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Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS. Porto Alegre, 2016. p.428-439. <www.ephispucrs.com.br>. PROPOSTA DE VALORIZAÇÃO DO DIALETO DE PORTO NOVO COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL PROPOSED VALUATION OF THE PORTO NOVO DIALECT AS IMMATERIAL HERITAGE João Vitor Sausen Graduando em História/UFSM Bolsista FATEC [email protected] Murilo de Melo Penha Graduando em História/UFSM Bolsista FATEC [email protected] RESUMO Porto Novo é uma antiga colônia de descendentes de “alemães” vindos em sua maioria do Rio Grande do Sul, e nossa região de estudo, ao longo do tempo transformou-se nas cidades de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis. Estes que migraram descendiam das levas de imigração “alemã” para o Brasil. O que hoje é conhecido como Alemanha, até 1871 era um conjunto de centenas de Cidades-estados, principados, condados, ducados, reinos... com uma grande variedade cultural, inclusive linguística. Com a unificação política, buscou-se trazer uma unidade a estes “alemães”, surgindo mais tarde uma língua oficial, o “Hoch Deutsche”, ou alto alemão. Aqueles que emigraram antes deste processo não passaram por esta unificação político-cultural, mantendo-se assim no solo brasileiro como é o caso em questão suas variedades linguísticas. Na região de Porto Novo além do português é falado um dialeto teuto-brasileiro (que como os outros dialetos de imigração no Brasil, é generalizado dentro do termo “Hunsrückisch”), o qual pode ser percebido em obras literárias, colunas de jornais, entre outros. Tal dialeto tem uma grande importância para a população local, já que além de ser sua forma de comunicação, é uma representação de sua cultura, sendo passado de geração em geração, perpetuando assim as heranças culturais desses grupos imigrantes. Graças a tal importância sugerimos assim seu registro como Patrimônio Imaterial. Palavras-chave: Porto Novo, Dialeto teuto-brasileiro, Patrimônio Imaterial, Imigração alemã, herança cultural; ABSTRACT Porto Novo is an old settlement of “German” descendants, that most part came from Rio Grande do Sul, is our area of study, which became with the action of the time the cities called Itapiranga, São João do Oeste and Tunápolis. Those who migrated were descendants from the “German” immigration to Brazil. What today is knew as Germany, until 1871 was a set of hundreds of city-states, principalities, counties, ducats, reigns… with a great cultural variety, including linguistic. With the politic-cultural unification, sought to bring a unity to these “Germans”, arising sometime after an official language, the “Hoch Deutsche”, or high German. Those who emigrated before this process did not pass through the political-cultural unification, keeping in Brazilian land as the present case their linguistic varieties. In Porto Novo region, besides Portuguese, a German-Brazilian dialect is talked (that with the other immigration dialects in Brazil, is generalized within the therm “Hunsrückisch”), which can be noticed in literature, newspaper columns, among others. Such dialect has a great importance for the local population, furthermore it is a way of communication, and it is a representation of its culture, being passed throughout generations, perpetuating, then, the cultural heritage from these immigrants groups. Thanks to that importance, we suggest, therefore, its register as an Immaterial Heritage. Keywords: Porto Novo, German-Brazilian dialect, Immaterial Heritage, German Immigration, cultural heritage.

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Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS.

Porto Alegre, 2016. p.428-439. <www.ephispucrs.com.br>.

PROPOSTA DE VALORIZAÇÃO DO DIALETO DE PORTO

NOVO COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL

PROPOSED VALUATION OF THE PORTO NOVO DIALECT AS IMMATERIAL HERITAGE

João Vitor Sausen

Graduando em História/UFSM

Bolsista FATEC

[email protected]

Murilo de Melo Penha

Graduando em História/UFSM

Bolsista FATEC

[email protected]

RESUMO Porto Novo é uma antiga colônia de descendentes de “alemães” vindos em sua maioria do Rio Grande do Sul, e

nossa região de estudo, ao longo do tempo transformou-se nas cidades de Itapiranga, São João do Oeste e

