entrada da grana. Se vendem mais, ganham mais. Se vendem pouco, lucram pouco. Alguns aviões gostam de receber o “endolado”, a forma de pagamento que consiste numa parte em dinheiro, outra em droga. Contudo, o pagamento que atrai os rapazes interessados na função é outro. Como num

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plano de carreira ambicioso, os aviões sabem que começar por baixo, ali na pista, dá visibilidade. Destacar-se e ser promovido na hierarquia do tráfico é o que todos eles querem, pra quem sabe, lá na frente, comandarem onde já foram comandados. Receber em respeito vale tanto quanto em reais quando se começa na base da pirâmide.

Cléber é avião do tráfico na Pedreira Prado Lopes há dois anos. Aos 15, começou como vapor ajudando um amigo, sem nunca esconder de ninguém que aguardava pela oportunidade de iniciação. Em menos de quatro meses, evaporando muito melhor que os outros, subiu para avião. Inquieto, o sotaque carregado de gírias e de entonação característica dos diálogos no tráfico demonstra um talento distinto para a função que exerce. Sem enrolação, sempre objetivo, fala como se estivesse concluindo uma venda a cada pergunta. “Perguntou, respondeu, pá pum!”.

“eu sempre quis trabalhar aqui, zé. Vi minha vida inteira a molecadinha começar a ralar aqui, ganhar um troco, subir na vida. Usar uns pano novo, ter meu dinheiro, ouro no pescoço, sair com os parceiros. estudando eu nunca vou conseguir isso e aqui eu me sinto em casa. Pessoal me respeita pelo corre que eu faço. Saindo daqui eu curto minha vida, como tem que ser mesmo. É só não vacilar”.

Aos dezessete anos, é um rapaz como tantos outros por aí. Bermuda, chinelão, boné, camisa atual do Messi. No peito, uma corrente de prata dessas pesadas, contrastante com seu biotipo magrelo. Transita pela Cracolândia com total liberdade, mas “sem dar esparro”. “O avião bom é aquele que fica na dele, que pisa leve, fraga? Vai até os caras, escuta o que eles

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querem, pega a grana, entrega o produto e despacha o sujeito. Marca um pouco num outro ponto, desce pra outro, tudo na suave, sem drama. Os cara que compram já te conhece, sabe sua cara. Chegam sem vacilar também pra não chamar mais atenção. Quem não é visto não é lembrado.”

Enquanto fuma um cigarro sentado na calçada, dois homens se aproximam. São usuários de crack já veteranos na região, conhecidos por Cléber. A transação é rápida, sem floreios, como manda a regra.

“Vê quatro de cinco aí”, ordena um dos homens, tirando uma nota de vinte toda amassada do bolso.

“Marca aí”, responde Cléber se levantando em direção à entrada do beco.

De dentro de uma mochila, tira uma pochete onde guarda as pedras de crack. Com uma destreza incrível, pega a mercadoria numa fração de segundos e já retorna. Dá uma conferida olhando pros dois lados, nada consta. Num aperto de mão que serve muito mais pra repassar a droga sem chamar atenção do que como indício de amizade, conclui a venda. Sem despedidas, “obrigados”, “volte sempre” nem nada. Toda a cena não dura mais que dois, três minutos. E ela se repete incontáveis vezes ao longo do dia e da noite.

Cléber não se lembra direito do pai. Das suas histórias, sim. Bêbado, agredia sua mãe constantemente na frente dele e dos outros três irmãos. Até que, já maior fisicamente e cansado psicologicamente, o mais velho decidiu que era

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hora de fazer alguma coisa. Numa dessas noites, quando o pai estava prestes a dar início à rotina de surras, deu-lhe um chute tão violento no rosto que o mesmo foi a nocaute. Foi arrastado para a rua e escutou do filho mais velho e dos vizinhos que, se voltasse ali, morreria. Nunca mais foi visto. Pela mãe, “só respeito”. Discerne com naturalidade sobre o que faz para viver e o que ela gostaria que ele fizesse, num plano distante. Sabe que, no fundo, o coração da mãe desaprova totalmente a vida que leva, porém prefere seguir adiante, pois “na atividade eu consigo ganhar pra ajudar em casa e me sustentar”. E não conseguiria o mesmo em um trabalho qualquer? “não. nos outros eu não faria o que gosto, não seria respeitado e muito menos ia ter a chance de crescer como aqui. Um dia chego lá no topo, tá ligado?”.

Com certo tempo trabalhando na Cracolândia, já perdeu as contas de quanta coisa louca viu por ali. Cara engravatado comprando, tiro para o alto, brigas, sangue, até morte. Já teve que sair no braço e chamar reforço do beco quando um cliente quis lhe passar a perna. Viu a polícia fazer um catado de usuários e por vezes nem fazer nada nas rondas. Garante que nunca teve problema com eles, mas sente que certamente seu rosto já é conhecido. “É só não dar esparro, zé. eu não endolo (consome) nada durante o corre, então tô sempre limpo. Cê viu que tem lugar pras parada ficarem guardadas e toda hora tem outro avião que pega a grana com a gente e sobe ela pro céu (repassa pro gerente da boca, longe dali). Geralmente eu faço essa função, mas agora tão dando chance pros outros moleques aí. Meu nome já tá lá com os caras, sendo feito. É continuar na luta aqui embaixo que uma hora a gente voa mais alto.”

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O vELHO E NOvO AmOR...

Essa é uma história de amor.

Esguio como tantos ali, Ronaldo sobe e desce com o fluxo numa calma que combina com aquela noite. Mesmo sem conhecer tanta gente na Cracolândia ainda, parece pertencer ao lugar, sem se intimidar com os faróis dos poucos carros que sobem a Rua Itapecerica e cismam em lançar luz àquela escuridão de almas. Não carrega nada consigo, apenas o RG no bolso esquerdo, já puído pela constante fricção no único par de jeans que possui. Depois de um dia agitado entre becos e pedras, escolhe um canto vazio no passeio para sentar e fitar o nada, literalmente. Mesmo sem a obrigação de observar coisa alguma ali, seus olhos permanecem abertos, imóveis, claramente distantes. Cumprem muito mais a função de sentinela de um corpo magrelo do que de janela da mente. Parece faltar-lhes alguma coisa.

Já se vão três semanas desde que Ronaldo, de 19 anos, saiu de sua casa em Santa Luzia. Desde então, não fez contato com parentes ou amigos, por pura vergonha de voltar atrás e ser questionado sobre os motivos que o levaram a escolher tal caminho. Enquanto muitos largam o convívio social familiar devido à força bruta que o vício do crack impõe, Ronaldo o fez por amor. Sim, amor. Carolina passara a andar com um pessoal diferente no último mês de março. Já não atendia ao telefone com a mesma frequência de outrora, até que cessou de vez. Ele tinha

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virado dinheiro. Quando chegava a noite, não dava mais as caras no bairro, só retornando na manhã seguinte, meio suja, desnorteada, vagando em direção à sua casa, uns dois ou três barracos antes de chegar ao Ronaldo. Preocupado, o namorado achou que era algum tipo de traição e jamais aceitaria isso. Decidiu seguir Carolina, disposto a esclarecer tamanha mudança e ausência. Duas horas depois, passada a ira inicial da namorada ao vê-lo subindo a rua atrás dela, estavam sentados na mesma calçada em que Ronaldo fita o nada na noite de hoje, prontos para compartilhar a primeira pedra de crack juntos.

Ronaldo nunca foi santo, é bem verdade. Alerta que fumava um baseado aqui e ali com o pessoal do bairro, dava o cano nas biroscas e ainda tinha a cara de pau de voltar no outro dia. “Minha cabeça sempre foi meio fraca. Sempre me deixava influenciar pelas pessoas pra ter a aprovação delas. Hoje tô aqui”. Ao descobrir que a namorada já se encontrava entregue ao vício naquela noite, decidiu que não a deixaria sozinha, nem que fosse pra entrar no mesmo balaio. Fizeram um pacto de experimentar juntos e, caso Ronaldo não curtisse, tomariam o rumo de casa e ajeitariam a vida outra vez. Curtiu mais até que a própria namorada. Voltaram para casa apenas para buscar um relógio que Ronaldo tinha, dispostos a ficar juntos e sem olhar para trás, ver aonde a vida os levaria.

Às vezes, o tal do amor é torto. “A Carolina é o grande amor da minha vida. Mas o foda é que ela sumiu logo na primeira semana que a gente fugiu. Sempre foi inquieta mesmo. Disse que ia no Centro descolar uma grana e sumiu. Já revirei lá e nada. Aqui o pessoal

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fala que ela arrumou um doze (traficante) pra ela, mas eu duvido. Tenho esperança dela voltar pra cá. Só tenho vergonha de voltar pro bairro pra tentar descobrir, virei um lixo de gente e minha família não merece. Só falei que fui embora. Caralho, ela me deixou uma puta herança”.

De fato. Depois do pacto de iniciação e uma vez viciado, Ronaldo percebeu o tamanho do problema. A vergonha de voltar para casa contrasta com a naturalidade em que conta sua história ímpar. Foi até a Cracolândia por amor e lá permanece com o mesmo intacto, seja pela moça ou pelas pedras. “Olha cara, eu aprendi a curtir o crack muito rápido, foi uma loucura. Agora não tô com vontade de parar, até porque tô esperando ela voltar. Até lá eu vou ficando aqui, durmo pelo Centro, sei sobreviver nisso aí. Tem dia que penso se era melhor ela ter me traído do que me trazido pra cá, mas certeza que isso é a noia falando.”

Ainda que amarga, essa é uma história de amor.

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“SER OU NÃO SER, EIS A qUESTÃO”

“A pior coisa nessa vida de cão é fazer algo que não é você de verdade. eu sou noiado, mas viado nunca fui. Só que teve uns dias aí que eu não descolei fácil a grana. Daí eu faço uns programas mesmo...”

O que Davi fala é verdade. Caso não seja, ele tem uma habilidade ímpar para convencer as pessoas com suas palavras. Aos 24 anos de idade – que mais parecem 34 fisicamente – conta sua história com naturalidade, sem empacar na timidez, como se tivesse ensaiado por dias o conteúdo da prosa. Fala firme, veemente, gesticulando muito com a mão direita, enquanto a esquerda segura um latão de cerveja. Está visivelmente alterado. “A pedra faz eu falar demais, cê desculpa eu qualquer coisa aí”. Essa é a quarta vez que sobe a Rua Araribá atrás de pedra naquele dia. Não anda tão sujo quanto algumas outras pessoas ali, mas certamente apreciaria um banho. Os olhos negros, profundos nas órbitas são fruto de “dois dias inteiros no ar!”. Sem descanso, vem consumindo crack há mais de três anos, num ritmo que assusta a ele mesmo.

Naquela semana, ele fugiu às suas convicções. Se foi a primeira vez, não se sabe. Segunda, terceira? Muito menos. A última? Certamente não. Fato é que, sem conseguir a grana para manter o vício naqueles dias, aceitou o convite pra um rápido programa. Foi convidado por outro homem que o vira pela primeira vez na Praça Rio Branco e não se intimidara em propor o esquema. “De cara eu rejeitei, né! Maluco viadão, careca, veio pra cima de mim com papo mole eu já

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mandei a real: sou drogado, só que não me sujeito a qualquer coisa não! Mas senti que ele voltaria depois”.

Uma semana depois ele voltou mesmo. Davi não havia conseguido levantar mais que dez reais naqueles dias. Mal daria para duas pedras e um lanche qualquer. “Roubar eu não curto”. O tal homem careca voltou ao mesmo lugar onde abordara Davi na semana anterior. Dessa vez, a proposta balançou o rapaz: 30 reais, discrição, jogo rápido. “ele disse que eu era muito bonito e que tinha gostado de mim. Devia ter uns 40, 50 anos, bicha velha mesmo. Falou que trabalhava e que podia me ajudar a sair desse lixo. eu só escutei. Já tava mais puto que tudo, só queria minha grana e comprar um pega. Tem coisa que você só vai e faz, num pensa muito nas consequências”.

Combinaram rapidamente o local: um motel qualquer ali nas imediações da rodoviária mesmo, que fosse discreto e limpo. Davi se recusa a entrar em detalhes, mas diz veemente que foi “o macho da história”. Meia hora depois, desceu as escadas e ganhou a rua outra vez. Precisava respirar ar fresco. Faria isso enquanto caminhava em direção à Cracolândia. Desde aquele dia não viu o homem careca outra vez. “Mas certeza que ele volta. esses cara tem dinheiro e quer aventura. eu quero meu troco, paciência”.

O que impressiona e faz com que suas palavras pareçam críveis é a naturalidade com que discorre sobre o episódio. Eu estava ali para contar uma história, mas fui tragado pela dele. Muitos usuários de crack aumentam fatos em seus relatos, chegam claramente a inventar outros. Mas a ponto de criar uma aventura homossexual, ainda mais se dizendo

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hétero, era a primeira vez que eu testemunhava. Para Davi, falar daquilo era somente uma etapa a ser contada sobre como obteve a grana para as pedras que estava fumando naquela semana. O fato de ter feito um programa com outro homem não o incomodava.

Davi é um homem moreno de traços fortes, olhos profundos, fala firme. O cabelo moicano demonstra que, quando tem oportunidade, gosta de se cuidar minimamente. “Mesmo nessa miséria aqui a gente tem que viver, né. Tem um pessoal que vem cortar o cabelo da galera de graça e eu peço eles pra darem um jeito no meu sempre que possível. Tamo na rua, mas eu me cuido”. No braço direito carrega uma tatuagem de traços amadores. “Virgínia. É o nome da minha mãe, que já morreu. Se ela tivesse viva eu não tava nessa merda que tô hoje”.

Apesar do episódio, Davi não se considera gay. Garante que não sente nenhum tipo de atração por homens. Faz questão de reforçar isso. Para ele, o ocorrido foi simplesmente a maneira com que sorte e oportunidade se ofereceram a ele naquele dia. “na hora não senti nada. Fiz o que tinha que fazer, ele me pagou pra isso. Mas dizer que eu curti, num curti não. Odeio fazer qualquer coisa que não é de mim. Mas vida que segue. não saio por aí contando, mas também assumo o que faço”.

