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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DEMANDAS SOCIAIS E POLÍTICA S PÚBLICAS
LINHA DE PESQUISA CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO
Caroline Muller Bitencourt
REPENSANDO A TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES: NOVAS
PERSPECTIVAS COM RELAÇÃO AO JUDICIÁRIO EM FACE DA N ECESSIDADE
DE REALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO ESTA DO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Santa Cruz do Sul, dezembro de 2008
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Caroline Muller Bitencourt
REPENSANDO A TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES: NOVAS
PERSPECTIVAS COM RELAÇÃO AO PODER JUDICIÁRIO EM FAC E DA
NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HU MANA NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado – da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, para obtenção do título de Mestre em Direito Orientadora: Prof. Dra. Mônia Clarissa Hennig Leal
Santa Cruz do Sul, dezembro de 2008
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Caroline Muller Bitencourt
REPENSANDO A TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES: NOVAS
PERSPECTIVAS COM RELAÇÃO AO PODER JUDICIÁRIO EM FAC E DA
NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HU MANA NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Esta dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado – da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.
Dra. Mônia Clarissa Hennig Leal Professor Orientador
Dr. José Luiz Bolzan de Morais Professor Convidado
Dr. Jorge Renato dos Reis Professor Convidado
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Dedico ao maior de todos os meus mestres: meu pai. “Tuas lições jamais serão esquecidas, pois foram pautadas no teu exemplo de grandeza como ser humano. Tua ausência física me ensinou, na mais profunda dor da saudade, que o tempo é mera invenção humana e, que nem mesmo a infinita distância dos mundos que hoje nos separa é capaz de abarcar meu imenso amor por ti. Amo-te eternamente, amo tua história, amo minhas lembras que me mantém firme nesta caminhada tão árdua sem tua mão..... e agradeço a fé que me move, até o dia do nosso reencontro, quando no acalento de teu colo e sob o olhar dos seus serenos olhos azuis, ei de sossegar meu coração novamente”. Espere por mim! Ao meu amado filho Felipe, que me faz renascer a cada sorriso: “O amor que sinto por ti é a parte mais linda de mim mesma!”.
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AGRADECIMENTOS
Quando nos deparamos com desafios que a vida nos impõe ou mesmo diante sonhos que almejamos alcançar, impossível não nos questionarmos dos nossos limites e da nossa capacidade de enfrentá-los, resistir, superá-los ou mesmo de vencê-los. O mestrado para mim, muito mais do que um sonho, um objetivo profissional, foi minha mudança de vida. A cada linha que escrevi, eu escrevi com o coração, com o ingênuo desejo de mudar o mundo e a mim mesma. O mundo, obviamente, não foi possível (ao menos por hora), mas a minha vida sim, pois me amparei e aprendi com todos os que durante estes dois cruzaram em meu caminho e, que, certamente, deixaram marcas profundas. Motivo pelo qual, passo a agradecer com todo o carinho que merecem.
Primeiramente, a duas pessoas que sempre acreditaram e confiaram em mim, acima de tudo. Minha mãe, minha amiga, uma grande guerreira, que jamais esmoreceu diante da dor e dos desafios: onde quer que eu chegue nesta vida, a ti eu devo, pelo mundo de amor e possibilidades que você sempre me proporcionou. Ao Fernando, que, muitas vezes, mesmo sem compreender, soube com todo altruísmo respeitar a minha sede de vida e de conhecimento. Saiba que teu apoio (oras pai e mãe do Felipe) foi imprescindível nesta caminhada, para esta pequena conquista, que também é sua.
Agradeço, com todas as homenagens, a minha orientadora Mônia Clarissa Hennig Leal, a quem hoje, com muito orgulho, chamo de amiga. Conduziste este trabalho com maestria, orientando-me em tantas angústias teóricas, guiando-me em minha ânsia por conhecimento, propiciando passo a passo a construção do saber. Agradeço pela sua intensa dedicação, por dividir com toda humildade de uma mestra sua “grande e jovem” sabedoria. Tenha convicção, que a cada orientação, conversa ou conselho, só fez com que aumentasse, ainda mais, meu respeito, minha admiração e meu carinho por ti. Por tudo isso: Danke schön !
A coordenação do mestrado em Direito, extensão da minha casa durante estes dois anos, como bem sabe o professor Jorge (ser humano simplesmente admirável), a Rô (o “coração do mestrado”), o André (sempre pronto a ajudar) - pessoas que se dedicam interinamente para este programa ter o reconhecimento que ele merece.
Aos professores do mestrado em Direito da Unisc, em especial: João, Inácio,
Clóvis, Itiberê, Jorge, Ernani, Rogério, por todo o conhecimento, as aprendizagens, as lições, os conselhos, as risadas, os desabafos, as críticas, em fim, a aulas de vida inesquecíveis. Aguardo ansiosa para o nosso reencontro, pois para mim foi apenas o começo!
A minha turma de 2007, especialmente do Constitucionalismo Contemporâneo. Vocês foram fonte de apoio, inspiração, dando-me a certeza, que ali era meu lugar. Não posso deixar de mencionar a Andi, a Mari, o Caetano , a Trícia, o André, pois, certamente, as quintas- feiras em Santa Cruz nunca mais serão as mesmas sem a nossa sutil presença.
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Não posso deixar de fazer um agradecimento especial a dois irmãos de jornada. O Paulo (o Cara), que foi meu conselheiro, a voz alegre, o olhar otimista, o exemplo a ser seguido - simplesmente inspirador!. A Leti, meu ombro amigo – a figura da intensidade, do sentir - dividimos nossas conquistas e nossas angústias/frustrações, afinal: “grandes garotas não choram”. Nosso “pequeno grande AP” comportou uma amizade que palavras não são capazes de expressar, apenas a sentimos, e como a sentimos!
Muito obrigada!
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Tantas veces me mataron, tantas veces me morí, sin embargo estoy aquí resucitando.
Gracias doy a la desgracia y a la mano con puñal porque me mató tan mal y seguí cantando
Cantando al sol como una cigarra después de un año bajo la tierra
igual que sobreviviente que vuelve de la guerra
(…)
Tantas veces te mataron, tantas resucitarás cuántas noches pasarás desesperando
Y a la hora del naufragio y la de la oscuridad alguien te rescatará para ir cantando
La cigarra
Maria Elena Walsh
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RESUMO
Considerando-se as grandes transformações sociais ocorridas especialmente após a Segunda Guerra Mundial, a contemporaneidade revela diversas crises estatais nas quais o Direito assume um papel de destaque na tentativa de responder à pluralidade de situações e de conflitos existentes que envolvem os direitos e deveres dos cidadãos. Com o advento dos Estados Democráticos, inaugura-se uma noção de cidadania ativa, que passará a reclamar frente à jurisdição a gama de direitos que lhe são garantidos através da incorporação nas Constituições contemporâneas como direitos e princípios fundamentais, destacando-se a positivação de direitos e conteúdos de difícil determinação, como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana. Tal princípio, dotado de força normativa, passa a ser informador de toda ação dos poderes instituídos, vinculando-os à sua necessária concretização. Neste cenário, quando os cidadãos passam a reclamar seus direitos ao Poder Judiciário, como uma última instância na busca pela tutela de seus direitos, a jurisdição constitucional assume a “função” de regente dos anseios da população, adotando uma postura ativa, resultando na discussão acerca de se que tal atuação consiste em uma afronta à teoria da Separação de Poderes, sistematizada por Montesquieu, prioritariamente na seara de seu conceito de independência e harmonia. É neste contexto, que o presente estudo, desenvolvido na linha de pesquisa do Constitucionalismo Contemporâneo, quer identificar uma possível solução viável à mantença do respeito necessário ao princípio da Separação de Poderes e, ao mesmo tempo, a máxima realização possível dos direitos fundamentais. Partindo-se da exposição histórica em que se desenvolveu a doutrina pensada por Montesquieu, será possível traçar uma comparação à função da teoria da separação de poderes na contemporaneidade, com base nos fundamentos expressamente delineados na Carta Magna de 1988, significativamente comprometidos com a realização da justiça social e com o respeito a dignidade da pessoa humana. Assim, na busca de responder a problemática se é possível compatibilizar-se o fenômeno de “judicialização da política” com a teoria da Separação de Poderes, quer-se demonstrar que uma flexibilização desta teoria, faz-se imprescindível e necessária, especialmente em se pensando nos termos independência e harmonia, em que todos os poderes engajados buscam o objetivo maior de concretização da dignidade da pessoa humana no Estado Democrático de Direito. Palavras-chave : Dignidade da pessoa humana. Democracia. Direitos fundamentais. Poder Judiciário. Separação de poderes.
