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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rosineide Barbosa Xavier
A compreensão de diálogo em uma experiência de
construção coletiva do projeto político-pedagógico:
um estudo à luz do pensamento de
Martin Buber e Paulo Freire
MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO
SÃO PAULO
2009
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rosineide Barbosa Xavier
A compreensão de diálogo em uma experiência de
construção coletiva do projeto político-pedagógico:
um estudo à luz do pensamento de
Martin Buber e Paulo Freire
MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO
Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação: Psicologia da Educação sob a orientação da Professora Doutora Heloisa Szymanski
SÃO PAULO
2009
BANCA EXAMINADORA
____________________________
Heloisa Szymanski
____________________________
Laurinda Ramalho
____________________________
Marcos Antônio Lorieri
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela sempre presença na minha existência, mostrando-me a
necessidade de que a vida seja vivida enquanto dom a serviço do outro, seguindo
os passos de Seu amor gratuito que renova toda relação;
Às missionárias seculares scalabrinianas com as quais aprendo a alargar minha
vida, de êxodo em êxodo, de diálogo em diálogo, em comunhão com migrantes e
jovens, para receber o dom da comunhão na diversidade;
A minha querida mãe Geralda e aos queridos irmãos Rosângela e Rogério pelo
carinho, compreensão e força durante todo esse tempo, e ao querido pai Luciano,
que junto de Deus me deu segurança para ir até o fim;
Ao sempre querido Pe. Gabriele, amigo especial que me ensina o valor da vida no
Amor;
À querida Rachele, a quem tenho sempre um especial agradecimento no coração
pela amizade e que também nesse estudo soube estar próxima;
Ao Prof. Marcos Lorieri que com seu “jeitão” de ser mestre me cativou e soube
ser, com grande competência e exemplo, uma significativa presença nesse
caminho de Mestrado;
À Profª Laurinda que me acolheu no programa de Pós e, com seu jeito afetuoso
de ser, soube me direcionar sobre qual trilho seguir;
À Profª Heloisa por me acolher no grupo de pesquisa e partilhar, como
orientadora, desse aventuroso e desafiador caminho de estudos;
A Kátia que com grande carinho me ajudou no momento em que mais precisava;
Aos professores inesquecíveis: Vera Ronca, Carlos Luiz Gonçalves, Luzia
Orsolon e Marília Marino, pessoas que muito me ajudaram e que continuam a
serem mestres de grande admiração;
Aos colegas de Mestrado pela partilha e ajuda mútua nessa nova etapa de vida;
Aos colegas de OESE pelo caminho que iniciamos juntos na Educação e, do qual,
hoje essa dissertação se torna fruto;
À equipe do Abrigo Cristóvão Colombo, que me acolheu, ajudando-me a dar os
primeiros passos como educadora junto às crianças e famílias na esperança de
acreditar em um mundo melhor;
E, por fim, um agradecimento especial a todos da comunidade onde essa
pesquisa se inseriu, pelo testemunho de luta esperançosa, principalmente às
pessoas que, dispondo de seu precioso tempo, partilharam comigo a busca de
aprofundamento sobre a dialogicidade humana.
RESUMO
A presente pesquisa teve por objetivo investigar como gestores, educadores e representantes de uma comunidade, situada em um bairro na zona norte de São Paulo, compreendem diálogo, a partir da experiência vivida no processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico, que se fundamentou no pensamento de Paulo Freire. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que teve na entrevista reflexiva coletiva o meio para interrogar o fenômeno em estudo. Os resultados mostraram a compreensão de diálogo enquanto interação com alguém, por meio da conversa, da participação, do silêncio, da integração e da construção de conhecimento: a conversa foi apresentada como fala e escuta, gerando entendimento; o silêncio, como fala reprimida; a participação da construção do projeto político-pedagógico, como expressão de confiança na transformação desse contexto social; o processo de construção possibilitou maior integração entre as pessoas e uma nova disposição ao trabalho coletivo; o conhecimento emergiu relacionado aos movimentos de construção e descoberta, voltados a reviver o processo histórico vivenciado nessa comunidade. A construção de modo coletivo do projeto político-pedagógico foi identificada como vontade de dialogar, conduzindo-os a perceber a necessidade de maior disposição em ouvir o outro, atitude que exige disponibilidade de tempo. A partir da análise dos dados, relacionando com a teoria de Martin Buber e de Paulo Freire, foi possível identificar na compreensão do vivido o devir humano, em uma íntima relação entre diálogo, educação e transformação social. Constatou-se a necessidade de reflexão, de não considerar o outro como um objeto, indo além da compreensão de diálogo como técnica, a partir do momento em que se apreende o homem se constituindo enquanto ser de relações. Palavras-Chave: Educação; Diálogo; Projeto Político Pedagógico; Martin Buber; Paulo Freire
ABSTRACT
This study aimed to investigate how managers, educators and representatives of a community, located in a neighborhood in northern Sao Paulo, include dialogue from the experience in the construction of collective political and pedagogical project, which relied the thought of Paulo Freire. This is a qualitative research, which was reflective interview in the conference means to interrogate the phenomenon under study. The results showed the understanding of dialogue as interaction with someone, through conversation, participation, silence, integration and construction of knowledge: the conversation was presented as speaking and listening, creating understanding, the silence, as speech repressed; participation of the construction of political-pedagogical project, as an expression of confidence in the transformation of this social context, the construction process to enable greater integration between people and a new willingness to work collectively, and the knowledge emerged related to the movements of construction and discovery, facing revive the historical process experienced in this community. The construction of the collective mode of political-pedagogical project was identified as a willingness to talk, leading them to perceive the need for greater willingness to listen to the other, an attitude that requires time availability. From the analysis of data related with the theory of Martin Buber and Paulo Freire was able to identify the understanding of the lived human becoming, in an intimate relationship between dialogue, education and social transformation. We found a need for reflection, not to consider the other as an object, going beyond the understanding of dialogue as a technique, from the moment in which the man perceives it as being constituted of relations. Keywords: Education; Dialogue; Pedagogical Political Project, Martin Buber, Paulo Freire
RESUMEN
El presente estudio tiene como objetivo investigar como gestores, educadores y representantes de una comunidad situada en un barrio de la región norte de la ciudad de San Pablo, comprenden diálogo, a partir de la experiencia vivida en el proceso de construcción colectiva del proyecto político-pedagógico, que se fundamentó en el pensamiento de Paulo Freire. Se trata de una investigación cualitativa, que tuvo en la entrevista reflexiva colectiva el medio para interrogar el fenómeno en estudio. Los resultados mostraron la comprensión de diálogo, en cuanto interacción con alguien, por medio de la conversación, de la participación, del silencio, de la integración y de la construcción de conocimiento: la conversación fue presentada como habla y escucha, generando entendimiento; el silencio como habla reprimida; la participación de la construcción del proyecto político-pedagógico como expresión de confianza en la transformación de ese contexto social; el proceso de construcción hizo posible una mayor integración entre las personas y una nueva disposición al trabajo colectivo; el conocimiento emergió relacionado a los movimientos de construcción y descubierta, dirigidos a revivir el proceso histórico vivido en esa comunidad. La construcción de modo colectivo del proyecto político-pedagógico fue identificada como voluntad de dialogar, conduciéndolos a percibir la necesidad de mayor disposición en la escucha del otro, actitud que exige disponibilidad de tiempo. A partir del análisis de los resultados, relacionando con la teoría de Martin Buber y de Paulo Freire, fue posible identificar en la comprensión de lo vivido el devenir humano, en una íntima relación entre diálogo, educación y transformación social. Se constato la necesidad de reflexión, de no considerar el otro como un objeto, superando la comprensión de diálogo como técnica, a partir del momento en el cual el ser humano se aprende constituyéndose en cuanto ser de relaciones. Palabras-Claves: Educación; Diálogo; Proyecto Político-Pedagógico; Martin Buber; Paulo Freire.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................................... 10
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 15
CAPÍTULO 1 – MARTIN BUBER E PAULO FREIRE:
CONTRIBUIÇÕES ACERCA DA DIALOGICIDADE HUMANA ............................... 21
1.1 A concepção do homem como ser de relações em Martin Buber .............. 22
1.2 Os princípios dialógicos buberianos e o ato educativo ............................... 26
1.3 Paulo Freire e a compreensão do homem como ser de educabilidade
em um mundo de possibilidades ........................................................................... 32
1.4 Dialogicidade freireana .................................................................................... 38
CAPÍTULO 2 – O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E SUA
CONSTRUÇÃO COLETIVA ...................................................................................... 45
2.1 Em que consiste o projeto político-pedagógico?.......................................... 45
2.2 O sentido das palavras projeto político-pedagógico .................................... 46
2.3 A importância do planejamento educacional ................................................ 53
2.4 Uma experiência de construção coletiva
do projeto político-pedagógico .............................................................................. 55
CAPÍTULO 3 – A CONSTITUIÇÃO DA SITUAÇÃO DE PESQUISA.................... 60
3.1 Abordagem da pesquisa .................................................................................. 60
3.2 Participantes ..................................................................................................... 63
3.3 A questão do diálogo: como interrogar? ....................................................... 65
CAPÍTULO 4 – COMPREENDENDO UMA EXPERIÊNCIA
DE INTERAÇÃO HUMANA ...................................................................................... 72
4.1 Procurando interagir ........................................................................................ 72
4.1.1 Percebendo a interação humana como conversa ........................................... 73
4.1.2 Percebendo a interação humana como silêncio .............................................. 76
4.1.3 Percebendo a interação humana como participação ...................................... 77
4.1.4 Percebendo a interação humana como integração ......................................... 79
4.1.5 Percebendo a interação humana como construção de conhecimento ............ 80
4.2 O sentido de diálogo se desvelando no processo de construção
coletiva do projeto político-pedagógico................................................................ 82
4.3 Sintetizando a compreensão de uma experiência
de interação humana .............................................................................................. 87
CAPÍTULO 5 – SOBRE DIÁLOGO ....................................................................... 90
PERMANECENDO EM DIÁLOGO... ..................................................................... 105
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 107
ANEXOS ................................................................................................................. 113
10
APRESENTAÇÃO
Esta dissertação de Mestrado inclui contatos e experiências em um projeto de
pesquisa, sob o título “Diálogo e Participação: a prática dialógica na família,
escola e comunidade”, em andamento em um bairro da zona norte de São Paulo,
coordenado pela professora Profª Drª Heloisa Szymanski. É um projeto da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), em parceria com a
associação Educacional Labor, uma organização não governamental que
desenvolve atividades em escolas públicas, proporcionando reflexões sobre a
prática educativa em sala de aula e sobre a gestão participativa na escola.
Esse projeto, nesta pesquisa sob a denominação de “Diálogo e Participação”, visa
acompanhar gestores, educadores e famílias que vivem em uma comunidade
desse bairro, buscando criar “rede” de relações entre pessoas, em vista de
estabelecer uma continuidade de proposta educacional entre três organizações
educativas presentes nesse contexto: um Centro de Educação Infantil (CEI), uma
Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF)1 e um Centro Agente Jovem2
(Agente Jovem), tendo como fundamentação teórica a pedagogia de Paulo Freire.
Essa comunidade é composta por famílias, a maioria constituídas por migrantes
do nordeste do Brasil e do interior de São Paulo.
Cabe lembrar que, nos anos de 60, a economia brasileira conheceu uma
expansão recordista até metade dos anos de 70, possibilitada pela grande
exploração da mão-de-obra barata e também pelas matérias primas abundantes.
1 As atividades do “Diálogo e Participação” desenvolvidas na EMEF não fizeram parte desta
pesquisa, pois meu envolvimento nesse contexto esteve limitado ao processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico do CEI e do Agente Jovem. 2 O Agente Jovem está relacionado ao projeto proposto pela Secretaria do Estado de Assistência
Social (SEAS) denominado “Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano”. É uma proposta para jovens de 15 a 17 anos de idade, que se encontram em situação de vulnerabilidade social. É um incentivo aos Municípios para promoverem atividades pedagógicas continuadas para o desenvolvimento juvenil, levando em conta a relação do jovem com a família, com a comunidade e com o mundo do trabalho. Oferece verbas para as comunidades desenvolverem esse projeto e prevê uma bolsa de setenta e cinco reais por mês para cada jovem, que se compromete em ter frequência mínima de setenta e cinco por cento no ensino formal e no próprio projeto.
11
No contexto da ditadura militar, onde o governo exercia papel fundamental na
manutenção da sociedade capitalista, o país abriu as portas para os
investimentos das multinacionais estrangeiras. A riqueza crescia, mas para uma
minoria de 20%, com o agravamento da miséria de 80% da população (FREIRE;
CEDAL; CEDETIM, 1979).
A desastrosa situação social de pobreza provocou o aumento incessante das
migrações internas em busca de sobrevivência, sobretudo desde a década de 60.
O deslocamento populacional no espaço geográfico do Brasil atingiu, nos anos
70, cerca de um terço de sua população, segundo os dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílio (PNAD): os migrantes internos no país atingiram 37,5
milhões. O fluxo que se originou no Nordeste, em Minas Gerais e Espírito Santo,
desembocou em São Paulo, que recebeu mais de 3 milhões de migrantes até
1970, elevando-se o total para 4,3 milhões em 1976. A migração interna é o fator
mais decisivo para o aumento das favelas em São Paulo, que em 1972 tinha 42
mil moradores em favelas e em 1979, 880 mil (CENTRO DE ESTUDOS
MIGRATÓRIOS, 1980).
Essas migrações caracterizaram a formação das periferias dos grandes centros
urbanos, constituindo um período de grande movimentação e de ocupações
também nesse território onde realizamos esta pesquisa.
As migrações internas continuam atualmente. Os dados dos últimos Censos
reafirmam o papel de São Paulo enquanto grande receptor de migrantes, segundo
Baptista (2009), aumentando seu saldo migratório de 77 mil pessoas por ano na
década de 80, para 123 mil pessoas anuais na década de 90. Na análise dos
dados do Censo de 2000, pôde-se ver que São Paulo continua atraindo migrantes
e a favela é um dos locais da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) que
mais abriga o migrante nordestino: entre os 912.978 moradores em favelas,
47,46% não nasceram no município de São Paulo e 60,69% estão no município
há menos de cinco anos. A região de origem dos migrantes em favelas é o
Nordeste, ou seja, em 1991, 70% nasceram no Nordeste e, em 2000, 74,68% têm
origem do Nordeste (BAPTISTA, 2009).
12
O bairro situado na zona norte de São Paulo, onde esta pesquisa se insere, foi
uma das regiões que recebeu grande fluxo migratório entre os anos de 1960 e
1970. As casas que iam sendo construídas nessa região eram, na sua maioria,
em terrenos ocupados. As famílias que compõem essa região vivem ainda em
situação de alta taxa de vulnerabilidade social, faltam saneamento básico,
escolas, e há muita violência e desemprego.
O grupo de gestores, educadores e representantes da comunidade, que
participou desta pesquisa, faz parte da história de luta de uma comunidade
pertencente a esse bairro da zona norte de São Paulo. A comunidade que nasceu
nos anos de 1980, caracterizava-se como uma das mais carentes dessa região. A
sua história teve início também por meio de uma ocupação irregular por várias
famílias, a maior parte nordestinas. Essas famílias que ali viviam, partilhavam as
mesmas situações precárias como, por exemplo, a falta de água encanada, luz
elétrica, segurança, além do risco de perderem o improvisado abrigo, dado que o
proprietário havia recorrido à Justiça para a reintegração de posse do terreno.
Dificuldades como essas motivaram a solidariedade e a união entre os
moradores, juntamente com os padres de uma igreja católica da região. Dessa
forma, no ano de 1991, criou-se uma associação de moradores de bairro, como
estratégia para busca de melhorias para uma ocupação irregular que, pouco a
pouco, tornava-se uma grande comunidade. Uma das primeiras conquistas foi a
implantação do CEI, em 1992, que na época era chamado de creche. Uma vitória,
mas também uma resposta para uma situação que era notória: as crianças
daquela região, daquela comunidade, não tinham nenhum serviço a elas
dedicado. Pais e/ou familiares eram obrigados a deixar suas crianças sozinhas
em casa, para poderem trabalhar.
Foi uma grande luta manter as atividades do CEI, que esteve sustentado pela
generosidade e colaboração de muitos. Atualmente, acolhe em torno de cento e
vinte crianças, de zero a seis anos de idade. É uma escola conveniada com a
Prefeitura.
Ainda em 1992, foi realizado o primeiro acordo judicial para a compra da terra, a
qual foi efetivada após dois acordos seguintes. Por meio de várias atividades
13
comunitárias e ajudas, com mediação da associação de moradores do bairro, as
famílias dessa comunidade conseguiram a renda necessária para a compra do
terreno, regularizando sua situação com a posse do terreno.
No âmbito sócio-educativo, essa comunidade, ao longo da sua trajetória, fez
parcerias importantes, até mesmo com uma ONG internacional, para buscar
melhor qualidade de vida para os moradores, focalizando, sobretudo, as crianças
e os jovens da comunidade. Criaram vários projetos sociais, um deles é o Agente
Jovem, que surgiu no ano de 2003 devido à preocupação dos moradores da
comunidade com a situação dos jovens nesse local, vulneráveis a violências
várias. Inicialmente, era um trabalho voluntário, sendo institucionalizado,
enquanto organização educativa, vinculando-se à proposta do SEAS, como
referido anteriormente.
Atualmente, o Agente Jovem acolhe cerca de cem jovens, de quinze a dezessete
anos de idade. A proposta sócio-educativa desenvolvida acontece de segunda a
quinta-feira, no período matutino e vespertino, e está organizada da seguinte
forma: atividades em sala (onde os educadores propõem reflexão e dinâmica de
grupo mediado por textos ou filmes pedagógicos), esporte (realizado na quadra
como futebol, vôlei, capoeira) e ação comunitária (atividades voluntárias na
comunidade).
Do projeto “Diálogo e Participação” surgiu, em 2006, a demanda dessa
associação de moradores do bairro por maior apoio às atividades educacionais do
CEI e do Agente Jovem. Fizeram, portanto, nesse mesmo ano, um levantamento
da realidade educacional dessas duas organizações educativas, tal como era
percebida por seus protagonistas: educandos, famílias, educadores, gestores e
representantes da comunidade.
Das demandas levantadas verificou-se, de modo geral, a necessidade de planejar
atividades pedagógicas e de gestão, que levou educadores, pais e funcionários a
elaborar planos de ação, a fim de encaminhar as necessidades eleitas,
diversificando as propostas segundo o objetivo de cada organização sócio-
educativa.
14
Um ano após a experiência do levantamento, realizou-se, no espaço do centro
comunitário, um encontro de reflexão sobre o andamento das propostas feitas.
Estavam presentes diretores da associação, gestores, representantes dos
educadores e dos funcionários do CEI e do Agente Jovem e pesquisadores do
projeto “Diálogo e Participação”.
Constataram-se algumas dificuldades permeando o cotidiano do CEI e do Agente
Jovem: falta de clareza sobre as linhas pedagógicas que norteavam suas ações,
dificuldade de sistematização das propostas a serem adotadas pelo grupo e
existência de práticas incoerentes entre gestores e educadores, e entre os
próprios educadores. Diante dessa realidade, chegou-se à compreensão da
necessidade de ter um projeto que contivesse concepções e valores, a serem
assumidos por todos.
Os pesquisadores presentes disseram que se tratava da construção do projeto
político-pedagógico. Verificaram-se falta de conhecimento, por parte da maioria
dos gestores, educadores, famílias e funcionários de ambas as organizações
educativas quanto ao significado do que é um projeto político-pedagógico.
Emergiu o interesse de buscar compreender melhor sobre sua concepção e
elaboração. Os pesquisadores perceberam que poderiam oferecer o subsídio
teórico e metodológico solicitado, em vista da elaboração coletiva do projeto
político-pedagógico. Essa colaboração recebeu o nome de Apoio à Gestão, tendo
por fundamento a proposta dialógica de Paulo Freire.
Esse processo de construção coletiva foi o contexto que deu origem à presente
pesquisa. Participando dos encontros com o Apoio à Gestão, tive a possibilidade
de conhecer o trabalho dessa comunidade. Considerando que pensamento e vida
são duas realidades humanas inseparáveis, durante o contato com esse grupo
que se encontrava regularmente para, a partir da dialogicidade freireana, construir
coletivamente o projeto político-pedagógico, indagava-me: qual seria a
compreensão de diálogo vivenciada por eles? Essa inquietação gerou a presente
pesquisa.
15
INTRODUÇÃO
São várias as formas de abordar o diálogo no âmbito educativo pelas pesquisas
atuais: buscam ora identificar situações não dialógicas, ora conceituar diálogo,
trazendo exemplos de situações e dimensões específicas do agir pedagógico.
Alguns pesquisadores têm procurado responder à pergunta “o que é o diálogo?”,
entre os quais Gonçalves (2005), que considera o diálogo como constituído por
dois movimentos que se relacionam entre si, de modo dinâmico: a relação entre
interlocutores, através da comunicação, verbal e não-verbal; a aproximação ao
objeto do diálogo, da parte de ambos os interlocutores. O que faz com que esses
dois movimentos sejam parte um do outro é o “espaço de encontro do eu com o
outro [...] esse espaço é fundante do diálogo e sua compreensão traz em seu bojo
a questão ética que o alicerça: Qual o sentido da relação do eu com o outro?”
(GONÇALVES, 2005, p. 40 – grifo da autora).
Essa autora, trazendo contribuições de Martin Buber e Hans-Georg Gadamer,
mostra que essa pergunta direciona ao aprofundamento de conceitos como
reciprocidade, mutualidade, reconhecimento da alteridade, abertura. “Na relação
com o outro, o diálogo ocupa um lugar central, pois, mesmo quando há oposição,
ao dialogar, eu afirmo ou confirmo o outro em sua realidade existencial” (idem,
2005, p. 41).
Dalbosco (2006) considera o diálogo como “elemento central para assegurar a
passagem do fazer pedagógico ao agir pedagógico”. Define o fazer como uma
prática ausente de reflexão, uma experiência não problematizada, que procura a
teoria somente para legitimar escolhas prévias, instrumentalizando-a; é um fazer
caracterizado pela incapacidade de dialogar. A possibilidade de passar ao agir
pedagógico se dá através da “desdogmatização da prática” e
“desinstrumentalização da teoria”, com a hipótese que possa ser atingido esse
propósito “na medida em que o fazer pedagógico for associado à problematização
filosófica da ação humana” (DALBOSCO, 2006, p. 175).
16
Mesmo sendo a ação pedagógica o foco da reflexão de Dalbosco (2006), o
diálogo é central em sua reflexão, por considerar o “agir pedagógico como um agir
dialógico”, buscando definir tanto o diálogo quanto situações de não-diálogo. Para
o autor, o diálogo tem caráter problematizador, pressupondo uma mínima pré-
compreensão e clareza sobre seu objeto. E, sendo o agir pedagógico um
processo que se dá na interação entre pessoas, exige “um tipo de interação
voltada, predominantemente, à formação dialógica de seres humanos”
provocando a “capacidade para o diálogo vivido e, com ele, a capacidade de ir ao
encontro dos outros” (idem, 2006, p. 178).
No decorrer de sua reflexão, surge a relação entre a ausência do diálogo e a
ausência de um método, em sala de aula. Todavia, essa é uma afirmação tratada
com muita cautela pelo autor, uma vez que, ao trazer a contribuição de Gadamer,
a questão do método é problematizada, não se identificando com uma postura
positivista, como se fosse um procedimento instrumental, vinculando método e
técnica. Relaciona método e diálogo, segundo Gadamer, não como técnica, por
duas razões: na história da filosofia, o diálogo é “condição de possibilidade do
exercício filosófico e de outras atividades humanas num sentido mais amplo”; e
quanto mais a sociedade contemporânea “se desenvolve, técnico-cientificamente,
mais incapazes as pessoas se tornam para o diálogo [...] O homem
contemporâneo parece ter pânico do silêncio e da escuta e sem eles, como nos
ensina Gadamer, não pode tornar-se capaz de diálogo” (DALBOSCO, 2006, p.
182-183).
Mariotti (2001) enfatiza a necessidade de questionar-se sobre a própria
compreensão do que é diálogo, a motivo de um uso do termo, por vezes,
inadequado. Indica que erroneamente é relacionado a uma interação verbal do
tipo discussão/debate, na qual “os participantes defendem posições, argumentam,
negociam e, eventualmente, chegam a conclusões ou acordos”. Negociar significa
descartar algumas ideias, tidas como “vencidas”.
O diálogo, segundo o autor, é “uma atividade cooperativa de reflexão e
observação da experiência vivida”, considerado como uma “metodologia de
17
conversação”, como uma técnica3 (MARIOTTI, 2001, p. 7), buscando compartilhar
e criar significados, ideias, modos de ver. No entanto, diálogo e debate/discussão
não se excluem como se fosse possível viver somente um ou outro, são
complementares.
A cultura atual está condicionada por tendências contrárias à dialogicidade
humana. São elas: fragmentação, imediatismo, super-simplificação4. Tais
tendências dificultam a escuta do que o outro tem a dizer, buscando logo
comparar com referenciais prévios, concordando ou discordando com o que está
dizendo, interrompendo a escuta, negando a novidade presente naquilo que diz,
negando a própria existência de quem nos fala. O diálogo busca superar tal
automatismo, suspendendo temporariamente as “certezas”, para ouvir o outro
(idem, 2001).
Recorrendo ao sentido etimológico da palavra diálogo, Mariotti (2001) explica que
a intenção do diálogo, ao invés de fragmentar, é unir o que está desconectado:
O termo “diálogo” resulta da fusão das palavras gregas dia e logos. Dia significa “por meio de”. Logos foi traduzida para o latim ratio (razão), mas tem vários outros significados, como “palavra”, “expressão”, “fala”, “verbo”. Dessa maneira, o diálogo é uma forma de fazer circular sentidos e significados. Num grupo que dialoga, as palavras circulam entre as pessoas, passam através delas sem que sejam necessárias concordâncias, discordâncias, análises ou juízos de valor. [...] na experiência dialógica, a palavra liga, permeia, em vez de separar. Aglutina, em vez de fragmentar (MARIOTTI, 2001, p. 10 – grifos do autor).
No âmbito da educação escolar, o que instaura a condição do ser docente é
justamente uma relação: aquela entre docente e discente (TEIXEIRA, 2007),
sendo que a existência de um depende da do outro. Essa relação tem suscitado
reflexão, busca de conhecer as implicações do diálogo (estabelecido, mantido ou
3 Apesar de usar o termo “técnica”, Mariotti (2001) adverte que as regras apresentadas enquanto
metodologia dialógica não devem ser observadas rigidamente, como se existisse um “padrão de comportamento ideal” tido como modelo. Enfatiza que “o compromisso básico de quem entra em um grupo de diálogo é suspender a atitude habitual” (idem, p. 12), identificar os pressupostos e suspendê-los, por um momento. Seria a abertura ao outro, porque “dialogar é antes de mais nada aprender a ouvir” (idem, p. 15), por isso, o silêncio é parte do processo dialógico. No diálogo, pode-se até mesmo expor os próprios pressupostos aos outros, para uma reflexão e compreensão diante de novas perspectivas. 4 Trata-se de um modo de conhecer, empregado e valorizado pela ciência e tecnologia: fragmentar
o objeto em partes para depois buscar a síntese; sistema causa-efeito; padrão binário de percepção da realidade, por exemplo: ou certo ou errado; busca de objetivar e quantificar, em detrimento da subjetividade e das dimensões qualitativas (MARIOTTI, 2001, p. 8).