E faria outra vez, pelos mesmos motivos? “Uai, tudo depende, né cara. Se eu tiver precisando, posso pensar na hora ali e resolver. eu só não faço o papel de mulher. Vida de rua é assim mesmo, tem muita lógica não. Que se foda”.

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NOmE DO PAI: CRACOLÂNDIA

A barriga não mente: Val está grávida. Outra vez.

Val é apelido pra Valéria. Retrato vivo do caos que o crack causa na vida das pessoas. Aos 26 anos essa é a sua terceira gravidez. Em pelo menos duas delas, consumiu crack regularmente ao longo das gestações. Sua aparência passa a sensação de que é bem mais velha; arquétipo magrelo, maçãs do rosto no osso, tenta domar sem sucesso o descabelo com uma touca de lã sob o sol senegalês daquela tarde. Os efeitos da pedra fazem com que ela esteja extremamente agitada, andando de um lado para o outro rapidamente, como se estivesse enfurecida com alguma coisa. Dá trabalho para acompanhá-la. Fala demais, fala tudo, fala qualquer coisa. Fala até o que sente, quando consegue se abrir de verdade.

Valéria é mineira mesmo, de Sete Lagoas. Saiu da cidade enrabichada num caso que já era fadado ao fracasso. Aos 16 anos se apaixonou por um homem 20 anos mais velho que dizia o quanto mudar para BH melhoraria suas vidas. Val já estava grávida do primeiro filho e sua família não aceitava a situação. Decidiu fugir com o namorado para a capital e tentar a sorte, que nunca chegou. Logo após o nascimento do filho, foi abandonada. Havia sofrido muito com as brigas e agressões durante os nove meses. Naquele dia, acordou na casa simples em que morava e o homem havia saído sem deixar qualquer vestígio. Nunca mais o viu, apesar de ter sido informada anos depois que fora para

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a Bahia. Sozinha e com um filho, não teve coragem de voltar para casa e se perdeu no mundo. Perdeu também a guarda do bebê, que foi para um abrigo. “Foi pra um orfanato. Dizem que uma família evangélica ficou com ele. Foi melhor assim”. Abandonada, conheceu o crack nas ruas. É o seu companheiro mais duradouro, pra não dizer o mais fiel.

Sim, porque desde então foi incapaz de se estabelecer com outro homem. Pelo contrário. Viu na prostituição a possibilidade de conseguir dinheiro pra viver e manter o vício. Não pensou duas vezes e passou a fazer programas. O primeiro foi logo que se entregou de vez ao crack, para desde então perder as contas de quantas vezes fez. “eu morei uns dois anos na casa dum traficante aí, com outras duas meninas. A gente nem tinha nada com ele não, era só pro sexo mesmo. ele abrigava nós, dava pedra e a gente dava sexo pra ele e os amigos. Melhor que ficar na rua. Foda era tomar porrada direto...”.

Tudo contado numa naturalidade intrigante. Não parece se incomodar com as incontáveis vezes em que foi agredida por homens na rua. Conversando com ela é impossível não se questionar se lá no fundo do peito não se sente abusada, tamanha a languidez que as lembranças trazem. Tudo era motivo para os abusos. Alguns caras se recusam a pagar programa com uma “noiada”. Outros faziam por cretinice mesmo, batem por prazer. Num episódio, Val teve os cabelos cortados com uma faca, tudo porque reclamou da brutalidade com que o cliente estava conduzindo o sexo. “eu nunca tive medo de morrer não, mas essa vida louca deixa a gente assustada. Tem cara filho da puta em qualquer canto pra te bater por nada”.

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Hoje tem desenvolvido seu faro contra clientes problemáticos. Evita outros usuários de crack ao máximo, “porque noiado fica louco fácil demais”. Já com os bêbados, apesar do asco que diz sentir, se arrisca, pois “de bêbado dá pra arrancar mais dinheiro, uma cerveja ou um lanche por aí”. Conta também com alguns clientes fixos, geralmente moradores de rua, “qualquer um”. Cobra de acordo com a cara do cliente. Raramente mais que R$10. Aceita pedra como pagamento também. Quando tem preservativo na roda, usa. Quando não, o detalhe não impede o programa. Quanto aos locais de trabalho, Val é itinerante. Passa a maior parte do tempo nos arredores da Cracolândia, “porque aqui tem lugar de sobra pra fazer o programa e o pessoal já me conhece. Qualquer canto mais vazio dá”.

Devido à natureza dos programas que faz, Val já engravidou outras duas vezes. Está no sexto mês de gestação da terceira gravidez. Nas duas últimas, não soube identificar quem eram os pais das crianças. Também nunca fez um pré-natal. O barrigão já saliente empurra para cima a blusa surrada que usa, ficando ainda mais evidente. Seja qual for o contexto, a inegável beleza da figura de uma mulher grávida é sempre cativante. O corpo mirrado parece que não vai dar conta de mais um parto, mas Val diz que se sente bem no momento, sem dores ou complicações. Fumou crack por todo esse tempo, só que agora em quantidades bem menores. “É que meu estado assusta os caras, né! Quem vai querer fazer programa com uma grávida? Ainda aparece uns aí, mas sem tanta grana eu compro menos pedra”.

O segundo filho nasceu com problemas respiratórios

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em decorrência dos efeitos do crack. Do que está por vir ainda não se sabe nada, nem o sexo. Sabe-se apenas o seu destino, idêntico ao de seus irmãos: longe da mãe. “eu não tenho condição de criar meus filhos. não quero ter mais nenhum. Vou sair do hospital operada pra não ter mais como engravidar, sei que fazem de graça isso. eu amo eles sim, mas prefiro que tenham uma vida melhor que a minha”.

Val pretende largar a Cracolândia e o crack antes que seja tarde demais.

Já não é?

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NÃO É JUSTO PARA qUEm?

“O de sempre, Dona Adélia! Hoje pode caprichar na granola”.

A maneira decidida com que irrompe na sorveteria e faz seu pedido em alto e bom som contrasta com a personalidade de Raul. Consegue pedir seu açaí de toda tarde sem se questionar muito, decidido. Por outro lado, não consegue agir da mesma forma com o seu dilema mais profundo. Não sabe se gosta ou desgosta, se aceita ou não. É um homem indeciso.

Dos seus 24 anos de idade, 14 foram correndo pelo asfalto batido do Conjunto IAPI. Mudou-se com os pais ainda jovem para o primeiro imóvel próprio da família. Época boa para ser criança, quando brincar na rua valia mais que tablets e celulares nas mãos. Boa parte da sua infância teve os muros do local como cenário de fundo. Foi ali que aprendeu a se equilibrar em uma moto, era ali que jogava bola, se escondia e até namorava. Em alguns aspectos, os tempos não mudaram tanto. “Desde que eu me entendo por gente o iAPi é assim. Pelo menos o entorno dele”.

Raul vive um conflito interno. Não sabe se gosta ou se se incomoda com tudo aquilo que o rodeia. A palavra “acostumado” é presença constante em sua fala, dando indícios de que mais engole goela abaixo do que compreende. É que seu apego emocional com o local é real, diante de tudo o que viveu ali. Vai do saudosismo ao contentamento em segundos, passando por momentos

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de tristeza e insatisfação. Lembra com felicidade de tantos episódios passados, mas rapidamente volta a ancorar-se na atual realidade adulta que costuma lhe causar indignação. Internamente, lida com duas frentes de batalha: a das memórias dos tempos bons de infância e a da incômoda tragédia social que virou o seu local favorito. Não consegue escolher de que lado ficar.

“eu cresci nisso aqui. esse lugar faz parte da minha vida, do meu caráter. eu não quero me mudar daqui. Mas a situação do jeito que tá me revolta sim. Porque ninguém faz nada a respeito? Tomaram nosso espaço, entraram no nosso conjunto sem permissão. Hoje temos que nos acostumar com uma realidade que não compactuamos. Mas me mudar, não pretendo. É mais meu do que deles”.

Raul se preocupa com o que a sociedade pensa do local. A imagem perpetuada pelos discursos da mídia e da sociedade em geral, para ele, não condiz com a real opinião daqueles que mais deveriam ser ouvidos: os próprios moradores. É quando seu conflito interno aflora mais uma vez, ao prospectar a situação no que seria o olhar de outras pessoas para o local.

“eu entendo que as pessoas enxerguem o iAPi como um lugar ruim. Talvez eu fizesse o mesmo se morasse em outro canto da cidade. Meus amigos são meio reticentes em aparecer aqui. Ter uma cracolândia como vizinha é muito ingrato! Só que elas confundem esse cenário do entorno com o que tá ali dentro, entre os prédios. São famílias com anos de história, pacatas, que não colaboraram em nada pra que a situação chegasse a esse ponto, pelo contrário. São tão afetados quanto

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eu…Conheço gente que tem vergonha de dizer que mora aqui por causa disso. não é justo”.

Apesar dos problemas em aceitar, Raul leva uma vida normal, assim como tantos outros moradores vizinhos de uma cracolândia. Durante o dia, ele reitera que apesar do movimento de usuários, é tranquilo andar pelas ruas do bairro. Quem é morador sabe da rotina no local e já tem seu rosto conhecido, o que lhe garante passe livre sem ser incomodado. Ele só evita a Rua Araribá, onde particularmente não se sente confortável com as pessoas largadas nas calçadas. Nessa hora nota-se que seu incômodo é mais por pena do que pela tal insatisfação anterior.

“Me sinto invadido sim, como morador. Mas não arredo pé. no final você acostuma, cada macaco no seu galho...”

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O NÓ NA GARGANTA…

Essa foi sem dúvidas uma das mais difíceis de ser coletada.

Junho de 2015, noite fria na Cracolândia. Seu rosto já era familiar das minhas andanças noturnas pelo Centro. Fosse voltando para casa ou no meu ponto de ônibus próximo à rodoviária, era figurinha carimbada no álbum da madrugada belo-horizontina. Pelo menos no das minhas. Nunca havíamos nos falado anteriormente, nem mesmo cruzado olhares. Da parte dele, eu não existia até aquele exato momento. Da minha, já o observara solto na noite, sempre me intrigando. Perambulava pelo Centro, ora sozinho, ora com outros caras. Nunca sabia para onde ia. Como poderia estar ali, tão tarde? Será que tinha família, mãe ao menos? E para ir embora, como fazia? No minuto seguinte eu já me distraía e o perdia de vista.

Robinho é Robson, um garoto negro, de cabelo crespo e que usa um boné de aba reta bem surrado. É extremamente arredio; extrair qualquer coisa dele requer paciência de Jó, com doses de obstinação. O farrapo que se tornou sua camisa deixa amostra uma parte da barriga, enquanto a bermuda mal para presa na cintura. Resolve o problema fazendo de cinto um pedaço qualquer de fio. Seu par de chinelos é de numeração tão inferior ao tamanho de seus pés que os dedos tocam o chão constantemente. É o único par que tem. 13 anos de idade. Nem tem o jeito daqueles molecotes precoces, troncudinhos, espichados. É criança mesmo. Magrelo, baixinho. Cara e corpo confirmam o que a mente observadora recusa acreditar.

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Mora nas ruas, sob o céu das noites de BH. Na verdade, tem pai e um barraco no Aglomerado da Serra, lá pro alto da Avenida Afonso Pena. A mãe morreu quando era bebê. Morreu não, foi assassinada. Sua inexistente relação com a figura paterna faz com que ele mesmo se considere um menino de rua, tamanho o abandono que sofre. Largou a escola na quarta série e nunca mais pegou num caderno. Passa dias seguidos sem voltar para casa, preferindo as incertezas da cidade ao abuso certo em casa. “Ah, meu pai bebe demais e me bate. Sou homem, apanhar na cara não dá. Tem dia que queria que ele tivesse morrido e minha mãe ficado”.

Garante que não frequenta a Cracolândia todos os dias. Ali é chamado de “menor”. Para quem sobe a rua e o vê misturado aos usuários adultos, os olhos custam a desviar. Como uma criança vai parar numa cracolândia? Com a mesma facilidade de gente grande. Conhecem o crack, são dominadas pelo vício e não pensam duas vezes em ficar por ali. Robinho reluta, mas conta quando conheceu o crack. Fumou um baseado misturado com farelo da pedra. O mesclado bateu tanto que ele voltou na boca para pegar mais e então descobrir que tinha crack no meio. Levou meio a meio: um pouco de maconha, outro tanto de pedra. Depois de um tempo só voltava para buscar a segunda. Aprendeu a fumar com a própria rua.

A vida tem uma dívida pesada com Robinho. Ofereceu o pior dos mundos para um menino sem qualquer estrutura. Teve e tem a infância tão roubada que conversando parece um adulto. O papo é de adulto, as gírias são de adulto, até o ritmo da voz não condiz com sua idade. É gingado,

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meio que malandro, sempre parecendo desconfiado e com a fala picada. Não tem perspectivas de futuro porque nem oportunidade lhe foi concedida para elas serem criadas. Tudo lhe foi tirado: inocência, respeito, afeto, infância, futuro.

“eu não curto, mas roubo sim. Ali perto da rodoviária sempre dá um movimento melhor, umas tia trouxa ou uns vacilão de carteira no bolso de trás. Mas roubo só pra comer e fumar mesmo, só pra isso”.

Ali no fluxo ele tem um talento. Enquanto a meninada na sua idade sonha em provar seu talento correndo atrás de bola, ele é engenhoso com as mãos. Talento ingrato. Junta uma sucata aqui e outra ali para confeccionar pequenos cachimbos cobiçados entre os usuários. Os dedos miúdos são propícios para catar e burilar os materiais que utiliza. Não usa ferramenta alguma, só a criatividade mesmo. Quando quer ou precisa, senta na rua mesmo e faz um cachimbo em pouco tempo. O que ele utiliza hoje é feito de um pedaço tubular oco de antena, acoplado a uma pequena peça interna de computador em formato de bojo. Vende cada um por mixaria ou permuta. “[…] O dinheiro nem vale o trampo que é pra fazer esse trem. Faço e troco em pedra mesmo, mais fácil. Ou então como. Gosto de coxinha...”.

