programa de pÓs-graduaÇÃo em comunicaÇÃo social...
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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
LUIS ERLIN GOMES GORDO
COMUNICAÇÃO (I)MATERIAL COM AS DIVINDADES – TIPOS E
FORMAS DE EX-VOTOS NA RELIGIOSIDADE POPULAR
São Bernardo do Campo
2017
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
LUIS ERLIN GOMES GORDO
COMUNICAÇÃO (I)MATERIAL COM AS DIVINDADES – TIPOS E
FORMAS DE EX-VOTOS NA RELIGIOSIDADE POPULAR
Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), para obtenção do grau de Doutor. Orientadora: Profª. Dra. Magali do Nascimento Cunha.
São Bernardo do Campo
2017
FICHA CATALOGRÁFICA
G652c
Gordo, Luís Erlin Gomes
Comunicação (i)material com as divindades: tipos e formas
de ex-votos na religiosidade popular / Luís Erlin Gomes Gordo.
2017.
162 p.
Tese (Doutorado em Comunicação Social) --Escola de
Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2017.
Orientação de: Magali do Nascimento Cunha.
1. Ex-votos 2. Tipologia 3. Folkcomunicação 4.
Religiosidade popular I. Título.
CDD 302.2
FICHA DE APROVAÇÃO
A tese de doutorado intitulada: COMUNICAÇÃO (I)MATERIAL COM AS DIVINDADES – TIPOS E FORMAS DE EX-VOTOS NA RELIGIOSIDADE POPULAR, elaborada por LUÍS ERLIN GOMES GORDO foi apresentada e aprovada em 29 de janeiro de 2018, perante banca examinadora composta pela Profa. Dra. Adriana Barroso de Azevedo (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Herom Vargas Silva (Titular/UMESP), Prof. Dr. Marcelo Furlin (Titular/UMESP), Profa. Dra. Cristina Schmidt (Titular/Universidade Mogi das Cruzes), Profa. Dra. Eliane Mergulhão (Titular/Universidade UNIP- São José dos Campos).
________________________________________ Profa. Dra. Adriana Barroso de Azevedo
Presidente da Banca Examinadora
Profa. Dra. Magali do Nascimento Cunha Orientadora
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Área de Concentração: Processos Comunicacionais Linha de Pesquisa: Comunicação comunitária, territórios de cidadania e desenvolvimento social.
Dedico esta pesquisa a todas as pessoas que nutrem a
vida com a esperança que brota da fé. Para minha mãe,
Aparecida Guizilini, que me ensinou a ter esperança, pois
foi ela quem me apresentou a Deus.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à vida com a qual o meu bom Deus me presenteou. Agradeço a Ele
por dar sentido à minha vida.
Maria Santíssima é minha madrinha e formadora. A ela minha tese, minha
prece como ex-voto, em agradecimento pela graça alcançada.
Minha família é meu porto seguro, sem ela eu nada seria. Grato sou por ter
sido plantado nesta célula.
A Congregação Claretiana é a família com a qual escolhi viver. Aos meus
irmãos no ideal Missionário, digo que serei eternamente “obrigado” a retribuir a
fraternidade cristã.
Tenho muitos colegas, amigos um pouco menos, pessoas que passaram e
passam deixando marcas em minha vida, presentes que recebi no meio acadêmico,
pastoral e laboral. A todos agradeço por dividirem comigo a riqueza de suas
histórias.
Meus agradecimentos finais à Universidade Metodista de São Paulo. Lugar
onde me senti acolhido e pude desenvolver minha tese com total liberdade.
Professora e amiga Magali do Nascimento Cunha, grato por semear esperança
cristã na terra que sou.
Segue o Teu Destino Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra De árvores alheias. A realidade Sempre é mais ou menos Do que nos queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-proprios. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses. Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses. Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam. Ricardo Reis, in "Odes" Heterónimo de Fernando Pessoa
RESUMO
GOMES GORDO, Luís Erlin. Comunicação (I)Material com as Divindades – tipos
e formas de ex-votos na religiosidade popular. 2018 (162 p.). Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Esta tese de doutorado busca avançar na compreensão dos ex-votos como veículo jornalístico e meio de comunicação, atualizando o seu conceito, bem como a sua tipologia. Para tanto, a pesquisa tem por objetivo geral estudar e atualizar a tipologia dos ex-votos criada pelo pesquisador Jorge González e adotada pelos estudiosos da Folkcomunicação, ampliando a compreensão deste fenômeno no processo comunicacional relacionado às religiões, abrindo novas possibilidades de pesquisas acadêmicas nesta área. A tese baseou-se na hipótese de que a atual classificação dos ex-votos adotada pelos pesquisadores de Folkcomunicação requer atualização, uma vez que neste processo comunicacional, assim como em outros, a dinâmica está em contínua mudança, não da prática em si que é milenar, mas em suas formas de expressões e conteúdos (tipologia). Neste sentido, é preciso ainda compreender este fenômeno para além do catolicismo (identidade com o qual foi consolidado), estudando suas manifestações em outros seguimentos do cristianismo e também em outras religiões. Para o desenvolvimento da pesquisa, a Folkcomunicação foi tomada como referencial teórico, com base nos estudos de González, de Luiz Beltrão e de José Marques de Melo. A metodologia empregada foi a pesquisa bibliográfica e o inventário, método já aplicado em pesquisas folkcomunicacionais relacionadas aos ex-votos. Resulta dessa pesquisa a compreensão do fenômeno ex-voto em um passo adiante do convencional (catolicismo). Outra contribuição oferecida é a atualização da tipologia que tem orientado os estudos em Folkcomunicação nas últimas décadas, levando-se em conta a dinamicidade dos processos da comunicação humana. Palavras-chave: Ex-voto. Tipologia. Folkcomunicação. Religiões.
ABSTRACT
GOMES GORDO, Luís Erlin. Communication (I) with Divinities through votive offerings - types and forms of ex-votos in popular religiosity. 2018 (162 p). Thesis (Doctorate in Social Communication) - Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. This study aims to further our understanding of exvotos as a journalistic media and means of communication, updating both the concept and the typology. To this purpose, the general objective of the research is to study and update the typology of exvotos developed by Jorge González (researcher) and adopted by experts on Folk Communication, expanding the understanding of this phenomenon in the communication process related to religions, thus offering new possibilities for academic research in this field. The thesis was based on the hypothesis that the current classification of ex-votos adopted by researchers on Folk Communication needs updating, as the dynamics of this communication process, like others, is continually changing. Being millenary, the practice itself does not change, but its forms of expressions and contents (typology) do. In this sense, this phenomenon must be understood beyond Catholicism (which consolidated it), through the studies of its manifestations in other segments of Christianity and in various religions. For the development of this research, Folk Communication was taken as the theoretical framework, based on the studies developed by González, Luiz Beltrão and José Marques de Melo. The methodology consisted of bibliographical research and inventory method, which have already been applied in Folk Communication research related to ex-votos. The result of this study is the understanding of the exvoto phenomenon one step ahead of the conventional (Catholicism). Another contribution is the updating of the typology that has directed the studies on Folk Communication over the last decades, considering the dynamics of the human communication process. Keywords: Exvoto. Typology. Folkcommunication. Religions.
RESUMEN
GOMES GORDO, Luís Erlin. Comunicación (I)Material con las Divinidades – tipos
y formas de exvotos en la religiosidad popular. 2018 (162 p). Tesis (Licenciado en Comunicación Social) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Estudio que busca avanzar en la compreensión de los exvotos como vehículo periodístico y medio de comunicación, actualizando su concepto como también su tipología. Para tanto, la pesquisa tiene por objetivo general estudiar y actualizar la tipología de los exvotos criada por el pesquisador Jorge González y adoptada por los estudiosos de la Folkcomunicación, ampliando la comprensión de este fenómeno en el proceso comunicacional relacionado a las religiones, abriendo nuevas posibilidades de pesquisas académicas en este área. La tesis se basó en la hipótesis de que la actual clasificación de los exvotos adoptada por los pesquisadores de Folkcomunicación requiere actualización, una vez que en este proceso comunicacional, así como en otros, la dinámica está en continuo cambio, no de la práctica en sí que es milenar, pero en sus formas de expresiones y contenidos (tipología). En este sentido, es necesario aún compreender este fenómeno para más allá del catolicismo (identidad con el cual fue consolidado), estudiando sus manifestaciones en otros seguimientos del cristianismo y también en otras religiones. Para el desarrollo de la pesquisa, la Folkcomunicación fue tomada como referencial teórico, con base en los estudios de González, de Luiz Beltrão y de José Marques de Melo. La metodología empleada fue la pesquisa bibliográfica y el inventario, método ya aplicado en pesquisas folkcomunicacionales relacionadas a los ex-votos. Resulta de esa pesquisa la comprensión del fenómeno exvoto en un paso adelante de lo convencional (catolicismo). Otra contribuición ofrecida es la actualización de la tipología que ha orientado los estudios en Folkcomunicación en las últimas décadas, llevándose en cuenta la dinamicidad de los procesos de la comunicación humana. Palabras-llave: Exvoto. Tipología. Folkcomunicación. Religiones.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1- Vênus de Willendorf – Áustria (20.000 – 22.000 anos a.C.) ................................. 31
Figura 2 - Mãos em Negativo (mutiladas). Réplicas da Caverna de Garga – França .......... 33
Figura 3 - Placa de granito – ex-voto romano – Braga (Portugal) ........................................ 55
Figura 4 - Altar lateral e detalhe – Catedral de Mainz (Alemanha) – construído ex-voto...... 56
Figura 5 - Exemplo de “duplo orante” pré-colombiano – Museo de La Plata (Argentina) ..... 62
Figura 6 - Vaso de Warka – procissão com oferendas para a deusa Inanna. Bagdá ........... 65
Figura 7 - Gato Mumificado – oferenda (espécie de ex-voto) à deusa Basted (Egito) ........ 68
Figura 8 - Imagem de Asclépio (século III a.C.) – terracota – Museu Britânico .................... 69
Figura 9 - Ex-votos oferecidos a Asclépio (Útero, intestino, olho, orelha, seio em terracota)
(Século III a.C.) – Museu Britânico ....................................................................................... 70
Figura 10 - Ex-voto (placa votiva dedicada a Esculápio – I d.C.) - Museu Nacional de
Arqueologia de Lisboa ......................................................................................................... 73
Figura 11 - Sarcófago de Hagia Triade – Museu Arqueológico de Heraclião (Grécia) ......... 76
Figura 12 - Ex-voto olhos – Placa de Bronze – Museu de Archeologia de Dijon – França ... 79
Figura 13 - Ex-votos para Pachamama – Memorial da América latina – São Paulo ............ 83
Figura 14 - Cabeça e imagem de Endovélico – Século I d.C. – M.N.A Lisboa ..................... 89
Figura 15 - Ex-votos (placas) – com inscrições de agradecimento a Endovélico – Século I
d.C. – Museu Nacional de Arqueologia de Lisboa ................................................................ 91
Figura 16 - Ex-voto zoomórfico oferecido a Endovélico – Século I d.C. – M.N.A Lisboa ..... 92
Figura 17 - Ex-votos de diversos santuários no Brasil ....................................................... 102
Figura 18 - Ex-votos aos pés de Nossa Senhora da Cabeça Igreja de Santa Luzia, SP ... 103
Figura 19 - Ex-voto (Banner) Igreja Santa Cecília, São Paulo -SP .................................... 104
Figura 20 - Ex-voto (tatuagem).......................................................................................... 106
Figura 21 - Ficha para envio do testemunho ..................................................................... 112
Figura 22 - Ex-votos – Igreja Deus é Amor, São Paulo - SP ............................................. 113
Figura 23 - Milagres na Igreja Deus é Amor ...................................................................... 114
Figura 24 - Oferendas para o orixá Exu – Cemitério da Saudade – Campinas - SP .......... 121
Figura 25 - Pintura de Camilo Tavares (Festa de Iemanjá) ............................................... 123
Figura 26 - Compilação de fotos – Ex-votos alimentícios .................................................. 134
Figura 27 - Capela Nossa Senhora do Ó e ex-voto pictórico – Sabará - MG ..................... 136
Figura 28 - Túmulo de Exú Tranca Ruas – Cemitério da Saudade – Campinas - SP ........ 137
Figura 29 - Fiéis pagando promessa peregrinando de joelhos – Fátima - Portugal ........... 138
Figura 30 - Devota vestida de São Francisco – Canindé - CE ........................................... 139
Figura 31 - Ex-voto no formato de tatuagem ..................................................................... 140
Figura 32 - Chupetas Túmulo do “anjinho” Cezinha Cemitério da Penha – São Paulo ...... 142
SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 13
CAPÍTULO 1 ....................................................................................................................... 26
RELIGIÃO É COMUNICAÇÃO ............................................................................................ 26
1.1 O Ser Humano é Comunicação ................................................................................ 27
1.2 Registros Comunicacionais ..................................................................................... 29
1.3 O Ser Humano é Espiritual ....................................................................................... 35
1.4 Os Símbolos, elos que ligam Religião e Comunicação ......................................... 41
1.5 A Religião é um meio de Comunicação .................................................................. 46
CAPÍTULO II ....................................................................................................................... 53
EX-VOTO: COMUNICAÇÃO DE INTIMIDADE COM AS DIVINDADES .............................. 53
2.1 O significado etimológico de EX-VOTO .................................................................. 53
2.2 O ex-voto é comunicação ........................................................................................ 57
2.3 Ex-votos nas origens das práticas religiosas......................................................... 59
2.4 Ex-voto presente nas religiões antigas ................................................................... 63
CAPÍTULO III ...................................................................................................................... 93
EX-VOTO PARA ALÉM DO CATOLICISMO ....................................................................... 93
3.1 Ex-votos no catolicismo – história e atualidade..................................................... 94
3.2 Ex-votos no catolicismo Brasileiro ......................................................................... 98
3.3 Os ex-votos no catolicismo de hoje ...................................................................... 101
3.4 A presença dos ex-votos nas igrejas evangélicas ............................................... 106
3.5 Ex-votos nas religiões de matriz religiosa africana ............................................. 115
CAPÍTULO IV .................................................................................................................... 124
NOVAS TIPOLOGIAS DE EX-VOTOS .............................................................................. 124
4.1 Ex-voto na Folkcomunicação ................................................................................ 124
4.2 Tipologia dos ex-votos adotada pela Folkcomunicação ..................................... 129
4.3 Atualização da tipologia dos ex-votos .................................................................. 132
4.4 Proposta de nova tipologia para os estudos folkcomunicacionais dos ex-votos
................................................................................................................................... 144
CONCLUSÃO .................................................................................................................... 153
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 158
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INTRODUÇÃO
Esta tese de doutorado em Comunicação Social é resultado da pesquisa que
avança na compreensão dos ex-votos como veículo jornalístico e meio de
comunicação, buscando atualizar o seu conceito, bem como a sua tipologia.
São muitas as razões que me levaram até o deslumbramento pelo tema dos
ex-votos, a começar pela minha vocação sacerdotal. Nasci no ano de 1973, na
cidade de Cambé, norte do Paraná. Minha família sempre foi muito religiosa
(católica), quase todas as recordações da minha infância estão relacionadas com
eventos religiosos: folia de reis e festas juninas (no sítio em que morávamos); reza
do terço e procissões; quermesse em homenagem a Santo Antônio, padroeiro de
Cambé; participações familiares das missas dominicais, etc.
Ainda criança, segundo minha mãe, eu já manifestava o desejo de ser padre.
Fiz acompanhamento vocacional durante vários anos, e entrei no seminário com 15
anos de idade, na cidade de Rio Claro (SP). Escolhi a Congregação Dos Filhos do
Imaculado Coração de Maria (conhecida como Missionários Claretianos), fundada
por Santo Antonio Maria Claret. Minha escolha não foi aleatória, foi fundamentada
em minha devoção a Nossa Senhora. Eu queria pertencer a uma ordem mariana.
Completei o ensino médio e ingressei no filosofado em Batatais (SP), fiz
Filosofia nas Faculdades Claretianas (1992-1994) e, em seguida, fui para o
noviciado na cidade de Progreso no Uruguai, fiquei lá um ano. Em 1996, iniciei meus
estudos teológicos no Studium Theologicum (PUC – afiliado a Lateranense de
Roma), em Curitiba (PR). Depois de dois anos de curso, fiz meu estágio pastoral
(obrigatório) em Paranatinga (MT), retornando, em seguida, a Curitiba para finalizar
a Teologia. Antes de fazer meus votos solenes, fiz uma experiência itinerante
(missionária e formativa) no Chile.
Depois dessa experiência, já consagrado padre, fui enviado a Pato Branco
(PR), e trabalhei um ano como Reitor do Seminário Claretiano dessa cidade.
Durante toda minha formação sacerdotal, sempre nutri um amor muito grande pelas
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artes, de forma geral, mas com um interesse peculiar pela pintura e poesia. Meus
estudos acadêmicos eram intercalados com leituras sobre esses temas.
No ano de 2003, fui transferido para São Paulo disposto a estudar Jornalismo.
Fiz meu curso na Universidade Nove de Julho (Uninove) e comecei a trabalhar na
revista Ave Maria, assumindo a direção editorial no meu último ano de faculdade.
Em seguida, o Governo Provincial nomeou-me também diretor editorial da Editora
Ave-Maria.
Escrevi vários livros, tendo a espiritualidade como pano de fundo de minhas
publicações. Tive o privilégio de ter a maioria das minhas obras traduzidas para
idiomas como: espanhol, italiano, inglês, maltês e adaptadas para Portugal. Nas
minhas incursões na literatura, experienciei a oportunidade de escrever quatro livros
infantis em parceria com o renomado autor Maurício de Sousa.
Após terminar o curso de Jornalismo, eu pretendia continuar meus estudos e
fazer mestrado e doutorado, mas com a carga de trabalho na editora tive que adiar
meu sonho, que agora se realiza. Assim, fiz meu mestrado em Comunicação Social
entre os anos 2013 e 2014 na Universidade Metodista de São Paulo, meu orientador
foi o professor José Marques de Melo. Quando meu orientador me assumiu na
Metodista, ele disse: “você vai trabalhar sobre os ex-votos”, esse desafio me causou
certo desconforto, pois eu não era familiarizado com a folkcomunicação. Hoje
agradeço a sensibilidade do professor Marques e percebo que a folkcomunicação
está presente nas minhas origens, por isso não foi difícil ficar apaixonado por essa
teoria.
Conversando com minha mãe de 84 anos sobre meu projeto de pesquisa, e
explicando a ela sobre os ex-votos, ela me fez uma revelação que encheu minha
alma de alegria, ratificando a importância desse tema para mim. Assim que ela
nasceu em 1933, teve poliomielite. Devido às complicações, corria o risco de morrer,
meus avós fizeram uma promessa que se ela sobrevivesse, iriam tirar uma foto dela
e depositar aos pés de Nossa Senhora Aparecida (em Aparecida). Minha mãe se
recuperou, e meus avós cumpriram a promessa. Graças a esse voto, minha mãe é a
única dos seis filhos que possui uma foto de quando era criança.
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Analisando esse fato com os olhos da Folkcomunicação, defendo, assim
como Beltrão, que os ex-votos são um veículo jornalístico.
No meu doutorado, eu decidi continuar nesta linha de pesquisa, e fui acolhido
com carinho pela professora Magali do Nascimento Cunha, e juntos vimos a
necessidade de ampliar as formas tipológicas dos ex-votos, facilitando assim, futuras
pesquisas nessa área de forma multidisciplinar.
A Trajetória de pesquisa:
Os estudos na área de Comunicação Social são amplos e variados, como não
poderiam deixar de ser. Nos últimos anos, percebemos um grande interesse dos
pesquisadores desta vertente acadêmica pelos temas relacionados à religião.
Esta tese poderá dar visibilidade aos processos comunicacionais relacionados
aos aspectos culturais da religiosidade popular, que fazem parte da nossa
identidade brasileira e latino-americana. Muitas destas expressões votivas,
aparentemente singelas, simples e ingênuas, estão alicerçadas na força da
resistência cultural de nossa gente. Entender este fenômeno e dá-lo a conhecer
seria uma forma de preservar nossa memória.
Há, ainda, um pequeno número de pesquisas sobre os ex-votos na área de
conhecimento da Comunicação e da Informação. Novas abordagens podem trazer
grandes contribuições para a interface que engloba mídia-religião-cultura. A
pesquisa apresentada é inédita e amplia a concepção utilizada hoje acerca dos ex-
votos, dando um passo além do senso comum que os relacionam somente com o
catolicismo popular.
Em suas origens, essa prática votiva era muito difundida e se aplicava a
várias manifestações religiosas (primitivas) espalhadas pelo mundo. Este retorno
histórico ao princípio poderia ampliar, em nossos dias, o seu campo de
entendimento, incluindo outras identidades religiosas. A pesquisa de mestrado que
desenvolvi, orientada por José Marques de Melo, já permeava essa seara dos ex-
votos como expressão comunicacional. A dissertação resultou, inclusive, no livro Ex-
Votos – A Saga da Comunicação Perseguida (Editora Ave-Maria, 2015) e a pesquisa
que origina esta tese continua a desenvolver o tema, estendendo a perspectiva.
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Existe uma lacuna na classificação tipológica dos ex-votos que, inclusive, é
levantada por Marques de Melo (2010, p. 104). Trazida essa problemática à tona,
considerando-a como um desafio, o objetivo é apresentar uma classificação
atualizada.
Dessa forma, a proposta é rever a tipologia dos ex-votos academicamente
aceita no tempo presente, preservando a atual classificação e acrescentando novos
elementos tipológicos. Considerando uma nova tipologia, agregando manifestações
devocionais de outras crenças, é possível ampliar, de forma significativa, os estudos
sistemáticos deste tema, não só na esfera comunicacional, mas interdisciplinar.
O pioneiro artigo de Luiz Beltrão “O ex-voto como veículo jornalístico”,
publicado no ano de 1965, na revista Comunicação & Problemas, é considerado a
gênese da corrente de pesquisa acadêmica fundada por ele, denominada
Folkcomunicação, que aproxima as diversas manifestações culturais populares - de
modo especial as folclóricas - das pesquisas em comunicação social. Embora
Beltrão inicie sua pesquisa em Folkcomunicação, com base nos ex-votos, ele não os
classifica sistematicamente.
Marques de Melo (2010), com base na VIII Conferência Nacional de
Folkcomunicação, realizada em Teresina – PI, no ano de 2005, que tratou como
tema principal A comunicação dos pagadores de promessas: do ex-voto à industria
dos milagres, sugere para os estudiosos da Folkcomunicacão a tipologia dos ex-
votos elaborada pelo pesquisador mexicano Jorge González, autor do livro Exvotos
y retablitos – religión popular y comunicación social en México, em que fez um
estudo primoroso sobre os ex-votos como forma de comunicação social.
Tendo por base os estudos de González (1986), os ex-votos são classificados
em cinco tipos:
a) objetos figurativos da graça alcançada (partes do corpo ou figuras
humanas, casas, animais, vegetais, carros, feitos nos mais diversos tipos de
materiais);
b) objetos que ressaltam metonimicamente um aspecto, elemento ou
componente ‘representativo’ da totalidade do milagre realizado (as representações
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podem ser as mais diversificadas, como buquê de noivas, muletas e aparelhos
ortopédicos, etc);
c) objetos propriamente discursivos, nos quais de maneira escrita, se propaga
o milagre (cartaz, mármore, placas, etc);
d) midiáticos são os ex-votos impressos em jornais e revistas na intenção de
divulgar a graça alcançada;
e) são os chamados “retablitos” que em uma tradução livre podemos chamar
de “tabuinhas”, ou seja, quadrinhos pintados (pictóricos) em diferentes materiais,
geralmente em formatos retangulares que descrevem por meio de pintura o milagre
recebido.
Em relação ao estudo de González, Marques de Melo não fecha a questão,
pelo contrário: “como se trata de uma tipologia originalmente construída no México,
é possível que os pesquisadores brasileiros se deparem com outras espécies, que
deverão ser arroladas, agrupadas e se possível classificadas” (MARQUES DE
MELO, 2010, p. 104).
O ex-voto é uma prática devocional (agradecimento a uma divindade por uma
graça alcançada) que teve início antes mesmo do cristianismo. Os registros mais
antigos dos ex-votos, como compreendemos atualmente, foram encontrados em
duas localidades, na região que hoje é a Itália. As cidades de Pesto e Lácio
abrigavam grandes templos em homenagem aos deuses cultuados por estes povos.
Ou seja, essa relação comunicacional por meio do ex-voto com a divindade está
alicerçada no paganismo. Somente depois acabou sendo associada, quase que
exclusivamente, ao catolicismo popular.
As classificações tipológicas dos ex-votos, tanto de Beltrão, Marques de Melo
e González, estão intimamente ligadas à tradição popular católica. Porém, a
compreensão alargada do sentido do ex-voto, uma vez que era uma prática pagã
que foi incorporada ao catolicismo, abre espaço para um entendimento mais
ampliado e diversificado do que sejam de fato essas expressões, incluindo a
presença marcante deste processo comunicacional em outras confissões religiosas,
como, no caso do Brasil, no cristianismo evangélico (de modo especial as
pentecostais e neopentecostais) e nas religiões de matriz africana.
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A não inclusão deste amplo universo religioso, que cada dia ganha mais
força, sobretudo no Brasil, nas pesquisas em Folkcomunicação, limita a abordagem
acadêmica nesta área. Embora os evangélicos utilizem outros termos para a
expressão e materialização de uma graça alcançada, defendeu-se nesta tese que as
formas de anunciar um “milagre” recebido por eles podem sim ser contempladas
dentro de uma classificação tipológica dos ex-votos, incentivando futuras pesquisas
Folkcomunicacionais.
Mesmo no interior do catolicismo, novas formas de pagamento de promessa
surgiram espontaneamente nos últimos anos, de modo especial com o advento da
internet, e que até hoje ainda não foram classificadas. A prática religiosa dos ex-
votos se renova e se adapta constantemente, é um movimento ancestral que faz
parte das culturas no imaginário coletivo.
Com base nestas constatações é que se constitui a questão-problema desta
investigação: Como é possível elaborar uma atualização da atual classificação
tipológica dos ex-votos, incluindo não só as novas formas de pagamento de
promessas provenientes do catolicismo popular, mas também as práticas de
agradecimento por uma graça alcançada em outras expressões religiosas?
O objetivo geral é estudar e atualizar a existência de novos tipos de ex-votos
que não se enquadram na tipologia dos ex-votos - criada por Jorge González e
adotada pelos estudiosos da Folkcomunicação - amplificando a compreensão deste
fenômeno no processo comunicacional relacionado às religiões, abrindo novas
possibilidades de pesquisas acadêmicas nesta área.
Os objetivos específicos são:
- revisar as teorias de Luiz Beltrão acerca dos ex-votos como forma
comunicacional (veículo jornalístico);
- identificar novas expressões de ex-votos;
- atualizar a tipologia de ex-votos sugerida por Jorge González;
- ampliar a compreensão do ex-voto como forma de comunicação do fiel com
a divindade que “tem o poder” de realizar o milagre esperado;
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- apresentar uma nova tipologia dos ex-votos contemplando não só a prática
devocional no catolicismo popular, mas demonstrando que essa prática é viva e
presente em outras denominações religiosas;
- averiguar as semelhanças e possíveis diferenças de ex-votos no catolicismo
com as outras religiões.
A hipótese principal foi que a atual classificação dos ex-votos adotada pelos
pesquisadores de Folkcomunicação requer atualização, pois, neste processo
comunicacional, assim como em outros, a dinâmica está em contínua mutação, não
da prática em si que é milenar, mas em suas formas de expressões e conteúdos
(tipologia). Nesse sentido, é preciso ainda compreender este fenômeno para além
do catolicismo (identidade com a qual foi consolidado os estudos em
Folkcomunicação), estudando suas manifestações em outros segmentos do
cristianismo e também em outras religiões.
Como hipóteses derivativas foram apontadas:
- Os ex-votos são entendidos e classificados dentro de uma visão
reducionista, em que são catalogados como pagamento de promessa, somente
relacionados ao material proveniente do catolicismo popular;
- No catolicismo popular, o pagamento de promessa não é novidade e é
bastante recorrente em sua forma de manifestação. Porém, muitas dessas práticas
devocionais “se modernizaram” e os novos tipos de ex-votos não estão
contemplados na tipologia ainda adotada nos estudos de Folkcomunicação,
manifestações digitais (textos e imagens), as tatuagens, entre outros;
- As denominações evangélicas, embora não trabalhem com o conceito de ex-
votos (assim como entendido pela Folkcomunicação, via catolicismo), incentivam, de
alguma forma, a oferenda em agradecimento por milagres recebidos;
- As oferendas destinadas aos orixás (religiões afro-brasileiras), também
podem ser classificadas como ex-votos, ampliando o campo de pesquisa nesta área
para além do cristianismo.
A trajetória metodológica adotada na tese constou de dois pilares: o primeiro
foi a pesquisa bibliográfica; o segundo, o inventário, metodologia já estabelecida no
campo da Folkcomunicação, relacionada às pesquisas que têm como objeto os ex-
votos.
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Pesquisa bibliográfica:
“Os livros constituem as fontes bibliográficas por excelência. Em função de
sua forma de utilização, eles podem ser classificados como leitura corrente ou de
referência” (TRIVIÑOS, 1990, p. 50). Tendo em vista esta orientação, procederemos
a uma pesquisa mais abrangente da bibliografia disponível sobre os principais temas
que demandam esse estudo:
- Comunicação e religião, aspectos históricos e relações.
- O ex-voto como comunicação, sua história e aplicações.
- Religiões contemporâneas e suas relações com os ex-votos.
2. Inventário:
A Rede Folkcom sugere como método de estudos dos ex-votos o inventário:
“inventariar todas as peças incorporadas ao acervo do núcleo de devoção [...] o ideal
é inventariar todas as peças expostas” (MARQUES DE MELO, 2010, p. 105).
Os autores Silvia Regina da Mota Rocha e Carlos Xavier de Azevedo Netto,
ambos da Universidade Federal da Paraíba, em artigo sobre o Inventário do
Patrimônio Religioso da Paraíba, escrevem sobre os dois eixos da pesquisa, tendo
por base o inventário:
No que concerne ao modelo conceitual do Inventário, o primeiro eixo de sua conceituação refere-se à forma na qual está estruturada suas duas categorias macro: que possibilitarão categorizações geral e específica do objeto em inventariação, respectivamente, configuradas da seguinte forma: - Como categorias macro temos: categorização geral; e categorização específica; - Como categorias subsequentes ou complementares temos: informação contextual; informação suporte e artística; informação semântica; e informação histórica e documental. O segundo eixo de conceituação refere-se aos desdobramentos das categorias subsequentes ou complementares configurados em diversas tipologias ou campos para registro de informação especializada de diversas áreas de conhecimento: Ciência da Informação, Biblioteconomia, História, Estética, Restauração e Conservação e Teologia. Portanto, os campos ou categorias indexais para registro de informação especializada que compõem a ficha de inventário não apresentam relação hierarquizada, mas de complementariedade, com vistas à qualificação dos bens culturais móveis e integrados religiosos (ROCHA; AZEVEDO NETTO, 2012, p. 13).
21
A pesquisa se enquadra na categoria macro, com categorizações gerais e
específicas. O inventário foi realizado em locais físicos como santuários
(catolicismo); igrejas (catolicismo e protestantismo); cruzeiros e cemitérios (religiões
de matriz africana e catolicismo popular); e outros locais de cultos que congregam
tanto a umbanda como o candomblé; também foram pesquisadas algumas
plataformas digitais da internet.
Foram selecionados alguns espaços físicos e digitais com base na Matriz
Religiosa Brasileira1. São locais que estão intimamente ligados à cultura religiosa de
nosso país, desde a devoção oriunda do catolicismo popular; das expressões
devocionais da matriz africana e povos originários e do cristianismo evangélico, de
modo especial, o neopentecostal que se apropria de muitos elementos simbólicos,
tanto do catolicismo quanto das religiões embasadas na cultura africana.
2.1 Espaços físicos pesquisados:
- Santuário do Divino Pai Eterno – Trindade - Goiás. É um santuário
católico, nacionalmente conhecido por fiéis de todo território, com grande presença
de devotos. A pesquisa neste local foi importante, pois é oficial da Igreja Católica. As
peças votivas depositadas são de grande variedade tipológica e contribuíram, dessa
forma, para o inventário.
- Santuário São Francisco do Canindé – Canindé – Ceará. Da mesma
forma que o Santuário do Divino Pai Eterno, essa devoção é oficial da Igreja. O local
atrai fiéis de todo o Brasil, especialmente do Nordeste, justamente por essa razão
este local foi escolhido. A variedade de tipos de peças também é ampla.
- Igreja – Padre Donizetti – Tambaú – São Paulo. A escolha deste local se
deu por tratar-se de um “santo popular”, não canonizado pela Igreja, mas
“canonizado” pelo povo. O local é bastante visitado e as peças votivas também são
diversificadas, ampliou-se, dessa forma, o inventário.
- Igreja Deus é Amor – Sede Mundial – São Paulo – São Paulo. O caso da
Igreja Deus é Amor é único entre as denominações evangélicas. Foi imprescindível
1 A Matriz Religiosa Brasileira é a expressão religiosa advinda dos povos originários, dos europeus e
dos africanos. Este tema será tratado no terceiro capítulo desta tese.
22
incluir em nossa pesquisa este local, pois além dos ex-votos tradicionais como
encontrados no catolicismo popular (muletas, peças ortopédicas, exames médicos,
fotos), foram catalogados outros tipos de ex-votos, como por exemplo, vidros
contendo vômitos, simbolizando o demônio expulso ou até mesmo enfermidade
lançada fora do corpo.
- Cruzeiro – Cemitério da Saudade – Campinas – São Paulo. Quase todos
os cemitérios do Brasil têm os seus cruzeiros (uma cruz em local de destaque com
espaço próprio para acender velas, embora a finalidade seja essa, estes locais
acabaram se tornando centros de cultos para religiões de matriz africana, sobretudo
por estarem localizados dentro de um cemitério, remetendo assim o culto aos
ancestrais). Dos cemitérios que visitamos, o local se destacou pela quantidade e
variedade de oferendas aos mortos e aos orixás. Este cemitério também foi
escolhido por ter um túmulo construído em homenagem ao orixá Exu, o próprio
túmulo pode ser considerado um ex-voto. A quantidade de “pagamentos de
promessa” ao redor do túmulo é em larga escala.
- Casa de Iemanjá – Salvador – Bahia. Este local é bastante emblemático,
pois de fato é uma casa, localizada na praia Rio Vermelho, mas funciona como um
santuário dedicado à Iemanjá. Em uma das salas destaca-se a imagem da entidade
e aos seus pés grande quantidade de oferendas (ex-votos) das mais variadas
possíveis. Embora não seja um terreiro, o local é considerado sagrado, tanto para os
adeptos da umbanda quanto do candomblé. Além das oferendas aos pés de
Iemanjá, os fiéis fazem seus rituais nas areias do mar ao lado da casa. Caminhando
pelo entorno é possível detectar vários tipos de pagamentos de promessa.
2.2 Espaços midiáticos pesquisados:
Foram inventariados também programas de TV evangélicos que priorizam em
seus roteiros os testemunhos de graças recebidas (muitos são somente pela via da
oralidade, outros além do testemunho oral estão acompanhados da materialidade da
graça recebida, como carteiras de trabalho, fotos de antes e depois, dentre outros).
A pesquisa também teve como objeto de estudo espaços midiáticos digitais,
especificamente os canais da mídia digital Youtube, pois os conteúdos veiculados
neste meio foram primeiramente televisionados e agora estão disponíveis na internet
23
com acesso a qualquer hora e local (embora tanto evangélicos quanto católicos se
utilizem desses meios, o foco desta pesquisa foram canais evangélicos).
Os dois canais escolhidos pertencem a denominações neopentecostais, pois
a base central de seus programas são os testemunhos.
Canais do Youtube pesquisados:
- Igreja Universal do Reino de Deus – Canal no Youtube2.