Tunápolis. Estes que migraram descendiam das levas de imigração “alemã” para o Brasil. O que hoje é

conhecido como Alemanha, até 1871 era um conjunto de centenas de Cidades-estados, principados, condados,

ducados, reinos... com uma grande variedade cultural, inclusive linguística. Com a unificação política, buscou-se

trazer uma unidade a estes “alemães”, surgindo mais tarde uma língua oficial, o “Hoch Deutsche”, ou alto

alemão. Aqueles que emigraram antes deste processo não passaram por esta unificação político-cultural,

mantendo-se assim no solo brasileiro – como é o caso em questão – suas variedades linguísticas. Na região de

Porto Novo além do português é falado um dialeto teuto-brasileiro (que como os outros dialetos de imigração no

Brasil, é generalizado dentro do termo “Hunsrückisch”), o qual pode ser percebido em obras literárias, colunas

de jornais, entre outros. Tal dialeto tem uma grande importância para a população local, já que além de ser sua

forma de comunicação, é uma representação de sua cultura, sendo passado de geração em geração, perpetuando

assim as heranças culturais desses grupos imigrantes. Graças a tal importância sugerimos assim seu registro

como Patrimônio Imaterial.

Palavras-chave: Porto Novo, Dialeto teuto-brasileiro, Patrimônio Imaterial, Imigração alemã, herança cultural;

ABSTRACT Porto Novo is an old settlement of “German” descendants, that most part came from Rio Grande do Sul, is our

area of study, which became with the action of the time the cities called Itapiranga, São João do Oeste and

Tunápolis. Those who migrated were descendants from the “German” immigration to Brazil. What today is

knew as Germany, until 1871 was a set of hundreds of city-states, principalities, counties, ducats, reigns… with a

great cultural variety, including linguistic. With the politic-cultural unification, sought to bring a unity to these

“Germans”, arising sometime after an official language, the “Hoch Deutsche”, or high German. Those who

emigrated before this process did not pass through the political-cultural unification, keeping in Brazilian land –

as the present case – their linguistic varieties. In Porto Novo region, besides Portuguese, a German-Brazilian

dialect is talked (that with the other immigration dialects in Brazil, is generalized within the therm

“Hunsrückisch”), which can be noticed in literature, newspaper columns, among others. Such dialect has a great

importance for the local population, furthermore it is a way of communication, and it is a representation of its

culture, being passed throughout generations, perpetuating, then, the cultural heritage from these immigrants

groups. Thanks to that importance, we suggest, therefore, its register as an Immaterial Heritage.

Keywords: Porto Novo, German-Brazilian dialect, Immaterial Heritage, German Immigration, cultural heritage.

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Porto Alegre, 2016. p.428-439. <www.ephispucrs.com.br>.

Introdução

O Brasil é um amálgama de culturas, onde mais de 210 línguas são faladas, algumas

delas correm sérios riscos de extinção, devido a diminuição do seu número de falantes. Porto

Novo, região histórica do Extremo-Oeste catarinense, não é uma exceção à regra, sendo que

neste local são faladas um grande leque de línguas com seus respectivos dialetos,

provenientes dos diversos grupos que a habitaram ao longo do tempo. Ainda presente nesse

contexto, encontrasse o Hunsrückisch, língua de imigração com raízes na Renânia (atual

Alemanha), que hoje dificilmente será encontrada em solo teutônico, já que a dinâmica

linguística de lá foi distinta da brasileira.

O Hunsrückisch, da forma que hoje é encontrado em território nacional, torna-se

nesse artigo nosso objeto de estudo, sendo ainda, resultado de uma pesquisa desenvolvida no

Núcleo de Estudos do Patrimônio e Memória da Universidade Federal de Santa Maria

(NEP/UFSM) sob a orientação do Prof. Dr. André Luís Ramos Soares, iniciada neste ano

(2016) e apresentada com suas parcialidades no III Encontro de Pesquisas Históricas da

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Visando a importância da língua para o indivíduo, juntamente com toda sua carga

cultural, este trabalho busca dar contribuições do ponto de vista histórico para a comunidade

em geral e ao projeto de registro do dialeto junto ao Inventário Nacional da Diversidade

Linguística (INDL), feito pelo Ipol (Instituto de Investigação e Desenvolvimento de Política

Linguística).