Robinho é um garoto que, dolorosamente, simboliza a degradação que a droga causa. Todas as suas perspectivas lhe foram arrancadas. É a tradução mais que literal do termo “menino de rua”. Ele é a própria rua. Até aquele momento, tudo na sua vida havia tomado caminhos errados, dolorosos. Talvez nunca tenha tido a chance

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de experienciar momentos felizes dada a realidade de abandono com a qual convive desde que se entende por gente. Confunde em sua cabeça de criança aquilo que de fato é feliz com o que é triste. “Felicidade pra mim, zé, é poder andar na rua aí, livre, fumar, trombar com o pessoal. Quero largar não, já acostumei […] futuro eu nem penso. Só ficar vivo mesmo já tá valendo. A vida é isso aí!”.

Não, Robinho. Não é.

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...POUCO COmO Um REI OU mUITO COmO Um zÉ?

“Só não bota o nome de verdade, senão dá treta, zé!”

Nem foi bem num tom de ameaça. Foi mais um pedido mesmo, daqueles que de tão sem jeito tomam outra forma quando ganham o mundo. A oportunidade era única: ouvir da fonte, o outro lado da moeda. Condição mais que aceita.

Tim perdeu as contas de quanta coisa louca já viu na Cracolândia. Tá mais que acostumado a todo tipo de situação, apesar de aparentar pouca idade. “24, bota aí!”. Boto. No braço direto, um pedaço de plástico filme enrolado protege a tatuagem mais recente. Duas mãos em posição de oração, ambas com uma ferida nas costas que parecem gotejar sangue, segurando um crucifixo. A fé existe nos lugares mais inóspitos para alguns. Para Tim, muito mais. “essa atividade toda aqui é só por Deus, tá ligado. Se não tiver fechado com ele a gente roda fácil nesse mundo”.

Desde os 13 anos Tim já manjava do riscado. É filho da Pedreira, nascido e criado ali, com orgulho. Nem sempre foi fácil. Aliás, parece que nunca foi. Perdeu a mãe cedo, fato sobre o qual evita se delongar. Restou um pai alcoólatra e abusivo, que tornava a vida dele e dos dois irmãos ainda mais amarga. “Pra não ficar apanhando do velho e nem meter o louco fazendo cagada, eu vivia fora de casa. não tem jeito, é a vida de favelado. isso aqui é a minha escola.”. Vida dura, de barraco em madeirite até melhorar um pouco. Escola nem pensar.

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“Aprendi a ler, escrever e fazer conta, tá bom. O resto a vida ensina”. Curtia seu baseado como qualquer outro jovem ali, mas sempre que fazia seu corre ficava se questionando como alguns daqueles caras apareciam sempre com uma bermuda nova ou camisa de time europeu diferente. Queria aquilo pra si. E é da vontade que nasce a ação.

Entrou para o tráfico como avião. Sempre fora mais extrovertido que os outros garotos, além de ter bom trânsito entre as bocas. Não causava problema, seu potencial era visto. Percorria todo o complexo na atividade, levando e trazendo droga. Na disposição, resolvia qualquer problema que surgisse e estivesse em sua alçada. Quando se aventurou a resolver um que não estava, se deu bem. Num período de poucos negócios para a boca, aceitou desbravar outros pontos da cidade atrás de novos compradores. O risco era grande, não teria todo o suporte que o esquema na favela proporcionava. Em uma semana, duplicou suas vendas. Porque no tráfico é assim: é como qualquer outro ramo de comércio. Se não está entrando grana, alguma coisa está errada. Se está faltando gente comprando, é preciso oferecer algo novo e ir atrás de mais cliente. Funciona assim para uma sorveteria, supermercado ou para um traficante.

“esse é o caminho do pobre que tem ambição. O tráfico. Queria ser mais que avião e lutei por isso”. Foi promovido a olheiro, função que desempenhou por um tempo. Passou a atuar como um verdadeiro coringa na boca. Cumpria todas as funções que eram necessárias, a mando superior. Trabalhou na produção, receptação, fez de tudo. Continuou fazendo

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seu nome, entregando o serviço de acordo. Era só pingar a oportunidade para o próximo salto. Ela veio quando um dos gerentes da boca foi preso. Foi nomeado pessoalmente pelo dono como novo gerente. “Aquele dia foi louco! Sabia da responsa que tava pegando no ombro, mas era o que eu sempre quis. Fazer dinheiro, ter uma vida melhor. Tava cansado de ser um ninguém na vida”.

As responsabilidades de um gerente de boca são muitas. Antes de tudo, ele é o encarregado por responder diretamente ao dono do local, o verdadeiro traficante. “isso aí não sai, zé. não posso abrir a boca pra falar nada não”. Presta contas detalhadas do funcionamento do negócio: fluxo de caixa, quanto sai, quanto sobra, quanto dá para investir na própria boca. Paga e coordena todos os funcionários, atribui atividades, esquemas de logística. Diz que tira um dinheiro decente pra sustentar a família: esposa e duas filhas pequenas.

Se quer ser dono da boca? “Aí cê me fode, irmão! Deixa isso quieto, tô fazendo o meu aqui e tá valendo….”

“Cara, não me sinto mal fazendo esse trampo não. essa galera aí compra droga porque gosta, porque quer. É o meu negócio, como qualquer outro, tá ligado? Alguém tem que fazer. eu mesmo nem ponho a boca nessa merda de pedra, puta coisa do demônio isso aí. Já vi gente lambendo o chão atrás disso, apanhando, morrendo, vendendo a alma. Mas se eu me sinto mal? não mesmo. Tô na atividade tanto quanto eles, é a lei do mais forte que impera….Cê já ouviu ‘Vida Loka’’ do Racionais, né? É aquela história: nessa vida aqui, cê quer viver pouco como um rei ou muito, como um Zé?”

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À ESPERA DA PRImAvERA

Na mitologia grega, Deméter é a deusa das estações do ano. Uma das doze divindades do Olimpo, filha de Cronos e Rea, foi possuída pelo irmão Zeus, rei dos deuses, com quem teve uma filha, Perséfone. A grande tristeza de sua vida ocorre quando a filha é raptada por Hades, deus do inferno e dos mortos, com quem se casa. Mãe desolada, percorreu os quatro cantos do mundo à procura de sua primogênita, sem trégua para se alimentar, beber ou descansar, até descobrir que ela já estava aprisionada nas profundezas.

Tentou resgatá-la inúmeras vezes das mãos de Hades, até que decidiu abster-se das tarefas agrícolas enquanto a filha não lhe fosse restituída. Os campos tornaram-se inférteis e a sobrevivência dos seres humanos estava em risco. Comovido, Zeus finalmente resolveu intervir, ordenando a Hades que libertasse Perséfone. O astuto rei dos mortos concordou, mas queria, de alguma forma, forçar sua amada a retornar sempre ao inferno. Ofereceu-lhe saborosos grãos como alívio para o dilema que viviam. Havia apenas um detalhe. De acordo com a mitologia, aquele que prova qualquer coisa no reino das profundezas, nunca mais estará livre de lá, estando permanentemente preso a ele. Seu plano funcionara. Então, ficou decidido que Perséfone passaria a viver parte do ano com a mãe Deméter na Terra e a outra parte com Hades, presa no inferno. Enquanto está com o marido, é puro inverno. Já em companhia da mãe, é a primavera que chega para germinar as plantações e florecer o mundo.

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A Cracolândia também tem lá sua mitologia, mas com papéis trocados. Érica está há um ano tentando tirar a mãe, Marisa, daquela que é sua versão particular de inferno. Um ano em que idas e vindas à Cracolândia tornaram-se rotineiras, a ponto de não se assustar mais com muito do que vê ali. Um fardo pesado para uma jovem de 25 anos seguindo as pegadas da mãe usuária de crack.

Érica está acostumada com os porres da mãe desde nova. Alcoólatra, Marisa foi abandonada pelo marido com a fílha ainda pequena e, desamparada, não conseguiu lidar com o peso do mundo. Criou-a aos trancos e barrancos, com extremas dificuldades, entre surras e cachaças. Moram num barracão “lá pra dentro” da Pedreira. A proximidade com o escape do crack atraiu de vez a mulher que, entre outros predicados enumerados pela filha, “é cozinheira de mão cheia quando quer”. Sempre conviveram com a Cracolândia aos seus pés, mas nem em seus planos mais destruidores elas imaginariam que se afundariam no lamaçal do vício. Érica conta que a mãe conheceu a pedra por interesse próprio, quando o álcool já não era suficiente. “ela sempre bebeu demais, muito. A vida inteira foi essa dificuldade com ela, porque é teimosa, fraca da cabeça mesmo. Sempre pareceu que eu sou a mãe dela e não o contrário […] Devia tá tão louca que aceitou experimentar essa merda de algum vagabundo. Agora tá aí, isso aí que você tá vendo”.

Era noite e ventava frio. Marisa não avistara a filha ainda. Do alto da rua, Érica aponta para uma mulher escorada no muro lateral da Rua Araribá e identifica a mãe. É uma mulher magrela e baixinha, que de longe até lembra uma

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adolescente pelo tamanho. Apesar de estar no meio do fluxo, não parece suja. Veste uma camiseta curta na barriga, além de uma calça legging preta. A touca listrada em azul e branco serve para esconder os cabelos crespos da fumaça e da sujeira. Está acompanhada de outras três pessoas numa rodinha, onde conversam e consomem crack. Não se nota nela alteração ou qualquer tipo de euforia; simplesmente está ali.

“A minha missão aqui é vir buscar ela. Quando ela demora pra chegar em casa, já imagino que tá aqui embaixo. Daí eu venho, marco um tempo e vou até lá chamar. Tem dias que ela colabora, já vai vendo minha cara na rua e sobe. eu até prefiro, porque daí não tenho que ir lá no meio deles. Mas tem outros que eu preciso chamar umas duas vezes pra ela vir, daí é foda […] eu vejo como ela tá e a gente sobe juntas lá pra casa. ela não é de ficar louca não. ela só fuma mesmo, sem esparro. Mas fuma, né, que diferença faz?”.

A princípio, o conformismo com que Érica encara sua realidade inquieta um pouco. Claramente ela não abandona a mãe, mas parece não se incomodar tanto com algo tão ingrato como o que vive. Ter a mãe ali, em meio a um cenário de extrema consternação e ruína humana, não é para qualquer um. Por que não arrancá-la dali? Se Érica é mais mãe de Marisa do que o contrário, porque não proibi-la a todo custo de pôr os pés naquele local? Ou quem sabe procurar ajuda? Há parentes que chegam até a acorrentar os entes em casa pra mantê-los longe do vício…

“Cara, é a maior tristeza da minha vida, cê pode ter certeza disso. Tanto é que eu tô aqui direto, chorando, buscando minha mãe no

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meio do inferno. Mas é foda! ela é muito teimosa, fraqueja mesmo. A gente já cansou de brigar, eu cansei de pedir pra ela parar….Por ela, por mim, mas nada. Sempre acaba batendo uma fissura nela pra voltar pra pedra. É uma desgraça isso, porque ela funciona normalmente com ou sem a maldita! […] Como eu preciso tocar a minha vida e essa é uma escolha dela, o que me resta é ao menos fazer isso daqui. É o que ela me permite fazer no momento”.

Foi um tapa na minha cara. Geralmente, quando nos dispomos a mitigar alguma coisa, é preciso que haja ao menos uma contrapartida da parte mais afetada. Um dos lados precisa ceder. No caso delas, esse estágio da coisa ainda parece distante.

Ainda bem que nem tudo é inferno. O vício da mãe, apesar de vício, é um tanto controlado. Marisa trabalha como cozinheira numa lanchonete no Centro da cidade, onde ninguém imagina o que ela faz antes de chegar em casa. Deixa pra beber e fumar depois do expediente, o que pode ser considerado “menos pior”. “Apesar de tudo, ela é uma boa mãe. Quando ela tá sóbria, é super de boa, nem parece que mexe com essas coisas. Somos amigas. ela arruma a casa, faz comida, tem vida normal (….) A gente é pobre, né, então não tem luxo. Mas lá em casa a gente batalha, sobrevive. Só que agora tem essa droga pra causar mais problema, já não bastava a cachaçada. O pessoal já a viu aí, pega mal, mas ela não se importa com isso. É o que a pedra faz, né”.

Érica apaga o cigarro e parte em direção à mãe. Não quer ser acompanhada. Agradece por lhe ter sido ouvidos e pede que seus nomes verdadeiros sejam alterados. É possível

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ver que naquela noite a mãe vai colaborar. Antes que Érica se aproximasse do grupo em que estava, Marisa é avisada por um rapaz de que tem visita. Levanta-se e despede-se rapidamente dos demais, enquanto sobe alguns metros da rua ao encontro da filha. Dão as mãos e retomam a subida, conversando cabisbaixas. Tudo muito naturalmente, se é que algo pode ser considerado natural em meio ao doloroso surrealismo que a cena proporciona. Érica acena brevemente com a cabeça, sem que a mãe perceba, como que se despedindo. Alguns minutos depois, somem lá no alto da Araribá.

Assim como Perséfone, Marisa em algum momento cedeu e experimentou sua versão de grão que atualmente a aprisiona no inferno. Enquanto está entregue à Cracolândia, é puro inverno. Quando é resgatada pela filha, a quase Deméter, é possível sentir uma brisa de primavera se aproximando…

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CAPÍTULO 5

CONHECENDO O INImIGO

… E ENTÃO SE FEz O CRACK

Considerada como a droga “suja”, o crack é o arquétipo daquilo tido socialmente como dejeto. Tudo relacionado a ele assume automaticamente essa forma, esse discurso, mesmo que mentalmente. Existe uma relação um tanto maternal entre o crack e a cocaína, esta um alcaloide extraído das folhas da planta de coca (erylthroxylum coca). Até tornar-se crack, a cocaína passa por diversas etapas: depois de colhidas, as folhas são expostas e secadas ao sol por determinado período a fim de serem moídas e refinadas.

O resultado desse processo é misturado a aditivos como ácido sulfúrico, cal, querosene, gasolina e até mesmo água de bateria. A solução pastosa é então prensada e comprimida até formar-se uma massa extremamente concentrada de cloridrato de cocaína, batizada de pasta base. É a partir dela que as pedras de crack ganham vida, através de um engenhoso processo de refino no qual adiciona-se o bicarbonato de sódio, criando uma mescla em pó. Para ganhar cara de pedra, a liga é feita com a adição do éter, ácido clorídrico ou acetona ao pó, que, como novo composto, passa por uma etapa de aquecimento e decantação, na qual as substâncias líquidas e sólidas são

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separadas. O resfriamento da porção sólida gera a pedra de crack, concentrando e potencializando os princípios ativos da cocaína.