18
rompido) entre esses dois interlocutores, no processo educativo
(VASCONCELOS, et al, 2005; LOMAR, 2007; GIRCOREANO, 2008).
Colocar o foco na relação entre educador e educando, considerando a escola
como lugar central onde essa convivência ocorre por mais tempo, não significa
desconsiderar a importância de toda a rede de interações: seja entre os
educadores, entre os educandos, com outros profissionais da escola, gestores,
famílias, comunidades do entorno. (TEIXEIRA, 2007) A relação dos educadores
com as famílias, por exemplo, tem sido objeto de estudo mostrando o quanto os
familiares são necessários parceiros do processo de ensino-aprendizagem
(BORSATO, 2008; SILVA, 2008b).
Tem-se debatido, nos estudos de educação à distância, sobre o sentido atribuído
à relação entre educador e educando, quando acontece de modo virtual. Uma das
ferramentas hoje utilizada no ensino à distância é a chamada cibercultura (relação
de trocas entre sociedade, cultura e tecnologia, por meio do computador, da
internet e de outros meios de telecomunicações). Vale lembrar, no entanto, tratar-
se de meios, e assim devem ser tomados, tendo em foco a finalidade da
educação (MACHADO, 2004).
Até mesmo quem pesquisa o tema parte de um questionamento sobre a interação
entre educador e educando, seja em aula presencial como à distância,
considerando a importância da participação e do diálogo no processo ensino-
aprendizagem. O educando não deve ser mero receptor passivo, mas é preciso
que lhe seja dada a possibilidade de interagir, no caso, fazer seu próprio percurso
na rede, através das possibilidades de hipertexto, modificar conteúdos, emitir
novas informações; de fato, conceito chave é a interatividade.
Para que a nova ferramenta seja explorada em todo seu potencial, é necessário
superar o modelo de transmissão de conhecimento unidirecional, do educador ao
educando (SILVA, 2004). Educadores e educandos como “agentes do processo
de comunicação e de aprendizagem, em sintonia com a dinâmica comunicacional
da cibercultura” (SILVA, 2008a, p. 69).
19
O recorte desta pesquisa está limitado à compreensão de diálogo na interação
face a face entre educadores, gestores e representantes da comunidade, que há
quatro anos estão aprofundando a pedagogia dialógica de Paulo Freire5 enquanto
referência para suas atividades educativas, desenvolvidas no CEI e no Agente
Jovem. Esta é uma pesquisa que tem como fundamentação teórica o pensamento
de Paulo Freire e de Martin Buber, considerados grandes pensadores da
dialogicidade humana.
Pesquisas sobre o diálogo na educação a partir do pensamento de Martin Buber
e/ou Paulo Freire têm sido realizadas no Brasil, sob diferentes perspectivas,
como: o significado da formação humana em Martin Buber, a partir da noção de
diálogo e da responsabilidade dos educadores (SANTIAGO, RÖHR, 2006); o
conceito de diálogo, em estudo comparativo entre Martin Buber e Paulo Freire,
justificando tal aprofundamento por ser o diálogo uma dimensão fundamental na
prática pedagógica (CORTEZ, 2007); a busca da categoria do diálogo, em Martin
Buber e em Paulo Freire, para fundamentar uma educação intercultural, dialógica
(MOTA NETO; BARBOSA, 2005); diálogo na relação professor-aluno, a partir de
Paulo Freire (VASCONCELOS, et al, 2005).
A presente pesquisa tem por objetivo investigar como gestores, educadores e
representantes de uma comunidade, situada em um bairro na zona norte de São
Paulo, compreendem diálogo a partir da experiência vivida no processo de
construção coletiva do projeto político-pedagógico, que teve como fundamento o
pensamento de Paulo Freire.
No primeiro capítulo, apresentamos a perspectiva teórica na qual este trabalho se
fundamenta. Realizamos uma leitura analítica de obras de Martin Buber e de
Paulo Freire a fim de apreender em suas reflexões o significado de diálogo. Martin
Buber, uma das fontes do pensamento de Paulo Freire, afirma que o homem,
enquanto ser que se constitui em um processo histórico, é ser de relações. Vimos
5 Os conceitos freireanos assumidos pela comunidade aqui referida, na busca de valorizar as
relações interpessoais entre os moradores da comunidade, foram introduzidos por um grupo de pesquisadores da PUC-SP, que desde 2005 desenvolvem trabalhos de pesquisa nessa comunidade.
20
que Paulo Freire, em sua filosofia, aponta para a existência humana constituindo-
se em um processo contínuo de humanização.
O processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico, por ser uma
experiência em que se buscou a prática dialógica entre seus participantes, foi a
situação educacional à qual os participantes desta pesquisa se voltaram para
refletir sobre a própria compreensão de diálogo. O segundo capítulo apresenta
em que consiste um projeto político-pedagógico, sob perspectiva de algumas
pesquisas na área e a importância do planejamento educacional. Apresentamos
também nesse capítulo o relato do processo de sua construção coletiva vivida
pelos participantes desta pesquisa.
O terceiro capítulo visa apresentar ao leitor a abordagem da pesquisa, bem como
a descrição dos procedimentos utilizados para interrogar a compreensão de
diálogo de um grupo de onze pessoas composto por gestores, educadores e
representantes da comunidade.
A “imersão” nos dados, a fim de entrever unidades de significado em torno do
fenômeno em estudo, resultou na identificação de categorias e subcategorias que
estão apresentadas no quarto capítulo desta pesquisa.
A discussão dos dados, colocando-os em interação com a teoria estudada,
constitui o quinto capítulo. E, por fim, apresentamos algumas considerações sobre
este estudo.
21
CAPÍTULO 1
MARTIN BUBER E PAULO FREIRE:
CONTRIBUIÇÕES ACERCA DA DIALOGICIDADE HUMANA
Os dois grandes pensadores Martin Buber e Paulo Freire, mesmo pertencendo a
épocas e contextos diferentes, ambos instigados pela complexidade da vida do
ser humano e pelos conflitos históricos de seu tempo, interrogam-se sobre o
pensamento e a ação humana na busca de propor, cada um, uma filosofia do
diálogo como resposta aos anseios do homem em sua relação com o mundo e
com o outro.
Martin Buber nasceu em Viena (Áustria), em 1878. Estudou filosofia,
germanística, história da arte, sociologia. Suas obras transitam nos campos da
teologia, da Filosofia e da Antropologia. Judeu, pertenceu ao movimento sionista
e ao hassidismo. É um dos principais filósofos do diálogo. Seu pensamento sobre
o diálogo é uma proposta que quer guiar o homem a encontrar na relação
interpessoal (com os outros e com Deus) a plenitude de sua humanidade, na
superação do individualismo, do coletivismo e do ateísmo.
Paulo Reglus Freire nasceu em Recife, Pernambuco, em 1921. Formou-se em
Direito. Teve grande atuação na alfabetização de adultos, criando um método de
alfabetização fundado na situação de vida do educando. De intensa atividade
político-pedagógica, no Brasil e em outros países, Paulo Freire faz suas as ideias
de Martin Buber sobre o diálogo, e também com referência a outros teóricos,
constrói sua compreensão sobre a prática dialógica no contexto educacional.
Ambos vêem na compreensão da dialogicidade, o caminho para se viver de modo
mais profundo a humanidade do homem. Essa reflexão é para este estudo uma
importante referência a fim de pensarmos o sentido de diálogo na situação
educacional da construção coletiva do projeto político-pedagógico, em vista de
22
refletirmos uma educação que considera a pessoa em todo seu valor relacional e
possibilita renovação da sociedade e de suas estruturas.
A partir da categoria do diálogo expressa no pensamento desses dois autores,
este capítulo visa possibilitar uma abertura à complexidade que essa temática
comporta, buscando valorizar aspectos que contribuam para a elaboração deste
estudo, os quais são: a compreensão de diálogo no âmbito das relações
interpessoais, evidenciada particularmente por Martin Buber, e a perspectiva
político-pedagógica do diálogo em vista de transformação social, indicada por
Paulo Freire.
Em primeiro lugar, apresentaremos os conceitos principais de Martin Buber sobre
o homem como ser de relações e, logo em seguida, algumas de suas reflexões
sobre o ato educativo. Posteriormente, indicaremos as ideias de Paulo Freire
sobre o homem enquanto ser de educabilidade em um mundo em devir e sobre a
dialogicidade humana. Sendo Martin Buber uma das fontes do pensamento de
Paulo Freire, apontaremos nas reflexões freireanas, alguns elementos dessa
influência.
1.1 A concepção do homem como ser de relações em Martin Buber
Martin Buber, em seu livro Eu e Tu – considerado o fundamento de sua filosofia
dialógica, publicado pela primeira vez no ano de 1923 –, apresenta um estudo
sobre a ontologia da relação enquanto condição existencial entre os seres
humanos; entre o homem e a natureza; entre o homem e Deus.
Propõe uma reflexão ontológica sobre a palavra, entendendo ser por meio dela
que o homem se introduz na existência. Apresenta o ser humano não como um
ser-para-si, mas um ser-no-mundo que se realiza na relação que o leva a proferir
as duas palavras consideradas princípio de sua existência: Eu-Tu e Eu-Isso.
23
O mundo humano é duplo, afirma Martin Buber, por ser a dualidade existente na
atitude do homem que volta-se à realidade para pronunciar as duas “palavras-
princípio”, que o conduz a ser, caracterizadas nas expressões Eu-Tu e Eu-Isso.
Para o autor, a fonte dessa dualidade está na compreensão do homem existindo
em relação. O Eu do homem é duplo por existir penetrado ora no encontro com o
Tu, ora na relação com o Isso.
Pronuncia-se Isso6 na interação do homem com o mundo na intenção de
conhecê-lo por meio da experiência. A experiência Eu-Isso é o ato de transformar
a realidade encontrada como objeto de conhecimento. O mundo do Isso tem
sempre algo por objeto. Assim, o Eu-Isso está voltado à uma atitude cognoscitiva,
à experiência do homem com a realidade que o circunda de modo objetivo.
A aproximação do homem ao mundo não acontece somente por meio da
exploração das coisas a fim de experimentá-las, mas é também expressão do seu
desejo de estabelecer um encontro, ou melhor, encontrar o outro não confinado
ao próprio “reino”, mas na abertura a algo totalmente novo. Nessa dimensão, vive-
se, entre homem e mundo e entre homem e homem, um encontro estabelecido no
além de si. É nesse sentido que Buber apresenta a atitude Eu-Tu como atitude
estabelecida na reciprocidade do Tu atuando com o Eu, e do Eu atuando com o
Tu.
O homem não é uma coisa ou formado por coisas quando, estando eu presente diante dele, que já é meu tu, endereço-lhe a palavra-princípio. Ele não é um simples Ele ou Ela limitado por outros Eles ou Elas, um ponto inscrito na rede do universo de espaço e tempo. Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienciável, descritível, um feixe flácido de qualidades definidas. Ele é Tu, sem limites, sem costuras, preenchendo todo o horizonte. Isto não significa que nada mais existe a não ser ele, mas que tudo o mais vive em sua luz (BUBER, 2006, p. 57 – grifo do autor).
6 Cabe esclarecer que, na concepção de Martin Buber, as “palavras-princípio” Eu-Isso e Eu-Tu
não são concebidas separadamente, por serem ambas uma única realidade existindo na dualidade; tanto o Isso, quanto o Tu não existem como realidades singulares, mas unidas ao Eu, e vice versa. A separação que apresentamos em alguns momentos deste estudo é somente para fins de explicação.
24
O diálogo fundamenta a existência humana, que exige do encontro Eu-Tu7 um ato
totalizador, uma con-centração de todo o seu ser. No encontro com o outro, o
homem age não somente como racionalidade da razão, mas também com todas
as suas manifestações humanas, a fim de abrir-se sem reservas à acolhida de
algo novo.
Ressaltamos que a atitude Eu-Isso não é considerada por Martin Buber como
uma expressão negativa do homem, uma vez que é por meio dela que ele se
coloca diante do mundo para conhecê-lo e explorá-lo, compreendendo e
assimilando as aquisições da história humana. No entanto, quando o Eu-Isso se
torna um relacionamento de domínio, uma prática provinda da posse de objetos
ou de realidades não-objetivas reduzidas a objetos, nesse caso, torna-se fonte de
destruição do ser, um obstáculo à força de relação.
A principal intuição de Martin Buber é o conceito de relação entre: entre os seres
humanos, entre o homem e o mundo, e entre o homem e Deus. No encontro Eu-
Tu não há mediação, não há interposição de ideias, pre-conceitos, imaginação; o
encontro passa dos detalhes à totalidade do ser. “Todo meio é obstáculo.
Somente na medida em que todos os meios são abolidos, acontece o encontro”
(BUBER, 2006, p. 59).
Apresenta o conceito de intencionalidade referindo-se àquilo que se explica no
entre a consciência e o mundo objetivo. O retornar-se-para-si acontece somente
por meio do movimento de voltar-se-para-o-outro no encontro inter-humano. É a
condição humana de existir na tensão entre o eu e o outro, transformada em
relação recíproca entre dois pólos.
No ato de experienciar a realidade, há um distanciamento do encontro com o Tu.
As ações mais comuns na vida cotidiana do homem estabelecem-se nesse
distanciamento, necessário para sua sobrevivência. No entanto, os momentos em
que o homem encontra o outro como outro, sem obstáculos, mesmo sendo os
7 É importante esclarecer que Martin Buber considera o encontro Eu-Tu não somente reduzido ao
encontro entre homens, refere-se também à relação que cada homem poderá estabelecer com uma planta, um animal, uma pedra.
25
mais raros, eles nunca serão perdidos em sua consciência, sendo o homem
intencionado a buscá-los; a almejar repetí-los.
Deste modo, a existência do outro torna o instante vivido na relação, uma
presença que continua viva na consciência do homem. A experiência no Eu-Isso
leva à satisfação em coisas utilizadas, tornando-se passageira, passado. Mas a
presença não é fugaz, ela permanece: “O essencial é vivido na presença, as
objetividades no passado” (BUBER, 2006, p. 60).
No ensaio Diálogo, publicado em 1930, Martin Buber aprofunda suas reflexões
acerca do diálogo. Diz ser dialógico o comportamento dos homens um-para-com-
o-outro antes de qualquer fala e comunicação; é reciprocidade de ação interior.
“Dois homens que estão dialogicamente ligados devem estar obviamente voltados
um-para-o-outro; devem, portanto, – e não importa com que medida de atividade
ou mesmo consciência de atividade – ter-se voltado um-para-o-outro” (BUBER,
2007, p. 41).
Perceber diante de si um homem ou natureza existindo como presença, diz Martin
Buber, é algo que vai além do olhar observador ou contemplativo. Observar é
estar concentrado para gravar traços, imprimir um rosto. A contemplação, pelo
contrário, é uma ação desprovida de concentração, deseja-se ver o objeto
livremente, sem impor tarefas à memória. Em ambas as percepções, seja na
experiência de observar, seja na de contemplar, o objeto se separa de si e da
própria vida pessoal.
Um encontro tornado presença acontece quando se percebe o outro a partir da
própria abertura receptiva àquilo que ele “diz” por simplesmente ser; é presença
que fala algo e que penetra dentro da existência do receptor. Desse modo, o
homem, ser de relações, percebe-se existindo enquanto ser de responsabilidade,
ou melhor, existindo enquanto respondedor a e por algo ou alguém.
“Respondemos ao momento, mas respondemos ao mesmo tempo por ele,
responsabilizamo-nos por ele. Uma realidade concreta do mundo, novamente
criada, foi-nos colocada nos braços: nós respondemos por ela” (BUBER, 2007, p.
50). O homem que responde ao seu Tu instaura “diá-logo” e a “inter-ação” do Eu
confirma o ser do Tu.
26
Para que o homem possa sair-de-si-mesmo-em-direção-ao-outro, ele tem que
partir do próprio interior, ou seja, antes de dar-se-ao-outro, precisa ter-estado-em-
si-mesmo. É somente entre pessoas que o homem se realiza.
No mundo do Isso paira a presença do Tu. O homem atua no mundo por meio de
sua capacidade de utilizar e recriar a realidade, junto com outros homens. Na
participação da vida coletiva, organizada em instituições, as pessoas não se
subtraem aos encontros com o Tu tornado presença; vivem no mundo do Isso
ligadas entre elas por meio de uma força de relação que penetra tudo, todas as
formas, estruturas e organismos em que se expressa a vida comum. Essa vida
não encontra sentido em um simples cumprir de tarefas, mas na transfiguração do
mundo do Isso, em direção ao mundo do Tu, gerando comunidade.
Com base nesses principais conceitos buberianos sobre o homem enquanto ser
de relações, em seguida veremos como se expressam no ato educativo, por
Martin Buber compreendido como uma atuação voltada à totalidade do ser.
1.2 Os princípios dialógicos buberianos e o ato educativo
Martin Buber, convidado a fazer o discurso de abertura da Terceira Conferência
Internacional de Pedagogia, em Heidelberg (Alemanha), no ano de 1925, inicia
sua exposição trazendo para o centro de seu discurso a criança e a compreensão
de sua condição.
Para Martin Buber, a criança é realidade de recomeço; possibilidade de a
humanidade ter um novo início. O gênero humano tem diante de si a chance de
recomeçar a cada momento que uma criança chega ao mundo, por ela inovar o
percurso de vida da humanidade ao relacionar-se com a história de gerações
passadas e com um mundo que se pronuncia em uma determinada direção.
Essa reflexão leva-nos a compreender a história humana como processo em
contínua transformação, ou seja, acreditar na novidade da qual a criança é
27
portadora, é compreender o mundo humano em seu devir, onde cada pessoa na
sua diversidade e unicidade é possibilidade de propostas ao mundo.
Nesse quadro, Martin Buber aponta uma importante questão para a educação:
zelar pela força do novo a fim de que se mantenha no renovamento. A ação
educativa tanto poderá obscurecer a luminosidade da criança, quanto será capaz
de iluminá-la ainda mais. “Assim é a educação: quando finalmente surgir e existir,
ela será capaz de fortalecer no coração daquele que age a força capaz de
iluminar” (BUBER, 2004, p. 162).8
No encontro educativo, Martin Buber da relevância na relação mútua manifestada
no vínculo entre educador e educando.
A força da inovação encontra possibilidade de manifestação na criatividade
humana, definida por ele como impulso de criação. Considera esse impulso como
a manifestação humana mais elevada, que é aquela de plasmar.
O impulso de criação, muitas vezes, no processo de escolarização é reduzido a
uma simples ação de imitação, ou somente ao prazer de dar forma a uma
matéria, ou então à capacidade artística a ser desenvolvida e sobre a qual a
educação da pessoa em sua totalidade está fundamentada. Segundo Martin
Buber, o impulso de criação tem um sentido mais amplo. Por meio dele o homem
age espontaneamente, a fim de fazer coisas, de participar, como sujeito do
processo de produção, na origem de algo que está por vir e que antes não existia.
Martin Buber considera que os impulsos presentes no homem são autônomos.
Cada um não exerce domínio sobre outro, e nem busca sufocar outro aspecto de
manifestação da alma humana, na qual existem como uma realidade múltipla de
interação harmônica. Opõe-se, assim, a certas tendências de correntes
psicológicas que, segundo ele, reduzem a multiplicidade e a complexidade do
interior humano simplificando suas manifestações a poucos elementos. O uso do
impulso de criação em si, ausente de vínculos com situações ou pessoas, conduz
8 Tradução nossa: “Così è l‟educazione: quando finalmente sorge ed esiste, essa sarà capace di
rafforzare nel cuore di colui che agisce la forza capace di far luce”.
28
o homem ao próprio isolamento, porque privado de duas funções indispensáveis à
existência: a participação e a reciprocidade.
O homem se alegra por produzir e transformar uma idealização em algo concreto,
por realizar uma intuição ou desejo, mas aquilo que ele produz não o fará capaz
de reciprocidade se o que vivencia se limitar ao âmbito da experiência do Eu-Isso.
Somente a partir do momento em que o homem faz-se presente a uma realidade
(natureza, homem, Deus) e esta realidade também se faz presente a ele, sem que
haja impedimentos entre ambos, é então que ocorre o encontro recíproco, a
relação Eu-Tu.
De fato, em suas considerações, Martin Buber afirma que o encontro com o outro
vai além do impulso de criatividade, caminha na direção de uma ação
comunitária. “Aquilo que nos leva à experiência de dizer tu não é mais o impulso
da criatividade, mas aquele da solidariedade” (Buber, 2004, p. 166).9
Sendo assim, o ato educativo do homem, que segue os princípios da filosofia
dialógica buberiana, edifica-se no encontro entre seres humanos considerados
como seres de relação. Martin Buber anuncia uma educação que tem como
projeto fundamental a formação de uma nova sociedade, construída no alicerce
da solidariedade.
Nesse sentido, uma pergunta é necessária: como é possível vivenciar o princípio
dialógico do ato educativo no âmbito escolar? Na tentativa de uma resposta a
essa indagação, identificamos, na reflexão de Martin Buber, dois pontos chaves: a
não opressão da espontaneidade do educando e a fundamental intervenção
cuidadosa do educador.
Diante da espontaneidade criadora do educando, existem educadores que agem
impondo rígidas regras a serem seguidas passo a passo. Isso proporcionará ao
educando, por sua vez, um horizonte de ação restrita, podendo ser esse um
motivo capaz de levá-lo a uma contestação. Martin Buber apresenta a influência
do educador gerida de modo diferente. Sua influência deverá ser de forma
9 Tradução nossa: “Ciò che ci conduce all‟esperienza di dire tu non è più l‟istinto della creatività,
ma quello della solidarietà”.
29
delicada e cautelosa, como um olhar de interrogação que penetra o agir
espontâneo do educando, percebida como uma sinalização que o conduzirá a
intuir ou perceber a influência crítica do educador e o seu papel de guia.
Na relação entre educador e educando, localiza-se a coexistência de um terceiro
elemento: o mundo que os circunda (entendido como natureza e sociedade).
Martin Buber constata que o mundo exerce uma forte ação educadora sobre o
homem. E mais ainda: é na relação do homem com o mundo que ele se torna
pessoa. O processo educativo entre educador e educando se dá nessa relação.
O ato educativo é intencionalmente conduzido pelo educador, que seleciona uma
parte de mundo em que confia plenamente, transmitindo-a ao educando. O
educador diante do educando é a representação desse mundo: “somente no
educador o mundo se torna o verdadeiro sujeito de seu agir” (BUBER, 2004, p.
168).10
Diante do exposto, observamos no ato educativo vivido no âmbito escolar, o
educador tornou-se o personagem de profunda influência na vida do educando.
Sua ação intencional que seleciona do mundo aquilo em que acredita, age
diretamente em cada educando levando-o a responsabilizar-se por sua
capacidade de sociabilidade e, consequentemente, por sua capacidade de
transformação da sociedade.
Referindo-se à ação do educador, fundamentada não no ato de intromissão diante
da espontaneidade do educando, mas por meio de um olhar interrogativo, Martin
Buber analisa o sentido que normalmente é atribuído à liberdade vivida no ato
educativo. À liberdade, enquanto conceito amplo, somam-se várias
manifestações: sentido moral, ausência de impedimentos e limites, força de
decisão, possibilidade de realização. Martin Buber constata que, no âmbito
educativo, a tendência é relacionar a coação como o ponto oposto à liberdade.
Porém, não identifica a liberdade como sendo o antagônico da coação, mas vê na
solidariedade seu oposto.
10
Tradução nossa: “solo nell‟educatore il mondo diventa il vero soggetto del proprio agire”.
30
Explica essa afirmação fazendo uma analogia com dois pólos extremos: o pólo
negativo é a coação; o pólo positivo a solidariedade. A liberdade está localizada
entre esses dois extremos, constituindo, assim, o ponto de passagem de uma
situação à outra; é um impulso de decisão. A pessoa para unir-se a uma
realidade, primeiramente precisa ter-estado-em-si-mesma e, por meio de sua
capacidade de decisão, estabelecer vínculos.
Martin Buber especifica: “coação, na educação, é falta de solidariedade, é
humilhação e revolta; solidariedade, na educação, é realmente, estar unidos,
abertos e envolvidos; liberdade na educação significa possibilidade de tornarem-
se solidários” (idem, 2004, p. 170).11
A prática da liberdade como possibilidade de ser solidário, segundo o sentido
atribuído por Martin Buber, torna-se uma chance para cada educando de exercitar
a própria capacidade de escolhas; de exercer de modo sempre mais consciente
sua responsabilidade com os outros e com o mundo.
A relação educativa, em uma perspectiva buberiana, é uma relação
fundamentalmente dialógica, estabelecida no vínculo de confiança com o mundo
por meio de um ser humano existente. No processo educativo, o educador deverá
tornar-se presente ao educando, pois é a garantia de sua presença que o fará
capaz de experimentar a confiança.
Diante das pontuações referidas de Martin Buber sobre a força educativa do
mundo, mediada pela ação do educador voltada ao educando, uma educação
baseada nos princípios dialógicos poderá ser construída somente a partir de um
vínculo de confiança instituído entre ambos.
A fim de que o educador seja uma presença na vida do educando, é preciso,
primeiramente, que ele acolha em sua existência a presença do educando,
consciente de ser ele a mediação na relação de solidariedade e de
responsabilidade do educando com o mundo. É no acolhimento recíproco que a
relação educativa se constitui como dialogicidade, em uma constante presença de
11
Tradução nossa: “Costrizione, nell‟educazione, è mancanza di solidarietà, è umiliazione e rivolta; solidarietà, nell‟educazione, è proprio l‟essere uniti, aperti e coinvolti; libertà nell‟educazione significa possibilità di diventare solidali.”
31
um para o outro. “Então, entre os dois, há realidade, reciprocidade” (idem, 2004,
p. 178).12
O educador deverá partir da condição de reciprocidade para evitar que a sua ação
se torne arbitrária. Ao atuar como mediação do mundo, o educador não terá como
ponto de partida suas ideias sobre cada educando, mas sua primeira ação será
aquela de colocar-se no lugar de cada um, a fim de reconhecê-lo na sua
unicidade. Essa relação educativa, como prática dialógica entre educador e
educando, fundamenta-se somente na experiência vivida, porém, de modo
unilateral.
Mesmo que o educador passe a experimentar em si uma constante acolhida da
realidade do educando, percebendo sua própria ação ao colocar-se no lugar do
educando, experimentando o ser educado do educando, ele será o único capaz
de vivenciar esta possibilidade de situar-se dos dois lados da situação em
comum. O educando não poderá experimentar o educar do educador, colocando-
se em seu lugar, porque se assim acontecer, nesse momento se romperia a
relação educativa, podendo se transformar em relação de amizade.
Nessa paradoxal relação educativa, o educador poderá discernir aquilo que
realmente o educando necessita no seu processo de tornar-se pessoa: “o
educador chega a conhecer sempre mais profundamente aquilo do qual o homem
precisa para se tornar tal; mas também chega a conhecer quanto ele, o
„educador‟, ainda pode dar” (idem, 2004, p. 181).13 E, nessa experiência, o
educador como instrumento é também educado pela seleção que faz do mundo a
fim de representá-lo ao educando.
Essas pontuações de Martin Buber, sobre o ato educativo como vivência de
reciprocidade e de solidariedade, remetem-nos à proposta de educação de Paulo
Freire, definida como um encontro dialógico entre educador e educando.