O cenário europeu

Em 1871, ano da Unificação da “nação” como II Reich, fez-se o primeiro projeto de

Estado-nação, baseados pelo seu critério generalizante: a língua1. Hoje, a Alemanha pode ser

vista como uma única entidade de corpo político e Estado-nação. Porém antes da unificação,

não existia um povo alemão, mas uma diversidade enorme de povos e culturas que não se

reconheciam a partir de uma identidade comum, devido a isso, podemos considerar os

primeiros alemães como um grupo extremamente heterogêneo.

1 Como coloca Eric Hobsbawm em seu livro “Nações e Nacionalismo desde 1780” , ideólogos da época

definiram a língua como o único indicador adequado de nacionalidade, assim, tal ideologia levou até a conflitos

por fronteiras, como é o caso da disputa de Schleswig-Holstein entre os alemães e os dinamarqueses.

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Figura 1: Mapa do Império Alemão em 1900 (mantêm-se as mesmas fronteiras de 1871), pode-se observar por

exemplo, os diversos Estados dentro da composição imperial, em azul claro a Bavária, em amarelo Baden entre

outros, que mantinham entre si suas variedades culturais e relativa autonomia frente ao imperador prusso. Tais

territórios foram unificados partir de um processo que levou décadas, e foi encabeçado pelos prussos, com seu

reino ilustrado na cor cinza. (Fonte da imagem: Wikimedia Commons)

Da Alsácia-Lorena à Prússia Oriental, ou de Schleswig à Baviera, as camadas mais

populares não falavam apenas uma língua, haviam diversos dialetos ou variações dessa

mesma. Sendo que se tratava de uma nação com grandes taxas de letrados, a língua ensinada

nas escolas públicas era o Hoch Deutsche (ou Alto Alemão), originária da parte montanhosa,

daí o nome “alto”, da atual Alemanha (que correspondia à Baviera, Baden e Würtemberg,

antigas monarquias alemãs). A adoção de tal língua como oficial da nação se deu pois:

(...) as línguas originalmente planejadas ou funcionando, como línguas

híbridas, para os que falam línguas populares mutuamente incompreensíveis,

ou como idiomas culturais para os cultos, são pressionadas para servir como

meio para a fala nacional (...) Se a escolha de uma língua nacional “oficial”

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fosse meramente feita por conveniências pragmáticas, ela seria relativamente

simples. Seria escolhido o idioma mais apto a ser falado e/ou entendido pelo

maior número de cidadãos, ou, aquele que mais facilitasse a comunicação

mútua. (HOBSBAWM, 2013, p. 130-131)

O projeto pós-unificação trouxe um reforço à esta questão, relegando os velhos

dialetos à sua própria sorte, dando preferência, assim, à língua que unificaria a nação, como

as armas e os acordos políticos fizeram com os Estados alemães. Assim coloca Eric

Hobsbawm:

A “nação” não era algo de crescimento espontâneo, mas um artefato.

Também não era historicamente nova, embora incorporasse características

que membros de grupos humanos muito antigos tinham ou pensavam ter em

comum, ou aquilo que os unia contra os “estrangeiros”, precisava realmente

ser construída. (2016, p. 155)

Fazia parte disto a adoção de uma língua que os unificasse2. Este não foi um processo

de curta duração; pelo contrário, levou décadas e ainda está em plena execução.

Entretanto, apesar de todo o ocorrido na Europa, do outro lado do Oceano Atlântico,

mais precisamente em solo brasileiro, havia “alemães”3 que não passaram por este processo,

sofrendo influência apenas dos efeitos iniciais do mesmo, onde grande parte desses imigrantes

teve acesso ao ensino básico e puderam aprender o Hoch Deutsche nas escolas, mas

costumeiramente mantendo a fala das suas línguas maternas.

