publicação concurso de artigos jurídicos 2015 (1)

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CONCURSO DE ARTIGOS JURÍDICOS ORGANIZADORES SIMONE APARECIDA ALBUQUERQUE KAROLINE AIRES FERREIRA OLIVINDO SANDRA MARA CAMPOS ALVES DIREITO À ASSISTÊNCIA SOCIAL SÉRIE DIREITO À ASSISTÊNCIA SOCIAL

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Artigos jurídicos. Direito Seguridade Social (Direito à assistência social)

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  • ConCurso de Artigos JurdiCos

    OrganizadOres

    SIMONE APARECIDA ALBUQUERQUE

    KAROLINE AIRES FERREIRA OLIVINDO

    SANDRA MARA CAMPOS ALVES

    DIREITO ASSISTNCIA SOCIAL

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  • ConCurso de Artigos JurdiCos

    DIREITO ASSISTNCIA SOCIAL

  • repblica federativa do brasil

    ministrio do desenvolvimento social e combate fome

    Braslia, 2015

    concurso de artigos Jurdicos

    organizadores:Simone Aparecida AlbuquerqueKaroline Aires Ferreira Olivindo

    Sandra Mara Campos Alves

    Tereza CampelloMinistra de Estado do Desenvolvimento Social e Combate Fome

    Denise ColinSecretria Nacional de Assistncia Social

    Simone A.AlbuquerqueDiretora do Departamento de Gesto do SUAS

    Karoline Aires Ferreira OlivindoCoordenadora-Geral de Regulao da Gesto do SUAS

    impresso em

    Produzido pela Secretaria Nacional de Assistncia Social do Ministrio do Desenvolvimento e Combate FomeEdifcio mega SEPN 515 Bloco B 3 andar Sala 360CEP 70770-502 Braslia/DFTelefones: 0800 703 2003www.mds.gov.br

    organizao e reviso: Andra Barbi e Jarbas Ricardo Almeida Cunha

    Projeto grfico, capa e diagramao: Lucas Fujarra

    Ficha catalogrfica:

  • S u m r i o

    captulo 1 o direito assistncia social como rea do conhecimento Jurdico

    QUEM SO OS DESAMPARADOS QUE NECESSiTAM DA ASSiSTNCiA SOCiAL: OS LiMiTES DA ADMiNiSTRAO PBLiCA E DO PODER JUDiCiRiO NA DEFiNiO DESTE CONCEiTO FUNDAMENTALLuiz Antonio Ribeiro da Cruz

    ASSiSTNCiA SOCiAL COMO DiREiTO: ASPECTOS NACiONAiS E iNTERNACiONAiSLarissa Mizutani

    O DiREiTO FUNDAMENTAL ASSiSTNCiA SOCiALCarlos Gustavo Moimaz Marques

    O DiREiTO ASSiSTNCiA SOCiAL COMO OBJETO ESPECFiCO DE CONHECiMENTO DA CiNCiA JURDiCAMarco Aurlio Serau Jnior

    O DiREiTO DA ASSiSTNCiA SOCiAL COMO REA DO CONHECiMENTO JURDiCOMarcos Jos Nogueira de Souza Filho

    captulo 2 o papel do advogado no sistema nico de assistncia social (suas)

    O PAPEL DO ADVOGADO NO SiSTEMA NiCO DE ASSiSTNCiA SOCiAL (SUAS): ALGUMAS REFLExES CONTEMPORNEAS NECESSRiAS PARA SUA EFETiVAOAna Paula Pereira Flores

    O PAPEL DO ADVOGADO NO SiSTEMA NiCO DE ASSiSTNCiA SOCiAL SUAS: ENTENDENDO A FUNO DO ADVOGADO QUE COMPE A EQUiPE DE REFERNCiA DOS EQUiPAMENTOS DA PROTEO SOCiAL ESPECiAL DE MDiA COMPLExiDADENathlia Anglica Holanda Carneiro

    A FUNO iNOVADORA DO ADVOGADO NO MBiTO DO SiSTEMA NiCO DE ASSiSTNCiA SOCiAL E SUAS POSSiBiLiDADES DiANTE DA GARANTiA DE DiREiTOElaine Cristina Dias Spiguel

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  • A UNiVERSALiDADE DA ASSiSTNCiA SOCiAL E A CONCRETiZAO DOS DiREiTOS HUMANOSAndressa Fracaro Cavalheiro

    O ADVOGADO NA ASSiSTNCiA SOCiAL: MAiS QUE APENAS UM TCNiCO DO SERViO DE REFERNCiALuanda Miranda Mai

    A iMPORTNCiA DO ADVOGADO NO DESEMPENHO DOS SERViOS PRESTADOS PELO SiSTEMA NiCO DE ASSiSTNCiA SOCiALRita Pedroso Cunha

    captulo 3 assistncia social como direito universal e seu papel na efetivao dos direitos humanos

    ADJUDiCAO DE DiREiTOS E ESCOLHAS POLiTiCAS NA ASSiSTNCiA SOCiAL: O STF E O CRiTRiO DE RENDA DO BPCDaniel Wei Liang Wang

    O PROTAGONiSMO DA POLTiCA DE ASSiSTNCiA SOCiAL NA EFETiVAO DOS DiREiTOS HUMANOSJanana Rodrigues Pereira

    UM RETRATO DA POLTiCA PBLiCA DE ASSiSTNCiA SOCiAL BRASiLEiRA: O LONGO CAMiNHO PERCORRiDO AT O ALCANCE DE SUA ADEQUAOE EFiCiNCiACarolina Scherer Bicca

    ASSiSTNCiA SOCiAL E SUA GARANTiA AOS DiREiTOS SOCiASSiSTENCiAiSCarine Buss

    O BENEFCiO ASSiSTENCiAL ENQUANTO iNSTRUMENTO DE EFETiVAO DO PRiNCPiO DA DiGNiDADE HUMANA: UM OLHAR SOBRE O DiREiTO FUNDAMENTAL ASSiSTNCiA SOCiALDaniela Vasconcellos Gomes

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    DiREiTO ASSiSTNCiA SOCiAL E OS iMPACTOS DO PROGRAMA BOLSA FAMLiA NA EFETiVAO DO DiREiTO HUMANO AO DESENVOLViMENTO DA POPULAO CARENTE BRASiLEiRAJailton Macena de Arajo

    ASSiSTNCiA SOCiAL: FiLANTROPiA ESTATAL OU DiREiTO FUNDAMENTAL?Maria Denise A. Pereira Gonalves

    O PAPEL DA ASSiSTNCiA SOCiAL NO COMBATE POBREZAPaloma Morais Corra

    ASSiSTNCiA SOCiAL COMO DiREiTO UNiVERSAL E SEU PAPEL NA EFETiVAO DOS DiREiTOS HUMANOSRachel de Oliveira Lopes

    ASSiSTNCiA SOCiAL COMO DiREiTO UNiVERSAL E SEU PAPEL NA EFETiVAO DOS DiREiTOS HUMANOS: TENSES E CONTRADiESRaoni Borges Barata Teixeira

    O PAPEL DA ASSiSTNCiA SOCiAL NA EFETiVAO DOS DiREiTOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTiSMORoberto Viana da Silva

    ATUAO DO ADVOGADO NO SiSTEMA NiCO DE ASSiSTNCiA SOCiAL SUASSandra Mara Likes

    LiBERDADE AOS DESAMPARADOS: A ASSiSTNCiA SOCiAL E A RUPTURA DOS GRiLHES DO DESCASOWilliana Ratsunne da Silva Shirasu

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  • ApresentAo

    A construo do direito assistncia social ainda recente no Brasil. A promulgao da Constituio Federal, em outubro de 1988, o marco histrico deste processo. Pois, conferiu assistncia social a condio de poltica pblica formando, juntamente com a sade e a previdncia social, o trip da seguridade social. Desde ento, o arcabouo legal vem sendo desenvolvido e aprimorado, reforando a necessidade de reflexo crtica sobre a relao entre essas duas reas do conhecimento humano.

    Com o objetivo de incrementar a produo cientfica nesta rea, em 2014, o Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS) em parceria com o Programa de Direito Sanitrio da Fiocruz Braslia (Prodisa/Fiocruz) lanaram o 1 Concurso de Artigos Jurdicos, tendo como tema O DiREiTO ASSiSTNCiA SOCiAL. Aps as etapas previstas no Edital do certame, dos 34 artigos inscritos, 24 foram classificados. Sendo 5 artigos no Tema i: O Direito Assistncia Social como rea do conhecimento jurdico; 6 artigos no Tema ii: O papel do advogado no Sistema nico de Assistncia Social (SUAS); e, 13 artigos no Tema iii: Assistncia Social como direito universal e seu papel na efetivao dos direitos humanos.

    Nas pginas seguintes desta publicao, possvel encontrar o resultado de anlises e observaes de acadmicos e operadores do Direito nas diversas instncias de atuao. A discusso apresentada pelos autores dessa obra permeia os avanos propiciados pelos dispositivos constitucionais e pela legislao especfica.

    Por fim, a expectativa que esta iniciativa conjunta possa contribuir para a abertura de novos espaos de discusso no campo do direito assistncia social, no fomento produo crtica sobre o tema, dentro e fora do ambiente acadmico, num processo de constante percepo e traduo dos espaos de participao social.

    Comisso Coordenadora do Concurso

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    1C a p t u l o

    o direito AssistnciA sociAl como reA do conhecimento jurdico

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    Quem so os desAmpArAdos Que necessitAm dA AssistnciA sociAl: os limites dA AdministrAo pblicA e do poder judicirio nA definio deste conceito fundAmentAl

    Luiz Antonio Ribeiro da Cruz

    resumo: o conceito constitucional de desamparado chave para compreenso da Assistncia Social como rea autnoma do conhecimento jurdico, pois o que torna peculiar este direito em relao aos demais direitos sociais, como nica prestao que depende de uma avaliao das condies dos demais integrantes da sociedade brasileira. Administrao Pblica e Poder Judicirio vem tentando defini-lo em sua atuao, mas sua ao deliberadamente isolada de potenciais beneficirios da prestao, assim como daqueles que podem vir a ser obrigados a contribuir para o seu financiamento traz o risco de agravar o problema, em vez de resolv-lo.

    palavras-chave: Assistncia Social; Administrao Pblica; Judicializao.

    introduoQuando comemoramos o 25 aniversrio da promulgao da

    Constituio de 1988, o status da Assistncia Social est consolidado nesta Carta, como um direito bsico dos cidados brasileiros (artigo 6, caput) e instrumento indispensvel para seja atingido o objetivo fundamental de erradicar a pobreza, a marginalizao e as desigualdades sociais e regionais (artigo 3, iii), mas seu estudo como rea autnoma do conhecimento jurdico ainda enfrenta dificuldades.