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ABSTRACT Considering all important social transformations, especially those that happened after II World War, contemporary times show us many State crises in which Law takes a primary role trying to answer to all situations and conflicts regarding the rights and duties of citizens. The arise of Democratic States brought back the "active citizenship" concept and people started claiming to the jurisdiction for their rights, which are incorporated in contemporary Constitutions as fundamental rights and principles. We can highlight among them the affirmation of rights and contents which are hard to determine, as the principle of the human being dignity, for example, which became the main base of the constitutional rules, and has its correct normative strength and, at the same time, works as a basic principle and informs all actions of the instituted powers, making possible their necessary concretization. From this background, when citizens start claiming for their rights to the Judiciary Power, as their resource to guarantee their rights, constitutional jurisdiction is considered as a coordinator of citizens´ wishes and it takes an attitude, which results in a question about its role: if it is an offense to the theory of the Powers Separation, organized by Montesquieu, mainly regarding its concept of independence and harmony. In this context, this assignment, based on the Contemporary Constitutionalism research line, intends to identify a possible solution to the maintenance of the necessary respect to the powers separation principle and, at the same time, to ensure as many accomplishments as possible of its rights. From the historical base from which Montesquieu developed his doctrine, it will be possible to compare the function of the power separation nowadays, considering the fundaments of the 1988 Brazilian Constitution, which are highly committed to social justice and respect to the human being dignity. So, trying to answer if it is possible to make compatible the "jurisdiction process of politics" with the theory of the powers separation, we intend to show that a more flexible approach to this theory is extremely necessary, especially thinking of independence and harmony, which all powers search together for to reach a bigger objective: the dignity of the human being in the Democratic State of Law. Key-words: human being dignity - democracy - fundamental rights - judicial power - powers separation.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................12
1 APORTES HISTÓRICO - ESTRUTURAIS DO ESTADO MODERNO E O (RE)SURGIMENTO DA TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES........................16
1.1 Contextualização histórica do surgimento do Estado Moderno..........................17
1.1.1 Do Estado absolutista à teoria contratualista...................................................17
1.1.2 As revoluções que inauguram o Estado liberal, tendo como pilares os direitos fundamentais e a separação de poderes.....................................................30 1.2 Separação de poderes como doutrina e separação de poderes para além Montesquieu........................................................................................................................42 1.3 Separação de poderes em Montesquieu - análise de seus fundamentos teóricos......................................................................................................................52
2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: OS NOVOS PARADIGMAS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUA REPERCUSSÃO NA TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES ..........................78
2.1 A teoria dos direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo: novos desafios aos poderes instituídos..............................................................................78 2.1.1 A necessária vinculação da democracia com os direitos fundamentais.......84
2.1.2 A força normativa da Constituição e a vinculação da sociedade e dos poderes aos direitos fundamentais........................................................................................93 2.1.3 A Dupla perspectiva – objetiva e subjetiva - dos direitos fundamentais e a teoria das restrições na Constituição de 1988.......................................................103 2.2 O princípio da dignidade da pessoa humana como elemento constitucional vinculante dos poderes constituídos......................................................................113 2.3 O fenômeno da “judicialização da política” e da “politização do direito” na pós-modernidade..........................................................................................................122 3 NOVAS PERSPECTIVAS DA RELAÇÃO ENTRE OS PODERES: REDISCUTINDO OS LIMITES DA JURISDIÇÃO SOB O VIÉS DEMOCRÁTICO E CONSTRUTIVO PARA REALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA...............................................................................................................132
3.1 A teoria da separação de poderes: uma teoria e dois contextos....................133
3.2 Uma leitura de Montesquieu nos dias de hoje: sob um enfoque crítico na tentativa de adequação da sua teoria ao novo contexto jurídico, social e político...................................................................................................................138
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3.3 Repensando os termos de “independência e harmonia”, visando a uma complementação funcional em face da vinculação dos poderes aos direitos fundamentais..........................................................................................................150 3.4 A função e a legitimidade do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito em face da necessidade de concretização dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana................................................................................166
CONCLUSÃO.........................................................................................................183
REFERÊNCIAS......................................................................................................188
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INTRODUÇÃO
Passados 20 anos da promulgação da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, muitas são as conquistas jurídicas, sociais, culturais e políticas
oriundas do novo paradigma inaugurado com uma Constituição Cidadã, que, em seu
arcabouço normativo, trouxe, como princípio fundamente de todo o ordenamento
jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana. Muitos conceitos hão que ser
repensados frente ao impacto de uma Constituição amplamente evoluída e
comprometida com a concretização dos direitos fundamentais, porém inserida em
uma realidade econômica e política deficitária, em uma democracia por deveras
imatura em nível de engajamento social. Tem-se, de um lado, uma gama de
expectativas sociais e de direitos positivados e, de outro, uma frustração coletiva em
relação à não realização dos mesmos.
Na tentativa de proteger os conteúdos constitucionais e de efetivar os valores
sociais ali inseridos, a jurisdição constitucional, ao reconhecer que o conteúdo
normativo, por si só, não possui uma existência autônoma diante da realidade que
pretende retratar, passa a assumir uma conduta ativa na garantia desses direitos.
Contudo, faz-se mister reconhecer o entrave existente entre norma
constitucional e realidade social. Assim, os cidadãos, procurando dar eficácia aos
princípios e valores ali inseridos, através da busca pela proteção e tutela dos seus
direitos, recorrem ao Poder Judiciário como um guardião das promessas
constitucionais, como sendo o último intérprete capaz de dar vida às normas ali
inseridas e garantir que as mesmas não permaneçam apenas como meras
ilustrações e contornos decorativos, sem possuir qualquer eficácia.
Neste contexto exsurge o debate acerca da possível invasão de competência
entre os poderes instituídos, alegando-se que a atuação mais efetiva do Poder
Judiciário, mesmo que em nome da proteção dos direitos fundamentais, constitui
uma afronta ao princípio da separação de poderes, recepcionado como um dos
pilares das conquistas democráticas após as revoluções liberais.
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O problema que instigou o presente estudo partiu da indagação se a
tradicional teoria da separação de poderes, tal como originariamente proposta por
Montesquieu, atende as exigências de um Estado Democrático de Direito que tem
como seu fundamento maior, o princípio da dignidade da pessoa humana. Diante da
complexidade das questões que envolvem direito e política, questiona-se de que
maneira pode ser repensada esta teoria nos aspectos que concernem sua
independência e harmonia em face da necessidade de ampla realização da
dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais no contexto do Estado
Democrático de Direito. Dito de outro modo, indaga-se se é possível compatibilizar-
se o fenômeno de “judicialização da política” com a teoria da separação de poderes?
Constatado o cerne do problema e um possível confronto entre a realização
dos direitos fundamentais e o risco à democracia, no exercício da jurisdição, é o
ponto em que o presente trabalho pretende fixar suas bases teóricas e doutrinárias
para, através do método dedutivo, levantar os aspectos gerais de compreensão da
situação alhures referida e, ao final, buscar uma tentativa de solução que permaneça
nos contornos do ordenamento jurídico, mantendo o respeito de um regime
democrático, mas que, ao mesmo tempo, não permita que os direitos fundamentais
fiquem à mercê da vontade política de qualquer que seja o órgão instituído.
Dentre as principais hipóteses suscitadas, está a possibilidade/necessidade de
se fazer uma releitura da clássica teoria de separação de poderes – isto é, das
chamadas funções estatais – no sentido de se substituir a tradicional noção de
divisão/separação estrita de competências e de funções por uma perspectiva que
trabalhe com a noção de complementaridade, por estarem todos os poderes
vinculados à realização dos fundamentos no Estado Democrático e, essencialmente,
comprometidos com o respeito e concretização do princípio da dignidade da pessoa
humana. Dentro deste contexto, quer-se investigar a hipótese de que o papel
assumido pelo Poder Judiciário é conseqüência natural da positivação e
democratização dos direitos fundamentais, assim como, se é possível fazê-lo, sem
que isto signifique ou implique numa usurpação de funções.
Para tal pretensão, no primeiro capítulo desta pesquisa, buscar-se-á
estabelecer aspectos básicos da origem da atual concepção de Estado através da
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contextualização do cenário histórico, desde a concepção absolutista e sua
contribuição ao conceito de Estado e de Direito, visando à melhor compreensão dos
anseios pretendidos com a teoria contratualista e com as revoluções liberais dos
Séculos XVII e XVIII, marcos fundacionais da afirmação do regime democrático,
através da positivação da separação de poderes nas Constituições liberais.
Ainda neste primeiro momento, tem-se a pretensão de apresentar as principais
doutrinas que se referem à teoria da separação de poderes, especialmente a teoria
de Montesquieu, indiscutivelmente a conhecida na doutrina ocidental, pois será
através da demonstração do contexto que o referido autor pretendeu retratar e suas
possíveis pretensões, ou seja, os problemas que visava sanar com o
estabelecimento de sua proposta de desconcentração do poder, o que torna
possível encontrar os elementos suficientes para uma análise teórica de sua
doutrina.
Na seqüência do presente estudo, abordam-se as inversões paradigmáticas,
fruto do reconhecimento do Estado Democrático de Direito e de um novo conceito de
democracia, que tem como princípio fundamental e base hermenêutica para a leitura
de todos os seus dispositivos, o princípio da dignidade da pessoa humana. Para a
compreensão do verdadeiro significado e importância que abarca este princípio, faz-
se mister uma referência à força normativa que os princípios constitucionais
adquirem em um cenário pós -segunda guerra mundial, especialmente com o
reconhecimento e inovações trazidas com a teoria dos direitos fundamentais, tais
como a dupla perspectiva – dimensão objetiva e subjetiva, a eficácia vertical e
horizontal, a eficácia imediata e a teoria dos limites e restrições.
Reconhecendo-se que os métodos hermenêuticos tradicionais do positivismo
não conseguem, isoladamente, responder às complexas demandas sociais de uma
sociedade altamente pluralista vem à tona uma suposta tensão entre o próprio
direito e a política, constituindo a margem necessária para uma atuação mais
criativa e interventiva dos órgãos jurisdicionais; fenômeno que na
contemporaneidade passou a ser conhecido e denominado como judicialização da
política e politização do direito, fenômenos conexos, porém diferentes.
