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Práticas de inquirição infanto-juvenil no Brasil, na Argentina e em Portugal Autora: Joyce Barros Pereira Professora Orientadora: Leila Maria Torraca de Brito Banca de examinadores: 1) Esther Maria de Magalhães Arantes 2) Marcia Ferreira Amendola Resumo: Apresenta-se como a inquirição de crianças e de adolescentes supostamente vítimas ou testemunhas de abuso sexual vem sendo tratada no sistema de justiça de três países: Argentina, Brasil e Portugal. O referido tema vem sendo alvo de inúmeras discussões no contexto brasileiro, principalmente a partir da propagação de diversas metodologias para inquirição infanto-juvenil, como o procedimento denominado Depoimento sem dano (DSD), implantado em 2003, na 2ª Vara de Infância e Juventude de Porto Alegre. O projeto de lei nº 156, de 2009, do Senado Federal, ao dispor acerca da reforma do Código de Processo Penal, inclui no Título VIII, Capítulo II, Seção III as “Disposições Especiais Relativas à Inquirição de Crianças e Adolescentes”, em que se descreve procedimento semelhante ao DSD. Publicações nacionais favoráveis ao uso de tais metodologias argumentam que práticas inquisitórias semelhantes são empregadas noutros países, o que corroboraria sua regulamentação no contexto brasileiro. Por esse motivo, optou-se por realizar compilação e análise de produções bibliográficas argentinas e portuguesas acerca do tema, a fim de apresentar como tais práticas vêm sendo usadas nos referidos países. Verificou-se que, no caso argentino, houve pouca discussão entre os psicólogos antes da implementação da lei que regulamenta a oitiva especial, o que gera atualmente dissensos acerca da pertinência de tais práticas. Na conjuntura portuguesa, observou-se que o debate entre psicólogos está direcionado para a consecução de um bom testemunho infanto-juvenil, sendo escassos os questionamentos acerca do significado e de possíveis consequências de tais práticas às crianças e aos adolescentes envolvidos. Conclui-se que implantar em contexto nacional as chamadas metodologias especiais para a inquirição infanto-juvenil devido a sua ocorrência em outros países pode trazer entraves, no que concerne à aspectos relevantes, como: a responsabilidade atribuída a crianças em tenra idade, a inserção do psicólogo em práticas investigativas e as implicações éticas desse tipo de atuação. Palavras-chave: Inquirição de crianças; depoimento de crianças; abuso sexual de crianças.

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Práticas de inquirição infanto-juvenil no Brasil, na Argentina e em Portugal

Autora: Joyce Barros Pereira

Professora Orientadora: Leila Maria Torraca de Brito

Banca de examinadores: 1) Esther Maria de Magalhães Arantes

2) Marcia Ferreira Amendola

Resumo: Apresenta-se como a inquirição de crianças e de adolescentes supostamente vítimas ou testemunhas de abuso sexual vem sendo tratada no sistema de justiça de três países: Argentina, Brasil e Portugal. O referido tema vem sendo alvo de inúmeras discussões no contexto brasileiro, principalmente a partir da propagação de diversas metodologias para inquirição infanto-juvenil, como o procedimento denominado Depoimento sem dano (DSD), implantado em 2003, na 2ª Vara de Infância e Juventude de Porto Alegre. O projeto de lei nº 156, de 2009, do Senado Federal, ao dispor acerca da reforma do Código de Processo Penal, inclui no Título VIII, Capítulo II, Seção III as “Disposições Especiais Relativas à Inquirição de Crianças e Adolescentes”, em que se descreve procedimento semelhante ao DSD. Publicações nacionais favoráveis ao uso de tais metodologias argumentam que práticas inquisitórias semelhantes são empregadas noutros países, o que corroboraria sua regulamentação no contexto brasileiro. Por esse motivo, optou-se por realizar compilação e análise de produções bibliográficas argentinas e portuguesas acerca do tema, a fim de apresentar como tais práticas vêm sendo usadas nos referidos países. Verificou-se que, no caso argentino, houve pouca discussão entre os psicólogos antes da implementação da lei que regulamenta a oitiva especial, o que gera atualmente dissensos acerca da pertinência de tais práticas. Na conjuntura portuguesa, observou-se que o debate entre psicólogos está direcionado para a consecução de um bom testemunho infanto-juvenil, sendo escassos os questionamentos acerca do significado e de possíveis consequências de tais práticas às crianças e aos adolescentes envolvidos. Conclui-se que implantar em contexto nacional as chamadas metodologias especiais para a inquirição infanto-juvenil devido a sua ocorrência em outros países pode trazer entraves, no que concerne à aspectos relevantes, como: a responsabilidade atribuída a crianças em tenra idade, a inserção do psicólogo em práticas investigativas e as implicações éticas desse tipo de atuação.

Palavras-chave: Inquirição de crianças; depoimento de crianças; abuso sexual de crianças.

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1. INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA

No Brasil, a inquirição 1 infanto-juvenil desponta como um tema polêmico devido à

profusão, a partir dos anos 2000, de inúmeras técnicas para a oitiva diferenciada de crianças e de

adolescentes no sistema de justiça. Estes métodos vêm, desde então, envolvendo psicólogos e

operadores do direito em inúmeros debates e discussões quanto à pertinência destas práticas.

Emerge no cenário nacional, em 2003, o procedimento denominado Depoimento sem

dano (DSD), destinado à oitiva de crianças e de adolescentes, supostamente vítimas ou

testemunhas de crimes, especialmente àqueles referentes a abuso sexual. O DSD, implantado pelo

juiz de direito José Antônio Daltoé Cezar na 2ª Vara de Infância e Juventude da cidade de Porto

Alegre - RS prevê, conforme relata Daltoé Cezar (2007), que um técnico treinado, em particular

psicólogo ou assistente social, realize a inquirição de crianças e de adolescentes em recinto

acolhedor distinto à sala de audiências. Na sala especial – onde será colhido o depoimento

infanto-juvenil – instala-se um sistema de áudio e vídeo que possibilita que os distintos ambientes

– sala de audiências e sala especial – se interliguem, facilitando o acompanhamento da oitiva.

Outro recurso previsto por esse método é o uso de fones de ouvido pelo técnico, permitindo a ele

receber questões formuladas pelo juiz a fim de que estas sejam repassadas à criança ou ao

adolescente, de maneira que seja condizente ao entendimento desses e menos invasiva. Assim

sendo, todo o depoimento é gravado, transcrito e anexado ao processo para fins de consulta e de

prova judicial, buscando evitar novas inquirições e, com isso, a possível vitimização secundária

da criança ou do adolescente.

A metodologia do DSD parece ter inspirado projeto de lei nº 156, de 2009, do Senado

Federal. Este PL, ao dispor acerca da reforma do Código de Processo Penal, inclui entre seus

artigos – mais precisamente no Título VIII, Capítulo II, Seção III – as “Disposições Especiais

Relativas à Inquirição de Crianças e Adolescentes”, em que se descreve procedimento semelhante

ao DSD.

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) vem demonstrando sua preocupação frente ao

tema, principalmente quando se trata do cunho ético no exercício da profissão de psicólogo e da

defesa de direitos infanto-juvenis (Verona & Castro, 2008). Diante disso, o referido Conselho,

1 De acordo com o Vocabulário Jurídico de Silva (2010), o vocábulo inquirir pode ser entendido como “fazer perguntas ou indagar alguém sobre fatos de seu conhecimento, a fim de que sejam os mesmos esclarecidos ou apurados, Nessa razão, tomar depoimento equivale a inquirir” (p. 748). Desta forma, o presente trabalho se utiliza do referido termo em seu sentido jurídico, e não, pura e simplesmente, como uma indagação ou um questionamento.

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por meio de moção contrária ao DSD, aprovada durante a VIII Conferência dos Direitos da

Criança e do Adolescente realizada em Brasília - DF, de 7 a 10 de dezembro de 2009, manifestou

seu repúdio à implantação de metodologias e de salas especiais destinadas à inquirição de

crianças e de adolescentes (CFP, 2009).

No que tange aos posicionamentos favoráveis a este tipo de prática, nota-se que

regulamentações de técnicas semelhantes ao DSD em outros países vêm sendo divulgadas,

reiteradas vezes, em publicações bibliográficas nacionais como forma de legitimar sua prática em

território brasileiro. Contudo, nas explanações sobre a utilização de métodos alternativos para

inquirição de crianças e de adolescentes em outros países, pouco se aborda a respeito de

peculiaridades frente às quais se deu a implementação dessas metodologias e das principais

discussões e polêmicas que o tema tem suscitado em âmbito internacional.