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    Acreditamos que estas dificuldades concentram-se, sobremaneira, na definio de quem so os desamparados (artigo 6, caput) que dela precisam (artigo 203, caput) a que a Constituio refere-se como potenciais beneficirios da Assistncia Social, especialmente em um momento de acelerada transformao social em nosso pas.

    Que prestaes seriam devidas, em que momento, por quanto tempo, com qual objetivo, quem pagar por elas (GOSEPATH, 2013, p.11) - todos estes elementos so importantes para a delimitao da Assistncia Social como rea do conhecimento jurdico, mas estaro sempre vinculados resposta desta primeira pergunta: a quem se destina a Assistncia Social prevista na Constituio Brasileira?

    Comparado regulamentao constitucional de outros direitos sociais fundamentais, o direito Assistncia Social tem uma peculiaridade que o distingue em essncia: trata-se do nico direito que ser concedido (ou no) a partir de uma comparao ftica entre a situao de seu potencial beneficirio e o restante da sociedade (no caso, a brasileira) onde ele vive.

    Entre eles, h, por exemplo, aqueles que se firmam a partir da pretenso individual e absoluta1 do interessado, manifestada em momentos especficos da vida deste, antecedida ou no de alguma contraprestao sua ao Estado ou a pessoas jurdicas de direito privado fiscalizadas pelo Estado. Neste sentido, a pretenso ao exerccio do direito sade tem como pressuposto ftico uma situao individual de carncia de alguma funcionalidade do corpo ou da mente, que leva o interessado a exigir do Estado, no momento da ocorrncia da doena, o seu respectivo tratamento. Em grande medida, o mesmo raciocnio individualizado, absoluto e claramente ligado a um evento especfico - ainda que de durao temporal varivel (DiMOULiS; MARTiNS, 2012, p. 86), aplica-se educao, alimentao, moradia, trabalho, previdncia social e proteo maternidade e infncia.

    Um segundo grupo de direitos sociais fundamentais suprido pelo Estado de modo contnuo, indistinto e indivisvel em prestaes individuais a todos os integrantes da sociedade, ainda que com qualidade imensamente varivel no tempo e no espao. Neste rol inclumos a segurana e o lazer.

    A Assistncia Social no se encaixa perfeitamente em nenhum destes dois grupos. Embora a prestao a ser oferecida pelo Estado

    1 Expresso aqui tomada como antnima de sujeita a comparaes com outros indivduos que integram a sociedade.

    possa ser individualizada, j no seu delineamento constitucional mnimo fica marcada a singularidade (pois nenhum outro direito social fundamental previsto no artigo 6 adianta qual ser seu beneficirio) que seu deferimento estar intrinsecamente condicionado identificao e delimitao de quem seja o desamparado, de quem suas necessidades se tornam objeto de direitos, cuja satisfao se pode exigir do poder pblico (REGO; PiNZANi, 2013, p.75).

    Temos que esta definio de desamparado para fins de prestao da Assistncia Social somente pode ser concretizada em casos especficos por meio da comparao do potencial beneficirio com a situao dos demais integrantes da sociedade em que ele vive. No h no texto da Constituio uma concepo objetiva de bem-estar (CHAVES, 2013, p. 5), ou, nem mesmo, uma definio prvia sobre os tipos (e, muito menos, a extenso) das carncias dos desamparados que a sociedade brasileira deve buscar suprir (PiNZANi, 2013, p. 134).

    Ou seja, o texto constitucional que em relao a todos os demais direitos sociais parte sempre de um pressuposto de igualdade formal (GOSEPATH, 2013, p. 15)2 entre os cidados brasileiros, quando trata da Assistncia Social adota o critrio de defini-la como direito associado apenas queles que materialmente (CHAVES, 2013, p. 42) integram o extrato menos favorecido da sociedade, e, por isso, devem ser socorridos.

    Por conta disso, delimitar quem seja o potencial beneficirio da Assistncia Social no direito brasileiro, ou seja, quem est desamparado e dela necessita em nossa sociedade, equivale a reconhecer o que torna peculiar este direito especfico em relao aos demais direitos sociais. E assim tambm, a fixar seus limites como rea do conhecimento jurdico, pois este o conceito bsico da disciplina segundo o texto constitucional, a partir do qual todos os demais sero construdos, como vimos no primeiro item de nosso trabalho.

    Esta tarefa foi assumida, em um primeiro momento, pela Administrao Pblica, que assumiu a tarefa tanto de definir quem precisa da prestao quanto quem paga para financi-la. Em um contexto

    2 O SUS (Sistema nico de Sade), por exemplo, est potencialmente aberto a atender (e efetivamente atende) brasileiro de todas as classes sociais. Escolas pblicas brasileiras no impem um limite de renda (prpria ou dos pais) aos interessados em nelas estudar.E assim percebemos, igualmente, em relao a todos os demais direitos sociais do artigo 6 da Con-stituio, com a clara exceo da Assistncia Social.

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    mais recente, a Administrao Pblica tem dividido forosamente esta responsabilidade com o Poder Judicirio, apresentando-se a questo da judicializao da Assistncia Social em um contexto mais amplo da judicializao da poltica em geral.

    Procuraremos demonstrar que nenhuma das solues postas na estrutura institucional atual resolve adequadamente a questo, sendo urgente o desenvolvimento de alternativas prticas, a partir de uma renovada base terica.

    1. A Administrao Pblica e a definio do beneficirio da assistncia social

    A Constituio de 1988 inovadora em relao s suas predecessoras quando reconhece a Assistncia Social como um direito social autnomo concedido aos desamparados (artigo 6. Caput), com o objetivo (artigo 203, caput) de proteg-los em uma srie de situaes, que, a bem dizer, podem vir a cobrir todo o espectro de sua vida, do seu nascimento e infncia velhice, em qualquer momento que este desamparo possa se dar, especialmente em razo de problemas de sade ou de desemprego (incisos do artigo 203).

    Para encontrarmos a Assistncia Social em suas antecessoras imediatas, a Constituio de 1967 (BRASiL, 1967), a Constituio de 1946 (BRASiL, 1946) e a Constituio de 1937 (BRASiL, 1937), preciso que sejamos extremamente benevolentes na leitura de artigos que tratam precipuamente da organizao da famlia3. J a Constituio de 1934 (BRASiL, 1934), por seu artigo 5, xix, c, remete o assunto competncia legislativa ordinria da Unio, enquanto as Cartas de 1891 (BRASiL, 1891) e 1824 (BRASiL, 1824) sequer tocam no assunto.

    A positivao detalhada do tema na Constituio de 1988 teve o grande mrito de deixar claro que a Assistncia Social no um favor estatal, ou muito menos uma questo de filantropia (CHAVES, 2013, p. 1), mas sim um conjunto de pressupostos normativos destinados a resgatar de uma realidade de abusos cotidianos e prticas desalentadoras (CHAVES, 2013, p. 3) estes desamparados que dela necessitam.

    3 Respectivamente nos artigos 175, 4 (BRASiL, 1969), 164 (BRASiL, 1946) e 127, terceira linha (BRASiL, 1937)

    Contudo, por si este conjunto normativo insuficiente para concretizao da Assistncia social como um direito fundamental, precisando ser desenvolvido por meio de uma atuao estatal, inicialmente da Administrao Pblica, que o reconhea como tal e o implante legitimamente na sociedade brasileira, unindo normatividade e vida prtica (CHAVES, 2013, p.134):

    Em sntese: O Estado necessrio como poder de organizao e sano e de execuo, porque os direitos tm que ser implantados, porque a comunidade de direito necessita de uma jurisdio organizada e de uma fora para estabilizar a identidade, e porque a formao da vontade poltica cria programas que tm que ser implementados. (HABERMAS, 2003, v.1 p.171)

    No cumprimento desta obrigao de procurar quem seja o desamparado, a facticidade fornece como nica ponto de partida que, em uma economia capitalista, muitos cidados sofrero com a falta de acesso razovel a certos recursos (WHiTE, 2000, p. 511). A partir da, a Administrao Pblica sente-se vontade para fixar por si mesma, com fundamento na teoria mais tradicional do direito e da poltica, os parmetros da poltica assistencial, consequente ao mandato popular que seus ocupantes receberam em eleies, e que entende como concordncia expressa da populao com suas polticas (HABERMAS, 2004, p. 283).

    Tal argumento poderia ser criticado sob o fundamento de que, entre o texto constitucional e a atividade administrativa mediaria ainda a competncia legislativa ordinria do Congresso Nacional, caixa de ressonncia dos anseios da sociedade brasileira. No entanto, difcil ignorar em nosso pas no s o completo domnio da Administrao Pblica sobre a agenda legislativa, bem como sua intensa tendncia autorregulamentao, em especial sob o fundamento de que seja ela a detentora exclusiva do aparato composto pelo conhecimento tcnico necessrio implantao do projeto social, assim como de seu prospectivo impacto econmico (HABERMAS, 2004, p. 278).

    Desveladas as premissas acima, sobe ao primeiro plano que a Administrao Pblica, sobre a definio do desamparado a ser beneficiado pela Assistncia Social que emprega, tem como nico feedback o sufrgio popular peridico, e que, neste sufrgio, esta definio ser avaliada em conjunto com todas outras aes pertinentes ao amplo espectro de assuntos cuja execuo lhe delegada pelas normas nacionais. Assim, equivaler o total

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    de votos ao grau de aprovao no especificamente da definio beneficirio da Assistncia Social com que ela trabalha, mas sim de todo o conjunto de prticas dos atuais detentores do poder (HABERMAS, 2004, p.283).