- Igreja Mundial do Poder de Deus – Canal no Youtube3.
A partir das visitas aos locais e do acesso aos canais do Youtube, as peças
não foram analisadas em sua individualidade (mensagem contida), mas foi feita uma
descrição dos ex-votos expostos não lhes atribuindo juízo de valor. Também não
foram feitas fichas específicas com análise de cada peça e nem com a quantidade
de determinadas categorias. A tarefa metodológica configurou-se na produção de
uma lista (geral) dos tipos de ex-votos identificados (categorização geral e
específica) em cada um dos locais visitados. Dessa forma, foi determinado um
tempo exato para o procedimento. A pesquisa ocorreu de acordo com a
especificidade de cada local visitado e do número de ex-votos nele depositados,
lógica que também foi adotada para os sites.
2.3 Etapas do inventário:
- Identificação das peças – foi feito um registro de todas as peças
encontradas. Seguindo como ponto de partida a tipologia de González, listando os
ex-votos que se enquadram nestas categorias. As peças que não se encaixaram
foram agrupadas separadamente. Como já foi dito, não se verificou o número exato
de peças similares, mesmo que em uma modalidade existissem dezenas de peças,
e em outra apenas uma, elas tiveram o mesmo tratamento de valor. (Tipologia de
González: objetos figurativos; representativos; discursivos; midiáticos e pictóricos).
2 Endereço para consulta está nas referências.
3 Endereço para consulta está nas referências.
24
- Categorização – para facilitar a separação dos gêneros encontrados, as
peças foram agrupadas (primeiramente, segundo os tipos propostos por González e,
posteriormente, agrupando peças que formavam outras categorias). Esta
categorização não foi a mesma em cada identificação, pois encontrou-se diversidade
de material comparando um local de pesquisa ao outro. A categorização no
inventário também não representou a tipologia final, foi apenas um recurso para
agrupar as peças.
Somente depois da coleta de dados e das categorizações é que foi construída
uma nova tipologia para os ex-votos, de forma a contemplar as várias expressões
religiosas, tópico elucidado no Capítulo 4 desta tese. E com base nos resultados
alcançados pela análise, foram concretizados nesta pesquisa quatro capítulos, a
saber:
No primeiro capítulo intitulado Religião é Comunicação, foi apresentado um
levantamento histórico da comunicação e da religião desde os primórdios do ser
humano, defendendo a ideia de que não existem dicotomias entre estes elementos
(comunicação – religião), eles fazem parte de um mesmo processo evolutivo. O ser
humano por natureza é comunicação e crença em algo além da matéria.
No segundo capítulo, que recebeu o título de Ex-Voto: Comunicação de
Intimidade com as Divindades, é apresentada a história dos ex-votos, sobretudo
dentro de um processo comunicacional de povos primitivos com as divindades.
Nesta comunicação, o ex-voto aparece como um diálogo direto e próximo do fiel
com a divindade. Com base neste percorrido histórico, foi defendido que o ex-voto
sobrevive ainda hoje em nossas práticas religiosas como uma herança ancestral.
No terceiro capítulo Ex-voto para além do catolicismo, foi apresentada a teoria
que o entendimento acerca dos ex-votos pode ser ampliado. Tendo por alicerce o
capítulo anterior em que o ex-voto aparece como uma herança ancestral, neste
capítulo, foram apresentadas diversas manifestações religiosas atuais - percebendo
que esta relação de oferenda, de troca “de favores”, entre o divino e o ser humano é
muito mais comum do que se imagina. Ampliou-se, dessa forma, o entendimento do
que são os ex-votos. Além do catolicismo, receberam destaque algumas práticas
religiosas do candomblé, da umbanda e de denominações evangélicas.
25
No quarto e último capítulo, nomeado como Novas tipologias de ex-votos, foi
desenvolvida uma leitura Folkcomunicacional dos ex-votos, destacando a
importância deste tema nos estudos de Luiz Beltrão, e como os ex-votos foram
estudados nesses anos. Foi exposta também a classificação tipológica desta prática
votiva elaborada por Jorge González e adotada pela Folkcomunicação, como
ferramenta para os estudiosos sobre o tema. Somente depois foi indicada uma nova
tipologia, contemplando alguns elementos que surgiram em virtude da evolução dos
meios de comunicação, como o tecnológico, por exemplo. Também foram incluídas,
nesta tipologia, as manifestações religiosas de outras denominações, como forma de
ampliar o campo de estudo acadêmico tendo por base os ex-votos.
26
CAPÍTULO 1
RELIGIÃO É COMUNICAÇÃO
Tanto o tema da religião quanto o da comunicação vêm ganhando espaço nos
estudos acadêmicos de diferentes áreas disciplinares, pois o interesse pelos dois
temas é inegável, e embora muitos destes estudos tratem dos dois temas
separadamente, existem também alguns pesquisadores que defendem a teoria da
existência de uma relação quase que simbiótica entre a religião e a comunicação, e
nós compartilhamos dessa ideia.
O historiador das religiões Mircea Eliade (2010, p. 13), logo no prefácio de
seu clássico livro História das Crenças e das Ideias Religiosas ( I ), escreve algo que
nos permite fazer a ligação entre o ser humano, a religião e a comunicação: “ [...] O
sagrado é um elemento da consciência, e não uma fase na história dessa
consciência. Nos mais arcaicos níveis de cultura, viver como ser humano é em si um
ato religioso, pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho têm um valor
sacramental”. Eliade termina este parágrafo afirmando de forma contundente: “Em
outras palavras, ser – ou, antes, tornar-se – um homem significa ser “religioso”
(grifo nosso).
Embora Mircea Eliade não inclua a comunicação nesta estrutura, não é difícil
associá-la, pois desde os primórdios da humanidade, o ser humano é um ser de
expressão, estabelecendo relações externas por meio da linguagem, da arte, da
mitologia e dos rituais. O desejo de se comunicar é inerente ao ser humano, e o
termo cultura está intimamente ligado às formas de comunicação.
O antropólogo Glifford Geertz (2015, p. 34), em seu livro As interpretações da
Cultura, diz: “A cultura, em vez de ser acrescentada, por assim dizer a um animal
acabado, foi um ingrediente, e um ingrediente essencial na produção deste mesmo
animal.” Ou seja, é a cultura que tece a nossa identidade.
Geertz (2015, p. 4), no primeiro capítulo do livro já citado, defende o que seria
cultura para ele: “O conceito de cultura que eu defendo [...] é essencialmente
semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a
teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas
27
teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de
leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado”.
Pensar a cultura como uma teia nos parece uma teoria fabulosa, pois uma
teia pode se estender gradativamente, criando laços complexos, sem
individualismos. Um ponto não é apenas um ponto, é a extensão de outro em uma
relação sem fim, e os símbolos utilizados na confecção desta “teia” surgem do
desejo de comunicar. Mas não basta criar teias, é preciso interpretá-las para que o
ser humano se conheça e se reconheça. Na busca deste significado, a religião ou o
metafísico aparece como um sentido místico na tentativa de interpretar/contemplar a
realidade.
1.1 O Ser Humano é Comunicação4
Quando pensamos em comunicação não estamos reduzindo a compreensão
deste conceito à palavra. A comunicação, como sabemos, vai além da oralidade e
da escrita. Apontamos como descritivo de comunicação a definição de Antônio
Pasquali, que a relaciona com a comunidade, estando um passo além da
informação:
Informação é ontologicamente relacionada à casualidade. Ela conota a mensagem/causa de um transmissor ativo, que busca gerar no receptor passivo um comportamento/efeito imediato ou remoto. Comunicação é ontologicamente relacionada à comunidade. Ela conota a mensagem/diálogo, que busca produzir respostas não programadas, reciprocidade, consenso e decisões compartilhadas. [...] Consequentemente, informação categoricamente expressa um relacionamento comunicativo menos perfeito ou equilibrado do que a comunicação, e tende a produzir mais verticalidade do que igualdade, mais subordinação do que reciprocidade, mais competitividade do que complementaridade, mais imperativos do que indicativos, mais ordens do que diálogo, mais propaganda do que persuasão (PASQUALI, 2005, p. 27).
O livro Comunicación antes de Colón produzido pelo CIBEC5, assinado pelos
coautores Luís Ramiro Beltrán, Karina Herrera, Esperanza Pinto e Erick Torrico
4 Tanto neste subcapítulo como nos seguintes, nossa intenção não é traçar todo o percurso histórico
e evolutivo dos componentes analisados, pois seria impossível. Nosso objetivo é mostrar a “gêneses” de tais elementos na estrutura humana, a saber: comunicação, religiosidade, utilização de símbolos. 5 CIBEC – Centro Interdisciplinário Boliviano de Estudios de La Comunicación.
28
(2008, p. 32), ao defender a configuração integral do ser humano, apresenta o
problema dos primeiros traços comunicativos do ser humano:
Os estudos evolucionistas – no biológico com Charles Darwin e no cultural com Lewis Morgan – deixaram uma inquestionável marca no pensamento antropológico. Claro que esta marca nunca esteve livre de questionamentos e polêmicas, ainda que, em alguns casos as investigações na área de paleontologia estabeleceram de maneira quase que incontestável um movimento progressivo desde o homo habilis, um hominídeo datado de 1.750.000 mil anos a.C., até o homo sapiens, protótipo do homem atual que havia aparecido ao redor de
30 mil anos a.C. Neste discurso, se considera que a linguagem articulada, como um sistema significativo embasado em sons vocais, surgiu nos tempos do homo erectus, isto é, uns 400.000 anos a.C. (BELTRÁN et al, 2008, p.32)
Os antropólogos divergem quanto ao aparecimento da linguagem oral,
justificando a dificuldade em determinar um período exato. Porém, existe uma
certeza comprovada por meio da arqueologia que mesmo antes de o ser humano
articular a linguagem oral, o desejo de comunicar já estava presente na essência
natural da raça humana.
Os autores Flávia Marqueti e Pedro Paulo A. Funari (2011)6 apresentam a
problemática destacando que a comunicação por meio de sons, que são uma
característica da espécie humana, não pode ser datada, de forma exata, em algum
lugar do passado. Ressaltam também que muitos pré-historiadores defendem que
os Neandertais nunca desenvolveram a capacidade da fala, diferenciando-se assim
de nossa espécie. Os autores apontam, inclusive, um argumento7 de que a
capacidade da fala foi decisiva na preservação dos seres humanos.
A comunicação, segundo este argumento, seria crucial para a compreensão
da própria humanidade. Muito embora não tenhamos acesso aos códigos
linguísticos dos paleolíticos, temos testemunhos eloquentes, numerosos e variados
da comunicação por meio de imagens e objetos (MARQUETTI; FUNARI, 2011, p.
156).
6 Em algumas citações em que somente o ano da publicação aparece, indica que foram tiradas de
arquivos digitais (internet). 7 O argumento é apresentado nos estudos de Clive Gamble, como em Origins and revolutions,
Human identity in earliest prehistory. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
29
Nesta pesquisa, não temos a pretensão de defender teorias sobre o exato
momento do aparecimento, na história da humanidade, das diferentes formas
comunicacionais dos seres humanos. Defendemos a ideia de que a interpretação da
realidade levou o homem a se relacionar (de forma comunicativa) primeiro com a
natureza, depois com os seus iguais.
Nesta linha de raciocínio, citamos mais um trecho do livro compilado pelo
CIBEC:
A relação homem-natureza, inevitável pela necessária existência do indivíduo em seu entorno, já supõe uma forma, ainda que incompleta, de comunicação. Do mesmo modo, a igualmente importante relação homem-homem implica certo tipo de intercâmbio [...]. Dessa forma é certificado, então, que a comunicação nasce com o ser humano, pois é um dos componentes sine qua non de sua especificidade. Dessa forma, tendo em conta ao que se indicou, as investigações encontram provas do desenvolvimento progressivo do ser humano na qual não seria concebível que em algum momento, nem sequer em sua mais primitiva origem, que estivesse alheio à comunicação. Em outros termos, a configuração do homem como tal não pode ter ocorrido à margem da possibilidade de estabelecer contato com o mundo exterior e com os seus semelhantes. Que a palavra articulada tenha surgido posteriormente, por razões não clarificadas absolutamente, isto é outra questão (BELTRÁN et al, 2008, p. 32-33 – grifo e tradução
nossos).
Importa-nos, neste primeiro momento da nossa pesquisa, a certeza defendida
no trecho que lemos acima: “a comunicação nasce com o ser humano”.
1.2 Registros Comunicacionais
A pré-história, como é defendida por alguns pensadores, compreende o
tempo em que o ser humano ainda não havia desenvolvido a escrita, ou criado
símbolos gráficos de codificação aceitos por uma comunidade. Antes da escrita,
porém, encontramos inúmeros vestígios espalhados em todo o mundo de
representações gráficas (pictóricas), escultóricas e arquitetônicas que antecedem a
escrita, mas comunicam o entendimento que nossos antepassados tinham do
mundo, da vida, da morte e do transcendente. Muitas dessas inscrições pictóricas
30
foram encontradas em cavernas e são uma narrativa da vida da época, a caça, a
representação antropomórfica em grupos, etc.
Como o nosso trabalho gira em torno dos ex-votos, decidimos citar alguns
registros comunicacionais pré-históricos, que mesmo não sendo elementos
exclusivamente religiosos destes povos, se assemelham muito com a comunicação
estabelecida com as divindades em diferentes continentes. Esta constatação nos faz
entender que a comunicação com um ser “superior”, como é o caso dos ex-votos,
não está desvinculada do cotidiano destes povos antigos.
A historiadora da arte universal Gina Pischel defende a teoria de que a arte
pré-histórica começou em meados dos anos 40.000 a.C., esta constatação é
apoiada em descobertas arqueológicas. As formas de expressão datadas a partir
desta data são, em sua maioria, escultóricas e pictóricas (PISCHEL, 1966, p. 9).
Não podemos fazer malabarismos ao tentar interpretar essa forma
comunicacional, pois nossos antepassados estavam tentando reproduzir o entorno
em que eles viviam.
As formas de arte da Pré-História, que são predominantemente reproduções da realidade, nasceram, como manifestações da vontade criadora do homem primitivo, de sua aspiração de “fazer” do nada alguma coisa, de sua complacência em fixar, de modo evidente, em determinadas formas, alguns objetos do seu pensamento confuso, de sua angústia opressora. Neste sentido, a arte rupestre exprime a visão da realidade ambiente do homem pré-histórico e sua consciência mágica do mundo (PISCHEL, 1966, p. 10).
Embora o ser humano tentasse reproduzir a realidade, não podemos dizer
que era uma arte comunicacional concreta, pois diante do inexplicável, do mistério, a
arte surgia como forma de comunicação com a força mágica e transcendente.
Porém, sobre este tema, falaremos mais adiante.
Dentre a diversidade tipológica da arte pré-histórica, destacamos duas que
nos parecem mais emblemáticas, e que são datadas por volta do ano 40.000 a.C..
Enfatizamos, então, a Vênus e a Mão em Negativo, em que a comunicação primitiva,
por meio da arte, estaria relacionada também com a religiosidade.
31
Vênus – é uma obra escultórica, foram encontradas várias representações
em diferentes lugares da Europa. É uma “estatueta” com evidentes caracteres
femininos:
A Vênus deste tempo (por vezes tão pequena a ponto de caber na palma da mão) era posta em evidência como mãe e recurso de procriação; era, portanto caracterizada por grandes seios e nádegas abundantes, reservando menor interesse à figuração da cabeça e dos braços. A data das chamadas Vênus, em esteatita ou marfim, foi árdua porque, devido à mobilidade, elas puderam ser transferidas de sede por vias de convulsões naturais ou deslocamentos humanos. Na Europa encontram-se algumas dezenas de exemplares, principalmente em Laussel, Lespugne, Willendorf, bem como na Itália nas vizinhanças do Panaro (PICHEL, 1966, p. 10).
Não há uma definição exata sobre o significado simbólico das imagens da
Vênus, mas pelo fato de serem muitas as representações, pode-se dizer que a
imagem estava relacionada a uma espécie de culto, e devido às imagens serem
pequenas poderiam sugerir que fossem como amuletos que as pessoas
carregavam.
Figura 1-Vênus de Willendorf – Áustria (20.000 – 22.000 anos a.C.)
Fonte: Couri, 2015.
Vê-se nesta possibilidade uma forte incidência de estarmos diante de um
objeto considerado mágico, mítico. As peças fariam parte de uma forma de religião
doméstica ainda primitiva (ELIADE, 2010, p. 32). Mirceia Eliade cita o historiador
32
Franz Hancar para explicar a possível função religiosa das estatuetas de Vênus,
seriam estas uma espécie de ídolos religiosos representando a avó mítica, da qual,
presume-se, descendem todos os membros das tribos: elas seriam uma proteção
para as famílias e as habitações, promovendo grandes caças. E como
agradecimento pela benevolência dessas “deusas” elas recebiam as oferendas de
grãos de cereais e gordura (ELIADE, 2010, p. 32).
Destacamos os elementos comunicacionais dessa relação com a divindade.
Parece haver um consenso em determinadas comunidades pré-históricas da
existência de uma força mística. A comunicação existia entre os pares que
divulgavam esta fé, e entre os humanos com aquilo que eles estabeleceram como
“sagrado”.
A figura do feminino como símbolo religioso persiste em nosso imaginário,
ainda hoje muitas religiões utilizam a representação feminina para se conectarem
com o espiritual. No cristianismo, mais precisamente no catolicismo, temos a figura
de Maria, invocada como Nossa Senhora, a questão materna é o que sobressai
nesta devoção. Nas religiões brasileiras de matriz africana, tanto no candomblé
quanto na umbanda, o maior símbolo do feminino é Iemanjá, o seu nome já indica a
sua função de mulher fértil “mãe cujos filhos são como peixes”. No hinduísmo, os
adeptos dessa religião, entre os muitos deuses, adoram a “Divina Mãe Kundalini”.
Para a nossa pesquisa, é importante sinalizar que, assim como na pré-
história, ainda hoje a relação comunicacional com o sagrado feminino passa quase
que necessariamente pela oferenda (agradecimento material - ex-votos).
Mão em Negativo – em diferentes partes do mundo encontramos registros da
mão em negativo. Esta técnica de imprimir a mão na parede das cavernas antecede
inclusive outros tipos de pinturas, como a representação de animais ou de caçadas.
A ação para deixar gravada na rocha a mão exigia certos conhecimentos,
como o domínio de materiais utilizados. Nesta técnica, a mão untada com algum tipo
de material colorido era pressionada na parede das grutas e cavernas. Muitas vezes,
além da impressão, os autores circundavam o desenho da mão com tinturas de
outras cores (PISCHEL, 1966, p. 10). Vestígios da mão em negativo foram
encontrados na Europa, África, América e Oceania, datados de um mesmo período
33
pré-histórico (que varia de 40.000 a 9.000 anos a.C.), considerando o ciclo evolutivo
de cada região.
Figura 2 - Mãos em Negativo (mutiladas). Réplicas da Caverna de Garga – França
(Paleolítico Superior)
Fonte: Pischel, 1966
A historiadora da arte Gina Pischel chama a atenção sobre uma possível
interpretação de muitas dessas mãos estarem mutiladas, faltando alguns membros,
como é o caso dos registros de Gargas – França. A autora cogita um possível rito
sacrifical ligado à magia ou oferenda a alguma divindade: “O fato de a forma
anatômica das mãos apresentar, por vezes, mutilação de dedos, fez que se
supusesse estarem tais formas ligadas a ritos sacrificiais, dos quais a imagem fosse
a evocação” (PISCHEL, 1966, p. 10).
Mesmo se desconsideramos as mutilações como rituais de sacrifício,
caracterizando por assim dizer uma forte evidência religiosa, para alguns autores, a
simbologia em si da mão pode ser entendida como comunicação mística, por aquilo
34
que a mão representa. Nesta investigação acerca do poder mítico/religioso da
simbologia da mão, o pesquisador Carlos Callejo Serrano cita o arqueólogo
espanhol Martín Almagro Gorbea:
Para Martín Almagro as mãos eram um motivo de culto que o homem usava porque compreendia que a mão era o único instrumento que o fazia vencer a natureza que o rodeava. O culto misterioso à mão nos oferece uma manifestação das preocupações espirituais dos homens primitivos, desde o paleolítico até hoje. A mão, por si mesma, é símbolo do homem e expressão de sua vontade. Todos os povos fazem do uso e representação dos gestos da mão um complexo de variações de caráter espiritual. O cristianismo, por exemplo, utiliza a mão para o supremo ato da bênção; o povo romano e outros povos posteriores a utilizam como signo de boas-vindas ou saudação (SERRANO, 1981, p. 4, tradução nossa).
Ainda hoje, como ressalta o autor, a mão representa um elo com o divino.
No cristianismo e no judaísmo, Deus Pai é retratado como a Mão Criadora, a
mão direita de Deus é a proteção dos fiéis. Na Bíblia, vemos inúmeras passagens
com essa analogia, por curiosidade citamos: “A mão direita do Senhor fez
maravilhas, a mão direita do Senhor me levantou, a mão direita do Senhor fez
maravilhas” (SALMOS, 117,16), ou ainda, “cobriu-me com a sombra de sua mão”
(ISAIAS, 49, 2b). Porém, quando Deus se zanga, sobretudo no Antigo Testamento, a
mão de Deus é sinônimo de “justiça divina”, ou até mesmo “vingança”: “pois dia e
noite, vossa mão pesava sobre mim; minhas forças se esgotavam” (SALMO, 31,4).
Em outras religiões se destaca a mão chamada Hamsá, sendo utilizada como
proteção por três grandes crenças: no Islã representa Muhammad, filha do profeta
Maomé; no judaísmo é conhecida como a mão de Miriam e é utilizada como
proteção; no Budismo recebe o nome de Abhaya Mudra, sendo utilizada como
amuleto que dissipa o medo.
Uma das peças mais utilizadas como ex-votos por devotos em diferentes
partes do mundo é também o símbolo da mão. Não é de estranhar que, de fato, os
povos primitivos utilizassem o símbolo da mão como possibilidade de se
comunicarem com o divino. O ser humano é um ser comunicante:
O Ser humano é, por conseguinte, não só um simbolizador ou um leitor de símbolos, é, sobretudo, alguém que produz uma realidade intermediária complexa e historicamente determinada feita de
35
representações significativas que servem a ele como cenário de sua cotidianidade. O homem é, pois, um animal comunicante que
emprega grande parte de sua vida, senão a maior, neste espaço simbólico artificial. O adjetivo comunicante implica tanto que o ser humano se faz na comunicação e comunica como que se comunica com outros semelhantes e é ele mesmo comunicável (BELTRÁN;
HERRERA; PINTO; TORRICO, 2008, p. 35, tradução nossa).
Nesta construção simbólica, mais do que compreender o cotidiano, existe a
inquietação das coisas que não conseguimos responder. Se hoje, apesar de todo o
conhecimento que temos, ainda vagamos em busca de respostas sobre temas
universais como o sentido da vida, por exemplo, imaginemos como estes
questionamentos deveriam “perturbar” o homem primitivo. Por essa razão, que os
aspectos religiosos assim como os comunicacionais aparecem nos primeiros
registros de nossa raça.
A ideia da existência de uma possível transcendência está no cerne do
indivíduo pré-histórico, e é com essa força (entendida como mágica no primeiro
momento) que nossos ancestrais estabeleceram formas simbólicas de comunicação.
1.3 O Ser Humano é Espiritual
São várias as possibilidades de reflexão do homem primitivo, que o levaram
no decorrer da história a desenvolver o seu lado espiritual, o fato de o ser humano
poder pensar e ter memória acumulativa, fez com que ele se questionasse sobre sua
própria existência.
Dizemos que o ser humano é espiritual, quando julgamos, que em sua
maioria, o gênero humano acredita que a vida não é só matéria, mas existe uma
força maior que organiza ou rege a existência. A palavra espírito tem sua origem do
grego (ruah) que significa hálito, ou sopro, sendo assim, o sopro de Deus que habita
no ser humano e, é esse sopro, segundo a tradição judaico-cristã, que dá vida ao
homem. O ser humano é espiritual, pois ele pensa e age, com este princípio, de que
algo “maior” do que somos impulsionaria o nosso viver.
Mas, dentre os aspectos da vida, o que sem dúvida nenhuma mais nos
inquieta e indubitavelmente inquietava também nossos antepassados primitivos, é a
36
certeza da morte. Tomar consciência da morte pode levar o ser humano a um poço
sem sentido, a um viver desorientado, mas pode também dar um novo propósito ao
seu viver. A palavra que, talvez, expresse esse sentido seja transcendência: o
desejo de que a morte não acabe como um sonho. A consciência da morte foi o eixo
central de o ser humano buscar o imaterial.
O antropólogo Lévi-Strauss, em seu livro Tristes Trópicos, deixa claro o
respeito que todos os povos demonstram aos seus mortos, inclusive, desde remotas
eras: “Não existe provavelmente nenhuma sociedade que não trate seus mortos com
consideração. Nas próprias fronteiras da espécie, o homem Neandertal enterrava
também os seus defuntos em túmulos sumariamente arrumados” (LÉVI-STRAUSS,
1957, p. 243). Já o filósofo e antropólogo Juvenal Arduini descreve o anseio do ser
humano de todos os tempos de significar o morrer:
Não parece que o homem tenha de curvar-se perante a fragilidade, como se a morte fosse a última e culminante palavra da existência humana. Transcender a morte é atitude arraigada na cultura dos povos. As maneiras de expressar essa transcendência são múltiplas. Mas a crença de que o homem, de um modo ou de outro, continua a viver – sobreviver – após a morte, é fato universal testemunhado pela filosofia, pela antropologia cultural e pelas religiões. A humanidade abriga contido anseio de prolongar após a cessação da vida presente. Raramente o homem admite que o nada total prevalece após a morte. Esta aspiração não gera, por si, a certeza da vida trans-história, mas é indício de que o ser humano busca, irresistivelmente, perseverar na vida, após a atual fase existencial. Pelo menos enquanto aspiração, é fato que não se pode ignorar ou apagar. O homem de todos os lugares e de todos os tempos, experimenta a indormida pulsão para sobreviver (ARDUINI, 1989, p. 42).
Arduini diz que transcender a morte é uma atitude arraigada em todos os
povos, por essa razão não é difícil explicar tantos rituais ancestrais de passagem
(vida – morte – vida) ainda presentes nos nossos dias. Fato é que a tomada de
consciência da finitude humana fez com que buscássemos formas de perpetuação.
No campo dos estudos da história das religiões ou das manifestações
religiosas, o historiador Mircea Eliade aparece como uma referência fundamental,
sobretudo nos três volumes de História das crenças e ideias religiosas. No primeiro
volume, o autor trabalha os períodos históricos compreendidos da idade da pedra
aos mistérios de Elêusis, citamos este volume, pois será a base deste levantamento
37
histórico do ser humano relacionado à religião. No primeiro capítulo de seu livro,
Eliade destaca alguns elementos mágico-religiosos dos Paleantropídios, dentre as
manifestações do homem primitivo com relação à religião, o autor destaca a
significação simbólica das sepulturas.
Os mais antigos e numerosos “documentos” encontrados são, sem dúvida, as
ossadas. As sepulturas, segundo o autor Eliade (2010, p. 22-23), surgiram com
certeza a partir do musteriano (70.000 – 50.000 anos atrás). A crença em uma vida
post mortem, destaca Eliade, pode ser demonstrada desde os tempos mais remotos,
uma prova disso seria a utilização da ocra vermelha, substituto ritual do sangue e,
portanto, “símbolo” da vida. Encontramos vestígios da prática desse ritual desde
Chu-ku-tien até a costa da Europa Ocidental, além da África, Austrália, Tasmânia e
na América.
Mircea Eliade faleceu em 1986, o original do livro que citamos foi publicado na
França, em 1976. A ciência arqueológica é muito dinâmica, sendo atualizada
constantemente com novas descobertas. Eliade apontou as primeiras sepulturas
datadas de (70.000 a.C.), porém uma descoberta mais recente indica que a
construção de túmulos é ainda posterior a este período.
O Jornal impresso Hoy de 20/07/2012 publicou uma matéria assinada por
JJesús Bombin, intitulada Atapuerca8 esconde o “santuário” mais antigo da
Humanidade (tradução nossa). “A equipe de investigadores que trabalha na serra
burgalesa de Atapuerca achou na estância de verão restos da espécie Homo
Heidelbergensis (300.000 – 500.000 anos) que reforça a teoria de a Sima dos Ossos
foi o primeiro cemitério da humanidade.” (BOMBIN, 2012, tradução nossa).
Como diz a chamada da matéria, os pesquisadores9 se permitem a chamar
esta localidade espanhola conhecida como Sima de los Huesos como um santuário,
não há como dissociar a palavra “santuário” de um ritual religioso, é justamente essa
a intenção dos arqueólogos que pesquisam este sítio:
Ao encontrar a falange de um menino neste sítio foi reforçada a teoria que defendiam os investigadores que Sima de los Huesos
8 A Serra de Atapuerca é um pequeno conjunto montanhoso na província de Burgos (Castilla e León).
É considerado como um dos mais importantes sítios arqueológicos da atualidade. 9 Antropólogos citados na matéria: Juan Luis Arsuaga, Eudalt Carbonell e José Maria Bermudez,
coordenadores das escavações.
38
abrigava um “santuário” em que se realizariam rituais funerários. ‘Se trata do primeiro ‘santuário’ da humanidade’, explicou Arsuaga argumentando que não existem restos em toda Eurásia deste calibre. ‘É a prova mais antiga de um comportamento funerário e de uma acumulação coletiva’ (BOMBIN, 2012, tradução nossa).
Ou seja, pesquisas recentes reforçam a ideia religiosa como um desejo do ser
humano de vencer a morte. Não fariam sentido os rituais funerários se o homem
primitivo não aspirasse à vida pós-morte. Eliade defende que, além das sepulturas,
as oferendas que se faziam aos mortos remetem aos fortes indícios de religiosidade:
Em suma, pode-se concluir que as sepulturas confirmam a crença na imortalidade (já assinalada pela utilização da ocra vermelha) e trazem alguns esclarecimentos suplementares: enterros orientados para o leste, marcando a intenção de tornar o destino da alma solidário com o curso do Sol, portanto a esperança de um “renascimento”, isto é, de uma pós-existência num outro mundo;
crendo na continuação da atividade específica; certos ritos funerários, indicados pelas oferendas de objetos e adornos e restos de refeições (ELIADE, 2010, p. 24).
O tema das oferendas aos mortos incide diretamente sobre o nosso estudo
dos ex-votos, pois nos apontam a certeza de uma relação comunicacional existente
entre os vivos com seus mortos, e com as forças transcendentes que regem a vida.
O morto recebia como oferenda os seus pertences, sinalizando que os povos
primitivos acreditavam que ele em algum lugar continuaria suas atividades. Além
destes objetos, os adornos seriam o “agradar” ao morto, bem como os alimentos
depositados.
Estes vestígios pré-históricos ainda hoje estão presentes em práticas votivas
que giram em torno de pessoas falecidas. Os nossos cemitérios atuais, em grandes
ou pequenas cidades, estão repletos de túmulos que recebem oferendas do mesmo
gênero. Sobre este tema, falaremos mais adiante, pois incide diretamente em o
nosso objeto de pesquisa, o ex-voto.
Na defesa de que o ser humano é religioso desde a sua origem, podemos
citar uma entrevista publicada no site do Vatican Insider (07/01/2012) com o
sacerdote belga Julien Ries, que foi por muito tempo professor na Universidade
Católica de Leuven, sendo também o fundador de um novo campo do saber, a
39
antropologia religiosa fundamental. Destacamos, a seguir, duas perguntas dessa
entrevista elaborada pelo Vatican e as respostas de Ries:
O senhor chega à púrpura depois de uma vida de pesquisa: foi um dos primeiros a insistir sobre a dimensão religiosa como originária no ser humano. O sentido religioso é realmente inato?
Estou muito de acordo com o paleontólogo Yves Coppens, o descobridor de Lucy, que há anos repete que o ser humano é desde já um homem religioso. Como se documenta essa afirmação? Consideremos esse ser humano religioso como o conhecemos através dos fatos e dos gestos da história: se analisarmos as suas pinturas encontradas em centenas de cavernas, até agora descobertas, suas milhares de gravuras rupestres, se examinarmos o seu comportamento com relação aos falecidos, se tentarmos interpretar os gestos das suas mãos elevadas à cúpula celeste – o "Ka" dos antigos egípcios –, somos obrigados a pensar em uma experiência de relação vivida de forma consciente pelo ser humano arcaico com a realidade misteriosa e ultraterrena (RIES, 2012, tradução nossa).
Julien Ries também defende que a relação de nossos antepassados
longínquos com a morte ou com os falecidos é um forte indício do homo religiosus.
Além do culto nos funerais pré-históricos, ele destaca outros elementos culturais
descobertos pela arqueologia, como manifestações religiosas concretas presentes
na gênese do ser humano: as pinturas em centenas de cavernas, espalhadas em
várias partes do mundo; gravuras rupestres, etc.
Esta teoria também é defendida por Mircea Eliade, com relação às pinturas
rupestres. Ele diz que o fato de essas pinturas estarem longe da entrada das
cavernas permitiu que os pesquisadores concluíssem que essas grutas eram uma
espécie de santuário. O que reforça ainda mais essa teoria é o motivo de essas
grutas não serem habitadas, funcionando como um espaço místico, de caráter
numinoso (ELIADE, 2010, p. 29).
Outro fato curioso é que na representação simbólica da caverna, no
imaginário do homem pré-histórico, a gruta era uma espécie de útero da terra, sendo
este local considerado a fonte da vida. Espaço em que os nossos antepassados
faziam grande parte de seus cultos, ornamentando com pinturas ou oferendas o
“santuário”.
40
Muitos povos sepultavam os seus mortos justamente nessas grutas,
simbolizando que o corpo/semente era “plantado” novamente no útero/ventre da
terra (MARQUETTI; FUNARI, 2011, p. 162). Outra manifestação cultural que remete
aos aspectos religiosos seriam as danças circulares. Encontramos evidências dessa
prática em diferentes partes do mundo, a saber: Eurásia, Europa oriental, Melanésia
e entre os índios do continente americano. Vale um destaque que a maioria das
tribos indígenas do Brasil, ainda hoje em seus rituais religiosos, fazem da dança
circular o apogeu de suas liturgias.
A presença da dança circular em culturas arcaicas contemporâneas é uma
manifestação clara da persistência dos ritos e crenças pré-históricos (ELIADE, 2010,
p. 36). A dança em círculos seria um ritual dos caçadores primitivos para acalmar a
alma do animal abatido, bem como para multiplicar as caças. Funcionaria também
como uma espécie “solidariedade mística”. Neste momento fazemos um destaque
para a teoria de que, conforme a linguagem foi sendo aperfeiçoada, também foram
sendo aprimorados os rituais religiosos, que incidem diretamente sobre o nosso
trabalho de aproximação da religião com a comunicação.
Mirceia Eliade, em seu livro História das crenças e das ideias religiosas (I),
conclui o primeiro capítulo intitulado “No começo... Comportamentos mágico-
religiosos dos paleantropídios”, com dois parágrafos que nos parecem
imprescindíveis:
À proporção que se aperfeiçoava, a linguagem aumentava seus meios mágico-religiosos. A palavra pronunciada desencadeava uma força difícil se não impossível, de anular. Crenças similares ainda sobrevivem em várias culturas primitivas e populares. São encontradas também na função ritual das fórmulas mágicas do panegírico, da sátira, da execração e do anátema nas sociedades mais complexas. A experiência exaltante da palavra como força mágico-religiosa conduziu às vezes à certeza de que a linguagem é capaz de assegurar os resultados obtidos pela ação ritual. Concluindo, temos também que levar em conta a diferença entre os diversos tipos de personalidade. Certo caçador destacava-se por suas proezas ou pela astúcia; outro pela intensidade de seus transes extáticos. Essas diferenças caracterológicas implicam uma certa variedade na valorização e interpretação das experiências religiosas. No final, apesar das poucas ideias fundamentais comuns, a herança religiosa do paleolítico já apresentava uma configuração religiosa bastante complexa (ELIADE, 2010, p. 38).