Nesse sentido, Brito (s.d.) explica que

(...) o fato de técnica semelhante existir em outros países não significa que tenha havido consenso para sua implantação. Na Argentina, por exemplo, a alteração do Código de Processo Penal para que os depoimentos de crianças e de adolescentes fossem possíveis suscitou árdua polêmica entre os profissionais, argumentando-se, dentre outros aspectos, sobre a fugacidade com que se pretende solucionar assunto tão complexo. (s/p).

Nota-se, outrossim, que alguns países signatários da Convenção Internacional sobre os

Direitos da Criança, tal como apontam Santos & Gonçalves (2008), vêm modificando suas

legislações – e, consequentemente, adotando metodologias especiais para a tomada de

depoimento infanto-juvenil – com a justificativa de atender ao disposto nas alíneas 1 e 2 do artigo

12 da Convenção, nas quais lê-se:

Artigo 12

1. Os Estados-partes assegurarão à criança, que for capaz de formar seus próprios pontos de vista, o direito de exprimir suas opiniões livremente sobre todas as matérias atinentes à criança, levando-se devidamente em conta essas opiniões em função da idade e maturidade da criança.

2. Para esse fim, à criança será, em particular, dada a oportunidade de ser ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo que lhe diga respeito, diretamente ou através de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais do direito nacional. (NAÇÕES UNIDAS, 1989).

Observa-se, contudo, que o disposto na Convenção pode gerar dúvidas e questionamentos

de diversas ordens como já apontaram Thery (1998), Arantes (2008), e Brito (2008). A esses

questionamentos podem-se acrescentar novas interrogações: “exprimir opiniões livremente”

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equivale ao dever de prestar depoimento, tal como vem sendo proposto pelas metodologias de

inquirição especial destinadas à infância e à juventude? Ou, conforme aponta estudo realizado

por Brito e Pereira (2012), “levar em conta essas opiniões” significa solicitar e aceitar com

primazia a palavra infanto-juvenil, frente a outros tipos de provas como laudos, perícias e estudos

psicossociais? Se o testemunho judicial de crianças e de adolescentes tem sido suficiente para

formar um juízo condenatório, quais seriam as atribuições da equipe interdisciplinar? Que

atribuição é essa de inquiridor que vem sendo destinado aos psicólogos – e, em alguns casos,

almejado por uma parcela da categoria? Essa pode ser uma atribuição do profissional de

Psicologia ou seria mais apropriada a um policial, por exemplo? Nota-se, portanto, que são

inúmeras as questões, reflexões e controvérsias que o tema pode promover.

Diante do exposto, pode-se dizer que a efervescência com que o tema aventa, sinaliza para

a importância de estudos e de investigações que contribuam para a compreensão de em tema tão

presente e causador de tantas inquietações.

2. PROBLEMA E OBJETIVO

Diante de toda essa conjuntura, notou-se a necessidade de realizar um estudo acerca de

práticas concernentes à tomada de depoimentos infanto-juvenis em âmbito internacional.

Destarte, procura-se examinar neste trabalho a inquirição de crianças e de adolescentes no

Sistema de Justiça, tomando como contraponto práticas estabelecidas em dois países: Argentina e

Portugal. A partir deste enfoque, procurou-se compreender de que maneira estes modelos de

tomada de depoimento – apontados como alternativas não-revitimizantes frente às formas

convencionais de oitiva – vêm se dando nesses países.

A Argentina, no ano de 2004, passou por uma modificação em seu Código de Processo

Penal Nacional, por meio da lei nº 25.852, que dispõe sobre a responsabilidade de psicólogos,

especializados em crianças e adolescentes, realizarem entrevistas nos casos em que menores de

16 anos fossem vítimas de maus tratos (Santos & Gonçalves, 2008, p.60).

Durante o simpósio Impasses em práticas de depoimentos de crianças e adolescentes

ocorrido, no ano de 2009, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) teve-se notícia,

por meio do relato da psicóloga Liliana Alvarez, que este tipo de intervenção pouco foi discutido

antes da implementação da referida lei, e tampouco é aplicada em todas as províncias argentinas,

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dada a autonomia que tais jurisdições da federação possuem para adotar, ou não, leis implantadas

em cunho nacional. Diante disso, verifica-se a não-unanimidade desta lei, que vem acarretando à

adoção de diferentes procedimentos em distintas províncias e estados argentinos.

No que concerne a Portugal, o tema inquirição infanto-juvenil tem estado em voga

atualmente naquele país a partir da técnica denominada Declaração para memória futura

utilizada, dentre outras circunstâncias, na investigação de crimes de abuso sexual contra adultos,

crianças e adolescentes (Ribeiro, 2009; Ribeiro & Manita, 2007).

3. PROCEDIMENTO

Após definir o objeto de pesquisa, faz-se oportuno demarcar a partir de que viés

metodológico este objeto será trabalhado. Minayo (1994) aponta que qualquer questão social é

caracterizada pela provisoriedade, pelo dinamismo e pela especificidade, fazendo com que o

objeto de estudo das ciências sociais seja histórico e essencialmente qualitativo.

Para tanto, no presente trabalho utilizou-se como procedimento a pesquisa bibliográfica.

O uso da técnica em questão se justifica devido ao propósito de apresentar, descrever e questionar

o modo como a tomada de depoimento infanto-juvenil vem se dando na Argentina e em Portugal.

Rizzini, Castro e Sartor (1999) ao descreverem a contribuição da pesquisa bibliográfica afirmam

que se trata de “um tipo de pesquisa que investiga idéias, conceitos, que compara as posições de

diversos autores em relação a temas específicos e faz uma reflexão crítica sobre essas idéias e

conceitos, defendendo uma tese”. (p. 35).

Na pesquisa levada a termo, o levantamento dos dados se deu a partir da compilação e da

análise de produções bibliográficas brasileiras, argentinas e portuguesas acerca do tema. Ressalta-

se que tais etapas não se deram de forma linear, uma vez que a busca e a discussão de textos

ocorreram ao longo de todo trabalho. Quanto aos materiais utilizados na busca, se fez uso de

livros, artigos científicos, matérias jornalísticas e legislações, para um maior aprofundamento

teórico, bem como sites para o acompanhamento de notícias e de discussões acerca do tema.

Dentre as páginas eletrônicas acessadas, de suma importância para este trabalho, aponta-se a do

Conselho Federal de Psicologia e a do Conselho Federal de Serviço Social.

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4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1. O contexto da inquirição judicial de crianças e adolescentes no Brasil

De certa forma, temáticas que abordam a vitimação infanto-juvenil geram comoção,

mobilização e causam impacto em diversos atores sociais. Nesse sentido, Azambuja (2009)

aponta que embora existam muitas formas de violência e maus-tratos praticados contra crianças e

adolescentes, o abuso sexual cometido no seio da família assume maior relevância, pois evidencia

relações de poder na dinâmica familiar, em que pesem a violência, a distorção da posição de

autoridade, os sentimentos dúbios, dentre outros aspectos. Desta maneira, conforme indica a

referida autora, não se pode desprezar nestes casos a existência de “dificuldades para efetuar a

denúncia, pelas próprias características do evento, assim como os entraves verificados no atendi-

mento dos casos de violência sexual, quer pelos profissionais quer por parte da família”.

(Azambuja, 2009, p.37).

Destarte, Azambuja (2009) menciona ainda que

A inexistência de vestígios físicos aliada à falta de testemunhas presenciais, uma vez que a violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança geralmente se dá na clandestinidade, levaram os tribunais a valorizar a palavra da vítima, favorecendo sua exposição a inúmeros depoimentos, no afã de produzir a prova e possibilitar a condenação do réu. (p.38)

Diante desse complexo contexto, inúmeras metodologias destinadas à escuta judicial de

crianças e de adolescentes que se supõem vítimas de abuso sexual têm despontado em cenário

nacional, sob a alegação de serem alternativas para garantir punição do suposto abusador e a não-

revitimização infanto-juvenil no âmbito judiciário. Dentre tais procedimentos estão o Projeto de

atendimento não revitimizante de crianças e adolescentes vítimas de violência2 (São Paulo) e a

Audiência sem trauma3 (Paraná). Contudo, o procedimento denominado Depoimento sem dano -

DSD (Rio Grande do Sul) parece preceder às diversas técnicas anteriormente citadas.

