qual o lugar de seu repuso
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Onde você se refugia quando os braços, impotentes, não conseguem retomar o pulso dos remos e a embarcação, solitária e à deriva, ameaça afundar-se? A que porto conduzir esse corpo, cansado e abatido pela fúria do mau tempo que insiste em abater-se sobre o céu de sua existência? Como organizar essa cabeça, febril e agitada de tantas preocupações e problemas sem remédio? O que fazer para que suas pernas, dobradas sob o peso da dúvida e do medo, do escuro e da falta de sentido, reencontrem o caminho? Como encontrar forças para que elas possam dar um passo, um apenas, por menor que seja?TRANSCRIPT
QUAL O LUGAR DE SEU REPOUSO?
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Lugar aqui tem sentido figurado, simbólico. A pergunta poderia ser feita de outra
maneira: qual o momento, espaço, tempo em que você pode se retirar, afastar-se de tudo
e de todos, para encontrar um pouco de paz e recompor as forças? No itinerário corrido
do dia-a-dia, especialmente em meio aos apelos do mundo urbano, você se dá conta da
necessidade dessa parada? Em termos mais diretos, a oração, reflexão ou meditação
ocupam algum lugar no seu calendário codiano?
A tormenta fustiga violentamente as velas de sua frágil embarcação. Ventos fortes e
furiosos arrancam-lhe as cordas e quebram-lhe o mastro. Ondas gigantes a viram de um
lado para outro, como casca de noz. A tempestade não dá trégua: a bússola não
funciona, tampouco o leme obedece a seus movimentos desesperados. A água começa a
penetrar por buracos cada vez mais numerosos. Nuvens densas e sombrias escondem o
horizonte. O céu troveja, rasgado por raios ziguezagueantes de fogo assustador. Você
perdeu o rumo do porto e do farol: se vê como que órfão, perdido e só! O que fazer,
velho e errante Ulisses?
Onde você se refugia quando os braços, impotentes, não conseguem retomar o pulso dos
remos e a embarcação, solitária e à deriva, ameaça afundar-se? A que porto conduzir
esse corpo, cansado e abatido pela fúria do mau tempo que insiste em abater-se sobre o
céu de sua existência? Como organizar essa cabeça, febril e agitada de tantas
preocupações e problemas sem remédio? O que fazer para que suas pernas, dobradas
sob o peso da dúvida e do medo, do escuro e da falta de sentido, reencontrem o
caminho? Como encontrar forças para que elas possam dar um passo, um apenas, por
menor que seja?
Em outras palavras, em que praia o deixa o mar quando, bravio e espumoso, o expulsa
das águas tranquilas? O lugar é deserto ou habitado? Se habitado, os moradores lhe
estendem os braços como anfitriões acostumados a receber estranhos e desconhecidos?
Saudam-no como a um irmão ou o tratam como inimigo? Acolhem-no e o levam ao rei
ou ao senhor do lugar, para que seja apresentado com um hóspe ilustre? Ou, ao
contrário, arrastam-no como prisioneiro e espião? Sua recepção reveste-se de uma
atitude de desconfiança, de combate ou de festa? Os serviçais do castelo ou alguma
família o conduzem a uma casa, uma mesa e uma cama, para reparar os ossos quebrados
e as forças fragmentadas?
Se o lugar é de deserto, há ali árvores ao abrigo das quais vovê posssa encontrar
descanso, sombra e fruto? Existe por perto alguma fonte de água fresca que abrande sua
sede? Pode-se ouvir a voz dos pássaros, das cachoeiras, da brisa ou a melodia silenciosa
da criação, onde recuperar o impulso vital da existência? Voltou a brilhar a luz do sol,
fonte de vida e de um novo respiro? Seus raios são capazes de secarem suas roupas
molhadas, espantar o frio, a solidão e a tristeza? É possível encontrar alguma pedra,
onde sentar, meditar, repousar? Você tem reservas de oxigêncio que possam alentar o
fôlego para recomeçar a travessia? Sabe pelo menos o ponto exanto onde foi parar,
altitude, latitude e longitude? Pode orientar-se no infinito de um universo vazio e
indiferente, é capaz de decifrar o direção a ser tomada? Para onde dirigir-se, velho e
errante Ulisses?
Não faltam tempestades e motivos de tropeço em nossa travessia, como não faltaram no
velho personagem de Homero, ou no Dom Quixote de Miguel Cervantes. Elas podem
ser de ordem pessoal, familar, social, econômica ou política. Doença e morte, separação
e desencontro, desânimo e inquietação, desemprego e subemprego, exploração pobreza,
fome e miséria, dúvidas e incertezas, discórdias conflitos – eis o rol sem fim das
tormentas que rugem à porta. Aliás é costume dizer que uma desgraça nunca vem
sozinha. Também se diz que depois da tempestade vem a bonança. Tudo isso,
evidentemente, nos deixa inseguros, num clima permanente de instabilidade. Como se
nos mantivéssemos permanentemente equilibrando-se no fio tênue sobre um abismo.
Diria Simone De Beauvoir que “as estrelas se apagaram no céu, os marcos
desapareceram da estrada e o chão fugiu debaixo dos pés”.
Disso resulta a necessidade de pontos de referência para escapar ao naufrágio que nos
ameaça a toda hora. Aliás, não foi diferente com Jesus de Nazaré, o profeta itinerante da
Galiléia e seu punhado de companheiros. Vez por outra, Ele tinha de retirar-se a um
lugar à parte, no deserto, ou na montanha. Costumava retirrar-se só, com o grupo ou
com alguns amigos mais íntimos, dependendo das circunstâncias. O cerco da turba
insaciável o inquietava, precisava refletir. “Vamos sozinhos para um lugar deserto, para
que vocês descansem um pouco” (Mc 6,31), pois a multidão em tumulto queria fazê-lo
rei. Refeito e nutrido com o oxigênio da Casa do Pai, passa a alimentar os famintos e
sedentos: “Venham a mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu
fardo, e eu lhes darei descanso” (Mt 11,28).
Voltando às perguntas iniciais, num universo moderno e pós-moderno de relativismo
crescente, que lugar reservamos para a busca de novas relações e referências que nos
sustentem? Temos tempo e espaço para isso? Ou mergulhamos de cabeça no turbilhão
de modismos que se nos apresentam diariamente? Deixamo-nos levar pela corrente, ou
encontramos forças para remar e navegar rio acima em busca das motivações mais
profundas de nossa trajetória histórica? Numa palavra, o desafio aqui é redescobrir
nosso ponto de partida, o foco central de nossa caminhada terrestre e os meios para
alcançá-lo. Saber separar o absoluto do supérfluo, o inegociável daquilo que se pode
abrir mão, o essencial do secundário, o trigo do joio.
Tais interrogações exigem uma parada para o silêncio, a oração e a meditação. Quem
nunca é capaz de parar, também não será capaz de passos novos e criativos. Estes, sejam
individuais ou coletivos, nascem, crescem e se fortalecem no terreno da avaliação e
reflexão. Quem jamais se detém está condenado a repetir os próprios passos ou os
passos dos outros. Parar é aprender a recriar o caminho e o rumo a ser tomado. Da
mesma forma que o silêncio é o terreno propício à palavra livre e ousada, viva e
criativa. Só é capaz de palavras novas quem sabe silenciar e ouvir.