Paulo Freire apresenta ser o educador não somente aquele que educa, mas
também como alguém que é educado no diálogo com o educando. Ambos,
12
Tradução nossa: “Allora tra i due c‟è realtà, reciprocità.” 13
Tradução nossa: “l‟educatore giunge a conoscere sempre più profondamente ciò di cui l‟uomo ha bisogno per divenire tale; ma anche a conoscere quanto egli, l‟ «educatore», può ancora dare.”
32
educador e educando, são sujeitos no processo educativo. Nessa perspectiva,
não há educador do educando, mas educador-educando com educando-
educador. Juntos são chamados a conhecer, pois, “ninguém educa ninguém,
como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em
comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2005, p. 79).
1.3 Paulo Freire e a compreensão do homem como ser de educabilidade em
um mundo de possibilidades
Nas obras de Paulo Freire, encontra-se um pensamento inquieto em torno do
homem, de suas relações com o mundo e com o outro. Dizer homem, para Paulo
Freire, é referir-se ao homem em situação, ou seja, é compreender a natureza
humana, constituindo-se sócio-historicamente. Assim sendo, buscar compreender
sua concepção sobre o fenômeno do diálogo significa olhá-lo em sua articulação
com a realidade concreta de sociedade e de educação de onde seu pensamento
emerge.
Paulo Freire, constatando situações de desrespeito ao valor humano, explicitou o
drama em que se encontrava o homem, em uma determinada circunstância
histórica, diante da qual colocou esse ser humano como problema e objeto de
reflexão. Em uma nota de rodapé de sua obra mestra, Pedagogia do Oprimido
(2005), ele aponta as inquietações dos homens na busca de humanizar-se:
Os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens, no mundo atual, que necessariamente revelam peculiaridade dos espaços onde se dão, manifestam, em sua profundidade, esta preocupação em torno do homem e dos homens, como seres no mundo e com o mundo. Em torno do que e como estão sendo. Ao questionarem a “civilização do consumo”; ao denunciarem as “burocracias” de todos os matizes; ao exigirem a transformação das universidades de que resultem, de um lado, o desaparecimento da rigidez nas relações professor-aluno; de outro, a inserção delas na realidade; ao proporem a transformação da realidade mesma para que as universidades possam renovar-se; ao rechaçarem velhas ordens e instituições estabelecidas, buscam a afirmação dos homens como sujeitos de decisão, todos estes movimentos refletem o sentido mais antropológico do que antropocêntrico de nossa época (FREIRE, 2005, p. 31 – grifos do autor).
33
Ao apresentar os movimentos de rebeliões como significado de oposição à
desumanização no percurso histórico da humanidade, Paulo Freire faz emergir o
questionamento dos homens sobre o sentido de sua existência, que vai do o quê
e como estão sendo para compreender o porquê e para que dos fatos e da
existência.
Essas inquietudes acerca da desumanização, impulsionando a própria
humanidade a buscar caminhos de humanização, levam a confirmar o que Paulo
Freire define por vocação humana como busca de ser mais, ou seja, apontam, de
modo implícito, à compreensão do ser humano enquanto devir, existindo
enquanto projeto. Os seres humanos são seres da busca e sua vocação
ontológica é humanizar (idem, 2005).
Por tudo isso, compreender a condição humana enquanto ser mais, é reconhecê-
lo como ser em movimento, inconcluso, historicamente inacabado, na contínua
busca em um mundo de possibilidades. Desse mesmo modo, a “ordem” social na
qual se insere é concebida como processo histórico em constante transformação,
opondo-se ao pensamento que a define como algo dado, naturalizado.
Cabe aqui indicar que diante dessa sua afirmação sobre o homem enquanto ser
inconcluso em um mundo inacabado, Paulo Freire supera, seja uma visão
determinista objetivista que leva a compreender o homem como objeto da história,
seja uma concepção subjetivista que atribui ao homem o poder exclusivo de
domínio sobre as circunstâncias da realidade.14
Tanto erra o idealismo ao afirmar que as idéias separadas da realidade governam o processo histórico, quanto erra o objetivismo mecanicista que, transformando os homens em abstrações, nega-lhes a presença decisiva nas transformações históricas (FREIRE, 2006, p. 75).
Desse modo, compreende-se que é na relação que o homem vive com o mundo,
na interação entre subjetividade e objetividade que seu pensamento se instaura.
O homem, partindo das condições de vida com as quais interage, é capaz de
transformar o mundo pela sua ação intencional sobre ele, humanizando-o.
14
A esse respeito, Martin Buber concebe o homem existindo não como indivíduo isolado de seu contexto e nem unido a ele como sua imagem, mas em relação, pois compreende a condição humana realizando-se no encontro do Eu-Tu, vivido como presença no mundo do Eu-Isso.
34
Dito de outra forma, e agora reportando também as próprias palavras de Paulo
Freire, é no envolvimento ativo e consciente do homem com as circunstâncias
objetivas que nasce o mundo humano, o mundo da cultura:
O homem, como ser de relações, desafiado pela natureza, a transforma com seu trabalho; e que o resultado desta transformação, que se separa do homem, constitui seu mundo. O mundo da cultura que se prolonga no mundo da história (FREIRE, 2006, p. 65).
Na interação homem-mundo, o homem cria, por meio de seu trabalho, o seu
mundo, o mundo da cultura. Esse mundo cultural faz-se histórico ao tornar-se
mediação no encontro entre homens. Um encontro que transcende épocas.
Nessa direção, o mundo tornado objeto de conhecimento, não se faz finalidade de
pensamento, mas mediador de comunicação.
O mundo torna-se objeto de reflexão humana por meio da capacidade do homem
de objetivá-lo em sua consciência15. Nesse processo, ele é criado e recriado
intencionalmente pela práxis do homem, enquanto atuação sustentada pelas suas
necessidades e intenções.
Assim sendo, o mundo cultural e histórico é uma realidade em contínuo processo
de transformação. É por esse motivo que Paulo Freire contextualiza sua ideia de
ser humano não estando sobre ou dentro do mundo, mas com ele, pois ao
transformá-lo, o mundo se volta problematizado para o homem, transformando-o.
Compreende-se, portanto, que a consciência do homem existe em concomitância
com o mundo; por meio das tramas de relações e interações em que vive com
ele. Intenciona-se ao mundo e o mundo, realidade exterior à consciência, existe
em relação a ela:
Na verdade, não há eu que se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído. Dessa forma, o mundo constituinte da consciência se torna mundo da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual se intenciona (FREIRE, 2005, p. 81 – grifos do autor).
15
Ernani Maria Fiori, na introdução da obra de Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido (2005), assim conceitua a consciência: “a consciência é essa misteriosa e contraditória capacidade que tem o homem de distanciar-se das coisas para fazê-las presentes, imediatamente presentes. É a presença que tem o poder de presentificar: não é representação, mas condição de apresentação. É um comportar-se do homem frente ao meio que o envolve, transformando-o em mundo humano” (FIORI, 2005, p. 13).
35
Nesse prisma epistemológico, em que se concebe inexistente a separação entre
homem-mundo, a consciência não pode ser entendida como algo presente no
homem na qualidade de um espaço localizado dentro dele, passivamente aberto
ao mundo para ser preenchido, restando ao homem imitar esse mundo
assimilado.
Pelo contrário, sendo homem-mundo uma relação intimamente interligada, a
consciência que o homem tem do mundo corresponde àquilo que se torna
presente a ele de modo objetivado. Dessa forma, o mundo tornado objeto de seu
conhecimento é reconhecido por ele impregnado de significados que lhe atribuiu,
e essa experiência Paulo Freire define como pronúncia do mundo.
Cabe também enfatizar que a tomada de consciência não é um processo de
caráter individual, mas sim social. Ela não se dá no homem isolado, mas na trama
de relações que ele estabelece com os outros homens e com o mundo, tornando-
se processo de conscientização, por colocar cada homem de forma crítica diante
da totalidade em que se dão as tramas de relações que os condicionam.
É nessa perspectiva que Paulo Freire identifica o homem não como um ser
determinado pelo mundo, mas condicionado por esse. Com efeito, o mundo
humano criado pelo homem reincide sobre ele condicionando-o. Valter M.
Giovedi, em sua dissertação de Mestrado, ao aprofundar sua temática de estudo,
sintetiza, na seguinte frase, a complexidade do pensamento de Freire quanto à
relação homem-mundo:
O ser humano é o mundo, ao mesmo tempo em que é a sua negação (na medida em que possui uma subjetividade). O mundo é o que o ser humano faz, ao mesmo tempo em que é uma realidade maior que nega a possibilidade de ser reduzido a uma subjetividade. Mundo-consciência, realidade-indivíduo é uma unidade dialética na qual os dois pólos não podem nunca se reduzir um ao outro, sob a pena de se ter uma compreensão distorcida da História humana (GIOVEDI, 2006, p. 73).
Quanto mais os homens praticam sua capacidade de refletir sobre si e sobre sua
relação com o mundo e com o outro, maior será o campo de sua percepção,
enxergando coisas que antes, mesmo se existentes, não eram percebidas por
eles. E, compreendendo a si mesmo no inacabamento, o homem perceber-se-á
como ser de educabilidade. Intencionado ao aprendizado, será capaz de captar a
36
realidade como processo contínuo de vir-a-ser e de, nesse âmago, ir além de
seus condicionamentos; de exercer escolhas e mudanças.
No percurso histórico da humanidade, é possível identificar, porém, homens
perdendo sua capacidade de decisão e de resposta: pessoas submetendo-se
passivamente à prescrição de um mundo narrado16 por outras que detêm maior
possibilidade econômica.
Paulo Freire analisa e denuncia essa situação de imposição vivida por pessoas
que perderam sua condição de sujeitos ativos da própria história, tornando-se
objetos passivos de uma “ordem” social que as exclui do chamado a conhecer, a
saber, a questionar, a decidir, a transformar.
Diante da negação da humanidade em seu percurso histórico, Paulo Freire
apresenta em seus escritos um profundo compromisso com a vida, propondo uma
política educacional a serviço da valorização do homem em suas capacidades e
possibilidades.
Pode-se dizer que todo processo educativo, por emergir das necessidades da
sociedade, é político: age na intenção de transformar. A proposta educacional de
Paulo Freire centraliza-se na atuação política voltada a gerar posturas críticas
perante as circunstâncias do mundo, tendo a dialogicidade como teoria
fundamental. Visa analisar concretamente os condicionamentos históricos de
exclusão social para a superação da negação do diálogo entre homens. Indica a
importância da valorização da ação reflexiva de cada pessoa como possibilidade
problematizadora17 em sua relação com o mundo e com o outro.
O diálogo, explicitado por Paulo Freire enquanto comunicação com alguém sobre
alguma coisa, a fim de produzir ou reconstruir conhecimento, não pode instaurar-
16
A narração ou também dissertação do mundo são expressões que Freire utiliza a fim de denunciar as experiências de caráter deterministas de pessoas que apresentam a outras, conteúdos próprios tido como verdade absoluta, ausentes da participação dialógica com o interlocutor. Por isso, esses são conteúdos mortos em seus valores e dimensões concretas por serem parciais a respeito da realidade, podendo provocar, na ausência de reflexão crítica, uma visão de mundo naturalizada, irrefletida, cristalizada. A narração ou dissertação, em síntese, é de um sujeito narrador a pessoas tornadas objetos passivamente ouvintes. 17
O ato humano de problematizar significa para Paulo Freire a experiência de exercer uma análise crítica sobre a realidade tornada problema.
37
se na negação da vocação humana de ser mais, porque não se fundamenta na
ação de um homem sobre o outro, mas na comunicação entre homens
solidarizando saberes e “achados” a fim de transformar não o outro, mas, com
ele, o mundo.
Martin Buber, em relação ao modo de relacionar-se entre pessoas, indica que o
outro, entendido como um Tu, é considerado no encontro ora como meio, ora
como fim. Há vários modos de viver a relação Eu-Tu que se distancia do Eu-Isso:
existem momentos em que o Tu se torna meio necessário na relação, como, por
exemplo, quando dele solicita-se uma ajuda, uma informação; em outros
momentos estabelece-se com ele uma total reciprocidade. Esse é um modo
respeitoso de ser-com-o-outro.
A dialogicidade exige que o homem se mantenha em uma relação de respeito
diante da liberdade do outro, ou seja, exige uma relação instituída não pela força
da opressão e submissão, mas pela capacidade de comunicabilidade que vai
além de um simples ajustamento e acomodação às ideias ou circunstâncias de
um mundo prescrito.
Essa situação de desumanização, presente na relação homem-mundo por uma
“ordem” social injusta, estabelece-se por meio de relações que Paulo Freire
denomina relações de opressão, que, por sua vez, geram uma realidade humana
oprimida.
Para superar essa situação de violência, Paulo Freire acredita que somente o
oprimido – por experimentar os efeitos da opressão e servindo-se deles como
objeto de reflexão em vista de perceber si mesmo e o outro como pessoa – terá
condições de recuperar a própria humanidade e a do opressor, na permanente
luta contra o sentido de inferioridade. Isso quando sua luta não provém do desejo
de dominação e da ambição de tornar-se opressor do opressor.
A proposta político-pedagógica freireana investe na luta contra o sentir-se não
ser, a fim de que toda pessoa possa assumir, de modo consciente e crítico, sua
responsabilidade pelo contínuo devir do mundo com o outro em um projeto de
38
humanização. Isso nos remete ao sentido que atribui Martin Buber à
responsabilidade como ação de responder para e por alguém ou a algo.
Por fim, a experiência dialógica, segundo concepção freireana, impulsiona o
homem a investigar criticamente o mundo, problematizando sua relação com ele.
Isso se dá segundo um processo de ad-miração do próprio conhecimento, ou
seja, o homem volta-se para olhar como conhece e de que modo está
conhecendo. O conhecimento ad-mirado, ao tornar-se objeto de discussão na
troca com outros homens, é re-ad-mirado com eles. Essa experiência de
comunicabilidade poderá constituir para os ad-miradores um saber ampliado; um
conhecer melhor.
Essa proposta de Paulo Freire, de certa forma, corresponde às indagações de
Martin Buber sobre a origem do pensamento: criticou a concepção do
pensamento de forma prioritariamente monológica, que concebia a
comunicabilidade como seu elemento secundário:
Será que aqui – onde, como dizem os filósofos, o sujeito puro se desprende da pessoa concreta para fundar para si próprio um mundo e indagá-lo – será que se ergue aqui, acima da vida dialógica, uma cidadela inacessível a esta, na qual o homem, só consigo mesmo, o indivíduo, sofre e triunfa gloriosamente solitário? (BUBER, 2007, p. 60).
Para Paulo Freire, o mundo humano é um mundo de comunicação: “o mundo
social e humano, não existiria como tal se não fosse um mundo de
comunicabilidade fora do qual é impossível dar-se o conhecimento humano”
(FREIRE, 2006, p. 65). Um conhecimento que se origina no encontro entre
pessoas e se faz histórico no diálogo. As ideias de Paulo Freire sobre a
dialogicidade humana é o foco para o qual voltaremos agora nosso olhar.
1.4 Dialogicidade freireana
Como se pôde constatar, o homem, ser de educabilidade, é ser de abertura,
devido à sua condição histórica de inacabado num mundo em construção.
Percebe-se, também, que a função gnosiológica do homem não se limita à
39
relação do sujeito cognoscente com o objeto cognoscível, mas encontra na
intercomunicabilidade o seu fundamento.
Abrindo-se ao outro e ao mundo, o homem confirma sempre mais sua finitude por
deixar-se questionar e pôr a si mesmo questionamentos, na busca de sempre
mais respostas para o sentido de sua existência com o outro e com o mundo.
Nesse sentido, vale a pena reportar estas palavras de Paulo Freire:
A razão ética da abertura, seu fundamento político, sua referência pedagógica; a boniteza que há nela como viabilidade do diálogo. A experiência da abertura como experiência fundante do ser inacabado. Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História (FREIRE, 1997, p. 153-154).
Enfatiza sua concepção de homem enquanto ser de curiosidade18 que busca
perceber e compreender o mundo, e isso, como já dito acima, não se dá no
isolamento, mas na sua capacidade de colocar-se em relação, instaurando-se
como ser de diálogo.
A aptidão humana de compreender o mundo se amplia cada vez mais a partir do
desenvolvimento da capacidade de pronunciá-lo, e o mundo só é mundo se dito
por alguém. As trocas entre os homens efetivam-se pelo diálogo. Desse modo,
quanto mais os homens envolvem-se em experiências de trocas de ideias, de
opiniões, de conhecimentos, mais ampliam sua capacidade de dar sentido à sua
compreensão de mundo.
É no encontro entre os homens, mediatizados pelo objeto de conhecimento, que
eles ampliam suas habilidades de compreensão de mundo e de si mesmo. Aos
poucos, sua compreensão sobre uma ocorrência, ou um fato, assume aspectos
sempre mais amplos, alargando-se, de algo isolado a um todo mais complexo.
Nessa experiência, amplia-se seu olhar crítico sobre a realidade; amplia-se sua
capacidade de abertura ao outro, ao diferente; amplia-se sua inclinação a
18
Sobre o conceito de curiosidade ver FREIRE, Paulo. A sombra desta mangueira. São Paulo. Olho d‟Água, 1995, p. 76-82.
40
contextualizar seu próprio conhecimento. Quanto mais há separação da realidade,
mais há alienação da mesma.
Não há diálogo se não há compromisso com a pronúncia do mundo. O diálogo
não acontece quando o encontro entre homens é atuado por uma conquista de
um pelo outro, no desejo de conquistar o mundo pelo domínio entre homens, mas
quando o encontro entre eles, direcionados ao mundo, institui-se na
solidariedade.
Em Educação como prática da liberdade (1994), Paulo Freire assim define
diálogo:
E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação (FREIRE, 1994, p.115).
Nesse trecho, o fenômeno do diálogo, enquanto reflexão crítica do real, aparece
relacionado a um conjunto de valores sem o qual não é possível a sua ocorrência:
o diálogo concretiza-se em atos de amor, de humildade, de fé, de confiança, de
esperança.
É ato de amor por não ser experiência voltada a interesses próprios, mas sim
expressão de compromisso com os homens e com o mundo. Martin Buber
também apresenta a dimensão do amor como algo que abrange o diálogo,
enquanto movimento que leva para fora de si: o amor se constitui no sair-de-si-
em-direção-ao-outro para permanecer-junto-com-o-outro. Segundo Paulo Freire, o
amor ao mundo e aos homens está no fundamento da criação e recriação do
mundo como processo de humanização. Esse amor é condição de emancipação
entre os homens chamados a serem sujeitos da história na responsabilidade pelo
mundo.
Ser humilde é um valor importante na atitude dialógica por levar o ser humano a
perceber o outro tão homem quanto si mesmo. Com a humildade os homens não
buscam agir sob soberba, pois passam a entender que ninguém é superior a
ninguém. E o diálogo é incompatível com a auto-suficiência e com a supremacia.
41
A humildade entre pessoas exige uma postura de horizontalidade. O homem
reconhece ter direitos e deveres tanto quanto os outros homens; de saber-se
crítico ou ignorante tanto quanto outros; de saber-se possuidor de saberes e
verdades tanto quanto outros homens. É saber que a pronúncia do mundo é
tarefa de todos, e não exclusividade de alguns.
A fé nos homens, dado a priori do diálogo, fundamenta-se na vocação de ser
mais. Acredita-se na possibilidade de cada homem de ser mais livre, de ser mais
crítico, de ser mais criativo, de ser mais transformador. Portanto, ter fé nos
homens é uma escolha vivida antes mesmo de estar diante de um outro.
Confiar nos homens é ter a capacidade de ser concretamente companheiro no ato
de pronunciar o mundo, buscando coerência entre aquilo que se faz com aquilo
que se fala. Por meio da confiança, chega-se à maior clareza nas trocas de
intenções. A confiança é experiência posterior ao diálogo, resulta do encontro
entre homens como sujeitos na pronúncia e na transformação do mundo.
Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é consequência óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé, o diálogo não provocasse este clima de confiança entre seus sujeitos (FREIRE, 2005, p. 94 – grifo do autor).
O homem traz na sua imperfeição a busca de querer ser mais. Assim, ter
esperança não deverá ser uma atitude de acomodação mediante uma visão
fatalista do real, mas levará a lutar por uma sociedade menos injusta e mais
humana. Viver com esperança é nutrir-se de um impulso vivo de otimismo
radicado na consciência de ser, com outros homens, inconcluso, portanto, em
busca permanente: “Não é possível buscar sem esperança; nem, tampouco, na
solidão” (FREIRE, 1995, p. 87).
O diálogo, enquanto fenômeno humano, fundamenta-se na palavra, afirma Paulo
Freire. Em suas considerações em torno do que vem a ser o diálogo, apresenta a
ocorrência de dois tipos de pronúncia da palavra: a palavra verdadeira e a palavra
inautêntica. A palavra verdadeira age voltada à transformação do mundo. Seus
elementos constitutivos, ação-reflexão, como dimensões essencialmente
interligadas, transformam o mundo. A inautenticidade da palavra impossibilita uma
42
experiência dialógica. Quando suas dimensões constitutivas são dicotomizadas, a
palavra perde seu caráter transformador, configurando-se em formas inautênticas
de existência. Ação separada da reflexão torna-se ativismo; reflexão sacrificada
da ação faz-se verbalismo.
Agir sobre o outro na intenção de conquistá-lo acaba por transformá-lo em quase
coisa, em um Isso. O diálogo, pelo contrário, é a busca entre pessoas
consideradas autores de vida enquanto sujeitos que participam ativamente na
construção de conhecimento. Nota-se aqui, explicitamente, a influência de Martin
Buber no pensamento freireano:
O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu – um não eu –, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu (FREIRE, 2005, p. 192 – grifos do autor).
No decorrer deste estudo, percebemos como Paulo Freire enfatiza a práxis
humana enquanto fundamento de sua proposta político-pedagógica. De fato, a
práxis é uma dimensão do homem composta de ação-reflexão. De um lado, a
reflexão conduz à prática e, do outro, por ser ela fruto da ação, produz
conhecimento crítico do vivido.
Não uma reflexão apenas solitária, mas junto com os outros: solidária. Paulo
Freire apresenta a co-laboração como uma das características fundantes da ação
dialógica. Co-laborar é trabalhar conjuntamente. É atividade vivida somente entre
sujeitos por meio da comunicação. Os sujeitos, na experiência de desvelar a
realidade que os desafia, porque problematizada por eles, respondem a esse
desafio transformando-a.
Essa ideia de co-laboração, que tem por fundamento a comunhão entre homens,
encontra correlação na concepção de comunhão apresentada por Martin Buber,
enquanto encontro entre uma pessoa receptiva e outra também receptiva. Para
ele, a comunhão é o meio de corporificar a condição dialógica: “na realidade só
posso demonstrar aquilo que tenho em mente por meio de acontecimentos que
desembocam numa verdadeira transformação da comunicação em comunhão,
portanto numa corporificação da palavra dialógica” (BUBER, 2007, p. 37).
43
A dialogicidade gera unidade entre pessoas. No exercício da tarefa comum, Paulo
Freire explicita ser fundamental, a fim de que a teoria da ação dialógica seja
duradoura, que os homens, comprometidos com o mundo e com o outro, sejam
constantes no testemunho mútuo da coerência entre palavra e ato, da ousadia
diante de riscos, da radicalização na opção feita, da valentia de amar, da crença
nos homens.
Por fim, faz-se indispensável acrescentar nessas considerações em torno do
diálogo o papel da escuta e da fala. É escutando que se aprende a falar com o
outro e não a ele. Falar aos outros é uma relação estabelecida de cima para
baixo, impositiva, considerando o outro como objeto de seu discurso. Pelo
contrário, aprende-se a escutar o outro quando ao falar com ele se é também
capaz de fazer silêncio, entendido aqui como explicitação da própria condição de
abertura. A esse respeito pontua Paulo Freire:
A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso, fenece a comunicação (FREIRE, 1997, p. 132 – grifos do autor).
Para saber escutar é preciso primeiramente controlar a necessidade de dizer sua
palavra, para que tendo o que dizer não seja o único a dizer. Dialogar é saber
conviver com diferenças. “Se a estrutura do meu pensamento é a única certa,
irrepreensível, não posso escutar quem pensa e elabora seu discurso de outra
maneira que não a minha” (FREIRE, 1997, p. 136).
A condição de encontro entre pessoas mediado pelo objeto de conhecimento é
tida por Martin Buber como um acontecimento gerador de comunidade, já que a
compreende como relação mútua de reciprocidade entre pessoas voltadas a um
centro comum. Não é um estar-ao-lado-do-outro, mas estar-um-com-o-outro se
movimentando em direção a um objetivo.
Foi possível notar que a dialogicidade freireana, que aqui apresentamos,
aproxima-se do pensamento buberiano sobre o diálogo: vive-se no encontro com
44
o outro as dimensões da reciprocidade; manifesta-se amorosidade, confiança e
solidariedade; dá-se importância à comunicabilidade.
A interação estabelecida com o pensamento de Martin Buber e de Paulo Freire,
na elaboração deste capítulo, conduziu-nos ao aprofundamento da filosofia do
diálogo na busca de verificar suas contribuições que dêem fundamentos político-
pedagógicos a uma educação que valorize a compreensão das relações como
dimensão significativa no processo de formação humana.
Nesta pesquisa de dissertação de Mestrado, voltamo-nos a interrogar como
gestores, educadores e representantes de uma comunidade, compreenderam o
fenômeno do diálogo enquanto participavam de um processo de construção
coletiva do projeto político-pedagógico. O próximo capítulo apresenta a
concepção de projeto político-pedagógico que adotamos para este estudo.
45
CAPÍTULO 2
O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E SUA CONSTRUÇÃO COLETIVA
O processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico foi a situação
pela qual os participantes deste estudo se voltaram para interrogar, compreender
e descrever sua compreensão sobre o diálogo. Neste capítulo, apresentamos em
que consiste um projeto político-pedagógico, buscando também o sentido contido
nas palavras que o denominam. O capítulo finaliza-se com um relato do percurso
de uma construção coletiva, vivenciada pelos participantes desta pesquisa.
2.1 Em que consiste o projeto político-pedagógico?
A Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB), lei nº9394/96, apresenta
duas denominações a uma mesma iniciativa: “proposta pedagógica” e “projeto
pedagógico”. (BRASIL, 1996) Neste estudo, adotamos a denominação projeto
político-pedagógico, por ser a mais utilizada nas pesquisas atuais e que melhor
explicita o sentido que atribuímos ao objeto ao qual nos voltamos.
A LDB estabelece que cada organização educativa elabore o seu projeto político-
pedagógico:
Art. 12 – Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I – elaborar e executar sua proposta pedagógica; (BRASIL, 1996).
Cada escola possui uma história, o seu modo de vida, um conjunto de seus
currículos, de seus métodos. Tudo isso constitui o seu instituído, a partir dele se
elabora planos para o desenvolvimento das atividades. Gadotti (2000) indica que
“um projeto necessita sempre rever o instituído para, a partir dele, instituir outra
coisa: tornar-se instituinte” (GADOTTI, 2000, p. 35 – grifo do autor). Dessa forma,
46
um projeto político-pedagógico visa confrontar o “já estabelecido” com as novas
exigências da escola como, por exemplo, o seu papel no atual contexto da
sociedade, já que ela se volta a formar para a cidadania.