O DSD, conforme já mencionado, incumbe aos psicólogos e aos assistentes sociais a

função de realizar a tomada de depoimento infanto-juvenil em recinto acolhedor, distinto à sala

2 Informação disponível em: <http://www.apamagis.com.br/videos/palestras.php#>. No vídeo intitulado “Lançamento do Projeto: ‘Atendimento não Revitimizante de Crianças e a Adolescentes Vitimas de Violência’”. Acesso em: 08 de julho de 2011. 3 Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR). A escuta de crianças e adolescentes na ‘Audiência sem Trauma’. Revista Contato, ano 13, nº 67, Jan/Fev, p.16-19, 2010. Disponível em: <http://www.crppr.org.br/revistas/106.pdf >. Acesso: 07/01/2010.

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de audiências. Aqueles que defendem essa técnica, como Borba (2002) e Ramos (2009), alegam

que tais profissionais seriam mais capacitados para transmitir, de maneira menos invasiva,

questões formuladas pelo juiz e pelos advogados às crianças e aos adolescentes no momento da

oitiva. Desta forma, não se infligiria danos secundários a esse público, além de se garantir um

relato que possa ser utilizado como prova judicial, a fim de combater a impunidade.

Observa-se, entretanto, que o convite para essas categorias profissionais se

responsabilizarem por essa atribuição pareceu desconsiderar, dentre outras coisas, importantes

questões éticas quanto à inserção desses profissionais como inquiridores. Entre psicólogos, a

pertinência de tal inserção profissional causa controvérsias e divergências.

Dentre as discussões empreendidas estão as que se referem ao sigilo profissional, que está

previsto no artigo 9º do Código de Ética do Psicólogo4. Em procedimentos como o DSD todo o

relato da criança ou do adolescente é gravado e transmitido à sala de audiências em tempo real,

sendo grande a exposição e o fornecimento de informações pessoais e desnecessárias ao

julgamento do processo. Tal situação em nada se aproxima ao que estabelece o referido artigo do

Código de Ética. Não obstante, em evento sobre o tema, realizado no dia 03 de setembro de 2009

no auditório do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, a advogada e psicóloga Beatrice

Marinho Paulo afirmou que não havendo a confecção de laudos conclusivos5, a alternativa seria

realizar a oitiva infanto-juvenil nos moldes do DSD, pois do ponto de vista profissional “calar-se

é anti-ético e crime de omissão” (Informação oral).

Cabe mencionar que os argumentos – tanto favoráveis quanto os contrários – que

embasam essa discussão, quase sempre se baseiam na garantia dos direitos infanto-juvenis, o que

indica a necessidade de maiores debates acerca do sentido atribuído a esses direitos.

Em Audiência Pública realizada no Senado Federal Brasileiro em 1º de julho de 2008, a

psicóloga Esther Arantes, representando o Conselho Federal de Psicologia (CFP), tece valiosas

considerações sobre o projeto de lei que dispõe sobre o Depoimento sem dano (PLC nº 35/2007),

atualmente arquivado. Em certo momento de seu discurso, afirma a necessidade de que

antes de decidirmos sobre a técnica ou o modo da inquirição, devemos primeiro decidir se o direito da criança de se expressar e de ser ouvida, tal como está no Estatuto,

4 Art. 9º do Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005): “É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional, a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional” (p.13). 5 Nesse sentido, a profissional estava se referindo à falta de produção de documentos psicológicos que expressem objetivamente a ocorrência, ou não, do delito que se supõe, ou seja, de um abuso sexual.

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significa o mesmo que ser inquirida judicialmente como vítima ou testemunha para produção de prova antecipada, podendo tal prova se voltar, inclusive, contra seus pais e familiares. (ARANTES, 2008, s/p).

Exatamente dois anos após a realização da referida audiência pública, o CFP divulga a

Resolução nº 10, de 29 de junho de 2010, que regulamenta a escuta psicológica de crianças e de

adolescentes envolvidos em situação de violência, vedando a atuação do psicólogo em situações

nas quais deva desempenhar papel de inquiridor e estabelecendo que o descumprimento da

Resolução acarreta falta ético-disciplinar (Conselho Federal de Psicologia, 2010).

A publicação desta Resolução provocou ampla efervescência entre diversas categorias

profissionais e mesmo dentro da Psicologia. Enquanto alguns profissionais comemoravam o

posicionamento do CFP frente à temática, outros, descontentes com os efeitos que a resolução

nº10/2010 acarretaria em suas práticas, mobilizaram-se de modo a combater a aplicação desse

documento.

Nesse sentido, a Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e a Associação Brasileira de

Psicoterapia e Medicina Comportamental (ABPMC) redigiram conjuntamente uma carta aberta6

na qual se posicionavam contra as resoluções emitidas pelo CFP, em julho de 2010, sobre

atividades que costumam ser atribuídas aos psicólogos jurídicos. Além da resolução nº 010/2010,

que institui a regulamentação da escuta psicológica na rede de proteção de crianças e de

adolescentes envolvidos em situação de violência, foram criticadas pelas referidas Sociedades

Científicas a resolução que dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico

no Poder Judiciário (Resolução nº 008/2010) e a que regulamenta a atuação do psicólogo no

Sistema Prisional (Resolução nº 009/2010). De modo geral, argumentam no documento que uma

parcela de profissionais e de estudantes de Psicologia não foi ouvida pelo CFP, alegando haver

imposição e arbitrariedade no processo de construção e publicação dessas três resoluções que

seriam enviesadas por um olhar predominantemente político quanto à atuação do psicólogo

jurídico, desprezando a pluralidade de abordagens que constitui a Psicologia. Em relação à

resolução nº 10/2010, especificamente, questionam dentre outras coisas quanto à vedação ao

psicólogo em desempenhar função de inquiridor e a indicação do CFP de que no estudo

psicológico sejam incluídas todas as partes envolvidas na situação de violência, alegando que a

6 Disponível em: <http://www.sbponline.org.br/noticiasinterna.php?id=88>. Acesso em: 25/08/2010.

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realização desse trabalho com o abusador representaria um risco ao psicólogo e não traria

novidades ao relatório, posto que o agressor costumeiramente apenas nega os fatos.

Pode-se avaliar, contudo, que soa perigoso partir do a priori de que o réu é

invariavelmente culpado, sendo considerado abusador mesmo antes de ser divulgada a sentença

do magistrado. Observa-se que pode haver certo receio ou repulsa na possibilidade de se

desenvolver qualquer tipo de trabalho com o suposto abusador, criando assim um estigma e uma

escuta parcial e enviesada do caso, desconsiderando-se, por exemplo, a possibilidade da

ocorrência de falsas denúncias de abuso sexual (Amendola, 2009).

Em resposta ao posicionamento da SBP, o CFP publicou uma nota 7 em seu site

esclarecendo sobre o método democrático de construção das resoluções no Sistema Conselhos de

Psicologia. Explica o referido Conselho que

Em face da proposição de editar uma resolução, os Conselhos Regionais, junto com o CFP, têm a tarefa de estabelecer diálogos com a categoria acerca de cada temática, estabelecer seu posicionamento e trazer para a Assembleia das Políticas, da Administração e das Finanças (Apaf), da qual participam delegados dos Conselhos Regionais e do Federal. As Resoluções na Apaf votadas são previamente organizadas por grupos de trabalho nacionais do Sistema Conselhos, dos quais participam Conselhos Regionais e Conselho Federal.

Ocorre ainda o Congresso Nacional de Psicologia (CNP), para qual cada um dos 240 mil psicólogos brasileiros é convocado a deliberar sobre a ação do seu Conselho profissional. Este é o método: a organização de meios de participação da categoria, que busca o estabelecimento da democratização das ações realizadas pelo Sistema, inclusive no tocante à elaboração e aprovação de resoluções.

Quanto à resolução nº 10/2010, alega o CFP que o debate teve início com a discussão e

com diversos eventos regionais e nacionais sobre o Projeto de lei (PLC nº 35/2007), que previa

em seu conteúdo a aplicação do método denominado Depoimento sem dano em âmbito nacional.

Em seguida, a nota do CFP cita o Seminário Nacional Escuta de Crianças e Adolescentes

Envolvidos em Situação de Violência e a Rede de Proteção, realizado no Rio de Janeiro no ano

de 2009, no qual

o Sistema Conselhos alcançou o entendimento de que o Sistema de Garantia de Direitos de crianças e adolescentes deveria ser norte para a ação do psicólogo, a fim de garantir o direito de a criança ser ouvida, mas não o de ser colocada sem seu consentimento a depor em processos judiciais.

7 Disponível em: < http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/noticias/noticia_100806_001.html>. Acesso em: 25/08/2010.

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Vale mencionar que as exposições dos palestrantes do referido evento foram publicadas

na cartilha “A escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de

proteção”8, organizada pelo CFP.