41
Existe, de fato, uma ligação profunda entre a comunicação e a religião. Como
vimos até aqui, tanto os aspectos religiosos quanto os comunicacionais estariam na
essência do ser humano. Não diríamos que a linguagem levou a um maior
desenvolvimento da relação do homem com o sagrado, nem que esta ligação
espiritual tenha favorecido ao aprimoramento da linguagem. Acreditamos que não
existem dicotomias entre uma coisa ou outra. Na integralidade ontológica, que é o
ser humano, a sua evolução foi em sua totalidade e não parcial.
1.4 Os Símbolos, elos que ligam Religião e Comunicação
Os dicionários, ao definirem a palavra símbolo, nos dizem que são aquilo que,
por convenção ou por princípio de analogia formal ou de outra natureza, substitui ou
sugere algo. Ou seja, o símbolo seria a representação, ou a materialização de uma
ideia. Dentre as definições que encontramos, citaremos a que nos apresenta o
Dicionário de Liturgia, pois vemos unidos os significados etimológico, antropológico
e religioso, essa união de pensamento nos ajuda em nosso trabalho:
O termo símbolo (grego: symbolon, do verbo symbállo: lançar junto,
colocar junto, confrontar), em nível etimológico-semântico primário, indica uma parte, um fragmento que exigia ser completado por outra parte para formar uma realidade completa e funcional. Mas, em sentido antropológico, hoje se fala geralmente de símbolo quando se
tem um significante que remete não há um significado preciso, porém sim a outro significante; quando a realidade significada está de certo modo presente, ainda que não de todo comunicada; quando a função simbólica se baseia na própria realidade do significante: não é, pois, convencional nem definida, porém se enraíza na natureza das coisas e do homem e é, exatamente por isso, aberta a perspectivas mais profundas e universais. No campo religioso, o termo símbolo aplica-
se tanto às formas concretas mediante as quais determinada religião se explica quando ao modo de conhecer, de intuir e de representar dados próprios da natureza religiosa (DICIONÁRIO DE LITURGIA, 1992, p. 1143).
Diferentemente do que é symbolon, temos o seu oposto diabolos, também do
grego, que significa aquilo que divide e que não congrega. Para que os símbolos
existam (e façam sentido) é preciso que haja consenso entre os pares, ou na
comunidade, de que determinada coisa, ou imagem representada, tenha o mesmo
significado.
42
O filósofo português Miguel Baptista Pereira, ao tratar do significado da
palavra símbolo, evoca o antigo pensador grego Heródoto, que viveu no século V
a.C.:
Do grego recebemos a palavra symbolon, que significa a coincidência de duas partes, que de novo se reúnem, pois, segundo Heródoto (Historiae VI-86), o símbolo era a coincidência ou reunião harmoniosa das partes de um anel, que dois amigos, antes de se separarem, dividiram entre si, levando cada um a sua parte e com ela a possibilidade de futura coincidência ou encontro de partes, que se tornou sinal externo da amizade, que a separação não aboliu (PEREIRA, 2004, p. 3).
O conceito de Heródoto sobre o significado de símbolo nos parece bastante
pertinente. O anel partido (em dois fragmentos) é o símbolo da amizade entre duas
pessoas que se separam. Cada amigo carrega consigo uma metade dessa
representação, que remete simbolicamente ao amigo ausente. A metade do anel
não é o amigo distante, mas é como se fosse, pois produz na memória e nos
sentidos a presença do outro. Essa relação simbólica com o objeto, neste caso, a
metade do anel, somente é possível graças ao código que foi estabelecido pelas
duas partes. Não existe símbolo, que expresse algo, sem que esse código
comunicacional não tenha sido acordado entre pares, ou um grupo, seja ele
pequeno ou numeroso.
No clássico livro Elementos de Semiologia de Roland Barthes (2003, p. 39-
58), o autor apresenta uma ascendência interpretativa desde o símbolo (sinal) em si
até o valor que é conferido a ele: 1- Signo – composto entre um significante e um
significado; 2 – Significado – não é uma coisa, mas uma representação psíquica da
coisa; 3 – Significante – é um mediador; 4 – Significação – processo que une
significante e significado, ato cujo produto é o signo; 5 – Valor – sentido dado e
ressignificado.
A interpretação é a medula dorsal da existência do símbolo, sobre isso nos
escreve Charles S. Peirce (2005, p. 75), “um símbolo é um signo que perderia o
caráter que o torna signo se não houvesse um interpretante”.
Para Geeztz (2015) todo ato humano é simbólico, sendo assim factível de ser
interpretado.
43
A interpretação somente é possível no interior de uma estrutura de significação, ou seja, de uma cultura. Sendo que a comunicação não é sem a cultura e a cultura não pode ser sem a comunicação; ademais, cada uma delas se configura, expressa, reproduz ou se modifica em função da outra (CIBEC, 2008, p. 37, tradução nossa).
A antropologia interpretativa estimula a interpretação e o intercâmbio destes
dois fenômenos que, por muito tempo, foram tratados como realidades divorciadas.
No livro La Comunicación antes de Colón (CIBEC, 2008, p. 37,38), são
apresentadas algumas suposições de ordem antropológica sobre os processos
comunicacionais dos povos pré-colombianos, embora o estudo faça referência aos
nossos ancestrais americanos, podemos aplicá-las em âmbito universal dos povos
pré-históricos em geral.
Nas doze suposições apresentadas pelo estudo, que elencaremos a seguir, o
elemento que ganha destaque na construção deste processo comunicativo é o
simbólico. O símbolo unifica a comunicação com a cultura - e podemos acrescentar
aqui no aspecto cultural - os elementos religiosos:
- A humana é a única das espécies de animais com capacidade de
representação simbólica.
- Esta singular capacidade se deve à possibilidade de codificação,
transmissão, intercâmbio, decodificação e armazenamento abstrato de símbolos, é
dizer, à comunicação.
- A comunicação é essencialmente simbolização.
- Os símbolos são construções sociais intelectivas comunicáveis por
diferentes linguagens.
- A base de toda relação social é o intercâmbio simbólico.
- Todo comportamento humano é simbólico.
- Todo símbolo é interpretado desde uma estrutura de significação, vale dizer,
uma cultura.
- A simbolização é constitutiva e resultante da cultura.
44
- A produção e o manejo de símbolos são um componente central da
humanização da espécie.
- O homem é um animal simbólico, um animal comunicante culturalmente
condicionado.
- A simbolização não se resume a um único modo de representação.
- A Comunicação define também – junto a outros elementos – a natureza
humana.
Depois de destacarmos o símbolo como processo comunicativo, veremos
também a relação do símbolo com a cultura religiosa. Sabemos que o pensamento
religioso pode se apresentar como concreto, mas sua base é abstrata, pois a fé em
si não pode ser apalpada.
A relação (comunicacional) do indivíduo com o metafísico depende da
simbologia para materializar o sagrado. O simbólico nasce do imaginário, a relação
entre o simbólico e o imaginário é muito discutida por Castoriadis, pois o simbolismo
pressupõe a capacidade imaginária:
As profundezas e obscuras relações entre o simbolismo e o imaginário aparecem imediatamente se refletirmos sobre o seguinte fato: o imaginário deve utilizar o simbólico não apenas para ‘exprimir-se’, o que já é óbvio, mas para ‘existir’, para passar do virtual a qualquer coisa a mais (CASTORIADIS, 2010, p. 154).
Castoriadis também faz uma distinção entre o funcional e o poiético, podemos
aplicar aqui o seu entendimento sobre o valor poiético da religião na busca de
sentido. O poiético como sabemos, nasce da simbologia pura:
Quanto à distinção entre o poiético e o funcional, ela não é difícil de ver. O funcional é tudo aquilo que obedece às necessidades vitais ou físicas e a imposições lógicas. A produção como tal pertence, em geral, ao funcional. Mas os objetivos últimos da produção nunca são “funcionais”, pois não há nenhuma sociedade humana que produza apenas para se conservar. Os cristãos construíram igrejas. Os primitivos muitas vezes pintavam desenhos no corpo ou no rosto. Essas igrejas, pinturas ou desenhos de nada servem, elas pertencem ao poiético. Bem estendido, elas “servem” para muito mais do que ‘servir para alguma coisa’; servem, muito mais importante que todo o resto, para que os humanos possam dar sentido ao mundo e às suas vidas. É este o ‘papel’ do poiético (CASTORIADIS, 2004, p. 149).
45
No aspecto religioso, a interpretação também é a chave para que uma
simbologia adquira sentido:
No campo religioso, o termo símbolo aplica-se tanto às formas concretas mediante as quais determinada religião se explicita quanto ao modo de conhecer, de intuir e de representar dados próprios da experiência religiosa. Nestes símbolos, ainda que muitas vezes se possa reconhecer um substrato antropológico universal, o significado, isto é, o algo a mais, a que remetemos, costuma ser
definido, por cada autor, com base na sua interpretação geral do fato religioso; pode, portanto, depender de revelação, da influência social, da emergência de um arquétipo, etc (DICIONÁRIO DE LITURGIA, 1992, p. 1143).
A interpretação de um símbolo, seja ela na esfera religiosa ou não, é muito
mais que a abstração ou conceito, também não deveria ser estudada como estímulo
e resposta, ou derivada de uma leitura imediata como realidade concreta. Na
interpretação de um símbolo, sobretudo religioso, o ser humano ontologicamente se
curva nesta interpretação, com sua sensibilidade, imaginação, memória, vontade e
intuição. Por essa razão, alguns símbolos nos remetem imediatamente a uma
experiência religiosa, mesmo que o símbolo, em si, não esteja apontando para algo
religioso.
A forma circular, por exemplo, coloca algumas pessoas (inconscientemente)
em sintonia com algo ancestral, remetendo a algo transcendente. A carga genética
que carregamos em nosso histórico humano desperta em nós sentimentos e
interpretações diante de determinados objetos e símbolos. Estamos falando que
existe uma memória genética, e é nesta memória que os símbolos adquirem sentido
e nos aproximam de nós mesmos e dos outros.
Edgar Morin chama essa memória “ancestral” de polifonia cognitiva:
O cérebro dispõe de uma memória hereditária bem como de princípios inatos organizadores de conhecimento. Mas desde as primeiras experiências no mundo, o espírito/cérebro adquire uma memória pessoal e integra em si princípios socioculturais de organização e conhecimento. Desde o seu nascimento, o ser humano conhece não só por si, para si, em função de si, mas, também, pela sua família, pela sua tribo, pela sua cultura, pela sua sociedade, para elas em função delas. Assim, o conhecimento de um indivíduo alimenta-se de memória biológica e de memória cultural, associadas em sua própria memória, que obedece a várias entidades de referência, diversamente presentes nela (MORIN, 2005, p. 21).
46
Essa memória afetiva/hereditária está impregnada em nosso ser, os símbolos
não são simplesmente uma criação humana - em um determinado período - de
nossa evolução histórica. São muito mais que isso, são formas de comunicar e
interpretar os principais dilemas da vida. “As ações simbólicas mais típicas de cada
religião estão geralmente ligadas aos momentos-chaves da vida do homem, com
referência constitutiva em face dos maiores problemas da existência humana”
(DICIONÁRIO DE LITURGIA, 1992, 1143).
Vimos até aqui que o ser humano é comunicação e crença em algo além da
matéria, apresentamos os símbolos como elo de aproximação entre o religioso e o
comunicacional.
1.5 A Religião é um meio de Comunicação
Na defesa desta teoria, nos apoiaremos no artigo Narrar a Deus: a religião
como meio de comunicação, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais em
2009 (p. 9-15), do autor italiano Enzo Pace, sociólogo da religião. Também teremos
por base as teorias de Clifford Geertz, embora ele não afirme que a religião seja um
meio de comunicação, podemos fazer esta leitura ao lermos o seu livro As
interpretações das culturas. Tanto em Pace quanto em Geertz, a religião é entendida
como sistema. Pace afirma que a religião é um sistema elaborado de comunicação
(PACE, 2009, p. 10); e Geertz, por sua vez, defende a teoria que a religião pode ser
entendida como um sistema cultural (GEERTZ, 2015).
Antes de prosseguirmos nesta análise, vemos a necessidade de definirmos
brevemente o termo sistema. A palavra provém do latim systema e indica um
conjunto de elementos interligados e devidamente ordenados interagindo entre si.
Ao considerar a religião como sistema cultural, Geertz sugere que após a segunda
guerra mundial o estudo antropológico sobre religião teria estagnado. Parece que os
estudiosos desse tema se conformaram com as análises feitas por Durkheim sobre a
natureza do sagrado; a metodologia Werstehenden de Weber; o paralelo de Freud
entre rituais pessoais e coletivos; e as teorias de Malinowski sobre a diferença entre
religião e senso comum. Estes quatro pilares devem ser fundamentos de estudiosos
da antropologia da religião, mas o erro estaria em considerá-los os únicos.
47
Na ampliação das fontes nos estudos acerca da religião, Geertz diz que ele
reunirá esforços para que a religião seja estudada e analisada como dimensão
cultural:
De qualquer forma, o conceito de cultura ao qual eu me atenho não possui referentes múltiplos nem ambiguidades fora do comum, segundo o que me parece: ele denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. É fora de dúvida que termos tais como “significado”, “símbolo” e “concepção” exigem uma explicação. Mas é justamente aí que deve ocorrer o alargamento, o aprofundamento e a expansão. Se Langer está certo em dizer que “o conceito do significado, em todas as suas variedades, é o conceito filosófico dominante de nossa época”, que “os animais, os símbolos, as denotações, as significações, as comunicações... são nossos recursos de capital (intelectual)”, então talvez seja tempo de a antropologia social, em particular a parte que se preocupa com o estudo da religião, tomar conhecimento disso (GEERTZ, 2015, p. 66).
Embora o autor levante este problema com relação ao estudo da religião na
esfera da antropologia social, podemos aqui defender a interdisciplinaridade dessa
questão, pois o estudo da religião, ainda hoje, é visto com olhares preconceituosos e
reducionistas por muitas de nossas academias intelectuais. Entender a religião como
sistema cultural amplia o foco, dando credibilidade e seriedade às pesquisas.
Clifford Geertz (2015, p. 66,67), ao tratar do tema do paradigma da
interpretação, diz que “os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos10 de
um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições
morais e estéticos”.
A visão de mundo de um povo depende e se origina de sua crença, de sua
prática religiosa. A religião, de uma forma ou outra, determina e condiciona o ethos
de um grupo. Todos os aspectos da vida giram em torno desse eixo central: que é a
visão que se tem do sagrado, do nascer ao morrer. E podemos ir além, até mesmo
de antes do nascer e do depois de morrer, a religião constrói uma rede de
10
O termo ethos é de origem grega, caracteriza o conjunto de costumes e hábitos fundamentais nas questões do comportamento e também da cultura (valores, ideias e crenças). São as características centrais de um determinado grupo, época ou região.
48
significados. E o que sinaliza para esse grupo os seus princípios são os símbolos
religiosos.
Ao discorrer sobre a sua teoria, Geertz (2015, p. 67) define o que é uma
religião. Destacamos abaixo a definição nos mesmos moldes que o autor traça sobre
esse tema de suma importância em nossa pesquisa: “Portanto, sem mais
cerimônias, uma religião é:
(1) um sistema de símbolos que atua para →
(2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos
homens através da →
(3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e →
(4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que →
(5) as disposições e motivações parecem singularmente realista.
Em seu texto, após apresentar esta definição de religião, o autor segue
afirmando o papel que o “aquilo” considerado sagrado desempenha na construção
de nossa identidade social e psicológica (nossa cultura). Os paradigmas estruturais,
daquilo que somos enquanto humanos, somente podem ser configurados por meio
dos significados que damos à nossa existência e organizamos nossas condutas.
Estes “significados” passam necessariamente pelos “símbolos”, sobre isso, Geertz
escreve:
Os significados só podem ser “armazenados” através de símbolos: uma cruz, um crescente ou uma serpente de plumas. Tais símbolos religiosos, dramatizados em rituais e relatados em mitos, parecem resumir, de alguma maneira, pelo menos para aqueles que vibram com eles, tudo que se conhece sobre a forma como é o mundo, a qualidade de vida emocional que ele suporta, e a maneira como deve comportar-se quem está nele. Dessa forma, os símbolos sagrados relacionam uma ontologia e uma cosmologia com uma estética e uma moralidade: seu poder peculiar provém de sua suposta capacidade de identificar o fato com o valor no seu nível mais fundamental, de dar sentido normativo abrangente àquilo que, de outra forma, seria apenas real. O número desses símbolos sintetizadores é limitado em qualquer cultura e, embora em teoria se possa pensar que um povo poderia construir todo um sistema autônomo de valores, independente de qualquer referente metafísico, uma ética sem ontologia, na verdade ainda não encontramos tal povo (GEERTZ, 2015, p. 94).
49
Entender o ser humano como ser simbolizante, criador de conceitos e
desejoso de significados, abre perspectivas amplas para os estudos com temáticas
relacionadas ao universo religioso. A religião é um sistema cultural, formadora ou
influenciadora do ethos de um povo.
Depois de percebermos, com a ajuda das ideias do antropólogo Clifford
Geertz, de que a religião está dentro do escopo da cultura, partiremos para um
entendimento de que a religião é também um sistema ordenado de comunicação,
com base nas teorias de Enzo Pace.
No artigo científico em que Pace defende a teoria de que a religião é
comunicação, o autor apresenta a metodologia por ele empregada em seu estudo.
Com base no método de análise utilizado por Talad Asad para comparar o
Islamismo e o Cristianismo, chamado de método genealógico, Pace desenvolve o
seu pensamento.
O método da genealogia estuda as teias genealógicas de uma família ou de
um grupo de famílias unidas por um determinante comum (o parentesco). Nesta
metodologia, as religiões mundiais podem ser estudadas e analisadas como
“famílias genealógicas”, pois todas elas estariam interligadas em uma relação que
poderíamos chamar de “parentesco espiritual”. Os complexos sistemas de símbolos
são a base deste “parentesco” que perpassam as diferentes religiões:
[...] interessa-nos analisar a relação entre a virtude da improvisação que, muitas vezes, está na origem de uma religião, e a construção dos sistemas de crença religiosa. O primeiro relaciona-se com o poder de comunicação, o segundo com a constituição e reprodução
no tempo e no espaço de um sistema de sentido (PACE, 2009, p. 10).
Dessa forma, o interesse do autor é desenvolver a teoria de que a religião é
como um processo de comunicação. Pace explica a razão desse estudo, a
religião ao ser considerada como processo de comunicação acaba sendo
preservada de “armadilhas conceituais recorrentes”.
50
São apresentadas pelo autor três armadilhas comuns, sobretudo no estudo
acadêmico das religiões. Entendendo a religião como comunicação, evitaríamos as
seguintes armadilhas:
a) A superação da dicotomia modernidade e tradição, sendo considerada como meio
de comunicação, não poderíamos fazer um juízo superficial das diferentes formas de
crer. Muitas vezes, a comunicação é entendida como mercado de comunicação,
justamente é dessa ideia que devemos fugir.
Ao pensarmos a religião como sistema de comunicação deveríamos ter a
convicção de que:
comunicar, referindo-se aos sistemas de crença religiosa, remete a um princípio estrutural de funcionamento dos próprios sistemas: combinar elementos ou partes que compõem o universo dos significados que uma religião elabora a partir da fundação e que desenvolve no decorrer do tempo (PACE, 2009, p. 10).
b) Evitar a simples decomposição da religião em suas diferentes dimensões.
Ao se estudar a religião analiticamente na busca de uma padronização
empírica, na maioria dos casos, realizamos a pesquisa dentro de uma lamentável
superficialidade.
Se a estrutura da religião está denominada pela pura palavra capaz
de fixar ou remover os limites simbólicos dos universos de sentidos dos indivíduos e dos grupos sociais, então se trata de estudar como atua a força da palavra, segundo as condições sociais e históricas em que uma ou mais religiões devem ser observadas (PACE, 2009, p. 10).
c) Evitar dicotomias como primitivo e evoluído, simples e complexo.
Sendo a religião um sistema de comunicação, ela não poderia ser definida
como essencialista11, uma vez que a essência mesma da religião não pode ser
definida, mesmo que se tente. As denominações religiosas fariam parte da dimensão
espiritual presente em todos os seres humanos. Distanciaríamo-nos assim, do
“verdadeiro” e “falso”, perigo constante de julgamentos e discriminações (mesmo e,
sobretudo, no campo acadêmico). Mais do que estabelecer comparações,
11
Na corrente do essencialismo filosófico, a essência seria o que existiria de real, considerando o restante como ilusório, ou até mesmo irreal.
51
precisamos buscar a raiz dorsal das crenças. O sistema comunicacional está
presente em todas as manifestações religiosas.
Enzo Pace (2009) utiliza a alegoria do compasso para descrever o percurso
histórico de uma religião, elas partiriam de um ponto central (gerador), e conforme
vão se abrindo em círculos concêntricos acabam se moldando e inculturando no
tempo e no espaço. Este modelo teórico de entendimento da religião como sistema
de comunicação permitirá “encontrar afinidades eletivas entre distintos universos de
crença religiosa com respeito ao fundamento temático de partida: a relação entre o
incipit de uma religião e sua sucessiva constituição como um sistema”.
Nas conclusões de seu artigo, Pace apresenta de forma sucinta quatro pontos
pertinentes que poderiam condensar a sua hipótese teórica, dentro dessa definição
de religião como sistema de crença que está em interação com um ambiente
específico desde a sua origem. Reproduziremos esses conceitos:
a) obriga o observador (cientista social) a considerar como objeto fundamental da análise a relação entre o impulso originário à formação de um novo credo religioso e o processo de construção do próprio sistema de crença; b) obriga-o, também, a ter sob controle essa relação para compreender de maneira dinâmica se (e de que maneira) um sistema está em condições de se desenvolver segundo determinado tipo de relativa autonomia interna, para afirmar a própria identidade ou para marcar a diferença em relação a outros sistemas de crença; c) desse modo, se assume como noção principal a centralidade do conceito de comunicação, tal como se define na teoria dos sistemas, para analisar a religião como poder de comunicação; d) observando a validade explicativa em alguma direção (não em todas, por razões óbvias de espaço e das limitadas competências de quem escreve): a relação entre palavra e texto (sagrado), a força
performática do ritual ou da liturgia, a elaboração de uma doutrina concreta, que toma corpo (disciplinando também os corpos e as emoções do corpo), enfim, a oscilação entre identificação étnica e pretensão universalista, que parece caracterizar as religiões em seu processo evolutivo em relação aos diferentes ambientes sociais nos quais se situam como ordenadores culturais dominantes (PACE, 2009, p. 13-14).
Embora as variadas denominações religiosas busquem formas de se
diferenciar uma das outras no desejo de conquista de credibilidade e veracidade
daquilo que é pregado, sabemos que o véu que cobre todas elas encontram sentido
52
em uma inquietação humana. Podemos chamar essa inquietação de uma espécie
de “orfandade espiritual”.
Neste ímpeto de dar respostas aos mistérios da vida e da morte, nasce com a
própria consciência humana a relação metafísica com uma “força” superior que
conduz, protege e vela as nossas existências.
A religião é comunicação, pois ela não está fora do ser humano. Sendo o ser
humano comunicação por natureza, é também por sua natureza que ele busque
tocar o sagrado por meio dos gestos, símbolos, palavras, ritos, etc.
Desde as primeiras manifestações religiosas (registradas materialmente) por
nossos antepassados, os símbolos são a forma de diálogo com aquilo que se
entendia como transcendente, ou seja, desde as nossas origens a comunicação e a
religião se completam.
Repetimos a máxima de Mircea Eliade (2010, p. 13) “tornar-se um homem
significa ser “religioso”. Este pensamento está em plena sintonia com os dizeres do
antropólogo Juvenal Arduini (1989, p. 50): “A religião não é ornamento cultural. É
real dimensão do existir e do agir humanos. [...] A onipresença religiosa nas culturas
das diversas sociedades está a dizer que o homem insiste em transcender-se, teima
em ser-mais”.
Genealogicamente somos iguais enquanto espécie, com tudo o que isso
possa representar. O ser humano é cultura, é comunicação (simbólico) e é religião, e
são essas características, sem dicotomias, que tornam o homem – homem.
Com este entendimento, podemos adentrar mais especificamente em nosso
objeto de pesquisa - os ex-votos - que são manifestações humanas (com toda
fragilidade e desejo de superação que isso implica); são veículos de comunicação
com as divindades, mas também com os de sua comunidade; são simbólicos em
essência; e religiosos de forma ontológica.
Comunicar-se com o sagrado por meio do ex-voto está na gênese do existir
humano, enquanto consciente de si.
53
CAPÍTULO II
EX-VOTO: COMUNICAÇÃO DE INTIMIDADE COM AS DIVINDADES
2.1 O significado etimológico de EX-VOTO
A expressão ex-voto é um dos casos em que a etimologia define
concretamente o seu significado, não precisamos, com isso, buscar artifícios para
que este conceito se faça compreendido. Estamos diante de duas palavras latinas
“Ex” e “Votum”, que foram unidas para especificar uma prática votiva na antiga
Roma.
VOTUM – (singular) – no plural o termo é vota. O seu significado é uma
promessa ou voto feito a uma divindade. Este termo foi criado pelos romanos para
identificar as promessas que eram feitas aos deuses. Assim, vemos que a palavra
nasce com um cunho estritamente religioso. O votum é proveniente do particípio do
passado do verbo latino voveo – vovere – que também significa “voto / promessa”,
“prometer algo a alguém”.
Com o passar do tempo, essa expressão tipicamente religiosa foi ganhando
outras conotações em seu emprego. No tempo do Império Romano, era comum que
os soldados fizessem vota de obediência aos seus superiores. Os súditos faziam
vota ao Imperador – prometendo fidelidade. Com isso, entendemos a aplicação
corriqueira da palavra voto em nossos dias. Votar é dedicar a confiança em algum
candidato.
No livro Ex-votos – a saga da comunicação perseguida, de nossa autoria, ao
definirmos a palavra ex-voto, falamos sobre o sentido do voto na concepção
religiosa, não especificando crenças, mas constatando este “contrato” que o fiel
busca estabelecer com suas divindades:
No caso religioso, existem vários tipos de votos feitos pelos fiéis ao divino. O voto expressa que estamos sob a tutela de algum ser que no nosso entender, ou do fiel, é maior do que nós. Faz-se um voto ou uma promessa por vários motivos, um deles é o enriquecimento espiritual na busca de perfeição, as pessoas que creem desejam que seus pecados, ou aquilo que os separa da divindade seja atenuado, por isso fazem votos de serem pessoas melhores, de viverem essa ou aquela virtude. Também se fazem votos na busca de cura dos
54
males físicos, doenças e enfermidades. Outra forma de voto é o pedido de proteção divina. O voto sempre pressupõe uma resposta do fiel para com a benevolência do sagrado, ou seja, sempre é acompanhado de uma promessa: “se eu receber isso, eu faço aquilo”. Seria quase que uma “barganha” espiritual (GOMES GORDO, 2015, p.31).
A palavra voto, no sentido religioso, foi empregada posteriormente pela Igreja
Católica para designar a consagração religiosa de pessoas que buscam viver a
configuração com Cristo. Os religiosos emitem votos de pobreza, castidade e
obediência. Percebemos com isso que, apesar das muitas formas de ser
empregada, a essência da palavra permanece, como um “contrato”. Com o ex-voto
esta concepção de “contrato” é salientada.
O ex-voto é o cumprimento da promessa. Quando o fiel faz um voto a uma
divindade ele faz um contrato de cumprimento, caso a divindade faça sua parte em
atendê-lo. Depois de alcançar a graça, por intermédio da divindade de sua devoção,
o devoto cumpre a sua parte no acordo, que é externar o agradecimento.
EX – o prefixo “ex”, também de origem latina, significa “pôr para fora”. Dessa
forma, é compreensível a real definição de ex-voto, como cumprimento externo, por
parte do devoto, do contrato estabelecido com o sagrado.
O acordo é firmado pela fé, e mesmo que tenha sido feito em segredo (entre
ele e a divindade), mesmo que ninguém saiba desse acordo... o fiel sabe. E não é
qualquer acordo, pois a promessa não poderá ser quebrada, o prometido foi feito
para “alguém” que tem poderes superiores sobre ele.
O acordo brota da fé daquele que quer receber a graça com aquele que pode dar a graça, por isso a promessa quase sempre é um segredo que o fiel guarda para si, em seu íntimo. Quando a graça é alcançada e o “milagre” realizado é hora de externar a gratidão, colocar para fora como testemunho para os outros o que a divindade fez em seu favor. Os ex-votos são o cumprimento externo da graça recebida, e tentam materializar em símbolos imagéticos o benefício recebido (GOMES GORDO, 2015, p. 31, 32).
Podemos dizer que o acréscimo do prefixo “ex” diante da palavra “voto” seria
a consequência de um acordo firmado (pela fé) e executado com sucesso. O
sagrado fez a sua parte, agora por meio do “ex” (do colocar para fora), o devoto
55
cumpre a sua parte no acordo e testemunha o poder da divindade. É um testemunho
para os seus iguais do poder daquela entidade, mas é também um “afago”, um
presente (material), que o devoto imagina ser do agrado dessa mesma divindade.
Esta relação de fé entre o devoto e a entidade pressupõe que o fiel imagina
ter uma relação de intimidade com esta força sagrada, ao ponto de intuir e saber
com precisão o presente que mais agradaria à entidade de sua devoção.
Figura 3 - Placa de granito – ex-voto romano – Braga (Portugal)
Fonte: Arquivo do autor
A expressão ex-voto foi usada desde o princípio da religião da antiga Roma,
para expressar o mesmo significado utilizado hoje. No Museu de Arqueologia D.
Diogo de Sousa na cidade de Braga (Portugal), encontramos uma peça de real
sentido histórico para os estudiosos dos ex-votos; uma placa de granito de quase
um metro de altura, datada do século II d.C., com a seguinte inscrição em latim:
“Asclepio et Hygiae Marcvs ex-voto”, que quer dizer – “A Asclépio e a Higia, Marcus,
segundo voto”.
56
A expressão ex-voto se popularizou em todo o mundo graças ao catolicismo
que até a metade do século vinte mantinha como língua oficial de seus ritos a língua
latina. Assim, mesmo em países em que o latim não foi a gênese da língua local, o
termo ex-voto não exige tradução, é empregado tal qual, embora em alguns países o
hífen não seja utilizado, como em espanhol por exemplo.
Figura 4 - Altar lateral e detalhe – Catedral de Mainz (Alemanha) – construído como ex-voto
Fonte: Arquivo do autor
Na catedral de Mainz, na Alemanha, dedicada a São Martinho e construída
em estilo romano há mais de mil anos, encontramos um altar lateral construído como
pagamento por uma graça alcançada. Na base do altar, é possível ler a inscrição “ex
voto”, com isso vemos que mesmo em países com ramo de línguas germânicas
ocidentais, o termo “ex-voto” é empregado (exvoto). Fatos semelhantes
encontramos em outras localidades do mundo, provando assim a universalidade do
termo e o seu emprego.
Alguns sinônimos de ex-votos também podem ser utilizados para designar
uma oferta do devoto a uma divindade: oferta – oferecer algo em agradecimento, ou
em troca de (alguma coisa); sacrifício – o sacrifício pressupõe uma atitude
“penitencial” como agradecimento, podem ser peregrinações, procissões com os pés
descalços, até o sacrifício de animais em algumas religiões.
57
2.2 O ex-voto é comunicação
A prática votiva dos ex-votos é uma forma material (simbólica) do devoto se
relacionar efetivamente com as suas divindades. O símbolo, como já dissemos,
necessita de um entendimento comum de seu significado. O ex-voto tem esse poder
simbólico comunicacional, mesmo que os devotos não tenham dados empíricos para
afirmar que a entidade sagrada, de fato, esteja feliz com o agradecimento material;
existe, no entanto, um código entre os fiéis.
O testemunho de um é entendido pelo outro. Dessa forma, essa comunicação
devocional se torna publicidade, tanto para o “santo” quanto para o agraciado.
O ex-voto como peça devocional, geralmente não tem valor em si, pois em
sua grande maioria são confeccionados de matérias simples, o seu valor está no
significado simbólico e comunicacional:
Se o milagre foi em benefício da cabeça, o fiel devoto confecciona ou manda fazer, ou compra uma cabeça, seja ela de cera, madeira ou isopor. O objeto não é a cura, pois seria impossível materializá-la, portanto surge o símbolo como linguagem palpável aos olhos e ao entendimento, que Castoriadis (2010, p. 155) define como imaginário efetivo, não da coisa em si, mas daquilo que se imagina sobre determinada situação. O ex-voto é o imaginário efetivo, não se pode determinar o que a divindade gostaria de receber em recompensa por ter realizado determinada graça, mas o fiel materializa o imaginário sobre a forma de identificação, participação ou de causação (GOMES GORDO, 2015, p. 32).
O pensamento de Castoriadis é referenciado para defender a ideia do valor
do ex-voto como imaginário efetivo. Com base ainda em Cornelius Castoriadis
(2010, p. 154), podemos destacar essa afirmação: “O delírio mais elaborado bem
como a fantasia mais secreta e mais vaga são feitos de ‘imagens’, mas estas
‘imagens’ lá estão como representando outra coisa; possuem, portanto, uma função
simbólica”. É o imaginário que se tem da divindade que determina o tipo de símbolo
(ex-voto) que será “posto para fora” em agradecimento pela graça recebida.
O fiel imagina um santo ou um deus poderoso, inclusive possuidor do dom de
interferir (para o bem ou para o mal) em sua vida (bênção – castigo). Mas é difícil
imaginar um ser que seja alheio à sua natureza humana. As representações das
divindades atribuem a elas características divinas, porém com traços extremamente
58
humanos. Por essa razão, intuísse, de forma imaginária e simbólica, os presentes
que entes sagrados gostariam de receber. São projeções de nossos desejos de
sermos recompensados por algo que fizemos, que nos faz imaginar que o divino
também deseja ser “bajulado” por algo de bom que ele tenha realizado.
O ex-voto não é uma peça votiva simplesmente, é o agradecimento genuíno,
com toda sua riqueza simbólica, de uma pessoa que se viu tocada pelo sagrado e,
por essa razão, se sente em dívida eterna com o ente santo que olhou para ele no
momento em que ele mais precisava: “Por ‘menor’ que seja, aos olhos dos outros, o
que o fiel tenha recebido, para ele é prova concreta de que não caminha sozinho,
ele é assistido por uma força maior. Essa crença, com toda certeza preenche de
sentido a existência dessas pessoas” (GOMES GORDO, 2015, p. 33).
Existe uma força comunicacional nas expressões votivas por meio dos ex-
votos. Um desejo de tocar a divindade, de alegrá-la por meio das oferendas, muitas
vezes, materiais, ou até mesmo, por meio de gestos espirituais, como caminhar
descalço em uma procissão, por exemplo.
O elemento material (simbólico) é fundamental para que o agraciado se sinta
de fato ouvido. Por essa razão, é comum que em igrejas católicas, o fiel, além de
rezar para o seu santo de devoção, se aproxime dele (imagem) na tentativa de tocar
aquela representação. Este gesto não é apenas um toque, mas uma profunda
comunicação entre as aspirações mais secretas do devoto com a entidade que (em
seu entendimento) sabe de sua vida e das situações difíceis pelas quais ele está
passando.
Em todas as religiões existem formas concretas de comunicação material com
as divindades, as liturgias, os ritos, os gestos que nos colocam em diálogo com o
sagrado. Porém, é na religião popular que as formas de relação comunicacional
entre divindade e devotos são perceptíveis em profusão. Na religiosidade popular, o
fiel se vê livre de muitas “amarras” que são impostas pelas instituições, deixando vir
à tona elementos de sua natureza.