Trabalhoso, o processo chega ao fim com a obtenção de pedras que, quando quebrada, variam de tamanho sem qualquer tipo de padronização, mas sim de acordo com os interesses de distribuição e venda. O crack tem cor branca ou amarelada, oriunda da mescla dos produtos químicos agressivos e se assemelha muito com um plástico duro, mas quebradiço, com densidade ligeiramente superior à parafina. Não afunda em água e curiosamente apresenta traços de uma camada impermeável, impedindo que esse se dissolva facilmente. A pureza do crack é relativa, haja vista que depende de todo o investimento feito – ou não – na produção da pedra. De qualquer maneira, os princípios ativos são os mesmos e aparecem potencializados numa pedra pura ou em outra de menor custo de produção.

O consumo do crack é feito por processo inalatório. A forma injetável da droga normalmente não é consumida e, segundo estudos na área, não produz o mesmo efeito desejado. Para o consumo, são utilizados famosos cachimbos como os dos usuários com os quais conversamos para esta reportagem. Esses cachimbos são feitos de todo tipo de material a disposição, sendo o principal o alumínio, material ainda mais agressivo ao organismo devido à sua excessiva toxicidade. Usuários como o garoto Robinho preferem qualquer tipo de sucata na confecção do utensílio. Com o tempo, os cachimbos acumulam em seus bojos a chamada “merla”, uma espécie de borra resinada que,

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quando aquecida e moldada em forma de pedra, torna-se objeto de desejo de muitos usuários, a “pedra das pedras”, uma vez que concentra um alto número de resquícios ali depositados por pedras fumadas anteriormente. É comum também que pequenos fragmentos da pedra sejam misturados ao tabaco (pitilho) ou à maconha (mesclado). Os usuários utilizam um isqueiro, geralmente de chama alta, ou as brasas de um cigarro qualquer para acenderem a pedra de crack. A combustão é imediata, devido ao caráter volátil da droga. O nome “crack” em inglês vem justamente desse momento de combustão da pedra, já que o ruído feito é semelhante ao de algo estalando.

Ao passar do estado sólido para o vapor em uma temperatura relativamente baixa – 95 ºC – os vapores de cocaína no crack são liberados e absorvidos pelos pulmões imediatamente, entrando na corrente sanguínea e atingindo o cérebro numa média de 10 segundos. Nesse momento, o crack força o cérebro a liberar no organismo uma alta quantidade de dopamina, neurotransmissor diretamente responsável por funções como o controle dos movimentos, o aprendizado, o humor, as emoções, a cognição e a memória. A duração dos efeitos é limitadíssima – por volta de 5 a 10 minutos – engatilhando no usuário a constante busca por uma nova onda, conforme testemunhamos nos casos de Marisa, Laudinei e Bruna, entre outros neste trabalho.

Desenvolve-se aí o primeiro dos muitos fatores que levam as pessoas posteriormente a um quadro de dependência da droga. A droga produz uma sensação intensa de euforia,

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prazer, descolamento com a realidade, agressividade, poder e autoconfiança, além de reduzir drasticamente a necessidade de sono e alimentação. Também é bastante comum que os usuários sintam sede exacerbada ao longo do consumo, à medida que os efeitos da fumaça implicam na desidratação do indivíduo. Em curto prazo, o efeito termina causando episódios de disforia e fissura aguda, depressão severa, paranoia, hostilidade e insônia. Fisicamente, os efeitos do crack no corpo englobam a destruição das células cerebrais, acentuado risco de acidente vascular cerebral (AVC), queimaduras nos dedos, face e lábios, problemas respiratórios e contaminação por alumínio e outras substâncias nocivas. Já em longo prazo, além dos quadros de tolerância e dependência agravados, o indivíduo apresenta acentuada perda de peso (o que ocasiona, em muitos casos, uma magreza esquelética), diminuição do interesse sexual e infertilidade, decadência dentária, parcos cuidados com a aparência física e higiene pessoal, problemas cardíacos, respiratórios, neurológicos, mentais – constantes alucinações, paranoia – gástricos e infecciosos. Na Cracolândia, os relatos de Bruna e Val serviram para ilustrar melhor esse quadro cotidiano.

A venda do crack não detém mistérios. Em média, uma pedra de tamanho padrão – algo como a cabeça de um polegar – é vendida a R$ 5,00, entre pequenas variações de preço. Já os chamados “farelos”, literalmente lascas em tamanho reduzido de pedra, são vendidos por qualquer valor, mas giram em torno de R$1,00 a R$ 2,00 dependendo da boca de fumo, quantidade e qualidade. Atualmente, na

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Cracolândia de Belo Horizonte os preços são praticados seguindo a mesma lógica, conforme relatos apurados entre os usuários e os próprios revendedores do tráfico.

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TERRA À vISTA: PEDRA CHEGA AO BRASIL E Em BELO HORIzONTE

O final da década de 1980 é tido como o marco zero da chegada do crack ao Brasil. Sua porta de entrada é São Paulo. A droga vinha sendo consumida nas comunidades pobres do Harlem e Brooklyn, bairros de Nova Iorque, nos Estados Unidos, e romperia fronteiras rapidamente. Relatos policiais da época denotavam a presença da nova droga sendo consumida nas periferias paulistanas e que rapidamente se alastrariam pelas ruas da região central da capital, a ponto de pequenas comunidades de consumo serem formadas nas vielas e casarões abandonados. A natureza da droga tornou-a rapidamente a preferência da população em situação de miséria e sua popularização dava-se de maneira descontrolada, apoiada na justificativa de “mercado” que sempre manteve o crack como uma droga de baixíssimo custo e fácil acesso, aspectos atrativos para a maioria dos dependentes. Nessa fase inaugural da droga, era comum a “venda casada” por parte dos traficantes: qualquer outra substância só seria comercializada se o comprador levasse quantidades complementares de crack, numa tentativa de forçar a comercialização do novo produto, bem como a sua popularização. Na década de 1990, quando o crack já estava presente na capital paulista, as publicações jornalísticas passaram a cobrir mais enfaticamente os problemas relacionados à droga nas páginas de jornais e reportagens, cunhando, gradativamente, o termo “cracolândia” para se referir às concentrações de usuários num mesmo espaço,

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mais precisamente no bairro da Luz. A partir dessa porta de entrada e concentração, a consolidação tanto do consumo quanto do tráfico do crack e sua expansão para outros centros do país foi questão de tempo.

Belo Horizonte abriria suas portas à pedra emboaba na metade da década de 1990. O tráfico de drogas na capital mineira consistia de cocaína e maconha, o que abria um vasto campo para a popularização do crack, novidade absoluta até então. Vindas de São Paulo, as primeiras remessas da pedra eram comercializadas pela quadrilha chefiada pela família Peixoto, na Pedreira Prado Lopes, bairro Lagoinha, que com o tempo adquiriu o know-how do processo de produção, passando a produzir, revender e controlar toda a droga encontrada na capital daquela época.

A Pedreira já adquirira ao longo dos anos a cara de marginalidade tradicional, imersa nas histórias dos personagens e dos malandros que marcaram época na boêmia local. A chegada do crack dava-se num período conflituoso entre os diversos grupos e forças que disputavam a liderança do local, o que acabava por favorecer o surgimento de inúmeros pontos de tráfico. E, como diz a lei da rua, onde há droga, há gente. A proliferação das bocas de fumo pela favela na Lagoinha proporcionava, gradativamente, a aglomeração dos novos dependentes que encontravam na região o espaço ideal para o consumo constante e indiscriminado do crack. Em um bairro já marginalizado pela sociedade e aos pés de uma favela, quem se importaria com as pessoas que aos poucos foram

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se aglomerando? A droga facilmente comprada ali não carecia nem de mais alguns passos para ser consumida em local seguro, sem que qualquer impedimento fosse imposto pelo poder público, moradores e nem mesmo pelos traficantes. A disseminação do tráfico de crack encontrava, então, o seu porto seguro. Consolidava-se o alicerce para o nascimento da primeira cracolândia de Belo Horizonte: a Cracolândia da Lagoinha.

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PERFIL BRASILEIRO: qUEm SÃO OS USUÁRIOS DE CRACK?

A definição de um perfil para o usuário de crack no Brasil foi sempre algo difícil de estabelecer. As inúmeras variantes que deveriam ser levadas em conta nunca foram aglutinadas numa só pesquisa por parte do Estado, acostumado a analisar pequenas amostras e replicar os resultados como verdade única na caracterização dessa população. Até que, alarmado com o avanço do consumo e comercialização da droga em território brasileiro, o Governo Federal, através da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desenvolveu uma das maiores pesquisas sobre crack já realizadas em todo o mundo. O caráter inédito desse levantamento pretendia esclarecer a fundo todas as variantes possíveis e necessárias para se traçar um perfil do usuário da droga no país. Os resultados desse massivo volume de informações levantadas trariam, enfim, indícios mais concretos e relevantes acerca da epidemia social em que se converteram o crack e as cracolândias.

Englobando as 26 capitais e o Distrito Federal, nove regiões metropolitanas e municípios de médio e pequeno porte, foram ouvidas para o estudo da Fundação Oswaldo Cruz 33 mil pessoas em todo o país, entre março e dezembro de 2012, a fim de se chegar a uma amostra complexa e representativa do perfil de usuário. O estudo apontou um total de 370 mil usuários de crack e drogas

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similares – cocaína fumada (pasta base, merla e oxi) – nas capitais brasileiras, atingindo 35% do total de consumidores de drogas ilícitas, com a exceção da maconha, no país. Isso mesmo. 370 mil pessoas consomem alguma forma de crack no Brasil e esse número certamente não estacionou aí. A alarmante porcentagem de 35% trouxe à tona o fato de que o crack poderá, gradativamente, assumir o posto de droga mais consumida no país nos próximos anos se não houver ações eficazes.

Se em números absolutos por si só a escalada do crack no país já choca, quando mergulhamos no âmbito da vulnerabilidade social da questão, o contexto é ainda mais profundo. O levantamento nacional apurou que, entre os 370 mil usuários de crack e/ou similares estimados, tem-se que cerca de 14% são menores de idade, o que representa aproximadamente 50 mil crianças e adolescentes que fazem uso regular dessa substância nas capitais do país. A maior parte deles (56%) está concentrada nas capitais do Nordeste, onde foram estimados 28 mil menores nessa situação. Impressiona ainda mais quando consideramos a utilização da definição “uso regular” como sendo o uso de droga por pelo menos 25 dias nos últimos 6 meses, conforme a definição da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). A situação piora ainda mais quando observamos que não se trata de 25 vezes, mas sim dias, tendo em vista que os usuários de crack fazem uso da substância de forma repetida, num curto espaço de tempo, no contexto de um mesmo dia.

No Brasil, os usuários de crack são, majoritariamente, adultos jovens com idade média de 30 anos – em especial

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entre 18 a 26 anos –, o que também não ofuscou o alto número de usuários que passam dos 40-50 anos de idade. São predominantemente do sexo masculino – 78,7% -, enquanto 80% se declaram como “não brancos” – pretos e pardos. Outro ponto relevante no perfil do usuário é o reforço da tese de afrouxamento dos laços familiares que advém com a dependência da pedra, sendo que 61% dos usuários declararam ser solteiros. No que tange a escolaridade dessas pessoas, observou-se a baixa frequência de usuários que frequentaram e/ou concluíram o Ensino Médio – 57% cursaram entre a 4ª e 8ª série do Fundamental, enquanto menos de 20% o Médio – além da baixíssima proporção de usuários com Ensino Superior, cota inferior a 3% da amostragem. Essa estatística foi amplamente constatada ao longo das incursões na Cracolândia belo-horizontina, já que grande parte das pessoas entrevistadas havia abandonado a escola em algum momento. No entanto, vale observar que muitos usuários também declararam ter estado em algum momento na escola, reforçando assim a importância de programas de prevenção em âmbito escolar desde os níveis iniciais de escolarização e a necessidade de atuarem tanto para manter essas populações nas escolas, de modo que obtenham uma formação adequada, quanto para aumentar a capacidade das escolas de lidar com uma população às voltas com problemas psicossociais relevantes.

Demograficamente, de acordo com o estudo, a distribuição dos usuários de crack no Brasil também traz dados importantes. Ao contrário do que dita a percepção geral,

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o Nordeste concentra a maior parte dos usuários, com aproximadamente 150 mil usuários de crack, cerca de 40% do total de pessoas que fazem uso regular da droga em todas as capitais do país. Alguns especialistas apontam que um fator importante para isso seria o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mais baixo da região na comparação nacional. Na Região Norte estima-se 35 mil usuários, enquanto na Sul, 37 mil. A fatia que cabe ao Sudeste chega a aproximadamente 148 mil usuários de crack espalhados entre capitais e municípios de maior porte, destacando-se São Paulo e Rio de Janeiro como os grandes centros da pedra. O ponto em comum que aglutina todas as regiões do país é justamente o da localização em que o consumo de crack se dá: são irrelevantes as diferenças regionais levantadas quanto aos locais de consumo do crack e/ou similares. Cerca de 80% dos usuários a utiliza em espaços públicos, de interação e circulação de pessoas, ou em locais possíveis de serem visualizados, visitados e transitados normalmente, por não se tratarem de espaços privados. Diagnostica-se, então, o principal fator que leva ao surgimento das cracolândias por todo o país.

Sobre a situação de moradia dos usuários, é curioso observar duas fatias importantes e a desmitificação – ou ao menos a amenização – de uma delas. Tido como a droga da rua, o crack tem 40% de seus usuários em situação de rua. Esse contingente expressivo não necessariamente mora nas ruas de maneira permanente, mas passa a maioria do seu tempo ali. Por outro lado, cerca de 38% dos usuários alegaram ter moradia fixa, entre apartamentos, casa própria ou da

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família. Essa expressiva porcentagem chama a atenção da sociedade para o fato de que já não cabe mais caracterizar sumariamente o perfil dos usuários de crack como sendo apenas moradores de rua. Agora, o crack já possui CEP e endereços fixos. A droga dos mendigos agora também é droga telhada.