A imigração alemã para o Brasil iniciou oficialmente após a fundação da colônia de

São Leopoldo, na então província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Aos poucos a presença

alemã foi sendo ampliada, ainda mais após 1850. Dali em diante há uma entrada maciça de tal

grupo. Corroborando, que a falta de oportunidades e propriamente a carência por mais terras,

nestas que são chamadas atualmente de “Colônias Velhas”, leva à fundação de novas

ocupações, dá-se então a migração para a região Missioneira, e mais tarde para a região do

Contestado4; seguido pelo oeste catarinense5.

2 A língua não só trazia a unificação à nação, ela também significava uma sobreposição às antigas culturas,

representava um leque de chances desiguais entre os que a falavam e os “teimosos” que mantinham sua fala

materna. (HOBSBAWM, 2013, p. 162-163) 3 Quando me refiro à “alemães” não importa o local de nascimento dos indivíduos, mas seus traços culturais,

desta forma, coloco o termo em uma ideia de nacionalidade e não de nascimento. Por outro lado, no caso dos

teuto-brasileiros, me refiro exclusivamente àqueles que nasceram em solo tupiniquim, mas que podem ser

generalizados com os provenientes de solo europeu como “alemães”. 4 Em 1895 foi acertado que a região seria de posse brasileira, e não argentina, poucos anos mais tarde, após o fim

da Guerra do Contestado, foi definido que as terras não seriam mais da cidade de Palmas (pertencente ao Estado

do Paraná), mas sim de posse catarinense. 5 A expansão não parou por aí, foi um processo contínuo de migração. Descendentes daqueles que migraram

para o Oeste, ou até alguns daqueles indivíduos foram além, ocupando pouco tempo depois o Oeste paranaense,

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Porto Novo e seus migrantes

Em 1926 foi fundada a partir da companhia colonizadora Volksverein, uma colônia

exclusiva para alemães católicos, logo na divisa de Santa Catarina com a Argentina e o Rio

Grande do Sul. Devido ao seu padroeiro a colônia ficou conhecida como “Porto Novo de São

Pedro Canísio”). Atualmente Porto Novo representa a região histórica da antiga colônia, que

em dias atuais compreende os municípios de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis. Foi

povoada originalmente por migrantes das antigas colônias do outro lado do Rio Uruguai,

também alguns poucos que vinham da colônia de São Pedro de Alcântara (do outro lado de

Santa Catarina) e raros casos de imigrantes vindos diretamente da Alemanha.

Nas antigas colônias os teuto-brasileiros formaram um processo conhecido como

“ilhas linguísticas”6, ao formarem comunidades onde conviviam apenas com outros “alemães”

e pouco se relacionavam ao externo. Tal processo acontecia, já que:

Mesmo falando dialetos diferentes, dependendo da sua região de origem, os

membros de tal grupo étnico/linguístico minoritário se mantêm unidos por

causa do sistema de valores em comum. O fundamento para o

desenvolvimento e a estabilidade de tais sistemas de valores e normas é a

interação entre os membros do grupo durante um período prolongado,

resultando em densas redes sociais de comunicação. (TORNQUIST, 2003, p.

160)

Sendo assim, o contato com indivíduos que dividissem os mesmos valores ou

semelhanças dos tais, fez com que se mantivessem culturas originárias do Velho Continente.

Entretanto, o efeito das ilhas linguísticas não se dá somente no campo ideológico, dá se uma

reformulação linguística:

(...) diferentes dialetos foram trazidos para o Brasil, onde entraram em

contato direto uns com os outros dentro de uma mesma comunidade. Em

comunidades homogêneas o dialeto corrente era também a variante da

maioria e foi mantido; nas colônias heterogêneas houve um processo

inevitável, natural e muito forte de mistura de elementos dessas variedades

regiões mato grossenses, enfim, foram “subindo” pelo território brasileiro (me refiro aos provenientes das

colônias sul rio grandenses e não das outras colônias brasileiras, mesmo que possam ter tomado caminhos

semelhantes). 6 A partir da tradução de Ingrid Tornquist do original em alemão de Mattheier: “Uma ilha linguística é uma

comunidade linguística resultando da assimilação cultural impedida ou retardada. Constitui-se numa minoria

linguística separada de sua área principal e cercada por uma sociedade majoritária de aspectos étnicos e

linguísticos diferentes, da qual se isola, ou é isolada, por uma disposição sócio-psicológica a qual motiva a

separação”. (2003. p.160)

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orais, sendo que a variante da maioria normalmente se sobrepunha às

demais. (SPINASSE, 2008, p. 119)

Assim, uma região montanhosa e pobre da Renânia (Prússia na época) acabou por ter grande

protagonismo no cenário linguístico teuto-brasileiro: O Hunsrik.

Figura 2: Localização atual de Porto Novo, dividida entre os municípios de Itapiranga, São João do Oeste e

Tunápolis.

Seus habitantes foram grande parte do quociente total e assim tiveram presença

significativa nas ilhas linguísticas, desta forma seu dialeto, o Hunsrückische prosperou sob os

demais. E é esse plano que se transmitiu para a nova colônia, Porto Novo, levando-os a

viverem em uma nova comunidade, mas que em seu cerne tinha o “mesmo” corpo.

Apesar de tudo, a formação da colônia de Porto Novo apenas trouxe uma nova face ao

projeto, já que limitava seus participantes aos que fossem teutônicos de uma só religião

(Católica Apostólica Romana), salvo o caso de “caboclos” que lá viviam muito antes da nova

ocupação7. Como os colonos já tinham passado pelo processo das “ilhas”, o efeito foi ainda

mais forte, se pensarmos que mesmo que Porto Novo representasse uma comunidade, suas

7 Segundo Arlene Renk: “ A população brasileira (cabocla) encontrava-se localizada na área, no sistema de

posse, a partir de meados do século passado, levando um modo de vida tradicional, com agricultura em pequena

escala -nas terras de plantar- e criação de gado para o consumo- nas terras de criar. Voltava-se, também, ao

extrativismo da erva-mate. Com o processo de colonização, principalmente a partir de 1930, será expropriada da

terra, desestruturando o seu modo de vida peculiar”. (2006, p.37)

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subdivisões que possuíssem uma igreja e uma escola também representavam novas “ilhas”.

Todavia, nesse ambiente, esse processo foi limitado.

O processo da Nacionalização Compulsória em Porto Novo

Lembrando que o Brasil se tornou um estado independente desde 1822, ainda não

existiam os “brasileiros”, logo, vários foram os projetos para que se formasse essa

nacionalidade. Houve a instalação de escolas públicas, incentivos, porém, não muito eficazes.

Em 1937 em plena Era Vargas foi instituído um projeto de Nacionalização Compulsória, em

que, segundo Lúcio Kreutz:

Buscava-se uma universalização do conceito de povo e de nação,

desconsiderando-se as especificidades e as diferenciações culturais dos

grupos humanos que formavam o Estado-Nação. O processo escolar foi

acionado em função desta universalização e concebido em função dos

grandes projetos político-sociais, para transmitir e generalizar os princípios

da justiça e da igualdade, sendo que o lugar social e cultural a partir da qual

esta universalização estava sendo definida era o de uma única tradição

cultural. Forçou-se uma homogeneização a partir de certos núcleos de

adesão, realizou-se um movimento de integração e exclusão ao descrever

grupos, ao impor espaços, ao conferir a palavra ou negá-la. Neste sentido,

institucionalizou-se uma língua em detrimento das demais e em relação às

diversas etnias, construiu-se a representação que melhor correspondesse à

edificação do projeto nacional. Este discurso oficial, linear, não retratava as

tensões e os mecanismos de seleção/exclusão, de autorização/silenciamento,

presentes no processo histórico, sempre com uma carga muito forte de

tensões, conflitos e alianças. (2010, p. 74-75)