O projeto político-pedagógico é, pois, uma intencionalidade declarada, a direção
política da escola. Nesse sentido, é “sempre um processo inconcluso, uma etapa
em direção a uma finalidade que permanece como horizonte da escola” (idem,
2000, p. 36). Em uma gestão democrática, todos da comunidade escolar
participam da constituição dessa intenção norteadora, responsabilizando-se por
ela.
Não há um modelo de projeto político-pedagógico, pois cada escola, respeitando
sua identidade e autonomia, constrói o seu, por meio da criatividade e do diálogo
entre seus protagonistas, delimitando concepções, princípios, finalidades,
condições, necessidades específicas. Essa é uma proposta que se apresenta na
forma de um documento escrito.
2.2 O sentido das palavras projeto político-pedagógico
A palavra projeto significa lançar para frente, arremessar. Quando construímos o
projeto político-pedagógico da escola, planejamos o trabalho que temos intenção
de realizar; refletimos sobre a situação atual da escola como um todo e de seu
contexto social; consideramos o caminho já feito até então; lançando o olhar para
o futuro, percebemos se há necessidade de mudanças e/ou de reforçar aspectos
do que já se vive; lançamo-nos na busca de meios possíveis, a fim de atingir
objetivos delimitados.
Avaliar e projetar a ação educativa da escola comporta movimento de
transformação entre pessoas. As ações que acontecem no interior da escola não
se eximem de sua missão de ser um importante lócus da formação permanente
do ser humano. Em função disso, o processo de construção coletiva do projeto
47
político-pedagógico é uma experiência significativa de articulação entre teoria e
prática.
Projetar é um procedimento que se desdobra na temporalidade, flexível aos
limites e possibilidades de cada comunidade escolar. É ato de sistematização
nunca definitivo, pois está sempre se aperfeiçoando, enquanto a comunidade
educativa se aprimora na concretização da própria intenção educativa.
Essa é, pois, uma experiência humana que está exposta a desafios, incertezas e
instabilidades, advindos da comunidade educativa e de seu contexto amplo,
tornando-se um processo que exige paciência e coragem para prosseguir. Assim,
como afirma Schmidt Neto “lançar um projeto político-pedagógico requer vontade
de mudança, objetivos a alcançar, paciência, esperança no novo e coragem para
enfrentar desafios” (SCHMIDT NETO, 2007, p. 25).
O termo político, segundo o dicionário Houaiss (2007), refere-se ao conceito de
cidadão, relativo ao Estado, ao público; habilidade em administrar negócios
públicos; capacidade de viver em sociedade. O projeto de uma escola se faz
político por estar comprometido com a formação de cidadãos para uma
sociedade, habilitando-os a exercer o papel de participação nas decisões e leis
que regem o Estado.
Ao construirmos um projeto político-pedagógico devemos buscar meios que
possibilitem o envolvimento de toda comunidade educativa (educandos,
familiares, educadores, agentes educativos, representantes da comunidade,
coordenadores, diretor e vice-diretor), a fim de que, considerados enquanto
sujeitos de sua história, participem ativamente nas tomadas de decisões. A
autonomia da escola é construída somente a partir de uma gestão democrática.
Longhi e Bento (2006), por exemplo, evidenciam na participação de toda
comunidade escolar a possibilidade de entrever novas transformações na escola
e na sociedade.
Embora seja uma exigência legal que toda comunidade educativa participe na
construção do projeto político-pedagógico da escola, Schmidt Neto (2007) adverte
48
que tal comprometimento, enquanto sentido democrático, não se garante somente
com a legislação, ele é para cada escola, uma conquista gradual, em que se faz
necessário criar condições dialógicas entre as pessoas envolvidas:
Por ser [o projeto político-pedagógico] um espaço de trabalho coletivo, a escola deve conquistar a democracia, e não ser conquistada por ela, e criar condições propícias para o diálogo e discussão de seus problemas, num exercício de escuta e de valorização da dignidade da pessoa (SCHMIDT NETO, 2007, p. 62).
Compreendemos, por isso, que a questão da participação da comunidade
educativa na construção do projeto político-pedagógico, concernente à atuação
democrática de pessoas diante de seu compromisso com a educação, não esteja
limitada à busca de melhor metodologia de participação, embora seja essa uma
atenção também necessária e importante.
Faz-se fundamental para essa proposição, estabelecer uma reflexão aprofundada
sobre a situação das pessoas da comunidade escolar, consideradas e instigadas
a se considerar não somente no papel desenvolvido (funcionários, familiares,
educandos), mas enquanto pessoas que estão se constituindo na relação com o
outro e com o mundo.
Schmidt Neto evidencia a importância de considerar a pessoa como sujeito nesse
processo, “que possui qualidades e defeitos; razões e sonhos; amor e desamor;
alegria e tristeza; sabedoria e ignorância” (SCHMIDT NETO 2007, p. 17). Ao
conceber o ser humano como ser complexo, constituído por um conjunto de
aspectos antagônicos e bipolares, indica que tal construção envolve o encontro
entre interesses e necessidades comuns e diversas de seus participantes e da
sociedade a qual se voltam.
Estudos indicam que essa atuação político-pedagógica, muitas vezes, é aplicada
na intenção de uniformizar pessoas, seguindo os critérios da maioria e/ou da
ideologia dominante da sociedade; na busca pelo consenso, excluem proposições
de uma minoria. Schmidt Neto (2007) adverte que, valorizar o sujeito no processo
de construção do projeto político-pedagógico, é um desafio voltado a priorizar a
convivência entre ideias contrárias, sem a necessidade de conciliar pólos opostos,
compreendendo-as não só como diferentes, mas também complementares.
49
Nesse sentido, indica ser o convívio com o conflito uma dimensão importante, por
ser produtivo no encontro entre pessoas.
Algumas pesquisas (FONSECA, 2003; MARQUES, 2003; SILVA, 2003; VEIGA,
2003) apontam para a situação do projeto político-pedagógico, no contexto amplo
da sociedade brasileira, enquanto caminho árduo de descentralização política da
Educação, que constitui um processo de ideias conflituosas e de interesses
particulares. No entanto, diante da tendência histórica das forças políticas
autoritárias do governo, com imposição de poder e crescimento das
desigualdades sociais, constatam-se várias iniciativas em vista de transformar
essa situação. Escolas buscam, no apoio mútuo, o reconhecimento da dignidade
humana.
Acreditamos em uma gestão democrática da educação, que se contrapõe à ação
técnica de gerenciamento empresarial, vivida pelo comando e controle de
pessoas, por se constituir em ação político-pedagógica fundamentada na busca
de estabelecer comunicação dialógica entre as pessoas, compartilhando o
mesmo poder de tomada e de implementação de decisões.
A dimensão política, do projeto político-pedagógico, está imbricada na dimensão
pedagógica, já que é nela que a politicidade educacional se concretiza. O
pedagógico não se restringe a uma função técnica e metodológica, fundamenta-
se em finalidades e objetivos que são sócio-políticos, já que toda ação
pedagógica sempre expressa uma intencionalidade de valores e de opções
ideológicas.
Cada unidade escolar é parte de um organismo mais amplo: a sociedade, que
estabelece um sistema de ensino indicador de preceitos para uma educação
escolar. A composição de um sistema escolar é um todo formado por partes
distintas entre si, a partir do momento em que é respeitada a autonomia de cada
escola, propondo que elaborem e apliquem o seu projeto político-pedagógico.
Nessa direção, Rios (1992) explica o sentido de interdependência entre escola e
sociedade:
Não se trata de uma dependência absoluta ou de uma completa independência – o que existe é uma interdependência. É nessa
50
situação que os educadores são desafiados a definir suas ações, a organizar os projetos. Os projetos que se organizam nas unidades escolares atenderão às exigências específicas de cada uma delas, levando em conta sua situação peculiar, mas também estarão conectados com outros projetos, com diretrizes que se definem em âmbito amplo do conjunto da sociedade (RIOS, 1992, p. 77 – grifo do autor).
A respeito do lugar e do papel da escola na sociedade brasileira, Severino (1998)
apresenta que a escola é, enquanto instância social, um espaço mediador e
articulador de dois tipos de projetos concernentes à dimensão educacional do
homem: o projeto político da sociedade e os projetos pessoais de cada sujeito
envolvido com a educação escolar. Isso porque define a educação como um
processo social, que se dá no espaço e no tempo, efetivado por mediações
simbólicas. A missão da escola é inserir o homem no universo do trabalho, da
sociabilidade e da cultura simbólica.
A escola tem um papel importante na construção da cidadania, seu projeto
educacional está vinculado ao processo histórico e social da humanidade. As
ações pedagógicas que os educadores exercem com os educandos estão
penetradas de finalidades políticas. O educador é o mediador no processo de
humanização do educando19, na formação de sua cidadania, servindo-se para
isso do projeto político da sociedade. A sociedade, por sua vez, por meio da
atuação de educador, encontra meios para concretizar seus fins políticos.
A transformação social, por meio do processo educacional, possibilita
compreender a educação, segundo Severino (2005), como uma realidade
mediadora de mudanças dos referenciais ideológicos que agem em benefício de
um pequeno grupo de pessoas, causando a opressão de muitos:
O processo educacional reforça a dominação na sociedade cujos mecanismos reproduzem, sem reelaboração, as referências ideológicas e as relações sociais. No entanto, contraditoriamente a educação pode criticar e superar esses conteúdos ideológicos e assim atuar na resistência à dominação da sociedade, contribuindo para relações político-sociais menos opressoras. Nessa medida torna-se uma prática transformadora (SEVERINO, 2005, p. 75).
O projeto político-pedagógico, sendo uma intencionalidade, constituída de
concepções, é o fio condutor que impede que a educação escolar do educando
19
Estudamos este aspecto de mediação do educador também no capítulo anterior, mais especificamente nas reflexões de Martin Buber, páginas 29-31.
51
seja praticada de modo fragmentado, pela multiplicidade de sujeitos que compõe
a comunidade educativa. É por meio de um sujeito coletivo que se torna legítimo o
trabalho em equipe, promovendo interdisciplinariedade teórica e prática
(SEVERINO, 1998).
Cortella (2004) identifica três posturas, presentes na relação escola e sociedade.
Uma delas é conceber a escola como única “alavanca do desenvolvimento e do
progresso”, apresentando-se autônoma e absoluta em relação à sociedade, algo
exterior a ela, numa ingênua neutralidade política e social (CORTELLA, 2004, p.
31).
Outra postura é considerar a escola como um instrumento de dominação,
atribuindo à escola a função de reprodutora da desigualdade social, sendo o
educador um agente perpetuador dessa desigualdade. Nessa perspectiva, a
escola passa a ser considerada como um aparelho ideológico do Estado.
A terceira concepção refere-se à escola, além de reprodutora de injustiças, como
um instrumento de mudanças, ou seja, aponta para a “natureza contraditória das
instituições sociais e, aí, a possibilidade de mudanças; a Educação, dessa
maneira teria uma função conservadora e uma função inovadora ao mesmo
tempo” (CORTELLA, 2004, p. 135-136). Nesse caso, os profissionais da
educação assumem na escola um papel político-pedagógico, tendo como foco
formativo a construção coletiva do espaço escolar como um lugar de inovações.
É na proposta contra-ideológica, diante de uma sociedade marcada por interesses
particulares, que a escola se constitui em um ambiente de formação crítica. Nessa
abordagem, Veiga (2003) apresenta o projeto político-pedagógico, segundo duas
tendências: inovação regulatória ou inovação emancipatória.
É uma inovação técnica ou regulatória quando a busca é para perpetuar o
instituído. O projeto político-pedagógico constitui-se, assim, por um documento
pronto e acabado, provindo do conjunto de atividades técnicas voltadas a gerar
um produto que exclui as diversidades de ideias e interesses. Não pertence a
essa inovação uma participação coletiva na construção de concepções que
almejam ações mais contextualizadas e personalizadas.
52
Em contrapartida, a inovação emancipatória ou edificante “procura maior
comunicação e diálogo com os saberes locais e com os diferentes atores e
realiza-se em um contexto que é histórico e social, porque humano” (VEIGA,
2003, p. 274). Nessa visão, o projeto político-pedagógico da escola torna-se uma
proposta de ruptura epistemológica com aquilo que é imposto pela sociedade
como pré-estabelecido ou pré-determinado, por considerar importante o
engajamento participativo de forma crítica e reflexiva da comunidade escolar, em
todas suas etapas de atuação e avaliação.
Segundo Gohn (2006), o processo de formação humana envolve três dimensões:
formal (desenvolvida na escola com conteúdos pré-estabelecidos), informal
(aprendida no processo de socialização com a família, com os amigos, no bairro)
e não-formal (se aprende no “mundo da vida”, sobretudo, em espaços e ações
coletivas). Essas dimensões constituem-se de modo diferente nos vários campos
em que se desenvolvem, apresentando diversidade de educadores, de espaço,
de modalidades, de objetivos, de atributos, de resultados esperados, de metas.
Se a educação for concebida na sua totalidade, isto é, na interação entre essas
três dimensões, promoverá sempre mais inclusão social, ação esta entendida
como possibilitar “formas que promovam o acesso aos direitos de cidadania, que
resgatam alguns ideais já esquecidos pela humanidade, como o de civilidade,
tolerância e respeito ao outro” (GOHN, 2006, p. 36).
Em suma, a missão do projeto político-pedagógico em organizar o trabalho
escolar, torna-se mais significativa se for fruto de uma gestão democrática; se
resultar de um processo de construção coletiva que assuma uma visão de
educação na sua totalidade; se compactuar uma mesma intencionalidade; se
confirmar a identidade da escola enquanto realidade que se distende em um
processo de vir-a-ser, flexível à vida da comunidade educativa e a de seu
contexto amplo.
53
2.3 A importância do planejamento educacional
A busca de compreender o diálogo na construção coletiva do projeto político-
pedagógico levou-nos a perceber o homem enquanto ser que se realiza na
relação com o outro e com o mundo. O projeto político-pedagógico, constituído
como um espaço de trabalho coletivo, é realidade mediadora no encontro entre
homens envolvidos na ação educativa que interagem na intenção de refletir uma
ação humana que tem como finalidade o próprio homem.
Compreendemos, com Paulo Freire e com Martin Buber, que o homem, por ser
um ser inacabado, projeta-se continuamente na busca de ser mais. Os seres
humanos são um para o outro mediação no processo de “acabamento”.
A intencionalidade educativa escolar visa propor caminhos que interferem nesse
processo de realização humana. Para que essa atuação seja a melhor possível,
faz-se importante que os integrantes da comunidade educativa tenham, no
exercício da reflexão coletiva, uma boa base crítica, metódica e abrangente, a fim
de construir e efetivar o próprio projeto político-pedagógico, utilizando boas
estratégias para apreender possibilidades de ser e de compreender o homem e
sua situação no mundo da escola, do seu contexto e da sociedade.
No intuito de elucidar o processo educativo no seu caráter intencional, enquanto
realidade produzida pelo homem, Lorieri (1982) leva a compreender a reflexão
filosófica na prática do planejamento educacional como um instrumento de
fundamental importância relativa à atitude crítica e reflexiva do homem para
intervir no mundo de forma mais abrangente e melhor possível. Lembramos que
essa é uma prática que também permeia todo processo de construção e atuação
do projeto político-pedagógico.
Lorieri (1982) sintetiza sua ideia de planejamento educacional enquanto
Um processo através do qual se pode dar maior eficiência à ação educativa para alcançar, em um prazo determinado, um conjunto de metas estabelecidas. Compreende-se planejamento, antes de tudo, como um processo lógico que auxilia o comportamento humano racional na consecução de atividades intencionais voltadas para o futuro. Para
54
um futuro mediato, ou seja, aquele que é previsto através do raciocínio e não para o futuro, apenas imediato, obtido pela prática do existir predominantemente sensorial (LORIERI, 1982, p. 69 – grifos nosso).
Nessas palavras, Lorieri (1982) apresenta o planejamento educacional
enfatizando a ideia de processo e de intencionalidade, conceitos esses já
explicitados anteriormente como dimensões centrais do projeto político-
pedagógico.
O planejamento, segundo autor, é constituído por quatro fases interligadas entre
si: conhecimento adequado da realidade de intervenção, de modo mais específico
a realidade dos seres humanos envolvidos na ação educativa; decisão enquanto
“cisão” com o vivido para buscar uma forma melhor de exercer a ação educativa
ou justificativas que fundamentem a situação atual, atribuindo valoração a certa
maneira de ser do homem; ação voltada a implementar ou efetivar as decisões
feitas sendo sempre acompanhada pela criticidade enquanto significação das
próprias ações; crítica entendida como processo de re-visão voltada a
acompanhar, a controlar e a avaliar a ação, gerando consciência de todo
processo.
Seguindo essas indicações, compreendemos que uma intervenção na realidade
mais adequada possível significa ao mesmo tempo produção de sentido, pois
“produzir o sentido do mundo e produzir o mundo são uma e única tarefa que diz
respeito a todos os seres humanos” (LORIERI, 1982, p. 84). E essa experiência
se faz na valoração da práxis entre homens que se encontram mediados pelo
mundo para produzir e reproduzir conhecimento humano.
Promover o diálogo no interno das atividades educativas é o esforço que todos
nós podemos fazer a partir do momento em que nos abrimos para perceber a
presença do outro, procurando trabalhar com ele. O projeto político-pedagógico é
uma das ocasiões de práxis humana designada a humanizar o mundo e o
homem: o encontro com o outro é possibilidade de ampliar os horizontes,
somando novos olhares, novas compreensões.
55
No próximo item, conheceremos a experiência de construção coletiva do projeto
político-pedagógico elaborado pelos participantes desta pesquisa, como resposta
à demanda que levantaram sobre a realidade educacional.
2.4 Uma experiência de construção coletiva do projeto político-pedagógico
Como já mencionado na apresentação deste trabalho, a construção do projeto
político-pedagógico foi mediada por um Apoio à Gestão como parte do projeto de
pesquisa “Diálogo e Participação” da PUC-SP e da Labor, buscando no
referencial dialógico de Paulo Freire as bases epistemológicas para tal atuação.
Os encontros, dos quais participamos para a construção coletiva do projeto
político-pedagógico, foram somente aqueles com a presença do Apoio à Gestão.
Assim, as atividades que os educadores e gestores fizeram além dos encontros
com o Apoio à Gestão, não serão aqui mencionadas.
O processo de planejamento e estudo sobre o projeto político-pedagógico e sua
construção coletiva teve duração de dois semestres, tendo iniciado no segundo
semestre de 2007. Esse processo foi organizado em duas etapas. A primeira,
teve como objetivo estudar sistematicamente as partes componentes do projeto
político-pedagógico, bem como sua origem e sua finalidade. A segunda, refere-se
à construção coletiva desse projeto.
Na primeira etapa, elaborou-se um esboço do projeto político-pedagógico, que
teve como estrutura as orientações oferecidas pelo edital da Prefeitura. Na
segunda etapa, em que se construiu coletivamente o projeto político-pedagógico,
participaram cerca de quinze pessoas, representantes do CEI e do Agente Jovem
e da associação de moradores de bairro: gestão, coordenação, educadores,
funcionários da cozinha e representantes da comunidade e uma educanda do
Agente Jovem.
Nas duas etapas, não houve representação das famílias. Para contornar essa
dificuldade, o grupo escolheu marcar algumas assembléias com os familiares dos
56
educandos do CEI e do Agente Jovem, a fim de explicarem o significado do
projeto político-pedagógico e apresentar o seu processo de construção coletiva
em andamento. Solicitaram, desse modo, a participação dos familiares nas
decisões e projetações sobre a educação escolar dos educandos.
O quadro que segue descreve os eixos orientadores da primeira etapa, que teve
duração de cinco meses.
Apresentações mútuas entre os representantes da comunidade
educativa e do Apoio à Gestão;
Discussão sobre a compreensão de projeto político-pedagógico;
Avaliação institucional;
Estudo de vários modelos de projeto político-pedagógico;
Pesquisa sobre a proposta do projeto político-pedagógico presente no
edital da Prefeitura;
Elaboração de um esboço do projeto político-pedagógico;
Planejamento de um encontro sobre concepção de criança e de
Educação Infantil;
Finalização da primeira etapa com um encontro entre gestores,
educadores e representantes da comunidade sobre concepção de
criança e de Educação Infantil. Esse encontro foi conduzido pelo
Apoio à Gestão e duas professoras da PUC-SP.
57
Nessa etapa, as reflexões do grupo de representantes das organizações
educativas foram desenvolvidas na tentativa de delimitar um modelo de projeto
político-pedagógico que melhor correspondesse à identidade e necessidade das
duas organizações educativas: CEI e Agente Jovem. Para isso, foram
examinados modelos de projetos político-pedagógicos e aprofundadas as
orientações oferecidas pelo edital da Prefeitura sobre essa proposta voltada à
Educação Infantil. Para a maioria essa era uma temática nova, sendo os
encontros dessa fase identificados como propiciadores de novos conhecimentos.
Ter um coletivo maior para pensar em uma proposta de projeto político-
pedagógico de correspondência à realidade vivida e às metas a serem
planejadas, foi a preocupação central dos participantes dessa primeira etapa, na
busca do como envolver mais pessoas nessa construção. Foram convidadas
várias pessoas, mas como esse era um período de intensas atividades sociais
promovidas pela associação de moradores de bairro, decidiram planejar um maior
envolvimento para a segunda etapa.
Uma primeira experiência de ampliação das reflexões sobre o projeto político-
pedagógico como construção coletiva ainda na primeira etapa, foi envolver
educadores e funcionários do CEI e do Agente Jovem na partilha e
aprofundamento sobre a concepção de criança, bem como seus direitos e
deveres, a fim de avaliarem juntos a própria experiência e, ao mesmo tempo,
identificarem quais dimensões priorizar e/ou melhorar em sua proposta de
Educação Infantil. Com esse encontro concluiu-se a primeira etapa do processo
de construção do projeto político-pedagógico.
A segunda etapa, que foi a construção coletiva propriamente dita do projeto
político-pedagógico, ocorreu no segundo semestre de 2008, logo após um
período de recesso escolar, e teve por duração cinco meses. Segue um quadro
que relata os eixos orientadores dessa etapa.
58
Os dois primeiros encontros da segunda etapa foram realizados ainda com o
grupo restrito de participantes. Retomaram o estudo feito na etapa anterior. Em
seguida, foi planejado um encontro com todos os profissionais do CEI, do Agente
Retomada da caminhada com a equipe da primeira etapa após o recesso
escolar;
Delimitação de um índice provisório do projeto político-pedagógico;
Definição do cronograma de construção coletiva do projeto político-
pedagógico;
Encontro com todos os educadores do CEI, profissionais do Agente Jovem
e representantes da comunidade: apresentação da proposta do projeto
político-pedagógico como construção coletiva.
Início da elaboração coletiva do projeto político-pedagógico com os
representantes do CEI, do Agente Jovem e da comunidade;
Construção do item: Histórico do CEI, do Agente Jovem e da associação
de moradores de bairro.
Realização do diagnóstico da situação atual e delimitação da “missão
futura”.
Delimitação dos valores que se pretende priorizar no processo educativo.
Elaboração dos objetivos pedagógicos e colocação de ideias sobre como
organizar o processo de ensino-aprendizagem.
Construção dos itens: Gestão e Plano de Ação;
Finalização do processo com churrasco.
59
Jovem e de representantes da comunidade, a fim de apresentar a proposta de
construção coletiva do projeto político-pedagógico. Evidenciou-se sempre mais o
desejo de mais pessoas participando desse trabalho coletivo.
Esse encontro teve por objetivo apresentar o percurso de estudo sobre o
significado do projeto político-pedagógico e a sua importância enquanto
construção coletiva, que seria a experiência feita na primeira etapa culminando
em uma proposta de índice para o futuro projeto. Optou-se por orientar que cada
pessoa teria a liberdade de escolher se fazer parte ou não dessa construção
coletiva. Para facilitar a disponibilidade de tempo, foi proposto que os encontros
acontecessem aos domingos de manhã, uma ou duas vezes ao mês.
O diretor da associação de moradores de bairro foi a pessoa escolhida para
expressar o convite aos educadores, funcionários e representantes da
comunidade. Algumas pessoas optaram em participar já no mesmo instante,
demonstrando curiosidade em saber melhor o que seria essa proposta, outras
preferiram ter um tempo maior para refletir.
Os encontros de construção do projeto político-pedagógico aconteceram no
espaço do Centro comunitário. As reflexões sobre cada item e/ou atividade
aconteceram no coletivo. Os trabalhos aconteceram ora em pequenos grupos, ora
em um único grupo.
Cerca de quinze pessoas realizaram a construção coletiva do projeto político-
pedagógico e, dentre essas, onze pessoas aceitaram o convite para participar de
entrevistas para esta pesquisa.
60
CAPÍTULO 3
A CONSTITUIÇÃO DA SITUAÇÃO DE PESQUISA
Este texto apresenta as opções metodológicas que orientaram nosso
procedimento de investigação: definição da pesquisa enquanto abordagem
qualitativa; apresentação dos participantes; os procedimentos utilizados a fim de
interrogar e compreender a temática em estudo: qual a compreensão de diálogo a
partir da experiência de gestores, educadores e representantes de uma
comunidade que participaram da construção coletiva do próprio projeto político-
pedagógico, o qual teve como referencial a filosofia dialógica de Paulo Freire.
3.1 Abordagem da Pesquisa
Segundo definição de Lüdke e André (1986), referindo-se às reflexões de Bogdan
e Biklen, a pesquisa de abordagem qualitativa “envolve a obtenção de dados
descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada,
enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a
perspectiva dos participantes” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 13).
Este estudo desenvolve uma pesquisa qualitativa pelo seu tipo de interrogação:
compreender o sentido de diálogo expresso por gestores, educadores e
representantes da comunidade, que relataram sua experiência a partir das
condições históricas e sociais nas quais estavam envolvidos. Buscamos
compreender como se deu o fenômeno do diálogo por meio do sentido a ele
atribuído, sem a pretensão de generalizá-lo.
A abordagem qualitativa desta pesquisa justifica-se tanto pelo objetivo apenas
citado, quanto pela base epistemológica deste estudo: a compreensão do homem
61
como ser de infinitas possibilidades, co-existindo na dialeticidade com o mundo
inacabado. Essa base epistemológica conduziu-nos a buscar continuamente a
interação homem-mundo de um contexto específico, na comunicação
estabelecida com os participantes da pesquisa.
Nossa compreensão da realidade em estudo não foi neutra, já que composta por
nossas concepções e valores, que orientaram a interpretação dos
acontecimentos. Confrontamos continuamente as interpretações e sentidos
atribuídos a essa realidade, verificando-as em conversas frequentes com os
participantes desse processo.
Outro aspecto, que caracteriza este trabalho como sendo uma pesquisa de
abordagem qualitativa, é ser este um estudo que teve como base a descrição feita
pelos participantes sobre sua compreensão de diálogo na construção do projeto
político-pedagógico, uma situação em que se buscou a prática dialógica entre
eles. Essa foi a situação pela qual interrogaram, compreenderam e descreveram
sua posição no mundo.
O primeiro passo de concretização da pesquisa de campo foi conhecer a região20
onde se localiza o CEI e o Agente Jovem, as propostas educativas que oferecem,
bem como as pessoas que deles fazem parte. Assim, acompanhar o processo de
construção coletiva do projeto político-pedagógico tornou-se uma ocasião propícia
para tal conhecimento, permitindo também aos participantes da pesquisa nos
conhecer melhor pela convivência prolongada na comunidade.