A forma mais comum de obtenção de dinheiro relatada pelos usuários para o sustento do vício abrange o trabalho esporádico ou autônomo, com cerca de 65% dos usuários. A mendicância é a segunda fonte de renda para 12,8% deles, próximos aos 11,27% obtidos por meio de empréstimos e/ou presentes. Outra vez desmitificando o senso comum, que associa quase que congenitamente uma coisa a outra, as atividades ilícitas, como o tráfico de drogas e furtos/roubos e afins, foram relatadas por uma minoria dos usuários entrevistados, 6,4% e 9,0%, respectivamente, como sendo a principal fonte de financiamento da dependência. Já a troca de sexo por crack e dinheiro foi relatada por 7,5% dos usuários, porção considerada alarmante diante das consequências oriundas dessa prática. Quando comparada à população geral, onde a proporção de profissionais do sexo é inferior a 1% (PCAP, 2008), constata-se que a prática do sexo comercial é uma fonte relevante de renda nessa população, mas distante de ser a única.

No perfil epidemiológico, mais números que assustam. A prevalência do HIV e da hepatite C (HCV) entre as doenças mais constatadas nessa população trazem à tona a urgência do assunto passar a ser tratado como crise de saúde pública e não policial. Mediante o teste rápido feito

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a partir do aceite dos usuários, constatou-se que, entre as mulheres, 8,17% são portadoras do HIV, enquanto a prevalência entre os homens foi de 4,01%. Comparados com a população brasileira, os usuários de crack entrevistados nessa pesquisa apresentaram prevalência de HIV cerca de 8 vezes maior do que a da população geral (5,0% vs. 0,6%). Já em relação ao vírus da hepatite C, as mulheres representam 2,23% dos infectados e os homens 2,75%.

Aliás, tanto o perfil quanto os números relacionados às mulheres merecem um sombrio destaque. Os resultados mostram que 21,32% dos usuários no país são do gênero feminino, sendo que a proporção de mulheres consumidoras nas capitais é maior do que nos demais municípios (23,55% x 16,59%). Na faixa entre 18 e 24 anos, as mulheres representam 37,41% dos consumidores, contra 29,67% dos homens, aspecto até então desconhecido e igualmente assustador. Mais e mais jovens mulheres entram em contato com o crack no país sem que políticas públicas específicas sejam direcionadas a essa parcela da população. Cerca de 55% de todas as entrevistadas afirmaram também ter praticado sexo ou feito algum trabalho sexual em troca de dinheiro para comprar a droga – contra 38% entre os homens, somadas aos 40,04% das entrevistadas que sofreram violência sexual nos últimos 12 meses. Estamos nos referindo à quase metade da população feminina consumidora da droga no país sofrendo algum tipo de violência sexual e/ou física. Durante o estudo, cerca de 10% das mulheres relataram estar grávidas no momento da

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entrevista, sendo que mais da metade das usuárias já havia engravidado ao menos uma vez desde que iniciou o uso do crack. Esse número torna-se ainda mais preocupante quando consideramos as consequências destruidoras geradas pelo consumo do crack durante a gestação no desenvolvimento neurológico e intelectual dos fetos e das próprias mães.

Por fim, confirmou-se que mais da metade dos usuários no Brasil seguem um padrão de consumo diário de crack, embora o consumo por dia sofra uma frequência bastante variável. O número médio de pedras usadas por usuário nas capitais é de 16 por dia, enquanto nos demais municípios esse número diminui para 11 pedras ao dia. Essa frequência elevada nas capitais pode ser justificada, entre tantos outros fatores, pela inserção dos usuários em cenas de maior porte com, por exemplo, 200 pessoas, uma concentração “digna” de cracolândia. Estima-se que o mínimo de circulação e consumo numa dessas zonas de aglomeração seja de 3.200 pedras/dia, ou mesmo 3.200 pedras/turno, considerando que a circulação dos usuários é diferente em cada turno (dia, tarde, noite, madrugada).

Nas capitais, o tempo médio de uso do crack por um usuário foi de 91 meses (aproximadamente oito anos), enquanto nos demais municípios este tempo chegou a 59 meses (cinco anos). O estudo sugere que o uso da droga vem se interiorizando mais recentemente, além de contradizer o discurso comumente imputado de que os usuários de crack teriam sobrevida necessariamente inferior a três anos

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de consumo. Estão adquirindo resistência suficiente para prolongar os anos de vida e de consumo, esta é a verdade.

Todas essas faces acima obtidas para o perfil dos usuários de crack evidenciam a completa derrota do poder público em conter o avanço do crack nos segmentos mais debilitados da população brasileira. Talvez o principal aspecto que os números levantados não sejam capazes de traduzir é o fato de que a ampla maioria dessas pessoas embrenhadas no crack e nas suas cracolândias esteja ali por uma forte necessidade de pertencimento. Marginalizados, abandonados socialmente de todas as formas, os frequentadores de uma cracolândia encontram ali um território de aceitação, dentro de uma realidade já alternativa à vigente ou, ao menos, diferente. Absortos nesses locais, constroem identidades, laços, impõem e seguem regras e hierarquias, sendo o crack o liame principal de todas as relações encrustadas ali. Assim, as cracolândias passam a funcionar para esses indivíduos, cujo breve perfil tratamos aqui de esboçar, como a única realidade disponível para viverem, uma vez que todos ali a compartilham à sua maneira. Metaforicamente, a permuta se faz pertinente: nós parecemos não nos importar com aquela realidade, marginalizada, a menos que passe a nos incomodar; enquanto eles não se importam com a nossa.

Não há perfil nem números que dão conta de explicar ou mensurar com exatidão tal experiência. Só os que a vivem na própria pele, talvez, sejam capazes de esboçá-la.

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FENômENO “CRACOLÂNDIA”

Todo lixo é em potencial venenoso – ou pelo menos, definido como lixo, está destinado a ser contagioso e perturbador da ordem adequada das coisas. Se reciclar não é mais lucrativo, e suas chances (ao menos no ambiente atual) não são mais realistas, a maneira certa de lidar com o lixo é acelerar a “biodegradação” e decomposição, ao mesmo tempo isolando-o, do modo mais seguro possível, do hábitat humano comum (Bauman, 2005:108).

Recortes da versão mineira de cracolândia já lhe foi apresentada, mas ainda é fundamental que entendamos um pouco mais sobre o fenômeno que recebe esse nome. É preciso ter em mente que uma cracolândia é muito mais do que a rasa concepção de um mero aglomerado de pessoas dispostas ali para o consumo do crack. É mais do que o discurso por vezes exagerado, insensível e impessoal que é engendrado ou reforçado no imaginário social pelos meios de comunicação acerca do crack, de seus usuários e de suas representações coletivas. Tal prática contribui para a constante representação dos usuários de crack como violentos e degradados, além da disseminação de repúdio e medo entre a população que passa a enxergar através de um único ponto de vista.

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Como afirma Bruck (2013), somos constantemente alimentados pelas imagens das cracolândias como um depósito de indivíduos de aspecto asqueroso, misturados ao lixo, sendo o verdadeiro lixo. Opta-se pelo enfoque nas narrativas de apelo emocional que acabam por concentrar, exclusivamente, a atenção da sociedade apenas no problema, desviando o debate em prol das soluções, haja vista a dimensão que tal fenômeno detém nos aspectos socioeconômicos, político, jurídico, clínico e cultural. Existe sim a espetacularização da desgraça do crack e de suas cracolândias, é bem verdade. Entretanto, o que temos ali são seres humanos num completo estado de degradação social, moral, física e psicológica. Independente do discurso escolhido e disseminado, seja por quem for, é preciso que levemos esse “porém” sempre em consideração.

Alguns fatores em comum são observados em todas as formações de cracolândia pelo país. Um dos mais proeminentes é o esvaziamento demográfico que caracteriza os espaços urbanos que se tornaram cracolândias. São espaços geralmente localizados em áreas empobrecidas, que anteriormente tiveram seu auge de urbanização e que hoje vivem os reflexos das mudanças sociais que acompanham as cidades. Essas áreas são marcadas por traços de abandono ou proximidade com tráfico de drogas, o que facilita toda uma rede de consumo do crack naquela redondeza, por questões de logística com a distribuição da droga. É bastante comum que essas áreas de esvaziamento demográfico sejam ocupadas por pessoas em situação de rua, que encontram ali um espaço para fixar

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moradia, mesmo que nas condições mais precárias.

Contudo, é num paradoxo do aspecto social que o fenômeno das cracolândias chama mais atenção. Esses espaços seguem a lógica existente na história humana de potenciais refúgios, territórios que abrigam os excessos marginalizados de insumo humano quase que como um aterro sanitário. Colocados longe dos olhos da sociedade, passam a ser invisíveis, irreconhecíveis, ignorados. Por outro lado, é através dessa materialidade do consumo de crack que esse e tantos outros fenômenos envolvidos são trazidos à luz no espectro social, que se esforça em vão para mantê-los ocultados, afastados da discussão. O crack torna público tudo aquilo que queima. Através dele, tantos descartes da sociedade são vistos, denunciados. Como afirma Dias (2012), é também através do crack e de suas cracolândias que falamos dos modos de vida pauperizados, das ruas como moradas, dos diversos laços sociais interrompidos, da degradação humana, do cotidiano de sobrevivência e dependência química, entre tantos outros aspectos que vêm à tona com o estalar das pedras no cachimbo. Irônico por si só, podemos entender uma cracolândia, então, como esse lugar de pessoas marginalizada, um aterro de descartáveis do sistema, mas que peculiarmente, são necessárias para a manutenção, existência e constante representação do mesmo.

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CAPÍTULO 6

HÁ qUEm vENÇA

mARATONA DE UmA vIDA

O apelido condiz com a cena. Esperando ser atendido na fila do Sopão, Ferinha olha desconfiado para todos os lados, como se estivesse à espreita de algo ou alguém. Ainda calado, alterna a observação das pessoas à sua frente com olhares rápidos no relógio no punho esquerdo, indicando certa impaciência. Por que a pressa? Ali na fila é só mais um em meio aos mendigos, usuários de crack e transeuntes, mas, mesmo assim, sente que todos os olhos estão a fitá-lo. Seria o costume adquirido nos vinte anos morando pelas ruas de Belo Horizonte ou mero acaso da ocasião? Mais que ferocidade e paciência, o que ele sempre teve foi determinação.

Ferinha é Charles Marcos Gomes, belo-horizontino de 42 anos, sendo vinte desses vividos nas ruas da capital. Entre idas e vindas, conhece como poucos a lida diária das madrugadas por todos os cantos do Complexo da Lagoinha, onde fica a Cracolândia. Passou a infância toda ali, a poucos metros de onde hoje toma tranquilamente sua sopa, já em mãos. Onde hoje se encontra a área cercada por tapumes e material de construção entre os viadutos do Complexo era a antiga “Graminha”, local de concentração dos meninos de rua de BH há quase trinta anos. Órfão

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de mãe aos nove anos, nunca conheceu o pai. O restante da família era desestruturado e as ruas acabaram virando refúgio pro garoto que não via então alternativa. Foi ali que Ferinha viu a vida passar, entre brincadeiras, peladas e batidas policiais. Numa dessas, por um mal entendido, acabou recolhido pela antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM). Tinha 14 anos.

“naquela época eu perambulava com a meninada pela cidade, mas eu nunca participei de um roubo, posso te jurar! nunca me agradou a vida de bandido. eu morava na rua porque não tinha outra opção mesmo. Daí numa confusão dessas de rua, acabaram me levando”.

Dos 14 aos 21 anos a vida na FEBEM, por pior que fosse, tirou-o das ruas e seus caminhos complicados. “Serviu como lição, dei um tempo das ruas”. Ao sair, ainda desestruturado na família e sem muita perspectiva de reinserção, voltou às ruas, mas com outra mentalidade. Com dificuldades, descolou um emprego de office-boy na Secretaria Municipal de Esportes e lá descobriu aquilo que mudaria sua vida pra sempre: a corrida. Participou de uma espécie de olimpíada dos servidores, onde se saiu tão bem que nunca mais parou. Mesmo em situação de rua, Ferinha nunca desanimou em treinar e seguir adiante, ostentando com orgulho as histórias de suas vitórias e participações em corridas profissionais e amadoras. “Corri a Maratona de São Paulo e a São Silvestre, também a Meia Maratona do Rio. Viajei pra lugares como Vitória, Poços de Caldas e Divinópolis, tudo pra correr... Sempre que consigo apoio pra me inscrever eu tento, já ganhei vários prêmios e até dinheiro”.

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Desde então, sua vida mudou radicalmente. Continuou morando na rua por um tempo, em abrigos, trabalhando como coletor de recicláveis, mas queria mais. Credita a disciplina necessária para sair da antiga situação como a grande lição que o esporte lhe trouxe. Dedicado a mudar, juntou dinheiro suficiente para alugar um pequeno barracão no bairro Floresta, Região Leste da cidade. Seus maiores troféus? Nunca ter usado drogas e convencido o filho de seis anos a morarem juntos na nova casa. “Frequento a Cracolândia por dois motivos. O primeiro é que a vida inteira, desde quando morei na rua, vinha aqui na região tomar sopa e me alimentar. não pararia agora pois é algo de que nunca me arrependerei. e tenho muitos amigos nas ruas ainda, sempre a gente se vê e bate um papo. Mas voltar pra cá, nunca mais!”

A vida humilde que leva hoje tem sido muito melhor do que nos tempos de Graminha. Trabalha como faxineiro em dois condomínios no bairro onde mora, além de fazer bicos como ajudante de pedreiro e jardineiro. Conhecido na região, recebe doações de cestas básicas e roupas para ele e o filho. Compartilham almoços no Restaurante Popular, além da determinação por uma vida melhor. Pretende terminar o ensino fundamental algum dia, motivado pelas cobranças do filho, já que “só sei ler, não sei escrever”. Como isso é possível? Difícil mesmo é duvidar de um cara desses. “A vida me ensinou com muito custo que ela não é uma corrida de velocidade, mas sim de resistência”.