Em 25 de agosto de 2010, a Justiça Federal do Rio Grande do Sul expede mandado de

segurança9 para suspender os efeitos da Resolução CFP nº 010/2010 naquele estado por tempo

determinado. Vale ressaltar que até a finalização do presente trabalho a referida liminar

permanecia em vigor.

Dois meses depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publica a Recomendação nº

3310, que se refere à criação de serviços especializados nos tribunais para a escuta judicial de

crianças e de adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, com a finalidade de viabilizar a

confiabilidade na produção de provas, a busca da verdade e a responsabilização do agressor.

Outra categoria profissional bastante mencionada para a realização deste tipo de

inquirição é a dos assistentes sociais. Diante disso, o Conselho Federal de Serviço Social (CFSS),

por meio da Resolução nº 554/2009, posicionou-se contra tal prática, assinalando no documento

“o não reconhecimento da inquirição das vítimas crianças e adolescentes no processo judicial,

sob a Metodologia do Depoimento Sem Dano/DSD, como sendo atribuição ou competência do

profissional assistente social”. (s/p.).

É nessa vertente que, em parecer técnico solicitado pelo CFSS, antes da aprovação da

citada Resolução, Fávero (2008) analisa criticamente “aspectos éticos e técnicos do trabalho do

assistente social que porventura tenha que participar desse tipo de inquirição testemunhal (...), e

(...) possíveis violações aos preceitos de proteção da criança e do adolescente previstos no

Estatuto da Criança e do Adolescente” (p.1). Um dos aspectos éticos que a prática do DSD

desrespeitaria diz respeito também ao sigilo profissional a ser mantido pelo profissional de

Serviço Social.

No caso do DSD, coloca-se, desse modo, uma importante questão em relação aos limites do sigilo: a exposição da criança a uma situação de inquirição, em um ambiente aparentemente protegido de invasão à sua privacidade, pode contribuir para que revele particularidades de sua condição ao profissional, com vistas à garantia de seus direitos,

8 Disponível em: < http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/diversos/mini_cd/pdfs/cfp_escuta.pdf>. Acesso em: 04/04/2011. 9 Disponível em: <http://interfacepsijus.posterous.com/jfrs-mandado-de-seguranca-para-suspensao-da-a>. Acesso: 22/04/2011. 10 Informação disponível em: < http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/322-recomendacoes-do-conselho/12114-recomendacao-no-33 >. Acesso: 22/04/2010.

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não necessárias ao processo judicial diretamente. Portanto, não caberia sua revelação, do ponto de vista dos princípios ético-profissionais. (FÁVERO, 2009, p. 32).

Observa-se, assim, o grande número de debates e discussões envolvendo diferentes

categorias profissionais sobre a questão da inquirição de crianças e de adolescentes no âmbito

judiciário. Por conta disso, têm-se organizado muitos eventos para discutir o tema, como o já

citado Seminário Nacional Escuta de Crianças e Adolescentes Envolvidos em Situação de

Violência e a Rede de Proteção11, realizado pelo Sistema Conselhos de Psicologia, nos dias 7 e 8

de agosto de 2009 no Rio de Janeiro e o simpósio Impasses em práticas de depoimento de

crianças e adolescentes12, realizado pela pesquisa Inquirição de Crianças e pelo Programa Pró-

Adolescente, ambos vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no dia 18 de

setembro de 2009.

Realizou-se entre os dias 26 e 28 de agosto de 2009, em Brasília, o 1º Simpósio

Internacional Culturas e Práticas Não-Revitimizantes de Tomada de Depoimento Especial de

Crianças e Adolescentes em Processos Judiciais13 , organizado pela Childhood Brasil e pela

Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Nessa ocasião, foram

divulgados resultados da pesquisa que originou o livro “Depoimento Sem Medo (?): Uma

cartografia de experiências alternativas de tomada de depoimento especial de crianças e

adolescentes”14.

Posteriormente, Brasília sediou, ainda, outros dois eventos de porte nacional. São eles: o

Colóquio Nacional Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes e o Sistema de Justiça

Brasileiro15, ocorrido de 3 a 5 de novembro de 2010, e o I Encontro Nacional de Experiências de

Tomada de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes no Judiciário Brasileiro16,

11 Informação disponível em: <http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/agenda/eventos_passados/eventos_cfp_090807.html>. Acesso em: 07 de julho de 2010. 12 Informação disponível em: <http://canalpsirevista.blogspot.com/2009/08/impasses-em-praticas-de-depoimentos-de.html>. Acesso em: 07 de julho de 2010. 13 Informação disponível em: <http://www.direitosdacrianca.org.br/conselhos/agenda/i-simposio-internacional-culturas-e-praticas-nao-revitimizantes-de-tomada-de-depoimento-especial-de-criancas-e-adolescentes-em-processos-judiciais>. Acesso em: 25 de junho de 2011. 14 Material disponível em: <http://www.childhood.org.br/wp-content/uploads/2008/11/DEPOIMENTO-SEM-MEDO.pdf>. Acesso em: 25 de junho de 2011. 15 Informação disponível em: <http://www.childhood.org.br/release/sistema-de-justica-brasileiro-debate-o-depoimento-especial-de-criancas-e-adolescentes>. Acesso em: 25 de junho de 2011. 16 Informação disponível em: <http://www.childhood.org.br/encontro-debatera-experiencias-brasileiras-de-depoimento-especial-de-criancas-e-adolescentes>. Acesso em: 25 de junho de 2011.

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realizado entre os dias 18 e 20 de maio de 2011. Ambos os eventos foram organizados pela

Childhood Brasil e Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Descortinado também no contexto cultural, os temas abuso sexual infantil, palavra da

criança e produção de provas tiveram grande enfoque na peça teatral “Hamelin” – escrita pelo

premiado dramaturgo espanhol Juan Mayorga17 e encenada em 11 países18. O espetáculo, que

esteve em cartaz na cidade do Rio de Janeiro entre os meses de fevereiro e abril de 2010,

apresenta as inquietações de um jovem juiz chamado Monteiro, que se depara com um caso

complexo: um ilustre e renomado cidadão que é acusado de abusar sexualmente de uma criança

de dez anos proveniente de uma família com poucos recursos financeiros. Decidido a compilar

provas que incriminem o suposto abusador, o juiz se depara com a dificuldade, ou

impossibilidade de chegar a uma conclusão, a uma verdade, quando a palavra é tudo que se tem

para a apuração dos fatos.

A peça Hamelin que tem seu título inspirado no conto “O Flautista de Hamelin”, escrito

por Robert Browning em 1849 e reescrito, posteriormente, pelos Irmãos Grimm, narra a história

de uma cidade denominada Hamelin que sofre com a infestação de uma praga: ratos. A

população não sabia mais o que fazer, quando um recém chegado na cidade se oferece para

solucionar o problema. Seu pedido é acatado, e o homem se apresenta como “O Flautista

Encantador”. Ao tocar uma doce melodia o flautista acabou por atrair todos os ratos da cidade,

que passaram a segui-lo por onde quer que fosse. E por meio deste seu feitiço secreto, o Flautista

Encantador conduziu os pequenos roedores ao rio da cidade, onde morreram afogados.

Ao cumprir seu feito, o flautista volta à cidade e cobra o valor combinado que seria pago a

ele pela exterminação dos ratos. Contudo, admitindo que a cidade estivesse livre das pragas e que

estas não mais voltariam, a autoridade maior da cidade decide não pagar a quantia acordada.

Descontente com a notícia o flautista resolve se vingar por não ter recebido seu pagamento e, na

manhã seguinte, ao tocar uma nova melodia extraordinária, encarcera todas as crianças da cidade

em lugar desconhecido e encantado, fazendo com que os habitantes de Hamelin nunca mais as

17 O dramaturgo espanhol Juan Mayorga ganhou o prêmio Max de Melhor Autor Teatral pelo texto da peça teatral Hamelin. Informação disponível em: <http://guia.folha.com.br/teatro/ult10053u632159.shtml>. Acesso em: 15 de outubro de 2010. 18 Informação disponível em: <http://www.amazonasnoticias.com.br/cultura/2391-sucesso-mundial-do-teatro-contemporaneo-peca-hamelin-traz-debate-sobre-pedofilia-aos-palcos-de-manaus.html>. Acesso em: 15 de outubro de 2010.

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vejam e se arrependam, para sempre, por terem sido avarentos e não terem cumprido o que havia

sido prometido.