Durante o trajeto percorrido até chegar no local da primeira reunião com o Apoio à
Gestão, tivemos o primeiro impacto com essa nova realidade. A paisagem que se
apresentava aos nossos olhos: ruas estreitas, algumas sem asfalto; prédios com
apartamentos da Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB) e da
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo
(CDHU); pequenas casas de tijolos e barracões de madeira, distribuídos em
planícies e morros, que se encontravam com o verde da serra; em alguns trechos,
o esgoto a céu aberto.
20
Na apresentação desta pesquisa já tivemos a oportunidade de descrever o contexto social da
região da zona norte de São Paulo, e a realidade da comunidade à qual este estudo se volta.
62
Ao chegarmos no local combinado para a primeira reunião, alguns educadores
estavam na calçada. Com uma cordial acolhida, orientaram-nos a entrar no CEI,
onde seria realizado o encontro.
O espaço do CEI é pequeno e de simples arquitetura. Logo ao entrar, há o
refeitório; na cozinha, pessoas da comunidade preparavam o café da manhã.
Quando nos apresentamos às pessoas que ali estavam e que também iriam
participar da reunião, uma educadora logo nos ofereceu café, convidando-nos
para partilhar essa refeição com eles.
Esse momento instaurou-se como experiência dialógica voltada ao conhecimento
recíproco, mediado por nosso interesse de estudo e pela necessidade que eles
apresentaram em querer saber construir, de modo coletivo, o próprio projeto
político-pedagógico.
Após o café da manhã, fomos para uma sala, que normalmente é usada como
sala da direção e da coordenação. Nessa reunião, como nas outras que se
seguiram, observamos e registramos as interações que os participantes
estabeleciam, entre si e entre a situação social do próprio contexto de vida ali
relatado.
Os encontros de construção do projeto político-pedagógico aconteceram ora no
CEI, ora no centro comunitário.
O espaço do centro comunitário, utilizado para a realização das atividades do
Agente Jovem e também da associação de moradores de bairro, está situado em
um quarteirão abaixo do CEI. É um espaço organizado em duas salas; existe
também um escritório. Uma das salas dispõe de computadores, mesas, cadeiras
e de uma pequena estante com livros. Na outra sala, estão colocadas cadeiras e
mesas para a realização de encontros formativos ou comemorativos, seja entre
jovens e educadores, seja entre membros da associação de moradores de bairro.
63
3.4 Participantes
A escolha dos participantes desta pesquisa ficou limitada às pessoas envolvidas
com a educação escolar do CEI e do Agente Jovem, que foram compondo o
grupo que construiu o projeto político-pedagógico.
Durante a nossa participação nos encontros com o Apoio à Gestão, o presente
estudo foi tomando maior definição enquanto projeto de pesquisa. Assim, ainda
na primeira fase da construção coletiva do projeto político-pedagógico, expomos
para os presentes, no final de uma reunião com o Apoio à Gestão, nosso tema de
pesquisa: a compreensão de diálogo. As pessoas ali presentes expressaram ser
uma temática de interesse para eles, disponibilizando-se a colaborar.
Cada uma das pessoas que participavam dos encontros com o Apoio à Gestão
possuía diferentes funções nas organizações educativas, bem como tempo de
atuação. No intuito de obter maior diversidade no relato de experiência sobre a
compreensão de diálogo, estendemos o convite a todos os participantes do
processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico. Na primeira fase,
todos os envolvidos participaram da primeira entrevista, e, na segunda, outras
pessoas aderiram ao convite novamente feito. No total, foram onze pessoas que
fizeram o relato sobre a compreensão de diálogo durante a construção coletiva do
projeto político-pedagógico, nas entrevistas coletivas.
Um critério importante na escolha dos participantes é que eles tivessem
participado dos encontros com o Apoio à Gestão para a construção coletiva do
projeto político-pedagógico, já que nos propusemos pesquisar a experiência
específica de diálogo nessa participação. Além desse fator, que unia os
participantes desta pesquisa, havia também o envolvimento com a educação
exercida nas organizações educativas em questão.
Em seguida, apresentamos cada participante da pesquisa. Os nomes que
utilizamos são fictícios.
64
Cristina participa das atividades da associação de moradores de
bairro. Atuou no Agente Jovem como educadora. Exerce trabalhos
voluntários nos projetos da associação de moradores de bairro;
Roberta participa das atividades da associação de moradores de
bairro. Foi coordenadora do CEI e, em março de 2008, desvinculou-se
desse trabalho;
Marília participa das atividades da associação de moradores de
bairro. É educadora no CEI. Assumiu a coordenação do CEI no
primeiro semestre de 2008;
Henrique, diretor geral dos projetos da associação de moradores de
bairro. É o diretor do CEI e colabora na gestão do Agente Jovem. Está
vinculado a vários projetos sociais para essa região;
Andréa participa das atividades da associação de moradores de
bairro, trabalhando no projeto da escola de informática para jovens. Foi
a coordenadora do Agente Jovem até abril de 2008;
Luiz participa das atividades da associação de moradores de bairro.
Trabalha no atendimento dos moradores da região que possuem
problemas de aquisição do terreno habitacional. Assumiu a
coordenação do Agente Jovem a partir de abril de 2008;
Edson participa das atividades da associação de moradores de
bairro. É professor de capoeira no Agente Jovem;
Rogério participa das atividades da associação de moradores de
bairro. É professor de capoeira no Agente Jovem e no CEI;
Luisa participa das atividades da associação de moradores de
bairro. É educadora no CEI;
Ângela participa das atividades da associação de moradores de
bairro. É educadora no CEI;
65
Ester participa das atividades da associação de moradores de
bairro. Foi educadora no CEI. É educadora social de um projeto de
micro crédito voltado às pessoas que buscam adquirir habitação
própria.
3.5 A questão do diálogo: como interrogar?
Apreender a situação em que se vive e nela atuar são atitudes humanas
essencialmente interligadas.
[O homem] pensa e age numa unidade dialética, ou seja, ao mesmo tempo em que está interferindo (através de sua ação) na situação de que faz parte está apreendendo sua própria ação e a situação em que ela se dá (apreensão esta que pode ser crítica ou não) e, ao mesmo tempo em que apreende – pelo pensamento – sua ação, está desencadeando atos concretos de participação na situação, atos estes que revelam seu nível de apreensão, revelando-o ao mesmo tempo: são o testemunho de seu ser (LORIERI, 1982, p. 07).
Lorieri indica que o nosso modo de pensar e agir sobre uma situação, ao mesmo
tempo em que dá sentido a nossa existência, revela quem somos e como somos.
Essa, por não ser uma manifestação solitária, mas solidária, pois vivemos no
mundo com o outro, refere-se ao diálogo como condição humana apontando para
um sentido.
Assim, na busca de realizar a tarefa que nos propusemos – interrogar como se dá
o fenômeno do diálogo por meio do sentido a ele atribuído – colocamo-nos a
seguinte questão: como criar um espaço para o exercício da reflexão sobre o
próprio modo de ser no mundo com o outro?
A entrevista reflexiva em grupo (SZYMANSKI, 2002) pareceu-nos ser o caminho
adequado para esta investigação, por constituir-se em encontros semi-dirigidos e
sem roteiro fechado, como meio de facilitar a reflexão e a construção da narrativa
de cada participante.
Instigar a busca de conhecimento sobre a própria experiência de diálogo não é
somente um ato que requer exercício voltado à captação de algo externo a si,
66
mas comporta também voltar-se-para-si-mesmo ao perceber-se existindo-com-o-
outro. Assim, interrogar a compreensão de diálogo exigiu proporcionar aos
participantes desta pesquisa a oportunidade para que eles pudessem falar de si
mesmos por meio de sua prática educacional, na interlocução com outras
pessoas.
Por ser este um estudo relativo à busca de significados (a compreensão de
diálogo), a entrevista possibilitou o acesso ao vivido na experiência por meio de
trocas intersubjetivas entre entrevistador-entrevistado e entrevistado-entrevistado.
Essa entrevista caracteriza-se como reflexiva por proporcionar um momento de
recorte da realidade em que o entrevistado sistematiza suas ideias, na construção
do discurso voltado a um interlocutor. Às vezes, esse discurso apresenta-se como
um conhecimento inédito, elaborado naquele momento pelo entrevistado. “O
movimento reflexivo que a narração exige acaba por colocar o entrevistado diante
de um pensamento organizado de uma forma inédita até para ele mesmo”
(SZYMANSKI, 2002, p. 14). É também um procedimento em que o pesquisador
partilha com os participantes da pesquisa sua própria compreensão dos dados, no
decorrer de todo o processo de entrevista, apresentando a todos eles uma
devolutiva.
A opção pela entrevista reflexiva em grupo foi para valorizar a capacidade do
grupo em formular conteúdos e conhecimento na interação com o outro. O nosso
papel de entrevistador foi o de facilitador nessa interação, tendo como foco a
temática de estudo, que foi proposta em cada entrevista por meio de uma questão
desencadeadora.21
O processo de entrevista aqui aplicado constituiu-se em várias fases. A primeira
foi o momento assim chamado de “aquecimento”, onde pudemos falar de nós
mesmos (formação acadêmica, experiência de atuação no âmbito da Educação e
nosso interesse de estudo no Mestrado). Esse foi também o momento em que
apresentamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
21
No total foram três questões desencadeadoras, que estão explicitadas no quadro da página 69.
67
Esse documento, apresentado ao Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP, foi
lido a todos, nesse momento de “aquecimento”, antes de dar início ao processo
de entrevistas, fornecendo por escrito dados nossos e da nossa instituição de
origem (PUC-SP), esclarecendo o propósito do estudo, os benefícios, os
procedimentos, como também a preservação do sigilo das informações individuais
obtidas, entre outros. Consta, no anexo A, um exemplar desse documento.22
Solicitamos aos participantes que se apresentassem, dizendo o nome, qual
atividade exerce, onde e há quanto tempo.
O segundo passo foi a entrevista propriamente dita, com a exposição de uma
questão desencadeadora. Cada entrevista, gravada, durou em média quarenta
minutos. Buscamos, nesse momento, um relato sobre a compreensão de diálogo
solicitando um exemplo vivido, para que a reflexão pudesse caminhar em torno do
como foi a experiência de diálogo no processo de construção do projeto político-
pedagógico.
A busca do como no lugar do por que ou do o que é foi um meio que favoreceu
obter dos relatos, como indica Szymanski, “várias abordagens ao tema e,
consequentemente um enriquecimento posterior da análise” (SZYMANSKI, 2002,
p. 12).
O terceiro momento foi a realização da transcrição da entrevista. Após a
transcrição fizemos uma releitura do texto a fim de sistematizar o conteúdo de
forma mais compreensiva, retirando os vícios de linguagem. Elaboramos um texto
síntese, na busca de conhecer a compreensão dos entrevistados sobre o
fenômeno interrogado.
Marcamos novamente um encontro em grupo para a explicitação da nossa
compreensão sobre o sentido de diálogo revelado nos relatos. Nesse encontro,
fizemos uma leitura grupal do texto síntese, para que fosse verificada a
fidedignidade do conteúdo ali compreendido, dando espaço para o esclarecimento
de alguma ideia. No anexo B, estão reunidos todos os resumos apresentados.
22
Cabe informar que para os participantes que se inseriram no grupo de entrevistados foi efetuada essa primeira fase da entrevista, pois consideramos ser muito importante essa experiência de acolhimento e introdução à finalidade do estudo.
68
Nesses encontros de devolutiva, que foram gravados, houve poucas correções ou
posteriores reflexões. Emergiu, nas expressões dos participantes, um sentimento
de surpresa e um impacto positivo diante de suas próprias ideias narradas por
nós, no formato sistematizado da elaboração escrita.
Esse momento da devolutiva, além de garantir o cuidado ético com os
entrevistados, tornou-se para eles um momento de novo movimento reflexivo: ao
refletirem novamente sobre a questão desencadeadora, aperfeiçoaram a ideia
fornecida e buscaram a fidedignidade do conhecimento presente na narrativa
apresentada em formato escrito.
Ao todo, realizamos três entrevistas reflexivas em grupo e as respectivas
devolutivas.
No segundo semestre de 2007, foi possível verificar a primeira compreensão de
diálogo na primeira etapa do processo de construção do projeto político-
pedagógico.
Na segunda etapa, no primeiro semestre de 2008, com um grupo mais ampliado
de participantes, realizamos a segunda entrevista e devolutiva. E, finalmente,
após a conclusão do processo de construção do projeto político-pedagógico, em
um ambiente de maior vínculo entre todos, desenvolvemos a última entrevista.
A seguir, há um quadro panorâmico das entrevistas reflexivas realizadas,
apresentando as questões desencadeadoras e os participantes indicados pelos
nomes fictícios.
69
Encontros Questões desencadeadoras Participantes
1º Vocês poderiam comunicar uma experiência
de prática dialógica vivida nesse grupo,
durante o processo de construção coletiva do
projeto político-pedagógico?
Henrique, Roberta
Marília e Cristina.
2º Devolutiva Henrique, Marília e
Cristina.
3º Se vocês fossem contar para outra pessoa,
sobre a experiência de diálogo vivida nos
encontros de construção coletiva do projeto
político-pedagógico, como vocês relatariam?
Henrique, Marília,
Luiz, Andréa, Ester
Edson, Rogério,
Luisa e Ângela.
4º Devolutiva Henrique, Marília,
Cristina, Luiz, Ester
Edson, Rogério,
Luisa e Ângela.
5º Diante de todos os encontros vividos para
construir coletivamente o projeto político-
pedagógico, relate um momento marcante
que você chamaria de dialógico.
Henrique, Marília
Luiz, Edson,
Rogério, Luisa,
Ângela e Ester.
6º Devolutiva Henrique, Marília,
Luiz, Edson, Ester
Rogério e Luisa.
Um limite encontrado nesse processo foi a disponibilidade em participar de todas
as entrevistas e devolutivas agendadas. Nesse sentido, como foi possível
observar no quadro acima, houve uma oscilação do número de participantes.
70
Outro limite identificado nessa experiência foi o fato que as organizações
educativas passaram por um processo de trocas de funcionários e reformulação
de funções. Duas participantes das entrevistas (Roberta e Andréa)
desvincularam-se de suas atividades de trabalho, participando, por isso, somente
de uma entrevista.
Outra variante, no processo de realização das entrevistas, foi a realização da
devolutiva da primeira entrevista. Por causa da dificuldade de encontrar um
horário comum entre os entrevistados, optou-se em fazer a devolutiva com cada
um em momentos distintos. A devolutiva da Roberta não aconteceu porque ela
não estava mais trabalhando no CEI. Todas as demais foram realizadas
coletivamente.
O que relatamos, até este momento, sobre as opções metodológicas feitas a fim
de construir este estudo, levou-nos a compreender que pesquisar sobre a
compreensão de diálogo não podia ter outro caminho se não o de promover aos
participantes deste estudo uma experiência reflexiva sobre si mesmo com o outro,
e a entrevista reflexiva coletiva possibilitou isso.
É possível perceber que, desde o primeiro contato com o contexto da pesquisa,
iniciou-se nossa compreensão de diálogo, expressando-se como inquietação em
torno daquilo que pretendíamos compreender e do modo como iríamos
compreender.
A fim de fazer uma imersão no resultado do processo de entrevista, que foi o texto
das transcrições das entrevistas, realizamos leituras contínuas desse texto
abordado na sua totalidade, a fim de agrupar dimensões reveladoras de
significados em torno da problemática em estudo e, assim, elaborar um relatório
dos resultados (SZYMANSKI; ALMEIDA; PRANDINI, 2002, p. 75).
Ao identificarmos as unidades de significado, formamos categorias e
subcategorias. Realizamos uma leitura interpretativa desse novo texto, que deu
origem ao texto sob o título “compreendendo uma experiência de interação
humana”, que constitui o capítulo a seguir.
71
Antes, porém, de passarmos para o próximo capítulo, apresentamos como
conclusão deste item, uma síntese das etapas percorridas de “imersão” analítica
no resultado das entrevistas:
a) transcrição da entrevista tal como se apresenta no seu caráter de
linguagem oral;
b) releitura do texto transcrito retirando os vícios de linguagem que
dificultavam a compreensão do conteúdo;
c) “imersão” no texto de cada entrevista para a elaboração de síntese,
tendo como objetivo extrair das falas as ideias sobre a compreensão de
diálogo;
d) apresentação da síntese ao grupo de participantes da pesquisa para
verificar a fidedignidade de nossa compreensão, momento este
denominado devolutiva;
e) nova “imersão” na transcrição das entrevistas e devolutivas
consideradas em seu todo, para analisar o texto em vista de identificar
as unidades de significado;
f) agrupamento das unidades de significado em categorias e
subcategorias;
72
CAPÍTULO 4
COMPREENDENDO UMA EXPERIÊNCIA DE INTERAÇÃO HUMANA
A leitura das entrevistas transcritas possibilitou entender o sentido geral de
diálogo para os participantes da pesquisa. Após uma nova “imersão” nos dados
como um todo, por meio de várias releituras, foi possível entrever unidades de
significado em torno do fenômeno em estudo, sem perder de vista o seu contexto
(SZYMANSKI; ALMEIDA; PRANDINI, 2002, p. 75). Agrupamos essas unidades de
significado, juntando conceitos semelhantes que nos indicavam proximidade de
sentido, levando a identificar duas categorias denominadas: “procurando interagir”
e “O sentido de diálogo se desvelando no processo de construção coletiva do
projeto político-pedagógico.”
4.1 Procurando interagir
Procurando interagir foi a denominação que se mostrou ao sentido de diálogo
desvelado na análise dos relatos dos participantes da pesquisa.
Os gestores, educadores e representantes da comunidade que participaram deste
estudo, em vários momentos, usaram expressões como: “para mim diálogo é...”
ou “entendo diálogo por...”, que vinham acompanhadas ou não por relatos de
experiências. Esse tratar de definir o fenômeno do diálogo indicou-nos conceitos
que vimos retornar em várias falas e em momentos diferentes durante o processo
de entrevista.
Perseguindo esses conceitos, buscando o sentido que os unem, configurou-se o
fenômeno do diálogo compreendido como aquilo que se instaura no momento em
73
que as pessoas estão juntas, interagindo, independentemente do motivo ou de
que modo acontece.
A compreensão da prática dialógica emerge, portanto, como sinônimo de
interação humana mediada pela linguagem. A categoria “procurando interagir”
incorpora as seguintes subcategorias, que explicitam o perceber a interação
humana como:
conversa;
silêncio;
participação;
integração;
construção de conhecimento.
Cada uma dessas subcategorias será apresentada a partir dos conceitos que lhes
dão fundamentação, evidenciados de forma sublinhada.
4.1.1 Percebendo a interação humana como experiência de conversa
Com frequência emergiu nos dados das entrevistas a compreensão de diálogo
definido enquanto conversa entre pessoas por meio da fala e da escuta. Seguem
algumas colocações que dão sustentação a essa ideia:
Entendo diálogo por uma conversa de duas pessoas onde eu falo e escuto, eu não só falo, eu falo e escuto também (Ester).
De vez em quando, por exemplo, eu converso com a Ester, a gente fica duas ou três horas falando, pego o Edson aqui, e “alugo” a cabeça dele (Luiz).
Entendo o diálogo como uma forma de escuta, no qual um fala e outro escuta para haver uma maior compreensão, é quando surge a comunicação e os projetos que aqui foram sendo elaborados, aí entra a participação de todos, partindo deste diálogo. É isso! (Roberta)
74
O porquê do dialogar, saber ouvir, é como a Roberta já falou. É uma via de mão dupla, um fala outro escuta, aí cabe uma reflexão, cabe um entendimento. É uma articulação da linguagem (Marília).
Essa definição, apresentada pelos participantes da pesquisa, mostrou uma
significação comumente atribuída ao diálogo: uma conversa, um meio de
comunicação estabelecida pela linguagem.23 A conversa foi apresentada como
ação voltada a alguém, e compreendeu-se que para ser dialógica (algo que “dê
certo”), foi necessário que todos os interlocutores envolvidos na comunicação
tivessem oportunidade de falar.
Você tem que falar e o outro escutar, assim sucessivamente para que ele dê certo. Se um fala e o outro fica quieto, aí já não teve diálogo, pois o outro precisa argumentar (Roberta).
Os participantes atribuíram à fala e à escuta o movimento voltado ao
entendimento. Algumas pessoas direcionaram sua experiência de diálogo às
conversas vividas com a comunidade, enquanto faziam as pesquisas referentes
ao processo de construção do projeto político-pedagógico, para obter novas
informações. Relataram que para o diálogo “dar certo” foi necessário que entre
fala e escuta houvesse entendimento entre os comunicantes, ressaltando a
importância da escuta.
Marília identificou a imposição como sendo um conceito antagônico ao do diálogo.
Quando você também se coloca na proposta de saber ouvir o outro, tem mais é que refletir nessa proposta se realmente estamos dialogando ou impondo uma situação (Marília).
Por outro lado, a discussão foi mencionada como algo positivo, quando voltada a
estabelecer interação, por ter sido compreendida como momentos em que as
pessoas falaram sobre algo, expuseram opiniões e refletiram sobre elas. À
discussão atribuiu-se significação seja de exposição do próprio entendimento
sobre o que se falava, seja de falas que expressaram divergências de ideias. O
debate, nesta fala de Ângela, aparece com significação semelhante a essa última
da discussão: foi entendido como um momento de interação entre ideias e visões
diferentes e divergentes, na busca de um consenso.
23
Recorrendo ao dicionário, dentre outros significados sobre o termo diálogo, encontramos: “fala em que há a interação entre dois ou mais indivíduos; colóquio, conversa” (HOUAISS, 2007).
75
Acho legal também quando o grupo se reúne para debater, e aí de repente: ah, não é dessa forma, é desse jeito. Cada um tem sua visão e vai chegando num consenso comum (Ângela).
Emergiu na fala de Cristina o papel de educador como propiciador de diálogo:
estar junto e solicitar que o educando converse e discuta sobre suas dificuldades.
Propôs momentos de conversa, enfatizando a importância de comunicar com o
educando por meio de sua “linguagem”:
Quando eu trabalhava com os jovens, criei um momento com eles que eu rotulei: é o dia de lavar roupa suja. Ali, a gente sentava numa roda e ia discutir tudo: Por que você não gosta de fulano? Por quê... ? Era um momento em que a gente tinha para jogar para fora, um descarrego mesmo, e deu bastante certo esse trabalho, e as famílias vinham e perguntavam: que método você está usando com fulano? Por quê? Porque ele está numa porcentagem muito produtiva e diferente: é acompanhar o trabalho deles na escola, eu ia ver nota, eu ia ver tudo, frequência, não estava boa e a gente sentava pra conversar. Durante um mês eu tinha um dia pra ir até a escola. Valeu, e vale até hoje, a coisa de conviver com o jovem e aí falar a linguagem dele para você poder entendê-lo melhor (Cristina).
Henrique afirmou que entre eles existiu um ambiente aberto a receber e dizer
críticas, embora tenha percebido que nem todas as pessoas conseguiram dizer
suas críticas. Segundo ele, para dialogar foi preciso ter disposição e convicção
naquilo que se pensa, podendo inclusive fazer com que outras pessoas
acreditassem em suas convicções. Indicou na crise, crítica e embate os
pressupostos do diálogo.
A crítica, recebida como algo negativo, em outro relato, foi vivenciada como
processo de aceitação. No primeiro impacto, houve sentimento de insatisfação
por escutar uma avaliação negativa. Essa mesma experiência, vista após um
período de tempo, pôde ser transformada em uma “crítica construtiva”,
mostrando, assim, que as dificuldades existentes, no encontro entre pessoas,
podem ser superadas.
Ângela apresenta a ideia de diálogo como processo:
O diálogo não é para hoje, para agora, ele é um trabalho de „formiguinha‟, você começa hoje para ter o resultado amanhã, depois, mais pra frente (Ângela).
Tal afirmação nos explicita uma compreensão de diálogo voltado ao futuro,
existindo enquanto movimento, exigindo abertura à temporalidade inerente ao seu
76
proceder. Henrique indica a necessidade de disponibilidade à escuta para tentar
entender melhor as pessoas, sendo esse um desafio não fácil de viver, por
demandar tempo.
Há um outro fato também para considerar a respeito do diálogo: é a questão do ouvir. Existem algumas resistências. Eu, por exemplo, penso sempre que as pessoas estão entendendo as questões, acabava não ouvindo certas pessoas e preciso ouvi-las mais. Há algumas resistências que estou procurando entendê-las melhor. É nessa experiência do diálogo que você vê onde estão as dificuldades para trabalhar com elas. Ouvir é uma tarefa difícil. Encontrar tempo para ouvir não é fácil (Henrique).
A experiência do “saber ouvir o outro” foi identificada como disponibilidade em
escutar aquilo que a pessoa falou. O contato com outras pessoas, para Luiz, por
exemplo, foi motivo de admiração por aquilo que fizeram, e esse conhecimento
suscitou desejo de “fazer alguma coisa também”:
Você vai se espelhando no trabalho da pessoa e acreditando que você possa fazer alguma coisa também, a partir do conhecimento que você tem um pouco mais a fundo (Luiz).
O diálogo, compreendido como conversa, foi visto também como algo que “ligou”
pessoas, segmentos, projetos, organizações educativas. Houve, dessa forma, um
enfoque, no interno das relações de trabalho, sobre a importância das pessoas
estarem juntas, de querer caminhar juntas.
4.1.2 Percebendo a interação humana como silêncio
O silêncio foi percebido como experiência presente no encontro inter-humano.
Entre os sentidos dados à experiência atribuída a momentos de silêncio, um deles
foi a postura silenciosa como forma de dialogar. Luisa, quando interrogada
durante a devolutiva de uma entrevista sobre sua escolha de não expor sua
compreensão sobre diálogo, disse que acreditava ser o silêncio (compreendido
enquanto ficar calada) uma forma também de diálogo.
77
Foi dada significação à omissão da fala enquanto fala reprimida. A dificuldade em
expor no coletivo aquilo que se pensa foi uma situação atribuída a fatores
emocionais:
Existem fatores que impedem as pessoas se expressarem. As pessoas não se expressam, elas vivem muito o silêncio, falam muito nos bastidores, não conseguem expor isso num ambiente mais adequado, num ambiente crítico, para se encaminhar, se ouvir, se discutir. [...].Para mim é devido a fatores emocionais. [...] Às vezes chega a se expressar, mas não naquilo que realmente gostaria de falar, de expor. [...] Se a pessoa não defende sua bandeira, ela percebe que ela ficou em silêncio, mas não era bem aquilo, ela não queria ficar em silêncio, queria expor, defender uma posição, mas não conseguiu defender (Henrique).
Henrique, nessa colocação, fez notar que algumas pessoas nem sempre
conseguiram expressar aquilo que realmente gostariam de dizer, não defendendo,
assim, aquilo que pensavam.
Na primeira entrevista que realizamos com o grupo de entrevistados, os
participantes da primeira fase de construção coletiva do projeto político-
pedagógico, houve um relato de experiência em que uma pessoa não conseguiu
identificar nenhum exemplo de situação vivenciada enquanto dialógica. Nesse
contexto, sentia-se inibida em dizer aquilo que pensava ou acreditava.
4.1.3 Percebendo a interação humana como participação
O fenômeno de interação humana apareceu nas falas dos entrevistados vinculado
à ideia de participação. O ato de participar mostrou-se como encontro entre
pessoas com ideias diferentes. Disseram ser importante defender as próprias
convicções.