É assim, correndo, trabalhando ou visitando a Cracolândia que ele leva a vida. Seja diante dos obstáculos ou nas pistas, sua vocação é mesmo não ficar parado.

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FALTA A DE DEUS…

Toda segunda-feira Paulo tem um encontro marcado com a Cracolândia. Gosta de pontualidade, sempre aparece por volta das 19h para marcar lugar. Geralmente num cantinho mais afastado, longe do fluxo, onde a movimentação é mais intensa. Dali observa o movimento entre os usuários, raramente abre a boca para falar alguma coisa. Só quando algum conhecido se aproxima é que se dá ao trabalho de interromper a mansidão. Chegou de banho tomado, cheirando a sabonete e com os cabelos brancos ainda meio úmidos cuidadosamente penteados para trás. Nenhum fio de barba, rosto liso, moreno, calejado. É um senhor baixinho, magrelo, de estrutura física meio frágil. Ao contrário de muitos ali, suas roupas estão limpas, camisa para dentro da bermuda surfista, tênis numa brancura impecável. Destoa num cenário caracterizado pela sujeira e pelo desleixo.

Em mais um dos muitos encontros que já teve e ainda tem com a cracolândia, pouco se altera no roteiro que ele segue. Depois de muito olhar para os lados, observar cada rosto com cuidado, pela primeira vez ele sobe e desce a Rua José Bonifácio como se estivesse à espera de algo ou alguém. Hoje seus encontros com a Cracolândia são estritamente pessoais, bem como sua ligação com o chão daquele lugar. Segunda-feira é dia de sopa e ele está ali exclusivamente para isso. Apenas. Para fumar pedra, não mais. Foi-se o tempo. Há um ditado urbano que diz: o pobre sai de dentro da

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favela, mas a favela não sai de dentro do pobre. E da Cracolândia? No caso de Paulo, também não.

São 11 anos limpo, sem ter colocado uma pedra na mão. Hoje, com 46, a saúde talvez não seja tão complacente com os abusos de outros tempos. Foi viciado em crack dos 16 aos 35 anos, entre idas e vindas, de cachimbos a latas. Conhece como poucos todo o asfalto do Complexo da Lagoinha e da Cracolândia. Já dormiu ali, morou, comeu do lixo, até trabalhou. Fazia intermédio entre novatos do local com os traficantes, colocando-os em contato para que se virassem sozinhos depois. Viu aquilo ali ser derrubado e levantado, nascer do nada incontáveis vezes. Em seus anos de crack, topava qualquer parada e não afinava pra quem quer que fosse. Sempre acompanhado de uma faca, peça que segundo ele “já trouxe salvação e perdição”. Costumava beber muito para roubar. E roubar muito para manter o vício. Era comum se descontrolar. Alcoólatra e viciado em crack, no auge dos efeitos de tudo isso junto. Cansou de arrumar confusão com outros usuários e de agredir as mulheres, a ponto de se tornar uma persona non grata em plena Cracolândia. Conseguiu tal proeza.

A única certeza que temos sobre a tal da sorte é que ela sempre mudará, para bem ou mal. Ironicamente numa segunda-feira de 1997, Paulo saía de um bar acompanhado por uma mulher. Passaram a tarde inteira bebendo e fumando pedras de crack como em outro dia qualquer. Foi abordado por outro homem que dizia ser o companheiro dela e queria satisfações do porquê estar andando com sua mulher. Paulo deu de ombros. Momentos depois,

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sentiu um chute forte nas costas, o suficiente para cair no chão violentamente. Nas frações de segundos em que permaneceu ali deitado, tomou a decisão que mudaria sua vida pra sempre. Levantou-se rapidamente já com a faca na mão esquerda e acertou o peito do sujeito em cheio. Teve tempo para desferir outro golpe no tórax e constatar que aquele ali já não viveria mais. Largou faca e mulher pra trás e correu. Correu a esmo. Só correu. Vinte minutos depois estava no chão outra vez, agora já dominado pela polícia que fora acionada por testemunhas do crime. “Me lembro do bafo do polícia no meu pescoço, dizendo que eu ia me foder muito pelo que tinha acabado de fazer. Ali era matar ou morrer e eu nunca fui muito paciente não. não me arrependo, era ele ou eu. Só fui me arrepender lá no pavilhão, aí sim”.

Foram 11 anos de pena por homicídio doloso, cumpridos em regime fechado na Penitenciária Nelson Hungria. Lá dentro viu de tudo: estupro, violência, doença, podridão, armas, drogas. Crack. Teve inúmeras chances de continuar com seu vício dentro da prisão, mas acabou optando pelo oposto, por se afastar. “Os primeiros meses eu ficava na fissura. estava ficando louco por estar preso, não poder fumar. Lá até que tinha, mas não queria fazer dívida, queria me afastar um pouco...Cadeia ensina também. Segurei minha onda, resolvi parar de fumar, não queria morrer naquela merda. Acho que foi a melhor escolha”.

Durante todo o tempo em que esteve preso, Paulo pôde contar nos dedos das mãos as vezes em que teve alguma visita. Tem dois filhos e alguns parentes espalhados pelo mundo, mas desde os tempos da loucura do crack já não detinha laços mais fortes com eles. Após algumas visitas

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iniciais, a frequência foi diminuindo até que se extinguiram de vez, algo a que ele não se atém muito. “eu nunca fui um bom pai, um bom familiar. Sempre fiz coisas erradas, fiz minhas escolhas e me distanciei de todos pra afundar num mundo em que eu era mais feliz. não culpo nenhum deles por não me procurarem mais, não ofereci nada de bom em troca pra que pudesse os manter por perto”.

Saiu em 2008 e desde então tenta atribuir à sua vida o adjetivo de normal. Não tem conseguido emprego em área alguma, o que atribui exclusivamente à sua ficha criminal. Recentemente tirou a nova carteira de identidade e agora corre atrás de trabalho. Garante que sabe fazer de tudo e nem quer muito, “apenas salário mínimo pra alugar um quarto e comer”. Vive alternando períodos nos abrigos da capital: quando expira a estadia máxima, tenta vaga em outro, seguindo o ciclo. Para se manter, faz bicos e cata latinhas durante o dia, o que lhe rende o mínimo para subsistir. Não dispensa andar asseado agora, um dos poucos traumas que diz trazer da prisão. Faz questão de ratificar que não bebe, não fuma nem cheira nada.“Droga nunca mais. Desde que entrei e sai da cadeia eu não fumo pedra e nem quero. Aquilo lá acabou com minha vida e hoje eu tô aqui pagando o preço. não preciso mais”.

Curiosamente, está na Cracolândia toda segunda-feira. Vai ali para jantar a sopa que os projetos sociais oferecem. Depois que come, conversa brevemente com um ou outro e vai embora para o abrigo, em silêncio. Talvez pensando em tudo pelo que já passou na vida. “esse lugar aqui me traz lembranças de um tempo que perdi na vida e não volta mais. Meus colegas até perguntam como é que eu ainda volto aqui. eu volto. É

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bom não esquecer as coisas ruins que se faz na vida, pra ver se a gente aprende alguma coisa com elas martelando na cabeça”.

“Pro futuro eu quero é paz. Ter meu canto e trabalhar honestamente. não quero luxo nenhum, só um lugar pra dormir e comer. Quero morrer em paz. De vez em quando a polícia me para na rua e puxam lá, vê que já cumpri minha pena de 121¹, nada consta. na justiça dos homens eu já cumpri minha pena. Agora falta na de Deus. e essa, amigo, eu, você e todo mundo vai ter que acertar um dia…”.

PS: Algumas semanas após a primeira conversa e num rápido reencontro, Paulo contou que arranjara emprego como estoquista num supermercado de BH. Era uma segunda-feira, no lugar de sempre.

¹. Artigo do Código Penal Brasileiro referente a homicídio.

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ENqUANTO O PÃO NÃO CHEGA...

É fim de tarde e a sirene da Escola Municipal Honorina de Barros anuncia o término de mais um dia letivo. A molecada sai das salas num alvoroço só e rapidamente ganha os portões do local, louca pra aproveitar o que restou do dia ainda ensolarado. Algumas funcionárias tentam conter o agito para que ninguém se machuque, mas o esforço é em vão. Tão logo conquistam a área externa, as crianças passam a ocupar a pracinha que dá acesso a todos os outros pontos do Conjunto IAPI. Naquele momento, são legitimamente donas dos próprios narizes!

A cena é cotidiana. A escola funciona cravada no coração do IAPI e atende a população da região há mais de 40 anos. Incontáveis gerações passaram por aquelas salas, sendo a maioria composta pelos filhos dos moradores tanto do conjunto quanto da Pedreira Prado Lopes. A algazarra da meninada nem dá bola para o calor que faz. Alguns alunos mais velhos aproveitam a cobiçada liberdade vinda com a sirene para se reunirem nas mesinhas de cimento da praça. Ali batem papo entre eles, enquanto outros não desgrudam dos celulares. Alguns casaizinhos aproveitam para, enfim, namorar um pouco.

Sentado numa mesinha distante de toda aquela ebulição jovial, um senhor contempla tranquilamente as cenas. O sorriso no canto dos lábios entrega logo de cara um pouco da sua personalidade afável.

Seu Gil é morador do IAPI há 50 anos ininterruptos. Teve

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o privilégio de ver um pouco de tudo por aquelas bandas. Testemunhou as inúmeras obras viárias da região e o entra e sai de gente se mudando para os prédios do conjunto. Estabeleceu-se como história viva do local.

Não é pra menos. Somado ao meio século de vida no IAPI estão outros 30 anos que o tornam um octagenário de respeito, em todos os aspectos. A começar pela saúde de touro que diz ter. “nesse corpo aqui não tem um remédio, meu filho. Tô com 80 anos e não tomo nada, pra doença nenhuma. De vez em quando uma coisinha pra gripe, mas nada do que você também não tome. Aí já é querer demais do velho!”.

Gil realmente aparenta estar bem. Os ralos cabelos brancos não escondem o fardo do tempo, mas lhe conferem certo charme quando coadjuvados pelos olhos claros. É alto para os padrões da terceira idade, com braços e pernas longas, desenvolvidos no distante tempo em que serviu ao exército. A voz grave e rouca complementa o típico semblante de avô: boina na cabeça, rosto enrugadinho, lentidão nos movimentos, uma meticulosa camisa xadrez vermelha de flanela e simpatia cativantemente espontânea. Naquela tarde ensolarada, como em todas as outras, estava sentado esperando o padeiro. “eu compro pão na mão de um menino há 10 anos, nem posso dizer que ele é menino mais! Mas hoje ele tá atrasado, danado. Certeza que deu alguma coisa na bicicleta dele. Mas não tem problema não. A caminhada até aqui é boa, preciso dela pra manter a carcaça ativa”.

Se hoje caminha despretensiosamente pelo conjunto, antigamente Seu Gil tinha pouco tempo para isso. Foi

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funcionário público e proprietário de uma casa lotérica, combinando a dupla jornada de trabalho para manter esposa e os sete filhos, todos criados dentro do IAPI. “eu sou do tempo em que os bondes cortavam isso aqui tudo. Cortava Antônio Carlos, Lagoinha, iAPi, tudo. Minha vida era andar pra Pampulha, Cachoeirinha, uma correria de cima pra baixo. Acho que não é muito diferente do que vocês jovens vivem hoje também, não é? [...] eu criei todos eles aqui no iAPi. isso aqui sempre foi de paz, sem confusão. O pessoal da favela nunca incomodou. Hoje ao redor tá mudado, mas ainda é da paz. Pelo menos comigo não mexem”.

O passar dos anos trouxe ao IAPI muitos fatos novos. O progresso natural da cidade era acompanhado de perto por Gil e sua família. Viram a Lagoinha de antigamente perder sua cara aos poucos, mas não suas lembranças.

“O bairro sempre foi agitado. Antigamente o pessoal frequentava mais pelo que a noite tinha pra oferecer. era mulherada, boteco, a rapaziada da cidade vinha em peso mesmo curtir a vida. Mas tudo com tranquilidade. Pra você ver, não tinha nem ladrão! Só esses de galinha mesmo. Sempre vivi aqui na tranquilidade….a maioria das pessoas que moram aqui, desde antigamente, são mais humildes. não diria pobre, mas mais simples mesmo. isso tudo ajudou muito na convivência do conjunto, porque sempre foi todo mundo igual ao outro, ninguém melhor que ninguém. isso eu vejo até hoje acontecendo”.

De fato, a tranquilidade parece imperar tanto ali dentro do conjunto quanto para Seu Gil. Enquanto a criançada ainda se faz presente na praça, calmamente ele discorre sobre as tantas memórias de um passado contente. Orgulha-se de ter visto os primeiros gols de Tostão de camarote. O

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jogador fora morador ilustre do conjunto quando ainda jovem. “Jogava demais! Cansei de ver ele batendo bola aqui na quadra e nos campinhos do bairro. era tão mirrado que a gente suspeitava que não ia dar em nada. Deu no que deu. Sorte do nosso Cruzeiro!”. Estabeleceu também uma relação de amizade com os vira-latas que circulam pelo local “já alimentei todos eles aí. Só não falam meu nome porque não sabem português!”.

Para Seu Gil, o fato de uma cracolândia funcionar a todo vapor bem ao lado do seu querido lugar não afeta muito. Daí já não sei se é por causa da resignação com que a velhice premia aqueles que já viram de tudo na vida, ou se é apenas sua inabalável personalidade como escudo diante do caos ao seu redor. Talvez ambos. De maneira inesperada, Seu Gil conversa com propriedade sobre uma realidade que, mesmo próxima fisicamente, não era de se esperar que estivesse tão fundamentada em suas opiniões. Mostrou-se conhecedor da droga, de seus efeitos sobre o corpo e da vida daqueles que a consomem.