A religiosidade popular ensina-nos que a possibilidade de empregar símbolos, de compreender a linguagem mitológica, de praticar atos e fazer gestos simbólico-rituais para expressar o mundo religioso constitui componente profundamente humano e religioso,
59
componente, aliás, irrenunciável (DICIONÁRIO DE LITURGIA, 1992, p. 1011).
O costume de oferecer ex-votos para as divindades, muitas vezes, nasce
espontaneamente, por vontade, e até mesmo por memórias afetivas dos próprios
fiéis. Nem sempre a instituição protagoniza o elo de aproximação entre o devoto e a
sua divindade.
Luiz Beltrão12, o pai da Folkcomunicação, além de considerar o ex-voto como
comunicação, defendeu a teoria de que os ex-votos são veículos jornalísticos,
potencializando assim o entendimento de que esta prática votiva, além de ser
diálogo comunicacional entre o penitente e o sagrado, e entre o penitente e os seus,
seria também um registro histórico. Afirma que o simbólico, deixado como prova da
graça alcançada, conta a história de uma localidade, de um tempo, são “crônicas”
jornalísticas.
Beltrão, no ano de 1965 na revista Comunicação & Problemas publicou o seu
célebre artigo “O ex-voto como veículo jornalístico”, tão citado e revisitado por
pesquisadores. O artigo é considerado a gênese da corrente de pesquisa acadêmica
fundada por Luiz Beltrão, a “folkcomunicação”, que aproxima as manifestações
culturais, de modo especial as folclóricas, das pesquisas em comunicação social e
em outras áreas multidisciplinares.
2.3 Ex-votos nas origens das práticas religiosas
É praticamente impossível determinarmos o aparecimento dos ex-votos como
prática religiosa, sabemos, contudo, que não há uma separação entre uma coisa e
outra, pois as manifestações religiosas, segundo dados antropológicos,
contemplavam uma possível troca de agrados, entre o humano e divindade cultuada.
Este fenômeno não foi exclusivo de uma religião ou uma região do planeta,
mas constata-se que as religiões ou as espiritualidades, desde sempre e em todos
os lugares, foram marcadas fortemente por este diálogo de retribuição de duas vias.
O divino retribui o ser humano com graças; e o ser humano, por sua vez, retribui o
12
Sobre a teoria da Folkcomunicação criada por Luiz Beltrão e a importância dos ex-votos nestes estudos, daremos destaque no quarto e último capítulo.
60
sagrado com oferendas. Muito embora defendamos a ideia de que os ex-votos
estejam na essência de toda prática religiosa desde a sua origem, precisamos datar
algumas manifestações devocionais que não só aproximam uma coisa e outra, mas
provam que são inseparáveis.
A simbiose entre a crença e a oferenda pode ser verificada de forma científica
no período pré-histórico:
Os rituais de fertilidade da terra, na qual os aspectos mágicos da religião se sobressaem, de modo especial no período do Paleolítico Superior (entre os anos 35.000 – 10.000 a.C.), reforça a relação dos habitantes dessa época com o ciclo reprodutivo da terra. Escavações arqueológicas em algumas regiões da Europa encontraram objetos que constatam uma evolução no manejo da agricultura e da relação dos indivíduos com a natureza, são inúmeros anzóis rudimentares, como também instrumentos de aragem da terra e machados manuais. Durante esse período o ser humano é reconhecido pelos cientistas como Homo Sapiens, talvez por isso a relação com a
natureza esteja marcada de rituais mágicos com base no agrário e no entendimento da terra como “deusa-mãe”, levando, assim, as práticas de agradecimento ao ciclo (morte-vida) da vegetação, com oferendas de exemplares dos frutos colhidos. Essas oferendas representam, ainda que de forma primitiva, os ex-votos (GOMES GORDO, 2015, p. 34,35).
Ainda dentro do período compreendido como pré-história, mas agora focando
no mesolítico, que seria a transição entre o paleolítico (idade antiga da pedra) e o
neolítico (idade nova da pedra) – período esse que compreende os anos de 10.000
– 5.000 a.C., temos os estudos do antropólogo A. Rust que, em várias de suas
descobertas, encontrou vestígios contundentes sobre a relação do homem pré-
histórico com as divindades por meio das oferendas. Mircea Eliade, sobre os
estudos de Rust, escreve:
O lago de Stellmoor era provavelmente tido como “lugar sagrado” pelos caçadores mesolíticos. Rust recolheu na jazida numerosos objetos: flechas de madeira, ferramentas de osso, machados talhados em galhadas de renas. É muito provável que eles representem oferendas, como acontece com os objetos da Idade do Bronze e da Idade do Ferro encontrados em alguns lagos e lagoas da Europa ocidental. Sem dúvida, mas de cinco milênios separam os dois grupos de objetos, mas a continuidade desse tipo de prática religiosa é inquestionável (ELIADE, 2010, p. 41,42).
Eliade, com base nos estudos de Rust, destaca algo que nos parece
fundamental em nosso estudo, a prática disseminada da oferenda nas
61
manifestações religiosas da antiguidade. Mircea Eliade (2010, p. 42, grifo nosso), ao
continuar seu raciocínio, destaca algo que para nosso estudo é fundamental: “Na
fonte chamada Saint-Sauveur (floresta de Compiègne) foram encontrados objetos de
sílex da época neolítica (quebrados intencionalmente como sinal de ex-voto)”.
As oferendas aos deuses, no período pré-histórico, são de grande variedade,
desde instrumentos de caças; partes da caça oferecidas como sacrifício; sementes e
frutos em agradecimento à colheita; bonecos (de argila) em formato de animais ou
mesmo no formato humano. Os bonecos em formato humano, oferecidos em
santuários de diferentes partes do mundo, seriam uma espécie de “duplo orante”, ou
seja, como que uma extensão do devoto. A sua imagem, representada no boneco,
estava em oração constante e perpétua diante da divindade. Podemos constatar a
presença dessa simbologia do “duplo orante” em manifestações religiosas da
Europa, Ásia e América. O “duplo orante” funcionaria, em termos práticos, como um
ex-voto, era tanto um agradecimento (perpétuo), como também um pedido de
proteção por toda vida.
Na América do Sul, em comunidades pré-colombianas, era muito comum nos
rituais religiosos oferecer os bonecos (representações humanas) como oferenda aos
deuses cultuados. O mais curioso dessa tradição latino-americana é que os bonecos
eram ocos, e dentro deles eram ofertados uma série de dádivas para as divindades,
como sementes, presentes, mechas de cabelos e pequenos objetos considerados
valiosos.
Na região que hoje é a Colômbia, entre os muitos povos que viviam nestas
localidades em diferentes partes da história, destacamos a cultura “Muisca” da
Cordilheira Oriental – de aproximadamente 5000 a.C., os duplos orantes eram
oferecidos em templos, nos caminhos considerados sagrados, na beira das
plantações, nos lagos. O intuito era assegurar os bens já existentes, propiciar a
fertilidade e a saúde.
62
Figura 5 - Exemplo de “duplo orante” pré-colombiano – Museo de La Plata (Argentina)
Fonte: Arquivo do autor
Maria Augusta Machado da Silva, pesquisadora e museóloga, destaca os
primeiros objetos que, segundo ela, representam uma linguagem individual entre os
seres humanos e os deuses. Estes objetos são sumerianos13, ela escreve também
sobre o papel do duplo orante. Vemos nesta descrição uma similaridade muito
grande com os ex-votos:
Os primeiros objetos que testemunham o relacionamento individualizado entre homens e deuses situam-se na faixa de 2.800 a.C. São sumerianos e eram depositados nos templos, onde exerciam a função de “duplos-orantes” em permanente adoração aos deuses. Às inúmeras estatuetas votivas juntaram-se os numerosíssimos amuletos, configurando duas modalidades votivas. O “duplo-orante” atrairia a proteção dos deuses propiciados pela oração perpétua. O amuleto, impregnado com a sacralidade dos deuses, projetaria para fora do espaço sagrado e sobre o seu portador a proteção invocada. Em síntese: a essência do ofertante, impregnada no objeto mimético, caracterizava a primeira modalidade;
13
A Suméria é considerada por muitos pesquisadores como a civilização mais antiga da humanidade, ficava na região da Mesopotâmia. Sua principal cidade era Ur, inclusive citada no livro do Gênese do Antigo Testamento bíblico: 11,28; 11,31; 15,7.
63
e a essência da divindade, impregnada no amuleto, tipificava a segunda (SILVA, 1981, p. 21).
Os sumérios eram politeístas, assim como quase todas as formas de crenças
antes do judaísmo. Um mesmo povo cultuava uma grande diversidade de deuses,
muitos desses deuses tinham um caráter funcional, cada um atendia um aspecto da
vida, ou uma necessidade.
Veremos, a seguir, algumas religiões antigas, o relacionamento
comunicacional que esses devotos estabeleciam com o sagrado, sobretudo por meio
do ex-voto.
2.4 Ex-voto presente nas religiões antigas
Quando pensamos em religiões antigas, algumas formas de crenças se
destacam, mas sabemos que existiam muitas outras práticas religiosas em todo o
mundo. Nossa intenção é mapear de forma sucinta - não todas - pois essa pesquisa
seria impossível, mas algumas que estabeleciam a comunicação com suas
divindades por meio de oferendas muito similares ao que entendemos hoje como ex-
votos.
Vale ressaltar que a maioria dessas religiões antigas eram contemporâneas
umas das outras, o período compreende mais ou menos três milênios a.C.. Estamos
falando de uma época em que muitas culturas já haviam estabelecido códigos
gráficos de escrita. Destacamos onze14 expressões religiosas antigas, muitas delas
ainda estão presentes em nossos dias com as mesmas cargas simbólicas, ou
reinterpretadas, porém nos chama a atenção que o elemento “oferenda” sobrevive
como diálogo entre os seus devotos com suas divindades.
Destacaremos justamente essa comunicação íntima, em que o ex-voto é a
materialização mais visível desse desejo comunicacional.
14
São incontáveis as formas antigas de religião, de comunicação dos nossos antepassados com suas divindades. Selecionamos dez a título de ilustração, porém temos aqui uma oportunidade de futuras pesquisas de associar a prática dos ex-votos com essas manifestações antigas de religião.
64
a- Mesopotâmica (Suméria)
Na região da Babilônia se destacam dois grupos culturais antigos: o da
Suméria e o de Akkad. Nossa pesquisa priorizará o povo sumério, pois como já
pontuamos, as oferendas eram práticas comuns em seus rituais religiosos.
O universo, segundo os sumérios, era governado por uma espécie de
panteão, formado por diferentes divindades (em geral, seres de formato humano,
porém com poderes supremos, como a imortalidade, por exemplo). Eram entidades
que tudo governavam, e os seres humanos estavam sujeitos aos seus julgos,
castigos e bênçãos. São muitas as divindades sumérias, porém os deuses
considerados os pilares do universo eram quatro: An, deus do céu; Ki, deusa da
terra; Enlil, deus do ar e Enki, deus da água. Como vemos, era uma religião
cósmica, em que os elementos naturais ganhavam status de deuses. Neste panteão,
recebem destaques também a figura de Inanna, a rainha dos céus; En-Ki, deus dos
“fundamentos”, senhor da terra e Baal, deus da tempestade (considerado
temperamental e vingativo). Em torno dos deuses, se construíam lendas mitológicas,
que buscavam explicar a vida.
Convém destacar que o culto ao deus Baal começou com os sumérios, mas
se espalhou por toda a região. Mesmo depois, com o surgimento de outras formas
religiosas, a devoção a esse deus persistia.
Baal é citado inúmeras vezes no Antigo Testamento bíblico, como ídolo
oponente ao Deus (único) do povo israelita. Citamos um trecho do livro do profeta
Jeremias (11,11-17), que faz tanto referência ao deus Baal quanto ao tipo de culto
que se prestava a ele, com oferendas em seus altares:
Por tal culpa, assim declara o Senhor: vou descarregar sobre eles uma calamidade, da qual não poderão escapar. E, quando gritarem por mim, eu não os escutarei. Então, as cidades de Judá e os habitantes de Jerusalém irão apelar para os deuses ante os quais queimaram incenso. Esses deuses, porém, não os salvarão no momento da catástrofe, porque, ó Judá, possuis tantos deuses quantas são tuas cidades; e quantas ruas tens em Jerusalém, tantos altares de infâmia ergueste para neles queimar oferendas em honra de Baal. Quanto a ti, não intercedas por esse povo, nem ores por ele, nem supliques, porque ao tempo de sua desgraça, quando clamarem por mim, não os escutarei. Por que cometeu minha bem-amada tanta maldade em minha casa? Porventura teus votos e as carnes imoladas apartarão de ti teus males, para que possas exultar?
Verdejante oliveira de belos frutos - tal o nome que te dera o Senhor.
65
Ao estrépito, porém de imenso ruído ateou-lhe fogo, e se queimaram seus galhos. O Senhor dos exércitos, que te plantara, decretou a calamidade contra ti por causa dos crimes cometidos pela casa de Israel e pela casa de Judá, causando-me revolta os sacrifícios que fizeram em honra de Baal (BIBLIA SAGRADA AVE-MARIA, 2008, p. 1051).
A relação dos sumérios com as divindades pode ser entendida com uma
explicação de Micea Eliade (2010, p. 69, grifo nosso):
O homem [...] partilhava de algum modo a substância divina: o sopro vital de En-ki ou o sangue dos deuses Langa. Isso significa que não havia uma distância intransponível entre o modo de ser da divindade e a condição humana. É verdade que o homem foi criado com objetivo de servir os deuses, os quais, antes de tudo, necessitavam ser alimentados e vestidos. O culto era concebido como um serviço aos deuses. Entretanto, se os homens são os servidores dos deuses, nem por isso são seus escravos. O sacrifício consistia sobretudo em oferendas e homenagens.
Figura 6 - Vaso de Warka – procissão com oferendas para a deusa Inanna. Bagdá (Iraque)
Fonte: Amyett, 2013
Os sumérios consideravam os seus deuses figuras com poder, porém lhes
conferiam características humanas, da mesma forma eles tinham consciência que a
divindade habitava em seus corpos, de forma que fica fácil imaginar que a
comunicação entre essas pessoas com as suas divindades era de intimidade. Neste
caso, as oferendas apareciam como algo natural: “eu ofereço isso, pois sei que
ele(a) gostará”. No imaginário desse povo, o gosto dos deuses não era diferente do
nosso (humano).
66
Uma peça arqueológica datada de 3.200 a.C., denominada “Vaso de Warka”,
retrata em relevo sobre alabastro, uma espécie de procissão, na qual os devotos
levavam suas oferendas (ex-votos) para homenagear a deusa Inanna, em
agradecimento pela boa colheita. A cena retratada se assemelha muito aos ritos de
procissão com oferendas que vemos em nossos dias, sobretudo no catolicismo
popular e nas religiões de matriz africana.
b- Egípcia
Com relação ao Egito antigo, não podemos falar de uma religião específica,
pois existiam muitas manifestações religiosas que concorriam entre elas. É
indiscutível o papel da religião no Egito, pois toda a cultura desse povo girava em
torno de elementos religiosos, vemos isso, sobretudo, na arte e na arquitetura.
A crença do Egito antigo também era politeísta, uma variável muito grande de
deuses e deusas povoava o imaginário dos egípcios que criaram mitos para explicar
cada um deles. Entre os deuses com maior “popularidade”, destacamos: Osíris, o
deus da morte; Ísis, deusa da maternidade e da magia, o seu culto se espalhou por
várias regiões como Grécia e Roma; Hórus era filho de Osíris e Ísis, considerado o
deus dos céus.
A mitologia em torno da tríade de deuses girava em torno da vida, da morte e
do ressurgimento, dessa forma entendemos as principais manifestações materiais
de fé dos egípcios, a preocupação com os seus mortos; e com a própria morte,
havia uma preparação intensa para esse momento e para o momento pós-morte. A
mumificação é um exemplo claro disso.
Sobre os três principais deuses do Egito antigo e a sua relação com os ex-
votos, Maria Augusta Machado da Silva (1981, p. 21,22), escreve:
No Egito o mito do deus que morre e ressuscita identificou-se com a fertilidade trazida com as cheias do Nilo, e foi fixado na grande tríade formada por Ísis (deusa do amor, dos casamentos, do trigo e da medicina), Osíris (deus dos mortos e cujo corpo, após haver sido estraçalhado por seu irmão Set, deus-crocodilo, foi recomposto por sua irmã-esposa Ísis) e Hórus (jovem deus frequentemente representado com cabeça de falcão, filho de Íris e Osíris), que, depois de haver representado o Céu, acabou por simbolizar o Sol. No período da expansão greco-romana, o culto a Ísis difundiu-se pela Grécia, Itália, Gália, Bretanha e todo o Ocidente. Em Portugal, na parede externa da Sé de Braga, há uma lápide votiva a Ísis.
67
Inúmeras peças votivas foram colocadas nos templos egípcios, destacando-se, na categoria de ‘duplos-orantes”, as figurinhas que representavam guerreiros às vésperas de partir para os combates e que buscavam proteção dos deuses. Também os amuletos podiam ser encontrados em grande quantidade naqueles templos.
Um fato curioso que vale a pena ser destacado neste estudo, além daquilo
que já falamos, é a crença dos egípcios na deusa Basted (que era uma deusa gata,
ou uma mulher com cabeça de gata). Essa deusa simbolizava os poderes do Sol,
também estava associada à Lua, sendo a protetora das mulheres grávidas e dos
partos. O seu culto era popular em várias localidades, porém se concentrava,
sobretudo, em Bubastis, desde tempos remotos (2575 a 2134 a.C.).
O site facinioegito, produzido por Ismael de Sá Neto (1998, p. 1, grifo nosso),
faz referências aos ex-votos oferecidos à deusa Basted no Egito Antigo:
DURANTE O TERCEIRO PERÍODO Intermediário (c. 1070 a 712 a.C) começaram a ser construídas necrópoles para abrigar múmias de gatos. Esses animais eram criados no templo de Bubastis com o objetivo de serem sacrificados à deusa e mumificados. Devotos da divindade adquiriam tais múmias que eram envoltas em tecido, colocadas em sarcófagos feitos sob medida e enterradas como oferendas à Bastet em túmulos subterrâneos cobertos com uma abóbada. Quando os reis líbios da XXII dinastia (c. 945 a 712 a.C.) fizeram de Bubastis sua capital, por volta de 944 a.C., o culto da deusa tornou-se particularmente desenvolvido. A PARTIR DA XXVI DINASTIA (664 a 525 a.C.), agora já no chamado Período Tardio (c. 712 a 332 a.C.), tornou-se comum os adeptos da deusa lhe oferecerem, em seus templos, ex-votos na forma de estatuetas que representavam a divindade sob a forma de gato. Feitas geralmente de bronze, mas também de outros
materiais, as esculturas costumavam trazer no pescoço um colar ou o olho Uedjat e brincos de ouro nas orelhas. Ao ser representada na forma humana podia trazer nas mãos um cetro, uma planta de papiro, um sistro, instrumento musical que tocava nas festividades, etc. No braço podia carregar um cesto que, às vezes, aparece cheio de gatos.
Curiosamente, próximo aos templos dedicados à deusa Basted, arqueólogos
encontraram alguns cemitérios (de animais) repletos de gatos mumificados em uma
espécie de oferecimento à divindade. O gato mumificado funcionaria como uma
espécie de ex-voto para agradar a deusa.
68
Figura 7 - Gato Mumificado – oferenda (espécie de ex-voto) à deusa Basted (Egito) – Museu
Britânico
Fonte: Reeve, 2006
A oferenda nas práticas religiosas egípcias não eram exceções, mas toda
religiosidade foi marcada fortemente pelo relacionamento simbólico da “troca”, do
pagamento de promessa para com as divindades.
c- Grega
As características da religião grega, bem como a romana fortemente
influenciada pela grega, mereceriam um estudo à parte, pela riqueza de elementos
constituídos, sobretudo mitológicos. Porém, citaremos os principais elementos dessa
cultura religiosa antiga, destacando de modo especial nosso objeto de estudo, os ex-
votos.
A religião da Grécia Antiga professava a fé em doze principais deidades,
geralmente associados com as forças da natureza, que viviam no Monte Olimpo, o
local dos deuses. As deidades eram concebidas em torno de mitos que regiam a fé,
69
cada um dos deuses tinham características extremamente humanas, todos passíveis
de acertos, mas também de erros. As virtudes dos deuses conviviam pacificamente
com seus vícios. Porém, os deuses eram imortais, diferenciando-se assim dos seres
humanos.
Dos doze deuses superiores do Olimpo, destacamos: Zeus, deus de maior
poder, regia sobre deuses e humanos, associado ao relâmpago; Hera, esposa de
Zeus, deusa do matrimônio, do parto e da família; Posêidon, deus do oceano, irmão
mais velho de Zeus; Atena, deusa da sabedoria, filha de Zeus. Como vemos, no
Monte Olimpo, os deuses eram quase todos ligados mitologicamente por laços
familiares.
Figura 8 - Imagem de Asclépio (século III a.C.) – terracota – Museu Britânico
Fonte: Arquivo do autor
Existia também, entre os deuses maiores, o deus Apolo, deus do sol. Apolo,
segundo a mitologia, envolveu-se em uma relação amorosa com uma mortal,
chamada Corônis. Dessa relação nasceu Asclépio, um deus menor, deus da
medicina. Segundo o mito, ele nasceu de cesariana, após a mãe ser morta por
70
Apolo. Asclépio foi criado por um centauro chamado Quíron, foi este que ensinou as
técnicas de cura a Asclépio. No exercício da medicina, ele curou várias pessoas,
inclusive, segundo a lenda, trazia mortos de novo à vida, por esse dom, seu pai se
encolerizou e o matou com um raio. Porém, mesmo depois de morto, foi digno do
culto dos seres humanos, e sua fama de médico “espiritual” se espalhou por várias
localidades, inclusive, templos foram erguidos a ele.
Em grego seu nome era Asclépio; e no latim, uma vez que seu culto se
popularizou também entre os romanos, recebeu o nome de Esculápio (GOMES
GORDO, 2015, p. 39).
Todos os deuses, desde os maiores até os menores, recebiam ex-votos como
agradecimentos por graças alcançadas, mas sem dúvida nenhuma foi com a
devoção a Asclépio que essa prática se consolidou entre os gregos e também
romanos.
Figura 9 - Ex-votos oferecidos a Asclépio (Útero, intestino, olho, orelha, seio em terracota) –
(Século III a.C.) – Museu Britânico
Fonte: Arquivo do autor
71
Alfons Weiser, sobre os ex-votos oferecidos a Asclépio, escreve:
Dos trezentos santuários a ele consagrados, os mais famosos eram os de Cós, Corinto, Atenas e Pérgamo. Mas foi Epidauro que se tornou o mais importante centro do culto de Asclépio. No século IV a.C., o arquiteto local Teodoro erigiu o templo de Asclépio. Deve-se a Trasimedes de Paros a estátua de Asclépio no trono, com o bastão, a serpente e o cachorro. Inúmeros peregrinos se dirigiam a Epidauro, em busca de alívio, e muitos eram os que voltavam curados. Dessas curas ainda hoje nos falam, p. ex. sessenta inscrições gravadas em placas de pedras, bem como uma série de ex-votos que chegaram até nós (WEISER, 1978, p. 39).
Alguns exemplares de ex-votos oferecidos a Asclépio podem ser vistos hoje
expostos no Museu Britânico, é impressionante as semelhanças desses objetos com
alguns tipos de ex-votos que encontramos atualmente em santuários, ermidas e
cruzeiros espalhados em diferentes partes do mundo.
d- Romana
É impossível pensar em uma sociedade romana antiga, sem pensarmos
também no fator religioso, não existia separação do que era da esfera cívica e do
que era da religião, a crença sobrenatural regia toda vida dessa sociedade. Com
respeito a esse fato, ao estudar sobre a origem de Roma, o professor da
Universidade de Paris, Alexandre Grandazzi (2010, p. 151), escreve:
A religião lembra-se então do nascimento da cidade, porque é esta que lhe fornece o ambiente em que ela se define como fenômeno coletivo e público: assim, a religião romana arcaica e a cidade inicialmente têm um desenvolvimento interdependente. Dos populi albenses e seus vilarejos espaços na Roma das quatro regiões,
passou-se dos cultos familiares, chamados gentílicos, aos cultos públicos que demandam o arranjo de espaços e construções específicas. Significativamente, a miniaturização dos objetos deixa de ser empregados nos cultos funerários privados para estar presente nos depósitos votivos dos templos.
A cidade cresce ao lado de seus templos, e a prática votiva de oferendas aos
deuses não eram isoladas, mas faziam parte da cultura da essência educativa desse
povo, há registros históricos do surgimento da religião romana desde o século VIII
a.C.. Sobre as obrigações religiosas dos romanos, Regina Maria da Cunha
72
Bustamante (2014, p. 110) diz: “não cumprir as obrigações religiosas para com os
deuses abalava a sociedade, pois desequilibrava a ordem do mundo ao provocar a
ira divina. Não havia distinção entre laico e o religioso; a religião estava onipresente:
abrangia tanto a vida privada quanto a pública”.
A religião da antiga Roma era politeísta, com muita similaridade com a cultura
grega. Os deuses romanos “concebidos” mitologicamente encontram seus similares
na mitologia grega. Por essa razão, muitos estudiosos não separam as duas
culturas, mas as chamam de greco-romana. Os deuses eram imortais, porém
contraditórios, carregavam tanto as virtudes humanas quanto os seus vícios.
Apresentamos alguns dos principais deuses romanos com os seus correlatos
gregos: Júpiter, o deus do dia (Zeus); Apolo, deus do sol e da medicina (Apolo);
Juno, deusa protetora do casamento, parto e da mulher, de uma forma geral (Hera);
Marte, deus da guerra (Ares); Vênus, deusa do amor e da beleza (Afrodite); Diana,
deusa da lua, da caça e da castidade (Ártemis); Ceres, deusa da fecundidade da
terra e da agricultura (Deméter); Baco, deus do vinho e da alegria (Dionísio); Cupido,
deus do amor personificado (Eros).
A relação comunicacional com esses deuses passava pela prática votiva dos
ex-votos. Duas cidades, Pesto e Lácio, se destacavam neste período por abrigarem
templos de grandes movimentações de peregrinos que buscavam cumprir os seus
votos (GOMES GORDO, 2015, p. 36). O livro Enciclopédia Mariana (1969, p. 810,
tradução nossa) relata a força cultual dos romanos de oferecerem ex-votos aos seus
deuses:
No templo da antiquíssima Lucus Feroniae, descoberto no Lácio junto ao Soracter (cujo saque recorda Tito Lívio feito por Aníbal), foram encontrados milhares de estatuetas em terracota, que representam partes do corpo, animais, inclusive a mesma deusa Ferônia; os dois primeiros tipos eram votos de ação de graças por curas atribuídas a ela, tanto de homens como de animais; o outro tipo indicava o voto propiciatório oferecido para obter a proteção da deusa. Da mesma inspiração são os ‘votos’ encontrados em escavações em Pesto em que Hera-Juno era invocada como protetora da fecundidade e da maternidade. Idênticos detalhes (ex-votos) foram encontrados nas ruínas do templo de Capua.
Todos os deuses romanos, assim como já dissemos dos gregos, recebiam
oferendas de agradecimentos por graças alcançadas, porém se destaca na religião
73
romana antiga o deus da medicina Esculápio, sendo o seu correlato grego o deus
Asclépio.
Figura 10 - Ex-voto (placa votiva dedicada a Esculápio – I d.C.) - Museu Nacional de
Arqueologia de Lisboa
Fonte: Arquivo do autor
No Museu de Arqueologia de Lisboa (Portugal), encontramos um ex-voto em
formato de placa votiva (mármore), oferecido a Esculápio. A peça é datada do
século I d.C., vale ressaltar que a devoção aos deuses romanos se espalhou por
todas as regiões de domínio do Império Romano. Na placa escrita em latim,
podemos ler: “Consagrado a Esculápio, por Marcus Afranius Euporio e Lucio Fabius
Daphnus, augustais, como oferenda deram”.
74
e- Creta (minoica)
Creta é uma grande ilha do Mediterrâneo, localizada ao sul da Grécia, no mar
Egeu. Podíamos ter incluído os aspectos religiosos arcaicos dessa ilha na descrição
da religião da Grécia antiga, porém sua simbologia e mitos são próprios, de grande
riqueza cultural, sobretudo com relação ao nosso objeto de pesquisa que é o ex-
voto.
Quase tudo que se sabe sobre a Creta antiga é fruto de escavações
arqueológicas. Segundo o John L. Mackenzie (1983, p. 194), a antiga história de
Creta teve três períodos denominados de “minoicos” por causa de Minos – que
segundo a mitologia grega era o rei de Creta, filho de Zeus com a princesa Europa:
“o minoico primário (3.400 – 2.000 a.C.), o minoico médio (2.000 – 1.580 a.C.) e o
minoico tardio (1.580 – 1.250 a.C.).”
As escavações são provas de que Creta era uma civilização bastante
avançada contendo grandes construções e palácios requintados. Eles dominavam a
escrita, chamada hoje de Linear B de Creta, que começou a ser decifrada por um
grupo de pesquisadores liderados por Michael Ventris (MACKENZIE, 1983, p. 194).
A decifração da escrita Linear B de Creta é essencial na compreensão dos
elementos religiosos presentes nessa cultura.
O culto minoico era, sobretudo, orientado por dois pilares: animista (com base
na relação com a natureza e com a vegetação) e feminista (a presença maciça de
deusas, como a deusa-mãe, por exemplo). A conclusão para essa teoria são as
escavações arqueológicas de Gnossos15, sobre a predominância feminina no
imaginário religioso dos minoicos, Mircea Eliade nos diz:
As estatuetas femininas multiplicaram-se durante o neolítico, elas são caracterizadas por uma saia em forma de sino que deixa os seios à mostra, e pelos braços levantados num gesto de adoração. Quer representem ex-votos ou “ídolos”, essas estatuetas indicam a preeminência religiosa da mulher e principalmente a primazia da deusa. Os documentos posteriores confirmaram essa primazia. A julgar pelas representações de procissões, festas palacianas e cenas de sacrifícios, o pessoal feminino desempenhava um papel considerável. As deusas são representadas cobertas por um véu ou
15
Considerado o maior sítio arqueológico de Creta, através das escavações, percebeu-se a importância desse local para vida pública, política e religiosa de seus habitantes, sobretudo no período da idade do bronze (mais ou menos 3.000 a.C.).
75
parcialmente nuas, as mãos contra os seios, ou os braços erguidos em sinal de bênçãos. Um sinete de Gnossos mostra a Dama das Montanhas inclinando o cetro em direção a um adorador do sexo masculino que tapa os olhos (ELIADE, 2010, p. 134).
Também sobre o culto minoico e a predominância das divindades femininas e
as oferendas (ex-votos) dedicadas a elas, Maria Augusta Machado da Silva, ao
escrever sobre a religião fenícia, destaca a fé dos povos antigos de Creta:
Do começo da Idade do Bronze até o ano 2.000 a.C., no Mediterrâneo antigo, os cultos dedicados à deusa-mãe foram apaixonadíssimos. Em Creta, Astarté (deusa-mãe) se unirá a Adônis, deus fenício de extraordinária beleza que morrerá atacado por um javali, recriando uma nova versão para o mito órfico. A religião micênico-cretense, de nítida preponderância feminina, caracterizou-se pela exaltação à Vida em seus aspectos cotidianos. Nos seus templos foram depositados inúmeras peças votivas, muitas das quais apresentam tipologias curiosamente bem próximas das escultóricas arcaizantes produzidas no Brasil. (DA SILVA, 1981, p. 22).
Quando Maria Augusta diz da semelhança das esculturas apresentadas como
ex-votos nos templos de Creta 2.000 anos antes de Cristo, com as que encontramos
ainda hoje no Brasil, são os inúmeros ex-votos representando partes do corpo
humano, como cabeças, pernas, braços, ou até mesmo representações escultóricas
humanas.
Uma referência inegável da entrega de ex-votos aos deuses na cultura
religiosa minoica é o Sarcófago de Hagia Triade16 – e toda a sua simbologia pictórica
que ornamenta este sarcófago que atualmente está exposto no Museu Arqueológico
de Heraclião (Grécia). O sarcófago é datado do século XIV a.C., do período minoico
tardio, e foi encontrado no começo do século passado (1903).
É uma peça de pedra de calcário, toda recoberta de afrescos recobrindo
todas as dimensões. As inscrições pictóricas dessa peça são um retrato da pintura
em mural da cultura minoica, embora elementos culturais e religiosos de outras
culturas também apareçam no afresco.
O que de fato nos interessa neste sarcófago é a incontestável presença dos
rituais de oferendas (ex-votos) às divindades.
16
Hagia Triade é um importante sítio arqueológico cretense (que significa – Santíssima trindade).
76
Figura 11 - Sarcófago de Hagia Triade – Museu Arqueológico de Heraclião (Grécia)
Fonte: Pinterest
Em uma das inscrições pictóricas, vemos claramente (do centro para a direita)
uma espécie de rito processional, em que os devotos (três homens) que seguem
para entregar seus ex-votos (animais e um barco) para o (sacerdote / ou deus) que
está diante do templo. Do centro para a esquerda vemos duas mulheres segurando
jarros, uma delas se inclina para derramar o líquido em um recipiente apoiado por
dois totens (sobre os totens, vemos dois pássaros, que na religião minoica simboliza
a ligação entre o divino e o humano), essa cena é interpretada por muitos estudiosos
como a oferenda de sangue de animais sacrificados para agradar a divindade. Atrás
das duas mulheres, vemos um homem tocando um instrumento musical, que parece
ser uma lira.
f- Celta
A antiga religião celta, assim como todas as outras já mencionadas, cultuava
uma variedade de deuses e deusas, era uma mística mais voltada para os aspectos
mágicos da natureza, os rituais quase todos seguiam a lógica dos períodos
agrícolas.
77
Sendo politeístas, muitos deuses se destacavam, porém a deusa-mãe era
uma das mais veneradas. Dentre as deusas, ganham destaque duas ligadas às
forças da natureza Tailtiu e Macha, e uma terceira chamada Epona, deusa dos
cavalos. Entre os deuses, podemos citar Tan Hill, o deus do fogo; e Goibiniu,
considerado o deus da fabricação da cerveja.
A religião não era institucionalizada, muito embora existissem os Druidas17
(uma espécie de sacerdotes) estes não orientavam moralmente os fiéis, mas faziam
o papel de um feiticeiro ou curandeiro local, evocando a força e o ciclo da natureza
por meio da magia.
As crenças eram rurais, de tribos (do oeste da Europa – tendo por base a
língua indo-europeia), que se espalharam por grande parte da Europa, a maior
expansão dos costumes celtas, sobretudo religiosos se deu por volta do século III
a.C., mas sua origem, apesar de ser incerta, é muito mais antiga (milenar).
Os países conhecidos hoje como Itália, França, Espanha e Portugal
receberam forte influência celta. Assim como vimos em outras religiões antigas, os
mitos ditavam as verdades acerca da religiosidade, em torno de cada divindade se
construía um mito.
Os celtas não construíam templos, seus ritos eram domésticos, de pequenos
grupos, o local de culto muitas vezes era em torno de altares construídos em
florestas e zonas desabitadas.
O historiador Leandro Vilar, em um blog na internet, ao descrever a cultura
religiosa celta ressalta:
A religião celta antiga era de caráter politeísta, animista, dualista (masculino e feminino), naturalista (no sentido de estar muito ligada a natureza e suas mudanças), uma religião ligada à magia, a qual era vista como um poder que emanava do espírito e dos deuses percorrendo o mundo e todos os seres vivos e elementos que nele existissem; acreditava em vida após a morte, em reencarnação (pelo menos por parte do druidismo), embora que não se tenha conhecimento de como era concebida a vida após a morte, os túmulos encontrados revelaram alimentos e bebidas enterrados como oferendas ao morto, possivelmente na ideia de que o mesmo precisaria de mantimentos para poder seguir viagem até a "outra
17
Era uma função tanto masculina (druida), como feminina (druidesa) – a palavra druida significa – sabedoria do carvalho (dura e consistente), ou sabedoria profunda.