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No terceiro e último capítulo da pesquisa, relaciona-se a possibilidade de uma
releitura da teoria da separação de poderes e das tradicionais funções atribuídas ao
Poder Judiciário, face às novas exigências que impõe a teoria dos direitos
fundamentais e a necessidade de efetivação do princípio da dignidade da pessoa
humana. Procura-se através do aprofundamento dos conceitos mencionados, um
possível equilíbrio para que a atuação do Judiciário não assuma a feição de um
ativismo judicial, com características paternalistas, mas que, ao mesmo tempo, os
direitos fundamentais não fiquem à disposição de possíveis disputas entre os
poderes instituídos ou aprisionados a ideologias e pretensões políticas dos
governantes.
Assim, a idéia é apresentar um paralelo comparativo entre a realidade histórica,
social e jurídica de quando ocorreram as primeiras positivações do princípio da
separação de poderes, bem como a sua função primordial dentro do contexto
jurídico e estatal, com a separação de poderes no constitucionalismo
contemporâneo frente à realidade de um Estado Democrático de Direito e do novo
papel a ela atribuído. Portanto, uma releitura dos conceitos tradicionais de
independência e harmonia faz-se imperiosa para que a doutrina da separação de
poderes não seja fadada à sua superação na práxis jurídica, e sim, para que seja
mais um pilar na construção de uma Jurisdição Constitucional democrática, aberta,
garantidora e concretizadora dos direitos eleitos pela soberania popular como
essenciais à construção de um Estado Democrático.
Por fim, ao término deste estudo, apresentam-se as conclusões finais, que
visam a responder o problema suscitado através da comprovação das suas
hipóteses, conduzindo a um possível caminho que auxilie o direito a acompanhar as
necessidades sociais, principalmente na realização da dignidade da pessoa humana
enquanto referencial máximo dos princípios constitucionais e que reflete o “espírito”
constitucional do Estado Democrático de Direito.
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1 APORTES HISTÓRICO - ESTRUTURAIS DO ESTADO MODERNO - E O
(RE)SURGIMENTO DA TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES
Compreender uma teoria é muito mais do que dissecar os argumentos nela
consubstanciados; faz-se mister sempre uma análise dos elementos envoltos que
irão dar contornos às propostas delineadas pelo seu autor. O fenômeno histórico no
qual se origina é hermeneuticamente fundamental às origens dos conceitos, ao
sentimento nela retratado, bem como para se extrair a pretensão do autor à sua
época, quando da sua concepção.
Não há como compreender a teoria da separação de poderes, sem antes
vislumbrar o cenário que lhe deu origem em sua versão “moderna1”, quais as
condições políticas, sociais, econômicas e culturais da época em que se pensou a
necessidade de separação dos poderes, ou seria a necessidade de separação das
funções a ser exercida por um mesmo e único poder? O que motiva cabalmente esta
teoria que se tornou um dos pilares do Estado Democrático de Direito? Tais
indagações não estão expressas na obra “O Espírito da Leis”, marco doutrinário da
moderna teoria da separação de poderes, mas entanto, a análise dos fenômenos
históricos dessa época traz aportes importantes para a compreensão de muitos dos
seus conteúdos e do que com ela se pretendeu retratar no século XVIII.
Com tal pretensão, buscar-se-á, na origem do próprio conceito de Estado de
Direito, bem como nos conceitos de soberania, no surgimento das primeiras idéias
de democracia, nos pensadores desta época e nas revoluções por eles idealizadas,
a contextualização deste cenário em que exsurge a sistematização de Montesquieu,
tido como “pai” da moderna teoria da Separação de Poderes.
1 No sentido de que, como poderá se verificar no decorrer deste capítulo, a “Separação de Poderes”, tem origem mais remota na Teoria da Constituição mista, em pensadores como Aristóteles e Políbio, que na Grécia já levantavam a problemática da concentração de poder nas mãos de um único homem ou instituição. Embora não seja este o foco do presente estudo, pois se pretende analisar a separação de poderes no contexto moderno, é importante compreender o sentido de sua origem, visto que sempre estará ligada a um contexto histórico que pretendeu regular.
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1.1 Contextualização histórica do surgimento do Est ado Moderno
Antes de adentrar nos pilares do Estado liberal e de suas bases, é
necessário, em breves apontamentos, situar-se o cenário histórico que lhe deu
origem. O foco de tais situações históricas, dada nossa proposta inicial, será sempre
relacionado ao poder, no sentido da relação existente do homem com os outros
homens, do homem com a criação do Estado e como se dá o domínio entre ambos.
Para tanto, sempre tendo o foco na questão do Poder Estatal em sua
justificação e elementos de legitimação no Estado moderno onde repousa a teoria
da separação de poderes nas suas Constituições, necessário se faz remontar às
origens de forma de justificação estatal, vez que, o conjunto de fatores políticos,
históricos e sociais serão determinantes à leitura contextual da doutrina de
Montesquieu tanto no Estado Liberal, quanto no Estado contemporâneo.
1.1.1 Do Estado absolutista à teoria contratualist a
Em verdade, o problema maior do medievo não era a falta de Estado ou de
estadualidade, e sim, a falta de uma unificação do poder para administrar os
conflitos e as mudanças oriundas com o decorrer do tempo e da evolução humana.
Esta fragmentação do poder, característica da época medieval, composta por feudos
controlados pelos senhores feudais, foi abalada por uma série de problemas que
influenciaram diretamente no surgimento do Estado absolutista. Dentre eles, pode-
se destacar as invasões bárbaras, a disputa de poder ocorrida na baixa Idade Média
entre Igreja e Estado, o surgimento das navegações, o comércio exterior, fatores
intelectuais como o estabelecimento do Direito Romano, a vontade eclesiástica e a
instalação de Igrejas nacionais, e por fim, pela criação dos Estados nacionais como
tentativa de resposta ou superação dessa fragmentação.
A falta de controle único que aumentasse a força e o poder com uma política
centralizadora justificou o nascimento do chamado Estado absolutista, no qual o
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exercício do poder se dá pelas mãos de um único soberano, no caso o Monarca2,
muito embora a característica estamental feudal, de início, se mantenha, como força
social decorrente, dividindo-se a sociedade em nobreza, clero e os que não
integravam estes estamentos (os demais, especialmente vassalos, súditos):
A teia de relações hierárquico-pessoais que havia marcado o desenvolvimento da era feudal cede o espaço a um arranjo institucional muito mais sofisticado e complexo. Tudo isso faz pressupor a existência de um sistema jurídico mais evoluído e, sobretudo, muito mais consistente. Entre seus efeitos mais salutares conta-se, ainda, o do nascimento dos parlamentos, corpos judiciais semiprofissionalizados, que, sensivelmente a partir do século XIII, de forma gradual e generalizada, se irão especificadamente como checks face às veleidades de exercício do poder pessoal por parte do monarca como legítimo soberano3.
Contudo, uma das grandes indagações que sempre se atrela ao conceito de
poder é a de como justificar sua existência, quais os elementos capazes de dar
legitimidade ao poder exercido. À época do absolutismo, a justificativa era dada
através da religião, mais especificadamente, do cristianismo. O rei era tido como
verdadeiro representante de Deus na Terra. Todo poderoso, o rei recebia seus
poderes “milagrosos” através da cerimônia da consagração e, em troca deste “favor
eclesiástico”, colocava o Estado a serviço da unidade religiosa que lhe dava
legitimidade frente aos seus súditos4. Esta característica também implica o
reconhecimento de certos poderes ao rei, especialmente no que concerne aos
direitos.
Como neste período histórico a religião e o Estado estavam concisos, ou seja,
não havia um limite real entre os mesmos, a que veio ocorrer com a laicização do
direito no século posterior, toda justificação do poder consistia na figura de Deus
como centro do universo (teocentrismo), sendo o soberano detentor do poder e do
comando da vida dos súditos, visando protegê-los contra sua própria natureza
humana, ou seja, todos os atos do Monarca absolutista se justificavam pela vontade
divina, de natureza teológica. Marcos doutrinários deste período histórico são as
obras de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, que, embora tivessem 2 BODIN, Jean. Los Seis Libros de la República.Tradução e Estudos Preliminares de Pedro Bravo de Gaia Madrid: Tecnos, 2007. p. XXXIV, XXXV. 3 QUEIROZ, Cristina M. M. Os actos políticos no Estado de direito. O problema do controle jurídico do poder.Coimbra: Almedina, 1990. p. 43. 4 BODIN, op. cit., p. XXXIV.
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concepções diferentes acerca da natureza humana, defendiam veementemente a
justificação do poder pela força divina.
Impende considerar que a Teoria Absolutista, embora característica da tirania
do governo de um único homem veio a atender um momento histórico no sentido de
unificação do poder. Contudo, como observa Bodin, um dos referencias teóricos5
fundamentais deste período, o soberano não era absoluto no sentido de exercício
ilimitado do poder, pois devia se sujeitar às leis de Deus, às leis naturais e comuns a
todos os povos, muito embora já descrevesse a tendência dos soberanos em abusar
do poder, acreditando que as boas ações, as graças que concedia, compensariam
os crimes e abusos cometidos no exercício de suas atribuições:
Si decimos que tiene poder absoluto quien no están sujeito a las leyes, no se hallará en el mundo príncipe soberano, puesto que todos los princípes de la tierra están sujeitos a las leyes de Dios y de la naturaleza y a la ciertas leyes humanas comunes a todos los pueblos. Y la contrario, puede suceder que uno de los súditos esté dispensado y exento de todas las leyes siempre que bajo la obediencia y sujeción de quienes detentan la soberanía. Es necesario que quienes son soberanos no ésten de ningún modo sometidos al imperio de otro y pueden dar ley a los súditos y anular o enmendar las leyes inútiles.6
No entanto, observa-se que não é apenas à lei divina a que o poder do
príncipe está limitada, devendo obediência às leis por ele próprio editadas (criadas e
outorgadas), porque todos os homens deviam estar submetidos as mesmas.