    Entendemos que esta uma leitura de nosso ordenamento jurdico que nada tem, em princpio, de inconstitucional, ilegal ou mesmo ilegtimo, sendo mesmo o estado da arte de uma sociedade liberal (HABERMAS, 2004, p. 277), mais comumente chamada de socialdemocracia: democracia representativa, economia de mercado e sociedade civil livre (UNGER, 2004, p. 51), emoldurada por uma estrutura jurdica que atribui primazia Administrao Pblica na fixao dos direitos (especialmente os sociais), garantindo-os, mas, ao mesmo tempo, tutelando-os (HABERMAS, 2004, p. 299).

    Nossa crtica de outra ordem: permitir que a Administrao Pblica, de modo solipsista e dogmtico, distinga amparados e desamparados na sociedade brasileira, alm de nada explicar sobre este conceito constitucional fundamental, leva a uma situao ftica de permanente questionamento dos verdadeiros objetivos do aparelho burocrtico-estatal nesta ao (CHAVES, 2013, p. 53), questionamento que se d tanto na ponta da sociedade brasileira que potencialmente receberia a Assistncia Social quanto naquela que no a recebe e, muitas vezes, contribui para o seu financiamento.

    falta de sua participao na definio do conceito, em ambos os grupos restar sempre a dvida sobre a possvel predominncia de um carter assistencialista4 e paternalista na ao da Administrao Pblica, com o objetivo de transformar o desamparado em um potencial devedor poltico seu (CHAVES, 2013, p. 115). Este, por no compreender porque a ao estatal lhe devida, pode imaginar que talvez ela seja imerecida ou decorrente da mera caridade (REGO; PiNZANi, 2013, p. 121). E quem a financia - ou, pelo menos, no a recebe, por somente enxergar nela um gasto pblico perene (CHAVES, 2013, p. 129), destinado a perpetuar uma clientela poltica cativa em favor do ocupante atual do Poder, sem promover nenhum tipo de modificao efetiva da realidade.

    Exemplo claro disso so os persistentes questionamentos ao programa Bolsa-Famlia (MOURA, 2007; CASTRO; WALTER; SANTANA; STEPHANOU, 2009) por parte de expressivos setores da sociedade brasileira, tanto esquerda quanto direita do espectro poltico nacional, a indagar sobre os verdadeiros objetivos da Administrao Pblica Federal

    4 No sentido pejorativo que esta palavra recebe, muitas vezes, no debate poltico-jurdico brasileiro.

    na prestao deste tipo de Assistncia Social, bem como sobre a suposta gratido poltica dos seus beneficirios aos atuais detentores do poder central no Brasil. Da parte de quem o recebe, fica o permanente temor de que o benefcio venha a ser subitamente interrompido (MEGA, 2008) por um ato unilateral da Administrao Pblica, sentimento empiricamente comprovado de modo dramtico pela corrida de milhares de beneficirios aos bancos havida entre 18 e 19 de maio deste ano de 2013, quando se espalhou pelo Brasil boato neste sentido.

    2. a tentao de judicializar o problemaA Constituio de 1988 (BRASIL, 1988) traz em seu texto a marca

    do debate poltico da poca, entre o liberalismo poltico e o intervencionismo estatal (SiLVA, 2001, p. 135). Em relao aos direitos sociais, o compromisso alcanado entre essas correntes logrou lev-los a um lugar privilegiado do texto constitucional, mas sob o entendimento inicial de que as normas que os veiculavam seriam meramente programticas, pelas quais, em vez de se regular direta e imediatamente sua implementao, ser-lhes-iam traados meramente os princpios a serem cumpridos em programas destinados realizao dos fins sociais do Estado (SILVA, 2001, p. 138).

    Mesmo juristas nitidamente esquerda em nosso espectro poltico (BONAViDES, 1996, p. 219) reconhecem a ocorrncia desta realidade contempornea promulgao da Carta, afirmando ter sido este o nico meio possvel de se incluir na novel Constituio os direitos fundamentais sociais: entre eles, o direito Assistncia Social, que, como se viu acima, pela primeira vez constou de um documento constitucional brasileiro como um direito social autnomo em relao a qualquer outro.

    Cinco anos aps a promulgao da Constituio (BRASiL, 1988), foi sancionada a Lei 8.742 (BRASiL, 1993), tambm conhecida por Lei Orgnica da Assistncia Social (LOAS), que at hoje a principal norma a organizar e detalhar as aes voltadas para esta rea no Brasil, regulamentando os artigos 6 e 203 da Carta, j anteriormente mencionados neste trabalho.

    A LOAS veio tratar da definio de esferas de atuao da Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios na prestao da Assistncia Social, do delineamento de rgos responsveis pela gesto dos programas assistenciais, assim como da definio de suas possveis fontes de financiamento. Alm disso, no que nos interessa precipuamente em nosso

  • 22 23

    trabalho, a LOAS regulamentou tambm o nico benefcio assistencial especificamente previsto no artigo 203 da Constituio, mais precisamente em seu inciso V, de redao seguinte:

    203. A assistncia social ser prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuio seguridade social, e tem por objetivos:

    (...)

    V a garantia de um salrio mnimo mensal pessoa portadora de deficincia e ao idoso que comprovem no possuir meios de prover prpria manuteno ou de t-la provida por sua famlia, conforme dispuser a lei. (BRASiL, 1988)

    No obstante trate-se de um benefcio destinado a grupos sociais especficos (idosos e portadores de deficincias), entendemos que a parte final do dispositivo (... que comprovem no possuir meios de prover prpria manuteno ou de t-la provida por sua famlia...) pode fornecer elementos importantes para determinar mais amplamente quem seja ou no o desamparado mencionado no artigo 6 da Carta. E assim, delimitar o conjunto completo dos potenciais beneficirios da Assistncia Social, conceito que reputamos central para a sua fixao como rea autnoma do conhecimento jurdico.

    Ao exercer sua competncia legislativa ordinria, o Congresso Nacional fixou no artigo 20, 3 da lei que considera-se incapaz de prover a manuteno da pessoa portadora de deficincia ou idosa a famlia cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salrio mnimo.5 (BRASiL, 1993)

    O critrio do texto seco e de um rigor matemtico: os integrantes de famlia do potencial beneficirio so contados, soma-se a renda de todos eles e divide-se a mesma pelo nmero de familiares apurados o resultado deve ser inferior a 1/4 de salrio-mnimo per capita, no podendo sequer igualar este valor.

    A contestao deste critrio junto ao Poder Judicirio, especialmente junto ao Supremo Tribunal Federal, surge quase simultaneamente sua entrada em vigor, em 07 de dezembro de 1993.

    5 Este dispositivo teve sua redao alterada pela Lei 12.435 (BRASiL, 2011) apenas para substituir a expresso pessoa portadora de deficincia para pessoa com deficincia. Todo o restante, principalmente o critrio econmico de seleo do beneficirio, foi mantido.

    Em 24 de fevereiro de 1995, ou seja, apenas um ano e dois meses depois, o Procurador Geral da Repblica ajuizou a Ao Direta de inconstitucionalidade (ADi) 1232 questionando a limitao posta pela legislao ordinria. Segundo o relatrio do julgamento6 (BRASiL, 1998), o Procurador-Geral da Repblica defende o raciocnio que esta limitao seria impossvel, e que as expresses a quem dela necessitar e comprovem no possuir meios de prover a prpria manuteno ou t-la provida pela famlia deveriam ser sempre investigadas pela Administrao Pblica em cada caso especfico. Em pedido sucessivo, argumenta que a limitao da Lei 8.742/93 seria, no mximo, uma presuno jure et de jure de miserabilidade.

    O Supremo Tribunal Federal julgou a ADi em 27 de agosto de 1998 (BRASiL, 1998), ocasio em que, por maioria, julgou totalmente improcedente o pedido da Procuradoria-Geral da Repblica, rejeitando inclusive proposta do relator de acatamento do pedido sucessivo do proponente.

    A situao sofreu uma reviravolta completa com o julgamento, pelo prprio Supremo Tribunal Federal, da Reclamao 4.374 (BRASiL, 2013) proposta pelo instituto Nacional do Seguro Social para impugnar junto quela Corte suposto descumprimento da deciso da ADi 1232 (BRASiL, 1998) pela Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Pernambuco.

    No julgamento, novamente por maioria, o prprio STF admite que est reinterpretando sua deciso anterior vista de novas leis editadas posteriormente a ele, e que teriam estabelecido critrios mais elsticos para concesso de benefcios assistenciais, levando o dispositivo questionado a um processo de inconstitucionalizao, na expresso literal do relator do processo, Ministro Gilmar Mendes.

    No obstante a premissa declarada, a deciso final no remete a estas leis para fixao do critrio, sendo apenas declarada a inconstitucionalidade do disposto no artigo 20, 3, sem, contudo, consider-lo nulo. Embora o voto do Ministro Relator sugira critrios e parmetros para definio da miserabilidade para o fim de concesso deste benefcio, os votos transcritos dos demais Ministros no nos permitem concluir que eles aderiram a tais parmetros, e, muito menos, que eles passaram a integrar a deciso com fora vinculante.

    6 A petio inicial da Procuradoria-Geral da Repblica no se encontra disponibilizada na pgina do Supremo Tribunal Federal na internet.

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    Neste ensejo, foroso reconhecermos que o Poder Judicirio, por seu rgo de cpula, mudou sua interpretao da lei estabelecida 15 anos antes, sem que a Constituio houvesse se alterado neste ponto (HESSE, 2009, p. 151), para dizer que a norma perdera sua constitucionalidade neste interregno. Mas, neste proceder, absteve-se de mesmo sequer delinear quem seria o potencial beneficirio da Assistncia Social, a dela necessitar, remetendo a deciso a uma avaliao das condies no caso concreto.