78
vida". Todavia sabe-se que os celtas possuíam uma forte ligação com a natureza. Antes dos romanos conquistá-los, os celtas não construíam templos propriamente para seus deuses, a maioria das celebrações, ritos e festas eram feitos ao ar livre, geralmente em bosques sagrados, e em alguns casos em cavernas ou em tumbas. [...] Dependendo do povo, os festejos poderiam ser ligados aos ciclos da agricultura como visto entre os gauleses ou ao ciclo do pastoril como visto entre os irlandeses. O ciclo de pedras chamado de Stonehenge na Inglaterra é um dos locais de culto mais antigos
conhecidos pelos antigos celtas (VILAR, 2013, p. 10, 11).
Vilar, ao descrever os costumes religiosos dos povos celtas, apresenta como
um dos elementos principais dessa relação entre os devotos com suas divindades o
gesto da retribuição, da oferenda, que por nós é entendida como uma forma
comunicacional com os deuses e os antepassados por meio do ex-voto.
Na sequência de seu texto, o pesquisador Leandro Vilar detalha essa prática
votiva de oferecer “presentes” para as divindades celtas:
Os celtas também ofereciam oferendas votivas para seus deuses. As oferendas votivas são oferendas que eram deixadas em locais sagrados ou próximos a estes. Júlio César e outros historiadores romanos falam a respeito dessa prática dos celtas. César diz que armas, escudos, elmos, armaduras e outros espólios eram jogados em rios, lagos, ou deixados em bosques ou outros locais sagrados. Estrabão citando Possidônio (o mesmo chegou a viajar pela Gália
no século I a.C), diz que joias, barras de ouro e prata, cerâmica, vasos, comida e bebidas também eram ofertados. Na Bretanha do início da Idade Média, haviam histórias sobre espadas mágicas que haviam sido jogadas em lagos e rios (VILAR, 2013, p. 13).
No Museu de Arqueologia de Dijon, na França, está exposto um ex-voto
dedicado a uma deusa chamada Sequana18, também conhecida como a deusa da
cura – um par de olhos em uma plaquinha de bronze, encontrado nas proximidades
do rio Sena. A peça é datada do século primeiro da nossa era.
18
Sequana era a deusa do manancial do Rio Sena, com a expansão do Império Romano, essa deusa foi assimilada ao Império e em sua honra foram construídos vários templos, em todos eles eram muitos os ex-votos dedicados a ela.
79
Figura 12 - Ex-voto olhos – Placa de Bronze – Museu de Archeologia de Dijon – França
Fonte: Pinterest
O fato desse ex-voto dedicado a uma deusa celta ter sido encontrado próximo
de um rio, prova o caráter mágico da religião ligado aos elementos da natureza que
cultivava os povos celtas. Os olhos bem abertos indicam que a devota voltou a
enxergar. Acima da representação dos olhos, vemos o nome da agraciada que
pagava a promessa: “Matta”. O que também nos chama a atenção é que ex-votos
semelhantes a esse são encontrados ainda hoje em muitos santuários católicos
dedicados aos santos.
g- Védica
A religião védica primava pela busca do conhecimento. Em sânscrito, a
palavra Veda significa ‘conhecimento’. As práticas culturais védicas surgiram na
Índia, mais precisamente no vale do rio Indo, por volta de cinco mil anos antes de
Cristo. Pode-se dizer que a doutrina védica é a doutrina do livro do conhecimento,
pois os vedas eram canções e poemas que orientavam a vida dos fiéis. Os escritos
dos Vedas são considerados como um dos conjuntos de textos literários mais
antigos de toda humanidade.
80
Sobre a compilação dos versos dos livros – veda – a pesquisadora
portuguesa Hilda Moreira de Frias destaca que o surgimento dos vedas está
relacionado com a chegada dos arianos na Índia:
Durante o II milênio a.C. arianos, idos da Ásia Central levaram à Índia as crenças e saberes partilhados com outros povos indo-europeus. Aliás os Árias (do sânscrito arya-nobre) ou Arianos, são povos indo-arianos que englobam hindus, iranianos (persas, medos ou citas), arménios, frígios, trácios, albaneses, gregos, povos da Itália, do Báltico, eslavos, germanos e celtas e que portanto apartam qualquer ideia de unidade, nesta multiplicidade de povos. A chegada dos Arianos à Índia marcou uma nova fase cultural, pois à medida que os seus carros avançavam para leste foram deparando com comunidades de caçadores e agricultores. Os arianos eram muito superiores em força e poder militar aos outros povos e revelaram grande confiança, talvez fruto do panteão de deuses que adoravam. Foi essa energia que inspirou os poetas a escreverem textos como os Vedas (FRIAS, 2003, p. 180).
A vertente religiosa védica também tinha como base o culto a vários deuses,
e a oferenda e o sacrifício como a principal forma de comunicação entre os fiéis e
suas divindades. As principais divindades são deuses relacionados à natureza, em
tudo se parecendo com os seres humanos, inclusive nas necessidades, como
alimentar-se, por exemplo, podemos citar: Agni – fogo (do sacrifício); Suria – sol;
Indra – raio. Uma figura importante na religião védica era o “sacerdote” que mediava
as relações religiosas entre fiéis e deuses. O desapego às coisas terrenas era um
dos princípios de evolução espiritual que os devotos buscavam alcançar:
Os pontos principais da religião védica baseavam-se no sacrifício e na crença de que o Universo tinha de ser constantemente recriado. Os seus deuses estavam associados ao Sol e à Lua e derivavam de uma cultura guerreira. As religiões indo-germânicas diferiam em muito umas das outras e o tipo clássico de politeísmo, espiritualizado e desenvolvido, liga-se à vida imanente do mundo. O desprendimento do mundo real que, posteriormente, se tornará no seu caráter essencial, não se manifestou desde o início, mas antes, todas as fases do seu desenvolvimento tendiam para o mistério e para o inatingível (FRIAS, 2003, p. 180).
Na relação com os deuses, sendo eles muito semelhantes a nós humanos, os
sacrifícios ofertados como ex-votos (tanto para agradecer quanto para pedir) era o
eixo religioso. A religião védica era uma religião de sacrifício, o ato de ofertar algo a
81
uma divindade era mais importante que o próprio culto que se prestava a essa
entidade, ou o sacrifício chegava a ser mais importante que o próprio deus.
É interessante verificar que o sacrifício védico é bastante original, pois consiste num banquete oferecido aos deuses. O fogo, a oferenda e os cantos sagrados fazem os deuses descer à terra, é-lhes então pedido que tomem lugar sobre a erva sagrada que se estende diante do altar e se lhes apresenta em abundância tudo o que pode alegrar os mortais, como bolos, arroz, leite, banha, carne de animais sacrificados. É, igualmente, necessário alegrar os deuses com perfumes, música e danças. O sacrifício é uma forma de acordo, pede-se às divindades a proteção de inimigos e demônios, a proteção da doença e do mau tempo e que concedam riquezas, honras, boa situação social, filhos e longa vida, no fundo, é uma troca, existindo de igual modo o lado expiatório do sacrifício em que os humanos se esforçam por expiar as culpas, as faltas e afastar a impureza. Se o sacrifício como oferenda tem por finalidade assegurar a riqueza e evitar os males, a meditação tende para o bem absoluto e para a libertação das “dores” do Ser, para a redenção espiritual, que se obtém pela aquisição de conhecimento e é também concebida como um sacrifício espiritual (FRIAS, 2003, p. 182).
As formas de sacrifícios eram tão importantes que um dos livros dos Vedas
era destinado somente a essas práticas, o veda Yajurveda (sobre a sabedoria dos
sacrifícios), com fórmulas sagradas e invocações. Ao lermos sobre os tipos de
oferendas dedicadas aos deuses dessa antiga religião indiana, percebemos certa
similaridade com outras práticas religiosas que também agradam as divindades com
presentes relacionados às necessidades do corpo, como alimentos, perfumes e
ornamentos. As religiões de matriz africana oferecem aos seus deuses coisas muito
parecidas.
A religião védica é a base do que hoje conhecemos por religião hinduísta e
está espalhada por todo o mundo, ganhando cada vez mais adeptos.
h- Andinas
Em todo o território americano pré-colombiano, tanto nas Américas do Sul,
Central e do Norte, encontramos distintas organizações religiosas de acordo com as
culturas de povos tão diversificados. Seria muito difícil especificar cada uma dessas
religiões antigas. Por essa razão, escolhemos uma prática religiosa que se estendia
82
pela cordilheira dos Andes, eram povos diferentes19, mas com similaridades de culto.
Essa “religião” também pode ser chamada de “religião da montanha”.
Pesquisas arqueológicas apresentam em torno de cento e dezessete sítios
arqueológicos, quase todos eles contendo templos. Estamos falando de povos que
viviam a mais de cinco mil metros acima do mar, desde 2.000 a.C., há sinais
arqueológicos dessas populações.
Entre os incas20 destacam-se algumas divindades, são deuses e deusas que
pela mitologia estavam ligados à natureza. Podemos destacar: Viracoche – criador
do mundo, criou todos os elementos do universo, e ao criar o homem, segundo a
mitologia, se utilizou do barro, vemos muita semelhança com o relato bíblico da
criação; Apus – são divindades que habitam as montanhas; Inti – deus sol; Mama-
Quila – deusa lua, protetora das mulheres, da fertilidade e dos casamentos;
Pachamama – deusa da terra, que recebia muitas oferendas ligadas ao cultivo da
agricultura.
19
Alguns povos: Caral, Valdívia, Clavín, Nasca, Moche, Tiwanaku, Wari, Chachapoyas, Chimú, Impérrio Inca e Muísca. 20
No Império Inca, podemos indicar a cidade da antiga civilização – Machu Picchu, que em quíchua significa – “velha montanha”.
83
Figura 13 - Ex-votos para Pachamama – Memorial da América latina – São Paulo
Fonte: Arquivo do autor
O culto tem por base as benevolências dos deuses e o dever de
agradecimento dos humanos pelas graças recebidas. Ainda hoje, essas cerimônias
de oferendas são realizadas, e esse culto está presente na cultura andina.
Na exposição permanente do “Pavilhão da Criatividade”, no Memorial da
América Latina em São Paulo (SP), vemos representações votivas dos povos
andinos dedicados a Pachamama, embora sejam contemporâneas, elas também
representam as oferendas antigas.
Apesar da dominação espanhola e da forte presença do catolicismo
(consequência dessa dominação), os habitantes locais assimilaram os elementos do
catolicismo, sem, contudo, abandonarem suas crenças ancestrais. Um site de
turismo, chamado cuscofestividades, apresenta um calendário de festividades local,
em que destaca o rito de oferenda21 a Pachamama:
Com a oferenda ou pagamento de promessa, o campesino pede permissão a Pachamama para poder abri-la (terra) e devolver de maneira simbólica algo de seus frutos. Estes rituais também são destinados ao Apu – o espírito da montanha através do despacho. O Apu é o aspecto masculino da natureza e a Pachamama é o aspecto feminino. O Apu protege os aminais e os homens e fecunda a Pachamama. A oferenda é um ato de reciprocidade cósmica, é a
21
Alguns elementos ofertados a Pachamama: folhas de coca, conchas marinhas, sementes, ou outros elementos dependendo da promessa e da intenção do pagamento da graça recebida.
84
realização da justiça universal e cósmica, o cumprimento de um dever mútuo. O rompimento deste princípio causaria sérias distorções do equilíbrio nos sistemas naturais, sociais e religiosos. Para o homem andino, as oferendas têm um sentido de reconciliação com as forças espirituais com o fim de evitar desgraças, e representam ritos de passagens (CUSCOFESTIVIDADES, 2017, tradução nossa).
Outro tipo de oferenda, bastante discutível, são os sacrifícios humanos22.
Pesquisadores chegaram a comprovar essa prática na cultura Incaica, devido às
sequências de estudos feitos. Outras antigas religiões, segundo relatos, também
sacrificavam pessoas como oferendas aos seus deuses, dentre elas, podemos citar
a egípcia; a cretense; a celta; a maia, entre outras.
O sacrifício humano como oferendas aos deuses está no imaginário popular;
não raras vezes, os filmes de Hollywood exploram esse tema.
Sobre as religiões andinas e os sacrifícios humanos, as museólogas, Sílvia
Quevedo e Eliana Durán, do Museu Nacional de História Natural de Santiago no
Chile, pontuam:
Os sacrifícios não se efetuavam com muita frequência, e os eleitos deveriam cumprir algumas características; uma delas que fossem crianças idealmente sem imperfeições físicas. Às vezes, eram oferecidas por seus pais, pois lhes outorgava honra a eles e lhes asseguravam uma vida de glória para a criança, o sacrifício conferia então um elevado status social. Naqueles casos, que não se registravam sacrifícios humanos, estes aparentemente se substituíam por estatuazinhas humanas, essa modalidade se denominava “sacrifício substituído”. As oferendas rituais que acompanhavam a estes sacrifícios foram estatuetas de metais, tanto humanos quanto de animais, também as confeccionaram com conchas de Spondylus; este material constitui a oferenda favorita dos
incas e está presente em quase todos os santuários de altura [...] (QUEVEDO; DURÁN, 1992, p. 195, tradução nossa).
Os sacrifícios humanos ficaram no passado, porém outros tipos de oferendas
com representações do corpo humano, em um sentido de “duplo orante”, ainda hoje
são percebidas nas tradições andinas.
22
Embora esse tema tenha relevância como oferendas para algumas religiões antigas, nós somente citaremos a prática religiosa do “sacrifício humano”, pois se fôssemos nos aprofundar desviaríamos muito de nosso objetivo, porém fica registrado que até mesmo os sacrifícios de pessoas eram utilizados como ex-votos.
85
i- Bantos
As religiões ancestrais africanas são múltiplas e diversificadas, podemos até
dizer que a riqueza cultural africana, apesar de sua importância, ainda é pouco
explorada por acadêmicos. Escolhemos, nesta pesquisa, citar os bantos, como
contribuição neste elenco de religiões antigas e suas práticas devocionais, tendo o
ex-voto como forma comunicativa com suas divindades.
Os bantos, falamos no plural, pois não estamos especificando um povo, mas
um conjunto de povos que estavam presentes, no que hoje entendemos como
Angola, Gabão e Cabinda, ou seja, grande parte da África Central. Há registros
históricos da presença dos bantos de pelo menos 2.000 anos a.C..
Muito embora fossem povos diferentes, existia algo que os aproximava: a
base linguística. Eles falavam a língua banto, e o fato de falarem uma língua similar
fez com que proliferasse entre os povos irmãos uma identidade religiosa, com
características semelhantes de culto e devoção.
O historiador Robert Daibert, em artigo publicado na revista Estudos
Históricos, apresenta a religiosidade dos bantos e o entendimento desses povos
sobre um Ser Supremo:
Segundo a tradição religiosa banto, a vida é sustentada por um Ser Supremo que reina sobre o universo e sobre os homens de modo distante, porém benéfico. Todos os povos que compartilhavam a cosmovisão banto acreditavam em um deus único, supremo e criador, chamado de Kalunga, Zambi, Lessa ou Mvidie, entre outros nomes, de acordo com o grupo étnico específico e com os atributos que se pretendia destacar nessa divindade, como a totalidade da vida, a superação de tudo em todos, a força e a inteligência. Segundo essa crença, após a criação do mundo, o Ser Supremo se distanciou dele, entregando sua administração aos ancestrais fundadores de linhagens, seus filhos divinizados. Por ser um deus distante, ele quase não recebia culto ou adoração, nem era representado por imagens (DAIBERT, 2015, p. 11).
Abaixo desse Ser Supremo, segundo Daibert (2015, p. 11), estavam os
arquipatriarcas, que receberam do Ser Maior a incumbência de fundarem os
primeiros clãs humanos. O Ser Supremo cria, os arquipatriarcas perpetuam a vida.
86
Abaixo dessa categoria situavam-se os espíritos tutelares ou gênios da natureza, que habitavam os lagos, os rios, pedras, ventos, florestas ou objetos materiais. Esses seres, embora não possuíssem forma humana, exerciam grande influência sobre os homens, notadamente sobre as atividades da caça, pesca e agricultura.
Eram estes espíritos da natureza que recebiam dos povos bantos a maioria
das venerações, pois os espíritos (naturais) eram mais próximos dos fiéis. Inclusive,
a comunicação com essas entidades era uma comunicação de reverência, porém
como alguém não tão distante, como o Ser Supremo, por exemplo. Eram os
espíritos que recebiam a maior parte das oferendas e ex-votos.
Outras entidades que também lhes eram próximas seriam os ancestrais, os
espíritos dos “grandes mortos”, que tinham uma incidência crucial no cotidiano dos
bantos, sobretudo relacionado à proteção:
Embora falecidos, os antepassados continuavam membros ativos do grupo familiar e da comunidade a que pertenceram durante sua vida. Eles se tornavam os guardiões e os protetores de seus parentes vivos. Em contrapartida, o grupo familiar precisava alimentá-los e cultuá-los (DAIBERT, 2015, p. 12).
Alguns dos ancestrais, conforme a sua importância e a memória que se
cultivava deles, chegavam a ser quase que divinizado. Robert Daibert, com base na
pesquisa de doutorado de Brígida Carla Malandrino23, sobre a religiosidade dos
povos bantos, relata a força do ex-voto como certeza de proteção ao agradar os
antepassados com oferendas:
Os homens apresentavam oferendas aos antepassados como forma de influenciá-los, obter favores e solucionar problemas. Por isso ofereciam aos seus mortos vegetais, fumo, bebidas alcoólicas, entre outros, conforme o costume específico de um grupo filiado à tradição banto. Em alguns casos também eram ofertados sacrifícios de animais como forma de adensar as relações e interações entre os dois mundos. Tanto as oferendas como os sacrifícios transmitiam força vital e recuperavam o equilíbrio e a harmonia perdidos, contribuindo assim para a retomada da ordem (DAIBERT, 2015, p. 17).
23
O título da tese foi: Há sempre confiança de que se estará ligado a alguém: dimensão utópica das expressões da religiosidade bantú no Brasil. Defendida em 2010 – no Departamento de Ciências da Religião da PUC de São Paulo.
87
A concepção religiosa dos povos bantos para nossa pesquisa é relevante,
pois ao tratarmos das religiões de matriz africana no Brasil, veremos que práticas
idênticas ainda se cultuam em nossos dias, sobretudo em cruzeiros de cemitérios, a
matéria das oferendas segue sendo praticamente a mesma.
j- Judaica
Com o advento do judaísmo se institui na humanidade a ideia de um Deus
Único. O monoteísmo judaico deu origem a duas outras forças religiosas: o
cristianismo e o islamismo. O judaísmo teve início com o povo hebreu, que foi
fundado a cerca de 1850 a.C., por Abraão na região da Palestina.
Na Introdução Geral da Bíblia Ave-Maria, lemos um breve relato da criação do
judaísmo:
Há pouco menos de quatro mil anos, vários povos viviam às margens do mediterrâneo, na Ásia e África. Havia duas grandes potências: Caldeia e Egito. Entre esses dois vastos reinos achavam-se pequenos países, como Síria e Canaã (esta também chamada Palestina). Diversas tribos viviam aí da cultura agrícola e de produtos de seus rebanhos, entre as quais se achava a dos hebreus, que provinham do patriarca Abraão. Este homem e sua família eram oriundos de Ur, da Caldeia, de onde tinham emigrado para a Palestina no décimo segundo ano de nossa era. Com a vinda de Abraão e de seus descendentes, começa a História Santa que a Bíblia nos conservou (BÍBLIA AVE-MARIA, 2008, p. 13).
A base do judaísmo24 é a revelação. A doutrina foi elaborada, pelo que eles
acreditam, por meio das regras ditadas pelo próprio Deus. Segundo o relato bíblico,
Deus criou todo universo, criou o mundo e o homem, e havia preparado a terra para
ser o “Jardim do Éden”, o paraíso, mas pela desobediência dos primeiros habitantes,
Adão e Eva, vieram as consequências dessa desobediência, a pior delas a morte.
Desde então, a fé do povo judaico é alimentada pela crença da chegada de um
Messias25, salvador, que virá restabelecer o paraíso perdido.
A relação do ser humano com esse Deus se dá por meio da submissão ao
seu poder. No relato bíblico de Levítico26 (capítulos de 1 – 5), vemos claramente que
24
São muitos os elementos que poderíamos destacar da fé judaica, porém tentaremos focar na relação comunicacional por meio dos ex-votos (oferendas, sacrifícios). 25
Para os Cristãos, o Messias é Jesus Cristo, por essa razão surgiu o cristianismo. 26
Os relatos são extensos, por essa razão, selecionaremos apenas um trecho sequencial.
88
no princípio do judaísmo a comunicação com Deus se dava, sobretudo, por meio
dos sacrifícios. São vários tipos de sacrifícios, cada um segundo sua funcionalidade:
- Os Holocaustos – imolações de animais (1,1-9):
O Senhor chamou Moisés e falou-lhe da tenda de reunião: “Fala, disse-lhe ele, aos israelitas. Dize-lhes: Quando um de vós fizer uma oferta ao Senhor, será dentre o gado maior ou menor que oferecereis. Se a oferta for um holocausto tirado do gado maior, oferecerá um macho sem defeito; e o oferecerá à entrada da tenda de reunião para obter o favor do Senhor. Porá a mão sobre a cabeça da vítima, que será aceita em seu favor para lhe servir de expiação.
Imolar-se-á o novilho diante do Senhor, e os sacerdotes, filhos de Aarão, oferecerão o sangue e o derramarão ao redor sobre o altar que está à entrada da tenda de reunião. Tirar-se-á a pele da vítima, e esta será cortada em pedaços. Os filhos do sacerdote Aarão porão fogo no altar, e empilharão a lenha sobre ele, dispondo, em seguida, por cima da lenha, os pedaços, a cabeça e a gordura. Lavar-se-ão com água as entranhas e as pernas, e o sacerdote queimará tudo sobre o altar. Este é um holocausto, um sacrifício consumido pelo fogo, de odor agradável ao Senhor [...] (BÍBLIA SAGRADA AVE-MARIA, 2008, p. 144).
- As oblações - alimentos (2,1-3):
Quando alguém apresentar ao Senhor uma oblação como oferta, a sua oblação será de flor de farinha; derramará sobre ela azeite, ajuntando também incenso. E levá-la-á ao sacerdote, filho de Aarão, o qual tomará um punhado de flor de farinha com azeite, e todo o incenso, e a queimará no altar como um memorial. Este é um sacrifício consumido pelo fogo, de agradável odor ao Senhor. O que sobrar da oblação será para Aarão e seus filhos; isto é, o que há de mais santo entre os sacrifícios feitos pelo fogo ao Senhor [...] (BÍBLIA SAGRADA AVE-MARIA, 2008, p. 145).
- Os sacrifícios pacíficos - é uma oferta de agradecimento, geralmente feita
em cultos privados (3,1-5):
Quando alguém oferecer um sacrifício pacífico, e quiser oferecer gado, macho ou fêmea, oferecerá um que seja sem defeito ao Senhor. Ele porá a mão sobre a cabeça da vítima, e a imolará à entrada da tenda de reunião; e os sacerdotes, filhos de Aarão, aspergirão com seu sangue as paredes do altar ao redor. Deste sacrifício pacífico, oferecerá, à guisa de sacrifício pelo fogo ao Senhor, a gordura que envolve as entranhas e que está aderida a elas, os dois rins com a gordura que os envolve na região lombar e a pele que recobre o fígado, a qual será desprendida de junto dos rins.
89
Os filhos de Aarão queimarão isso no altar, por cima do holocausto colocado sobre a lenha que está no fogo. Este é um sacrifício consumido pelo fogo, de agradável odor ao Senhor [...] (BÍBLIA SAGRADA AVE-MARIA, 2008, p. 145).
- Sacrifícios pelo pecado (como expiação) – para cada classe de pessoas
existia um tipo de sacrifício, apresentamos as instruções para alguém do povo que
pecasse (4,27-31):
Se for alguém do povo quem pecou involuntariamente, cometendo uma ação proibida por um mandamento do Senhor, tornando-se assim culpado trará para sua oferta uma cabra sem defeito, pela falta cometida, logo que tiver tomado consciência de seu pecado. Porá a mão sobre a cabeça da vítima oferecida pelo pecado e a imolará no lugar onde se imolam os holocaustos. Em seguida, o sacerdote, com o dedo, tomará o sangue da vítima, e pô-lo-á sobre os cornos do altar dos holocaustos, derramando o resto ao pé do altar. Tirará toda a gordura, como se fez no sacrifício pacífico, e a queimará no altar, como agradável odor ao Senhor. É assim que o sacerdote fará a expiação por esse homem, e ele será perdoado (BÍBLIA SAGRADA AVE-MARIA, 2008, p. 146).
- Sacrifício de reparação (5,2-6):
Se alguém tocar, por inadvertência, uma coisa impura, como o cadáver de um animal impuro, de uma fera ou de um réptil impuro, ficará manchado e culpado. Da mesma forma, se, por descuido, tocar uma imundície humana qualquer, e logo se der conta disso, será réu de culpa. Se alguém, por descuido ou irreflexão, jurar fazer qualquer coisa de bem ou de mal, logo que se der conta disso, será culpado, qualquer que seja o juramento inconsiderado. Aquele, pois, que for culpado de uma dessas coisas, confessará aquilo em que faltou.
Apresentará ao Senhor em expiação pelo pecado cometido uma fêmea de seu rebanho miúdo, uma ovelha ou uma cabra em sacrifício pelo pecado, e o sacerdote fará por ele a expiação de seu pecado (BÍBLIA SAGRADA AVE-MARIA, 2008, p. 147).
Vimos que a prática das oferendas, entendidas por nós como ex-votos, eram
pilares de comunicações, entre os fiéis judaicos com Deus. Existia toda uma
prescrição canônica de como se realizar este culto de oferecimento. Entender os
sacrifícios bíblicos como um tipo de ex-voto abre perspectivas para o estudo
acadêmico dos ex-votos na área da folkcomunicação.
l- Cúltica a Endovélico
90
O culto a Endovélico está envolto em muito mistério. Pouco se sabe sobre
esta entidade, cultuada em regiões que hoje fazem parte de Portugal e grande parte
da Espanha (Península Ibérica), um dos santuários mais famosos estava construído
na região que hoje se chama “São Miguel da Mota”, em Alandroal. Essa devoção é
anterior ao domínio do Império Romano, muitos pesquisadores portugueses
chamam esses povos originários de “indígenas”.
Figura 14 - Cabeça e imagem de Endovélico – Século I d.C. – Museu Nacional de
Arqueologia de Lisboa
Fonte: Arquivo do autor
Após a chegada do Império, Endovélico foi associado ao grande número de
deuses romanos, porém era uma devoção regional. Nesta lista de religiões antigas,
destacamos o culto a Endovélico, devido aos inúmeros ex-votos encontrados em
escavações arqueológicas e que são dedicados a essa divindade.
91
Figura 15 - Ex-votos (placas) – com inscrições de agradecimento a Endovélico – Século I
d.C. – Museu Nacional de Arqueologia de Lisboa
Fonte: Arquivo do autor
José da Encarnação, professor da Universidade de Coimbra, em um estudo
sobre Endovélico, publicado pelo Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas
(Sintra), salienta a grande quantidade de ex-votos oferecidos a essa entidade: “É
seguramente Endovélico a divindade da Lusitânia mais conhecida, portanto lhe
foram dedicados perto de uma centena de ex-votos” (ENCARNAÇÃO, 1995-2007, p.
149).
92
Figura 16 - Ex-voto zoomórfico oferecido a Endovélico – Século I d.C. – Museu Nacional de
Arqueologia de Lisboa
Fonte: Arquivo do autor
A maioria dos ex-votos encontrados é de placas votivas com a inscrição da
graça recebida e o nome do deus realizador (Endovélico); também são inúmeras as
estátuas humanas ou representações de alguma parte do corpo (provavelmente a
curada); outro tipo de ex-voto é a escultórica de animais que os seus donos
ofereciam depois da cura dessas criaturas.
Mesmo que haja discordâncias entre os pesquisadores, é comum se afirmar
que Endovélico era um deus da medicina, da cura, da vida e da morte.
93
CAPÍTULO III
EX-VOTO PARA ALÉM DO CATOLICISMO
Como vimos nos capítulos anteriores, a prática de oferecer ex-votos às
deidades é anterior ao cristianismo. Hoje, quando pensamos em ex-votos, o nosso
entendimento nos encaminha a um lugar comum, ao catolicismo popular. Embora,
de fato, a presença da materialidade do voto esteja historicamente ligada às
devoções de um catolicismo ressignificado pela força do “popular”, percebemos
também que esta prática que envolve troca de favores entre os devotos e suas
divindades está presente em muitas outras denominações religiosas.
A princípio, neste capítulo, destacaremos uma breve história da presença
marcante dos ex-votos no catolicismo, e pontuaremos algumas “modernizações” da
forma do fiel cumprir uma promessa hoje. Em seguida, ampliaremos um pouco mais
a concepção do nosso objeto de estudo, percebendo que estas mesmas práticas
ancestrais podem ser identificadas em outros grupos religiosos, como no
cristianismo evangélico (destacando as neopentecostais) e nas religiões de matriz
africana (destacando a Umbanda).
A pluralidade religiosa no Brasil é de grande riqueza, com amplitude e
complexidade. Diante disto, na delimitação de nossa pesquisa, trabalharemos os
três grupos mencionados: católicos, evangélicos (Igreja Universal do Reino de Deus;
Igreja Mundial do Poder de Deus e Igreja Pentecostal Deus é Amor) e religiões de
matriz africana (Umbanda). Embora sejam muito diferentes entre si, sabemos que os
três estão ancorados no que os pesquisadores consideram como Matriz Religiosa
Brasileira e, por essa razão, alguns elementos culturais trazidos à tona por meio do
culto criam uma identidade religiosa que pertence a nós brasileiros:
[...] formas, condutas religiosas, estilos de espiritualidade, condutas religiosas uniformes, evidenciam a presença influente de um substrato religioso-cultural que denominamos Matriz Religiosa Brasileira. Esta expressão deve ser apreendida em seu sentido lato,
isto é, como algo que busca traduzir uma complexa interação de ideias e símbolos religiosos que se amalgamaram num discurso multissecular, portanto, não se trata stricto sensu de uma categoria
de definições, mas, de um objeto de estudo. Esse processo multissecular teve, como desdobramento principal, a gestão de uma
94
mentalidade religiosa média dos brasileiros, uma representação coletiva que ultrapassa mesmo a situação de classe em que se encontrem. É oportuno sublinhar que essa mentalidade expandiu sua base social por meio de injunções incontroláveis, como soe acontecer com os conteúdos culturais, para, num determinado momento histórico, ser incorporada, através de séculos, à prática religiosa (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 40-41).
Ainda sobre a Matriz Religiosa Brasileira, convém destacar que as práticas
votivas vigentes e que parecem ser modernas, nada mais são que adequações ou
ressignificações de rituais antigos. Mesmo que a espiritualidade pentecostal não seja
contemplada na “gênesis”, na “matriz”, o que vemos hoje nos cultos e celebrações
dessas religiões bebe dessa fonte primária. Citamos um pensamento do
pesquisador Aldemar Moreira (1967, p. 115) que nos ajuda a perceber que os ritos
religiosos são recriações de experiências passadas:
As formas populares de entender e realizar a religião são inspiradas em conhecimentos e ritos alheios a um conteúdo dogmático e institucionalizado, por influência ou transposições de outras religiões, ou simplesmente por atividade grupal, com que os homens se dirigem à divindade ou aos santos, tradicionalizando-as, transmitindo-as e atribuindo-lhes “força” especial de referência ao sobrenatural.
Dessa forma, não é difícil identificar práticas votivas em várias denominações
religiosas de nossos dias que podem ser entendidas como ex-votos.
3.1 Ex-votos no catolicismo – história e atualidade
O cristianismo advém do judaísmo, os israelitas esperavam o Messias que iria
restaurar e salvar as tribos de Israel. Depois de Jesus Cristo, houve um cisma entre
os judeus, muitos seguidores de Cristo anunciavam ser ele o Messias, nasceu assim
no Oriente Médio o cristianismo. Esse território estava dominado pelo Império
Romano que cultuava os seus deuses, os judeus poderiam viver sua fé desde que
pagassem os impostos. Com os adeptos do cristianismo foi diferente, houve grande
perseguição à comunidade que pregava a fé nos valores cristãos.
95
O impulso evangelizador dos primeiros cristãos foi arrebatador, muitos judeus
se converteram e também devotos procedentes do paganismo, mesmo que a
vigilância e perseguição de morte do Império Romano perdurasse. Formou-se,
assim, uma “mistura” de crenças que se fundiam em uma nova forma de crer.
A perseguição somente cessou com o evento conhecido como “Conversão de
Constantino”, no século IV d.C.. Constantino era Imperador Romano, segundo
relatos, o Imperador seguia para uma guerra contra Maxêncio e suas tropas, após
várias derrotas no período de anos, Constantino teve uma visão (uma cruz, no céu
com a seguinte inscrição: “Com este sinal vencerás”). A batalha seguiu e as tropas
romanas foram vencedoras, deu-se então a conversão do Imperador ao catolicismo,
a religião cristã passou a ser aceita. Anos mais tarde, o Imperador Teodósio,
sucessor de Constantino, em 380, decretou o catolicismo como religião oficial do
Império. Todos os súditos foram obrigados a se converterem e serem batizados.
Por causa da imposição de conversão, podemos dizer que tenha surgido uma
“outra religião”, marcada pela mestiçagem, muito similar ao ocorrido com os negros
escravizados no Brasil que tiveram que “abandonar” (teoricamente) suas antigas
crenças e se converterem ao catolicismo, gerando assim o sincretismo.
A especialista em História da Igreja, Gabriela Alejandra Peña, descreve este
episódio salientando, sobretudo, a perseguição instaurada aos pagãos:
O Estado se transformou no responsável por fazer cumprir o que a Igreja tivesse disposto e garantir sua vigência. Para fazê-lo é que ditou uma profusa legislação, que ao longo do século IV foi se fazendo cada vez mais desfavorável para o paganismo. Nos fins dessa centúria, os pagãos eram abertamente perseguidos: proibiu-se seu culto, fecharam-se seus templos e finalmente no ano 380 o imperador Teodósio declarou o cristianismo religião oficial do Império Romano. Em menos de um século, de vítimas de perseguição os crentes passaram a ser testemunhas – e muitas vezes também protagonistas – da perseguição contra outros, à sombra de um Estado que antigamente os condenava à morte. Mesmo que em teoria não fosse assim, na prática voltou-se a anular a liberdade de culto, agora a favor do cristianismo (PEÑA, 2013, p. 84).
E nessa confusão religiosa, os pagãos convertidos, para estarem de bem com
as obrigações do Estado, frequentavam os cultos religiosos e mantinham a fé por
96
aparência. Porém, de forma muitas vezes oculta, continuavam venerando seus
antigos deuses. A prática dos ex-votos desponta em meio a essa situação como
uma forma de resistência, e com o passar do tempo foi sendo assimilada a fé
católica. No livro de nossa autoria, Ex-voto – a saga da comunicação perseguida,
tratamos dessa miscelânea religiosa com ênfase nos ex-votos:
A confusão religiosa estava instaurada, o Império antes predominantemente pagão, agora é cristão, porém a vivência religiosa do povo ainda carrega os traços do paganismo, que por sua vez é combatido de forma enérgica pelos representantes legais da Igreja e do Estado. Os templos que outrora eram dedicados aos deuses do paganismo ganham em seu lugar catedrais católicas em reverência aos santos. Os fiéis frequentavam as igrejas, porém carregados das antigas manifestações religiosas, e por sua vez começaram a oferecer aos santos católicos os ex-votos que antes eram ofertados aos deuses, em pagamento de graças recebidas
(GOMES GORDO, 2015, p.44).