Entendia-se que o rei que violasse os direitos naturais (que era considerado o direito
privado) e as leis divinas, era visto como um tirano e estaria exercendo, assim, a
chamada monarquia despótica7, salvo nos casos de necessidade e justificada
5 Queiroz explica que, com Bodin, tem início um processo de individualização do Estado, como sendo um princípio absoluto de ordem, como espécie de realidade empírica do poder, no sentido de que, até então, a justificação era divina, atribuindo a Deus a legitimidade de seu poder. Com Bodin, a legitimidade do governo através do conceito de soberania integra-se no processo de construção do Estado que se justifica na prudência e virtuosidade do príncipe, como fonte de justificação de seu próprio poder. Ver em: QUEIROZ, Cristina M. M. Os actos políticos no Estado de direito. O problema do controle jurídico do poder.Coimbra: Almeidina, 1990. p. 44-45. 6 BODIN, Jean. Los Seis Libros de la República.Tradução e Estudos Preliminares de Pedro Bravo de Gaia Madrid: Tecnos, 2007. p.52 7 No sentido que a esta época distinguem-se as formas de monarquia como senhorial, real e tirania, de acordo com a forma com que o poder nela é exercido. Ver in: BODIN, Jean. Los Seis Libros de la República. Madrid:Tecnos, 2007. p. 92-102.
20
motivação8. A doutrina de Bodin esperava, pois, que os reis fossem prudentes em
seus atos, benfazejos com seu povo e virtuosos quanto ao seu caráter. No entanto,
sua contribuição à teoria do Estado vai mais além da forma com que o monarca
deveria conduzir seu reinado:
Ao formalizar pela primeira vez, em “termes du droit”, o conceito de soberania, BODIN trata de salvar a “razão de Estado”, dando-lhe uma base jurídica ou, noutros termos, uma concreta fórmula jurídica. A peculiaridade de seu pensamento resulta assim da ordenação da tarefa que a si impôs: a de integrar o Estado por meio exclusivamente jurídicos. Neste processo de objetivação, racionalização, institucionalização do poder, o seu conceito de soberania vem a revelar-se, afinal, como instrumento mais adequado à integração dos poderes feudais numa unidade fática e normativa que se lhes impõe irresistivelmente como algo superior: O Estado. Sem “summa potestas”, dirá, o Estado é um “navio sem quilha”. O mesmo é dizer que sua nota saliente radica na unidade do seu governo. O seu elemento diferenciador e individualizador, consubstancia-se, pois, nessa “summa potestas”, nessa manifestação suprema e superlativa do poder, convertido doravante e em definitivo não num simples e bruto poder fático (potentia), mas num poder submetido ao direito nas suas múltiplas manifestações e tarefas e na essencialidade dos meios de que pode necessariamente socorrer-se9.
Quanto a esta esfera de limitação do poder, ressalta-se que o único direito
realmente protegido e tutelado é o da propriedade, visto que, neste momento
histórico, as penas de morte eram comuns. Quem detinha a propriedade eram o
clero e a nobreza, que deveriam protegê-la contra a usurpação daqueles
desprovidos de bens, motivo pelo qual as leis eram sancionadas no sentido de
resguardar este direito tido como “privado”, ou seja, não de uso comum a todos.
Portanto, nesta época, quem legisla e quem executa é o próprio rei através das
ordenações e da execução (feita pelos magistrados), a qual também se dará a
mando e segundo a vontade do rei. Assim:
There were three degrees of popular participation. In the first, the king acted alone with the tacit consent of the people. In the second, where doubts arose with respect to the law, he acted with the advice and consent of the representatives. In the third, with respect to individual cases, he obtained a judicial verdict. However, in the absence of institutional checks, the monarch effectively determined the appropriate form of consent. “Whether he settled the matter by personal decree, or after giving audience to, or even perhaps with the collaboration of counsellors, i.e., representatives of the community;
8 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade. Para uma teoria geral da política. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 13 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 97-98. 9 QUEIROZ, Cristina M. M. Os actos políticos no Estado de direito. O problema do controle jurídico do poder. Coimbra: Almeidina, 1990. p. 39-40.
21
or finally, by procuring the judgment of the high court or a court of princes, was decided entirely at his option.” So long as he was seen to be in harmony with the law, he avoided the ultimate sanction of resistance, held to exist not only in the barons but also in every freeman. This uncertainty of constitutional due process was lessened in the later middle ages when Estates became formally constituted with rights to be consulted in defined circumstances. The picture of medieval constitutionalism which emerges from history is that of a paradigm of government in which the function of ruling was clearly distinguishable from that of legislating. The king participated in both functions10.
Destarte, em que pese o exercício do poder, impende discorrer sobre o termo
magistrado, utilizado hoje para designar juízes, que a esta época tinha um
significado diferente e é de extrema importância a compreensão do modo como era
vista a figura neste período. Em verdade, três figuras eram utilizadas pelo rei para
exercer seus poderes: o magistrado, o oficial e o comissário. Nota-se que, não se
falava de pessoas ou instituições dividindo o poder, tratava-se de figuras tidas como
“ajudantes” do rei, que exerciam determinadas funções a mando e segundo a
vontade do soberano.
Dado que el magistrado es, después del soberano, la persona principal de la república, a quien el soberano confia la autoridade, la fuerza y el poder de mando, será oportuno, antes de seguir adelante, tratar brevemente de la obediencia que debe al príncipe soberano, los magistrados y los particulares. Em tanto que el soberano no conoce mayor ni igual a él y todos os súbditos están bajo su poder, el particular no tiene súbditos sobre quien ejercer poder público de mando. Em cambio, el magistrado contiene em si diversas personas y. frecuentemente, cambia de la calidad, de porte, de semblante y de manera de proceder. Para cumplir com su cargo, debe saber obedecer al soberano, someterse al poder de los magistrados
10 RAPNAPALA Suri. Art. John Locke´s Doctrine of the Separation of Powers: A Re- Avaluation, – The Medieval Separation of Powers - The American Journal of Jurisprudence, 1993. p. 192-93. Tradução livre: Havia três níveis de participação popular. No primeiro, o rei agia sozinho com o consentimento tácito do povo. No segundo, quando surgiam dúvidas com relação à lei, ele agia com o conselho e consentimento de representantes. No terceiro, no que dizia respeito a casos individuais, ele obtinha uma sentença judicial. No entanto, na falta de controle institucional, o monarca, efetivamente, determinava a forma adequada de consentimento. "Se a questão viesse a ser resolvida através de um decreto pessoal, ou através de uma audiência para tal questão, ou mesmo com a colaboração de conselheiros, ou seja, representantes da comunidade, ou, finalmente buscando o julgamento de uma corte superior ou um tribunal de príncipes, qualquer opção acima seria baseada somente na sua escolha pessoal". Enquanto fosse visto em harmonia com a lei, ele evitaria a resistência tanto de barões, como também de todo cidadão livre. Esta incerteza da obrigação do processo constitucional foi moderada na Idade Média, quando os Estados foram constituídos formalmente com direitos, a serem consultados em circunstâncias específicas. A imagem do constitucionalismo medieval que emerge da história é a de um paradigma de governo na qual a função de governar era claramente distinta da de legislar. O rei participava em ambas as funções.
22
superiores, honrar a sus iguales, mandar a los súditos, defender a los débiles, oponerse a los fuertes y hacer justicia a todos.11
O magistrado era um oficial, espécie de braço direito do rei, responsável pela
execução de mandados (oriundos somente do poder do príncipe) e da letra de
justiça, no sentido de fazer cumprir as ordenações do rei, pois é ele quem detém o
poder público para obrigar a quem não quer obedecer às ordens ou contrariar as
proibições. Em verdade, o princípio que afirma a força do magistrado em fazer
cumprir, proibir, permitir e até mesmo castigar, se refere mais à própria atribuição
que outorga ao magistrado do que propriamente ao que está contido na lei. Neste
caso, o magistrado é a lei viva em nome do rei, ao qual deve plena obediência12. A
legislação fazia parte do próprio processo judicial, ou seja, o magistrado (juiz)
legislava e executava a mando do rei.
Assim, à época do absolutismo, o magistrado era uma “espécie de juiz”
(embora não fosse possível se falar em poder judiciário). Os atos praticados pelos
magistrados desta época histórica justificam, inclusive, de certa forma, o repúdio
posterior à figura do juiz, um mero executor da vontade da lei, como denota a própria
Revolução Francesa, com o período do exegetismo liberal. A obediência na
execução das penas e sentenças proferidas era oriunda do poder de mando, da
plena soberania do monarca, não da execução do expresso na própria lei. Por isto, a
figura dos magistrados era temida, pois eles apareciam como executores da tirania
dos monarcas e independente de tais ordens parecerem justas ou injustas; seu
dever era apenas punir a quem não obedecesse os mandos e proibições do rei, não
cabendo a ele, em momento algum, questioná-los.
Na natureza do Estado absoluto, ainda sob a ótica do direito, a unificação
ocorre justamente no sentido de a monarquia absoluta ser a forma de Estado, em
que o único ordenamento jurídico que se reconhece é o estatal, cuja fonte é a lei, a
lei ditada pelo monarca. O poder absoluto é, pois, definitivamente, o único capaz de
produzir o direito e, portanto, não reconhece outro senão seu próprio direito; nem
11BODIN, Jean. Los Seis Libros de la República.Tradução e Estudos Preliminares de Pedro Bravo de Gaia Madrid: Tecnos, 2007..p.134. 12 Ibidem. p.139-141.