    Em outros termos, o Poder Judicirio invalidou o critrio objetivo obtido pela Administrao Pblica junto competncia legislativa ordinria do Congresso Nacional - que, mal ou bem, fixava um grau de carncia a ser suprido, e o substituiu pela indeterminao da interpretao subjetiva (TEIXEIRA; CHAVES, 2011, p. 107) do agente pblico que examinar o caso. E, certamente numa etapa subsequente (diramos que em todos os casos de indeferimento administrativo do pedido), do prprio Poder Judicirio, atribuindo-se papel central em mais esta questo da sociedade brasileira.

    H alguns anos temos recebido impressionante quantidade de processos, em sua maioria recursos e reclamaes, cujo tema principal a concesso judicial do benefcio assistencial previsto no art. 203, inciso V da Constituio de 1988. Uma difcil questo constitucional, quem vem sendo resolvida pela atuao corajosa da magistratura de primeira instncia, na tentativa de remediar um gravssimo problema social que se notabiliza como soma de injustias, decorrente de uma desencontrada relao entre a letra objetiva da lei e a vontade da constituio.

    O exame dos diversos casos revela um comportamento judicial peculiar, porm muito comum. A anlise histrica dos modos de raciocnio judicirio demonstra que os juzes, quando se deparam com uma situao de incompatibilidade entre o que prescreve a lei e o que se lhes apresenta como a soluo mais justa para o caso, no tergiversa na procura das melhores tcnicas hermenuticas para reconstruir os sentidos possveis do texto legal e viabilizar a adoo da justa soluo. (BRASiL, 2013) (negritos nossos)

    O trecho destacado indica que, do ponto de vista do prprio Poder Judicirio, sua atuao quase sempre positiva, destinada a promover uma original forma de acesso aos direitos fundamentais com a busca de

    efetivao plena desses com a prestao jurisdicional j despregada de um carter estritamente legalista e pontuada por uma atuao que objetiva a reduo das desigualdades (MiNiSTRiO DA JUSTiA et al, 2010, p.9).

    Em outros termos, o Poder Judicirio enxerga-se, aqui, aplicando uma interpretao superior da Constituio - por moralmente enriquecida - quela praticada pelos demais poderes estatais, que se ocupariam unicamente de um direito ordinrio, fruto de comezinhos acordos de interesses cotidianos (MAUS, 2010, p. 19).

    A fora hierrquica e a simplicidade argumentativa destes fundamentos que embasa o precedente do Supremo Tribunal Federal, cujo ponto de partida a agradvel ideia (BARCELOS, 2010, P. 803) de que a Corte simplesmente est cumprindo uma obrigao constitucional (VENTURA et al, 2010, p. 78), d suporte a uma crena cada vez mais insistente entre potenciais interessados na concesso do benefcio, acadmicos, advogados, e, principalmente, juzes de instncias inferiores, que todos estaro mais bem protegidos se o Poder Judicirio tiver a ltima e amplamente benigna palavra sobre a definio de quem necessita da Assistncia Social no Brasil.

    Em nosso entender, Poder Judicirio, Administrao Pblica e mesmo a sociedade brasileira voltam a trilhar o caminho que resultou na ampla judicializao do direito sade. E que certamente padecer dos seus mesmos problemas.

    O mais evidente deles que, sem a participao dos interessados, os amparados e desamparados a que nos referimos no item anterior de nosso trabalho, sob o aspecto formal pouco difere uma deciso tomada pela Administrao Pblica ou pelo Poder Judicirio: ambas sero a expresso de diferentes racionalismos solipsistas, que atribuem a ltima palavra a uma autoridade burocrtica (CHAVES, 2013, p. 45; 61), estabelecendo com os cidados uma relao de clientela (SOUZA NETO, 2010, p. 524).

    No percebemos uma diferena relevante, para fins de delimitao de nosso objeto de estudo, que seja em Direito, e no em Economia ou Cincias Sociais, a expertise da autoridade que decide sem a participao dos concernidos ao problema (especialmente potenciais beneficirios e potenciais pagadores do benefcio) qual o limite da miserabilidade no Brasil, pois no compartilhamos da leitura dirigente da Constituio dada pelo STF, que sugere que uma elite judiciria seja capaz de resolver todos os problemas sociais concretos a partir da interpretao da Constituio (CHAVES, 2013, p, 70).

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    Em sentido exatamente contrrio, acreditamos que este raciocnio de que o juiz possa ter uma racionalidade superior aos demais agentes com atuao social (CHAVES, 2013, p. 158) no tem nenhuma comprovao emprica - firmando-nos, principalmente, no exemplo da aparentemente insolvel judicializao da sade, servindo apenas para provocar

    [...] um alargamento insustentvel da fora normativa diretiva de normas constitucionais a situaes carecedoras de regulamentao legislativa, o que acaba se voltando sobre a crena do poder do Estado. (CHAVES, 2013, p. 73)

    Ainda, considerando-se a formao intelectual e econmica praticamente homognea entre os juzes bacharis em Direito oriundos e integrantes da classe mdia (SOUZA, 2011, p. 404), bem como a desnecessidade deste grupo de se submeter a qualquer sufrgio popular como fonte de sua legitimao7, no irreal pensarmos que a definio judicializada da necessidade da Assistncia Social poder ser grandemente contaminada pelo abismo da empatia a que se refere Shapiro (2003, p. 133): a distncia entre o agente judicial definidor da linha comparativa de desamparo social no Brasil e o restante da sociedade tamanha, que ele no consegue superar a viso de que o mundo seja mais do que uma verso alargada de seu grupo de referncia (SHAPiRO, 120, 2003) e, simplesmente, no divisa o que mera preferncia subjetiva ou impulso do interessado na Assistncia Social daquilo que importa em uma carncia a ser suprida, a custo do esforo de toda sociedade (CHAVES, 2013, p. 133;136).

    O risco de excessos, para mais (em detrimento de quem financia a Assistncia Social) ou para menos (em detrimento do possvel beneficirio da Assistncia Social), gigantesco, ante a pretenso de tratar o tema como algo que ele no : um tema tcnico em sentido estrito, meramente decorrente de uma interpretao correta da norma constitucional (DiMOULiS; MARTiNS, 2012, p. 4), que no teria ocorrido at agora por falta de virtuosismo dos agentes polticos envolvidos na questo (CHAVES, 2013, p. 136).

    7 Fonte de legitimidade genericamente invocada pela Administrao Pblica para agir soz-inha, como visto no item anterior do trabalho.

    conclusesApresentados nossos reparos ao aparelhamento burocrtico-estatal

    (administrativo ou judicirio) da interpretao das normas constitucionais (artigo 6 e 203, caput e inc. V) que tomamos como matrizes de nossos estudos, gostaramos de acrescentar que consideramos ser possvel ultrapassar este impasse, desde que vencido o que Unger chama de fetichismo institucional (UNGER, 2004, p. 17): o apego s razes e formatos jurdicos que hoje, contingencialmente (HABERMAS, 2003 v.1, p. 145), so relevantes, como se eternos e insubstituveis fossem.

    O primeiro passo , insistimos, reconhecer que as definies procuradas nem tm uma simples resposta tecnicamente neutra (SCHiMiDTZ, 2009, p. 9), nem so transcendentais (RAWLS, 2000, p. 33), pontos de partida de Administrao Pblica e Poder Judicirio, respectivamente, e que procuramos demonstrar como origem de seus equvocos no trato da questo. Uma definio de quem deva ser amparado pela Assistncia Social implicar, de modo necessrio, em redistribuio no s de recursos financeiros retirados da sociedade, como tambm -especialmente se bem-sucedida - de poder poltico, com conseqente alterao do reconhecimento intersubjetivo entre os cidados brasileiros, movimentaes a que as pessoas nunca so indiferentes (RAWLS, 1997, p. 5), e que so problemas polticos centrais em uma democracia (CHAVES, 2013, p. 137).

    Acreditamos, pois, os dispositivos legais em exame encontram-se insaturados, e precisam ser configurados e interpretados na regulao legtima da convivncia (HABERMAS, 2003, v.1, p. 162), voltada para o reconhecimento simultneo do progresso prtico da sociedade brasileira e das exigncias de emancipao dos indivduos empobrecidos em relao a esta sociedade (CHAVES, 2013, p. 142).

    confortvel imaginarmo-nos como uma sociedade com conceitos materiais mnimos de justia estabelecidos consensualmente, que acredita que desigualdades imerecidas e extremas que atingem os desamparados merecem reparaes, pois prejudicam a todos, devendo ser reparadas sem trazer risco excessivo sua frao amparada (RAWLS, 1997, p. 90;107;122).

    Com isso, cria-se a falsa impresso de que conhecemos nossos problemas sociais e que o que falta apenas uma gerncia eficiente a crena fundamental de toda viso tecnocrtica do mundo quando, na verdade, sequer se sabe do que se est falando. (SOUZA, 2011, p. 17)

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    Admitirmos que estes consensos benevolentes no traduzam nenhum sentido material de justia especfico (DANIELS, 2008, p. 25), a ponto de ser automtica e meramente cumprido por aparelhos burocrtico-estatais, reconhecer que precisamos voltar a discutir onde se localiza a linha que separa aqueles que se beneficiaro da Assistncia Social daqueles que por ela pagaro e tambm daqueles a que ela ser relativamente indiferente. E isto pode, em um primeiro momento, ser desagradvel, e at mesmo assustador para nossa autoimagem como pas (SOUZA, 2011, P. 39).

    No entanto, temos que essa crtica fundamental, no s para definio da Assistncia Social como rea autnoma do conhecimento jurdico, mas tambm para tentarmos desarmar, ou, pelo menos, reduzir em muito a intensidade do grave conflito que se prenuncia, entre os amparados e desamparados de nossa sociedade a que tantas vezes nos referimos, que, mais e mais tendem a reivindicar com exclusividade a legitimidade de suas pretenses em conflito, com base em argumentos morais (HABERMAS, 2004, p. 297), deteriorando progressivamente o respeito de uns pelos outros, e de todos pelo aparelho burocrtico-estatal (REGO; PiNZANi, 2013, p. 227).