Diante dessa realidade de mestiçagem da fé, a primeira reação da Igreja foi a
de perseguição aos elementos religiosos estranhos à sua doutrina. Nessa missão
praticamente impossível, houve a tentativa de acomodar a situação da devoção
popular que insurgia sobre a fé oficial. A própria Igreja buscou formas de
institucionalizar, com elementos da fé católica, as práticas devocionais advindas do
paganismo. Um exemplo que podemos citar foi o incentivo da devoção à figura de
Maria e aos santos (em substituição aos deuses pagãos), dessa forma, os ex-votos
oferecidos à Mãe de Deus e aos santos começaram a ser práticas aceitas:
Com o passar do tempo ainda nos primeiros séculos o catolicismo com o incentivo a devoção aos santos e a Maria, Mãe de Jesus, como exemplos de vida cristã a serem seguidos, não demorou muito para que no catolicismo popular a devoção de oferecer ex-votos se tornasse atividade praticamente aceita, embora não houvesse nada oficial deliberando essas devoções. As ofertas que antes eram feitas aos deuses agora dentro dessas manifestações populares católicas são ofertadas aos santos, sem grandes questionamentos. Mesmo sem o aval do catolicismo ortodoxo, a devoção popular se tornou uma realidade impossível de combater, por isso, houve certa
“acomodação” de ambas as partes (GOMES GORDO, 2015, p. 45).
O sincretismo dos primeiros séculos no catolicismo pode ser verificado
também no livro Ex-voto e orantes do Brasil, da museóloga Maria Augusta Machado
da Silva. No trecho que transcrevemos a seguir, a autora trata das festas marianas e
97
o seu incentivo por parte da ortodoxia da Igreja, como forma de coibir a devoção às
deusas dos pagãos:
No pontificado de Gelásio I (492-496) ordenou-se que uma procissão noturna e com muitas luzes honrasse a ‘luminosa Purificação de Maria’ no dia 2 de fevereiro. As razões dessa ordenação nos são dadas por um cronista do século XVII, o erudito Frei Agostinho de Santa Maria, que escreveu o ‘Santuário Mariano’, no capítulo XXXIII do Tomo I, assim escreve ele: ‘[...] e todos os anos pelo tempo em que havia sido do roubo (de Proserpina por Plutão) se lhes celebrava sua festa, andando as mulheres e os homens de noite com candeias acesas, gritando pelos montes e repetindo seu nome em tom muito lastimoso e sentido, como o repetia sua mãe Céres. E tão arraigada estava esta superstição entre os gentios, particularmente entre os romanos, que ainda depois de se converterem à fé de Cristo não deixavam de renovar essa cerimônia. [...] pelo que ordenaram naquela noite, que parece caía em dois de fevereiro, uma procissão soleníssima em louvor da gloriosa Virgem Maria, a que todos acudiam com círios e luzes, cantando hinos em seu louvor, mudando a superstição diabólica em santo e louvável costume, e devoto
obséquio à Senhora (SILVA, 1981, p. 24).
O ato de incentivo à devoção mariana fez com que nos séculos seguintes
esta particularidade da fé católica ganhasse destaque. Muitas igrejas foram
construídas em honra a Nossa Senhora, assim sua devoção se popularizou.
Acompanhava a devoção o gesto de oferecer ex-votos por graças alcançadas. Os
ex-votos que antes eram vistos como resquícios do paganismo, com o passar dos
séculos, acabaram se tornando uma identidade católica.
Na Idade Média, por exemplo, a prática se popularizou de tal forma que um
templo ou santuário que recebesse muitos ex-votos era sinal de publicidade do
poder do santo, ou do título de Maria venerado naquela localidade.
Para ilustrar a força da fé em Nossa Senhora em um período longo da Igreja
Católica, citamos a obra do Frei Agostinho de Santa Maria, que escreveu dez
volumes sobre a história da devoção em Portugal, Espanha e países colonizados. O
primeiro tomo de sua obra foi publicado em Lisboa, em 1707, e recebeu o título de
Santuário Mariano, e hiftoria das imagês milagrofas de Nossa Senhora. Neste
primeiro volume, o autor narra, ao menos, o panorama devocional por cerca de um
milênio. Rico em detalhes, este primeiro tomo fala das imagens de Nossa Senhora
venerada na Corte Portuguesa e na cidade de Lisboa.
98
Muitas das práticas devocionais descritas por Frei Agostinho podem ser
entendidas como ex-votos, como por exemplo, quando o autor escreve sobre o título
(XXIX – As Imagem de Nossa Senhora do Amparo do Convento de São Francisco) e
relata “peças curiosas” deixadas sobre o altar por fiéis que conseguiam o amparo de
Nossa Senhora, concluindo que os devotos não “esquecem de acender suas
lâmpadas e colocar suas velas no altar”.
No volume quinto da Obra Santuário Mariano, escrito por frei Agostinho e
publicado no ano de 1716, ao escrever sobre a devoção a Nossa Senhora de
Balsamão, podemos ler27:
As maravilhas, & milagres que a Senhora de Balsamão obra são infinitos, & supposto que são poucos os sinaes, que se vem delles, como são quadros, & peças de cera, he por falta de haver quem os sayba fazer: ha algumas mortalhas, & houvera muytas cousas mais desta qualidade, se houvera mais curiosidade, ou costume. Porèm ainda sem os sinaes, que servem de excitar a memoria, se referem muytos prodígios, porque foraõ muytos os alejados, que cobràraõ perfeytissima saúde; cegos, & outros enfermos de varias enfermidades, que recorrendo à Senhora cobràraõ, pela sua intercessaõ, tudo o que pediaõ (SANTA MARIA, 1716, p. 598).
As referências que citamos do Frei Agostinho nos fazem perceber que, de
fato, ao longo da história os ex-votos foram assimilados pela fé católica, a tal ponto
de um membro do clero escrever sobre eles sem desmerecer a prática, pelo
contrário, enaltecendo a devoção.
3.2 Ex-votos no catolicismo Brasileiro
Tanto no Brasil, colonizado pelos portugueses, como nos países latino-
americanos, colonizados pelos espanhóis, o catolicismo trazido por estes
“descobridores” foi o ibérico, marcado pela relação mágica com a fé, com forte
presença de elementos folclóricos.
Sobre a religião católica, que chegou ao Brasil por meio dos colonizadores, o
pesquisador José Bittencourt Filho, ao tratar da matriz religiosa brasileira, destaca a
27
Mantemos na citação abaixo a grafia original da obra.
99
magia como pano de fundo da fé dos colonizadores no século XVI. Citaremos um
trecho do autor que sintetiza esse pensamento:
A religião das massas era impregnada de uma visão mágica do mundo e de ingredientes folclóricos, e a cultura religiosa católica parece que apenas conseguiu encobrir as zangadas divindades pagãs com um verniz superficial. Assim, para as massas, quando os santos cristãos (tidos na conta de semideuses) estivessem insatisfeitos por algum motivo, podiam castigar os seres humanos, enviando doenças e pragas. Ao mesmo tempo quando estivessem benévolos, podiam promover a cura e o livramento. Os próprios sacramentos eram associados aos gestos, símbolos e objetos mágicos, remetidos que eram, por intermédio de associações conscientes e inconscientes, a antigas crenças pré-cristãs. De qualquer maneira, a descrença era algo absolutamente estranho na cosmovisão da época, as pessoas estavam sempre propensas a acreditar. Desse modo, as fronteiras entre os domínios natural e sobrenatural eram quase inexistentes, sobremodo quando se considerava que as maiorias mergulhadas na pobreza estavam inteiramente expostas às catástrofes naturais, às epidemias, à fome, e, pela falta de instrução, não dispunham de quaisquer explicações razoáveis para a condição em que se encontravam (BITTENCOURT
FILHO, 2003, p. 46-47).
Quando o autor fala do poder conferido aos santos pelos fiéis, podemos
entender um pouco mais a força do ex-voto que aproxima o fiel da entidade por meio
do agradecimento. Em se tratando de “algo” que pode reger a nossa vida, é melhor
ser próximo e “amigo” desta força espiritual.
O catolicismo ibérico encontrou no Brasil e nos países da América Latina
terreno propício para se consolidar. A religião dos povos indígenas, que aqui viviam
também, era marcada por esta visão mágica dos acontecimentos, dentro da lógica
religiosa de causa e efeito. Os indígenas, obrigados a se “converterem”, aportaram e
adaptaram as suas crenças com o catolicismo que eles estavam assumindo.
Posteriormente, os negros africanos, capturados em seus países de origem e
traficados ao nosso Continente como escravos, também sendo obrigados a se
“converterem”, incrementaram as suas antigas crenças na fé imposta:
Os índios com uma forte ligação com a natureza e os ancestrais, e os africanos com o culto e relação com suas divindades (orixás da umbanda e do candomblé). E foram eles que depois de “convertidos” se tornaram propagadores do catolicismo, longe muitas vezes das raízes dogmáticas do catolicismo oficial. Nasce assim uma forma híbrida de viver a fé católica, muitas vezes cheia de crendices e superstições (GOMES GORDO, 2015, p. 49).
100
Ainda sobre a hibridização da fé em nosso Continente, sobretudo no Brasil,
vemos que algumas práticas religiosas, como oferecer ex-votos aos santos, foram
impulsionadas pela união de culturas diferentes, mas que tinham em seu DNA a
relação mágica com as divindades. Sobre este tema escreveu o antropólogo Arthur
Ramos (1947, p. 125), no livro Introdução à Antropologia Brasileira (V. II) o
hibridismo dentro do catolicismo, tanto em Portugal antes da colonização quanto no
Brasil com a influência dos índios e africanos:
O catolicismo popular de fontes lusitanas é na realidade um ‘paganismo supérstite’ da frase de Sébillot, onde o ritual católico se contaminou com as lendas, crenças, costumes, ritual popular, superstições que deixam adivinhar reminiscências de velhos mitos e cultos. São ritos de fecundidade, de nascimento, etc., práticas mágicas, cultos funerários, folk-lore dos astros, dos meteoros, das águas, da terra, das pedras, vestígios enfim das religiões pagãs. Foi esse catolicismo popular celtibero que Portugal legou ao Brasil, onde por sua vez ele se desenvolveu incorporando fragmentos dos cultos
ameríndios e africanos aqui encontrados.
Os ex-votos, neste cenário propício, encontraram terreno fértil para se
popularizar e se enraizar em nossa cultura. Junto a esse cenário religioso, ainda
tínhamos as precariedades de vida das populações nos primeiros séculos da
colonização. O teólogo e historiador católico Riolando Azzi destaca neste período
histórico a força simbólica dos ex-votos, como uma forma de busca de proteção
diante das adversidades sociais e naturais:
A fragilidade da vida levava assim o homem a sentir-se pouco responsável por ela, reforçando o caráter de seu ‘predestino’, tão bem expresso nos ‘ex-votos’, como ‘ações de graça’, acumulados nas salas dos ‘milagres’, construídas ao lado dos santuários de devoção popular. [...] Em tudo isso, um aspecto é evidente: a necessidade manifestada pelo ser humano de uma proteção especial, a fim de que pudesse sair vencedor nesse tão instável jogo da vida. Dessa forma, os espíritos ‘superiores’ passaram a condividir com o homem a responsabilidade de sua vida individual, familiar e
social (AZZI, 1987, p. 62-63).
Os ex-votos no Brasil começaram a fazer parte da identidade religiosa
nacional. Mesmo com o passar do tempo e advento de novas tecnologias, a prática
votiva permaneceu em muitos casos intacta, pois ainda se preservam os tipos
101
tradicionais de ex-votos. Porém, podemos dizer também que houve uma adequação
dessa devoção com os novos tempos. A obrigação de agradecer uma graça
alcançada está presente no cotidiano, tanto do catolicismo popular quanto em outras
manifestações religiosas, que tem por base a nossa matriz religiosa brasileira. Mais
do que uma simples identidade religiosa, estamos falando de uma identidade
cultural.
3.3 Os ex-votos no catolicismo de hoje
Muitos estudos históricos, que contemplam os ex-votos como objetos de
estudo, muitas vezes os relacionam a uma realidade rural, como se a modernidade
ou o grande êxodo rural das décadas de 1970 e 80 tivessem afastado os fiéis dessa
prática devocional de se relacionar comunicativamente com suas divindades por
meio do oferecimento de ex-votos.
No período em que elaboramos este estudo, tivemos a oportunidade de visitar
muitos santuários, ermidas, cruzeiros, tanto em locais distantes (rurais) como em
grandes centros urbanos, e percebemos um grande fluxo de pagadores de
promessa. Observamos que alguns santuários criaram até salas de milagres e
museus para receber e, posteriormente, expor as peças votivas.
Santuários e Igrejas como o de Nossa Senhora Aparecida (Aparecida - SP);
de Nossa Senhora da Abadia (Romaria – MG); do Divino Pai Eterno (Trindade –
GO); Igreja Senhor do Bonfim (Salvador – BA); Igreja de São Francisco do Canindé
(Canindé – CE); Igreja de São Sebastião na cidade de Tambaú – SP, onde estão
enterrados os restos mortais do “santo popular” em processo de beatificação Padre
Donizetti; Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Juazeiro do Norte – CE,
onde se encontram os restos mortais do “santo popular”, que arrasta multidões,
Padre Cícero; dentre tantos outros locais, muitas peças encontradas se assemelham
aos ex-votos que estão em nosso imaginário histórico e cultural e que nos remete
aos ex-votos anteriores ao cristianismo, como partes do corpo confeccionadas em
diversos tipos de materiais. Encontramos também placas com o milagre descrito de
forma narrativa; pinturas com a cena da intervenção divina, e assim por diante.
102
Figura 17 - Ex-votos de diversos santuários no Brasil
Fonte: arquivo do autor
Porém, em muitas outras igrejas que visitamos, mesmo não sendo um centro
de peregrinação por excelência, os ex-votos podem até passar despercebidos, mas
com olhos atentos são detectados facilmente. São bilhetinhos aos pés do santo
agradecendo a graça alcançada; objetos em miniatura manifestando o favor
recebido.
103
Figura 18 - Ex-votos aos pés de Nossa Senhora da Cabeça – Igreja de Santa Luzia, São Paulo – SP
Fonte: Arquivo do autor
Citamos, como exemplo, duas igrejas de São Paulo, a Igreja Nossa Senhora
dos Homens Pretos, no Largo do Paissandu, onde em um altar lateral está a
imagem de Santa Ifigênia, aos seus pés muitas casinhas em miniatura, em que os
devotos agradecem a aquisição da casa própria. Também a Igreja de Santa Luzia na
rua Tabatinguera, onde os devotos depositam réplicas de cabeças de ceras aos pés
de Nossa Senhora da Cabeça, agradecendo aos livramentos dos males psíquicos,
dores de cabeça, depressões, entre outros. Nestes dois casos, vemos que os santos
padroeiros não são os santos que recebem os ex-votos. Esse fenômeno acontece
em igrejas espalhadas por todo Brasil, e também fora do Brasil, como é o caso da
Igreja Imaculado Coração de Maria, em Montevidéu no Uruguai, onde o santo que
recebe os ex-votos é São Pancrácio.
As placas são outra modalidade de ex-voto, muito presente no passado e
ainda comum em nossos dias, mas hoje com novo formato. Antes de mármore,
agora transformadas, muitas vezes, em banners, que não podendo ser colocados
dentro da igreja, são amarrados ao redor dos templos.
104
O exemplo que trazemos é da Igreja de Santa Cecília (São Paulo – SP).
Quase diariamente um banner diferente é colocado nas grades externas da igreja, e
o curioso é que os agradecimentos são destinados aos mais variados santos, como
São Judas, Santo Expedito, Nossa Senhora, etc. A prática dos ex-votos é viva e o
devoto encontra formas de concretizar sua promessa. Por ser uma igreja, o devoto
intui que aquele espaço é sagrado, e o seu santo de devoção o ouvirá, mesmo que
não seja depositado dentro do templo e mesmo que o templo não seja dedicado ao
santo da promessa.
Figura 19 - Ex-voto (Banner) Igreja Santa Cecília, São Paulo -SP
Fonte: Arquivo do autor
105
Outra prova de que a prática do ex-voto está muito presente em nossos dias
são as plataformas digitais utilizadas para dialogar com os santos de devoção. São
muitos os sites de paróquias e santuários que recebem relatos de graças
alcançadas por intercessão dos santos e de Nossa Senhora. Inclusive, muitas
páginas no facebook são criadas por devotos e conseguem milhares de seguidores,
mesmo não estando vinculadas a algum órgão institucional da Igreja Católica.
No facebook, por exemplo, citamos o caso de uma comunidade criada em
honra a Santo Expedito. A comunidade se chama Santo Expedito
(@santoexpeditooficial) e contava, na visita realizada para esta pesquisa em
(16/09/2017), com 40.243 seguidores. Vale destacar que esta comunidade não está
vinculada a nenhuma paróquia, é de iniciativa laica. As postagens quase sempre
estão relacionadas ao santo de devoção. Nos comentários, os devotos fazem seus
pedidos e também agradecem as graças recebidas.
No dia 20 de abril de 2017, a comunidade postou uma imagem de Santo
Expedito com o dizer: O Santo das causas impossíveis. Centenas de comentários
seguiram a postagem, muitos deles agradecendo favores recebidos (ex-votos),
apresentamos dois exemplos (sem identificar os autores):
Obrigada, obrigada, obrigada, obrigada! Obrigada por colocar em meu caminho uma pessoa disposta a oferecer ajuda. Obrigada por colocar essa pessoa justo quando clamei a ti em desespero!!! Obrigada, obrigada, obrigada!!!! Divulgarei e espalharei seu nome a todos que tenham fé, como sempre!!! Ave Santo Expedito! (F.N. – 27/07/2017). Eu venho agradecer a Santo Expedito pela intercessão junto a Deus... estou fazendo a novena e no terceiro dia meu pedido foi atendido. Amém. (V. C. – 24/06/2017)
Outra forma popular de agradecimento em nossos dias são os ex-votos
impressos no corpo, na forma de tatuagens. Com a inscrição no corpo, o fiel
manifesta o desejo de recordar por toda vida o milagre ou a graça recebida.
106
Figura 20 - Ex-voto (tatuagem)
Fonte: Arquivo do autor
Com estes exemplos, vemos que a herança religiosa do catolicismo popular
de oferecer ex-votos aos santos permanece viva e presente em nosso tempo, e que
com os novos tempos os devotos encontram formas “modernas” e midiáticas de se
comunicarem com a divindade por meio do ex-voto.
3.4 A presença dos ex-votos nas igrejas evangélicas
Pode parecer estranho falar de ex-votos nas práticas evangélicas, por conta
da iconoclastia que marca a identidade deste grupo cristão, especialmente no Brasil.
Porém, quando nos detemos nos detalhes de algumas práticas, percebemos que,
apesar do não uso da nomenclatura “ex-voto”, muitos dos rituais de agradecimento
em várias denominações evangélicas poderiam sim ser classificados como tais.
Considerando a dificuldade da classificação das igrejas protestantes
(evangélicas), devido à grande diversidade de grupos e às grandes diferenças entre
eles, daremos prioridade, nesta pesquisa, na análise de algumas práticas de
confissões neopentecostais que, nas últimas décadas no Brasil, são as que mais
cresceram em número de fiéis. Em seu livro, A Explosão Gospel, a pesquisadora
107
Magali do Nascimento Cunha, ao elencar, de forma sucinta, os critérios que
norteiam o pentecostalismo independente, também conhecido como
neopentecostalismo, escreve:
[...] que, sem raízes históricas na reforma do século XVI, surgiu (e surge ainda hoje) de divisões teológicas ou políticas nas “denominações históricas” a partir da segunda metade do século XX. Tem como especificidades sua composição em torno de uma “liderança carismática”, a pregação da Teologia da Prosperidade e da Guerra Espiritual, a prática constante de exorcismo e curas milagrosas e o rompimento com o ascetismo pentecostal histórico. Sua enumeração é dificílima, dada a profusão constante de novas igrejas: entre outras, Deus é Amor, Brasil para Cristo, Casa da
Bênção e Universal do Reino de Deus (CUNHA, 2007, p. 15).
Os pesquisadores do campo das Ciências da Religião são unânimes ao
afirmarem que as igrejas neopentecostais estão ancoradas em elementos simbólicos
da Matriz Religiosa Brasileira, ou seja, podemos analisar o fenômeno dessas
religiões como hibridismo religioso. O estudioso das religiões, Leonildo Siqueira
Campos, discorre sobre este fato no capítulo As Origens Norte-Americanas do
Pentecostalismo Brasileiro, que compõe o livro Religiosidade Brasileira. Leonildo
apresenta a problemática citando autores que pesquisam sobre o tema, inclusive
José Bittencourt Filho:
Há uma discussão em andamento a respeito da potencialidade sincrética do pentecostalismo e sobre ela encontramos, entre outras, as observações de Jean-Pierre Bastian (1997, p. 206), que considera o pentecostalismo na América Latina como “catolicismos de atribuições”. Por sua vez, José Bittencourt Filho (2003, p.115) afirma estarmos diante de uma das manifestações possíveis da “matriz religiosa brasileira”. em ambos os casos o modelo analítico é o da continuidade. Por isso há autores que perguntam: “é protestante o novo pentecostalismo brasileiro?” Um outro mais radical vai mais longe e questiona: “é pentecostal o neopentecostalismo brasileiro?”, usando como exemplo a Igreja Universal do reino de Deus e seu enorme poder de assimilação da cultura católica e das religiões mediúnicas. [...] Tais observações nos levam a uma afirmação inicial de que manifestações culturais do pentecostalismo, especialmente na África e na América Latina, são continuidades de uma “religiosidade matriarcal”, que já se faz presente em nossas culturas desde os tempos anteriores à conquista europeia. No entanto, essa síntese pentecostal foi enriquecida posteriormente com a chegada das culturas africanas e das religiões mediúnicas, gerando-se com isso novas formas de manifestação, principalmente agora com o acirramento da modernidade, do processo de secularização, do pluralismo religioso, da invasão do espaço público pelas religiosidades contemporâneas e da chegada da pós ou da alta modernidade (CAMPOS, 2012, p. 145,146).
108
Diante da complexidade da situação atual de muitas igrejas evangélicas,
sobretudo as neopentecostais, e tendo em vista o sincretismo em que a maioria
delas está imersa, podemos dar um passo além, buscando referências concretas da
prática dos ex-votos por estas denominações evangélicas. Embora José Bitterncourt
Filho não trabalhe especificamente sobre os ex-votos em seu livro Matriz Religiosa
Brasileira, podemos entender e perceber a presença dessa prática quando o autor
escreve:
As denominações que integram o Pentecostalismo Autônomo, oferecem uma proposta religiosa formulada em três vertentes independentes: cura, exorcismo e prosperidade. Além disso, apostam numa oferta incessante de bens simbólicos e não investem na formação da comunidade. Em vez de comunidades, o Pentecostalismo Autônomo investe no coletivismo, bem ao modo da cultura de consumo de “mercado total”. [...] Outro traço marcante é a exploração sistemática da polissemia dos símbolos da Religiosidade Matriarcal. Muito além dos limites demarcados pela ‘ortodoxia’ pentecostal. Disso decorre uma ampla e diversificada oferta de bens simbólicos, subordinada a preferências e conveniências individuais. Estamos perante um autêntico “supermercado religioso”, no qual bens e objetos são expostos e oferecidos para suscitar e satisfazer os anseios de “consumidores” (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 195,196).
As três vertentes em que as denominações neopentecostais estão ancoradas:
cura, exorcismo e prosperidade, precisam de testemunhos que ratifiquem as curas
realizadas, a saber: libertação espiritual que o fiel passou e a prosperidade
concedida a ele após sua adesão espiritual. Um dos pilares das igrejas
neopentecostais são os milagres, para dar visibilidade publicitária ao Deus que
opera maravilhas (por intermédio, quase sempre, de um determinado pastor e de
sua instituição religiosa), os testemunhos de pessoas agraciadas legitimam as tais
igrejas e pregadores.
Podemos entender muitos desses testemunhos como ex-votos, pois existiu
um elemento antes, uma oração, um pedido. Nesta oração, o fiel faz o seu pedido
(não direcionado aos santos ou a Nossa Senhora, como é comum no catolicismo,
mas a Jesus Cristo ou a Deus); o pedido é acompanhado de um compromisso
espiritual (promessa), de tornar público o poder de Deus que realizou o milagre.
Constituímos, dessa maneira, a estrutura do ex-voto.
109
Não estamos falando da concepção de ex-votos, quase sempre entendidos
dentro de “salas de milagres” ou aos pés dos santos. Estamos falando de
comunicação simbólica com a divindade por meio do agradecimento, em alguns
casos, o simples testemunho oral já poderia ser entendido como ex-voto, mas a
maioria dos testemunhos orais é “certificado” com a materialidade: exame médico e
fotos mostrando o antes e o depois; muletas e cadeiras de rodas, óculos, cópias de
carteiras de trabalho assinadas e colecionadas nos templos, além de muitos outros
exemplos.
Boa parte destes testemunhos proferidos nos cultos são gravados em vídeos,
sendo televisionados (muitas vezes) e postados em websites das igrejas. O acervo
destes relatos acaba se tornando uma espécie de “sala de milagres virtuais”, cujo
acesso a estes testemunhos pode ser feito de qualquer lugar do mundo.
Praticamente todas as denominações neopentecostais mantêm no Youtube
um canal em que são reproduzidos momentos dos cultos. Nestes veículos, os
testemunhos de milagres ganham destaque. Daremos atenção a duas igrejas
evidenciadas pelo grande número de fiéis e por uma presença midiática significativa:
a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Mundial do Poder de Deus. As duas
mantêm os seus canais no Youtube com atualizações diárias.
O canal da Igreja Universal do Reino de Deus (Canal Oficial da TV Universal
no Youtube) contava na última visita virtual realizada para esta pesquisa
(16/09/2017) com mais de 200 mil inscritos, em um total de quase 45 mil
visualizações. Dentre os vídeos destacados, há uma seleção que se chama
“Testemunho de Fé”, cuja maioria é composta de relatos (proferidos nos cultos) de
fiéis testemunhando a ação de Deus em suas vidas. As graças podem ser
classificadas dentro do tripé: cura, exorcismo, prosperidade.
Em alguns casos, o canal faz uma compilação de vídeos, acompanhando o
desenvolver da história do agraciado. Como é o caso do vídeo intitulado “Curada de
câncer de mama pela fé” (postado em 14/08/2017, com 6:22 minutos de duração),
em que uma senhora de meia idade testemunha a graça de ter sido curada de um
câncer “severo” de mama. O vídeo é dividido em três partes: 1) começa com a
chamada “antes”, quando a mulher testemunha pela primeira vez tentando esconder
110
um dos seios que anatomicamente está desfigurado com um “câncer exposto”. Ela
faz o compromisso público de voltar, caso melhore, embora o pastor já tenha dado a
garantia de que ela está curada; 2) chamada, indicando que se passaram quinze
dias, nesta parte do vídeo a mulher está mais confiante, disse que melhorou
bastante desde a última vez que esteve ali. Dessa vez, ela não tenta esconder o seu
seio; 3) mais uma interrupção no testemunho e vamos para a terceira e última parte.
Um mês depois, a mulher sorridente diz não sentir mais nada, que foi curada e que
os médicos estão surpresos. Muitas fotos são mostradas, dessa vez expondo o seu
tumor no seio. As fotos se repetem em vários ângulos (com destaque para o antes e
depois do milagre). Em alguns momentos do vídeo, ela diz que está obedecendo ao
voto, ao compromisso.
Na página oficial da Universal na internet (universal.org) ganha destaque um
link intitulado A Cura pela Fé – são muitos os relatos e testemunhos. No final dos
relatos, encontramos uma mensagem comum: “A Universal recebe semanalmente
pessoas em busca de um fim para suas dores, físicas e espirituais. São centenas de
testemunhos de quem recebeu a cura no Ritual Sagrado, no Templo de Salomão,
e em outros templos da Universal”.
Com relação à Igreja Mundial do Poder de Deus, não podemos falar de um
canal específico no Youtube, pois são vários canais, inclusive regionalizados,
mostrando os milagres e a programação das igrejas locais, como é o caso do canal
IMPD SP (regional de São Paulo – SP), que conta na última visita virtual realizada
para esta pesquisa (16/09/2017) com cerca de 40 mil inscritos. A maioria dos vídeos
mostra a atuação do apóstolo Valdemiro Santiago, o fundador da denominação, na
realização de curas e as materialidades (provas) de tais milagres.
Em um dos vídeos do canal IMPD SP, temos um relato de cura bastante
emblemático, o de um homem curado da lepra, o vídeo se chama “IMPD Milagres –
homem curado de lepra (27/03/2012)”. Em pouco mais de 13 minutos de duração, o
apóstolo Valdemiro intercala imagens do homem curado. O agraciado fica atrás do
pastor que relata a cura, as câmeras somente dão destaque para o rosto do homem
(que chora muito), quando é preciso que a história seja confirmada. O homem está
sem camisa, provando estar “limpo”, e quase sempre com os braços erguidos em
sinal de louvor. Conforme Valdemiro narra a história, são intercaladas imagens do
111
homem antes de ser curado, com o corpo todo chagado e vertendo sangue pelos
poros. Como prova material da doença, são exibidas imagens de uma camiseta toda
ensanguentada que o homem usava antes de ser curado. Também é destacada
uma camisa “azul” do apóstolo que o abraçou antes da cura, e o sangue do homem
ficou impregnado em sua camisa. O senhor, que agradecia a cura, deixa escapar
em alguns momentos que a obra foi realizada pelo apóstolo. O que nós entendemos
como voto (na constituição de uma promessa) é que, neste relato de cura, tanto
Valdemiro quanto o agraciado utilizam o termo “desafio”, foi “lançado um desafio
para Deus”. E agora eles testemunham o poder de Deus que não desampara os
seus fiéis quando se devotam a Ele, por meio da igreja. Em vários momentos, o
apóstolo fala em tom de choro, dizendo ser perseguido (pela imprensa, por outras
igrejas), mas que diante de tantos milagres (operados por intermédio dele), a obra
não poderia acabar. A imagem da camisa do apóstolo ensanguentada aparecia (em
vários flashes) como prova concreta do milagre realizado na vida daquele homem.
No website da Igreja Mundial (impd.org.br), os visitantes são convidados a
assistirem aos milagres que são realizados naquela denominação religiosa. Há um
link com o seguinte título: “Milagres” – ao lado dos relatos que abrem a tela
encontramos um outro link: “Veja esses milagres” – e os relatos estão subdivididos
da seguinte forma: Cura; Familiar; Financeiro e Salvação. Ao pé da página,
encontramos uma ficha para que os agraciados possam relatar o milagre recebido. A
ficha se chama “Envie Seu Milagre”, com campos para preencher com os seguintes
itens: título do milagre; data do milagre; local do milagre; espaço para o agraciado
enviar foto e termina com a descrição do milagre.
112
Figura 21 - Ficha para envio do testemunho
Fonte: Igreja Mundial do Poder de Deus - Reprodução
Não é habitual que os templos evangélicos tenham “salas de milagres”, como
vemos em templos católicos, porém há uma exceção. Estamos falando da Igreja
Pentecostal Deus é Amor, fundada em 1962, por David Martins Miranda. A sede da
Igreja Deus é Amor na cidade de São Paulo possui um local onde os fiéis depositam
seus agradecimentos. Subindo a escadaria principal do templo, do lado direito,
existe uma espécie de nicho, com vários objetos deixados neste local como prova
concreta da ação de Deus na vida dos congregados. A tipologia dos objetos é
praticamente idêntica àquela encontrada nas igrejas católicas.
113
Figura 22 - Ex-votos – Igreja Deus é Amor, São Paulo - SP
Fonte: Arquivo do autor
Muitas muletas e próteses de vários tipos, exames médicos, cartas com a
descrição do milagre, fotos, roupas, compõem o acervo religioso. Existe uma
prateleira com dezenas de vidros de diversos tamanhos, contendo substâncias
estranhas, que são chamados “testemunhos de libertação”. Quando o fiel recebe a
bênção do pastor, ou quando ora pedindo a libertação espiritual ou física,
geralmente o momento da libertação é acompanhado com o ato de vomitar. O
vômito, ou aquilo que é expelido, representa o mal que saiu da vida daquela pessoa,
pode ser um espírito maligno que estava possuindo o fiel, como pode ser também a
eliminação de alguma doença, como câncer, por exemplo. Esta substância é
recolhida e colocada em vidros. Muitos dos vidros estão identificados, com o nome e
a graça que o crente recebeu.
Quando o missionário David Miranda ainda era vivo (falecido em 21/02/2015),
a igreja promovia a cerimônia em diferentes locais do Brasil. O convite impresso
para tais eventos continha a foto do missionário rodeado de “ex-votos”,
demonstrando que a oração dele era eficaz e realizava milagres.
114
Figura 23 - Milagres na Igreja Deus é Amor
Fonte: Informe Publicitário
O site oficial da Igreja Deus é Amor (ipda.com.br) contém o link “Voz da
Libertação”, nele é possível ler ou ouvir os testemunhos, também há a possibilidade
de relatar um milagre. As expressões “fazer um voto”; “fiz meu voto”; “cumprir o
voto”, aparecem em muitos relatos, como nestes abaixo, em que estamos diante do
que neste trabalho estudamos como ex-votos:
Meu pai passou mal no trabalho, então levaram-no ao hospital. A partir daí, eu fiz um voto, rogando a Deus pelo livramento em favor do meu pai, prometendo-Lhe contar a bênção. Graças a Deus, os
médicos realizaram exames, e não constataram nada. Esse é o meu pequeno testemunho. Deus os abençoe! (S. R. M. – São Paulo –
SP).
Em primeiro lugar, agradeço a Deus pela vitória. Em segundo, desejo cumprir com meu voto de contar o testemunho. Há alguns
dias, eu fiz um pedido de oração em favor da minha filha Vanessa, para Deus abençoá-la nas provas da faculdade e, também, conseguir pós-graduação gratuita e trabalho em sua área. Deus atendeu o meu pedido, pois ela conseguiu todas as três vitórias. Deus abençoe essa
igreja! (S. D. C. S. – Santo André – SP).
115
O pedido é acompanhado com um “voto” (promessa) de tornar pública a
graça recebida. Vemos isso nos exemplos acima, como também em quase todos os
testemunhos orais que são televisionados e postados na internet. Com base nestas
evidências, é possível afirmar que estamos diante da essência do significado de ex-
voto.
3.5 Ex-votos nas religiões de matriz religiosa africana
A escravidão no Brasil se consolidou como um “mercado” promissor a partir
da primeira metade do século XVI. A escravidão negra foi uma prática comum no
Continente Americano. Africanos de diferentes tribos, com culturas diferentes, foram
aprisionados e traficados. No Brasil, destaca-se o tráfico de dois grupos étnicos, os
sudaneses (Nigéria, Daomé, Costa do Marfim) e os bantos (Congo, Angola e
Moçambique). Foram 5,5 milhões de negros trazidos à força para o país. Segundo
os cálculos, 12% deles não desembarcaram aqui, estima-se que mais de 660 mil
morreram antes do fim da viagem. Estes grupos tinham suas próprias culturas,
inclusive religiosas28.
Os negros que aqui chegavam eram obrigados a assumirem uma fé que lhes
era estranha, o catolicismo, religião oficial da coroa portuguesa. O processo de
conversão não era natural, mas imposto. Muitos africanos, de fato, se converteram e
viveram uma profunda fé católica, sobretudo pelas assimilações feitas entre o culto
católico e as religiões africanas. O antropólogo Luis Nicolau Parés (2013, p. 111),
cita a devoção aos santos católicos como um princípio de assimilação, que se
baseia no “complexo da promessa”, uma relação interpessoal do fiel com sua
divindade espiritual, assemelhando-se muito com as relações indivíduos/divindades
na cultura africana.
Porém, era impossível obrigar que os negros se convertessem em sua
totalidade, alguns não aderiram interiormente à fé católica. Houve então certas
“acomodações” na forma de crer, processo que também pode ser chamado de
hibridização, ou ainda “sincretismo”. Os negros, agora cristãos, impossibilitados de
participarem das confrarias frequentadas pelos brancos, criavam suas próprias
28
Sobre as expressões religiosas da etnia banto, tratamos no capítulo segundo desta tese.