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mesmo consegue reconhecer seus próprios limites, pois, afinal, o monarca é a
personificação da lei e o magistrado, o responsável por fazê-la respeitar.
The judicial power in the community was yet indistinct from the executive power, as the law was applied through the royal courts whose members had no independence through tenure or otherwise. It is not unusual that laws undergo alteration in the process of its judicial application to new situations. Hence customary law which was theoretically immune from royal amendment, nevertheless was in flux in the royal courts. But the modifications to the law effected through adjudication, resulted, not from the king´s voluntas, but from legal rationality involved in the task of applying principles to particular circumstances13.
Após uma breve referência ao príncipe virtuoso e seguidor das leis divinas de
Bodin, ao tratar do poder absoluto do monarca e do Estado absolutista como única
fonte do direito, cabe mencionar outra face da monarquia desta época, relatada por
um doutrinador que conheceu de perto os bastidores do poder, bem como a
preocupação apresentada com relação à concentração absoluta do poder.
Para tanto, a referência é a obra “O Príncipe”, de Maquiavel, que trará outro
registro do verdadeiro exercício da soberania do monarca, numa audaciosa
exposição teórica sobre o absolutismo e que será, posteriormente, imprescindível
influência nas lutas que se travaram, no início do século XVII, contra as monarquias
absolutas.
O maquiavelismo é a demonstração teórica, através da observação prática,
de que um estado absoluto é um estado sem limites. Muito embora, na prática, não
houvesse limites jurídicos ao poder do monarca, poderiam existir outros limites,
como o religioso ou o moral (como o próprio respeito ao que se denominava, a esta
época, como leis divinas). No entanto, a doutrina de Maquiavel vem romper também
com estes limites, ao dizer que a vontade e o poder do príncipe está além do bem e
13 RAPNAPALA Suri. Art. Jonh Locke´s Doctrine of the Separation of Powers: A Re-Avaluation. The American Journal of Jurisprudence(1993), p. 193. Tradução de O poder judiciário na comunidade era ainda indistinto do poder executivo, já que a lei era aplicada através das cortes da realeza, cujos membros não tinham independência através da detenção de mandatos ou de outra forma. Não é incomum que as leis sofram alterações durante o processo de sua aplicação judicial a novas situações. Portanto o direito que era teoricamente imune a emendas da realeza, não obstante estava sob o fluxo das cortes da realeza. Mas as alterações à lei efetuadas através do julgamento, resultavam não das vontades do rei, mas da racionalidade jurídica envolvidas na tarefa de aplicação dos princípios à circunstâncias específicas.
24
do mal, sem qualquer vínculo com a moral; antes pelo contrário, para manter-se no
poder, o príncipe deverá ser temido pelos simples mortais, que são apenas súditos
seus. No entanto, outro mérito atribuído à doutrina de Maquiavel, além de revelar os
métodos de como os príncipes exercem e se mantêm no poder, é o da descoberta
da política como categoria independente, distinta da moral e da religião.14
Diferentemente de Bodin, para Maquiavel deve o príncipe ser astuto ao invés de
virtuoso, sendo que somente assim será capaz de manter-se no poder:
E pois que um príncipe precisa saber realmente valer-se de sua natureza animal, convém que tome como modelos a raposa e o leão: posto que a raposa mostre-se indefesa contra os lobos e o leão contra as armadilhas do homem, o príncipe proverá às suas carências com aquela conhecendo as armadilhas do homem e com este espavorindo os lobos. Com efeito, aqueles que agem unicamente como leões revelam sua inabilidade. Portanto, não pode nem deve um soberano prudente cumprir com suas promessas quando um tal cumprimento ameaça voltar-se contra ele e quando se diluem as próprias razões que o levaram a prometer15.
Nesta seara, tem-se outra contribuição da obra de Maquiavel: a substituição
das formas de governo aristotélicas16 por uma bipartição entre principados (que
correspondem ao reino, conquistados tanto pela virtude como pela violência, pela
fortuna ou com consentimento dos cidadãos) e repúblicas (podendo estas ser tanto
aristocracias quanto democracias). A diferença é que as repúblicas podem ser
governos de poucos ou governos de muitos. No entanto, segundo Maquiavel, não há
estabilidade em um governo misto (diferentemente do que acreditavam Aristóteles e
Políbio, como se verá adiante), uma vez que, aumentando o poder de outro, este
tenderia a perder seu próprio poder, pois o homem é um ser sedento por poder17.
O maquiavelismo assim entendido chega a fazer parte da teoria da razão do Estado , que acompanhou a consolidação do estado absoluto. Com a expressão “razão de estado” deve ser entendido que os Estado tem suas próprias razões que o indivíduo desconhece. Em nome de tais razões, o
14 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 3. ed. Brasília: UNB, 1995, p. 14-15. 15 MAQUIAVEL. Nicolau. O príncipe. Tradução de Antonio Carruccio Caporale. São Paulo: L&PM Pocket, 1998. p. 100. 16Antecedentes remotos da divisão de formas de governo são apresentados por Aristóteles em sua obra “A Política”, com a clássica tripartição das formas de governo como sendo a monarquia (governo de um), a aristocracia (governo de poucos) e a política (usada para referir-se à democracia, que é o governo de muitos). Também estas foram as formas apresentadas por Políbio tendo em vista a realidade de Roma. Ele repete as duas primeiras formas e denomina a terceira, propriamente, como democracia. 17 MAQUIAVEL. Op. Cit. p. 15-21.
25
Estado pode agir de maneira diferente daquela pela qual o indivíduo deveria comportar-se nas mesmas circunstâncias. Em outras palavras, a moral do estado, ou seja, daqueles que detêm um poder supremo de um homem sobre os outros homens, é diferente da moral dos indivíduos. O indivíduo tem obrigações que o soberano não tem. A teoria da razão do Estado é portanto uma outra maneira de afirmar o absolutismo do poder soberano, o qual não está obrigado a obedecer nem às leis jurídicas, nem às leis morais. Enquanto que, através das teorias jurídicas, se vinha afirmando a supremacia do poder estatal sobre o direito, com as teorias do maquiavelismo e da razão de Estado dá-se um passo a frente: afirma-se a soberania do poder estatal também sobre a moral (e sobre a religião). De outra forma não se poderia chegar à justificação do estado absoluto. Chegara-se, porém, a extremas conseqüências tais que se seguiram forçosamente a reação e a decadência.18
Note-se que uma das preocupações de Maquiavel também era a de dar uma
“razão ao Estado”, que para ele é muito mais um mérito do próprio príncipe virtuoso
como um produto de sua vontade e domínio sobre seus súditos, do que
propriamente com um processo histórico-evolutivo que lhe deu origem. Desta forma,
questiona qual a origem da razão do Estado, o que justifica seus atos e legitima seu
poder. Este será um próximo passo no processo de conformação do Estado de
Direito, uma justificativa racional. Assim:
O Estado moderno, como se sabe, havia nascido em termos absolutistas: a superação das antinomias feudais se deu com a concentração do poder e com o robustecimento das dinastias. A luta política do liberalismo dirigiu-se a destruir o absolutismo, tanto reiterando do rei o poder do pleno, distribuindo-o através dos poderes divididos. Como restaurando sob novas formas a velha idéia de que a comunidade representa a verdadeira fonte do poder. Esta idéia era, agora, anexada à concepção do indivíduo como ponto de partida. E a noção de contrato servia em grande medida para isto: para fundar o poder, a um tempo, sobre a anuência coletiva e sobre a anuência individual.19
Tratando-se de justificar a existência do Estado, mas ainda fixando-se ao
governo absolutista como única fonte jurídica do direito, assume relevo a figura
hipotética criada por Hobbes, “O Leviatã”, pois tal obra caracteriza um passo à frente
com relação à justificação dada por Bodin e Maquiavel, ao justificar a existência do
Estado como sendo fruto de um contrato, um pacto entre os homens, embora
mantendo a característica de concentração de poder ilimitado nas mãos dos
monarcas.
18 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 3. ed. Brasília: UNB, 1995, p. 14-15. 19 SALDANHA, Nelson. Formação da teoria constitucional. Rio de janeiro: Renovar, 2000.
26
Así, la ilimitación del poder soberano, esencialmente anticristiana además, en cuanto transfiere a la encarnación de la comunidad política la exclusividad del poder divino, se constituye en eje de la teoría del Estado. El absolutismo monárquico, recién estrenado, sin embargo, conocerá una serie de limitaciones del poder y no comenzará a mostrar todavía todas las consecuencias disolventes que encierra en su cambio de signo del poder: el orden moral actuará – antes se ha dicho – como una guarda para los reyes y gobernantes, al tiempo que la sociedad – aun decaída por el centralismo, sobre todo en Francia, pues España en este punto irá con gran retraso, e incluso con la instauración borbónica tendrá una ilustración débil, o mejor, menos fuerte – continuará operando como factor de contención. Como es sabido, Luis XIV, encarnación máxima del absolutismo, no osará sin embargo intervenir en el derecho de familia, de fuerte tinte moral y arraigo social, a diferencia de lo que será común a partir de la revolución liberal. Después, a través de toda la compleja dialéctica de la modernidad, vendrán el tránsito del absolutismo al liberalismo, a la democracia y al socialismo.20
Inaugura-se, assim, a justificação do Estado através do contrato social,21 mais
propriamente com a doutrina de Locke, Rousseau e até Montesquieu , opondo-se à
justificação por força e por vontade divina. As teorias que justificam a existência do
Estado através do contrato social, em um primeiro momento, adotaram, como teoria
para justificar os limites do poder estatal, o jusnaturalismo, decorrente da crença de
que para além dos direitos positivados, existem direitos superiores, pois pertencem à
essência humana e são preexistentes ao Estado, ou seja, independem de outorga
do poder do príncipe.