    O desafio criarmos novas instituies, mais pblicas e menos estatais, que afastem da questo a permanente sombra do paternalismo, e permitam uma participao maior dos prprios interessados na definio desta poltica frao da poltica, assim como de sua consequente formulao como conhecimento jurdico. De modo que assim cheguemos a instituies que, como nos sugere Chaves (2013, p. 21; 61) consigam acomodar sujeitos que procuram ininterruptamente ampliar sua autonomia pessoal e a extenso dos direitos que lhes so intersubjetivamente garantidos, a partir de uma fundamentao pblica que no dispense os fundamentos tcnicos, mas que consiga ultrapass-los.

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    AssistnciA sociAl como direito: Aspectos nAcionAis e internAcionAis

    Larissa Mizutani

    resumo: a assistncia social consolidou sua natureza jurdica ao ser reconhecida como direito. Esse reconhecimento deu-se tanto em mbito nacional, pela Constituio Federal de 1988, e em mbito internacional, como direito humano. Para alm de uma poltica pblica, a assistncia social como direito aponta para o dever de o Estado responder s demandas do cidado, na relao jurdica que se estabelece entre eles. Com isso, afirma-se a relevncia de o Estado assumir a responsabilidade de prestar as condies mnimas de existncia digna, em cumprimento aos ditames constitucionais e s diretrizes internacionais. palavras-chave: Assistncia Social; Direito Fundamental; Direitos Humanos; Mnimo Existencial.

    abstract: social assistance has cemented its legal nature when recognized by law as a right. This recognition took place both at the national level by the Federal Constitution of 1988 and internationally, as a human right. in addition to public policy, social assistence such as right points to the duty of the State to respond to the demands of citizens, due to the legal relationship established between them. Thus, we affirm the relevance of the State to assume responsibility for providing the minimum conditions of dignified existence in fulfillment of constitutional precepts and international guidelines.

    Key-words: Social Assistance; Fundamental Righ; Human Rights; Existential Minimum

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    introduoCom a promulgao da Constituio Federal de 1988, a assistncia

    social transita do assistencialismo clientelista para o campo dos direitos sociais constitucionalmente reconhecidos. Esse movimento se deu no somente pela organizao progressiva dos mecanismos de assistncia social do Brasil, mas tambm pelo ambiente jurdico internacional que reconhecia a necessidade de proteger a pessoa humana, sem prvia contribuio, em situao de pobreza, vulnerabilidade ou casos de excluso social. O aspecto social dos direitos humanos passa, especialmente, pela proteo do indivduo a partir da colaborao solidria de uma comunidade.

    A assistncia social como direito consolida, pois, o entendimento a ser atribudo no contexto nacional e mundial. Os meios de assistncia social deixam de ser pontuais, desarticulados ou voluntrios, mas exigveis por quem deles precisa em razo de um direito reconhecidamente humano e constitucionalmente estabelecido. Por essa razo, o Estado possui o dever de cumprir a norma constitucional e observar os compromissos internacionalmente assumidos; o indivduo, por seu turno, torna-se sujeito de direito e, com isso, detentor do poder de reivindicar o fiel cumprimento dessa norma.

    Essa mudana de perspectiva sobre a assistncia social desencadeia uma srie de obrigaes para o Estado, como o constante e progressivo aprimoramento dos mecanismos institucionais que assegurem tal direito subjetivo, bem como o dever nos mbitos legislativo, judicial e administrativo ao considerar a norma constitucional como fundamental para a tomada de suas decises. Ainda, insere o Brasil em um contexto internacional onde no deve haver barreiras e fronteiras para a assistncia social do ser humano, atribuindo-lhe a responsabilidade, como nao soberana, a respeitar a dimenso universal desse direito social.

    1. a assistncia social como direitoDiferentemente dos direitos chamados de primeira gerao ou

    dimenso, que se relacionam com a liberdade e a atuao negativa do Estado (ou seja, a no interveno nas liberdades da pessoa humana), o direito assistncia social caracteriza-se como direito de segunda dimenso

    e insere-se no campo dos direitos sociais, em que a atuao do Estado positiva, isto , deve haver atuao do Estado para promover o direito1.

    Se vlida a classificao acima, possvel observar que a atuao do Estado transita entre a no interveno e a necessria atuao. No caso da assistncia social, verifica-se que as demandas sociais pelo mnimo necessrio sobrevivncia do ser humano ultrapassa a atuao pontual de agentes privados, com o risco de parcela das pessoas estarem descobertas dessa atuao voluntria. Ao elevar a assistncia social a direito, altera-se a relao entre o Estado e a sociedade e Estado e indivduo, havendo a obrigao, e no a voluntariedade, em atender a todos que necessitem da assistncia social.

    Norberto BOBBiO (1992, p. 68) observa que houve uma multiplicao dos direitos de trs modos: o primeiro, pelo aumento da quantidade de bens a serem tutelados; o segundo, em funo da extenso da titularidade de alguns direitos; e, por fim, por considerar o homem no mais como ser genrico, mas reconhec-lo em sua especificidade e concretude.

    O direito de um sujeito concreto sobre algum objeto tutelado, dentro de um contexto social determinado. A assistncia social , portanto, direito da pessoa que dela necessita pela tutela de sua existncia digna, conforme o que se entenda por existncia digna a partir dos parmetros nacionais e das diretrizes internacionais. Douglas MENDOSA (2012, p. 54) explica:

    Colocar a questo da assistncia na sociedade brasileira implica considerar a extrema desigualdade socioeconmica da populao, as caractersticas de nosso capitalismo perifrico e a assimetria de poder entre os diferentes grupos sociais e econmicos. Essa assimetria impe populao em situao de desvantagem o uso de canais e de intermediaes de toda sorte para buscar os recursos que necessita. Uma das intermediaes mais comuns no acesso dos bens e recursos

    1 O agrupamento de direitos e sua diviso em geraes ou dimenses so instrumentos de anlise utilizados, dentre outros, pelo constitucionalista Paulo BONAViDES (2004, p. 562-572) que, em uma perspectiva histrica, percebeu que direitos fundamentais de natureza diversa eram demandados de acordo com as pocas mais ou menos determinveis, asso-ciadas ao lema da Revoluo Francesa (liberdade primeira dimenso; igualdade segun-da dimenso; e fraternidade terceira dimenso), conforme as reivindicaes reconhecidas pelo sistema jurdico normativo. O termo dimenso , hoje, preferido a gerao, com o intuito de esclarecer que uma gerao no substituda por outra, mas so sobrepostas e convivem umas com as outras.

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    pblicos consolidou-se na figura da primeira dama, isto , da generosa esposa do prefeito, governador ou presidente, responsvel por organizar obras pblicas de caridade.

    Para BOBBiO (1992, p 24), uma vez positivado o direito, no h que se buscar sua justificativa, mas sim garantir sua eficcia. Trata-se, pois, de um problema de cunho poltico, e no jurdico. Embora a grande questo que envolve os direitos sociais seja, de fato, de ordem poltica, no se pode ignorar a diferena entre a prtica ou diretriz social e a previso legal ou a declarao do direito reconhecido. Em um contexto de tradio legalista como o do Brasil, um tema ser levado ao texto da lei gera consequncias significativas.

    Diferentemente de intenes polticas, o direito tem como correlato uma obrigao, um dever. Essa afirmao decorre da construo elaborada por Wesley Neocomb HOHFELD (1879-1918), em apenas dois estudos publicados no esforo de esclarecer o conceito de direito e sua aplicao na relao jurdica. HOHFELD (1968) afirma que, a depender do contexto, o direito pode assumir quatro significados: claim-rights (pretenses), liberty-rights (privilgios); powers (poderes) e immunities (imunidades). Em relao a esses conceitos, possvel estabelecer oito pares conceituais, sendo quatro correlaes e quatro oposies.

    Para a presente anlise, cabe mencionar as quatro correlaes de conceitos estabelecidas por HOHFELD: i) pretenso/dever; ii) privilgio/no-direito; iii) poder/sujeio; iv) imunidade/incompetncia. A assistncia social insere-se no conceito de direito do primeiro caso, como pretenso, e seu correlato dever, que se traduz na seguinte assertiva: Ter direito-pretenso frente a algum significa estar em oposio de exigir algo de algum.

    Com essa construo lgica, possvel exigir o cumprimento de uma obrigao, de um dever, de uma pretenso que pertena a algum. Quem necessita assistncia social possui essa pretenso perante o Estado, que tem o dever de assisti-lo (ou atender exigncia) a partir do momento em que se estabelece a relao entre o devedor da pretenso (o Estado) e o detentor da pretenso (aquele que precisar da assistncia social).

    Essa relao, no Brasil, tem como marco positivista a Constituio Federal de 1988, em seu artigo 203, que determina a prestao de assistncia social a quem dela necessitar, independentemente de contribuio, e artigo 204, que indica o compromisso do Estado em aes governamentais na rea da assistncia social. A assistncia social como

    direito leva, portanto, a uma percepo diferente do Estado, como agente promotor de direitos sociais:

    suprfluo acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais suscita, alm do problema da proliferao dos direitos do homem, problemas bem mais difceis de resolver no que concerne quela prtica de que falei no incio: que a proteo destes ltimos requer uma interveno ativa do Estado, que no requerida pela proteo dos direitos de liberdade, produzindo aquela organizao dos servios pblicos de onde nasceu at mesmo uma nova forma de Estado, o Estado social. (BOBBiO, 1992, p. 72).

    Essa construo que atribuiu assistncia social o status de direito revela uma demanda internacional e nacional, o que leva justificativa e, por conseguinte, necessidade de cumprimento desse dever que os Estados impuseram a si mesmos.

    Aldaza SPOSATI (2013, p. 34-35) afirma que, embora a legalidade no substitua a legitimidade, a proposta para a assistncia social na condio de direito foi um processo lento. A autora relata que em 1985 a publicao do livro Assistncia na trajetria das polticas sociais brasileiras: uma questo em anlise, que sistematizava resultados de pesquisa desenvolvida durante os anos 1983 e 1984 por ela, por Dilsea Bonetti, Maria Carmelita Yazbek e Maria do Carmo Brant de Carvalho, foi pioneira para o debate quanto possibilidade da assistncia social [...] ingressar no campo da cidadania social ou de um direito social possvel, ao relacionar assistncia social com cidadania.

