programa mais reduzido dos alunos risco..."os maias é de facto a obra-prima, a obra canónica...

5
Programa mais reduzido põe formação dos alunos em risco Especialistas põem em causa escolhas na elaboração das aprendizagens essenciais no secundário p 2 a 4

Upload: trananh

Post on 20-Jan-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Programa maisreduzido põeformação dosalunos em riscoEspecialistas põem em causaescolhas na elaboração das

aprendizagens essenciais nosecundário p 2a 4

APRENDIZAGENS ESSENCIAIS

Éaformação dos alunos

que está em riscoClara Viana

O alerta é de especialistas consultados pelo PÚBLICO, que põem em causaas escolhas que estão a ser feitas na elaboração das chamadas aprendizagensessenciais, que irão ser o referencial para o ensino e a avaliação dos alunosMM bsolutamente chocan-™™ flB tes." Este é um dos

fl^ft termos utilizados por¦_¦ especialistas ouvidosflApelu PÚBLICO aÊt ¦propósito das opções

que estão a ser feitas para reduziros programas do ensino secundárioem vigor e que na prática, segundoalertam, constituem uma ameaça à

formação dos alunos.Em causa estão as chamadas

aprendizagens essenciais que vãoser o referencial da aprendizageme avaliação dos alunos a partir do

próximo ano lectivo. A propostapara o ensino secundário está emconsulta pública, na página electró-nica da Direcção-Geral de Educação,até amanhã.

As aprendizagens essenciais vãoser aplicadas a partir do próximo anolectivo, num processo que começa-rá, no caso do secundário, pelo 10.°ano. Para o Ministério da Educação(ME), a definição destas aprendiza-gens, que esteve sobretudo a cargodas associações de professores, é ne-cessária para resolver o problema da"extensão" dos actuais programase permitir que seja fixado um "con-

junto essencial de conteúdos" quetodos os alunos devem saber, em ca-da disciplina, no final de cada ano deescolaridade.

O PÚBLICO restringiu-se às pro-postas existentes para o secundário,nomeadamente nas disciplinas deHistória A, Português e Filosofia."Absolutamente chocantes" comen-ta o professor da Universidade Novade Lisboa, Bernardo Vasconcelos e

Sousa, que é também um dos prin-cipais medievalistas portugueses,a propósito da abordagem que nas

aprendizagens essenciais se faz daIdade Média. "0 que poderia ser umasaudável redução de temas e maté-rias torna-se uma operação redutorada compreensão do processo histó-

rico", alerta.Exemplos? Na História A do 10.°,

11.° e 12.° ano, especifica o professorda UNL, omite-se tudo o que respeitaao mundo urbano na Idade Média etambém desaparecem "aspectos tãorelevantes como os relativos à cul-tura, arte (nem uma referência aosestilos artísticos, por exemplo!) ouà religião" neste período. Este últi-mo "apagão" já tinha sido reveladopelo PÚBLICO a partir de um alertada professora de História do ensinosecundário, Elisabete Jesus.

As aprendizagens essenciais foramelaboradas pela Associação de Pro-fessores de História (APH) com o con-tributo de especialistas designadospelo Ministério da Educação. A vi-

ce-presidente da APH, Marta Torres,que é docente do 3.° ciclo do ensinobásico, nega que se tenha registadoum apagão: "Não se cortam ou su-

primem conteúdos. Evidenciam-seas aprendizagens que se consideramessenciais e os docentes definirão, deacordo com os contextos em que se

inserem, se a abordagem a um conte-údo será mais ou menos extensa".

Mas como o mundo urbano na Ida-de Média desaparece, de facto, dodocumento que o Ministério da Edu-

cação colocou em consulta pública,Bernardo Vasconcelos e Sousa frisa

que, com esta opção, "muita coisaficará por explicar acerca da especi-ficidade e da importância da épocamedieval no Ocidente europeu".

Que não é pouca. "É verdade quea sociedade medieval era maiorita-riamente rural, mas foi no mundourbano que se processaram e de-senvolveram, sobretudo a partir doséculo XII, as maiores e mais inova-doras alterações que fizeram comoque o Ocidente europeu tivesse o seu

'arranque' para vir a tornar-se hege-mónico, na longa duração, à escala

planetária", explica Bernardo Vas-concelos e Sousa.

A propósito desta parte da Histó-ria, frisa ainda o seguinte: "Foi nes-se mundo urbano que surgiram e se

reforçaram os principais grupos edinâmicas sociais que transforma-ram o Ocidente de uma civilizaçãosem recursos numa civilização que,por processos diversos mas não ra-ramente violentos, se irá sobrepor atodas as outras."