Durante esse processo, buscou-se a participação de pessoas a fim de obterem
novas opiniões. Entendeu-se que a experiência ampliada a um grupo maior de
pessoas geraria, por sua vez, possibilidades de novas construções e projeções
para as atividades educativas.
78
A ideia de participação esteve também vinculada à experiência de divulgação dos
encontros entre os educadores. A escolha de participar exigiu abdicações do
tempo pessoal. Houve a intenção de criar outras possibilidades a fim de envolver
mais pessoas na construção de um objetivo comum.
O esforço de divulgar esse processo, de trazer mais pessoas para participar. [...] Aí, nessa caminhada de participação, eu elogio aqueles que de alguma maneira tiraram um pouco mais de seu tempo para estar aqui conosco, discutindo e levando para outras pessoas o que acontece. Então, esse esforço de fazer com que haja mais participação na discussão, é pra mim um momento de diálogo mais importante (Henrique).
Para algumas pessoas, essa foi a primeira experiência em participar de um
planejamento coletivo. Em vez de participar ativamente das discussões e
propostas apresentadas, sua escolha foi de estar junto ao grupo como “ouvintes”.
Buscaram aprender com a experiência das outras pessoas.
Henrique, por outro lado, relacionou à ideia de participação a experiência de ir
além de uma posição de neutralidade perante as discussões. O ato de participar
incorporado ao dialogar representou para ele disposição em ouvir e contribuir ao
mesmo tempo:
Mesmo as pessoas que não estão vindo aqui no domingo, elas durante a semana tomam conhecimento das discussões. Essa experiência está muito forte. É muito difícil alguém ficar neutro, de alguma maneira estão participando, e isso é experiência de diálogo mesmo: as pessoas contribuindo, ouvindo, mesmo se às vezes seja nos bastidores (Henrique).
Nem todas as pessoas da comunidade escolar participaram dos encontros aos
domingos com o Apoio à Gestão. Por isso, durante a semana, em meio às
atividades escolares, buscaram comunicar tal experiência aos outros profissionais
da educação que não estiveram presentes nos encontros aos domingos. A
experiência de participação na construção coletiva do projeto político pedagógico
aconteceu, portanto, em dois modos: nos encontros com o Apoio à Gestão, que
significou estarem envolvidos ativamente nesse processo de construção ou como
ouvintes, aprendendo com os outros, e a participação de outras pessoas que iam
se inteirando das etapas desse processo por meio daquilo que lhes era relatado.
79
A participação foi remetida também ao sentido de acreditar nas propostas de
transformações sociais que essa comunidade vem assumindo em seu percurso
histórico.
E a minha visão sobre tudo, sobre o diálogo, eu costumo dizer, que minha estadia nesse enredo todo é participar das mudanças (Cristina).
O fato de estar presente nas discussões foi considerado como um momento de
continuidade nessa proposição, sendo um “elo nessa corrente”.
4.1.4 Percebendo a interação humana como integração
Nos relatos, vários participantes demonstraram ter presenciado mudanças
significativas no contato entre as pessoas que trabalham em organizações
educativas diferentes: passaram a vivenciar uma maior integração, seja entre as
pessoas, seja entre as organizações educativas unidas pela mesma proposta de
gestão. Perceberam que os encontros propiciaram maior ligação entre as pessoas
e uma nova disposição para realizar coisas em conjunto. Uma maior integração
entre eles gerou satisfação, busca por mais oportunidades de conversa, como
demonstraram as falas que seguem:
De uns tempos pra cá, houve assim uma abertura a mais ao diálogo. As pessoas estão conversando e estão participando. O trabalho ficou bem mais gostoso e mais interessante. Antes, tinha uma coisa meio fechada assim: CEI, CEI, associação, associação. Embora sempre o trabalho fosse junto, mas não entre os funcionários: não tinha uma ligação. Sempre houve essa divisão. Hoje em dia não, estou envolvido em todos os projetos, e para conversar é comigo mesmo, eu saio conversando com todos que encontro (Luiz).
O projeto proporcionou que todos os “projetos” pudessem estar dialogando mais. Antes, cada um ficava no seu espaço e era mais reservado. Hoje já não é assim, todos estão conversando e todos estão montando algo para que todos possam estar juntos, um exemplo disso é a festa junina no CEI. Antes, era só feita pelo CEI: educadores e funcionários. Os jovens não participavam. A comunidade participava com os pais e as famílias. Essa que nós estamos planejando já vai englobar tudo, todos os segmentos. Então essa forma de diálogo pra mim está acrescentando muito. Como é muito importante todos os projetos estarem caminhando juntos (Marília).
Hoje você tem um grupo mais integrado. Antes se dizia: eu não acho que é uma equipe, eu acho que ali é um grupo e aqui é outro grupo. Hoje já
80
não é assim, e a tendência é melhorar. Hoje é possível ver uma equipe. Tinham certas resistências que foram quebradas, jovens, creche, associação (Luiz).
Esse estar “integrado”, com “mais ligação” foi um aspecto identificado como
inesperado para os participantes desta pesquisa. A interação foi compreendida
como possibilidade de contribuição para um objetivo comum. As trocas de
recordações vividas nesse processo reforçaram o vínculo histórico existente entre
os educadores.
Para eu fazer parte da história, eu tive que me relacionar com outras pessoas, tive que estar junto para tentar construir, tentar ajudar, pesquisar, como a Marília falou, construir mesmo (Ester).
As mudanças que foram acontecendo no ambiente das três organizações, já
durante o processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico, foram
apreciadas como experiências dialógicas, no sentido de interagirem por meio de
conversas, de busca de informação e da escuta das pessoas para tomada de
decisões.
4.1.5 Percebendo a interação humana como construção de conhecimento
O conceito de conhecimento para essas pessoas esteve relacionado aos
conceitos de construção e descobertas por meio das ações de contar
experiências, trocar ideias, conversar o que se sabe e ouvir o que aconteceu.
Essa experiência desvelou-se como desencadeadora de novas aprendizagens,
principalmente em relação ao momento em que foi revisitada a história da
associação de moradores do bairro, do surgimento do CEI e do Agente Jovem,
bem como de outros projetos na comunidade. As falas que seguem explicitam
essa situação:
Eu acho que foi o momento que a gente conheceu a vida, a comunidade e trocou ideias, conversou o que sabia (Luisa).
Então, a partir do momento que você está vivendo aquilo ali, você vai conhecendo a história e vai ouvindo o que aconteceu, como aconteceu, o que foi feito e o que não foi feito (Luiz).
81
Eu vi uma coisa que para mim é diálogo: a Ester contou experiências dela na comunidade que a gente não imaginava, não é verdade em nossa reunião ontem? (Edson)
O diálogo aqui para mim é um aprendizado interessante. Sou novo na Instituição, muitas vezes no diálogo vivido nesse grupo do PPP
24 você
acaba colhendo o histórico da Instituição. Isso para mim é importante. É inclusive um material de estudo para eu estar passando para os jovens (Rogério).
Nessa última fala, Rogério retratou ainda que o aprofundamento do conhecimento
da história da comunidade foi um aprendizado significativo, considerado como
conteúdo a ser transmitido a outras pessoas. A experiência do conhecimento da
vida e história da comunidade despertou maior sentimento de pertença entre as
pessoas que participaram da construção coletiva do projeto político-pedagógico.
Perceber as possibilidades de aquisição e aprimoramento de conhecimento por
meio das trocas de ideias foi o que os participantes desta pesquisa consideraram
como experiência positiva, novas descobertas:
São coisas que você acaba descobrindo e que você não tinha nem noção. Eu não sabia nada, nem da história do bairro (Edson).
Foi um momento profundo de diálogo para a gente: tivemos que trocar muitas ideias, conversar muito e descobrir muita coisa para poder em grupos refletir (Luisa).
Essas descobertas estão referidas principalmente à experiência de ter
reconstruído o histórico dessa comunidade. A interação vivida nesse grupo foi
indicada como condição voltada à compreensão de mundo:
Acredito que o diálogo seja compreensão de mundo, porque, se você tem um bom diálogo, você compreende melhor o mundo, as coisas, as pessoas. Então, se você tem a base do diálogo, tudo fica mais fácil para você se desenvolver, caminhar, se formar como pessoa, como ser humano (Luisa).
O diálogo foi visto por Luisa como condição facilitadora para compreender as
pessoas, as coisas, o mundo: um processo de formação humana.
24
Essa sigla PPP são as iniciais do projeto político-pedagógico.
82
4.2 O sentido de diálogo se desvelando no processo de construção coletiva
do projeto político-pedagógico.
Na apresentação da primeira categoria denominada “procurando interagir”, foi-nos
possível apreender o fenômeno do diálogo se desvelando como experiência de
procura por interação entre os participantes da construção coletiva do projeto
político-pedagógico, entendida como conversa, silêncio, participação, integração e
construção de conhecimento.
Os dados colocaram em evidência alguns aspectos de como essa compreensão
de interação, apresentada pelos educadores, gestores e representantes da
comunidade, foi apontada como parte do processo de construção coletiva do
projeto político-pedagógico. Nessa categoria buscaremos indicar essa
compreensão, e para isso, retomaremos os conceitos já explicitados na categoria
anterior.
O significado do projeto político-pedagógico foi definido por Andréa como uma
teoria norteadora do trabalho das organizações educativas. Henrique disse que
para realizá-lo foi necessário estarem abertos e disponíveis para as tomadas de
decisões:
Disse a ela o que seria essa proposta de construção do projeto político-pedagógico: um grupo que se encontra com a finalidade de refletir na proposta, uma teoria que irá nortear todo trabalho da Instituição. (Andréa)
Nesse processo, necessariamente, tem que haver abertura e disponibilidade. Às vezes, há abertura e não disponibilidade, a pessoa tem outras prioridades que não seja sentar e conversar sobre as decisões a serem tomadas. Então há uma contribuição aí também, muito grande (Henrique).
Cristina percebeu, perante o conteúdo do texto-síntese que apresentamos em um
momento de devolutiva, que as pessoas que haviam feito esse relato
demonstraram interesse pela proposta do projeto político-pedagógico. Observou
também a manifestação de disponibilidade e interesse em outras pessoas em
participar desse processo, mesmo atuando como voluntárias nesse contexto de
83
educação. Identificou reconhecimento do outro no fato de convidarem mais
pessoas para vivenciar a construção coletiva do projeto político-pedagógico:
Achei “super” interessante como eles estão absorvendo o interesse pelo projeto político-pedagógico, ao ponto que a Ilma irá começar a fazer parte desse processo. O “bacana” é que mesmo sendo voluntária, isso não muda a visão da responsabilidade e interesse que demonstra, e é muito bem vindo. Cada dia você tem uma ideia e diz: o que você acha de nós fazermos isso? É “bacana”, eu contrato a ideia nova. Acho interessante a presença dela, mesmo não fazendo parte daquele quadro de funcionários. “Bacana” a consideração de alguém desse grupo aqui ir convidar ela, achei “pank”, “bacana” (Cristina).
As relações entre as pessoas que participaram dessa construção passaram a ser
permeadas pela experiência desse processo. Luiz comenta que, aquilo que iam
conversando, nos encontros de construção coletiva, foi sendo retomado por ele
nas conversas que teve no seu dia-a-dia:
Outra coisa que tem a ver com o diálogo é o momento que a gente vai vivenciando no dia a dia, conversando. A gente vai chegando ao trabalho, conhecendo determinada pessoa e se espelhando nisso aí [na experiência de construção do projeto político-pedagógico] (Luiz).
Essa experiência de construir coletivamente o próprio projeto político-pedagógico
para as atividades educacionais do CEI e do Agente Jovem foi a primeira
experiência dessa comunidade. Normalmente, acontecia a elaboração de um
documento escrito por uma pessoa, voltado somente às atividades do CEI, a fim
de cumprir as exigências da legislação. Um dos aspectos dessa experiência de
construção coletiva ressaltado pelos entrevistados foi um processo que revela
vontade de dialogar.
O próprio esforço pra fazer com que esse projeto não seja um projeto escrito por uma pessoa, o esforço de sair dessa modalidade para um projeto em que haja vários membros da equipe representando linhas de trabalho e práticas, já é uma demonstração da vontade de dialogar. O grande desafio para nós é justamente fazer um projeto coletivo e historicamente nós não temos conseguido elaborar esse projeto (Henrique).
A fala de Henrique demonstrou também que a experiência de construção coletiva
do projeto político-pedagógico foi um desafio.
Durante esse processo, constatou-se ser difícil pensar no coletivo. Acreditou-se
ser a prática coletiva, entendida como realização de atividades em conjunto, uma
experiência mais comum entre eles e mais fácil de ser realizada do que
84
estabelecerem um pensar no coletivo. O pensar coletivo, nesse caso, significou o
pensar entre várias pessoas sobre as propostas a serem escolhidas e definidas
para convergir em uma única intenção educativa. Nessa direção, percebeu-se que
essa experiência de construção coletiva do projeto político-pedagógico foi uma
possibilidade concreta de exercitar o pensar coletivamente.
Você pode até ter uma prática coletiva, mas o pensar coletivo é uma experiência concreta. Então, o esforço de sair da prática, ou seja, de pensar coletivamente, é um caminho, um bom exercício (Henrique).
Roberta reforçou que a participação de mais pessoas na construção do projeto
político-pedagógico fez com que essa proposta tivesse mais sentido na prática
deles, a fim de que não “ficasse uma coisa só no papel”.
A experiência de ouvir o outro foi ressaltada como uma experiência importante a
ser considerada durante a elaboração coletiva do projeto político-pedagógico.
Henrique comentou que em seu contexto de trabalho deparou-se com
resistências de pessoas, em relação a algumas propostas, e para enfrentá-las
precisou ouvir melhor essas pessoas, indo além de suas primeiras impressões.
Segundo ele, o diálogo foi um fenômeno revelador de dificuldades, possibilitando
buscar o como trabalhar com elas.
Posicionar-se na expectativa de ouvir o outro foi uma escolha que exigiu reflexão,
a fim de perceber, no que foi vivenciado, se se tratava de diálogo ou de
imposição. Um dos impedimentos indicados como dificuldade de dialogar nesse
processo foi a inibição de algumas pessoas, fato esse já explicado na categoria
anterior. Constatou-se a existência de expressões ditas fora do contexto de
discussão coletiva ou fora do seu interesse real. Nessa situação a concepção de
fala dialógica apareceu como sincera e sem temor.
Durante a primeira etapa da construção do projeto político-pedagógico, surgiu a
proposta de promover um encontro de discussão sobre a concepção de criança,
oferecido a todos os integrantes das três organizações educativas envolvidas
nesse processo. Tal experiência foi relacionada à ideia de diálogo como momento
de discussão e expressão de mais opiniões:
85
O outro ponto refere-se a essa discussão que nós vamos fazer dia catorze, que já é, digamos, um marco também dessa vontade de construir um projeto dialógico, ou seja, nós teremos a oportunidade de todos os que estão envolvidos direta ou indiretamente, que queiram e possam começar a discutir a concepção de Educação Infantil, de criança e tudo mais (Henrique).
Primeiramente era pra gente fazer o que era pra ser mostrado para a Prefeitura. Depois ele falando dessa reunião do dia catorze, realmente surgiu aqui essa ideia, e acho que é onde a gente vai ter bastante opiniões das pessoas que vêm e nos ajudam (Roberta).
Em relação às trocas de experiências, durante a construção coletiva do projeto
político-pedagógico, Andréa descreveu que foram para ela realidades
desencadeadoras de novas ideias, utilizou-as no desenvolvimento de novos
planos educativos.
O reconhecimento de fazer parte da história da comunidade provocou sentimento
de contentamento em perceber-se colaborando com uma história, e a construção
do projeto político-pedagógico foi apreciada como mais um tijolo dessa
construção.
Gostaria de acrescentar uma coisa: na troca de experiências, o fato de a gente fazer parte da história também. A gente de uma forma ou de outra colocou um bom tijolinho ali, um concreto, alguma coisinha ali, entendeu? E aí isso é muito rico também: oh, eu ajudei, já fiz parte de tal projeto. Isso é muito bom também, além da experiência em si é também ter plantado alguma coisa, deixado uma sementinha lá, em algum momento. Como agora: fiz parte do PPP, nossa! (Ester)
Eu entendi a fala da Ester neste sentido: ela está contribuindo com o grupo, está se relacionando com o grupo, para construir algo para o macro ela vai participar dessa construção. Não é isso Ester? (Andréa)
Uma das preocupações, que algumas vezes emergiu nos relatos, foi a
necessidade de maior responsabilidade com o objetivo comum das instituições
em questão. Henrique expôs o desejo de se formar um Conselho Gestor, para
que algumas pessoas possam assumir a responsabilidade da gestão dos projetos
da comunidade.
Como esse foi um processo de construção coletiva, destacou-se a importância
das tomadas de decisões feitas conjuntamente, possibilitando que as pessoas se
esforçassem em conversar com maior frequência entre elas. Isso levou a
compreender a construção coletiva do projeto político-pedagógico como momento
de reflexão sobre as tramas de relações vividas no quotidiano da comunidade
86
escolar. Nas relações interpessoais, estabelecidas durante esse processo de
construção, Henrique percebeu que foi uma experiência em que tiveram que lidar
com o sentido de poder entre eles.
Há uma contribuição também nas relações de poder interna nossa, as pessoas estão sendo forçadas a conversar mais. Às vezes, é forçado mesmo porque o tempo é tão curto e a gente acaba conversando pouco. Como no PPP tem que decidir junto, então as pessoas acabam forçadas a encontrar o tempo para conversar mais (Henrique).
O trabalho de acompanhamento do Apoio à Gestão foi identificado como
mediação de novos aprendizados sobre o que vem a ser o projeto político-
pedagógico. Verificou-se que esse acompanhamento foi significativo para
compreenderem o significado do projeto e como construí-lo: sem a vivência de
sua elaboração, seria difícil compreender seu significado. Aprender fazendo
propiciou maior sentido para o projeto político-pedagógico. A experiência
dialógica, nessa situação, foi identificada como possibilidade de colocar-se em
relação com uma realidade desconhecida, abertos às descobertas:
Pois esse processo está sendo importante pra mim hoje, principalmente na parte de crescimento, porque a gente escuta muito na Faculdade: ah o projeto político-pedagógico é isso e aquilo, mas na hora da prática é bem diferente. Se você não participar, pondo a mão ali, disponibilizando-se para vir aqui, independentemente de ser horário de trabalho ou em outros horários, você não vai aprender (Roberta).
E uma coisa que marcou foi a questão que fomos usar a internet, abrir e saber o que é isso [o projeto político-pedagógico]: ele é um artigo, ele é um anexo, ele é o quê? Então, é buscar saber primeiramente o que é. Então eu acho que para mim o diálogo naquele momento foi isso: compreender o que está ao redor, tentar desvendar as coisas. Por isso, para mim está sendo rica essa experiência de saber como articular, como fazer, como direcionar (Marília).
Marília, nessa última fala, demonstrou ainda o sentido de diálogo como
compreensão “do que está ao redor”, uma possibilidade de conhecer melhor a
realidade.
87
4.3 Sintetizando a compreensão de uma experiência de interação humana
Neste texto, buscamos mostrar, por meio de categorias, subcategorias e
conceitos, como se mostrou o sentido de diálogo explicitado por gestores,
educadores e representantes da comunidade ao serem interrogados a partir da
experiência de construção coletiva do projeto político-pedagógico. Como
finalização deste capítulo apresentamos uma síntese dessa análise.
A análise dos dados possibilitou apreender como gestores, educadores e
representantes de uma comunidade compreenderam diálogo na construção
coletiva do projeto político-pedagógico. Na primeira categoria, denominada
“procurando interagir”, pudemos perceber que essas pessoas relacionaram
diálogo à experiência de procurar interagir com alguém por meio da conversa, da
participação, do silêncio, da integração e da construção de conhecimento.
A linguagem, enquanto mediação da interação humana, foi delimitada à conversa
vivida pela fala e pela escuta, gerando entendimento. Os conceitos de discussão
e de debate emergiram como sinônimos, identificados com os momentos em que
expressaram ideias, opiniões, na busca por entendimento, e, ao lidarem com
concepções diferentes e divergentes, buscaram um consenso. A crítica foi
mencionada seja como expressão de algo negativo de uma pessoa a outra, seja
como possibilidade de conquistar novos adeptos a certa ideia.
Indicaram a fala reprimida como dificuldade de expor no coletivo as próprias
convicções e houve, dentre os entrevistados, quem teve dificuldade em identificar
um exemplo de prática dialógica nessa experiência.
O sentido de participação esteve relacionado ao encontro de ideias diferentes.
Disseram ser necessário que as pessoas nessa participação defendessem as
próprias convicções. A relação entre participação e divulgação da proposta de
construção coletiva justificou-se como busca por mais pessoas para se integrarem
ao grupo, a fim de proporem novas opiniões e possibilitar projeções futuras.
Houve identificação de participação de forma direta, vivida de modo ativo, indo
além de uma postura de neutralidade; quem escolheu em estar presente nas
88
discussões como ouvinte a fim de aprender com a experiência dos outros; de
forma indireta, por meio dos relatos fornecidos. A escolha em participar foi
qualificada como expressão de confiança na transformação desse contexto social.
Identificaram a ocorrência de maior ligação entre as pessoas e uma nova
disposição ao trabalho coletivo, dizendo ter percebido uma equipe mais integrada.
Constataram maior aproximação entre pessoas, equipes de trabalho e
organizações educativas na construção de um objetivo comum. Explicitaram
sentimento de satisfação pelas mudanças nas relações.
Percebendo a interação humana como construção de conhecimento foi uma
experiência que esteve relacionada ao resgate que fizeram da história da
comunidade. Pode-se perceber o conceito de conhecimento relacionado aos de
construção e de descoberta, que possibilitou apreender o sentido histórico que
vivenciaram nessa comunidade. Para alguns isso teve significação de um
conteúdo a ser transmitido para outras pessoas. Houve quem indicasse o diálogo
como sentido de formação, voltado a facilitar uma melhor compreensão de
mundo, das coisas e das pessoas.
A segunda categoria se mostrou como sentido de diálogo desvelado enquanto
parte do processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico para
esses gestores, educadores e representantes da comunidade, que participaram
desta pesquisa. A proposta em construir de modo coletivo o projeto político-
pedagógico foi identificada como “vontade de dialogar”, demonstrando interesse e
disponibilidade das pessoas em participarem dessa construção.
Essa proposta, que foi a primeira desse grupo, foi conceituada como “teoria
norteadora do trabalho educativo”. Perceberam essa experiência como um
desafio, dizendo ser mais fácil viver uma prática coletiva, relativa à realização de
atividades em conjunto, do pensar no coletivo, que foi para eles o exercício de
pensar no grupo a intencionalidade educativa das organizações educativas. A
participação dessa construção fez com que eles percebessem que essa não se
trata da proposta de construir um documento, ao indicarem a importância que não
seja algo somente para “ficar no papel”.
89
Relataram que a construção coletiva do projeto político-pedagógico os levou a
perceber a necessidade de maior disposição em ouvir o outro, sendo essa uma
atitude não fácil, por exigir disposição de tempo. Identificaram dificuldade de
relacionamento nas tramas de relações vividas no cotidiano escolar e
necessidade de buscar como trabalhar com essas dificuldades. Desse modo a
fala dialógica foi identificada como sincera e sem temor.
Outro aspecto foi a explicitação de maior responsabilidade com o objetivo comum,
aprendendo lidar com o poder.
A experiência com o Apoio à Gestão foi avaliada como sendo positiva, por ter
proporcionado compreensão do significado do projeto político-pedagógico
enquanto o construíam, um aprender fazendo.
Consideramos essas duas categorias, que apresentamos neste capítulo, a
expressão identificada como compreensão de diálogo referente aos relatos dos
entrevistados. No capítulo seguinte, traremos uma releitura dessas categorias à
luz da teoria estudada.
90
CAPÍTULO 5
SOBRE DIÁLOGO
A busca de compreender o fenômeno do diálogo na construção coletiva do projeto
político-pedagógico tornou-se um itinerário de aprendizagens significativas, das
quais tentaremos apresentar alguns aspectos.
Durante o procedimento de entrevista, notamos que os participantes discorriam
em torno da questão desencadeadora quase sempre de maneira livre e
espontânea, não demonstrando constrangimento em falar sobre a própria
experiência, refletindo em grupo a compreensão de diálogo vivido durante o
processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico.
Nos momentos de devolutiva, em que apresentamos aos participantes, no formato
de um texto-síntese, a nossa compreensão sobre as reflexões que fizeram a partir
da questão desencadeadora, houve explicitação de surpresa pelo conteúdo que
eles mesmos elaboraram. Essas manifestações nos levaram a identificar os
encontros para a realização das entrevistas coletivas como um espaço de
reflexão sobre a prática e o pensamento de si mesmo no mundo com o outro.
Luisa, na última devolutiva, espontaneamente, fez esse comentário:
Foi boa a experiência das entrevistas, fez a gente pensar, mexer um pouco no cérebro. Às vezes, a gente se acha tão incapaz de falar ou de pensar certas coisas. A gente fez certa relação com a vida. Esse momento de entrevista serve para exercitar a massa cerebral (Luisa).
Nessa fala de Luisa, percebemos exemplificado o sentido positivo atribuído pelos
gestores, educadores e representantes da comunidade aos momentos das
entrevistas como possibilidade para concentrar-se e fazer um recorte
momentâneo de uma experiência, distanciando-se dela para vê-la e refleti-la, a
fim de expô-la na interlocução com outros. Houve, nessa experiência, uma
91
abertura à colaboração no ato de atribuir sentido à interação vivida por eles
durante o processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico.
Identificamos, na convivência com essa comunidade, situada em um bairro da
zona norte de São Paulo, por meio de sua escolha em aprofundar a dimensão
dialógica relativa ao trabalho educativo desenvolvido no CEI e no Agente Jovem,
a importância de se compreender a prática educativa enquanto entrelaçamento de
vínculos, ou seja, um envolvimento recíproco entre educador25 e educando, entre
eles e as circunstâncias sociais da comunidade, que, por sua vez, é parte do
contexto mais amplo, a sociedade.
A partir do pensamento de Martin Buber e de Paulo Freire, compreendemos que
cada ato educativo, ao nos constituir enquanto pessoa, é ato de criação e
recriação do mundo humano, proporcionando-nos um modo de ser enquanto
respondedores ao mundo e pelo mundo. Para ambos os autores, o ser humano é
essencialmente histórico. A nossa disposição em perceber e dar sentido ao
mundo, na relação que estabelecemos com ele, atualiza-se na própria ação do
mundo sobre nós, transformando-nos.
Assim, o ato educativo se torna, antes de tudo, uma influência mútua no modo de
ser pessoa a cada interação vivida com alguém ou com alguma situação. Somos
afetados pelos outros e pelas coisas. Desejamos ser reconhecidos pelo outro,
assim como o acolhemos e o reconhecemos. Nessa busca por reciprocidade,
compreendemos, a partir do pensamento de Martin Buber (2004), que uma
experiência de construção se concretiza não somente limitada ao impulso
humano de criação, por ser um fazer de caráter unilateral, mas, a partir do
momento em que as pessoas, ao se envolverem em uma atividade de construção,
estejam também abertas à interação solidária com o outro, reconhecendo a
própria condição de ser uma parte, interligada a outras.