    A transio da atuao estatal no campo da assistncia social, da represso da mendicncia para uma funo do Estado, no foi um processo uniforme e homogneo:

    [...] a introduo do direito assistncia social na Constituio no foi resultado somente da presso dos movimentos sociais urbanos que reclamavam por melhorias nas condies de vida da populao. Resultou, tambm, de propostas de reforma do sistema previdencirio que j tinham vindo luz nos primeiros anos do governo de Jos Sarney (1985-1989). Na viso dos tcnicos da previdncia, era preciso desvincular benefcios contributivos dos no contributivos, ou seja, distingui-los em previdencirios e assistenciais. (MENDOSA, 2012, p. 48-49).

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    A assistncia social como direito, segundo MENDOSA (2012, p. 50-52) poderia deixar de ser o lugar da produo de respostas desiguais (voluntaristas, emergenciais, personalizadas) para a desigualdade social e superar o histrico carter assistencialista de suas aes, para alcanar a visibilidade necessria de uma poltica social a ser superada. reconhecer, portanto, que os segmentos espoliados da populao tm direito de verem suas necessidades atendidas pelo Estado, e sem que isso implique em assistencialismo.

    2. a assistncia social como direito humanoNo h uma discusso mundial sistematizada de proteo social a

    partir da perspectiva dos direitos humanos2, pela extenso de obrigaes assumidas pelos Estados em direitos humanos, decorrentes de vrios tratados sobre o tema, e ainda pela necessidade de integr-los pela Organizao das Naes Unidas (SEPLVEDA et al.,2012, p.10)3.

    possvel identificar algumas vantagens em abordar a assistncia social como um direito humano. A primeira delas aplicar os princpios decorrentes da estrutura de direitos humanos como acessibilidade, adequao, equidade, no discriminao, participao e transparncia na elaborao, conduo, monitoramento e avaliao dos programas de assistncia social (SEPLVEDA et al.,2012, p. 11;19).

    2 Cabe ressaltar a observao de Fernanda Doz COSTA sobre a acepo de direitos hu-manos como termo jurdico e concepo moral: No obstante o discurso de direitos hu-manos seja muito convincente, a maior parte do trabalho neste campo demandar que os Estados e outros atores pertinentes cumpram com as obrigaes juridicamente vinculantes que possuem perante o Direito internacional de Direitos Humanos. O movimento de direitos humanos, contudo, no se limita ao Direito internacional. Cada vez mais, a linguagem de direitos humanos empregada como um discurso moral que defende o carter universal e consensual de certos valores fundamentais, com base em um nvel mnimo de dignidade humana capaz de ser endossado por diferentes tradies que, se no concordassem nem ao menos neste ponto, viveriam em constante conflito. (COSTA, 2008, p. 94).

    3 Em 1997, o Secretrio-Geral classificou os direitos humanos, em seu programa de refor-ma, como uma questo interdisciplinar. (SECRETRiO-GERAL DAS NAES UNiDAS. Renewing the United Nations: A Programme for Reform, A/51/950, 14 de julho de 1997. Dis-ponvel em: . Acesso em: agos-to de 2008). Integrar os direitos humanos significa melhorar o sistema de direitos humanos e vincul-lo atuao das Naes Unidas como um todo, inclusive ao trabalho humanitrio e em defesa do desenvolvimento (COSTA, Fernanda Doz. Pobreza e direitos humanos: da mera retrica s obrigaes jurdicas um estudo crtico sobre diferentes modelos concei-tuais. in: SUR Revista internacional de Direitos Humanos. Ano 5, n. 9, So Paulo: Prol Editora Grfica, 2008. p. 114).

    Outra grande vantagem dessa abordagem construir consensos sociais e compromissos duradouros no nvel nacional e internacional, de modo a permitir mecanismos de accountability e determinar como obrigao legal dos agentes envolvidos na promoo desse direito. Com isso, possvel criar mecanismos de controle, avaliao e participao social mais efetivos, sempre em busca do aperfeioamento das ferramentas disponveis para atender com eficincia quem tem direito assistncia social.

    Alm disso, considerar a assistncia social como um direito humano afasta o carter paternalista e assistencialista dos programas, de modo a emponderar seus beneficirios, atribuir-lhes visibilidade e reafirm-los como cidados detentores de direitos (SEPLVEDA et al.,2012, p. 12; 18). A assistncia social como direito humano, portanto, legitima sua existncia como norma universal advinda de valores universais, materializada em tratados internacionais juridicamente vinculantes.

    Por essa perspectiva, possvel estabelecer, a partir das bases jurdicas internacionais que os direitos humanos permitem, a cooperao e colaborao entre os agentes responsveis pela promoo do direito assistncia social, com aprimoramento das estratgias e respostas resultantes das experincias e boas prticas compartilhadas nacional e internacionalmente. A discusso torna-se, pois, no uma opo poltica, mas uma obrigao legal a ser observada pelos pases, que inclui tomar todas as medidas necessrias para proteo dos direitos humanos (artigo 2, item 1, do Pacto internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais), dentre eles o direito assistncia social.

    O Brasil signatrio de compromissos firmados perante a comunidade internacional que reforam e orientam seu dever estatal diante do respeito aos direitos humanos. Dentre eles est Pacto internacional sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, adotado pela ONU em 1966, internalizado pelo Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992. Pela norma, os Estados signatrios se comprometem a garantir o seguro social, com o dever de assegurar a proteo famlia, maternidade, s crianas e adolescentes, promover condies de trabalho justas e favorveis, nvel de vida adequado (que inclui alimentao, vestimenta e moradia e melhoria contnua das condies de vida), desfrute do mais elevado nvel possvel de sade fsica e mental e pleno desenvolvimento da personalidade humana por meio da educao, com fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais.

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    O Estado brasileiro tambm signatrio do Pacto internacional sobre Direitos Civis e Polticos, promulgado pelo Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992. O referido Pacto traz em seu texto normativo o reconhecimento da dignidade inerente pessoa humana, promovido pelo gozo de liberdades civis e polticas e pelo respeito universal desses direitos, consoante a Declarao Universal dos Direitos Humanos. Reafirma-se a igualdade de todas as pessoas perante a lei, sem que haja qualquer discriminao para garantir proteo eficaz contra qualquer tipo de discriminao.

    Tais marcos normativos internacionais reforam o compromisso dos seus signatrios de assegurar esses direitos fundamentais, tanto internacional como internamente. A Constituio Federal de 1988 orientou-se por esse compromisso, com meno expressa ao princpio da prevalncia dos direitos humanos em suas relaes internacionais, e a previso dos direitos e garantias fundamentais em seu Ttulo ii, que abarca os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, a nacionalidade, os direitos polticos e os partidos polticos, e em seu Ttulo Viii, que trata da ordem social (sade, previdncia social, assistncia social, educao, cultura, desporto, cincia e tecnologia, comunicao social, meio ambiente, famlia, criana, adolescente, jovem e idoso, e ndios) que tem como objetivo o bem-estar e a justia sociais.

    Quando um Estado torna-se voluntariamente signatrio de um tratado internacional, ele no apenas indica a seus pares seu compromisso com determinado tema, mas tambm se vincula ao tratado, de modo a assumir obrigaes diante dos demais signatrios, atendendo s expectativas que motivaram a edio daquele acordo. Ao se tratar de direitos humanos, o Estado deve progressivamente aperfeioar meios, mecanismos e aes que garantam o gozo desses direitos.

    Para tanto, no h razo de ordem econmica que justifique a preterio de qualquer desses direitos, de modo a preservar um ncleo mnimo de proteo pessoa. Esse ncleo mnimo caracteriza-se como indispensvel para a subsistncia humana, e que pode apresentar nveis diferenciados de acordo com os contextos nacionais. Apesar disso, no se pode justificar condies precrias de sobrevivncia como aquelas alcanveis pelo Estado.

    3. a assistncia social como direito constitucionalAntes de elevada a direito constitucional, a assistncia social

    era tratada como parte da cobertura de riscos a que estavam sujeitos os desvalidos e miserveis, sob responsabilidade predominantemente privada e inspirada no conceito de caridade crist. A participao do Estado deu-se, inicialmente, pelo apoio e incentivo a organizaes privadas que atuavam nessa seara (JACCOUD; HADJAB; CHAiBUB, 2009, p. 178)

    A insero da assistncia social como direito na Constituio Federal de 1988 atribuiu novo carter poltica pblica at ento praticada. A responsabilidade passa ao Poder Pblico, que deve assegurar a proteo aos que precisarem da assistncia social, independentemente de contribuio prvia. Essa diretriz decorre de um modelo de proteo social do tipo redistributivo, que definida a partir do conceito de direito mnimos universais de cidadania no campo social. Nesse modelo:

    A atuao do Estado, por meio das polticas sociais, deve compensar as desigualdades geradas pela ao do mercado, atendendo assim a objetivos redistributivistas, em nome de um maior grau de igualdade. Alm disso, geralmente o cumprimento desta misso exige a proviso de um leque amplo de bens e servios por meio de uma rede de equipamentos pblicos, gratuitos e de acesso universal. (CASTRO, 2009, p. 22)

    Os artigos 203 e 204 da Constituio Federal, que tratam dos objetivos da assistncia social e das diretrizes que norteiam as aes governamentais, so concretizados pela Poltica Nacional da Assistncia Social (PNAS), de 2004, e da Norma Operacional Bsica do Sistema nico de Assistncia Social (NOB/SUAS), de 2005, revisada em 2012, e a Lei n. 12.435, de 2011, que consolidou o SUAS no mbito da Lei Orgnica de Assistncia Social (LOAS). O PNAS e o SUAS encontram amparo no art. 6 do texto constitucional, que reconhece a assistncia aos desamparados como um direito social. COLiN e JACCOUD (2013, p. 46) destacam a importncia de fundamentos legais da assistncia social:

    Politicas de proteo social ancoradas em direitos apontam, contudo, para outra dimenso protetiva. Direitos so obrigaes legais de oferta em face das situaes sociais identificadas a demandas legitimas de proteo. Com relao a tais situaes, a oferta de proteo via servios ou benefcios deve ser contnua, uniforme, claramente desenhada e reivindicvel.