116
confrarias e irmandades religiosas, muitas delas camuflavam em seus cultos
elementos das religiões originárias da África. Dessa forma, a prática dos ex-votos
nas religiões de matriz africana no Brasil começa a se desenhar.
O antropólogo Parés, no livro A formação do Candomblé, escreve sobre a
importância das irmandades na preservação e resistência da cultura religiosa
africana:
Parte dos africanos envolvida nas irmandades, talvez a maioria, não sofria uma conversão tão radical, eles podiam adiciona, muitas vezes apenas superficial, certas crenças e hábitos católicos àqueles aos quais foram educados na África, estabelecendo paralelismos ou relações conceituais, por vezes até identificações, entre os dois sistemas referenciais. [...] Desse modo, com muita frequência, as irmandades encobriam práticas que não se ajustavam aos cânones da teologia católica: os calundus. As redes sociais dos negros que se articulavam nas irmandades católicas eram as mesmas que podiam garantir a organização de batuques e outras práticas religiosas que os olhos dos africanos possuíam tanta eficácia – e para alguns até mais – quanto à devoção aos santos católicos. [...] O sincretismo afro-católico do Candomblé contemporâneo encontra raízes nessa duplicidade de práticas surgidas ainda no século XVII e que se desenvolveram principalmente no século XVIII (PARÉS, 2013, p.
111).
Hoje há duas principais ramificações das tradições africanas em formato
religioso: o Candomblé e a Umbanda29. Tanto uma como a outra estão fortemente
influenciadas pelo sincretismo afro-católico - a ligação simbólica entre os elementos
do catolicismo, sobretudo popular, e as religiões de matriz africana. Relação
perceptível e, por vezes, estes elementos chegam a se confundirem.
É difícil precisar a origem do Candomblé. Vários autores como Bastide (2001),
Santos (1988) e Verge (1981) dizem que a cosmovisão religiosa do Candomblé foi
sendo construída com elementos culturais e religiosos de várias culturas africanas e
também com a integração com os simbolismos dos povos indígenas e do catolicismo
colonial. A base religiosa do Candomblé, bem como da Umbanda, é a fé nos orixás
que regem a vida dos fiéis. O site ‘ocandomblé’ apresenta uma definição do que
sejam os orixás:
29
Estamos diante de duas forças religiosas bastante complexas. Nosso intuito, neste trabalho, não é desvendar a história ou a teologia de ditas religiões de matriz africana, mas encontrar elementos, sobretudo, na Umbanda, que possam ser associados aos ex-votos.
117
Os orixás são entidades africanas que correspondem a pontos de força da Natureza e os seus arquétipos estão relacionados às manifestações dessas forças. As características de cada Orixá aproximam-os dos seres humanos, pois eles manifestam-se através de emoções como nós. Sentem raiva, ciúmes, amam em excesso, são passionais. Cada orixá tem ainda o seu sistema simbólico particular, composto de cores, comidas, cantigas, rezas, ambientes, espaços físicos e até horários (OCANDOMBLÉ, 2008).
Poderíamos traçar um paralelo entre as oferendas aos orixás com base no
Candomblé, e os ex-votos, porém devido à complexidade dessa simbólica religião,
com suas várias ramificações no gesto da oferenda, inclusive contemplando o
sacrifício animal, iremos nos deter na prática religiosa umbandista, que embora
sejam diferentes estão ligadas por princípios básicos.
Para este estudo iremos destacar algumas ideias de Rubens Saraceni, que
em vida escreveu mais de oitenta livros sobre o tema antes de falecer no ano de
2015. Foi também professor de Teologia Umbandista, e no seu livro Fundamentos
Doutrinários da Umbanda apresenta um panorama geral sobre a Umbanda e o seu
culto.
A Umbanda nasceu no Brasil com elementos multirreligiosos. Sobre a sua
origem, Saraceni (2015) escreve que a data estabelecida para o surgimento dessa
religião se deu em 15 de novembro de 1908, em um centro de estudos kardecista30.
O jovem Zélio Ferdinando de Moraes, movido fortemente pela mediunidade,
incorporou o espírito de um índio brasileiro com o nome de Caboclo das Sete
Encruzilhadas, porém a forma como o espírito se apresentou desgostou os membros
da sessão espírita. Antes de o espírito sair do corpo de Zélio, ele teria dito que
voltaria no dia seguinte e especificou que seria na casa do médium. Assim se
concretizou, no dia 16, o espírito novamente incorporou e avisou a todos os
presentes: “Sou o Caboclo das Sete Encruzilhadas e vim fundar uma nova religião!”.
Revelou inclusive que o nome da nova religião seria “Umbanda”. A palavra
Umbanda vem da língua dos povos bantos (Mbanda), significa dentro do universo
banto: curador, feiticeiro, sacerdote, chefe do culto.
30
O Kardecismo é uma doutrina espírita (crença na reencarnação). Sua fundação se deu na metade do século XIX, pelo pedagogo francês Hippolyte León Denizard Rivail, que utilizava o pseudônimo Allan Kardec. A doutrina se espalhou rapidamente por todo mundo. Anos após a sua fundação, começaram a surgir movimentos religiosos no Brasil.
118
A religião, segundo Saraceni, é monoteísta. Deus é o Divino Criador Olorum,
ele é o criador de tudo, inclusive dos orixás (seres divinos) que não se encarnaram
na terra, mas são criaturas espirituais ligadas à natureza com características
próprias de personalidade. Diferente do Candomblé, os orixás na Umbanda não
incorporam, porém os orixás têm os seus Guias e Entidades, estes sim fazem o
trabalho da incorporação na Umbanda.
Acredita-se que cada pessoa que nasce recebe a forte influência de algum
dos orixás que será o seu protetor por toda vida. Os orixás, tendo personalidade,
possuem os seus gostos de comida, de cores, cada um habita em um local próprio
conforme sua identidade. Apresentamos os principais orixás da Umbanda:
Oxalá – Depois de Olorum ele é o maior. O ar é o seu elemento natural. Foi
ele que criou o ser humano, e também é ele que decreta o fim da vida.
Oxum – É a senhora das águas doces, dos rios e das cachoeiras. É mãe e
modelo de mãe. Orixá da fecundidade e fertilidade.
Ogum – Orixá guerreiro, protetor das perseguições espirituais e materiais.
Pelo sincretismo é associado a São Jorge.
Iemanjá – É a rainha do mar e mãe de todos os outros orixás. Ampara a
maternidade, além de proteger a vida marinha, protege o lar e a família.
Xangô – Orixá da justiça (causa e efeito). Castiga os que merecem e faz
justiça aos que atuam de forma correta, resolve também situações difíceis.
Iansã – Cuida dos ventos e tempestades, é a rainha dos raios, é conhecida
também como a guardiã de todos os mortos. Ela tem o poder de desfazer “feitiços”.
No sincretismo religioso é associada a Santa Bárbara.
Oxossi – Senhor das matas e dos caboclos, é tido como um caçador de
almas. Também protege os animais.
Omulú – É o orixá da saúde, cuida dos doentes, dos hospitais e também dos
cemitérios. É um orixá temido por lidar com a morte.
119
Nanã – considerado o orixá mais velho de todo o panteão africano. Orixá do
fundo dos rios - foi de seu barro que os seres humanos foram feitos. É a “mãe” do
destino, seu habitat é o cemitério.
Os orixás, na Umbanda, recebem oferendas, por sinal estas são uma das
grandes características dessa religião. Cada oferenda, segundo Saraceni (2015),
tem uma finalidade. Ele as subdivide da seguinte forma: 1) agradecimento; 2) pedido
de ajuda; 3) desmagiamento; 4) descarrego; 5) propiciatória; 6) purificadora; 7) ritual
de firmeza de forças na natureza; 8) ritual de assentamento de forças e poderes
espirituais.
Em nosso trabalho de associar certas práticas religiosas com os ex-votos, não
podemos seguir um caminho cientificamente equivocado e defender que todo tipo de
oferenda seja ex-voto. Não, não são. Porém, existe sim, de forma muita plausível, a
possibilidade de se fazer, em alguns casos, uma leitura dessas oferendas como ex-
votos, na linha do que estamos apresentando como tal neste estudo.
Das oito subdivisões que o autor apresenta para as finalidades das oferendas,
a primeira delas é a oferenda de agradecimento. Por tudo aquilo que já
desenvolvemos sobre o tema dos ex-votos, podemos afirmar que uma oferenda de
agradecimento pode ser considerada um ex-voto. Na descrição do que seja uma
oferenda de agradecimento, Saraceni escreve:
Essa oferenda é feita em função do auxílio já recebido. Muitas
vezes estamos envoltos em dificuldades de tal importância que nos ajoelhamos e ali, em nossa fé, invocamos a deus e algum dos seus mistérios ou divindades e lhe pedimos que nos ajudem, que
depois lhes ofertaremos algo em agradecimento.
Uns fazem promessas; outros prometem uma oferenda na natureza;
outros prometem dar algum auxílio aos necessitados, etc.
Quando são promessas, seu cumprimento é questão de foro íntimo e, após cumpri-las, as pessoas sentem-se melhores e em paz com Deus e com a divindade invocada.
[...] cumprir o que foi prometido não é dar ou fazer por Ele (Deus) e
elas, mas fazemos algo para nós mesmos.
Deus e as divindades não comem, mas lhes ofertarmos uma “ceia ritual” estamos compartilhando nosso sucesso e nossa vitória,
atribuindo-lhes o apoio para que elas acontecessem.
120
Ali, no momento da “comemoração”, estamos dizendo de forma simbólica que sem Seu auxílio e o delas não teríamos tido sucesso; estamos agradecendo-lhes e estamos dando prova de nossa fé em seus poderes, reverenciando-os com o que
prometemos (SARACENI, 2015, p. 243,244, grifos nosso).
Temos, neste texto, uma descrição que tem estreita relação com o que neste
trabalho afirmamos ser um ex-voto. Existe a dificuldade; a fé que leva o indivíduo a
se relacionar com alguma entidade que pode resolver seu problema; temos a
promessa com o voto; a intervenção divina; o agradecimento do fiel e a simbologia
do pagamento da promessa (ex-voto – o voto colocado para fora).
É muito difícil especificar se uma oferenda é de agradecimento ou faz parte
de outra finalidade. As oferendas se confundem, pois é ofertado ao orixá ou à
entidade religiosa justamente aquilo que ele gostaria de receber, e as ofertas são
semelhantes tanto para agradecimento quanto para pedidos e outros fins.
As oferendas que são de agradecimento são realizadas em vários espaços
físicos, tudo depende muito da personalidade do orixá. Algumas oferendas deixadas
à beira de rios são para Oxum; oferendas para Ogum podem ser colocadas em
caminhos e encruzilhadas; para Oxossi, em bosques e assim por diante.
É comum, ao visitarmos os cemitérios no Brasil, percebermos que no cruzeiro
além das velas dos fiéis de várias crenças, encontramos também uma série de
oferendas. São vários os orixás que recebem suas oferendas nos cemitérios, como
por exemplo: Nanã e Omolu.
Como parte do processo de pesquisa de campo para o desenvolvimento
desta tese, visitamos vários cemitérios e em todos os cruzeiros havia oferendas
típicas da Umbanda. No cemitério da Saudade em Campinas - SP, além das
oferendas no cruzeiro que fica do lado externo do cemitério, nos chamou a atenção
um túmulo dedicado ao orixá Exu. Uma matéria no jornal Correio Popular trata da
reforma do túmulo, pois segundo a reportagem, o local é bastante visitado por
pessoas que levam suas oferendas:
Na verdade não tem ninguém enterrado naquele espaço. De acordo com o presidente da Associação dos Religiosos de Matrizes Africanas de Campinas e região, João Carlos Galerani, o pai Joãozinho, o espaço foi doado há décadas por um senhor que teria
121
alcançado uma graça. “Fizemos o fundamento da energia do Tranca Ruas e esse é um espaço de trabalhos e pedidos dos religiosos de matrizes africanas”, explicou Galerani. Como é um local onde são colocadas diversas oferendas, muitas delas incluindo alimentos, o presidente da associação informou que será colocada, no dia do evento, uma placa pedindo para que os frequentadores conservem o local limpo. “Esse é um patrimônio, e estava muito depredado”, frisou. Para o dia 16 serão convocados aproximadamente 70 terreiros de Campinas e região. Uma queima de fogos está programada. Na manhã de ontem, o túmulo de Exú era um dos mais visitados. Os frequentadores levam bebidas alcoólicas, velas e demais objetos para a entidade (CORREIO
POPULAR, 2016).
No dia em que visitamos o local, encontramos praticamente todos os tipos de
oferendas que são recomendadas ao orixá Exu (Tranca Ruas): aguardente;
conhaque; frutas variadas; comidas, como farofa com miúdos de frango, bife bovino
frito e também cru, parecendo estar temperado com azeite. E outros tipos de
oferendas para outros orixás, como perfume; pipoca; copos com água; charutos;
velas de várias cores; bilhetes.
Figura 24 - Oferendas para o orixá Exu – Cemitério da Saudade – Campinas - SP
Fonte: Arquivo do autor
122
No cemitério do Araçá, na cidade de São Paulo – SP, encontramos o túmulo
dos fundadores da Associação Brasileira de Umbanda (Dona Felícia e Seu
Estanislau). À semelhança dos “santos populares31” enterrados em cemitérios, o
túmulo está repleto de ex-votos dos mais variados, como: placas de agradecimento
(bilhetes e cartas) e vários tipos de comidas (doces e frutas).
Dentre os orixás destacados na cultura religiosa brasileira, podemos citar a
Rainha do Mar Iemanjá. É comum as pessoas fazerem suas oferendas ao longo de
todo ano, mas, principalmente, o fazem na virada de 31 de dezembro para o dia 1 de
janeiro. Recorrem a essa prática tanto adeptos da Umbanda e do Candomblé como
pessoas que não professam essa fé, mas seguem uma tradição religiosa
popularizada. Outras datas importantes para os devotos de Iemanjá são os dias
dedicados a ela, 2 de fevereiro (para o Candomblé) e 15 de agosto (para a
Umbanda). São vários os presentes (oferendas) que Iemanjá “gosta de ganhar”:
Toalha branca ou azul-claro; velas branca e azul-claro; fitas branca ou azul-claro; linhas branca ou azul-claro; pembas branca ou azul-claro; flores (rosas brancas, palmas brancas, lírio branco); frutas (melão em fatias, cerejas, laranja lima, goiaba branca, framboesa); bebidas (champanhe de uva e licor de ambrósia); comida (manjares; peixe assado; arroz doce com bastante canela em pó (SARACENI, 2015, p. 249,250).
Na cidade de Salvador, capital da Bahia, existe na praia do Rio Vermelho uma
casa à beira-mar, dedicada a Iemanjá. Tanto dentro da casa como nas margens da
praia é comum vermos essas oferendas. Além das oferendas tradicionais, os
devotos, sabendo da beleza física do orixá que tem longos cabelos pretos, oferecem
também pentes e espelhos, muita água de cheiro, colares e coroas imitando joias e
objetos de maquiagem. Muitas das oferendas são colocadas em barquinhos azuis e
brancos que são depositados no mar. As oferendas a Iemanjá estão tão presentes
em nossa cultura que muitos artistas plásticos reproduzem essa devoção.
31
Santos Populares são os santos “canonizados” pelo povo, em quase todos os cemitérios espalhados pelo Brasil, é possível encontrar túmulos de pessoas que são consideradas santas, com poder de fazer milagres. Os túmulos desses “santos” recebem grande quantidade e variedade de ex-votos. Um caso curioso e de expressiva devoção no Brasil é do santo popular “Menino da Tábua”, no interior de São Paulo, na cidade de Maracaí. Outro exemplo é do “Motorista Gregório” no Piauí, descrito no livro “A Construção de um Santo – caso motorista Gregório”, resultado da dissertação de mestrado em Folkcomunicação de Iury Parente Aragão.
123
Figura 25 - Pintura de Camilo Tavares (Festa de Iemanjá)
Fonte: Printerest.com
Como já dissemos, é difícil precisar se as oferendas são de agradecimento
(ex-votos) ou para outra finalidade, mas como as oferendas para os diversos fins
são as mesmas, é possível deduzir que muitas delas são de agradecimento.
Com estas informações, concluímos este capítulo. Nosso objetivo no quarto e
último capítulo de nossa tese é revisitar a teoria da Folkcomunicação, sobretudo no
que concerne aos estudos dos ex-votos, e a partir da pesquisa que fizemos
proporemos a atualização da classificação da tipologia criada pelo pesquisador
Jorge González.
124
CAPÍTULO IV
NOVAS TIPOLOGIAS DE EX-VOTOS
O estudo acerca dos ex-votos dentro da corrente de pesquisa denominada
Folkcomunicação é de suma importância. A Folkcomunicação nasceu de uma
concepção pioneira de Luiz Beltrão, de que a Comunicação Social também pode ser
entendida e estudada além das grandes mídias. Beltrão desejou aproximar as
manifestações culturais populares, de modo especial o folclore, dos estudos
acadêmicos em Comunicação Social.
É considerado a gênesis da Folkcomunicação um artigo de Luiz Beltrão sobre
os ex-votos. O texto foi publicado no ano de 1965 na revista Comunicação &
Problemas. O título do artigo intitulado O ex-voto como veículo jornalístico revela a
intenção do autor de sair do senso comum ao pensar em meios comunicacionais,
abrindo, dessa forma, novas possibilidades acadêmicas.
O primeiro parágrafo do artigo de Beltrão já busca definir essa nova forma de
pensar a comunicação que, anos depois, recebeu do próprio autor o nome de
Folkcomunicação:
Não somente pelos meios ortodoxos (a imprensa, o rádio, a televisão, o cinema, a arte erudita e a ciência acadêmica) – que em países como o nosso – de elevado índice de analfabetos e incultos, ou em determinadas circunstâncias sociais e políticas, mesmo nas nações de maior desenvolvimento cultural – não é somente por tais meios e veículos que a massa se comunica e a opinião pública se manifesta. Um dos grandes canais de comunicação coletiva é, sem dúvida, o folclore (BELTRÃO, 2013, p. 229).
Embora o artigo seja sobre o ex-voto como veículo jornalístico, abriram-se
com ele janelas acadêmicas multidisciplinares de estudos em comunicação, tendo
por base a cultura popular.
4.1 Ex-voto na Folkcomunicação
Tendo a Folkcomunicação nascida de um estudo de seu próprio criador,
sobre os ex-votos, podemos dizer que este tema é de grande relevância aos
125
pesquisadores que seguem esta linha de abordagem. Luiz Beltrão faz uma análise
dos ex-votos tentando descobrir não o que já se sabia sobre eles, como por exemplo
seu formato estético, ou sua dimensão cultural. Beltrão procurou saber o que eles
“diziam” e como eles comunicavam.
O pesquisador José Marques de Melo, ao analisar a relação estabelecida por
Beltrão, acerca dos ex-votos e da Comunicação Social, escreve em seu livro Mídia e
Cultura Popular:
Luiz Beltrão (1965) define o ex-voto como objeto ‘que se oferecem nas capelas, igrejas, salas de milagres ou cruzeiros, em ação de graças por um favor alcançado do céu’. Trata-se de ‘manifestação folclórica’ geralmente entendida como ‘expressão artística’ ou percebida através de sua ‘finalidade diversional’. Ela contém dupla significação. Além do ‘sentido explícito’ – ‘demonstração da fé religiosa’ –, embute um ‘sentido camuflado’ – ‘expressão [...] tantas vezes discordantes e mesmo oposta ao pensar e ao sentir das classes oficiais e dirigentes’. Para identificar tais sentidos, o autor sugere o estudo das ‘peças expostas nas paredes’ dos santuários ou cruzeiros. Através deles será possível ‘decodificar as mensagens contidas’. Essa operação, que geralmente ‘escapa’ aos pesquisadores, é realizada de modo natural pelos peregrinos que afluem aos centros de devoção, porque são dotados daquela ‘expectativa sociocultural comum [...] aos seus comunicadores’, permitindo que se complete o circuito de qualquer processo
comunicativo’ (MARQUES DE MELO, 2008, p. 84).
Marques de Melo destaca os códigos comunicacionais presentes nos ex-
votos e a leitura “natural” dos devotos que visitam os locais onde estão expostas as
ditas peças. Sugere o autor que pesquisadores se detenham em decodificar “as
mensagens contidas” em cada peça. Ou seja, a peça em si possui uma mensagem
que extrapola a relação estabelecida pela devoção.
Tratar os ex-votos como um veículo jornalístico determina que estes objetos
possuem uma narrativa que comunica algo. Esta comunicação não se restringe
somente entre o devoto agraciado com a divindade que opera milagres, nem tão
pouco entre o agraciado e os seus, mas estes objetos acabam se tornando uma
memória viva e documental de determinada localidade. É possível com seu estudo
traçar uma radiografia cultural, antropológica e sociológica de determinado espaço
geográfico e histórico.
126
No artigo Ex-voto como veículo jornalístico, podemos estabelecer dois níveis
comunicacionais defendidos por Luiz Beltrão. Sobre este tema, escrevemos no livro
de nossa autoria Ex-voto – a saga da comunicação perseguida (GOMES GORDO,
2015, p. 61,62):
- Primeiro: a comunicação de um fiel com os outros fiéis. Existe uma
linguagem comum que os devotos entendem e decodificam entre si. O fato de
aqueles objetos votivos estarem expostos em lugares considerados sagrados
dispensa a explicação, eles acabam falando por si, o devoto vê e entende.
Para esse grupo, a mensagem está explícita, é uma forma de comunicar-se já
instituída entre seus membros. A decodificação da mensagem é instantânea, e o fim
último da oferenda de um ex-voto é justamente estabelecer esse elo de
comunicação entre o fiel e a divindade, e também do fiel com os seus, sendo que ele
se transforma em propagandista do poder miraculoso do santo.
- Segundo: a carga simbólica dos objetos ofertados. Podem sinalizar as
características de uma época e os traços mais enigmáticos de uma sociedade ou
grupo, assim essa força comunicacional estaria na interpretação de um pesquisador
acadêmico que pode encontrar nos ex-votos um objeto de pesquisa para diversas
disciplinas, entre elas a sociologia, a antropologia, a teologia e, de modo especial,
como nos afirma Beltrão, o jornalismo ou a comunicação social.
Dessa forma, os inúmeros ex-votos que enchem as salas de milagres também podem sinalizar o universo local dos moradores de uma determinada região. Onde a seca castiga, podemos citar o nordeste brasileiro, muitos dos ex-votos estão relacionados ao sucesso da colheita (afastando assim a fome); em zonas rurais os ex-votos podem estar relacionados a algum animal que se recuperou de moléstias; em alguns santuários o que se destaca são os diplomas e becas, simbolizando a dificuldade de se concluir um curso acadêmico (seja ele qual for) e a falta de incentivo por parte das autoridades competentes; podem ser um retrato das doenças mais simples e do descaso do poder público com a saúde; os ex-votos de pessoas que deixaram algum vício, dependendo do número exposto no santuário, são a manifestação do índice de moradores que enfrentam algum tipo de dependência química (álcool, cigarro ou outras drogas não
lícitas) (GOMES GORDO, 2015, p. 62,63).
127
Dentro dessa linha de raciocínio, em que o ex-voto aparece como um veículo
comunicacional, podemos citar também um pequeno trecho de uma carta do maior
folclorista brasileiro Câmara Cascudo, que ratifica os estudos das teorias de Beltrão,
com respeito ao ex-voto como meio de comunicação. A carta foi publicada no
mesmo número da revista Comunicação & Problemas, de 1965, nas páginas
seguintes ao artigo pioneiro de Beltrão:
Seu plano, Luiz Beltrão, de estudar o EX-VOTO é um soberbo programa de necessidade imediata. O “ex-voto” é uma voz informadora da cultura coletiva, no tempo e no espaço, tão legítima e preciosa como uma parafernália arqueológica. Vale muito mais que uma coleção de crânios, com suas respectivas e graves medições classificadoras. É um dos mais impressionantes e autênticos documentos da mentalidade popular, do Neolítico aos nossos dias. E sempre contemporâneos, verdadeiros e fiéis (CASCUDO, 1965 apud
TRIGUEIRO, 2013, p. 238).
As palavras de Cascudo servem não só de incentivo para as teorias de
Beltrão, mas ganha, inclusive, status de ratificação, tanto nos estudos acadêmicos
dos ex-votos quanto para os estudos das culturas populares (folclóricas), como
fontes inesgotáveis de expressões comunicacionais.
Beltrão, ao defender em seu artigo o viés comunicacional dos ex-votos como
veículo jornalístico, cita o ensaísta pernambucano Clóvis Melo que fez uma análise
sociológica de alguns ex-votos em uma localidade do Nordeste brasileiro:
O ensaísta pernambucano Clóvis Melo, apreciando o vasto manancial de ex-votos da capela de Nossa Senhora da Luz, no engenho Ramos, onde se encontra a imagem milagrosa de São Severino (‘São Severino e o lendário do Nordeste’ – Recife, junho de 1953), interpreta como uma demonstração insofismável do baixo nível sanitário das populações brasileiras o número espantoso de miniaturas de órgãos do corpo humano afetados pelas mais diversas enfermidades. ‘A enormidade de promessas com relação a crianças atesta a hecatombe produzida entre elas pela doença, num estado onde os obituários ultrapassam normalmente 60 por cento dos nascidos num só ano. Essa é a razão pela qual as paredes estão cobertas de retratos dos escapados à morte, de ex-votos dos ex-
anjos’.
[...] Por intermédio dos ex-votos ‘corações sangram e com seu sangue vai sendo escrita a história dos sofrimentos do povo nordestino, vítima das secas, dos latifúndios, das doenças e das
fomes’ (BELTRÃO, 2013, p. 233).
128
Beltrão se apropria de um estudo sociológico de Clóvis Melo e o reinterpreta
inserindo-o na perspectiva das pesquisas em Comunicação Social. Luiz Beltrão, ao
destacar, já nas conclusões de seu artigo, a frase do ensaísta pernambucano -
“corações sangram e com seu sangue vai sendo escrita a história dos sofrimentos
do povo nordestino, vítima das secas, dos latifúndios, das doenças e das fomes” –
defende a teoria de que os ex-votos, de fato, são veículos jornalísticos e neles estão
“escritos” a história de um povo, sobretudo de um povo sofrido que busca na fé um
fator de resistência, e essa história pode ser decodificada por pesquisadores
acadêmicos.
Sobre o estudo dos ex-votos na esfera folkcomunicacional, é possível notar
que em nossos dias muitas pesquisas multidisciplinares são realizadas graças ao
entendimento dado a esse objeto por Luiz Beltrão. O ex-presidente da Rede de
Estudos e Pesquisas em Folkcomunicação, Marcelo Pires de Oliveira, no prólogo do
livro Ex-votos das Américas – Comunicação e Memória Social, escreve sobre a
importância das pesquisas atuais tendo como objeto o ex-voto:
Em seu artigo seminal, Luiz Beltrão, indicou que para os pagadores de promessa o ex-voto não representava apenas um objeto devocional, mas trazia embarcado um meio de comunicação poderoso e que podia ser interpretado por aqueles que o visualizavam e que contavam histórias de superação e enfrentamento das adversidades. Hoje, muitos pesquisadores se debruçam sobre tais objetos e conseguem extrair deles diferentes propriedades, seja na arte, memória, fé, mas ainda assim seu maior componente está na esfera da comunicação. Cada ex-voto, seja pictórico, escultural ou escrito, como bilhetes e cartas [...], traz em si uma história que relata agruras de grupos sociais, muitas vezes alijados do sistema econômico e político e que estão em condições de ser inferioridade frente à maioria da sociedade, que sobrevivem de maneira criativa e que ao não encontrarem um estado que cumpre com seus contratos de propiciar saúde, educação e segurança, dependem das relações de proximidade com seus vizinhos e de sua fé, inabalável, que se manifesta no ex-voto
(OLIVEIRA, 2017, p. 9-10).
Estudar os ex-votos na perspectiva da Folkcomunicação é fazer um esforço
acadêmico de “ouvir” o clamor de um povo que “grita” por meio de seus símbolos
religiosos.
129
4.2 Tipologia dos ex-votos adotada pela Folkcomunicação
Embora Beltrão inicie sua pesquisa em Folkcomunicação, com base nos ex-
votos, ele não os classifica sistematicamente.
Podemos construir uma possível classificação beltraniana dos ex-votos tendo
por base a tipologia geral das manifestações Folkcomunicacionais elaborada por ele.
Segundo José Marques de Melo (2010, p. 103), Beltrão “classifica morfologicamente
os ex-votos em dois subconjuntos: I) Segundo a estética: “gráficos” (desenhos e
fotográficas) e “esculpidos” (pintados); e, II) segundo os suportes: quadro, imagem,
fotografia, desenho, peças de roupa, utensílios domésticos, mecha de cabelo, etc”.
Marques de Melo, na sequência, diz que “esse esboço classificatório mostra-
se pouco operacional, porque foi construído teoricamente, a partir de referências
contidas na literatura folclórica”.
No Livro Folkcomunicação – a comunicação do marginalizado, Beltrão (1980,
p. 259-279 – Anexo 3) ofereceu alguns indicadores básicos dos principais meios
utilizados para a pesquisa temática, como forma de facilitar aos interessados na
pesquisa folkcomunicacional:
1- Folkcomunicação oral: o linguajar; nomes próprios, alcunhas,
xingamentos e palavrões; provérbios, comparações, frases feitas; orações e
suas paródias, pragas; contos, histórias, fábulas, mitos e lendas; quadras
(trovas) e glosas; pregões (expressão de vendedores ambulantes); parlendas,
mnemorias, formuletes (gêneros comunicacionais infantis); anedotas,
advinhas, travalínguas, bestiologias.
2- Folkcomunicação musical: assovio e aboio; cantorias (disputa
poética cantada); a canção; os ritmos populares; instrumentos e orquestras.
3- Folkcomunicação escrita: grafitos; manuscritos/datilógrafos/ em
xerox; impressos; postais/santinhos/estampas; veiculados pelos MCS.
130
4- Folkcomunicação icônica: escultura popular; objetos de
identificação e adorno pessoal; a habitação e objetos utilitários e de
decoração.
5- Folkcomunicação de conduta (cinética): o trabalho e o lazer;
autos, danças, espetáculos populares; atividades religiosas; atividades
cívico/políticas.
Este levantamento foi revisitado por Marques de Melo (2008, p. 89-95)
constatando que: “Esta ‘Tipologia da Folkcomunicação’ constitui, na verdade, um
desafio aos pesquisadores comprometidos com a sedimentação dessa disciplina”. A
dificuldade estaria em distinguir certas fronteiras (oral/musical) ou
(escrita/manuscrito).
José Marques de Melo apresenta então uma subdivisão tendo em conta o
gênero (forma de expressão determinada pela combinação de canal e código).
Diferentemente de Beltrão que apresentava cinco, agora aparecem quatro (oral;
visual; icônica; cinética) facilitando assim a pesquisa; formato (estratégia de difusão
simbólica determinada e pela combinação de intenções (emissor) e de motivações
(receptor); e tipo (variação estratégica determinada pelas opções simbólicas do
emissor, bem como por fatores residuais ou aleatórios típicos da recepção).
Dentro da tipologia apresentada por Marques de Melo, o ex-voto estaria
enquadrado na folkcomunicação icônica, no formato devocional. Vemos assim, a
dificuldade que o pesquisador encontraria em um estudo acadêmico específico
sobre o tema.
Enquanto muitos pesquisadores da Folkcomunicação no Brasil procuravam
um formato adequado de enquadramento tipológico dos ex-votos, o estudioso
mexicano Jorge A. González, nos anos de 1980, escreveu um livro que iluminaria os
estudos que têm por objeto os ex-votos. No livro Exvotos y retablitos: Comunicación
y religión popular en México (1986), González ao estudar o ex-voto como um
processo comunicacional classifica-os dentro de uma perspectiva própria do seu
contexto.
131
A classificação de González sugere cinco tipos de ex-votos: figurativos;
representativos; discursivos; midiáticos e pictóricos.
González, além de tipificar os ex-votos, apresenta especificações de cada
tipologia, ampliando, dessa forma, sua compreensão e facilitando o trabalho de
catalogação dos pesquisadores (1986, p. 10-13, tradução nossa)32, seguem as
descrições:
1) objetos figurativos da graça alcançada (partes do corpo ou figuras
humanas, casas, animais, vegetais, carros, feitos nos mais diversos tipos de
materiais);
2) objetos que ressaltam metonimicamente um aspecto, elemento ou
componente ‘representativo’ da totalidade do milagre realizado (as representações
podem ser as mais diversificadas, como buquê de noivas, muletas e aparelhos
ortopédicos, etc);
3) objetos propriamente discursivos, nos quais de maneira escrita, se
propaga o milagre (cartaz, mármore, placas, etc);
4) midiáticos, são os ex-votos impressos em jornais e revistas na
intenção de divulgar a graça alcançada;
5) são os chamados “retablitos” que em uma tradução livre podemos
chamar de “tabuinhas”, ou seja, quadrinhos pintados (pictóricos) em diferentes
materiais, geralmente em formatos retangulares que descrevem por meio de pintura
e de inscrições escritas o milagre recebido.
Sobre o estudo de González, Marques de Melo (2010, p. 104) não fecha a
questão, pelo contrário: “Como se trata de uma tipologia originalmente construída no
32
A VIII Conferência Nacional de Folkcomunicação (FOLKCOM), realizada em Teresina – PI, no ano de 2005, tratou como tema principal “A Comunicação dos pagadores de promessas: do ex-voto à indústria dos milagres”. Nesta Conferência, a tipologia dos ex-votos proposta por González foi adotada como base pelos pesquisadores da Folkcomunicação (MARQUES DE MELO, 2010).
132
México, é possível que os pesquisadores brasileiros se deparem com outras
espécies, que deverão ser arroladas, agrupadas e, se possível, classificadas”. Por
isso, o pesquisador deixa em aberto a possibilidade de uma reclassificação que
contemple a realidade brasileira (MARQUES DE MELO, 2008).
Com esta afirmação de José Marques de Melo, chegamos ao objetivo
principal de nossa tese: a possibilidade de atualizar a tipologia dos ex-votos
elaborada por González.
4.3 Atualização da tipologia dos ex-votos
A tipologia criada por González tem por base a experiência religiosa do povo
mexicano. Existe, como sabemos, muita similaridade cultural e religiosa entre o
México e o Brasil. Justamente por essas semelhanças, a classificação tipológica de
González foi adotada pelos pesquisadores da Folkcomunicação, sem contudo
encerrar a matéria. Uma vez que é possível, ao pesquisar sobre o tema, sobretudo
no trabalho de campo, que os estudiosos dos ex-votos se encontrem com
particularidades que não foram contempladas na tipologia de González, elaborada
para a realidade mexicana.
Como já dissemos, González classifica os ex-votos em cinco tipos: figurativo,
representativo, discursivo, midiático e “retablitos” (pictóricos). No trabalho de
pesquisa que fizemos ao inventariar as peças encontradas, usamos como base da
nossa pesquisa a tipologia de González. Todos os ex-votos que se enquadravam
dentro dessa tipologia eram identificados, depois percebemos que alguns deles não
se encaixavam nesta tabela. Criamos, dessa forma, novas categorias para que a
maioria das peças, que entendemos como ex-votos, pudessem ser inventariadas.
Também percebemos que com o advento de novas técnicas comunicacionais
alguns ex-votos se “modernizaram”, ou se ajustaram ao tempo presente, como as
expressões digitais que circulam em abundância através da internet. Por essa razão,
sugerimos que seja acrescentado no tipo ex-voto midiático o termo digital. Ficando,
portanto, ex-votos midiáticos e digitais.
133
Tendo em vista a possibilidade de uma atualização do que foi definido como
linha mestra dos estudos, tendo o objeto como o ex-voto, apresentamos algumas
considerações e possíveis adequações.