Mayorga, responsável pelo texto do espetáculo teatral Hamelin, faz o seguinte

apontamento quanto à similitude entre o conto “O Flautista de Hamelin” e a referida peça19:

As crianças pagam pelas faltas dos adultos. Eu vejo isso como uma alegoria do que acontece no nosso mundo. As crianças são as primeiras a sofrer com nossas guerras, nossas más políticas, nossa estupidez. Minha obra não é a reconstrução de nenhum caso verdadeiro, entretanto, o que vem acontecendo é que, onde Hamelin é montada, o público a associa a algum caso ocorrido no lugar. Infelizmente, o que se representa na peça parece estar acontecendo, com traços muito semelhantes, em todo o mundo.

Em programa televisivo, o ator Vladimir Brichta, que interpreta o juiz Monteiro na peça

Hamelin, tece considerações acerca do cerne do espetáculo20. A seguir, é possível acompanhar a

transcrição de sua fala:

Hamelin é a história de um juiz, (...), que se vê diante de um suposto caso de pedofilia e ele quer a todo custo exterminar o mal. Ele comete acho que esse equívoco, talvez em função da juventude dele, digamos assim, ele ainda tem essa gana, que é muito boa, em dado momento da vida, mas que ela também pode atrapalhar a ponto de você cometer erros e julgamentos precipitados, que um juiz não poderia fazer sob hipótese alguma. Ou seja, tem um suposto caso de pedofilia, mas ele tem todos os indícios, na cabeça dele, para que aquele cara seja o vilão, seja o pedófilo, seja a pessoa que tem que ser combatida, tem que ser presa, etc e tal. Só que quando ele começa a investigar o caso mais a fundo ele descobre que não se trata só de um cara que tem um desvio de conduta, um desvio moral, seja lá que denominação se pretenda pra isso, mas ele se vê também diante de um problema social gravíssimo, porque é um cara da alta sociedade, que presta serviços comunitários na comunidade carente e é muito próximo a uma determinada família e essa família aceita a amizade desse cara porque ele ajuda na escola, ele paga a escola dos filhos [se refere aos filhos da família pobre], ele leva pra estudar, pra passear, ele leva à igreja, mas talvez esse cara abuse da criança. Então fica a dúvida no ar, ele [seu personagem, o juiz Monteiro] está diante da dúvida, mais do que desse caso que pode ser algo horrendo... Ele está diante da dúvida, dúvida essa que a gente se depara nos mais diferentes momentos da vida.

Interessante na fala do intérprete da personagem Monteiro, é o apontamento para uma

dimensão que vai além da simples condenação do abusador, isto é, de uma dimensão complexa

de ordem social, que implica na observância de fatores mais profundos como a dinâmica familiar,

ao invés de manter o foco somente no suposto abusador. 19 Informação disponível em: <http://www.amazonasnoticias.com.br/cultura/2391-sucesso-mundial-do-teatro-contemporaneo-peca-hamelin-traz-debate-sobre-pedofilia-aos-palcos-de-manaus.html>. Acesso em: 15 de outubro de 2010.

20 Vídeo disponível em: <http://video.globo.com/Videos/Player/Entretenimento/0,,GIM1215410-7822-VLADIMIR+BRICHTA+FALA+SOBRE+A+PECA+HAMELIN,00.html>. Acesso em: 15 de outubro de 2010.

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Nesse sentido, quando se realiza uma avaliação profissional em casos de abuso sexual,

faz-se oportuno atentar para o perigo que pode representar um olhar enviesado que a priori acusa,

julga e estigmatiza o suposto abusador, visto que, muitas vezes, este é transformado, tratado e

designado como agressor já a partir do recebimento da denúncia e não após a averiguação do

ocorrido.

4.2. Inquirição infanto-juvenil na Argentina

Na República Argentina, algumas províncias vêm, desde 2004, realizando a toma de

declaraciones testimoniales em que vítimas de maus tratos com idade inferior a 16 anos passaram

a ser entrevistados por psicólogos especializados em crianças e adolescentes, ao invés de serem

ouvidos diretamente pelo juiz.

A tomada de depoimento, naquele país, é realizada por meio da Câmara de Gesell. Em

matéria publicada, no dia 04 de dezembro de 2006, no jornal eletrônico Rio Negro descreve-se o

referido procedimento da seguinte maneira:

Consiste en una habitación particularmente acondicionada donde el único que tiene contacto con el menor es un especialista, todo el procedimiento se videograba, y los funcionarios judiciales observan detrás de un vidrio espejado pero pueden trasmitir preguntas. La entrevista se hace por única vez. (Informação disponível em: <http://www1.rionegro.com.ar/diario/2006/12/04/200612r04f01.php>. Acesso em: 08/07/2010).

Na publicação citada, observa-se um amplo questionamento e descontentamento de

psicólogos de Neuquén acerca da implantação das câmaras de Gesell para a inquirição infanto-

juvenil. Destarte, o Colégio de Psicólogos neuquino emitiu o seguinte posicionamento:

La ley que pone en marcha la cámara Gesell en Neuquén ‘distorsiona la función del psicólogo. No es nuestra función determinar la verdad real de un hecho. Los psicólogos hacemos entrevistas clínicas, no interrogatorios judiciales a pedido del juez, el fiscal y el defensor’.

No contexto argentino – não muito distinto do nosso –, Alvarez (2008) relata que há,

atualmente, grande demanda para que psicólogos intervenham em casos de abuso sexual infanto-

juvenil como peças-chave para a resolução dos casos. Contudo, Alvarez (2008) recomenda que

deve-se atentar para o reducionismo que algumas práticas jurídicas possam representar ao campo

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de conhecimento da Psicologia ao confundir escuta psicológica com obtenção de evidências que

comprovem, ou não, a ocorrência de determinado delito. Com isso, a autora destaca que

(...) paradojalmente en nombre del interés superior del niño en las prácticas judiciales respecto a niños abusados reina uma cierta relación inversamente proporcional entre la complejidad del tema y el reduccionismo con el que se deciden las intervenciones, así mismo como de la inmediatez y urgencia desde el lugar que se las solicita. (p.5).

(...). En una omnipotencia abusiva, se intenta dar cuenta en el diagnóstico de la probanza de los hechos y no de la subjetividad de los sujetos en juego. El psicólogo será, al mismo tiempo, detective y juez, renegando de su identidad. (p.9).

Nesse entendimento, Abelleira (2009) afirma que “Nuestra función nada tiene que ver con

interrogar a un sujeto a fin de saber a verdad de un hecho. Esa es tarea del Juez y de los

abogados”. (p.40). De acordo com a autora supracitada, ocupar o lugar destinado aos operadores

do direito no processo de obtenção de provas judiciais implicaria numa perda de especificidade e

numa indiferenciação nas práticas de saberes distintos: Direito e Psicologia. Abelleira (2009)

finaliza pontuando que o objetivo da insersão do psicólogo deve ser o de

develar el sentido singular que para ese niño y esa familia tiene el acto incestuoso y evaluar el entramado vincular que lo hizo posible. Y en este contexto, privilegio brindar al niño un espacio y un tiempo del que pueda apropiarse y en el que se sienta, tal vez por primera vez, escuchado y con posibilidades de expresar como pueda, con sus recursos, algo que estaba condenado a silenciar. Sería el primer paso para empezar a construir algo diferente. (p.41).

Numa outra perspectiva, Intebi (2008) enfatiza a necessidade de uma formação específica

para que o psicólogo possa atuar junto aos casos de abuso sexual, buscando alcançar a

fidedignidade do relato infanto-juvenil. Desta forma a autora aponta que

(…) para llegar a conclusiones atinadas sobre la veracidad de un relato o la especificidad de una conducta, deberán tener una formación adecuada en psicología evolutiva y contar con capacitación conveniente en el campo del abuso sexual infantil. (p.249).

4.2.1 Legislação

A Lei Federal nº 25.852/0321, promulgada em 06 de janeiro de 2004, incorporou ao

Código de Processo Penal argentino 22 o artigo 250 bis, que regulamenta o uso de novos

21 Disponível em: http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/90000-94999/91600/norma.htm>. Acesso: 07/04/2011. 22 Disponível em: < http://www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/383/texact.htm>. Acesso: 07/04/2011.