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    Assim, a incluso da assistncia social como poltica pblica no mbito dos direitos a seguridade social tem exigido sua estruturao em novas bases: reconhecimento deste lcus de responsabilidade pblica pelos entes federados e de suas respectivas atribuies; padronizao das protees com definio das ofertas e seus objetivos; instituio de garantia de acesso a servios e benefcios em todo o territrio nacional, considerando no apenas o principio da universalidade como da uniformidade e da cobertura das prestaes.

    No Brasil, h uma discusso travada tanto na doutrina como na prtica dos julgadores entre dois conceitos que se encontram na seara social: o mnimo existencial e a reserva do possvel. O mnimo existencial caracteriza-se pela dimenso da liberdade individual, da possibilidade de escolha mnima de um sujeito autnomo em guiar sua prpria vida. Essa liberdade refere-se s diferentes dimenses da vida, como liberdade econmica, poltica, civil e cultural.

    O mnimo existencial, segundo Ricardo Lobo TORRES (1990, p. 69), definido como o direito s condies mnimas de existncia humana digna que no pode ser objeto da interveno do Estado e que ainda exige prestaes estatais positivas. Nesse sentido, a clssica diviso pedaggica dos direitos fundamentais em geraes ou dimenses no adequada para explicar o mnimo existencial, uma vez que, sozinho, o detentor desse direito no pode goz-lo em razo, por exemplo, de omisso do Estado em seu dever de promover a assistncia social em caso de necessidade do sujeito. Esse mnimo existencial, segundo Torres, se concretiza pelo processo democrtico (p. 75) e, em razo disso, deve ser progressivamente ampliado, especialmente com o marco atribudo pela Constituio Federal de 1988.

    Quanto reserva do possvel, tambm conhecida como reserva do financeiramente possvel ou reserva da consistncia, decorrente de um posicionamento construdo pela Corte Constitucional alem na dcada de 1970, afirma-se que somente se pode exigir do Estado aquilo que razoavelmente se pode esperar (SARLET, 2003, p. 265). No se tratava, no entanto, necessariamente de contingncias financeiras, pois o caso julgado pela Corte decorria do nmero insuficiente de vagas nas universidades para os alemes que tinham o direito a escolher livremente sua profisso, local de trabalho e seu centro de formao, conforme o artigo 12 da Lei Fundamental Alem. Ocorre que esse entendimento, quando aplicado no Brasil, transformou-o em limite financeiro efetivao dos direitos fundamentais a serem prestados pelo Estado.

    A reserva do possvel tornou-se, no raras vezes, defesa do Estado brasileiro, uma vez que as normas constitucionais, antes vistas como programticas, no eram passveis de cobrana pelo cidado perante o Estado, sob o argumento das limitaes financeiras que o impediam de cumprir a Constituio Federal4.

    O Supremo Tribunal Federal, em deciso sobre a omisso estatal que compromete e frustra direitos fundamentais de pessoas necessitadas, destacou o cumprimento do texto constitucional com base nos parmetros constitucionais da proibio do retrocesso social, proteo ao mnimo existencial e vedao da proteo insuficiente, afirmando a impossibilidade de ser invocada a frmula da reserva do possvel na perspectiva da teoria dos custos dos direitos para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestao constitucionalmente impostos ao Estado, conforme o Agravo de instrumento n. 598212, de relatoria do Ministro Celso de Mello. Evidencia-se, pois, o esforo do Estado, inclusive o Estado-juiz, em assegurar condies mnimas para a existncia humana.

    A proibio do retrocesso, citada pelo precedente, tambm deve ser destacada em relao ao direito assistncia social. O progresso histrico da assistncia social, desde mera faculdade de entidades filantrpicas, o assistencialismo clientelista qualificao de poltica pblica e norma constitucional, no pode ser interrompido ou sofrer retrocesso por quaisquer argumentos de ordem econmica, poltica, social. Sobre o princpio da proibio do retrocesso, ingo W. Sarlet leciona:

    Esta proibio de retrocesso, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, pode ser considerada uma das consequncias da perspectiva jurdico-subjetiva dos direitos fundamentais sociais na sua dimenso prestacional, que, neste contexto, assumem a condio de verdadeiros direitos de defesa contra medidas de cunho retrocessivo, que tenham por objeto a sua destruio ou reduo. (SARLET, 2010, p. 19)

    4 Pode-se verificar a concordncia de magistrados com esse argumento, em que A real-izao os direitos sociais exige grandes aportes financeiros que nem sempre esto dis-ponveis ou situados nas prioridades dos oramentos pblicos. A doutrina da reserva do pos-svel deve ser levada em conta pelo magistrado quando determina a prtica de prestaes positivas pelo Estado. (TRF 1 Regio. AGRSES 0037773-65.2010.4.01.0000. julgado em 16/12/2010, publicado em e-DJF1 de 08/02/2011, p. 3).

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    As conquistas alcanadas, pelo que hoje se reconhece como assistncia social, so asseguradas por esse princpio da proibio do retrocesso, que se relacionam com a segurana jurdica atribuda pelo Estado de Direito. Alm disso, a prpria ordem constitucional limita a reforma do texto constitucional pelo constituinte derivado, ao no permitir a reforma da Constituio nessa temtica por aqueles que detm o poder para tanto. Segundo SARLET,

    [o legislador] no pode simplesmente eliminar as normas concretizadoras de direitos sociais, pois isto equivaleria a subtrair s normas constitucionais a sua eficcia jurdica, j que o cumprimento de um comando constitucional acaba por converter-se em uma proibio de destruir a situao instaurada pelo legislador. (SARLET, 2010, p. 14)

    Verifica-se, portanto, que no mbito normativo internacional e nacional, o Brasil possui arcabouo suficiente para amparar a promoo da assistncia social como direito humano (reconhecido como tal internacionalmente) e fundamental (previsto no texto constitucional). Ressalte-se que a norma constitucional prevista no artigo 203 e 204 no deve ser interpretada como meramente programtica, mas de aplicao imediata, pois dever constitucional a ser cumprido pelo Estado.

    O Ministro Celso de Mello, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinrio com Agravo n. 639337, discorreu sobre a proibio do retrocesso social como obstculo constitucional frustrao e ao inadimplemento de direitos prestacionais pelo Poder Pblico:

    O princpio da proibio do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de carter social, que sejam desconstitudas as conquistas j alcanadas pelo cidado ou pela formao social em que ele vive. A clusula que veda o retrocesso em matria de direitos a prestaes positivas do Estado (como o direito educao, o direito sade ou o direito segurana pblica, v.g.) traduz, no processo de efetivao desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstculo a que os nveis de concretizao de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequncia desse princpio, o Estado, aps haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever no s de torn-los efetivos, mas, tambm, se obriga, sob

    pena de transgresso ao texto constitucional, a preserv-los, abstendo-se de frustrar - mediante supresso total ou parcial - os direitos sociais j concretizados.

    No se trata, portanto, de escolha de governo, mas sim o cumprimento dos ditames constitucionais. No mesmo voto, o Ministro reconhece a dificuldade enfrentada pelo gestor:

    A destinao de recursos pblicos, sempre to dramaticamente escassos, faz instaurar situaes de conflito, quer com a execuo de polticas pblicas definidas no texto constitucional, quer, tambm, com a prpria implementao de direitos sociais assegurados pela Constituio da Repblica, da resultando contextos de antagonismo que impem, ao Estado, o encargo de super-los mediante opes por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Pblico, em face dessa relao dilemtica, causada pela insuficincia de disponibilidade financeira e oramentria, a proceder a verdadeiras escolhas trgicas, em deciso governamental cujo parmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, dever ter em perspectiva a intangibilidade do mnimo existencial, em ordem a conferir real efetividade s normas programticas positivadas na prpria Lei Fundamental.

    Entretanto, como indica o prprio voto e a doutrina que com ele coaduna, no se pode afastar, nessas escolhas, a noo de mnimo existencial, que justifica a constitucionalizao da assistncia social. Portanto, a assistncia social, como direito social com assento na Constituio Federal de 1988, no opo poltica a ser ou no concretizada. dever a ser prestado pelo Estado em sua relao jurdica com o cidado.

    conclusesA assistncia social no Brasil, para alm de ser considerada uma

    poltica pblica, fortalece-se quando vista como direito: possui status de direito constitucional, alm de pertencer ao conjunto de direitos humanos, e encontra abrigo no ordenamento jurdico brasileiro como direito fundamental, nos tratados assinados pelo Estado brasileiro comprometendo-se perante a comunidade internacional e sustentado pela doutrina especialmente pelos princpios da proteo ao mnimo existencial e proibio do retrocesso e pela jurisprudncia ptria.

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    Sua institucionalizao, realizada por meio da Lei Orgnica de Assistncia Social LOAS, pela Poltica Nacional de Assistncia Social PNAS e pela estrutura descentralizada em contnuo aperfeioamento do sistema nico de Assistncia social SUAS, resultado, em grande parte, do reconhecimento de sua natureza jurdica como direito: obrigao do Estado prestador e demanda exigvel do cidado assistido.

    Mais do que justificar um direito humano, o relevante proteg-lo: exige-se, pois, uma postura proativa do Estado em relao assistncia social. Alm disso, o Brasil, signatrio dos acordos internacionais que tratar da assistncia social como direito humano e player ativo na defesa dos direitos humanos, habilitam-no a ser interlocutor do sistema multilateral, com possibilidade de orientar aes e desenvolver agendas que envolvam esse tema.

    Pelo exame ora realizado, a estrutura brasileira de assistncia social deve ser orientada pela abordagem do direito, em seu aspecto constitucional e sua dimenso internacional, com a afirmao da assistncia social como direito fundamental e direito humano. Assim, assegura-se ao indivduo a condio de sujeito de direitos, em uma relao jurdica com o Estado, com a possibilidade de exigir a atuao estatal em prol de uma existncia digna.