Além das cinco categorias tipológicas elaboradas por González, sugerimos
acrescentar mais cinco, sendo: alimentícios; arquitetônicos; corpóreos; agradáveis e
orais.
Em santuários católicos, a tipologia adotada pela Folkcomunicação nos
atendeu muito bem, com poucas peças que não se encaixavam. Como dissemos, a
realidade cultural católica do México não difere acentuadamente do Brasil. Quando
visitamos outros locais de culto (como cruzeiros, cemitérios) que não estão
associados exclusivamente à fé católica, sentimos mais dificuldade. Citamos alguns
exemplos enquadrados nas novas tipologias que apresentamos:
a) Alimentícios
Acreditamos que alguns elementos da nossa cultura religiosa, como por
exemplo, as provenientes da matriz africana, criaram, como vimos no capítulo
anterior, elementos muito próprios de agradecimento (relação fiel – divindade) por
graças recebidas, salientamos os ex-votos que incluem alimentos e bebidas.
Tanto os santos católicos, como os orixás do Candomblé e da Umbanda,
como os santos populares enterrados em cemitérios, recebem em agradecimentos
por milagres realizados em que eles foram os agentes, alimentos os mais variados
possíveis. Para os orixás, os alimentos são os que lhes agradam, conforme suas
personalidades. Aos santos populares, se oferecem comidas, que se supõe que eles
gostariam de comer e beber.
134
Figura 26 - Compilação de fotos – Ex-votos alimentícios
Fonte: Arquivo do autor
Os túmulos dos “anjinhos”, como são conhecidas as crianças falecidas que
são consideradas santas pela fé popular, estão repletos de doces variados, como
pirulito, balas, chocolates, bolachas, iogurtes, refrigerantes.
É comum encontrarmos copos de água sobre muitos túmulos. Muitas vezes, a
água é ofertada em agradecimento por algum benefício recebido, contemplando,
sobretudo, o sofrimento que o santo popular viveu antes de morrer.
Um exemplo típico do oferecimento de água como ex-voto é o caso das
“Treze Almas Do Edifício Joelma”, são treze túmulos no cemitério São Pedro da Vila
Alpina, na cidade de São Paulo, em homenagem às treze pessoas, que
supostamente morreram presas no elevador, no incêndio do Edifício Joelma33, no
33
Calcula-se que foram mortas 101 pessoas neste incêndio, fazendo parte de uma das maiores tragédias da cidade de São Paulo.
135
ano de 1974, e que não foram identificadas, sendo enterradas como indigentes.
Anos depois, simpatizantes resolveram fazer essa homenagem construindo os
túmulos. A frequência de fiéis é constante de diversas denominações religiosas
(católicos, espíritas e umbandistas). Nos túmulos, e em volta deles, encontramos
grande quantidade de ex-votos dos mais variados possíveis, destacam-se os
alimentícios. Os litros e copos de água estão sobre todos os túmulos. Além disso os
devotos jogam água sobre os túmulos em agradecimento às “Treze Almas”, a água
serve para aliviar o sofrimento da terrível morte pelo fogo.
b) Arquitetônicos
Outra dificuldade foi catalogar na tipologia de referência para a
Folkcomunicação, alguns formatos já tradicionais na concepção de ex-votos e que
não poderiam ser inventariados, citamos como exemplo, os ex-votos que nós
chamamos de arquitetônicos.
São construções de templos, ermidas em que a motivação principal de tal
edificação foi o agradecimento por uma graça alcançada. Citamos, como exemplo, a
Igreja da Candelária no Rio de Janeiro. Conta a história que no início do século XVII
um casal de portugueses que vinha para o Brasil, em um navio chamado
“Candelária”, enfrentou uma terrível tempestade em alto mar. No meio do
desespero, o casal fez uma promessa que se fossem salvos construiriam uma
capela em honra de Nossa Senhora da Candelária. A promessa foi cumprida no ano
de 1609. A devoção se espalhou pela cidade do Rio de Janeiro, décadas depois foi
construído o templo maior, que hoje é um monumento arquitetônico na cidade.
Outro exemplo de ex-voto arquitetônico é a capela de Nossa Senhora do Ó,
em Sabará, MG, é considerada uma joia da arte colonial mineira. Quem assumiu a
construção em 1719 foi o capitão-mor Lucas Ribeiro de Almeida. Na entrada do
pequeno templo, é possível ver um ex-voto pictórico em que o capitão-mor fala de
uma graça alcançada. A construção da capela possivelmente esteja relacionada
com o milagre que ele recebeu. Reproduzimos os dizeres do ex-voto, mantendo o
português arcaico:
Mercê q fes N.S. do Ó ao Cpp Maior Lucas Ribeiro regente desta V Real de N. S. da Conceicam o qual vindo de fazer a festa a adª sª
136
deq hera iviz oacometeram temerariam quatro soldados dos dragois edepois todos osmais da compª com deseio deomatarem mas nem comasespadas nem comvarios tiros q imederam foi posivel q conseguisem o intento porq amai de Deos deu forças ao seo devoto pª q detudo se defendese sem reseber o menor perigo nem em si nem em os escravos q oacompanhavao emcinal deagradecimento mandou fazer esta memoria que sossedeo em os 29 de dezenbro de 1720.
Figura 27 - Capela Nossa Senhora do Ó e ex-voto pictórico – Sabará - MG
Fonte: Arquivo do autor
Embora os dois exemplos que apresentamos de ex-voto arquitetônico sejam
de séculos passados, ainda hoje é comum vermos pessoas gratas construírem
capelas ou grutas de cunho devocional particular em agradecimentos por graças
recebidas.
137
Figura 28 - Túmulo de Exú Tranca Ruas – Cemitério da Saudade – Campinas - SP
Fonte: Dominique Torquato, 201634
Recordamos o exemplo que citamos no capítulo terceiro dessa tese, o túmulo
de “Exú Tranca Ruas”, no cemitério da Saudade em Campinas – SP. Tanto o
espaço geográfico quanto a construção do túmulo foi em agradecimento por uma
graça alcançada, ou seja, um ex-voto arquitetônico.
c) Corpóreos
Os ex-votos que passam pela expressão corporal também encontram
dificuldades de serem catalogados nesta tipologia adotada pela Folkcomunicação.
Citamos como exemplo as penitências corporais como peregrinações a pé, caminhar
34 Funcionário do Cemitério da Saudade próximo ao espaço do Tranca Ruas das Almas: pedidos e
trabalhos. Na imagem: Cemitério das Saudade, sepulcro doTranca Rua. Foto: Dominique Torquato.
138
descalço, cortar o cabelo e oferecer as mechas ao santo, ou não cortar o cabelo por
um tempo determinado.
Figura 29 - Fiéis pagando promessa peregrinando de joelhos – Fátima - Portugal
Fonte: Arquivo do autor
Sobre não cortar o cabelo por um tempo, em virtude de um voto, temos
inclusive um exemplo bíblico, acontecido com o Apóstolo Paulo, narrado no livro dos
Atos dos Apóstolos: “Paulo permaneceu ali (em Corinto) ainda por um tempo.
Depois se despediu dos irmãos e navegou para Síria e com ele Priscila e Áquila.
Antes, porém, cortara o cabelo em Cêncris, porque terminara um voto” (ATOS DOS
APÓSTOLOS 18, 18, grifo nosso). Vemos com isso que o voto de não cortar o
cabelo é milenar, inclusive comum entre os judeus.
Também poderia ser entendido como ex-voto corpóreo o vestir-se segundo a
imagem do santo ou da santa na ocasião de sua festa.
139
Essa prática é muito comum no Nordeste brasileiro. No dia de São Francisco
(04/10), no santuário dedicado ao santo em Canindé – CE, são centenas os devotos
(homens, mulheres, crianças) que fazem sua peregrinação vestidos à semelhança
de São Francisco, com túnicas marrons e cordões. Após pagarem a promessa,
depositam a roupa usada aos pés do santo.
O sacrifício corporal acompanha muitos cumprimentos de promessas e são os
mais variados possíveis, desde caminhadas de joelhos, como é o caso de devotos
que atravessam a passarela que liga a Basílica antiga à nova de Nossa Senhora
Aparecida (Aparecida – SP), como também o esforço físico que muitos devotos
enfrentam para tocar na corda (que liga os fiéis à imagem de Nossa Senhora) na
festa de Nossa Senhora de Nazaré (Belém – PA).
Figura 30 - Devota vestida de São Francisco – Canindé - CE
Fonte: Arquivo do autor
140
As tatuagens se popularizaram nas últimas décadas, e com essa moda surgiu
também, em muitos devotos adeptos da tatuagem, a modalidade de fazerem os
seus agradecimentos por meio delas.
Figura 31 - Ex-voto no formato de tatuagem
Fonte: Instagram (carol.mariath)
Muitos católicos tatuam imagens de santos, sobretudo de Jesus Cristo e de
Nossa Senhora; evangélicos, por sua vez, tatuam frases bíblicas de agradecimento,
ou frases do tipo: “Deus é Fiel” e “Deus me Guia”; fiéis das religiões de matriz
africana costumam tatuar os seus orixás e os seus guias espirituais.
d) Agrados
São os ex-votos que têm a tarefa de agradar a divindade. Muitos desses
agradecimentos não passam das orações, pois o indivíduo fiel acredita que sua
oração seria como se fosse um “elogio” ao santo ou à entidade sagrada. Além da
oração, alguns agradecimentos por graças recebidas se materializam em objetos,
141
que no imaginário do devoto a divindade gostaria de receber em recompensa por ter
realizado o “milagre”. Dentre as oferendas de agrado mais comuns em diversas
religiões podemos citar as flores e as velas.
Encontramos em grande quantidade estes ex-votos agradáveis em diversas
manifestações religiosas, de modo especial entre os devotos das religiões de matriz
africana. Além dos alimentos, como já dissemos, o fiel tenta agradar seus orixás,
seus santos, seus guias espirituais por meio de presentes.
Para Iemanjá, como oferenda de agradecimento, se ofertam colares,
perfumes, pentes, espelhos, itens de maquiagem e muitas flores, especialmente
palmas; Exús e Pombagiras recebem cigarros, charutos, rosas e flores em geral;
Pretos-Velhos são agraciados com fumo de rolo, cachimbos, dentre outros
presentes; Caboclos recebem cigarro de palha.
Nos túmulos dos santos populares também encontramos vários ex-votos
agradáveis, muitos deles relacionados com a personalidade ou a história contada
sobre este santo que o povo “canonizou”. Citamos, como exemplo, o caso da Cigana
Sebinca Christo, falecida em março de 1965, enterrada no cemitério de Cruz das
Almas (Lages-SC), os devotos em agradecimento ofertam moedas, lenços e
incensos. Os túmulos dos “anjinhos” espalhados por cemitérios em quase todo o
território brasileiro recebem presentes típicos de crianças.
No cemitério da Penha, na cidade de São Paulo – SP, recebe muitos fiéis o
túmulo de Júlio Cézar Rodrigues – conhecido como “santo cézinha”, nascido em
1903 tendo falecido em 1908. A frequência de ex-votos sinaliza que o túmulo é
bastante visitado. Sob o jazigo temos ex-votos dos mais variados tipos, porém no
centro do túmulo está a estátua de um anjo, em volta do pescoço da imagem estão
penduradas dezenas de chupetas. No túmulo dos “anjinhos” também é comum
encontrarmos variedade de brinquedos.
142
Figura 32 - Chupetas – Túmulo do “anjinho” Cezinha – Cemitério da Penha – São Paulo
Fonte: Arquivo do autor
Em matéria publicada no portal G1, da Rede Globo, no dia de finados do ano
2017, a repórter Aline Rickly escreveu sobre um bebê que morreu em 1872,
sepultado no Cemitério Municipal de Petrópolis – RJ. Seu nome era Francisco José
Alves Souto Filho, a reportagem destaca os presentes que são deixados sobre o
túmulo em agradecimento por graças alcançadas. Uma das pessoas entrevistadas
foi o advogado Lauro Barreto, que afirmou: “O anjinho de Petrópolis atendeu minhas
orações, pelo menos uma vez, creio que também ele é milagroso”. A Jornalista
Rickly termina dizendo que Lauro “deixou um brinquedo no túmulo do bebê”, como
pagamento da promessa.
Nos santuários católicos não é raro vermos que os santos venerados,
sobretudo Nossa Senhora, recebem joias de grande valor (de ouro e pedras
143
preciosas), algumas delas ficam expostas no santuário. Fiéis fazem promessas de
doarem coroas, colares e brincos para a Virgem Maria, para que sejam utilizados no
dia da festa da santa.
Em outros locais, os fiéis fazem a promessa de confeccionarem o manto do
santo, da santa ou de Nossa Senhora. De tempos em tempos, os responsáveis pelo
santuário trocam o manto do santo venerado naquela localidade, dando a
oportunidade de cada devoto pagar sua promessa de ornamentar o santo.
e) Orais
Entendemos como ex-votos orais aqueles que são proferidos em locais de
culto público e que têm por objetivo testemunhar uma graça recebida através de um
relato oral.
O testemunho feito pela oralidade é comum em diversas denominações
religiosas, destacamos a confissão católica e as muitas denominações evangélicas.
Muitos devotos fazem o voto de “contarem” em público, caso a graça pedida seja
realizada.
Sobre o testemunho oral, citamos um pensamento do presbítero André
Sanchez, membro da Igreja Presbiteriana Bela Jerusalém, da cidade de Ribeirão
Preto – SP, que em seu blog (esbocandoideias.com), incentiva os seus fiéis a
testemunharem pela da oralidade:
Conte o que Deus fez em sua vida de maneira simples e sincera. Glorifique a Deus através de suas palavras. Conte o problema que tinha e a solução que você viu Deus implementar. Fale sobre como foi, com detalhes, para que a pessoa veja como é linda a ação de Deus mesmo nos momentos mais difíceis de nossas vidas. Seja mais sensível e procure observar mais tudo que Deus faz por você. Agindo assim, sempre terá algo a testemunhar (SANCHEZ, 2012, on-line).
Os cultos evangélicos de várias igrejas reservam um espaço importante para
que tais testemunhos sejam feitos. Muitos destes testemunhos são gravados e
depois retransmitidos em programas televisivos ou ficam disponíveis em páginas da
internet (como portais, ou canais do Youtube).
144
A maioria dos relatos testemunhando graças alcançadas, além da oralidade,
são acompanhados de materialidades para testificarem a veracidade do que é
proferido.
Não é raro observar que enquanto o fiel testemunha, ele mostre para a
assembleia religiosa alguns objetos como: fotografias de antes e depois; exames
médicos comprovando que o indivíduo estava enfermo e que agora não está mais;
carteiras de trabalho assinadas, dentre outros exemplos.
Algumas igrejas se utilizam de programas de rádio, para que os agraciados
liguem e contem o seu testemunho, o relato radiofônico poderia ser classificado
como ex-voto oral.
4.4 Proposta de nova tipologia para os estudos folkcomunicacionais dos ex-votos
Nossa proposta para uma nova tipologia dos ex-votos inclui as cinco
categorias de Jorge González (1981, p. 9-13), acrescentando mais cinco que são
frutos de nossa pesquisa, contemplando não só o universo do catolicismo popular,
mas abrindo possibilidades para que outras práticas religiosas, entendidas por nós
como ex-voto, possam ser catalogadas e consequentemente estudadas pelos
pesquisadores da Folkcomunicação.
Para essa nova tipologia, apresentaremos o tipo de ex-voto, uma breve
descrição do que seja e, em seguida, alguns exemplos, sem, contudo, abordar e
catalogar todos os formatos, pois estamos diante de múltiplas possibilidades.
Seguem os tipos de ex-votos:
145
Ex-votos figurativos
Ex-votos representativos
Ex-votos discursivos
Ex-votos orais
Ex-votos midiáticos e digitais
Ex-votos pictóricos
Ex-votos arquitetônicos
Ex-votos de agrado
Ex-votos corpóreos
Ex-votos alimentícios
Descrição de cada tipo e formatos (difusão simbólica):
a) Ex-votos figurativos
São os objetos que expressam, de forma figurativa e simbólica, a graça que o
fiel recebeu. Os formatos podem ser os mais variados possíveis e confeccionados
de diversos materiais (madeira, cera, papel, isopor, plástico, resina, pedra, dentre
outros).
Dentre as peças é possível encontrar: partes anatômicas do corpo humano,
como cabeça, braços, mãos, pés, dedos, pernas, orelhas, olhos, boca, nariz, órgãos
genitais masculinos e femininos, seios; órgãos internos, como rins, coração, fígado,
intestinos, garganta, língua, útero, pulmões, próstata, bexiga, baço, dentre outros.
Figuras humanas, na sua totalidade, indicando muitas vezes a parte do corpo
que foi agraciada com o milagre.
Fotos de partes do corpo, pontuando o local da graça alcançada.
146
Miniaturas de casas, barcos, carros, bicicletas, motocicletas.
Figuras de animais, desde domésticos, até selvagens.
Latas ou sacos com vegetais ou grãos agradecendo a colheita.
Dentre outros formatos.
b) Ex-votos representativos
Peças que representam metonimicamente um aspecto, elemento ou
componente da totalidade do milagre (sendo uma figura de linguagem, no formato
objeto, que é empregado ou usado com sentido, mesmo que fora do seu contexto).
Neste tipo, os formatos são os mais variados como, por exemplo:
Martelos, tesouras, tornos mecânicos, jalecos de professores ou de
profissionais da saúde, crachás de empresas, cópias ou reproduções de carteiras de
trabalho, representando “sucesso e uma colocação no mercado de trabalho”.
Diplomas e títulos emoldurados, cópias de monografias, dissertações de
mestrado, teses de doutorado, fotos de formatura, álbuns de formatura, vestidos e
ternos de formatura, representando “êxito escolar”.
Quepes, dragonas, distintivos, fardas, representando “promoção militar”.
Vestidos de noiva, buquês de noiva, grinaldas, cestinhas de alianças, fraques,
gravatas, representando “sucesso ao conseguirem se casar”.
CDs, capas de disco, instrumentos musicais (como violão, acordeão, flauta,
guitarra), faixas de miss, livros publicados, vestidos usados em premiações,
representando “sucesso artístico”.
Camisetas de times de futebol, bolas de diversos esportes, troféus, medalhas,
representado “sucesso esportivo”.
Garrafas de bebidas alcoólicas, latas de bebidas alcoólicas, representando a
“libertação do vício”.
147
Maços de cigarro, cachimbos, cachimbos artesanais para o uso de drogas,
charutos, cigarrinhos parecidos com os de maconha, narguilés, cigarros eletrônicos,
representando a “libertação do vício”.
Muletas, tipoias, cadeiras de roda, carcaças de gesso, aparelhos ortopédicos,
óculos, prótese dentária, radiografias, exames médicos, vidrinhos com cálculos
renais ou vesiculares. Fotos destacando a parte do corpo enferma, representando
“saúde recuperada”.
Capacetes, peças de moto, carro e bicicleta, representando “livramento na
hora do acidente”.
Vidros contendo vômitos, representando dois tipos de libertação – “libertação
da saúde”, em que o vômito é a doença expelida, como câncer ou tumores,
“libertação espiritual”, em que o vômito é a presença do maligno (ou do espírito
demoníaco) expelida.
Umbigos de recém-nascidos, representando a “sorte no nascimento”.
Peças de roupas e sapatos (de uso diário, ou de eventos especiais - como
batizados, primeira comunhão, crisma -, ou de algum dia especial na vida do devoto)
de pessoas que receberam o milagre.
Fotografias de rosto da pessoa agraciada, de famílias reunidas, grupos de
amigos, de animais, propriedades, localidades e muitas outras.
Dentre outros formatos.
c) Ex-votos discursivos
Objetos que descrevem o milagre por meio da escrita, exemplos: Cartas,
bilhetes, cartazes, gravuras, placas (de mármore, granito, plástico, metal), banners,
panfletos e santinhos de papel feitos sob demanda, faixas.
Escritas (com canetas, carvão ou com pedras) em paredes de templos, grutas
e túmulos de cemitério.
148
Dentre outros formatos.
d) Ex-votos orais
São os testemunhos orais que podem ou não ser acompanhados de alguma
materialidade.
Geralmente, são proferidos em assembleias públicas de culto, por incentivo
do presidente da celebração, ou são espontâneos.
Muitas vezes, o ex-voto da oralidade não passa pela instituição religiosa,
acontece em eventos promovidos pelos próprios agraciados, como orações do terço,
novenas, louvores, grupos de oração.
Podem ser incluídos aqui os testemunhos dados em programas de rádio e em
programas televisivos via telefone.
Dentre outros formatos.
e) Ex-votos midiáticos e digitais
São os anúncios veiculados em jornais, revistas, sites e portais de internet,
blogs, redes sociais (facebook, instagram, whatsapp) e outros meios de
comunicação.
Geralmente, difundidos fora dos santuários e ali expostos como
demonstração do milagre recebido.
Os veículos tanto podem ser oficiais das instituições religiosas, ou criados por
devotos sem vínculos institucionais.
f) Ex-votos pictóricos
Quadro em madeira ou em outro tipo de material, ilustrando o milagre através
de imagens desenhadas e pintadas. Contendo, geralmente, a representação da
cena no exato momento do milagre.
149
Muitos trazem a estampa do santo (ou santa) que favoreceu o milagre no alto
da cena, como que interagindo efetivamente na realização da graça.
A maioria dos ex-votos pictóricos traz também a descrição discursiva de como
o milagre foi realizado, identificando o nome do agraciado e a data do ocorrido.
g) Ex-votos arquitetônicos
São os ex-votos que têm como forma de pagamento da promessa a
construção arquitetônica ou a interferência em um imóvel destacando a devoção
particular ou familiar.
Muitos templos, capelas, ermidas, grutas, cruzeiros e até mesmo túmulos são
erguidos no cumprimento de um voto.
Nos altares dessas edificações são entronizadas, em local de destaque, as
imagens do santo ou da entidade que realizou o milagre.
Alguns devotos mandam afixar na parede externa de suas residências, lojas e
empresas a estampa ou a imagem do santo protetor (geralmente feitos em azulejos,
ou em pequenos nichos no alto do imóvel).
Outro exemplo comum são vitrais em igrejas. O devoto depois de alcançar a
graça doa um vitral para uma igreja que está sendo construída, e na base do vitral
se coloca a inscrição: “por uma graça alcançada”.
h) Ex-votos de agrado
São os intentos do devoto de agradar a divindade que realizou o milagre. Há
certa compreensão, com base no imaginário popular, ou revelado pela entidade, das
coisas que lhe agrada.
Por essa razão, os fiéis oferecem presentes como: flores; velas; incensos;
joias (coroas, tiaras, braceletes, brincos, pulseiras, colares de ouro e pedras
preciosas); bijuterias (imitação de joias das mais variadas possíveis).
150
Adereços e materiais para a beleza (cremes cosméticos, material para
maquiagem facial, espelhos, pentes).
Charutos (também cachimbos e cigarros variados, fumo de corda).
Roupas e acessórios como mantos, véus, túnicas (confeccionados para
vestirem a imagens dos santos, respeitando inclusive a cor que a entidade mais
gosta).
Estandartes em homenagem à divindade.
Se a graça alcançada foi por intermédio de algum “anjinho” (crianças
enterradas em cemitérios consideradas santas) é comum vermos brinquedos e
chupetas.
Outra tradição, como ex-voto agradável, é a promessa de mandar rezar missa
de Ação de Graças para determinados santos (tanto os canonizados oficialmente
quanto os santos populares).
Temos também como pagamento de promessa batizar os filhos com os
nomes dos santos de devoção, nesta mesma linha colocar o nome do
estabelecimento comercial em homenagem a eles.
Festas religiosas que surgiram de devotos que fizeram suas promessas.
Dentre outros formatos.
i) Ex-votos corpóreos
São os pagamentos de promessa em que o corpo do devoto é utilizado como
meio de pagar a promessa.
São vários os exemplos: deixar o cabelo crescer por um determinado tempo e
depois de cortar, oferecê-lo à divindade; caminhar de joelhos pela nave central de
uma igreja, ou em um trajeto que faça sentido ao devoto.
Fazer peregrinações a pé até o santuário ou igreja do santo de devoção.
151
Fazer jejuns ou privação de algum alimento específico que o devoto goste.
Mortificações como o uso do cilício.
Alguns devotos precisam sentir que o corpo padece no momento de pagar a
promessa, por essa razão muitos buscam o sacrifício físico ao extremo, como
caminhar entre pedras e brasas, carregar por longas distâncias imagens e cruzes;
rezar de joelhos durante muito tempo, ou de braços abertos.
Outros ainda utilizam do próprio corpo para homenagear suas divindades,
como vestir-se conforme a imagem da entidade ou do santo (a roupa, geralmente,
depois é deixada no templo aos pés da entidade ou do santo).
A prática de fazer tatuagens (religiosas) pelo corpo como expressão de
agradecimento, as tatuagens podem ser variadas em suas formas e tamanhos.
Uso de objetos religiosos que remetam à devoção (terços, medalhas,
crucifixos).
Dentre outros formatos.
j) Ex-votos alimentícios
Oferecer à divindade, que realizou o milagre, alimentos e bebidas,
subentendido pelo imaginário popular, ou revelado pela entidade, que tais oferendas
irão satisfazer e deixá-la feliz.
Se tivermos em conta as religiões de matriz africana, a lista de alimentos e
bebidas pode ser extensa, pois cada orixá, ou entidade, têm apreço por
determinados alimentos e bebidas.
Como exemplo de comidas salgadas, citamos: acarajé; canjica; pipoca;
espigas de milho cozidas ou cruas; carnes variadas de diversos animais (cruas,
fritas, assadas, ou cozidas); sarapatel; pimentas; pirão de inhame; camarões;
quiabo; peixes de água doce; peixes de água salgada; abará; farofa; feijoada;
charque.
152
Doces: como quindim, doce de coco, doce de abóbora, doce de cidra; arroz-
doce; doces com canela; mungunzá; bolos de diversos tipos e sabores.
Frutas, como maçã, abacaxi, morango, melão, maracujá, pinha. E a lista
segue com dezenas de comidas.
Entre as bebidas, podemos citar: licores, aguardente (cachaça / pinga); vinhos
doces (licorosos) e secos (tintos ou brancos); cervejas claras e escuras; conhaque;
whisky; espumante (champanhe); sucos; água de coco; água natural, servida em
copos ou em garrafas.
Para os santos populares que estão nos cemitérios são oferecidos vários
tipos de alimentos e bebidas, se forem crianças predominam os doces, balas,
pirulitos, chocolates, pão molhado na água, caso o “anjinho” não consiga mastigar,
iogurte, leite, refrigerante.
Quando o santo popular morreu de alguma tragédia, geralmente se oferece
água na tentativa de aliviar o seu sofrimento.
Nas religiões asiáticas (destacamos o Budismo e o Hinduísmo), a maioria das
oferendas aos deuses e aos ancestrais também é alimentá-los, sobretudo de frutas.
Com base na pesquisa que fizemos e ancorados na tipologia de ex-votos
proposta por Jorge González, concluímos que a atualização dessa tipologia com as
cinco novas categorias ampliaria o entendimento que temos acerca dos ex-votos,
possibilitando, inclusive, novas pesquisas acadêmicas na área da Folkcomunicação,
tendo como objeto o pagamento de promessas.
153
CONCLUSÃO
Desde que o pesquisador Luiz Beltrão fundou a corrente de estudos
denominada Folkcomunicação, muitos trabalhos acadêmicos na área de
Comunicação Social deram ênfase nas manifestações culturais populares como
formas de expressão. Várias dessas pesquisas tiveram os ex-votos como objeto
pesquisado.
Bem sabemos que o próprio Beltrão inaugurou sua teoria com um artigo em
que defendia o ex-voto como um veículo jornalístico.
Nossa tese também teve como objeto de estudo os ex-votos, salientando,
sobretudo, seu viés comunicacional. Revisitamos as teorias de Beltrão e de José
Marques de Melo, discípulo do pai da Folkcomunicação, e nos detemos de modo
particular na tipologia dos ex-votos criada pelo pesquisador mexicano Jorge
González.
Nossa intenção, além de revisitar as teorias de tais pesquisadores, foi ampliar
o entendimento que temos hoje acerca dos ex-votos, focados no catolicismo
popular. Acreditamos que muitas outras expressões religiosas também trabalhem
com o conceito de comunicação direta com a divindade por meio do agradecimento
por graças recebidas.
Se ampliarmos esta compreensão, então seria preciso também rever e
atualizar a tipologia dos ex-votos. Este foi o foco central de nossa tese.
Tendo por fundamento a pergunta que norteou nossa pesquisa, a saber:
Como elaborar uma atualização da atual classificação tipológica dos ex-votos,
incluindo não só as novas formas de pagamento de promessas provenientes do
catolicismo popular, mas também as práticas de agradecimento por uma graça
alcançada em outras expressões religiosas?
Percorremos nossa trajetória acadêmica e metodológica (bibliográfica e o
inventário) em busca dessa resposta.
154
Partimos do macro, da religião como forma comunicacional, e caminhamos
para o específico de nossa tese, a saber: os ex-votos e sua tipologia na
Folkcomunicação. Por essa razão, não procuramos trabalhar os elementos
folkcomunicacionais em todos os capítulos.
Para responder nossa pergunta central, desenvolvemos quatro capítulos.
No primeiro capítulo, trabalhamos a religião como comunicação, defendendo
a teoria de que as expressões religiosas, bem como as comunicacionais, estão na
gênese do ser humano. Fizemos um percurso histórico apoiados em alguns teóricos,
destacamos o historiador das religiões Mircea Eliade, o antropólogo Glifford Geertz e
o sociólogo da religião Enzo Pace.
Os registros históricos da evolução do gênero humano na terra estão
embasados em expressões de comunicação (muitas vezes consideradas arte), em
que o fundamento de interpretação é o desejo de estabelecer contato com as
divindades. O elo que liga religião e comunicação são os símbolos, tentativa de
materializar uma ideia criando códigos.
A afirmação de Mircea Eliade de que “tornar-se homem significa ser religioso”,
conclui o nosso capítulo introdutório em que nós sinalizamos que, uma das formas
de diálogo entre o ser humano e a divindade, desde os primórdios de nossa história,
foi o ex-voto.
Na sequência, já no segundo capítulo, tratamos o tema dos ex-votos como
comunicação de intimidade com as divindades.
Ao definirmos ex-voto, logo defendemos a ideia de que eles são
comunicação, porém ainda não tratamos do tema dos ex-votos na folkcomunicação,
pois preferimos deixar essa teoria fechar a nossa tese no quarto capítulo.
Ainda nesta etapa, vimos que os ex-votos aparecem nas primeiras
manifestações religiosas em distintas regiões do mundo, essa afirmação pode ser
comprovada com dados arqueológicos e antropológicos. Foram muitos os autores
nos quais nos baseamos, destacamos a museóloga Maria Augusta Machado da
Silva.
155
Na conclusão desta parte da nossa tese, apresentamos onze religiões da
antiguidade (recordando: mesopotâmica; egípcia; grega; romana; creta; celta;
védica; andina; banto; judaica e o culto a Endovélico), em que o eixo central de
comunicação com as divindades era o ex-voto.
Na construção dessa teoria, fizemos uma longa pesquisa na tentativa de
provar o papel ancestral do ex-voto como princípio básico de diálogo entre o ser
humano e seus deuses.
No terceiro capítulo, tratamos dos ex-votos além do catolicismo. Trouxemos, a
princípio, um breve histórico de como os ex-votos passaram de práticas rechaçadas,
consideradas pagãs, até serem assimiladas e fazerem parte da fé cristã, de modo
especial no catolicismo.
Nosso objetivo, neste capítulo, foi apresentar outras manifestações religiosas
que também dialogam com suas divindades por meio de expressões que podem ser
consideradas como ex-voto. Neste capítulo, escolhemos como guia a Matriz
religiosa Brasileira, segundo a teoria de José Bittencourt Filho.
Além de destacarmos a presença de tais práticas devocionais no catolicismo
atual, abrimos a possibilidade de reconhecer os princípios desse diálogo (ser
humano – divindade), por meio dos ex-votos em outras denominações religiosas. A
partir de nossa pesquisa, foi possível detectar essa prática em religiões evangélicas,
sobretudo nas denominações neopentecostais.
Concluímos o terceiro capítulo tratando da presença do pagamento de
promessa por meio dos ex-votos nas religiões de matriz africana, destacamos essas
práticas na Umbanda.
A metodologia utilizada, além da bibliográfica, foi, sobretudo, a do inventário.
A nossa pesquisa de catalogação das peças nos locais determinados e nos sites
nos ajudou na defesa de nossa hipótese, sendo imprescindível no resultado que
apresentamos.
Em nosso último capítulo, o quarto, intitulado “Novas Tipologias de Ex-votos”,
chegamos ao objetivo central de nossa tese: revisitar as teorias da Folkcomunicação
156
que tratam os ex-votos como veículos jornalísticos, apoiados em Luiz Beltrão e José
Marques de Melo.
Depois de destacarmos a importância dos estudos dos ex-votos na corrente
folkcomunicacional, demos um passo além, revisitamos também a tipologia dos ex-
votos criada pelo pesquisador mexicano Jorge González e que foi adotada pelos
pesquisadores da Folkcomunicação. Propomos, dessa forma, uma atualização.
Mantemos os cinco tipos de ex-votos sugeridos por González, e
apresentamos outros cinco, totalizando dez tipos. Nosso intuito foi ampliar o conceito
de ex-votos, somando, neste núcleo de pesquisa, expressões votivas de outras
denominações religiosas, e também enquadrando alguns elementos da religiosidade
popular que não se encaixavam na tipologia de González.
Recapitulamos a nova tipologia que propomos, embasados na tipologia
desenvolvida por Jorge González:
- Ex-votos figurativos
- Ex-votos representativos
- Ex-votos discursivos
- Ex-votos orais
- Ex-votos midiáticos e digitais
- Ex-votos pictóricos
- Ex-votos arquitetônicos
- Ex-votos de agrado
- Ex-votos corpóreos
- Ex-votos alimentícios
157
Com essa retrospectiva de nossa tese, podemos dizer que nossos objetivos
propostos foram alcançados.
Primeiramente, porque conseguimos apresentar uma tipologia, atualizada,
dos ex-votos, sobretudo tendo em conta outras manifestações religiosas que não
estão ligadas de forma exclusiva ao catolicismo. Incluímos nesta nova tipologia
expressões devocionais relacionadas ao pagamento de promessa (ex-voto) de
importantes seguimentos religiosos do Brasil, como as denominações evangélicas e
as religiões de matriz africana (Candomblé e Umbanda). E o fundamento dessa
inclusão se baseia na própria história dos ex-votos, sempre presente em
manifestações religiosas ancestrais.
Acreditamos, inclusive, que a tipologia que propomos abarca também outras
formas religiosas que não contemplamos em nossa pesquisa. A nova tipologia, a
nosso ver, possibilita um enquadramento mais amplo da ação devocional de retribuir
a uma divindade a graça efetivada ou o milagre realizado.
Nesta conclusão, poderíamos nos perguntar sobre o que a nossa pesquisa
ensina a partir dos resultados que alcançamos. Na tentativa de responder tal
pergunta, o primeiro pensamento que desponta da nossa pesquisa é que a religião é
comunicação por natureza.
Ampliando um pouco mais a nossa reflexão, diríamos que os ex-votos são
uma tentativa de diálogo (material e (i)material) do ser humano que crê com a
divindade que ele cultua. Instintivamente (com base na ancestralidade), o devoto
encontrará formas de “agradar” o “SER” que dá sentido à sua existência.
Independente da instituição religiosa, o ex-voto se mostra como um meio eficaz e
oportuno de comunicação entre o fiel e sua entidade sagrada e, também, entre o fiel
e sua comunidade.
Outro ponto de nossa pesquisa que gostaríamos de destacar é a possível
abertura que outros pesquisadores poderão encontrar com as novas possibilidades
de enquadramento do objeto “ex-voto”.
158
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