O Estado, para a maioria dos pensadores políticos modernos, é um produto de convenção. Assim, alguns dos direitos morais existentes no estado de natureza são anteriores à convenção. Então, esses direitos (e deveres correlativos) podem restringir o estado. Além disso, pensava-se de modo geral, que tais direitos são independentes de convenção. Por isso, podem ser invocados como um padrão comparativo para avaliar o Estado e a sociedade, lei e costume. Na verdade, essa independência de convenção deve responder, pelo menos em parte, pela oportunidade dos apelos aos direitos naturais. (...) Assim, é comumente alegado que a propriedade de tais direitos existe em função da posse de certos atributos naturais – por exemplo racionalidade e autoconsciência. Possuir tais direitos depende não de convenção ou posição social, mas exclusivamente do tipo de criatura que se é.22
20 TORRES, Miguel Ayuso. El Poder e Sus Limites. Madrid: Estudius Universitarios, 1997. p. 44. 21 O Estado tem origem em um pacto, uma convenção entre os homens, na qual cada indivíduo abdica de certos privilégios individuais em prol da convivência social, delegando a um ente superior, o Estado, a organização de sua vida em sociedade. Por sua vez, seu poder tem origem no mútuo consentimento de seus cidadãos, que delegam a ele certas responsabilidades (variando o contratualista/doutrinador em questão) para com a sociedade que pretende regular. 22 MORRIS. Christopher W. Um ensaio sobre Estado moderno. Trad. Sylmara Belleti. São Paulo: Landy, 2005. p. 208-209.
27
“O Contrato Social”, publicado em 1762, referencial no desenvolvimento da
teoria da democracia participativa, via na possibilidade da participação popular, uma
forma de controle do próprio poder Estatal:
[...] foi considerável a influência de Rousseau para o desenvolvimento da idéia de Estado Democrático, podendo-se mesmo dizer que estão em sua obra, claramente expressos, os princípios que iriam ser consagrados como inerentes a qualquer Estado que se pretenda Democrático.23
Segundo ele, a ordem social é o principal direito, pois dele decorrem os
demais. Todavia, quem a determina não é a natureza humana, e sim a vontade, por
meio do pacto social: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu
poder em direção da vontade geral; e recebemos, coletivamente, cada membro
como parte indivisível de um todo24”. Dessa forma, pode-se verificar que Rousseau
traça uma distinção entre o que seria a vontade de todos, da vontade geral. Senão
vejamos:
Esta se pretende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado, e não passa de uma soma de vontades particulares. Quando se retiram, porém, dessas mesmas vontades, seu poder, de seus bens e da própria liberdade, convém-se em que representa tão - só parte de tudo cujo uso interessa a comunidade. É preciso convir, também, em que só o soberano pode julgar dessa importância.25
A associação de indivíduos, corpo político passivo, e o soberano, que
representa o corpo político ativo, através da síntese de vontades dos indivíduos
isoladamente, atingem a vontade geral da associação, o que atualmente se
chamaria de prevalecer a vontade popular, o interesse público sobre o privado. O
pacto entre os associados visa corrigir e suprir deficiências que tornem os homens
desiguais por força da natureza e, torná-los iguais através de convenção e direito, o
que vem a ser o princípio da igualdade, supra-sumo em um Estado democrático26.
23 MORRIS. Christopher W. Um ensaio sobre Estado moderno. Trad. Sylmara Belleti. São Paulo: Landy, 2005. p.147. 24 ROSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 71. 25 Ibidem p. 91. 26 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria Geral do Estado. 21 ed. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 17-18.
28
Desta forma, ressalta-se que, através do desenvolvimento da idéia de
sociedade como um ente organizado a nível governamental, com poderes
delegados, na qual cada indivíduo possui deveres e direitos frente a essa
comunidade, lançados pelos contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, foram
fontes inspiradoras dos movimentos políticos sociais e das lutas em prol da
democracia e que culminaram com as revoluções do séc. XVII e XVIII e a afirmação
do princípio da separação de poderes, como um pilar do Estado de Direito e das
conquistas liberais. Porém, antes de adentrar no contexto e na contribuição dessas
revoluções, cabe verificar contra o que se lutava, bem como o que se pretendia a
essa época.
A modernidade é marcada pela luta em prol da democracia27 e contra os
poderes absolutistas, após um processo denominado de laicização28 do direito
(como fenômenos que coincidem e se reforçam). O contexto social modificava-se a
olhos vistos: seja pela expansão do comércio; seja pela decadência financeira da
nobreza; seja pela perda do poder da Igreja com o processo de secularização do
Estado ou pelo ganho de espaço com novas religiões, como a crise na Igreja
Católica com a reforma protestante liderada por Martinho Lutero. O fato é que a
monarquia não mais se justifica e se legitima sob a alegação do poder divino.
As crises econômicas também abalam significativamente toda a Europa. A
divisão de classes por estamentos não mais se sustenta com o surgimento de uma
nova classe com forte poderio econômico: a burguesia:
O constrangimento individual e a falta de previsibilidade e segurança, decorrentes da atividade discricionária e ilimitada de um Príncipe empenhado na construção de uma <<nação culta e polida>> provocariam inevitavelmente a reacção da burguesia ascendente contra o Estado de polícia. Ainda que beneficiando da política econômica mercantilista, a
27 Democracia entendida de forma bem mais restrita do que ocorre no Estado Democrático de Direito. A democracia a que se refere o liberalismo consiste, mais, numa forma de governo, através da representação, onde somente poucos possuíam prerrogativa de voto, com intuito de cessar o absolutismo político das monarquias, onde quem passa a figurar no cenário político é quem detem o poder econômico, no caso, a burguesia. Ver: BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 53-55. 28 Caracterizado pela separação entre razão/fé, justificando a ordem natural do universo não mais como uma vontade divina, e sim como vontade da razão humana. Ocorreu nos séculos XVI a XVIII, e tem como seu maior expoente a figura de Hugo Grócio. PILAU, Newton César. Teoria Constitucional Moderno-Contemporânea e positivação dos direitos humanos nas Constituições Brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003. p. 29-30 .
29
burguesia, afastada dos lugares de governo, necessitava de erguer uma barreira às arbitrariedades do poder, ou pelo menos, de domesticar uma administração cujas providências concretas, individuais, e logo potencialmente discriminatórias, não se coadunavam com a calculabilidade, liberdade e igualdade de oportunidades requeridas por um pleno desenvolvimento das bases econômicas em que assentava o emergente poder burguês. Numa primeira fase, aquela reacção fazia-se ainda acompanhar pelo apelo nostálgico à reposição das estruturas da sociedade por degraus, da esfera da autonomia da sociedade estamental, da liberdade entendida como privilégio; contudo, globalmente desfavorecida na arrumação hierárquica da sociedade, a burguesia cedo deslocaria <<as reivindicações de liberdade do plano duma liberdade social de dimensão tradicional para duma liberdade individual>>; ela não se propõe, então, renovar os antigos jura quaesita, mas antes afirmar, perante a actuação potencialmente arbitrária do Príncipe, a existência na esfera de cada homem de um núcleo de direitos naturais concebidos como direitos subjetivos insuscetíveis de invasão por parte do Estado29.
O somatório dos fatores econômicos, sociais, históricos e ideológicos, sob
forte influência, especialmente do pensamento de Locke (Revolução Inglesa e
Americana) e Rousseau (Revolução Francesa), delineou o cenário para as
revoluções que irão marcar a história da democracia e dos direitos humanos
mundialmente, inaugurando as primeiras Constituições modernas em um Estado
liberal30, que procura assegurar aos seus cidadãos a garantia de direitos
fundamentais.
1.1.2 As revoluções que inauguram o Estado liberal, tendo como pilares os
direitos fundamentais e a separação de poderes
Quanto à Revolução Inglesa, pode-se dizer que teve início em 1640, com a
chamada Revolução Puritana, sendo que, em 1688, teve lugar a Revolução
Gloriosa, que vem a ser um complemento da primeira. No entanto, ambas fazem
29 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito. Coimbra: Almeidina, 2007. p. 40-41. 30 O Estado Liberal de Direito surgiu fruto da crítica ao Estado Monárquico Absolutista, dos séculos XVII e XVIII, no qual o rei era o soberano e exercia a plenitude do poder, sem nenhuma limitação de ordem constitucional; a origem de seu poder era dita de natureza divina; um Estado onde o soberano, concentrando todo o poder, por todo o tempo, tinha direito sobre a vida, a liberdade e a propriedade de todos seus cidadãos, e ademais, determinava, ainda, a vida econômica. O rei tornara-se, então, detentor de uma vontade incontrastada em face de outros poderes [...] deixa de existir uma concorrência entre poderes distintos, e ocorre uma conjugação dos mesmos em mãos da monarquia, do rei, do soberano. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 24.
30
parte do mesmo processo revolucionário iniciado no século XVII, e por isso, optou-
se pela simples denominação de Revolução Inglesa e não revoluções inglesas.31
O âmago das motivações que inspiram e alimentam o cenário para a
Revolução Inglesa, é a intenção de estabelecer limites aos poderes e abusos do
monarca e a influência do protestantismo. Tais fatores contribuíram para a afirmação
dos direitos naturais dos indivíduos, pois segundo a concepção jusnaturalista, todos
nascem iguais e livres e é essa liberdade que obriga cada um, justificando, assim, o
governo da maioria, podendo ser exercido pelo Poder Legislativo a fim de assegurar
a garantia das liberdades. Tal movimento inspirou-se nas teorias levantadas por
Locke, que acreditava e confiava a liberdade dos cidadãos ao Poder Legislativo, que
poderia ser exercido por vários órgãos, mas sempre em consonância com o povo.