Manta de retalhosTambém a professora e coordena-dora do mestrado em ensino deHistória do 3.° ciclo e secundário(destinado a futuros docentes) daUniversidade de Coimbra, Ana Ri-beiro, considera que a formaçãohistórica final se tornará "numamanta de retalhos mais ou menosdesconexa" no caso das aprendi-zagens essenciais se tornarem umaespécie de documento único parao ensino. Nesta proposta, alerta,existe uma "desvalorização claradas temáticas relacionadas com acultura e artes ou, mais grave, a té-nue presença das revoluções ame-ricana e francesa no contexto dosconteúdos do 11.° ano".

"E o que dizer, tanto para o ensino

secundário, do manto de absoluto si-

lêncio que cai sobre a herança árabee islâmica em Portugal?", questionaBernardo Vasconcelos e Sousa, lem-brando que "se trata da existênciade entidades político-institucionais,com profundas consequências emtoda a vida social, enraizadas noespaço que se tornou portuguêsdurante mais de 500 anos".

Um "negócio" ruinosoE que pensam dois especialistas emestudos queirosianos das mudançaspropostas para a disciplina de Por-

tuguês, que é obrigatória para todos

os alunos do ensino secundário? Mu-

danças que, conforme o PÚBLICO

já noticiou, passam pela supressãodas obras de Eça de Queirós que são

referenciadas no programa em vigor(Os Maias ou a Ilustre Casa de Ra-mires), deixando aos professores li-berdade total para escolherem "umromance" deste autor.

"Muitos alunos podem simples-mente perder a única oportunidadedas suas vidas de contactarem como melhor romance da literatura por-tuguesa [Os Maias]", constata o pro-fessor da Universidade de CoimbraCarlos Reis. Este será, refere, o re-

sultado "ruinoso" de uma operaçãoque é defendida pelo ministério nas

aprendizagens essenciais, onde se

assume que o aluno "negociará como professor" o seu perfil de leitor.

Afirma Carlos Reis, a este propósi-to, que considera "profundamenteantidemocrático e inadmissível, nu-ma escola com efectiva preocupaçãosocial, que cada vez mais se promo-va um mecanismo de escolhas, pornegociação, que possa levar (e cer-tamente levará) à exclusão de obrasestruturantes do nosso cânone lite-rário — mas que têm o 'defeito' deserem extensas e complexas".

A professora da Universidade doPorto Isabel Pires de Lima admiteque "a iniciação ou a adesão a umescritor como Eça de Queirós podeser feita através de qualquer textoseu. Mas frisa que tal "não significa,porém, que, num programa do 11.°

ano do ensino secundário, e aindamais quando se está a falar da únicaobra de leitura integral a ser feitapelo estudante no âmbito do séculoXIX português, seja indiferente lerOs Maias ou qualquer outro roman-ce queirosiano".

Razões? "Os Maias é de facto a

obra-prima, a obra canónica porexcelência do romance oitocentis-ta português" e como tal, conclui,"não deve ser evitada com argu-mentos que advêm da sistemática

menorização dos estudantes e dos

próprios professores e do sistemá-tico acomodamento a uma práticade ensino-aprendizagem que nãoinsista no esforço, na dedicação, notrabalho necessários ao desenvolvi-mento do conhecimento".

Carlos Reis tem ainda algo maisa dizer. Afirma que, para ele, "o

argumento de que 'os alunos nãolêem' não colhe" e proclama o se-

guinte: "O que não aceito é que sejao Estado a fomentar a desistência(porque é disso que se trata, não se-

jamos hipócritas), sob a capa politi-camente conveniente da concessãoe autonomia às escolas, para que se

façam, com tranquilidade, os tais

'negócios'."Quanto à proposta para a disci-

plina de Filosofia, que é obrigatóriapara todos os alunos do 10.° e 11.°

ano, o professor da Universidade de

Lisboa (UL), Pedro Galvão, informaque a sua apreciação das aprendi-zagens essenciais é "globalmentepositiva".

Pedro Galvão, que é o director dalicenciatura em Filosofia da Facul-dade de Letras da UL, destaca como"uma das melhores novidades, a Ló-

gica ter transitado do 11.° ano parao seu lugar apropriado: o começodo 10.° ano".