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procedimentos para a tomada de depoimento de crianças e de adolescentes vítimas de violência

sexual. Vale mencionar, no entanto, que essa lei se aplica à justiça federal e à Província de

Buenos Aires, ou seja, não é aplicada em âmbito nacional. Isso se deve ao fato de que o Código

de Processo Penal argentino “possui caráter provincial e cada qual edita sua própria legislação”

(Santos & Gonçalvez, 2008, p.61). Feito esse esclarecimento, passa-se ao conteúdo do referido

artigo:

Art. 250 Bis. - Cuando se trate de víctimas de los delitos tipificados en el Código Penal, libro II, título I, capítulo II, y título III, que a la fecha en que se requiriera su comparecencia no hayan cumplido los 16 años de edad se seguirá el siguiente procedimiento:

a) Los menores aludidos sólo serán entrevistados por un psicólogo especialista en niños y/o adolescentes designado por el tribunal que ordene la medida, no pudiendo en ningún caso ser interrogados en forma directa por dicho tribunal o las partes;

b) El acto se llevará a cabo en un gabinete acondicionado con los implementos adecuados a la edad y etapa evolutiva del menor;

c) En el plazo que el tribunal disponga, el profesional actuante elevará un informe detallado con las conclusiones a las que arriban;

d) A pedido de parte o si el tribunal lo dispusiera de oficio, las alternativas del acto podrán ser seguidas desde el exterior del recinto a través de vidrio espejado, micrófono, equipo de video o cualquier otro medio técnico con que se cuente. En ese caso, previo a la iniciación del acto el tribunal hará saber al profesional a cargo de la entrevista las inquietudes propuestas por las partes, así como las que surgieren durante el transcurso del acto, las que serán canalizadas teniendo en cuenta las características del hecho y el estado emocional del menor.

Cuando se trate de actos de reconocimiento de lugares y/o cosas, el menor será acompañado por el profesional que designe el tribunal no pudiendo en ningún caso estar presente el imputado.

Santos e Gonçalvez (2008), em livro no qual relatam experiências de inquirição judicial

infanto-juvenil realizadas em diversos países, mencionam que a nova lei prevê que o depoimento

deve ser tomado somente em um Tribunal ou nas sedes do Ministério Público Fiscal, excluindo-

se, desta forma, escutas realizadas no âmbito administrativo, policial, escolar e outros. Afirmam

os autores que tal estratégia representaria uma forma de se evitar a revitimização infanto-juvenil

no sistema judicial, posto que a submissão dessas crianças e adolescentes à Câmara de Gesell,

ainda no início da instrução, acarretaria que esses depoimentos fossem gravados e anexados aos

autos do processo, servindo como prova nas fases posteriores do mesmo.

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Outra legislação de cunho nacional implantada da Argentina é a lei nº 26.06123 – Ley de

Proteccion Integral de los Derechos de las Niñas, Niños e Adolescentes –, promulgada em 28 de

setembro de 2005, que dispõe o seguinte:

ARTICULO 27. — GARANTIAS MINIMAS DE PROCEDIMIENTO. GARANTIAS EN LOS PROCEDIMIENTOS JUDICIALES O ADMINISTRATIVOS. Los Organismos del Estado deberán garantizar a las niñas, niños y adolescentes en cualquier procedimiento judicial o administrativo que los afecte (…) los siguientes derechos y garantías:

a) A ser oído ante la autoridad competente cada vez que así lo solicite la niña, niño o adolescente;

b) A que su opinión sea tomada primordialmente en cuenta al momento de arribar a una decisión que lo afecte;

c) A ser asistido por un letrado preferentemente especializado en niñez y adolescencia desde el inicio del procedimiento judicial o administrativo que lo incluya. (…);

d) A participar activamente en todo el procedimiento;

e) A recurrir ante el superior frente a cualquier decisión que lo afecte.

Em virtude da lei supracitada criou-se o Consejo Federal de Niñez, Adolescencia y

Familia, um

organismo descentralizado en el ámbito del Ministerio de Desarrollo Social, [que] tiene por objeto concertar y efectivizar políticas de protección integral de los derechos de las niñas, niños, adolescentes y sus familias, y participar en la elaboración, coordinadamente con la Secretaría Nacional de Niñez, Adolescencia y Familia, de un plan nacional de acción como política de derechos para el área. (Informação disponível em:< http://senaf.cba.gov.ar/index.php/consejo-federal-de-ninez-adolescencia-y-familia/index.html>. Acesso em: 18/06/2011).

O mencionado Plan Nacional de Acción por los Derechos de Niños, Niñas y

Adolescentes24 foi produzido, em 2005 e tem como objetivo

Instalar en la agenda pública, la concepción de la infancia como Sujeto pleno de Derecho, cambiando el modelo tutelar por el de un Sistema de Protección Integral.

Generar acuerdos sobre los objetivos y metas específicos de las políticas sectoriales, dirigidas a la niñez y adolescencia, centradas en el fortalecimiento de la familia como ámbito de ejercicio de los Derechos.

23 Disponível em:< http://www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/110000-114999/110778/norma.htm>. Acesso em: 18 de junho de 2011. 24 Disponível em: < http://www.derhuman.jus.gov.ar/institucional/publicaciones/publicaciones/otras/pdf/pna.pdf>. Acesso em: 18/06/2011.

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Establecer mecanismos comunes de seguimiento de las metas, que provea información periódica actualizada. (Informação disponível em: <http://www.enelumbral.com.ar/2008/03/04/plan-nacional-de-accion-por-los-derechos-de-ninas-ninos-y-adolescentes/>. Acesso em: 23/06/2011).

O referido plano faz parte da política nacional argentina de criação de leis específicas que

visam dar cumprimento às recomendações da Convenção Internacional sobre os Direitos da

Criança.

4.2.2 Método empregado para a realização da oitiva

Como já mencionado, a tomada de depoimento infanto-juvenil na Argentina ocorre por

meio da Câmara de Gesell, que consiste num espaço dividido em dois ambientes, separados por

um vidro de visão unilateral. De acordo com Santos e Gonçalvez (2008), na sala de entrevistas

permanecem a criança/adolescente e o psicólogo, enquanto em recinto contíguo ao mencionado

anteriormente alocam-se o promotor, o defensor da criança, o defensor do acusado e, em algumas

ocasiões, o juiz. Além do espelho unilateral que permite acompanhar o que se passa na sala de

entrevistas por quem ocupa o outro lado do espelho, na sala em que a criança prestará

depoimento há aparelhagem audiovisual para realizar a gravação do depoimento infanto-juvenil.

Esta intervenção dura cerca de uma hora e meia25, podendo ter algumas interrupções – de

duas a três, solicitadas pelo juiz, para que este repasse ao psicólogo as questões que devem ser

formuladas à criança/adolescente. Neste modelo de tomada de depoimento, portanto, o psicólogo

não faz uso de nenhum ponto eletrônico ou fones de ouvido.

Terminada a inquirição, solicita-se que o acompanhante da criança/adolescente,

geralmente um membro da família desta, entre na sala de entrevistas com vistas à que se

“apliquem os encaminhamentos necessários, como acompanhamento psicológico” (Santos &

Gonçalves, 2008, p.64).

Justifica-se a utilização de tal metodologia pela necessidade de se evitar a revitimização

de crianças e adolescentes no Sistema Judiciário, visto que o relato desses seria tomado uma

única vez, sendo gravado e anexado aos autos do processo, de modo a reduzir o número de

entrevistas realizadas em diferentes espaços.

25 Informação disponível em: <http://www.jusneuquen.gov.ar/share/legislacion/leyes/reglamentos/camara_gesell.htm >. Acesso em: 27/05/2011.

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4.3. Tomada de depoimento de crianças e de adolescentes em Portugal

Na literatura portuguesa analisada (Carvalho, 2007; Ribeiro & Manita, 2007; Ribeiro,

2009) aponta-se, não raras vezes, a dificuldade na produção de prova testemunhal em processos

de abuso sexual infanto-juvenil, bem como a inexistência de evidências físicas, em alguns casos.

Destarte, a partir de tais justificativas, os supracitados autores mencionam que vem despontando

em diversos países o uso de procedimentos para a oitiva de crianças e de adolescentes

pretensamente vítimas de violência sexual como principal meio probatório num processo judicial.

Em Portugal, tem-se empregado o procedimento denominado Declaração para memória

futura, “um procedimento que permite às vítimas de crimes sexuais serem ouvidas durante o

inquérito e dispensadas de comparecer em tribunal” (Informação disponível em:

<http://www.jn.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=465136>. Acesso em: 13/07/2011). Na

pesquisa empreendida, observou-se a existência de modelos inquisitórios em que o depoimento

infanto-juvenil é tomado por magistrados e por policiais especializados.

No contexto português, a possibilidade de se utilizar a palavra da criança em juízo tem

gerado diversos debates em torno do tema, tais como: a dificuldade de alguns profissionais para

decodificar e interpretar a fala infantil, a (in)capacidade da criança prestar testemunho e a

(in)fidedignidade do conteúdo de seu discurso, uma vez que se discute bastante naquele país a

capacidade de crianças em distinguir o que é verdade do que é mentira. Diante disso, foram

criados testes e protocolos inspirados na abordagem cognitiva, a fim de averiguar a competência

dessas crianças para prestar depoimento, e, consequentemente, evitar falsos relatos (Ribeiro,

2009).