Estariam destinados a fazer leis para o povo de tempos em tempos, e que poderiam
ser executadas pelo Poder Executivo através de um poder discricionário32.
As posições políticas sustentadas por Locke transformaram profundamente o
pensamento inglês, proporcionando a sistematização teórica dos fatos políticos que
influenciaram a Inglaterra, a ponto de, em 1688, ser publicada a Declaração Inglesa
de Direitos, que proclamava os direitos e liberdades dos súditos, com a posterior
aprovação do documento denominado Bill of Rights (1689), através do qual foi feita
a ratificação daquela declaração, afirmando-se a supremacia do Parlamento.
A Revolução Inglesa não deixa de ser resultado de uma grande motivação
política de uma nova classe social, a burguesia, visando uma produção para o
mercado de comercialização, dando um novo rumo à economia da Idade Média.
Não foi simplesmente a decorrência da falência imediata da aristocracia; nem a crise do Estado absolutista frente a pequenos nobres; nem mesmo o corte verticalizado que cindiu a sociedade de alto a baixo, separando a Corte e o País. Seu caráter de revolução burguesa, contudo, não se evidencia tão somente no fato de uma classe agrária capitalista, associada a setores mercantis urbanos, passasse a exercer, em última instância, o poder, após a destruição do aparelho de Estado; mas, e sobretudo, pelo que ela criou, isto é, condições plenas para o avanço das forças produtivas
31 ARRUDA, José Jobson de Andrade. A Revolução Inglesa. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 07. 32 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria Geral do Estado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 148-149.
31
capitalistas na Inglaterra, sendo, deste ponto de vista, a Grande Revolução Burguesa da civilização ocidental.33
As transformações na sociedade inglesa ocorreram nas áreas ideológica,
social e econômica. No plano ideológico, abriu-se caminho para um novo
comportamento político, colocando em evidência o pensamento liberal, bem como a
implementação da teoria do contrato e afirmação do pensamento individualista. A
burguesia assumiu o poder colocando em prática seu projeto político, com o apoio
das massas sociais e urbanas, derrubando, pela força, o poder constituído,
culminando, assim, na Bill Of Rights em 168934.
Em termos sociais, houve a transformação da antiga aristocracia, com o
confisco dos bens e alienação das propriedades; a antiga nobreza feudal teve de
produzir para o mercado; o clero foi privado de seus bens e de sua autonomia. Por
fim, no campo econômico, a transformação deu-se na estrutura agrária, que rompeu
o bloqueio estrutural, iminente, desde o primeiro momento da crise no sistema feudal
e a emergência do sistema capitalista, que resultaria na crise do crescimento do
século XVII, destravando as forças de produção rumo à industrialização do século
XVIII.
Essa é considerada a primeira revolução burguesa, cujo documento histórico,
o Bill of Rights, contribui, dentre outros aspectos, para a afirmação dos direitos
fundamentais:
O essencial do documento consistiu na instituição da separação de poderes, com a declaração de que o parlamento é um órgão precipuamente encarregado de defender os súditos perante o Rei, e cujo funcionamento não pode, pois, ficar sujeito ao arbítrio deste. Ademais, o Bill Of Rights veio a fortalecer a instituição do júri e reafirmar alguns direitos fundamentais dos cidadãos, os quais são expressos até hoje, nos mesmos termos, pelas Constituições modernas, como o direito de petição e a proibição de penas inusitadas ou cruéis35.
33 ARRUDA, José Jobson de Andrade. A Revolução Inglesa. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 93. 34 ARRUDA. Op. Cit.. p. 91-92. 35 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria Geral do Estado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 91.
32
Por sua vez, sob influência da Revolução Inglesa, a Revolução Americana,
ocorrida nas Colônias da América do Norte, em 1776, cujo documento a Declaração
do Bom Povo da Virgínia, proclamava o fim ao absolutismo monárquico, através da
separação de poderes e da supremacia absoluta do Parlamento como fundamento
indispensável à garantia dos direitos civis.
Por fortes influências protestantistas, determinou, igualmente, a mudança
religiosa do catolicismo para o protestantismo. Também restou explicitado que o
Poder Judicial deveria ser separado do executivo e do legislativo, prevendo-se
apenas para os dois últimos, desde esta época, a alternância do poder, para que
realmente representassem o povo. Sua máxima retratava exatamente as pretensões
deste período: “governo do povo, pelo povo e para o povo”.
A América do Norte dava, assim, seguimento aos ideais democráticos,
inspirados na supremacia da vontade da maioria contra a minoria absolutista, e,
principalmente, a noção de direitos naturais como direitos inerentes ao indivíduo e
vinculantes para o Estado. As idéias expostas por Locke adquiriram, por
conseguinte, força e amplitude nas Colônias da América, exatamente porque
atendiam plenamente aos anseios de liberdade dos colonos. Consoante às posições
antiabsolutistas e de influência protestante, os norte-americanos estavam
conquistando sua independência e de nada lhes adiantaria livrar-se de um governo
absoluto inglês para se submeter-se a outro, igualmente absoluto, ainda que norte-
americano. E, em não existindo, no momento da independência ou da criação das
Treze Colônias da América, uma nobreza ou parlamento que pudessem ser
considerados opositores naturais do antiabsolutismo, abriu-se espaço para uma
afirmação mais vigorosa da noção de governo pelo próprio povo 36.
Pode-se dizer que o desejo dos colonos de romper com o domínio da Coroa
Britânica, bem como sua insatisfação com a falta de opção religiosa (herança da
Revolução Inglesa), foram o cenário para a Declaração de Direitos da Virgínia, de
1776, que foi responsável pela independência das Treze Colônias britânicas da
América do Norte, as quais formaram uma confederação independente:
36 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria Geral do Estado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 149.
33
Otra de las razones que han influido para disminuir la atención que se ha prestado a la revolución norteamericana ha sido que ésta en realidad se produjo en un proceso lento, de más de siglo y medio, desde la fundación de las primeras colonias. De las tres primeras colonias inglesas en Norteamérica dos deben su fundación a sociedades mercantiles: la de Virginia (en 1607) (...).La democracia es, pues, por diversos motivos, un hecho desde los comienzos mismos de las colonias inglesas en Norteamérica. Para organizar el gobierno de Virginia dio la compañía desde Londres una ordenanza (1621), que está claramente en esa línea (8). En ella se dispone que haya dos consejos o asambleas: un consejo para asistir al gobernador, nombrado (al igual que éste) por la propia compañía, y una asamblea general, compuesta por dos burgueses elegidos por cada población u otras agrupaciones de cierta consideración. Esta organización democrática era general a todas las colonias; también se aplicaba en las de concesión real 37.
Posteriormente denominada como Declaração de Direitos do Bom Povo de
Virgínia, “é primeiro documento político que reconhece, a par da legitimidade da
soberania popular, a existência de direitos inerentes a todo ser humano,
independente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social” 38.
A Declaração consubstanciava os direitos do homem, refletindo o contexto
social e político da época, tais como: a liberdade de crença religiosa; os homens são
livres e independentes; todo poder está investido no povo, e dele deriva; as eleições
de representante do povo devem ser livres, dentre tantos outros.
Puede comprenderse, pues, fácilmente, sobre la base de todas estas ideas, que la declaración misma de Independencia, redactada por JEFFERSON y aprobada definitivamente por el Congreso de todas las colonias el 4 de julio de 1776, contenga una brevísima Declaración de Derechos: «Sostenemos que son evidentes estas verdades: que todos los hombres han sido creados iguales y que han sido dotados por su Creador con ciertos derechos inalienables, entre los que se cuentan la vida, la libertad y la búsqueda de la felicidad.» Es más, esos derechos se proclaman como la finalidad y fundamento de todo gobierno, puesto que la Declaración de Independencia continúa: «Que para T H . JEFFERSON, asegurar estos derechos establecen los hombres los gobiernos, derivándose los poderes justos de éstos del consentimiento de los gobernados. Y cuando una forma de gobierno resulta destructora de estos fines, es derecho del pueblo cambiarla o aboliría y establecer un nuevo gobierno, poniendo sus fundamentos sobre estos principios.» Se comprende también que las iversas colonias, que a instancias del mismo Congreso estaban procediendo a organizarse como Estados, con sus propios gobiernos y sus propias Constituciones, iniciaran éstas en la mayor parte de los casos con sus respectivas Declaraciones de
37 PANIAGUA, José M. Rodriguéz. Derecho constitucional y derechos humanos en la revolución norteamericana y en la francesa. In: Revista Española de Derecho Constitucional Año 7. Núm. 19. Enero-Abril 1987, p. 55-56. 38 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 101.
34
Derechos. Fue la primera y marcó la pauta a otras, en mayor o menor medida, la de Virginia, que contiene una amplia Declaración de Derechos 39.
Cabe referir que, após terem sido identificadas, pelo governo central dos
Estados Unidos da América algumas falhas na Constituição que haviam adotado,
durante a guerra da Independência convocou-se, em 1787, uma convenção com
intuito de revê-la, baseando-se nos artigos publicados pelos filósofos Hamilton,
Madison e Jay, posteriormente traduzidos e reunidos na obra intitulada “O
Federalista” (Federalist Papers). Desta Convenção resultou um novo modelo de
Estado, republicano e federalista, que, por sua vez, também se justificava em nome
da proteção à liberdade, aparecendo como fundamental, para este modelo, a
separação de poderes:
Já não é novo que todos os povos da terra, em chegando ao grau de inteligência e ilustração em que se acham hoje os americanos, raras vez adotam, e menos vezes persistem em erros opostos aos seus interesses; e só esta consideração seria o bastante para inspirar a todo o mundo o respeito que merece a alta opinião que os americanos sempre tiverem da importância da sua reunião debaixo de um só governo federativo, investido de poder suficiente para todos os pontos que interessam a universalidade da nação40.