Já a professora da Universidade deÉvora e uma das co-autoras do ac-tual programa, adoptado em 2002,Fernanda Henriques, consideraque ao, contrário do que consta nas

aprendizagens essenciais, "a filoso-fia tem de servir para se poder inter-

rogar a vida e não para ter respostassimples que adormecem a angústiae a perplexidade"[email protected]

66Muitos alunos podemsimplesmente perdera única oportunidadedas suas vidas decontactarem com o

melhor romance daliteratura portuguesa[OsMa/as]Carlos ReisUniversidade de Coimbra

Afllosoflatemde servir para sepoder Interrogaravida e não para terrespostasslmplesque adormecemaangústiaeaperplexidadeFernanda HenriquesUniversidade de Évora

Continua a ser proposta a "lógicabalcanizada" do conhecimento

Os exames condicionam as "práticas docentes'

Clara VianaProfessora aplaude ideiasna base das aprendizagensessenciais, mas diz queconteúdos propostos nãoestão à altura destas

Aschamadas "aprendizagens

essenciais" foramelaboradas pelas associaçõesde professores das várias

disciplinas em conjunto com

especialistas designadospelo Ministério da Educação, mas será

que os seus conteúdos correspondemao desafio lançado pela tutela? A

professora do Departamento deEducação e Psicologia da Universidadede Aveiro, Dora Castro, tem dúvidas

que assim seja."Os conteúdos propostos para o

desenvolvimento das aprendizagensessenciais (básico e secundário) po-dem não corresponder efectivamenteao desejado pelo Ministério da Edu-

cação, pelo facto de o processo de

operacionalização ter sido feito nu-ma lógica disciplinar, faltando umavisão de articulação e integração dosconteúdos em termos interdisciplina-res que, a existir, não é perceptível",afirma ao PÚBLICO.

A interdisciplinaridade, por viada abordagem conjunta de temasescolhidos pelas escolas, é um dos

pilares do projecto de flexibilidadecurricular lançado pelo Ministério da

Educação, no qual as aprendizagensessenciais são apresentadas comouma das peças centrais. Este projectojá foi aplicado em 2017/2018 em 230escolas e será alargado no próximoano lectivo a todas as outras.

Dora Castro, que tem vindo a es-

tudar o processo de definição destas

aprendizagens, frisa que "a flexibi-lização curricular exige uma novaforma de pensar a escola", que po-derá não estar acautelada nos docu-mentos que o ministério colocou emconsulta pública. "Continuamos a

percepcionar uma lógica balcanizadada construção do conhecimento",refere, para sublinhar que "as apren-dizagens essenciais não são o mesmo

que metas curriculares", porque se

trata de "deslocar a centralidade nosconteúdos para a centralidade no su-

jeito aprendente".Também por essa razão, afirma,

não se pode "insistir na comparaçãoentre os documentos que enunciamas aprendizagens essenciais e os pro-gramas e metas curriculares, aindaem vigor, já que são de natureza dis-tinta". Esta docente lembra que, emmatéria de currículo, "será semprenecessário fazer opções", mas apon-ta uma mudança: "A diferença que se

coloca agora é que muitas das opçõesserão feitas pelos próprios professo-res, nos seus contextos educativos,quando anteriormente quase todasas decisões eram produzidas pelopoder central conduzindo à unifor-

mização de procedimentos."

Preparação para os examesE é esta liberdade de escolha que le-va a professora de Português do en-sino secundário Conceição Pereiraa questionar o seguinte: "Como se

prepara um aluno para exame nacio-nal quando a escolha [de conteúdos]

é feita por cada escola [já que estese destina a avaliar todos os alunosao mesmo tempo e com as mesmasperguntas?]"

Dora Castro tem uma resposta.Afirma que os exames "condicio-nam fortemente as práticas do-centes e são incongruentes com as

lógicas de flexibilização curricu-lar", sendo portanto de encontrar"outras formas de avaliação exter-na". O director do Departamentode Educação da Organização paraa Cooperação e DesenvolvimentoEconómico (OCDE), Andreas Schlei-

cher, defendeu o mesmo quando,em Fevereiro, esteve em Portugalpara apresentar as conclusões da

primeira avaliação do projecto deflexibilidade curricular feita poraquela instituição.

Quando se desenham currículosexiste um dilema entre estes "doismundos" - o de ensinar para os exa-mes e outro que privilegia a aprendi-zagem em torno de projectos e o tra-balho colaborativo, disse. ConceiçãoPereira confirma: "A teoria é linda,porém, a respectiva aplicação, sem-

pre que um governo toma posse, é

uma verdadeira dor de cabeça."

[email protected]