A ação educativa, interrogada no contexto em que desenvolvemos esta pesquisa,
foi a do diálogo na experiência de construção coletiva do projeto político-
25
A palavra educador está sendo empregada aqui no seu sentido amplo, correspondendo às pessoas que exercem o papel de educar essas crianças e jovens: familiares, professores, gestores, pessoas da comunidade.
92
pedagógico, um processo que teve como referência os aportes teóricos da
pedagogia do diálogo de Paulo Freire. Essa construção, sendo também uma
experiência de criação, pôde encontrar, na opção por uma construção coletiva, a
possibilidade de abertura a uma experiência de gestão participativa vivida entre
seus protagonistas.
Durante a construção coletiva do projeto político-pedagógico, as pessoas em
vários momentos disseram acreditar no diálogo enquanto escolha para responder
aos desafios políticos, sociais e econômicos do bairro, reproduzidos no cotidiano
escolar. A opção por enfatizar a prática dialógica nas atividades educativas
desenvolvidas com crianças e jovens, desvelou-se, dessa forma, como ação
contra-ideológica (SEVERINO, 2005) na interação dessas pessoas com as ações
de desumanização presentes nesse contexto. Demonstraram acreditar na
possibilidade de melhorias por meio de uma renovada convivência social.
Severino (1998), ao pontuar a missão da escola como aquela de inserir o homem
no mundo do trabalho, da sociabilidade e da cultura simbólica, lembra da
importância de que seu projeto político-pedagógico esteja voltado à uma
educação não alienante ou opressora da condição humana. Isso nos indica a
importância da educação escolar se constituir em um ambiente de formação
crítica do homem, considerado sujeito de sua história, capaz de atitudes contra-
ideológicas diante de uma sociedade marcada por interesses particulares.
Uma educação voltada a valorizar o homem em sua capacidade transformadora,
segundo Paulo Freire, compromete-se em conduzi-lo a compreender os
mecanismos de exclusão social que o condicionam. É ato de transformação que
produz intervenção na realidade de forma mais sistematizada, na tentativa de
transformar critérios de exclusão, sendo condição para que os homens cada vez
mais, não solitariamente, mas solidariamente, tomem conhecimento de como
estão sendo no mundo, e busquem novas possibilidades de sociabilidade.
Percebemos, de modo implícito, nas preocupações apresentadas pelos gestores,
educadores e representantes da comunidade referente ao seu contexto social,
uma educação escolar marcada pela busca constante em promover o valor do
humano. Uma busca que se revela atuante na escolha dessas pessoas em querer
93
aprofundar a prática dialógica enquanto fundamento de sua proposta educacional
com crianças e jovens dessa comunidade.
Cristina, que trabalhou como educadora no Agente Jovem, apresentou-nos sua
preocupação para com os jovens nesse contexto, depositando confiança no
trabalho comunitário que é desenvolvido como possibilidade de mudanças:
É necessário que a família incentive o filho a fazer parte de uma sociedade que a gente está fundando aqui. Acho importante a pessoa trabalhar na comunidade. Está começando a abrir um pouco. Da minha turma de 2005, onde estão esses jovens? O que nós estamos fazendo? A minha preocupação aqui na comunidade é o jovem (Cristina).
É por meio de sinais de busca pelo valor do ser humano, que vemos surgir a
dimensão freireana da esperança, com a qual somos impulsionados a não
permanecer em uma visão fatalista do real, quase sem enxergar uma saída. Ter
esperança é agir nutrido do otimismo de saber-se possibilitado a transformar,
existindo com os outros inconclusos em um mundo inacabado, na potencialidade
de ser mais.26
Observamos que, por ser esse um contexto marcado por vários problemas
sociais, exigiu das pessoas que demonstraram acreditar na formação de novo
convívio social, muito envolvimento em várias problemáticas da comunidade. O
fato de estarem buscando no diálogo o fundamento para sua atuação educacional
com educandos, indicou-nos que essa escolha poderá conduzi-los sempre mais a
ter na compreensão de diálogo uma das bases de referência para organizar e
interpretar, por meio da intencionalidade do processo educativo, as circunstâncias
em que se encontram condicionados enquanto processo de vir-a-ser.
Vimos na reflexão de Martin Buber (2004), relativa ao ato educativo, que cada
criança que vem ao mundo é possibilidade de recomeço. Diante desse novo que
irrompe a cada nascimento, a história da humanidade encontra uma possibilidade
26
Ser mais é uma expressão utilizada por Paulo Freire (2005), a fim de defender a possibilidade concreta de cada pessoa em desenvolver-se enquanto ser humano em contínuo devir em um mundo de possibilidades. É uma concepção que vai além, seja de uma compreensão determinista da realidade, reduzindo o ser humano a produto e objeto das circunstâncias, seja das tentativas de se atribuir ao homem o domínio exclusivo sobre as circunstâncias da realidade, sendo ele o único responsável pela sua situação no mundo. Indica que na relação homem-mundo não há determinismo, mas sim um condicionamento: o homem, inacabado e consciente de seu inacabamento, não somente é capaz de produzir e reproduzir o mundo, mas também criá-lo e recriá-lo, ao mesmo tempo em que é transformado por ele.
94
de começar novamente. Martin Buber evidencia a responsabilidade de quem
educa, no encontro com as novas gerações, de possibilitar que o novo não perca
a sua luminosidade na interação com a tradição cultural e com os impulsos de um
mundo que tende a caminhar em uma determinada direção. Assim, faz-se
importante compreender, na interação educativa, o valor de cada pessoa na sua
singularidade, indo além de uma visão generalizada de ser humano.
Segundo Buber, aquele que educa é para o educando o representante do mundo.
Essa questão revela, segundo nossa perspectiva, o compromisso central dos
gestores, educadores e representantes da comunidade, além da própria família,
enquanto responsáveis pela formação de cada educando do CEI e do Agente
Jovem.
Por isso, faz-se importante, enquanto atitude dialógica, refletir sobre o sentido da
relação que estão estabelecendo entre eles, buscando na compreensão de
diálogo a clareza sobre a própria concepção de ser humano e de mundo, a fim de
evitar cair em visões generalizantes, e, por isso, desumanizantes, bem como não
permanecer em uma dimensão da compreensão da dialogicidade humana
enquanto simples técnica de interação. E a construção coletiva do projeto político-
pedagógico é também um espaço significativo para essa reflexão.
Nesse sentido, um dos aspectos que gostaríamos de evidenciar é que dialogar
exige “tempo”, segundo aquilo que alguns participantes desta pesquisa
apontaram. Além dos relatos, já indicados na análise das entrevistas, no capítulo
anterior, Roberta explicitou falta de tempo, referida às “conversas” com famílias
que, na sua percepção, tinham dificuldades em compreender como viver o sentido
daquilo que ela considerava ser uma prática dialógica com filhos: correção por
meio de “conversas”, ao invés de utilizar o ato de bater.
A significação que damos à ideia de tempo não se refere somente à
disponibilidade em viver momentos de “conversa”. Mas também, e principalmente,
referimo-nos à necessidade de que essas pessoas dêem tempo para ad-mirar e
re-ad-mirar o vivido (segundo terminologia freireana), ou seja, priorizem e
95
promovam o exercício reflexivo27 sobre o agir pedagógico, distanciando-se
momentaneamente dele e das questões imediatas do cotidiano que as
preocupam, para olhá-los a partir de uma nova perspectiva. Isso, não para se
alienarem das mesmas, mas para aprofundarem, na problematização até mesmo
da própria busca por solução, o sentido crítico da situação em que se encontram.
A finalidade é acreditar que todos possuem saberes e capacidades e, assim,
podem adquirir sempre mais consciência de si mesmos, da possibilidade de
serem solidários, refletindo também sobre o sentido e o lugar atribuídos ao
processo educativo que desenvolvem com crianças e jovens.
Em relação à prática reflexiva no contexto educacional, encontramos, em
Dalbosco (2006), a importância de considerar a reflexão enquanto possibilidade
de problematização filosófica da ação humana, transformando o fazer pedagógico
em ação capaz de dialogicidade, ou seja, conceber o ato educativo enquanto
processo de interação humana voltado à formação de seres humanos dialógicos.
Lorieri (1982) também propõe, em seu estudo sobre a reflexão filosófica na
prática do planejamento educacional, a importância de se considerar a
experiência reflexiva do vivido como instrumento voltado à atitude crítica do
homem no seu modo de intervir no mundo.
Portanto, aprender continuamente a refletir o vivido, sendo uma dimensão voltada
a atitudes críticas diante do mundo, é escolha fundamental e constante enquanto
critério para uma prática dialógica com o outro e com o mundo. Acreditamos ser a
reflexão crítica um incentivo para que as preocupações emergentes do entorno
social não distanciem essas pessoas da oportunidade de aprofundar, na
compreensão de diálogo, a construção esperançosa de um mundo humano cada
vez melhor, ao mesmo tempo em que se tenta também valorar a condição
humana como algo sempre melhor.
27
Cabe enfatizar que na atitude dialógica não há separação entre reflexão-ação. Paulo Freire (2005) enfatiza a compreensão dessas duas dimensões como algo estreitamente interligado. A reflexão conduz à prática, ao mesmo tempo que, por ser ela fruto da ação, produz conhecimento crítico do vivido. Quando se estabelece dicotomia entre reflexão-ação, a palavra perde seu caráter transformador, configurando-se em formas inautênticas de existência: ativismo e verbalismo.
96
A reflexão conduz o homem a se distanciar, seja de experiências imediatas, seja
de teorias pré-concebidas, para olhá-las e resignificá-las, gerando criticidade.
Acreditamos em uma educação intencionada a formar posturas críticas perante a
própria relação com o mundo e com o outro. Ser crítico, segundo Paulo Freire
(1994), é saber problematizar principalmente as circunstâncias de não
reconhecimento do direito de cada homem de pronunciar o mundo28, procurando
tomar consciência dos fatores que geram exclusão social. E buscar compreender
a dialogicidade humana é comprometer-se com o outro e com o mundo.
Segundo a categoria “procurando interagir”, os participantes explicitaram, de
modo geral, o que julgamos ser um primeiro movimento em direção ao outro, em
busca de dialogar. O fenômeno do diálogo, segundo referencial estudado,
configura-se em uma condição existencial que vai além daquela de “estar junto
com alguém a fim de fazer algo”, e de uma “conversa” mediada pela “fala” e pela
“escuta”.
Paulo Freire nos diz que dialogar é ter “intensa fé nos homens”, sendo essa uma
postura que antecede ao ato de estar diante de alguém, impulsionando-nos a
desejar estabelecer interação: “A fé nos homens é um dado a priori ao diálogo.
Por isso, existe antes mesmo de que ele se instale” (FREIRE, 2005, p. 93).
Martin Buber nos indica que as pessoas permanecem voltadas-uma-para-a-outra
em reciprocidade interior a partir do momento que viveram uma experiência
concreta de reciprocidade, ou seja, estiveram abertas para perceber a presença
do outro enquanto diferente de si.29
28
Essa expressão pronúncia do mundo refere-se à concepção de Paulo Freire (2005) sobre a íntima interligação existente entre homem-mundo. Para ele, a consciência do homem sobre o mundo corresponde àquilo que se torna presente a ele. Assim, o mundo, tornado objeto de conhecimento humano, é reconhecido pelo próprio homem, impregnado de significados a ele atribuídos. 29
Essa concepção indicada sobre o diálogo, segundo Martin Buber, tem por fundamento a sua antropologia filosófica que apresenta o homem como ser de relações. Vivemos momentos de encontro com o outro, marcados por disposição de abertura à presença dele enquanto um Tu, que nos está diante. Os encontros Eu-Tu, mesmo sendo os mais raros em nossa vida, tornam-se presença, mantida em nós enquanto “memória viva” segundo a intensidade do momento experienciado. Até no distanciamento que somos provocados a viver do Tu, para apreender e transformar o mundo (natureza, sociedade) em objeto de conhecimento, que é a atitude mais frequente de nossa vida, não somos subtraídos da referência aos encontros tornados presença.
97
Os homens permanecem interligados, mesmo se distantes entre si. Cada
encontro tornado presença é impulso para o homem buscar repeti-lo, viver um
novo encontro, potencializando sua condição de existir enquanto ser de relações.
A desumanização se instaura quando a referência do homem passa a ser o
desejo de dominar o outro e o mundo, transformando-os em objeto privado para a
satisfação própria.
Dialogar é experiência em “processo”, como foi dito por um dos entrevistados. É
processo porque possibilita ampliar sempre mais o próprio modo de compreender
o mundo e si mesmo. Quanto mais nos envolvemos em experiências de
interação, mais nos tornamos capazes de dar maior sentido ao mundo e à nossa
vida nele. Agimos de maneira não dialógica quando pretendemos conquistar o
outro ou um objeto de conhecimento para impor o nosso modo de ser e de
compreender.
O contexto, ao qual os participantes desta pesquisa se referiram para refletir
sobre o seu modo de ser com o outro e com o mundo, foi, como já mencionado, a
construção coletiva do projeto político-pedagógico. Nesse contexto, a
dialogicidade emergiu na perspectiva de interagir mediante o processo de
reconstrução da intencionalidade educativa desenvolvida no CEI e no Agente
Jovem.
Em cada encontro coletivo para a construção do projeto político-pedagógico, os
participantes trocaram intencionalidades e sentidos sobre o mundo; buscaram
aprofundar o próprio conhecimento; encontraram confirmações e novas
concepções. Esse foi um processo de situação cognoscitiva em que os
participantes experienciaram intercomunicação e produziram novo conhecimento
de mundo, enquanto buscavam rever e reconstruir a proposta de educação do
CEI e do Agente Jovem.
Nessa construção coletiva, as indagações e inquietações que os encontros
suscitaram fizeram com que as pessoas se defrontassem com sua condição de
inacabamento. Houve momentos em que elas perceberam-se movidas pelo
mesmo desejo de aprendizado. Nessa postura de abertura diante de uma
novidade, foi possível apreender o sentido de liberdade, enquanto possibilidade
98
de decisão e escolhas, no acolhimento de perceber-se como sujeito de uma
história muito significativa, marcada de gestos de solidariedade.
Os momentos em que puderam “trocar ideias”, “conversar” sobre aquilo que
sabiam da história da comunidade ou “ouvir” pela primeira vez essa história,
foram os mais marcantes para os participantes das entrevistas, ideias essas
constituintes da subcategoria “percebendo a interação humana como construção
de conhecimento”.
O mundo humano é objeto de conhecimento humano e, enquanto mundo cultural,
torna-se mediação de comunicação entre homens. Os homens dialogam entre si
mediatizados pelo mundo, diz Paulo Freire (2005). Desse modo, podemos
compreender, assim como vimos em Martin Buber (2007), que o fundamento do
processo de humanização do homem não está na sua relação enquanto sujeito
cognoscente com o objeto cognoscitivo, mas na intercomunicabilidade.
A constituição desse atual bairro, como já mencionado na apresentação desta
pesquisa, foi um processo atravessado por sacrifícios e luta, a fim de obter o
terreno. Recordar determinados fatos foi, para algumas pessoas, o mesmo que
reconstruir a própria história de vida, uma situação de “partilha” com fortes
emoções, que provocou perceber de modo novo a própria história e o vínculo com
as outras pessoas. Esse fato gerou compreensão de maior “pertença” entre essas
pessoas.
Alguns educadores e gestores, por estarem vivendo um momento de nova
atividade profissional, evidenciaram a experiência de ter encontrado, nas
interações vividas durante o processo de construção coletiva do projeto político-
pedagógico, a possibilidade de “aprendizado”, demonstrando considerar esse
momento de construção enquanto experiência formativa voltada à aquisição de
novo conhecimento.
A intervenção social da educação, explicitada na intencionalidade do projeto
político-pedagógico, tornou-se mais significativa para esses gestores, educadores
e representantes da comunidade, a partir do momento em que a construíram no
coletivo. Viveram momentos de “partilha” e reflexões sobre o como e o que ser e
99
fazer, interrogando-se juntos sobre o porquê e o para que dos fatos sociais, na
busca comum de uma melhor prática educativa, levando em consideração o
percurso histórico já vivido até então. Por ser essa a primeira experiência de
construção coletiva para esse grupo, essa situação fez-se também momento de
construção de seu significado, portanto, produção de novo conhecimento
enquanto vivenciavam esse processo.
Para os participantes desta pesquisa, fez-se significativa a possibilidade de
“confrontar ideias”, “partilhar opiniões”, dúvidas, situações em que foram
conduzidos a verificar a própria compreensão de homem e ampliar a percepção
comunitária do sentido de dignidade humana. Esse foi um indício que levou-nos a
identificar essa práxis enquanto um importante processo de formação para os
profissionais da educação. Foi uma experiência em que puderam refletir o existir,
uns com os outros, possibilitados a transformar o mundo a partir das relações
interpessoais vividas no dia-a-dia no âmbito escolar, na responsabilidade pela
formação dos educandos.
Os gestores, educadores e representantes da comunidade “trocaram” pontos de
vista sobre o mundo (situação social, proposta educacional) enquanto construíam
o projeto político-pedagógico, por meio de visões temáticas impregnadas de
“recordações”, anseios, dúvidas, temores, esperanças e desesperança que,
enquanto parte da experiência humana, geraram ações com desejo de maior
interação entre eles. Essa experiência não pode ser ignorada na continuidade da
atuação do projeto político-pedagógico, já que sua elaboração foi simplesmente
um passo inicial de um contínuo processo de atuação e avaliação participativa.
A subcategoria denominada “percebendo a interação humana como prática de
integração”, demonstrou que houve entre as pessoas das diferentes organizações
educativas um novo movimento de “integração” entre elas, buscaram até mesmo
realizar atividades em comum entre CEI e Agente Jovem.
Compreender como o contexto social apresenta o valor da pessoa, enquanto
aprofundamento da dimensão dialógica, bem como questionar em que concepção
de homem se acredita para a prática educativa dos educandos, são
questionamentos pertinentes. Essa compreensão é mais abrangente e mais
100
profunda, segundo Gohn (2006), quando se compreende a interação entre as três
dimensões educacionais: formal, informal e não-formal.
Essas três dimensões são apresentadas por Gohn (2006) constituídas de modo
diferente nos vários campos em que se desenvolvem, apresentando diversidade
de educadores, espaço, modalidades, objetivos, resultados esperados. Nesse
contexto de pesquisa, esses três espaços educacionais estão muito próximos. Em
algumas ocasiões, pareceu-nos perceber essas três dimensões educacionais,
porque desenvolvidas em um mesmo ambiente, apreendidas de modo único.
Alguns dos que ali atuam como educadores ou gestores, são também pai ou mãe
de educandos nesse contexto, além de serem membros da associação de
moradores de bairro que propõe, dentre outras, atividades de lazer e cultura para
a comunidade.
Algumas pessoas, ao enfatizarem a importância da “escuta” ou da possibilidade
de poder ou não “falar”, na subcategoria “percebendo interação humana como
conversa”, levaram-nos a considerar uma solicitude em querer ser escutadas
mais atentamente na sua situação de vida. Nesse sentido, um processo de
construção coletiva do projeto político-pedagógico que priorize a dimensão
dialógica, desvela-se como espaço voltado a apreender a importância de
perceber o outro e sua situação, como pessoa se constituindo enquanto agente
de práxis escolar.
Dentre os participantes, houve quem declarasse a própria dificuldade em dispor-
se para escutar o outro diante das atividades do dia-a-dia. Dizer-se aberto ao
outro é estar intencionado a buscar percebê-lo enquanto presença. Perceber
tendo dificuldade em escutar já é, em nosso entendimento, um movimento voltado
ao desejo em estabelecer uma interação nova com o outro.
Todo diálogo tem um assunto por objeto, e Paulo Freire (2006) indica que quando
esse objeto é considerado como um conteúdo imposto entre pessoas, ele perde
seu significado, por estar configurado em algo que não considera a participação
de todos os envolvidos na interlocução.
101
“Percebendo a interação humana enquanto experiência de silêncio” é também
uma das subcategorias, que nos fez refletir sobre a necessidade, em uma postura
dialógica, de atentar-se para que as pessoas encontrem possibilidades de dizer
suas convicções, a fim de que haja diminuição, no encontro entre pessoas, do
sentimento de “inibição” (ou de coação, segundo terminologia usada por Martin
Buber). Proporcionar um ambiente educativo onde as pessoas se sintam livres e
confiantes para dizerem aquilo que acreditam, é uma experiência que acontece
em um processo gradual, priorizando uma postura respeitosa na ação de estar-
sendo-com-o-outro, em um movimento sempre mais compreensivo do outro.
Nesse sentido, Martin Buber diz que é preciso escutar também as palavras que
passam através do silêncio.
Houve preocupação para que “mais pessoas participassem” desse processo.
“Percebendo a interação humana como participação” é a subcategoria que
indicou o sentido de interação humana como atitude de “participação”. Uma
participação dialógica é possível, segundo Paulo Freire (2005), somente no
encontro entre pessoas que compactuam o desejo de pronunciar o mundo.
Por isso, a participação não se limita a uma experiência de negociação ou
mediação de conflitos na busca de priorizar a visão da maioria, no encontro entre
ideias diferentes. Mas possibilita que todos os envolvidos na interlocução
encontrem espaço para expressar suas convicções, podendo assim sentir
confiança e transmitir confiança (FREIRE, 2005). A dialogicidade é favorecida
quando se busca caminhos de complementaridade entre visões diferentes e não a
escolha de uma visão em detrimento de outras (SCHMIDT NETO, 2007).
Vivenciou-se, na interação entre participantes, a percepção de ideias diferentes e
opostas nas atitudes e trocas coletivas. Foi avaliada como sendo um “desafio” a
experiência de “pensar no coletivo”, opinião essa indicada na categoria “o sentido
de diálogo desvelado no processo de construção coletiva do projeto político-
pedagógico”. Realmente, consideramos que “tomar decisões” em grupo é um
processo importante enquanto ato de gestão participativa, e isso exige paciência
entre os interlocutores, a fim de que possam conhecer-se sempre melhor,
enquanto buscam eleger uma única direção, compactuando intencionalidades.
102
Colocar a pessoa no centro do processo de construção coletiva do projeto
político-pedagógico deverá constituir-se como uma escolha voltada a valorizar as
diversidades de opiniões que emergem entre as pessoas, na abertura em
conviver com o outro, também por meio dos conflitos, apreendidos no sentido de
criar possibilidade de superação de uma visão voltada a homogeneizar o que é
diferente. A busca pelo diálogo nesse sentido, não se dá em uma atitude de
separação entre ideias antagônicas, mas em um processo de procura por
complementaridade entre elas (SCHMIDT NETO, 2007).
Essa experiência de construção participativa gerou frustrações, tensões, “crítica”,
“embate”, “crise”, que são atitudes comuns no encontro entre pessoas, por
estarem compartilhando o mesmo “poder” a fim de exercerem escolhas. Quando
o sentido da interação esteve voltado ao perceber melhor as intenções do outro,
os “embates” puderam ser reconsiderados com atributos de nova significação.
Relatou-se que a experiência de uma “crítica negativa”, ao ser retomada como
objeto de reflexão, foi resignificada como “crítica construtiva”.
A categoria “o sentido de diálogo se desvelando no processo de construção
coletiva do projeto político-pedagógico” conduziu-nos a apreender essa
experiência a caminho de uma situação formativa, por não estar somente voltada
a exercer tarefas tecnicamente burocráticas, mas a um processo de abertura à
co-participação entre seus atores. Essa experiência, em alguns momentos,
quando foi assumida rumo a uma gestão participativa, fez-se ambiente formativo,
exigindo comprometimento de todos no ato de refletir a relação dialética entre
homem-mundo em processo de vir-a-ser.
Em outros momentos, houve também impulso de querer um fruto imediato do
texto final. Arriscou-se, assim, dar sentido secundário à experiência comunitária
na vivência solidária de co-gestão.
A prática do planejamento educacional faz-se significativa para esses gestores,
educadores e representantes da comunidade como possibilidade de qualificar sua
atuação educacional com crianças e jovens, e, consequentemente, com suas
famílias. Diante dessa responsabilidade educativa, compreender-se enquanto
homens em devir, é também ter clareza que, ao mesmo tempo em que se projeta
103
nessa constante busca por “acabamento”, propõem-se caminhos de realização
para outras pessoas. Trabalhar com educação não é algo simples, necessita-se
de sempre maior clareza de como intervir no delicado processo de formação da
pessoa (LORIERI, 1982). Em função disso, a necessidade de se considerar a
vivência do planejamento das atividades educativas enquanto atitude de
referência para atuar e reavaliar as propostas contidas no projeto político-
pedagógico.
Essa comunidade nos conduziu a refletir sobre a interação humana enquanto rico
processo sempre em transformação, a partir da compreensão de diálogo e
educação. Além do processo de construção do projeto político-pedagógico, é
possível pensar na possibilidade de considerar sempre mais novas possibilidades
de refletir a convivência no âmbito educativo. Os encontros interpessoais poder-
se-ão configurar sempre mais como momentos significativos para cada pessoa
presente no contexto escolar, enquanto sujeito de sua história, juntamente com as
outras pessoas dessa comunidade.
Por fim, tencionadas a ser mais, inquietas na procura de condições melhores para
a comunidade, constatamos, por meio dos encontros vividos com as pessoas
dessa comunidade, segundo suas escolhas em fomentar vínculos solidários umas
com as outras, a tendência de uma práxis que buscou criar novas possibilidades
de vida. Nesse sentido, poder-se-á caminhar rumo a uma ação comunitária se as
pessoas, ao se agruparem, estiverem voltadas a viver não somente um
relacionamento em função de uma tarefa. Isto, para Martin Buber, seria uma
coletividade e não comunidade.
Na ação comunitária, sob perspectiva buberiana, as pessoas reunidas em grupo
tentam, enquanto realizam uma proposição em comum, viver já entre elas um
envolvimento em processo de abertura, uma à presença da outra, buscando
acolher as diferenças. Desse modo, procuram vivenciar, no grupo, as mudanças
que propõem à sociedade. E ainda, para que esse desejo de dialogicidade
perdure, isto é, seja sempre mais solidário, Paulo Freire indica a importância de
estabelecer atitudes de testemunho entre as pessoas, que significa manifestar
104
mutuamente, o que Martin Buber também indica, uma coerência pessoal entre
aquilo que falam com aquilo que fazem, gerando confiança recíproca.
105
PERMANECENDO EM DIÁLOGO
O percurso de aprofundamento deste estudo, sobre a compreensão de diálogo no
processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico, tornou-se uma
experiência de convivência significativa com as pessoas da comunidade aqui
referida, procurando reconhecer o valor das relações interpessoais.
Foi significativo perceber a riqueza contida nos encontros, pela diversidade que
cada pessoa manifestou com sua existência e história de vida. Estar aberto ao
outro não é simples e nem automático, trata-se de um contínuo exercício que nos
habilita à disponibilidade em querer aprender sempre mais com todos, sem excluir
ninguém.
Os participantes desta pesquisa indicaram, na sua prática educativa, o desejo de
ser comunidade, buscando, por meio das relações interpessoais, possibilidade de
apoio mútuo, de solidariedade, de respeito pelo pensamento diferente, de
promoção da consciência crítica, de reconhecimento da dignidade humana.
A compreensão do homem, constituindo-se historicamente enquanto ser de
relações, em um mundo de possibilidades, conduziu-nos a aprofundar o diálogo
para além de uma técnica ou ferramenta de interação. Nessa compreensão,
contudo, não se entende negar a possibilidade de pensar em maneiras ou
estratégias para favorecer o diálogo, assumindo princípios considerados
necessários para sua vivência como, por exemplo, priorizar a escuta do outro,
respeitar as diferenças.