“Olha, vou te ser sincero, filho. esse pessoal na Cracolândia aí não me incomoda não. eles não mexem com ninguém além deles mesmos! eu como morador sempre convivi bem com o pessoal da Pedreira e com essa confusão aí. Fazer o quê? eu não tenho como resolver esse problema […] Mas é fato: antigamente não era assim não! Quando me mudei pra cá, nada disso era assim. não tinha droga e nem gente consumindo assim debaixo do sol. Lá na Pedreira era coisa deles, mas aqui ao redor do iAPi não era assim. Maconha existe em todo canto, mas esse crack é coisa de americano. Chegou de lá pra destruir a vida de tanta gente aqui…Veja que muitos deles nem precisam disso. Uns têm pai e mãe, eles não merecem isso. Já ouvi caso de gente

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com penca de filho pra criar e enfurnada nessa pedra”.

Ele reconhece a fama atribuída ao local ao longo dos anos, mas prefere não se comover. Privilegiado, conhece na pele a cara do lugar. São 50 anos de conjunto, tempo mais sólido que a própria história da pedra no bairro. Sabe que tanto a Lagoinha quanto o IAPI representam algo muito maior que o cenário crônico que se formou ali. Pelo menos naquela tarde e com o auxílio de alguém que representava a história viva do lugar, atestou-se que o IAPI e sua história sempre foram nichos de tranquilidade e boa gente, ao contrário do que muitos podem pensar.

Viúvo há 14 anos, Seu Gil é só saudades da esposa. Recusa-se a cozinhar, porque “nada chega aos pés do que ela fazia”. Durante a semana, contorna esse misto de recusa e saudade com os fartos marmitex de uma vizinha cozinheira. Já aos domingos, uma das filhas o apanha para passar o dia em família, almoçar e ver os netos. “É o que mais me dá alegria de fazer atualmente”. Os filhos que moram no exterior insistem para que tope visitá-los. Mas, para conhecer Roma ou Berlim, Seu Gil teria que vencer o seu maior medo na vida: viajar de avião. E o da morte? “ela que venha. não digo que a espero, mas quando chegar, será minha última companheira”.

O padeiro já havia passado e os dois pães de batata para a merenda da tarde estavam garantidos. Já o café, não se coaria sozinho… Antes de ir, a galhofa e o inconfundível sotaque mineiro na fala ratificam a maneira como escolheu encarar a vida, a velhice, as saudades, a fama do IAPI e a vizinha cracolândia: inabalável.

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“Uai, me mudar daqui?! Ah, penso sim, filho. Morto! Atravessando a rua e me mudando pra uma cova no Bonfim!”.

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HÁ qUEm vENÇA

I.

Vai começar mais uma reunião.

O assoalho taqueado da ampla sala emana um lustre impecável, como se acabasse de receber uma generosa mão de verniz. As janelas escancaradas permitem que a todo momento uma brisa adentre confiante de que é bem quista ali, sobre o que não pairam dúvidas. Nem mesmo a breve chuviscada de verão da hora anterior fora capaz de aplacar o calor daquela tarde. Mulheres, jovens e senhoras, caminham de um canto ao outro da sala, ajeitando detalhes aqui e ali, trazendo jarras com água, enquanto outras insistem na limpeza do que já era puro esmero. Um charmoso exemplar da Bíblia é colocado sobre a mesa, cuidadosamente aberto e marcado em João 16:30-33. Do parapeito ainda é possível tocar a copa verdinha de uma árvore, cravada no simpático quarteirão da Rua Rio de Janeiro, bem no coração do Centro de Belo Horizonte.

Coração, ali, é vocábulo que transcende a própria semântica. A reunião semanal do grupo - Coração de mãe contra o crack - está prestes a começar e uma senhora quer falar…

O intuito do grupo é simples: apoio familiar mútuo. Funcionando sob a chancela da Igreja Batista, é coordenado por um grupo de mulheres que compartilha

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o mesmo drama na vida. Seus filhos foram ou ainda são usuários de crack ou outras drogas na região metropolitana de Belo Horizonte. A grande maioria ali é composta por mães que não conseguiram suportar sozinhas a pesada barra que o vício do ente querido impõe. Movidas pela coragem, optaram por não definhar passivamente junto com os filhos. Através da rede de conexões proporcionada pela igreja, conseguiram se organizar, inicialmente, para rodas de conversa, verdadeiros desabafos. A partir daí, outras mães, tomando conhecimento do grupo de apoio, resolveram somar forças. Hoje, formam um grupo consolidado.

Ali ninguém sofre mais que ninguém. Estão todas no mesmo patamar de envolvimento, o que elas chamam constantemente de codependência. O termo faz todo sentido na realidade que vivenciam, já que advém da área da saúde e é usado para se referir a pessoas fortemente ligadas emocionalmente a outras com séria dependência física e/ou psicológica de uma substância ou com um comportamento problemático e destrutivo. O que elas buscam é justamente mitigar os efeitos dessa codependência em suas vidas, ao passo que se preparam psicologicamente para a difícil tarefa de enfrentar o vício com os filhos.

A dinâmica do grupo é fundamental para que esses objetivos sejam alcançados. Semanalmente elas se encontram e discutem temas relacionados aos filhos e à codependência. Sentam-se em um círculo, atentas umas às outras a todo instante, para que haja sempre a chance de se

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olharem nos olhos em comunhão. Dessa forma se amparam mutuamente. Há um forte senso de empatia no ar. Uma por vez, cada mulher tem sua hora de falar e desabafar. Elas fogem do tema ou voltam a ele, não importa muito a sequência. É tudo parte de um processo catártico que compartilham naquelas poucas horas. Contam seus dramas e experiências pessoais como forma de aliviar o fardo que carregam muitas vezes sozinhas. Numa espécie de simbiose, trocam exemplos, dores e opiniões que consigam alentar os corações umas das outras. Tudo isso bem acompanhadas por duas psicólogas que voluntariamente prestam serviços ao grupo. Elas acabam herdando o papel de mediadoras nas conversas, mas claramente não se importam. Estão ali pra isso. Prestam um apoio inédito para essas mulheres, algumas tão abaladas, envergonhadas e humildes que mal conseguem levantar a cabeça para falar.

Também compartilham avanços e focam em si mesmas. É comum o desfrute de alguns minutinhos para trocarem figurinhas acerca dos temas relacionados ao universo feminino. Vira e mexe trazem lanches preparados em casa ou se ausentam por alguns minutos, para então retornarem em seguida com um saboroso café passado na hora. No entanto, o compromisso firmado ali é sério. Os laços criados entre elas precisam ser fortes o bastante para ajudá-las a seguirem adiante. Ou ao menos tentarem. Não se emocionar e empatizar com suas histórias de coragem é quase impossível.

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II.

O dia é de sorte. Vindilina vai falar. Lili, se preferir.

Quem a vê toda empetecada, dona de longos cabelos negros, não consegue imaginar o quanto a vida já lhe testou. O esmalte vermelho nos dedos combina com a intensidade da sua presença. A baixa estatura não impede que se imponha. Faz-se notada pelo poder da própria fala. É uma daquelas pessoas em que o olhar alheio capta instintivamente a existência de um algo a mais que traz consigo. Se de fato as áureas existem, a dela transcende ao primeiro olhar e avisa: carrego algo de diferente.

A rotina de hoje será diferente. Ao invés dos depoimentos conjuntos, apenas um. Estão todas ali para escutar o que Lili tem a dizer. Paira na roda um acordo implícito de atenção incondicional.

Há 52 anos, o dia 25 de dezembro trazia bem mais que o Natal. Nascia Lili em uma família simples, porém estruturada. A rigidez do pai e do irmão vinha do cotidiano policial de suas profissões, reverberando em como as coisas funcionavam dentro de casa. A mãe era a responsável por adoçar um pouco o caldo do lar. A disciplina a que era exposta causava impacto numa jovem que cresceu querendo sempre mais. Mais ação, aventura, experiências, liberdade. “eu sempre fui pra frente mesmo”.

Toda a dureza das imposições não combinava com seu espírito de bicho solto no mundo. As brigas eram comuns, apesar de existir todo um carinho, à sua maneira, entre pai

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e filha. Foi com a primeira gravidez não planejada que o primeiro abalo verdadeiro aconteceu, aos 15 anos.

Até aquele momento, Lili vivia uma vida como a de muitos adolescentes de hoje. Experimentava o mundo. A gravidez numa casa rígida lhe trouxe implicações não almejadas, mas que teriam que ser encaradas de frente. Foi obrigada a trabalhar assim que teve o filho por imposição paterna, que via naquilo uma espécie de corrigenda ao rumo torto tomado pela filha. A fase difícil oferecia o contexto pra que a imatura Vindilina estreitasse elos fortes com algumas rotas de fuga. Cigarro, maconha e álcool passaram a fazer parte da sua vida intensamente aos 18 anos. A vontade e a curiosidade de ir além trouxe a cocaína, aos 27. Aos 30, chegava ao crack com tudo.

O ponto de partida foi na Rua Pouso Alegre, nas imediações do bairro Lagoinha. Entre os anos de 1992 e 93, o local começava a despontar como ponto de consumo da droga na cidade, para futuramente tomar cara e nome de Cracolândia. Lili já não se sentia satisfeita com os efeitos da cocaína e numa dessas noites foi convidada a sair do boteco em que estava para ir a um barraco na Pedreira Prado Lopes. Lá, seu fornecedor iria lhe “mostrar uma novidade”. Com sua predisposição à dependência aliada à curiosidade, não pensou duas vezes antes de experimentar pela primeira vez a pedra. “não tinha noção do tanto que minha vida ia mudar daquele segundo em diante. A sensação foi muito louca, foi tão intenso que não consigo descrever. eu não conseguia nem ir embora do barraco. Fiquei um dia inteiro lá”. Naqueles primeiros dias de contato, aprendeu todo o processo de

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extração da droga. A cocaína saía de cena para a entrada definitiva do crack.

A velocidade do vício foi arrebatadora. Dali em diante, Vindilina se entregou por inteiro à droga. Abandonou o emprego e começava a dar os primeiros indícios do abuso para a família. A droga, que antes era consumida apenas na rua, migrou para dentro de casa. Adquiriu o hábito de aguardar que todos da casa saíssem para fazer uso e depois de alguns meses, nem isso mais. Seu quarto era instransponível: foi sua primeira cracolândia. Começou a se envolver cada dia mais com pessoas da droga. A amizade com traficantes – a ponto de levá-los a locais da cidade onde conseguiriam escoar a droga que traziam de São Paulo – lhe rendia porções generosas de crack, agravando sua dependência. Tinha verdadeiro fascínio em produzir cachimbos para uso próprio.

Era inevitável que sua família rapidamente notasse tamanha mudança de comportamento. Como podia uma mulher feita, mãe e empregada, largar tudo e minguar? Desaparecer por dias de casa e voltar imunda, debilitada, sem dinheiro? E as coisas que sumiam, onde estavam, quem levara?

“Chegou um momento que eu não pude mais esconder. Quando em casa, eu fumava dentro do quarto. Quando na rua, era em qualquer lugar. eu passei a abrigar usuários na minha casa, lá virou canto de fumo. eu via a angústia no olhar da minha família, mas minha cabeça não conseguia processar que esse sofrimento todo era exclusivamente por minha causa. As minhas ações não eram pensadas, é como se

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uma força oculta tomasse conta de você e controlasse tudo que faz. Com isso eu manipulava minha família, mentia demais, causava preocupação e abalava as emoções deles. O crack te rouba tudo, até essa capacidade de discernimento do mundo...”.

O vício não se sustentaria sozinho. Lili partiu então para aquele que considera o período mais abominável de sua dependência. Aos 35 anos, mãe e viciada, passou a se prostituir. Naquela época, sua cabeça funcionava de forma obtusa. Acreditava que essa seria a “única saída” e que não prejudicaria ninguém senão a ela mesma. “O meu objetivo era conseguir dinheiro para comprar crack. era a forma que eu via e foi nela que eu me agarrei. Cada centavo que eu conseguia ia lá, comprava pedra, fumava e voltava a me vender”. Frequentou estradas, barracos na Pedreira, inúmeros postos de gasolina e lotes abandonados por toda a cidade. Idas e vindas à região que viria a se tornar a Cracolândia. As relações sexuais eram muitas vezes consumadas sem preservativos. Perdeu companheiras por causa do vírus HIV. Já não capitula o total das vezes em que foi agredida e abusada. Ao todo, foram mais de oito anos afundada na prostituição.

Durante o período em que esteve no auge do vício, Lili cometeu inúmeros erros. Para ela, o principal deles foi o distanciamento que impôs ao filho. Sua completa ausência na relação entre eles abriu brechas enormes. Verdadeiras chagas que dificilmente seriam curadas. Revoltado com o mundo, o exemplo da mãe chegaria até ele de forma tortuosa. Aos 12 anos, Paulo entra de cabeça nas drogas e criminalidade. Questionando o filho sobre as más companhias, Lili ouviu que “não era exemplo, já que como uma

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viciada ia cobrar de outro viciado alguma coisa de bom?”. Numa tentativa atrasada de recuperar o filho que ia se perdendo, enfrentou a mira de um revólver numa briga, herdando uma bala alojada na perna até hoje. A relação entre mãe e filho era confusa, mas positiva. Em 2006, ele acabaria sendo preso e se entregando ao crack na cadeia.

Sua degradação chegava, enfim, num estágio chave. Mesmo ainda imersa no crack, Vindilina começava aos poucos a compreender melhor o ponto em que havia chegado. Começou a interpretar muito daquilo que tinha visto ao longo dos anos de abuso como sinais que lhe convidavam à reflexão, algo solenemente ignorado por tanto tempo. Precisou roubar, se prostituir, mentir, ver o filho tornar-se viciado e preso, tudo isso para sentir-se tocada a olhar pra si mesma e querer mudar? Não seria tão simples. As contrapartidas seriam muitas e pesadas.

A noite de 19 de novembro de 2006 reservava algo marcante para Lili. Envolvida em mais uma confusão enquanto consumia crack, acabou sendo presa e levada à delegacia do bairro Lagoinha. Lá foi acareada e fichada, suspeitavam que estivesse envolvida exclusivamente com o tráfico, não apenas como consumidora. Passou por maus bocados lá dentro. Ao puxarem seu nome no sistema, chegaram até o de seu filho, ainda preso. Ao longo de toda a noite foi questionada e precisou comprovar que era “apenas” usuária. Num momento em que foi deixada sozinha, um dos policiais de plantão aconselhou-a a largar toda aquela vida que estava levando. “Sozinha você nunca vai conseguir mesmo, mas não deixa de procurar ajuda. Só assim

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alguma coisa mudaria. Quem sabe depois disso não poderia ajudar seu filho?”.