No país em questão, a atuação do psicólogo junto ao Sistema de Justiça costuma ocorrer

por meio da realização de perícia. Nesse sentido, Manita apud Ribeiro (2009), menciona que “a

perícia psicológica constitui-se como um instrumento privilegiado de interface entre a Psicologia

e o Direito” (p.115). Este procedimento tem por fim constatar, ou não, a capacidade da criança de

depor, tal como aponta o trecho a seguir:

(...) a avaliação psicológica não tem, na esmagadora maioria dos casos, o objectivo de perceber a perspectiva da criança, aceder ao significado da sua experiência ou ao impacto sofrido, mas sim avaliar as capacidades da criança para testemunhar acerca de uma situação específica e para ajudar a apurar os fatos. (RIBEIRO, 2009, p.115).

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Carvalho (2007), em sua dissertação de mestrado desenvolvida junto a Universidade do

Porto, propõe-se a investigar, por meio de análise processual empreendida entre 2002 e 2005,

qual tratamento dado, em processos judiciais, ao relato de crianças pretensamente vítimas de

abuso sexual intra-familiar. Os resultados da referida pesquisa apontam para uma

(...) significativa percentagem de crianças que, tendo produzido narrativas sobre o abuso no decurso da avaliação psicológica forense, apresentaram indicadores fortes de veracidade do testemunho, além de sintomatologia e outros indicadores reveladores de impacto traumático. (CARVALHO, 2007, p.4).

Vale mencionar que o estudo em questão faz menção à prática de avaliação psicológica

forense para fins de avaliação da personalidade da suposta vítima e da credibilidade de seu

testemunho, sem se referir às chamadas metodologias especiais de inquirição infanto-juvenil.

Quando se trata de intervenções legais, a República Portuguesa dispõe de duas vias de

acesso à justiça nas quais a criança supostamente vítima de abuso sexual pode ser inserida: a

Justiça Criminal, área que visa à investigação dos fatos e à penalização do abusador; e a Justiça

Protetiva, com fins de assegurar direitos e promover o bem-estar dessas crianças.

Ribeiro e Manita (2007) apontam que

a disparidade dos propósitos que orienta os dois tipos de abordagem legal poderá suscitar um ‘conflito de interesses’ que coloca, de um lado, a necessidade de proteger a criança e garantir a sua estabilidade psicossocial e, do outro, a necessidade de investigar o delito, sinalizar um suspeito e sancioná-lo. (p. 56).

Ao se considerar a participação civil no trato do tema em questão, observa-se que, naquele

país, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV)26 tem desenvolvido um trabalho no

sentido de promover e de contribuir para a informação, a proteção e o apoio às vítimas de

infrações penais, dentre os quais incluem-se crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual.

Diante disso, a APAV, por meio do Projeto Core, publicou no ano de 2002, o Manual Core: Para

o atendimento de crianças vítimas de violência sexual. O referido material, organizado em dois

volumes – parte I: Como compreender27 e parte II: Como proceder28 –, tem como objetivo criar

diretrizes para “ajudar o trabalho quotidiano de todos os profissionais que, em Portugal e nos

26 Informação disponível em: < http://www.apav.pt/portal/ >. Acesso em: 31 de maio de 2011. 27 http://www.apav.pt/pdf/core_compreender.pdf 28 http://www.apav.pt/pdf/core_proceder.pdf

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outros estados membros da União Europeia, trabalham com crianças vítimas de violência sexual,

com seus pais e familiares e/ou amigos”. (APAV, 2002, p.11).

Outra iniciativa provém da Casa Pia Lisboa, uma instituição que visa a

promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens, sobretudo dos que se encontram em perigo ou em risco de exclusão, de forma a assegurar o seu desenvolvimento integral, através do acolhimento, educação, formação e inserção social e profissional29.

Em maio de 2010, a referida instituição lançou a cartilha intitulada Linhas orientadoras

para actuação em casos de abuso sexual de crianças e jovens. O documento em questão pretende

constituir-se como uma ferramenta para a intervenção de profissionais que atuam na prevenção e

na atenção à crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.

4.3.1 Legislação

Como destacado anteriormente, o procedimento denominado Declaração para memória

futura tem sido empregado em Portugal, dentre outras circunstâncias, na investigação de crimes

de abuso sexual cometidos contra adultos e crianças. Encontra-se no Código de Processo Penal

daquele país, revisado em 2007 pela lei nº 48/2007, o artigo 271º que prevê:

Artigo 271º - Declarações para memória futura

(...)

2 – No caso de processo por crime contra a liberdade e autodetermiação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior. (grifo nosso).

(...)

4 – Nos casos previstos no nº 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito. (grifo nosso).

5 – A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

29 Informação disponível em: <http://www.casapia.pt/Default.aspx?tabid=69&language=pt-PT >. Acesso em: 05 de junho de 2011.

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As declarações obtidas na audiência devem ser documentadas nos autos30 do processo, de

forma a não haver risco de nulidade. Quanto à documentação, em regra, esta deve ser gravada –

por meio de registro de áudio, ou ainda, áudio-visual – devendo conter na ata, “o início e o termo

da gravação de cada declaração”. (CPP, art. 364, nº 2, p. 93).

Vale mencionar que o tribunal ordena ao réu seu afastamento da sala de audiência nas

seguintes situações31: caso sua presença iniba o declarante a dizer a verdade; se o declarante for

menor de 16 anos e houver razões para crer que a presença do réu possa prejudicá-lo gravemente;

se for realizada oitiva de perito e houver razões para que a presença do réu cause prejuízos a

integridade física e psíquica daquele.

Em matéria divulgada no In Verbes – revista jurídica digital –, publicada em 18 de abril

de 2008, a juíza-desembargadora Joana Salinas defende que haja uma formação prévia para

magistrados que julgam casos de abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes, pois

acredita que faltam-lhes “‘aptidão’ para lidar com estes casos”32 e critica a postura de alguns

juízes que colocam crianças e adolescentes cara a cara com o suposto abusador. Relata ainda que

concorda que se recolham declarações para memória futura – medida que ocorre na fase de

instrução do processo –, mas que não concebe que na fase de julgamento os juízes deixem de

ouvir as crianças/adolescentes.

A lei nº 93/9933, de 14 de julho, que regula a aplicação de medidas para proteção de

testemunhas em processo penal, dispõe o seguinte:

CAPÍTULO V

Artigo 26. Testemunhas especialmente vulneráveis

1 - Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.

2 - A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.

Artigo 27. Acompanhamento das testemunhas especialmente vulneráveis

30 Trata-se de um termo jurídico que se refere ao conjunto de peças ou de instrumentos reunidos em um processo judicial ou administrativo”. Informação disponível em: <http://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/923/Autos> 31 Informação disponível em: <http://www.legix.pt/docs/CPP.pdf>. Acesso: 17 de setembro de 2010. 32 Informação disponível em: <http://www.inverbis.net/juizes/formacao-especifica-casos-abuso-sexual.html >. Acesso: 17 de setembro de 2010. 33 Disponível em: <http://www.apav.pt/portal/pdf/prot_testemunhas.pdf>. Acesso em: 17/06/2011.

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1 - Logo que se aperceba da especial vulnerabilidade da testemunha, a autoridade judiciária deverá designar um técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o seu acompanhamento e, se for caso disso, proporcionar à testemunha o apoio psicológico necessário por técnico especializado.

2 - A autoridade judiciária que presida ao acto processual poderá autorizar a presença do técnico de serviço social ou da outra pessoa acompanhante junto da testemunha, no decurso daquele acto.

Artigo 28. Intervenção no inquérito

1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.

2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.o do Código de Processo Penal.

Observa-se que diversas legislações podem ser consideradas quando se trata da inquirição

infanto-juvenil e cada uma delas conta com suas especificidades quanto ao profissional que

participará do procedimento inquisitório. Diversas são as formas de se empreender uma escuta

que permita a participação de crianças e de jovens em processos que lhe dizem respeito, a

inquirição judicial é apenas uma delas. Os objetivos de uma escuta também podem variar: da

obtenção de provas à ressignificação dos fatos ocorridos. Cada finalidade pressupõe práticas

distintas e pertinentes a diferentes categorias profissionais.