Identificamos, também, a importância da reflexão do vivido, na busca de um agir
educacional sempre mais consciente do valor de cada pessoa. Paulo Freire
enfatiza que o processo de conscientização do homem não é uma realidade de
caráter individual, mas social, dá-se na trama de relações que ele estabelece com
os outros homens e com o mundo, colocando-o de forma crítica diante da
totalidade em que se dão as tramas de relações que os condicionam.
106
No contexto desta pesquisa, pareceu-nos importante que os gestores,
educadores e representantes da comunidade, reservassem momentos para
falarem sobre o diálogo, até mesmo nos encontros ou reuniões que habitualmente
realizam, considerando que a sua compreensão se dá em um contínuo processo
de aprofundamento.
Ter investigado como gestores, educadores e representantes de uma comunidade
compreenderam diálogo, a partir da experiência vivida no processo de construção
coletiva do projeto político-pedagógico, levou-nos a considerá-lo como um espaço
de trabalho coletivo, no qual a disposição das pessoas ao encontro com o outro
transforma esse momento, de articulação entre teoria e prática, em uma rica
experiência de crescimento intelectual, ético e humano, enquanto se trabalha por
uma escola que se constitui democrática ao formar cidadãos para uma sociedade
mais humana.
Não há transformação na sociedade mais significativa que aquela do indivíduo; às
questões sociais encontram resposta em cada homem disposto às mudanças.
Somos responsáveis pelo mundo que criamos.
107
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113
ANEXO A
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
I – DADOS SOBRE A PESQUISA CIENTÍFICA
TÍTULO DA PESQUISA: “A compreensão de diálogo em uma experiência de construção coletiva do projeto político-pedagógico: um estudo à luz do pensamento de Martin Buber e Paulo Freire” PESQUISADORES RESPONSÁVEIS: Profª Drª Heloisa Szymanski e Rosineide B. Xavier CARGO/FUNÇÃO: Profª do Programa de Estudos pós-graduados de Psicologia da Educação; aluna de Mestrado no mesmo Programa UNIDADE DA PUC/SP: Programa de Pós Graduação em Psicologia da Educação _______________________________________________________________
II – EXPLICAÇÕES DO PESQUISADOR SOBRE A PESQUISA
1. PROPÓSITO DO ESTUDO: Compreender a prática dialógica de gestores ao longo do processo de elaboração do Projeto Político Pedagógico. 2. BENEFÍCIOS: Os resultados desta pesquisa poderão ajudar os pesquisadores a compreender o impacto causado em gestores ao participar de um trabalho de Apoio Pedagógico segundo uma proposta dialógica. O trabalho desenvolvido também poderá beneficiar os participantes, na medida em que os procedimentos adotados podem se configurar como um espaço de reflexão para os gestores e educadores a respeitos de suas práticas. 3. PROCEDIMENTOS: Serão realizadas entrevistas coletivas com o grupo de gestores, segundo a abordagem da entrevista reflexiva em que todos terão acesso aos dados da pesquisa, os quais serão sempre apresentados e discutidos com os participantes. Serão seis encontros com duração de 40‟ a 1 hora cada. Estas entrevistas serão gravadas. 4. RISCOS E DESCONFORTOS: Não existem riscos ou desconfortos associados com este projeto, isto é, a probabilidade de que os participantes sofram algum dano como consequência imediata ou tardia do estudo.
114
5. CONFIDENCIALIDADE: Fica garantido aos participantes da Pesquisa a confidencialidade, a privacidade e o sigilo das informações individuais obtidas. Os resultados deste estudo poderão ser publicados em artigos e/ou livros científicos ou apresentados em congressos profissionais, mas informações pessoais que possam identificar os indivíduos serão mantidas em sigilo.
III – ESCLARECIMENTOS SOBRE GARANTIAS AO PARTICIPANTE Ficam garantidas aos sujeitos da pesquisa: 1. O acesso, a qualquer tempo, às informações sobre procedimentos, e interpretação dos dados relacionados à pesquisa, inclusive para esclarecer eventuais dúvidas. 2. A salvaguarda da confidencialidade, sigilo e privacidade. 3. O direito de retirar-se da pesquisa no momento em que desejar.
IV – INFORMAÇÕES
Profª Dr. Heloisa Szymanski e Rosineide Barbosa Xavier Programa de Pós Graduação em Educação: Psicologia da Educação - PUCSP Rua Monte Alegre, 984 – Perdizes – São Paulo fone: 3670-8527 E-mail: [email protected]
Eu______________________________________________,conheço meus
direitos como participante de um projeto de pesquisa.
Compreendo sobre o que, como e por que este estudo está sendo realizado.
S.Paulo, ____/____/____ ___________________________ ________________________ Assinatura do Participante Pesquisador(a)
115
ANEXO B
SINTESE DAS ENTREVISTAS
Primeiro encontro – entrevista
Participaram desse primeiro encontro: Henrique (diretor), Roberta (coordenadora)
e Marília (educadora). Convidada por essa equipe, estava presente também
Cristina, que cedeu gentilmente seu local de trabalho, uma oficina de costura, que
havia sido solicitado como espaço “secreto” para uma maior tranquilidade no
desenvolvimento da entrevista, visto que esses gestores são frequentemente
requisitados pela comunidade.
Introduzimos o encontro com a apresentação do objetivo do trabalho de pesquisa
e das modalidades da entrevista reflexiva. Colocamo-nos à disposição para
esclarecimento de dúvidas, agradecendo a disponibilidade a contribuir para a
efetivação desse trabalho. O primeiro pedido, como proposta de aquecimento do
encontro, foi que cada um se apresentasse dizendo o nome, quanto tempo de
atuação na comunidade e qual papel desenvolve.
Nesse momento de acolhimento recíproco, apareceram nas apresentações
algumas definições espontâneas sobre a compreensão do que é dialogar.
Roberta compartilhou sua experiência no “Diálogo e Participação” dizendo que a
levou a entender o diálogo como sendo uma ação em que uma pessoa fala e a
outra escuta, proporcionando comunicação. Marília confirmou essa ideia, dizendo
que o diálogo para ela é uma via de mão dupla, em um movimento de fala e
escuta, que torna necessária a reflexão, o entendimento e a articulação da
linguagem. Acredita que há diálogo em tudo o que se faz. Ao se colocar no
posicionamento de escuta do outro, afirma ser necessário refletir sobre aquilo que
se vive: é um dialogar ou uma imposição de situação?
116
Após esse momento, apresentamos a seguinte pergunta desencadeadora:
Vocês poderiam comunicar uma experiência de prática dialógica vivida nesse
grupo, durante o processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico?
Henrique considerou como prática dialógica o próprio esforço de fazer com que o
projeto não fosse um documento escrito somente por uma pessoa, mas por vários
membros da equipe. Evidenciou que o pensar coletivo é uma experiência
concreta de diálogo. De sua experiência no “Diálogo e Participação”, emergiu o
desejo de formar o Conselho Gestor para que pudessem planejar, discutir e
avaliar os projetos da associação de moradores de bairro de modo amplo.
Em seguida, Roberta apresentou sua dificuldade de lembrar-se de um exemplo de
práticas dialógicas, nos encontros de elaboração do projeto político-pedagógico.
Apresentou outros exemplos que vivera na educação de seus filhos, no
relacionamento com as educadoras e nos contatos com os familiares das crianças
do CEI, considerando-as experiências que deram certo. Acredita que o relato de
experiências de diálogo, vivido de modo positivo, poderá ajudar as pessoas que
encontram dificuldades em viver o diálogo. Ao ser solicitada novamente a relatar
uma experiência de diálogo nos encontros de construção do projeto político-
pedagógico, confirmou não conseguir percebê-la ainda. Referiu somente que a
participação, para ela, é um elemento fundamental na aprendizagem e na
elaboração do projeto político-pedagógico, lamenta que nem sempre todos os
membros gestores conseguiram participar desse trabalho.
Henrique lembrou-se das dificuldades de conseguir um trabalho contínuo na
educação das crianças envolvidas no CEI e no Agente Jovem. A associação
tentou um trabalho conjunto com uma EMEF e não deu certo. Atualmente,
conseguiram estabelecer uma relação muito positiva com outra escola do mesmo
porte, todos participando das reflexões do “Diálogo e Participação”. Disse também
que, durante as discussões dos gestores e educadores sobre o projeto político-
pedagógico, surgiu a proposta de elaboração com todo o colegiado do CEI e do
Agente Jovem, inclusive com a presença dos voluntários, de um encontro sobre a
concepção de criança e Educação Infantil. Roberta disse que esta última
117
iniciativa, apontada por Henrique, é realmente um fruto importante das discussões
desse grupo.
Enquanto escutava os relatos de todos, Marília lembrou-se de um exemplo de
situação não dialógica, que presenciou em uma escola onde fez estágio: um
educador gritando com um aluno no corredor da escola. Em relação à sua
experiência na construção do projeto político-pedagógico, deseja escutar e
receber experiências novas. Lembrou-se de quando o “Apoio à Gestão” convidou
os gestores e educadores para irem ao computador e assim pesquisarem juntos
na internet em que consistia o projeto político-pedagógico, exigido pela Prefeitura.
Vivenciou esse momento como dialógico, definindo-o como um movimento de
tentar descobrir o que está ao redor.
Cristina demonstrou sua preocupação em relação ao futuro das crianças e da
juventude, devido à violência no bairro e ao pouco acompanhamento educacional
de algumas famílias.
Segundo encontro – devolutiva
Nesse momento de devolutiva da primeira entrevista, não foi possível realizar um
único encontro com todos os participantes, pois a associação estava passando
por um processo de trocas de funcionários e reformulação de funções. A
disponibilidade de tempo das pessoas que participaram desta entrevista ficou
limitada, devido à não coincidência dos horários.
Para a viabilidade dessa modalidade da entrevista, optamos em fazer a devolutiva
em momentos diferentes, com cada um dos três integrantes da pesquisa: Cristina
(representante da associação), Marília (coordenadora) e Henrique (diretor). Não
foi possível realizar esse encontro com Roberta, dado que não trabalhava mais no
CEI.
Cristina confirmou o que escrevemos sobre sua fala. Disse que continua
preocupada com o aumento da violência no bairro. Enfatizou a necessidade da
118
família dos jovens trabalharem mais na associação da comunidade, incentivando
a participação também dos filhos.
Após tomar conhecimento do material escrito sobre sua fala, Marília quis explicar
melhor que entende por diálogo todos os momentos vividos na relação, inclusive
uma fala expressa de modo agressivo.
Henrique, a respeito da vontade de formar um Conselho Gestor da associação,
informou que representava um seu desejo expresso algum tempo atrás, mas,
faltando clareza nessa proposta, segundo os gestores da associação, o desejo
não foi assumido por todos. Após a implementação do “Diálogo e Participação”, e
de outro projeto voltado à melhoria habitacional, os gestores da associação
perceberam que era importante formar um Conselho Gestor, para que as
decisões fossem tomadas em grupo.
Terceiro encontro – entrevista
A segunda entrevista aconteceu em um novo momento desse grupo, uma vez que
passou a agrupar-se à equipe um número maior de participantes. Os encontros
de construção do projeto político-pedagógico passaram a ser desenvolvidos aos
domingos, facilitando a presença de outras pessoas que até então não haviam
participado.
Estavam presentes, nesse encontro, dois gestores que participaram da entrevista
anterior: Henrique (diretor) e Marília (coordenadora). Não foi possível, para
Cristina (representante da associação), participar nesse dia. Logo que
apresentamos a proposta da entrevista reflexiva coletiva, vivenciada pelo antigo
grupo, os novos integrantes se disponibilizaram a participar das entrevistas.
O primeiro momento da entrevista se desenvolveu com a retomada do tema da
pesquisa e do objetivo das entrevistas e a apresentação dos novos componentes
do grupo. Os participantes foram: Luiz (coordenador), Andréa (coordenadora),
Edson (educador), Rogério (educador), Marília (coordenadora), Luisa
119
(educadora), Ângela (educadora), Ester (representante da associação) e Henrique
(diretor).
Em seguida, foi proposto a todos que relatassem qual era a experiência dialógica
vivida nos encontros de elaboração do projeto político-pedagógico, por meio de
um exemplo, como se contassem para alguém que não tivesse conhecimento do
trabalho do grupo.
Ester logo apresentou sua compreensão de diálogo como conversa de duas
pessoas, por meio da fala e da escuta.
Andréa, para verificar sua compreensão da proposta da entrevista, expôs um
exemplo. Disse que convidou Amanda, uma adolescente de 17 anos, para estar
presente na construção do projeto político-pedagógico. Ao fazer o convite,
explicou-lhe o que seria essa proposta de construção coletiva, compreendida por
ela como uma reunião de pessoas que se propõem refletir sobre a teoria que
norteará todo trabalho da organização.
Como essa entrevista aconteceu no final de um dos encontros de construção do
projeto político-pedagógico, Marília informou que, para levantar os dados que
precisava apresentar para o trabalho desse dia, ela teve que, além dos dados
escritos que encontrou, pedir informações para algumas pessoas. Afirmou que é o
saber ouvir e o saber falar das pessoas que vai enriquecer o trabalho do grupo.
Luiz identificou diálogo como trocas de experiências e recordações de fatos
marcantes. Disse que, aquilo que relatou de sua vivência para construir o histórico
da associação, foram experiências de trocas vividas.
Aliada a essa fala, Andréa contou que, nas trocas profissionais, muitas vezes as
pessoas falam coisas que proporcionam reflexão, virando até provocações para
planejar trabalhos, mesmo que essas falas tenham acontecido de modo informal.
Exemplificou isso dizendo que, dias anteriores, estava preparando um churrasco
em sua casa, conversando com pessoas de sua família que trabalham na
associação. Falou-lhes a respeito do projeto político-pedagógico. O que
conversaram, a partir disso, foi para ela enriquecedor.
120
Para Rogério, o diálogo vivido na equipe se transformou em aprendizado muito
interessante. Por ser novo na associação, o diálogo desse grupo proporcionou-lhe
um conhecimento histórico do local onde trabalha. Deseja transformar o novo
conhecimento que está adquirindo em material de estudo para ser trabalhado com
os jovens.
Edson concordou com Rogério, pois relatou ter descoberto muitas coisas da
história do bairro, jamais imagináveis se não lhe fossem descritas.
Ester apresentou sua experiência, a de estar contribuindo como protagonista para
a construção da história dessa associação, como um fato importante em sua
vivência dialógica. Pertencer a esse grupo, que constrói o projeto político-
pedagógico, é para ela uma nova conquista histórica. Disse que, para fazer parte
dessa história, teve que se relacionar com outras pessoas, estar junto para
construir e ajudar.
Andréa explicou sua compreensão sobre a fala de Ester dizendo que está
contribuindo com o grupo por meio de seu relacionar-se com os outros, sendo
isso muito importante, em vista de construir algo maior.
Outro aspecto relacionado ao diálogo, para Luiz, são os momentos vivenciados
no dia-a-dia com as conversas “espelhadas” nas discussões do projeto político-
pedagógico. Sente que a participação leva cada um a “espelhar-se” no trabalho
do outro, acreditando poder fazer alguma coisa também, a partir do conhecimento
um pouco mais aprofundado que se adquirem.
Ângela compreendeu diálogo como algo não imediato, mas um trabalho
construído aos poucos. Do que se inicia hoje se colherá o fruto mais adiante.
A integração entre os projetos e os vários atores dos projetos da associação, tem
sido, para Henrique, uma grande experiência de diálogo, vivido no sentido da
participação, da colaboração, da contribuição, da escuta. Percebeu a participação
das pessoas acontecendo de diversas maneiras. Quem não pôde estar presente
nas discussões de domingo, integrou-se no mesmo durante a semana. Disse que,
no processo de participação, são poucas as possibilidades de alguém ficar neutro.
121
Compreendeu que houve uma grande abertura a participar por parte da maioria,
mas existe também uma certa resistência. Classificou as mudanças que o projeto
político-pedagógico trouxe e irá trazer, como experiência de diálogo. Contou que
ocorreram mudanças positivas nas relações de poder entre a equipe, pois as
pessoas estão conversando mais entre elas. O diálogo também, segundo ele,
relacionou-se ao poder porque foi preciso haver abertura e disponibilidade por
parte das pessoas. Às vezes, não encontrou disponibilidade na participação, por
deparar-se com pessoas que tinham outras prioridades além daquela de se
encontrar para discutir sobre as decisões a serem tomadas.
Luiz também percebeu que existe uma abertura maior ao diálogo, no sentido de
disponibilidade a conversar e participar. Segundo ele, o trabalho ficou bem mais
gostoso e mais interessante. Antes, não percebia uma relação de colaboração
entre as entidades sócio-educativas dessa associação. Hoje, havendo maior
integração entre CEI e Agente Jovem, é possível ter uma visão do todo quando se
encontram para tomar decisões. Para ele, essa mudança aconteceu por meio de
conversas, informações, escuta do outro na tomada de decisões. Disse que agora
é possível chamar o grupo todo de uma equipe.
Henrique apresentou a escuta como um fator importante em sua experiência
dialógica. Sente a necessidade de reservar tempo para escutar algumas pessoas
a fim de entender melhor sobre as causas de suas resistências. Confessou que,
muitas vezes, não parou para ouvi-las. Acredita que a experiência de escuta, no
diálogo, leva a perceber onde estão as dificuldades da associação, para assim
trabalhar a partir delas. Admitiu, porém, que é uma tarefa difícil encontrar tempo
para ouvir as pessoas.
Quarto encontro – devolutiva
Iniciamos esse encontro de devolutiva com a leitura da síntese da entrevista como
possibilidade de lembrar a experiência vivida, assim foi possível expor ao grupo a
nossa compreensão da fala de todos. Participaram desse momento: Henrique
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(diretor), Marília (coordenadora), Cristina (representante da associação), Luiz
(coordenador), Edson (educador), Rogério (educador), Luisa (educadora), e Ester
(representante da associação).
Enquanto líamos o material, Luiz acrescentou um dado em sua apresentação: sua
participação no projeto da associação voltado à melhoria da estrutura das casas e
das ruas do bairro. Nesse projeto, começou atuando como coordenador, e no
momento atua como assessor da gestão. Comunicou também que, nos dias
seguintes iria assumir a coordenação do Agente Jovem e da Escola de
Informática, já que Andréa desligou-se dessa função.
Após termos finalizado a leitura do material de síntese das ideias presentes nas
falas, interrogamos o grupo sobre nossa compreensão, pedindo também se
teriam gostado de rever algo ou acrescentar ideias mais esclarecedoras.
Percebemos, nos semblantes das pessoas entrevistadas, o impacto positivo
diante de suas próprias ideias que vinham sendo relatadas por um outro. Alguns
expressaram frases de encantamento e surpresa. Afirmaram a identificação com
as palavras escutadas.
Luisa relatou que escolheu ficar em silêncio na entrevista por acreditar que o
silêncio também é uma forma de diálogo. Ao perguntar-lhe se teria gostado de
expor algo mais, ela respondeu que percebeu o conteúdo da fala de todos como
algo que correspondia ao que ela acreditava. O diálogo, para ela, além do que foi
dito, é também compreensão de mundo. Afirmou que assumir uma atitude
dialógica conduz a compreender melhor o mundo, as coisas, as pessoas. Ter o
diálogo como base, torna mais fácil caminhar, desenvolver-se, formar-se como
pessoa, como ser humano.
Como Cristina não estava presente na segunda entrevista, desejou expor sua
contribuição sobre o assunto discutido. Percebeu interessante o como todos nesta
equipe estão compreendendo a proposta de construção do projeto político-
pedagógico como algo participativo. Citou, como exemplo, o fato da equipe ter
convidado recentemente uma representante da associação, que não tem vínculo
empregatício nas organizações sócio-educativas, para fazer parte da construção.
123
Além disso, disse que a retomada da história da associação foi, para ela, algo
muito significativo. Realçou a importância de valorizar as pessoas que, desde o
início, contribuíram nessa história. Percebeu-se, neste cenário histórico,
participante das mudanças já ocorridas.
Pedimos ao Henrique que explicasse melhor sua fala sobre a ocorrência de
resistência na vivência do diálogo. Ele disse perceber, em algumas pessoas da
associação, a existência de fatores de inibição à expressividade, elas preferem
viver o silêncio ou falar nos bastidores ao invés de expor, no momento mais
adequado de escuta e de discussão, o que pensam. Acredita que esta dificuldade
aparece devido a fatores emocionais, o que constitui, para ele, um ponto crítico no
diálogo. Segundo ele, na associação existe espaço de abertura à expressividade
dos pensamentos, dos diferentes modos de perceber as coisas. É necessário ter
disposição interior para expor o que está escondido dentro de si; assim, também
essas pessoas poderão até encontrar parceiros de pensamento e de convicções.
Várias vezes, Henrique percebeu que, quando reprimiram aquilo em que
acreditavam, houve repercussão na atuação profissional dessas pessoas.
Advertiu o risco de cair numa situação de obediência, entendida como submissão,
ao invés de viver o diálogo, que para ele, pressupõe a crise, a crítica, o embate,
no sentido do enfrentamento de ideias, de valores, de crenças.
Quinto encontro – entrevista
Estavam presentes nesse encontro: Henrique (diretor), Marília (coordenadora),
Luisa (educadora), Ângela (educadora), Luiz (coordenador), Ester (representante
da associação), Edson (educador), Rogério (educador).
Iniciamos esse encontro com a exposição do quadro sintético de todo percurso
percorrido para a construção do projeto político-pedagógico. Após a leitura do
quadro e exploração do que foi acontecendo nos encontros, introduzimos a
seguinte provocação:
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Diante de todos os encontros vividos para construir coletivamente o projeto
político-pedagógico, relate um momento marcante que você chamaria de
dialógico.
Para Luisa, o momento mais marcante foi a experiência que viveu em seu
primeiro dia no processo de construção do projeto político-pedagógico. Nesse
encontro, foi elaborado o resgate histórico do CEI e do Agente Jovem. Ali, ela
pôde conhecer mais a vida da associação, por meio das trocas de ideias, das
conversas sobre aquilo que sabiam a respeito da fundação da associação de
moradores de bairro. Identificou essa experiência como um momento profundo de
diálogo: nas trocas de ideias, nas conversas, e no encontro de reflexão entre
grupos.
Ester identificou como experiência dialógica a atividade de avaliação institucional.
Esse momento aconteceu no primeiro dia de encontro sobre o projeto político-
pedagógico.
A elaboração do histórico das entidades também foi lembrada por Edson. Ele
relatou que como consequência desse momento vivido, no dia anterior da
entrevista, eles haviam realizado uma reunião em que Ester contou suas
experiências na associação. Isso foi novidade para muitos. Disse que percebe
pessoas caminhando na rua da comunidade bem vestidas, de boa aparência, mas
que por trás dessa realidade da comunidade, existem pessoas que sofrem,
passam por muitas necessidades. Acredita que é preciso trazer para o diálogo
vivido no contexto do projeto político-pedagógico a discussão dessas questões
que pertencem à associação, para que haja uma melhoria.
Rogério iniciou sua fala ressaltando a importância do diálogo no seu trabalho com
os jovens. Há poucos dias, fez uma atividade com os jovens para juntos
identificarem os problemas na comunidade. Discutiram sobre a problemática que
estão enfrentando em relação ao ponto de ônibus. Disse aos jovens que foi por
meio do esforço da associação que se conseguiu a linha de ônibus, por isso,
pede-lhes para valorizar esse trabalho, propondo, ao invés de criticá-lo,
conscientizar sobre sua atuação no bairro, valorizando as pessoas que estão na
Instituição. Ele tomou conhecimento do trabalho da associação por meio do
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diálogo vivido na construção do projeto político-pedagógico. Pediu a esses jovens
que fossem à sala do Agente Jovem observar o mural construído com a linha do
tempo da associação.
Luiz acrescentou sua reflexão sobre o trabalho com os jovens no Agente Jovem,
dizendo que tomou como base para a sua atuação o trabalho do diagnóstico da
associação, atividade essa feita no “Diálogo e Participação”. Nessa ocasião, os
jovens identificaram a necessidade de ter na associação um ônibus para
deficientes. Segundo ele, chegaram a essa visão por meio da conversa entre
eles. Agora, junto com a associação, os jovens entrarão na luta para a construção
da estrutura do ponto de ônibus para acolher as pessoas. Em relação à
experiência mais marcante, escolheu o resgate do passado, identificado como
momentos de batalha e de luta. Destacou a percepção do conquistado como
incentivo para continuar e tentar conseguir mais.
Todos os encontros do projeto político-pedagógico proporcionaram um maior
diálogo entre os projetos da associação, afirmou Marília. Disse que, antes, cada
um ficava no seu espaço reservado: CEI, Agente Jovem e associação de
moradores de bairro. Atualmente, não é mais assim, todos estão conversando e
montando algo juntos, como está acontecendo para a organização da festa
junina. Esse foi o ato de diálogo que ela escolheu como o mais importante.
O resgate da história das organizações educativas foi novamente nomeado,
dessa vez, por Ângela. Parabenizou Luiz e Henrique pelos registros mentais
dessa história, que naquele momento de construção do projeto político-
pedagógico foram colocados por escrito. Considerou “legal” viver os momentos de
debates no grupo: cada um, com sua visão diferente, contribuiu para que se
pudesse chegar a um consenso no projeto político-pedagógico.
Solicitamos que Ester explicasse um pouco mais ao grupo como percebeu que foi
dialógica a experiência da avaliação institucional. Ela apresentou por primeiro o
que foi vivido: colocar em comum no grupo quais as instâncias de atuação
presentes nas entidades, classificando-as em sua importância para constituir o
projeto político-pedagógico. Disse que Henrique, como diretor, ficou como pilastra
de tudo. Durante essa discussão, relata, uma pessoa dirigiu-se a ela dizendo que
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a percebia mais presente agora, do que antes, quando era educadora. Ester
conta-nos que acolheu essa crítica como construtiva. Disse também que, nesse
encontro, decidiu-se quem iria participar da construção do projeto político-
pedagógico.
Henrique apresentou como momento mais importante e significativo, a respeito do
diálogo na construção do projeto político-pedagógico, o esforço de divulgação
desse processo, ou seja, o fato de trazer mais pessoas para participar. Falou que,
em vários momentos, encontrou pessoas interessadas. No encontro oferecido a
todos os segmentos das entidades, sobre a concepção de criança e Educação
Infantil, algumas pessoas se sensibilizaram para participar desse processo.
Henrique elogiou aqueles que, de alguma maneira, reservaram um pouco mais de
seu tempo para discutir e levar para outras pessoas o que está acontecendo na
construção do projeto político-pedagógico.
Sexto encontro – devolutiva
Este foi o último encontro. Apresentamos a síntese do encontro anterior a todos
os presentes: Henrique (diretor) Marília (coordenadora), Luiz (coordenador),
Edson (educador), Rogério (educador), Luisa (educadora), e Ester (representante
da associação). Fizeram somente algumas correções de pequenas
incompreensões presentes no texto. Finalizamos com um agradecimento a todos
pela participação nesta pesquisa.
Luisa expressou sua experiência ao ter participado das entrevistas dizendo: “Foi
boa a experiência das entrevistas, faz a gente pensar, mexer um pouco no
cérebro. Às vezes, a gente se acha tão incapaz de falar ou de pensar certas
coisas. A gente faz uma certa relação com a vida, e esse momento de entrevista
serve para exercitar a massa cerebral.”