Dentro dela, algo se incutiu. Os últimos meses haviam sido brutos, com o consumo de crack atingindo quantidades abusivas até para uma viciada já calejada. Estava enfim se cansando de viver fora de casa, se vendendo, longe de poder ajudar o filho. Internamente, a fagulha de alguma coisa acendia, mas ela ainda não sabia dar vazão a isso. Irrequieto, o destino decidiu dar uma força. Um de seus filhos acabara de passar no vestibular e, em meio ao embate contra o vício, o respingo de felicidade alentava. “eu disse a ele que era pura felicidade pra uma mãe ver tal conquista. estava muito orgulhosa pelo meu filho. ele respondeu que um dia sentiria o mesmo orgulho de mim também. Aquilo mexeu demais comigo a mudar de vida.”. Envergonhada perante a família, decidiu abrir o jogo numa carta que seria lida no almoço de Natal. Mesmo com as mãos trêmulas e os olhos tomados pelas lágrimas, conseguiu redigir um verdadeiro pedido de socorro. As palavras eram diretas: queria largar o crack, mas não conseguiria sozinha. Clamava pela ajuda deles, então.

Não foi fácil. O primeiro contato para a recuperação foi através de grupos de apoio, nos quais as pessoas se abriam e partilhavam seus fantasmas em comum no vício. Os desabafos traziam benefícios, mas a própria consciência seguia como a grande inimiga. “era um conflito interno. estava ali, tentando, mas um diabinho na minha orelha ficava instigando, me perguntando se eu tinha mesmo que me expor no meio de tantos homens, expor minha vida daquela maneira. Tinha dias que eu ia

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pra lá, mas a cabeça ainda tava no crack. Ficava doida pra terminar e ir fumar pedra”.

A primeira internação veio em 2007, na casa de recuperação – Noemi - , em Contagem/MG. Sob os cuidados das “anjas” Dona Deusa e Dirlene, Lili foi acolhida como se fosse uma filha. Passou pelos primeiros estágios de tratamento, que focavam no descanso mental e físico do internado. Aproximou-se da religião evangélica, fator determinante para sua recuperação futura. Foram nove meses de internação, entre altos e baixos. O medo de permanecer como usuária e acabar outra vez na rua lhe causava pânico e servia de combustível pra que continuasse resiliente em sua recuperação. Ao mesmo tempo, sentia lá no fundo que poderia fraquejar. Enquanto estava lá dentro, perdeu o irmão brutalmente assassinado, também por envolvimento com o crack. Foi liberada.

A segunda internação veio no começo de 2008. Lili não resistira mais que seis meses após o primeiro tratamento, tendo uma forte recaída. Um relacionamento abusivo fez com que as portas do inferno se abrissem outra vez em sua vida. O retorno do crack e dos velhos hábitos das mentiras e manipulações na família acabaram por forçá-la a tomar uma decisão drástica. A segunda internação aconteceria de qualquer maneira e duraria por tempo indeterminado. Vindilina não sairia do tratamento enquanto não estivesse 100% capaz de se livrar do vício. A decisão se provaria a mais acertada até então. “Mas o tratamento pra dependente químico é eterno! enquanto eu estiver viva, eu teria que me tratar. Só que daquela vez, eu realmente queria ficar limpa”.

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O dia 30 de março de 2008 marcaria a última vez que Vindilina visitou a Cracolândia. Desde então, segue limpa. Com uma força de vontade até então desconhecida para ela mesma, conseguiu chegar lá. Enfim, dias mais amenos.

O ano de 2010 tinha tudo para trazer mais um pouco de alegria em sua vida. O filho acabara de sair da cadeia após quatro anos e ela tinha conseguido avanços inigualáveis em seu tratamento. Estava sóbria, reintegrada ao convívio familiar e finalmente cuidando de si mesma como há muito tempo não fazia. Só que a batalha agora seria em outra frente. Numa desas ironias trágicas da vida, Paulo deixava na prisão quatro anos de vida, mas trazia consigo um antigo conhecido da mãe. Saiu de lá livre em corpo, mas ainda mais preso ao mesmo crack que destruiu a própria mãe anteriormente. Lili lutou com o filho ao longo de um ano inteiro. As conversas emocionadas não surtiam efeito. A religião muito menos. Nem o reencontro com a esposa e as duas filhas foram capazes de trazê-lo de volta ao convívio social.

Em 2011, o internado teria que ser Paulo. Caberia à mãe a dolorosa tarefa de refazer o caminho que trilhara anos atrás, mas sem a certeza de que o êxito seria o mesmo. A codependência que impõs aos familiares em seu tempo de vício foi, enfim, sentida na própria carne.

O filho não teve a mesma obstinação da mãe… Depois de apenas quatro meses em seu processo de recuperação, quando ainda passava por exames, Paulo desistiu do tratamento. O pânico de passar mais tempo trancafiado o

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afligia a ponto de minar sua força de vontade. Urgia por recuperar o tempo perdido na prisão de qualquer maneira. E para isso não queria abrir mão das drogas.

Lili era a inquietação em pessoa naquele 4 de abril de 2011. Passou o dia todo fazendo suas coisas, mas com a cabeça distante. Estava aflita. Paulo estava atrasado para um compromisso que tinham juntos e apesar de todos os seus problemas, nunca fora disso. A falta de notícias durante todo o dia fazia com que ela imaginasse coisas absurdas. Mas havia de ser só um atraso mesmo. Eram dias difíceis após a desistência do tratamento. O filho permanecia no vício enquanto tentava retomar a vida, mas claramente não havia encontrado a fórmula exata pra isso, se é que ela algum dia existiu.

Às 21h, o telefone de Lili rompeu o silêncio da sala. Com o coração apertado, atendeu ao primeiro toque, prontamente. Não queria acreditar na voz do outro lado da linha. Era seu outro filho ligando para dizer que, aos 29 anos, Paulo havia morrido. Assassinado com três tiros no bairro Nazaré, próximo de casa, numa confusão de droga. Foi socorrido ainda com vida pelo irmão mais novo, mas morreu a caminho do hospital enquanto tentava se comunicar. O disparo fatal no pescoço impedia que qualquer som saísse da garganta. Partiu em silêncio.

“Fica a saudade. ele descansou de uma vida difícil. A vontade era de ter abraçado mais, ter dito mais vezes que amava o meu filho. Perdi anos da minha vida com uma droga e poderia ter feito mais

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por ele. Talvez por essa distância, essa ausência, ele tenha buscado as drogas. nunca vou saber...”.

A resiliência com que Lili relata esse episódio é comovente, corajosa. Talvez faltem palavras que explanem a real dimensão e força de sua história. Todos ali enxugam as lágrimas. Emocionados, compartilham um olhar de comiseração também em silêncio.

“A mãe quando tem um filho na situação em que ele vivia já espera que isso possa acontecer a qualquer hora. A gente não quer que isso aconteça, preprarada nunca estamos. Mas ainda mais passando o que eu passei, já se sabe dessa possibilidade. não é fácil! Foi muito doloroso perder meu irmão e depois meu filho, ambos da mesma forma e pelos mesmos motivos… Foram escolhas feitas por eles. erradas, claro […] Me restou procurar ajuda. essas mortes me fortaleceram a ajudar outras pessoas também. A partir daí eu sempre digo que Deus levou o meu filho, mas me deu outros, que estão pela rua afora, debaixo dos viadutos, nas casas abandonadas e as próprias mães. não quis ficar amargurada e entregue não, resolvi caminhar. essa é a minha missão agora, passar adiante tudo o que eu vivi. eu sempre digo que, na teoria, eu não sei nada da vida. Mas na prática, ah! Dessa eu entendo demais...”.

Foram 14 anos envolvida com o crack e já se vão outros sete livre dele. As perdas, irreparáveis. Hoje, Vindilina termina o ensino médio e pretende ser assistente social. Leva a vida modestamente com a família e morre de amores pelos netinhos, que ainda nem imaginam a história da avó. O coração do pai amoleceu bastante após todos esses anos. Trocam “eu te amo” a todo momento, a forma

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que encontraram para compensarem o tempo perdido. Participa de grupos de apoio e trabalhos sociais onde oferece seu depoimento e, através dele, auxilia usuários de crack e suas mães a encararem de frente a página mais difícil de suas vidas. Realizou os pequenos sonhos. Conseguiu viajar de avião, conheceu o mar. Aprendeu a amar as pequenas coisas da vida. Ainda persegue os grandes...

“O sentimento ao olhar pra trás é de arrependimento pelo tempo perdido, pelas escolhas feitas, pelas perdas que sofri. Ao mesmo tempo, tento olhar com a esperança de ajudar outras pessoas por tudo que vivi. Contar a minha história e mostrar pra essas pessoas que estão afundadas que há quem consegue vencer. esse é o meu grande sonho e motivação. Quero paz. Vejo também a certeza do amor de Deus na minha vida, que não desistiu de mim hora nenhuma. Vi a morte, o crack, a prostituição, o verdadeiro inferno. Foram anos de uma experiência dolorosa, mas que me fez mudar e crescer. Posso e quero ser instrumento. Tive a oportunidade de recomeçar, o que tantos outros não terão. Hoje, ando de cabeça erguida, mostrando às pessoas que me deram como morta que eu venci. Venci a droga, a tal da cracolândia, a morte….À duras penas, mas venci. É assim que quero fechar minha história…”.

É inegável que venceu.

Em meio às despedidas, antes que alguém recolhesse o exemplar da Bíblia sobre a mesa, lia-se em João 16:30-33 algo intrigantemente oportuno, apropriado para qualquer que seja a crença – ou a ausência de uma – que move cada um de nós.

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“[…] eu lhes disse todas essas coisas para que, por meio de mim, vocês tenham paz. nesse mundo todos passarão por atribulações. Mas coragem! eu venci o mundo [...]”.

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GRATIDÃO

Este livro chega até as suas mãos graças a desconhecidos. Fui mero instrumento, canal disponível para que estas vozes pudessem ser ouvidas de alguma maneira. Diria até que fui o verdadeiro privilegiado nessa história toda. Foi graças às existências ocultas que fui capaz de dar à luz uma ideia que mais parecia devaneio no princípio. Apesar da incômoda proximidade a que meus olhos eram obrigados a se acostumar quando passava pela Avenida Antônio Carlos, mergulhar em uma realidade tão sombria e devastadora como uma cracolândia e conseguir resgatar algo importante de lá soava um tanto utópico. Coisa para jornalistas consagrados, extremamente capazes. Tim Lopes, Caco Barcellos, Daniela Arbex e tantos outros conseguiriam com facilidade. Eu, talvez não.

Resolvi tentar, movido muito mais pelo sentimento de empatia do que pela certeza de sucesso na empreitada. A Cracolândia dominava minha atenção. Passei por ela quase que diariamente ao longo de quatro anos. Dedicados a ela, foram dois. Sem falar das incontáveis vezes em que a ignorei antes da primeira investida. Fato é que não me confortava pensar que as pessoas lá dentro seriam apenas aquele retrato da decadência humana que estamos cansados de absorver dos jornais e da televisão. Queria sentir de perto que nelas existia algo além disso. Como ser humano e jornalista sempre acreditei na força das histórias alheias, especialmente daquelas ocultas, as sofridas e relegadas, as

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mais íntimas. Escutá-las e conseguir trazê-las à tona coloca-me sempre em posição reflexiva, na qual repenso o quanto ainda faço pouco pelo meu semelhante. Faz também com que eu me empatize e enxergue o quanto muitos dos nossos ditos dramas e dificuldades são meros tropeços diante de situações humanas como as que testemunhei. Correr atrás de histórias assim seria então minha missão. Sendo jornalista consagrado ou não.

Dedico e agradeço integralmente a todas as pessoas na Cracolândia – e em seu entorno – por terem confiado a mim suas histórias. Foram depoimentos, lágrimas, sorrisos, dramas, dores, encaradas, perguntas e repostas. À minha maneira, tentei de coração retribuí-las com este livro. Escolhi 19, mas poderiam ter sido 20, 30… Material para isso não faltou. Entre tantos outros motivos, cito que aquelas que chegaram ao texto final foram escolhidas pelos impactos causados em mim, em uma tentativa de demonstrar o quão diversificada pode ser uma cracolândia. Ter tido o privilégio de escutá-las é muito mais gratificante e honroso do que todas essas páginas conseguiram acomodar. Àquelas pessoas cuja história não contei aqui, igualada gratidão. Seria impossível e injusto enumerar todas. Sem essas pessoas, nada disso seria possível.

Elas é que são dignas do mérito. Elas são as verdadeiras histórias. E histórias devem ser sempre maiores e mais importantes que os nomes dos jornalistas e autores que as contam.

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Agradeço à minha mãe, Jaciara, pelo encorajamento, pelos sacrifícios, pelo companheirismo e por me ensinar sobre amor ao próximo ao longo de toda uma vida. Aos amigos pela motivação constante. À Terezinha, pelo apoio e direcionamento ímpar desde o primeiro minuto de projeto. A Deus, pela oportunidade e lições aprendidas. A todos que me ajudaram de alguma forma, que acreditaram em mim e agora me dão a honra de sua leitura.

Não pretendi, com este livro, apresentar soluções para a epidemia do crack e das cracolândias no Brasil, nem menos fazer uma análise baseada em teorias que tentem explicar o motivo de tais tragédias sociais. Busco, simplesmente, narrar histórias de pessoas até então invisíveis. Servir-lhes de voz, já que seus ecos nem sempre são ouvidos. O fato é que eles existem e estão por todos os lugares. Regulemos nossos ouvidos, então...

Por tudo isso, fico com Eduardo Coutinho:

“Às vezes ouço falar que a busca das histórias de vida dos outros é uma forma de nos conhecermos. eu, retrospectivamente como sempre, sinto que o que me ajuda a falar com as pessoas é que eu não tenho certeza de quem eu sou. Para o filme é bom, para a vida não sei. Justamente, acho que eu vou buscar um pouco da minha identidade no outro…escutar e entender as razões dele, mesmo que não lhe dê razão”.

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BIBLIOGRAFIA

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