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    o direito fundAmentAl AssistnciA sociAl

    Carlos Gustavo Moimaz Marques

    resumo: o presente texto busca analisar como a assistncia social foi inserida na Constituio Federal, destacando sua sistematizao, seu objeto de proteo e a importncia que apresenta como instrumento jurdico.palavras-chave: Assistncia Social; Seguridade Social; Hipossuficincia

    introduoValendo-se do modelo traado em 1972 na inglaterra, conhecido como

    Plano Beveridge1, a Constituio Federal Brasileira de 1988 sistematiza em um nico instrumento de proteo social, denominado seguridade social, trs direitos sociais fundamentais que so: sade, assistncia e previdncia social.

    Dessa forma, o principal instrumento de proteo social traado constitucionalmente parte da idia de que s ser possvel pensar na efetiva proteo de todos os indivduos contra as situaes de risco e vulnerabilidade social se houver uma atuao articulada e sistematizada de trs subsistemas conjuntamente (subsistemas de sade, previdncia e assistncia social). Explica Zlia Luiza Pierdon (2007, p. 1):

    Para proteger a todos, o constituinte uniu trs direitos sociais, os quais, cada um dentro de sua rea de atribuio, protege seus destinatrios e, no conjunto, todos sero protegidos. Para tanto, a seguridade social apresenta duas faces: uma delas garante a sade a todos; a outra, objetiva a garantia de recursos para a sobrevivncia digna dos cidados nas situaes de necessidade, os quais no podem ser obtidos pelo esforo prprio. Nesta segunda face encontramos a previdncia e a assistncia.

    1 O denominado Plano Beverigde , na verdade, um relatrio feito por uma comisso inter-ministerial do governo ingls constituda em 1941, presidida pelo economista W. H. Beridge, e que em 1942 apresentou ao parlamento britnico um plano de proteo social.

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    O presente artigo busca analisar dentro desse cenrio, como a assistncia social foi desenhada constitucionalmente, destacando seu aspecto de direito fundamental constitucional e sua sistematizao jurdica na Constituio.

    1. seguridade social e a assistncia socialA Constituio Federal expressamente define a seguridade social como

    sendo um conjunto integrado de aes e iniciativa dos Poderes Pblicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos sade, previdncia e assistncia social (artigo 194, caput, da Constituio Federal).

    luz da definio constitucional, pode-se concluir que no ordenamento jurdico brasileiro seguridade social compreende no apenas o seguro social (previdncia), mas tambm os servios sociais (sade e integrao social), ou seja, o todo do sistema composto por trs subsistemas: previdncia, assistncia e sade.

    O subsistema sade compe-se de um conjunto de servios que visam resguardar a higidez fsica e mental dos cidados. Fundamenta-se nos princpios da universalidade e do tratamento igualitrio entre os usurios (acesso universal e igualitrio). O responsvel pelo seu gerenciamento o Sistema nico de Sade (SUS), vinculado ao Ministrio da Sade.

    Por seu turno, o subsistema previdncia social tem como foco a proteo do trabalhador contra os riscos sociais (situaes de necessidades futuras). Tal mecanismo de proteo pode ser delineado pelos seguintes princpios: 1. contributividade; 2. compulsoriedade; 3. filiao prvia; 4. proteo do trabalhador contra os riscos sociais; 5. manuteno limitada do nvel de vida dos trabalhadores e 6. equilbrio financeiro-atuarial. Ao contrrio daquele, este tem limitaes tanto do ponto de vista objetivo (somente os riscos especificados), como subjetivo (somente os sujeitos indicados). Seu gerenciamento fica a cargo do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

    Fechando o sistema seguridade social vem o subsistema assistncia social, que busca proteger o hipossuficiente, ou seja, aquele que se encontra impedido de integrar o mercado de trabalho e, consequentemente, no apresenta condies mnimas para prover sua subsistncia, nem de t-la provida por seus familiares (situaes atuais de necessidade/indigncia). Unio, por meio do Sistema Nacional de Assistncia Social, em regra, conferida a competncia para seu gerenciamento.

    2. caracterizao do sistema de assistncia social A assistncia social se define como instrumento de proteo das

    situaes de penria, necessidade e indigncia. No sero todas as situaes de necessidade que sero tuteladas pelo sistema, mas to somente aquela substancial, extrema, cujo dano atinja o limite mnimo das necessidades bsicas do necessitado, exigindo a interveno do sistema sob o ponto de vista social.

    Trata-se, como se v, de mecanismo de reduo das desigualdades sociais, compondo-se de um conjunto de provises buscando satisfazer s necessidades sociais bsicas de todos aqueles que dela necessitam.

    Essas situaes de necessidade surgem como conseqncia especfica ou conjunta de duas classes de causas:

    1. causa individual: decorrente da existncia de limitaes fsicas ou intelectuais inerentes ao indivduo, de carter permanente ou temporal;

    2. causa social: decorrente de desequilbrio prprio de toda a coletividade destruio blica, depresso econmica, discriminaes raciais, etc.

    Ao comentar sobre a caracterizao da indigncia tutelada pela assistncia social, Almansa Pastor (1991, p. 34) enfatiza que a configurao da indigncia se apresenta pelo estado de privao total ou parcialmente dos meios indispensveis para satisfazer as necessidades mais essenciais de subsistncia. Nesse sentido tambm destaca a clssica obra de Feij Coimbra (2001, p. 58):

    No campo assistencial, procurou-se ampliar a faixa protetora no necessitado, ainda no protegido pelas prestaes da Previdncia Social. Para as prestaes assistenciais, h o limite natural da concesso, que o da carncia de recursos, verificada no interessado. Assim ocorre nas prestaes em moeda, deferidas aos deficientes fsicos e aos idosos, como adiante veremos. Condio da prestao a inexistncia, para o postulante, de outra fonte de recursos, como o qual possa atender suas necessidades.

    Na transcrio acima fala-se em carncia de recursos, o que leva a concluso de que somente a indigncia econmica seria tutelada pela

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    assistncia social. No entanto, esse ponto merece maior reflexo. Ora, partindo das premissas de que a assistncia social se coloca como mecanismo subsidirio do sistema previdncia social e, sendo este sistema previdencirio tpico mecanismo de substituio de renda, no h como deixar de apontar apenas o carter econmico da indigncia para caracterizao da proteo assistencial. At porque, deve-se agregar a isso o objetivo imediato do sistema de seguridade que justamente a redistribuio de renda.

    Contudo, seguridade social tem como objetivo tambm proporcionar ou auxiliar o pleno desenvolvimento da personalidade humana, o que impe a tutela do indivduo no apenas sob seu aspecto financeiro.

    Nossa Constituio foi clara em transpor a conotao econmica ao necessitado-indigente, na medida em que fixa objetivos da assistncia social muito alm do que apenas medidas de redistribuio de renda (art. 203, inciso V), impondo proteo (e aqui no s financeira) famlia, maternidade, infncia, adolescncia e velhice (incisos i iV).

    Por tudo isso, faz-se necessrio concluir que a concepo de miserabilidade/indigncia trazida para fins de fixao da proteo assistencial multidimensional (vulnerabiliade fsica, intelectual, social, etc), caracterizando-se pelo vis econmico apenas e to somente quando o foco da proteo tem como objeto medidas de redistribuio de renda.

    No que diz respeito ao dever de assistir, nossa Constituio clara em colocar toda a sociedade e no apenas o Estado: tendo em vista os desajustes sociais que essas situaes de privao podem atingir, exige-se o restabelecimento da repartio eqitativa dos bens coletivos sociais de toda a sociedade e tambm do Estado.

    Dessa forma, esta tcnica de proteo social denominada assistncia social compreende todas as formas de tutela assistenciais desenvolvidas ao longo da evoluo do homem e da prpria sociedade: nasce com o surgimento dos grupos familiares - assistncia familiar (que sua roupagem moderna se denomina obrigao de alimentos), desenvolve-se pela assistncia privada (inicialmente prestada pela sociedade por meios de tcnicas inespecficas e desorganizadas caridades at, um segundo momento, da atuao social organizada voluntariado social), chegando-se fase da atuao do prprio Estado.

    Assim, a assistncia social compe-se de trs espcies:1. assistncia familiar: caracteriza-se pela unidade de seus

    membros em laos morais, de afeto solidrio e unidade econmica. Justamente por impulsionar o desenvolvimento espiritual de seus membros, traz consigo a idia de solidariedade entre eles (solidariedade parental), materializada no dever de alimentos.

    2. assistncia particular: fundamenta-se na caridade e dever moral de solidariedade e se apresenta como medida espontnea de ajuda aos necessitados, prestada por membros da sociedade e instituies;

    3. assistncia pblica: atividade desenvolvida por uma parcela do Poder Pblico s suas prprias expensas, tendo por escopo a proteo contra as indigncias.

    Torna-se importante destacar que as trs espcies de proteo no se excluem, ao revs, complementam-se subsidiariamente. Nesse aspecto, nunca demais ressaltar a doutrina catlica que se colocou como um dos fundamentos para a estruturao da assistncia pelo Estado, e que deixa clara a noo de subsidiariedade entre diversos meios de proteo:

    (...)

    atuao do princpio de subsidiariedade correspondem: o respeito e a promoo efetiva do primado da pessoa e da famlia; a valorizao das associaes e das organizaes intermdias, nas prprias opes fundamentais e em todas as que no podem ser delegadas ou assumidas por outros; o incentivo oferecido iniciativa privada, de tal modo que cada organismo social, com as prprias peculiaridades, permanea ao servio do bem comum; a articulao pluralista da sociedade e a representao das suas foras vitais; a salvaguarda dos direitos humanos e das minorias; a descentralizao burocrtica e administrativa; o equilbrio entre a esfera pblica e a privada, com o conseqente reconhecimento da funo social do privado; uma adequada responsabilizao do cidado no seu ser parte ativa da realidade poltica e social do Pas (Compndio da Doutrina Social da igreja. Pontifcio Conselho Justia e Paz 2004).

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    Concluso: sistema maior s intervir quando o seu antecessor (menor) no se mostrar apto. O ser humano auto-suficiente para prover sua prpria subsistncia: esta a regra. Somente no surgimento de circunstncias internas ou externas que retiram essa capacidade que entram os sistemas