Entre os grupos de imigrantes, sofreram fortes impactos, como traz Roque Jungbluth:

O Brasil optou pela nacionalização dos descendentes de estrangeiros,

anulando-lhes a cultura e a tradição trazidas das velhas pátrias. Como

método optou pela violência. Como pedagogia, impôs símbolos,

personagens, tradições, artes, língua, impressos, aulas… exclusivamente

nacionais brasileiros. (2011, p. 261)

A partir de 1938 se institui o fechamento de escolas que não ensinassem o português, e

mais tarde proibiu-se o ensino da língua alemã. Em Porto Novo, fora fechada a Escola

Paroquial da Sede (Vila de Itapiranga na época) e pouco depois, todas as restantes, juntamente

com a demissão dos professores, e, em seguida, reabertas como escolas estaduais e com novos

discentes enviados pelo Estado. Tal processo não foi pacífico, algumas escolas demoraram

anos para reabrir, e em outras o professor que fora enviado nem recebia pensão, que antes era

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paga pela comunidade (Jungbluth, 2011, p. 262). Dadas as suas características, o processo de

nacionalização transformou Porto Novo em um alvo:

Vistos como “quistos étnicos” ou como “zonas desnacionalizadas”, estes

núcleos coloniais foram acusados de transmissores de ideologias

estrangeiras, que colocava em risco a segurança nacional do Brasil,

originando as medidas nacionalizadoras e repressivas do Estado Novo. Em

muitas regiões, como é o caso do núcleo de Itapiranga, até então, havia uma

ausência quase total do Estado. Não existia assistência governamental à

aquela zona, que se organizava em torno de elementos próprios. Escolas, por

exemplo, até 1938 era instaladas e mantidas no núcleo colonial pela

companhia colonizadora, inclusive com a contratação e o pagamento dos

salários dos professores. Como exigir a assimilação, se nunca foi oferecida a

oportunidade para tal por parte do governo? (MAYER, 2016, p. 162)

Não somente no campo administrativo, onde a Volksverein ainda mantinha o controle

do local, a língua também prosperava sobre o português, havendo assim, quase nenhuma

influência do governo federal:

A colônia de Porto Novo apresentava forte valorização de elementos

estrangeiros, entre eles a língua alemã, falada em todos os locais, inclusive

na igreja; sua principal fonte de leitura vinha da revista Sankt Paulusblatt

(editada em alemão); os rádios embora poucos , sintonizavam as estações de

rádio alemãs via ondas curtas; as escolas paroquiais ensinavam em alemão.

(MAYER, 2016, p. 163)

A partir de 1938, primeiro fora proibida a fala do alemão em locais públicos, mais

tarde, no ano de 1942, após a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a fala do alemão,

e qualquer manifestação da língua resultaria em alguma punição, “falar em alemão era motivo

de denúncias que levaram muitos moradores de Itapiranga à prisão, afetando a vida social e

familiar de todos” (MAYER, 2016, p. 164). Ainda segundo Kreutz:

Com as políticas de nacionalização do ensino, criou-se um clima de tensão e

medo na região colonial dos imigrantes e a proibição da língua materna, que

era fator de identificação étnico-cultural e religiosa, atingiu a nova geração

que passou a um constrangedor silêncio sobre sua própria identidade. (2010,

p. 81)

A situação da guerra que colocou o Brasil do lado oposto ao dos alemães ocasionou

um grande “antigermanismo”8, trazendo preconceitos à tona. Os impactos à língua também

8 Deste processo tem origem expressões pejorativas destinadas aos teuto-brasileiros como: “alemão batata”,

“alemão grosso”, “alemon”, “quinta coluna”, ou “alemão nazista” (JUNGBLUTH, 2011, p. 267)

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não foram poucos, a opressão durante a nacionalização resultou em medo, mas apesar de

todos os reveses, a língua continuou a ser falada:

(...) a ideia propagada era de que os elementos “desnacionalizados” foram

todos transformados em brasileiros - fazendo com que todos falassem a

língua portuguesa -, na perspectiva do sucesso através de sua estratégia

política empregada, ora educativa, ora repressiva. Contudo, se o discurso era

de que todos foram nacionalizados, parece-nos que isso não se concretizou

totalmente em Itapiranga, visto que, até hoje, pessoas idosas não pronunciam

uma palavra sequer em português. (MAYER, 2016. p. 170)

Manifestações Escritas do Dialeto e a Temática do Patrimônio Imaterial

Atualmente, além de ser falado ou compreendido por grande parte da população local,

o hunsrückische pode ser encontrado em textos, livros (como é o caso do livro bilíngue “Uma

imigrante teuto romena e outros escritos”, de autoria de Ida Müller Welter, e publicado pelo

grupo PEST da UDESC de Florianópolis), além de uma coluna semanal no Jornal Expressão,

o Hunsrück Ecke (Canto do Hunsück), publicada de forma bilíngue, como consta abaixo:

Figuras 3 e 4: Coluna Semanal do Jornal Expressão.

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Da mesma forma como ocorre com o Hunsrück Ecke, os vários jornais que já

existiram no município tinham colunas bilíngues, visando tanto contemplar aqueles que não

compreendiam o português, quanto atuar como forma de manutenção e propagação do dialeto.

Este, como tantos outros, são indicadores da importância que o dialeto tem para a população

local, caso contrário, há tempos ele já teria sido abandonado, por isso sua importância sócio-

cultural o faz continuar:

A língua é um sistema social e não um sistema individual. Ela preexiste a

nós. Não podemos, em qualquer sentido simples, ser seus autores. Falar uma

língua não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e

originais; significa também ativar a imensa gama de significados que já estão

embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais. (Hall, 2005, p.

40)

Toda essa competência dá à língua características suficientes para valorizá-la como

patrimônio cultural imaterial, de acordo com a Constituição Federal Brasileira de 1988:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de

referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores

da sociedade brasileira, nos quais se incluem (EC no 42/2003):

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados

às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Parágrafo 1. O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá

e protegerá o patrimônio cultural brasileiro por meio de inventários,

registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de

acautelamento e preservação (...) (BRASIL, 2012, p.124)

E, adicionado ao mesmo, um Seminário Internacional promovido pelo Iphan Cearense

em 1997, além de trazer discussões quanto às formas de proteção do patrimônio imaterial,

acabou por produzir a “Carta de Fortaleza”, na qual:

(...) recomendavam-se o aprofundamento do debate sobre o conceito de

patrimônio cultural imaterial e o desenvolvimento de estudos para a criação

de instrumento legal, instituindo o “Registro” como principal modo de

preservação e de reconhecimento de bens culturais dessa natureza. (IPHAN,

2006, p. 13)

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Sendo assim, o registro da língua, ou do dialeto como é o objeto em questão, a

ferramenta necessária para o reconhecimento oficial de sua importância, como também, uma

forma de atuar em sua preservação.

Considerações Finais

Uma língua, além de ser uma manifestação cultural, também contempla um leque de

relações sociais que mantém um grupo, ao perder o direito de manifestá-la, uma comunidade

perde também seu vínculo social. A sua importância atravessa os tempos e se mantém sempre

presente.

Em um Estado-nação onde existem infinidades de línguas, porém, somente uma

adotada como oficial, há então a grande possibilidade de sobreposições e assim o

desaparecimento de algumas das línguas não adotadas. O Hunsrückische, como língua

minoritária corre este risco.

Ainda sim, mesmo sendo uma língua raramente escrita, o Hunsrückische se mantém

presente, em meio a todas as dificuldades que o confrontaram, assim, continua sendo

manifestado nas antigas colônias teutônicas, e onde quer que seus “filhos” passaram a viver,

tratando-se, então, de um elo materno.

Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil : texto

constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas

Emendas Constitucionais nos 1/1992 a 68/2011, pelo Decreto Legislativo nº 186/2008 e pelas

Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/1994. Edições Câmara: Brasília, 2012.

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