4.3.2 Método empregado para a realização da oitiva

A técnica denominada Declaração para memória futura consiste na gravação do

depoimento da criança ou do adolescente por meio de um sistema de vídeo-conferência, pois

assim, acredita-se evitar a exposição destes a um ambiente de tensão em que haja a presença do

agressor (Ribeiro, 2009). Contudo, Ribeiro (2009) afirma que “os estudos acerca dos benefícios

destas medidas são escassos e os que existem são contraditórios” (Ibidem, p. 119).

Em matéria online publicada pelo Jornal Público, em 19 de janeiro de 2004, lê-se a

seguinte descrição da técnica mencionada:

A tomada de declarações para memória futura pode ser requerida pelo juiz de instrução, a pedido do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis e visa proceder à inquirição das vítimas/testemunhas no decurso do inquérito (fase inicial do processo) a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. A inquirição é feita por um juiz, podendo os arguidos estarem presentes se assim o desejarem e solicitar ao juiz a formulação de perguntas adicionais (...).

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O conteúdo das declarações é reduzido a auto (escrito) (...)34.

Em 02 de junho de 2010, outro jornal português, o Diário de Notícias, divulga matéria

com o título: “DIAP de Lisboa inaugura sala para menores confessarem”35. Antes de mais nada,

convém esclarecer que DIAP – ou DCIAP – é a sigla para Departamento Central de Investigação

e Ação Penal, um órgão superior do Ministério Público de Portugal, que coordena e dirige a

investigação e a prevenção da criminalidade violenta, altamente organizada ou de alta

complexidade36. Feita essa elucidação, pode-se retornar ao conteúdo da notícia: foi inaugurada

em Lisboa, no dia 1º de junho de 2010, a sala DIAP Júnior, um espaço que visa receber crianças

abusadas sexualmente para prestar declarações. O referido recinto segue o formato da Câmara de

Gesell e contém brinquedos a fim de que seja um ambiente amigável à criança, e assim, segundo

a matéria, favorecer um relato mais tranquilo e genuíno desta. Quanto à metodologia utilizada, a

publicação aponta que:

Os menores começam por ser inquiridos por dois investigadores da PJ [Polícia Judiciária]. ‘E depois fica aquele com quem a criança tiver demonstrado mais empatia’, diz o director do laboratório da PJ, Carlos Farinha. ‘Sendo que o outro fica do outro lado do vidro a ouvir e vai dando dicas pelo computador’, conclui37.

Tendo em vista as diversas legislações citadas na sessão anterior, observa-se que o

método denominado Declarações para memória futura vem se configurando como um

procedimento que conta em sua realização com a participação de operadores do direito e

policiais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da pesquisa empreendida observou-se a profusão, tanto em âmbito nacional quanto

internacional, de debates acerca do uso de metodologias e de salas especiais destinadas à

inquirição de crianças e de adolescentes, pretensamente vítimas ou testemunhas de crimes,

especialmente em casos de abuso sexual.

34 Disponível em: <http://www.publico.pt/Sociedade/inquiricao-para-memoria-futura-ja-comecou-em-ponta-delgada_1182688>. Acesso em: 07/06/2011. 35 Disponível em: < http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1583934 >. Acesso em: 07/06/2011. 36 Informação disponível em: <http://www.pgr.pt/grupo_pgr/DCIAP.html>. Acesso em: 07/06/2011. 37 Informação disponível em: <http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1583934>. Acesso em: 08/06/2011.

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No Brasil, o tema causa controvérsias e impasses quanto ao lugar de ampla

responsabilidade que se atribui às crianças e aos adolescentes quando são levados a assumir a

posição de depoentes em processos judiciais nos quais, algumas vezes, no banco dos réus, está

alguém próximo, como um pai, um tio, etc. Como se não bastasse, ainda há a questão de se

conferir ao psicólogo a função de inquiridor por acreditar-se que tal categoria profissional, nesses

casos, teria maior capacitação para realizar uma tomada de depoimento não-revitimizante à essas

crianças e adolescentes.

Destarte, torna-se pertinente a discussão acerca do lugar que vem sendo designado e

ocupado por alguns psicólogos na atuação junto à justiça, faz-se mister refletir, também, sobre a

finalidade e o que se pretende construir a partir de uma inserção de cunho investigativo e

policialesco, e ainda: que fundamentação teórica, específica da Psicologia, corroboraria esse tipo

de prática?

Defender a pertinência de metodologias como o Depoimento sem dano por uma questão

mercadológica, de valorização da prática “psi” ou de promoção da interdisciplinaridade soa

ingênuo. Uma atuação que se pretenda interdisciplinar pressupõe diferentes categorias

profissionais debatendo acerca de determinado fenômeno a partir de olhares/referenciais

distintos. Desta forma, entende-se que cada categoria profissional deve oferecer sua contribuição

sem perder de vista as atribuições e os limites próprios de sua área de conhecimento.

No que tange ao objetivo do presente trabalho, a saber: investigar acerca de práticas

concernentes à tomada de depoimentos infanto-juvenis em âmbito internacional, especialmente

na Argentina e em Portugal, observou-se pontos importantes que não costumam ser mencionados

nas publicações favoráveis ao DSD.

Na análise empreendida acerca da Argentina observou-se que houve pouca discussão

entre os psicólogos antes que a lei fosse implantada. Por conseguinte, é profícua no território

argentino a problematização sobre o lugar do psicólogo em práticas investigativas que requerem

uma atuação meramente técnica e simplista, reduzindo o saber psicológico à busca de verdades

factuais com fins processuais. Deste modo, verifica-se que a utilização e a pertinência das

chamadas metodologias especiais de escuta infanto-juvenis não são uma unanimidade entre os

psicólogos argentinos.

No caso de Portugal percebeu-se que os psicólogos não questionam a respeito da

pertinência, ou não, da participação de criança e de adolescente como depoentes em processos

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judiciais, tal como vem sendo discutido no Brasil. A discussão naquele país parece permear a

capacidade de depor das crianças nos ditos processos. Para tanto, criaram-se procedimentos,

avaliações psicológicas e protocolos que garantam a boa participação38 desses sujeitos.

Ao que se refere à inquirição em Portugal, esta é realizada por magistrados, havendo

discussões, naquele país, sobre a falta de habilidade de juízes para lidar com crianças e

adolescentes supostamente vítimas de abuso sexual. Diante disso, fala-se numa preparação

voltada aos juízes – no Brasil, ao contrário disso, alguns defensores do DSD diante da mesma

questão, argumentam que outra categoria profissional “mais capacitada” (psicólogos e assistentes

sociais) deveria realizar tal função inquisitória.

Outro modelo inquisitório encontrado em Portugal diz respeito à recém construída sala

DIAP Junior, onde as declarações de crianças e de adolescentes são tomadas por policiais

judiciários, ou seja, também não há participação de psicólogos ou assistentes sociais na inquirição

infanto-juvenil.

Compreende-se, portanto, que a verdade que a Psicologia busca não é a verdade real

pertinente aos fatos, tal como almeja a esfera do Direito, mas a verdade subjetiva como uma

forma de ressignificar experiências, num espaço de tempo que seja próprio para cada um, sem

que haja a necessidade de relatos e revelações com o fim explícito de obtenção de provas e de

condenação do(s) culpado(s). Entende-se que esta não é atribuição do psicólogo e sim, de

policiais e operadores do direito.

Diante do exposto, pode-se estruturar uma crítica às práticas tecnicistas e reducionistas

que há tempos vem sendo demandadas ao saber-fazer psicológico. No entanto, o que pode gerar

tanto ou mais preocupações é o alinhamento pouco crítico de profissionais da Psicologia à

práticas simplistas e aviltantes que tornam o trabalho do psicólogo aquém das possibilidades de

atuação, em nome de bandeiras que parecem ser fruto da pós-modernidade, ou da

hipermodernidade (como preferir): celeridade, praticidade, individualização de questões sociais,

combate à impunidade, dentre tantos outras.

Por fim, não há que se perder de vista a recomendação presente no Código de Ética

Profissional do Psicólogo que dispõe, no terceiro tópico da seção Princípios Fundamentais, o

seguinte: “O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando criticamente e

38 Nesse sentido, entende-se boa participação como relatos fidedignos e sólidos e uma participação não-revitimizante.

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historicamente a realidade política, econômica, social e cultural” (p.7). Cabe ao psicólogo,

fazendo uso de seu senso crítico e de sua ética profissional, avaliar as demandas que chegam até

ele, de modo a discernir se fazem parte de seu rol de atribuições, se estão de acordo com o código

de ética e com as demais normatizações que regem sua profissão.

6. REFERÊNCIAS

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