Seguindo-se a onda dos movimentos liberais, os ideais inicialmente propostos
na Inglaterra e, posteriormente, na América do Norte, influenciarão diretamente a
Revolução ocorrida na Europa, que, embora tivesse um contexto histórico
específico, tinha pretensões que versavam nos mesmos conteúdos, como a
afirmação do Estado de Direito, do regime democrático contra o absolutismo
monárquico e a idéia de positivação dos direitos naturais.
Antes de relatar a maior de todas as revoluções, a Revolução Francesa,
especialmente no que se refere à universalidade dos seus valores, é importante
discorrer sobre o momento ideológico vivido pela Europa no Século XVII, o qual deu
uma nova visão de mundo ao homem, pois o movimento Iluminista modificou a
39 PANIAGUA, José M. Rodriguéz. Derecho constitucional y derechos humanos en la revolución norteamericana y en la francesa. In: Revista Española de Derecho Constitucional, Año 7, 19. Enero-Abril 1987. p. 60-61. 40 HAMILTON, Alexander.; MADISON, James. JAY, John. O Federalista. Tradução de Hiltomar Martins de Oliveira. Belo Horizonte: Líder , 2003. p. 21
35
maneira de enxergar a si mesmo e a realidade natural e social de que faz parte,
muito embora já tivesse alguma expressão no final do período absolutista.
O movimento iluminista desenvolveu a noção de razão para explicar
cientificamente o mundo e seus fenômenos, pois a base de todo o conhecimento
sobre o próprio homem e a natureza estaria na razão humana. Foi na França que o
Iluminismo alcançou sua maior expressão, pois as contradições do Antigo Regime e
a opressão de um sistema fundiário atrasado, somados à crise do governo,
produziram uma insatisfação generalizada em todos os setores sociais,
especialmente entre a burguesia e os camponeses. Tal convulsão social propiciou
maior sentido e amplitude às propostas filosóficas iluministas, baseadas na idéia de
que a humanidade deveria caminhar no sentido do progresso, da liberdade e da
busca da felicidade41.
A França, nas últimas décadas do Século XVII, vivia, ao mesmo tempo, uma
crise estrutural e conjuntural. A estrutura produtiva estava baseada na agricultura,
mas os camponeses continuavam a viver como na época medieval, pagando
excessivos impostos à nobreza e ao governo. O setor industrial e comercial não
prosperava, pois, além de sua base ser artesanal corporativa, a coletividade se
mantinha nos antigos moldes feudais, dividindo a sociedade em: Primeiro Estado, o
clero; Segundo Estado, a nobreza; e o Terceiro Estado, o povo, ou seja,
camponeses, pequenos proprietários rurais, artesãos e burguesia. Em suma, por
causa das atrasadas estruturas políticas, econômicas e sociais, as questões
conjunturais tornaram-se insustentáveis e o absolutismo não era mais capaz de dar
respostas a uma sociedade em constante transformação, reforçada por ideais
iluministas. Foi nesse contexto que eclodiu a Revolução Francesa42:
As condições políticas da França eram diferentes das que existiam na América, resultando disso algumas semelhanças entre uma e outra orientação. Além de se oporem aos governos absolutos, os líderes franceses encontravam o problema de uma grande instabilidade interna, devendo pensar na unidade dos franceses. Foi isso que favoreceu o aparecimento da idéia de nação, como centro unificador de vontades e interesses. Outro fato importante de diferenciação foi à situação religiosa, uma vez que na França a Igreja e Estado eram inimigos, o que influi para a
41 MORAES, José Geraldo Vinci de. Caminhos das Civilizações. São Paulo: Atual, 2002, p. 220. 42 Ibidem. p. 242.
36
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, diversamente do que ocorrerá na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, tomasse um cunho mais universal, sem mais limitações impostas pelas lutas religiosas locais 43.
A Revolução Francesa não foi suscitada por apenas um partido ou movimento
organizado, nem mesmo por homens que tentavam levar adiante um sistema bem
dividido e estruturado. Na realidade, um consenso de idéias de um determinado
grupo social, bastante coerente e ideologicamente estruturado, deu a unidade
necessária para essa força revolucionária. O grupo em questão era a burguesia
(mas que se valeu de uma série de construções teóricas para fundamentar –
racionalmente – suas pretensões...). Suas idéias eram as de um liberalismo clássico,
inspiradas por filósofos iluministas e difundidas, dentre outras, pela maçonaria e
pelas associações informais. Sem dúvida, foram os filósofos os responsáveis pela
diferença do que seria um simples colapso de um velho regime para a efetiva
substituição por um novo 44.
As exigências da burguesia foram delineadas na mais famosa Carta de
direitos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão cujo lema era
“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Continha uma gama de direitos humanos,
referência mundial para a posterior positivação dos direitos humanos nas
Constituições modernas:
Declara-se, então, que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. Como fim da sociedade política aponta-se a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem, que são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Nenhuma limitação pode ser imposta ao indivíduo, ao não ser por meio da lei, que é a expressão da vontade geral. E todos os cidadãos têm direito de concorrer pessoalmente ou por seus representantes, para a representação dessa vontade geral. Assim, pois, a base da organização do Estado deve ser a preservação dessa possibilidade de participação popular no governo, a fim de que sejam garantidos os direitos naturais45.
A Declaração não possuía a força atribuída a um documento jurídico, sendo
ela muito mais um documento filosófico e ideológico, que prepara os homens
43 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria Geral do Estado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 150. 44 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções. Tradução de Miria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. 10. ed. São Paulo: Campus, 1997. p. 72. 45 DALLARI, Op. Cit.p. 150.
37
mundialmente para um novo modelo social, dando realidade às teorias
contratualistas, em que cada cidadão abdica de privilégios individuais visando ao
bem estar coletivo, garantindo inalienação dos seus direitos fundamentais,
indiferentemente de quem detenha o poder, pois, a partir deste marco histórico,
todos os homens passam a ser iguais em direitos e em obrigações perante os olhos
dos demais e da lei, que emana do povo. No entanto, outro aspecto deve ser
observado:
Apesar de este influjo de la presión popular, las concesiones a las aspiraciones que sustentaban esa presión fueron más aparentes que reales, lo mismo en la Declaración que en la abolición del feudalismo. En esta última, porque los derechos feudales de carácter patrimonial eran declarados como propiedades que debían ser indemnizadas o compensadas y, por cierto, com una capitalización, o cálculo de su valor, bastante elevada. En la Declaración, porque, tras una prosa atractiva, que por su concisión y vaguedad se prestaba a ser interpretada en diversos sentidos, lo que realmente se concedia o declaraba no correspondía exactamente a las aspiraciones populares.46
É salutar discorrer acerca de alguns pontos da Declaração que se afiguram
imprescindíveis ao presente estudo. Após declarar a liberdade e igualdade dos
homens, a Declaração determina que o fim de um Estado é a proteção dos direitos
naturais (que seriam transcendentes à própria existência do Estado), enumerando-
os da seguinte forma: liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão.
Dado o contexto histórico, cujo fundamento era justamente o de cessar as
práticas e abusos cometidos no absolutismo, até mesmo pela doutrina contratualista
e suas concepções acerca da natureza humana, justificam-se plenamente os direitos
de liberdade e de segurança. O direito a propriedade também esteve no cerne da
preocupação burguesa, pois a propriedade até o presente momento, concentrava-se
nas figuras da nobreza e do clero.
Na medida em que a burguesia havia ganhado poderio econômico, era
estrategicamente necessária a proteção das propriedades que começavam a
46 PANIAGUA, José M. Rodriguéz. Derecho constitucional y derechos humanos en la revolución norteamericana y en la francesa. In: Revista Española de Derecho Constitucional Año 7, 19. Enero-Abril 1987. p. 64-65.
38
adquirir, e, dessa forma, positivar o direito fundamental à propriedade, asseguraria
tal direito frente a quem detivesse o poder político, em caso de pretender usurpá-la.
Também, a separação de poderes era essencial como garantia ao direito de
propriedade da burguesia, que crescia a olhos vistos, pois a separação de poderes
dividiu as figuras do criador e do executor da lei. Assim, dedicou-se um artigo
exclusivo da Declaração para aludir acerca da sua proteção: “Art. 17º. Como a
propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não
ser quando a necessidade pública legalmente comprovada, o exigir evidentemente e
sob a condição de justa e prévia indenização.”
Consubstanciando o pensamento discorrido acima, também não é por acaso
que o artigo que antecede o supramencionado tem a seguinte redação: “Art. 16º.
Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem
estabelecida a separação de poderes, não tem Constituição”. Claramente, mais do
que a preocupação com o controle do exercício do poder, a separação dos poderes
vinha atender a proteção da liberdade e da propriedade, da segurança, os direitos
naturais explicitados na Declaração, limitando o exercício do poder daqueles que
poderiam usurpá-los.
Pela experiência histórica com a monarquia absolutista, que tinha os
magistrados como executores dos mandos do rei, por óbvio, a segurança e a
esperança maior concentrava-se, naturalmente, no Parlamento, no Legislativo:
La independencia como reivindicación frente al monarca aparece en el marco histórico de la Revolución Francesa, pues anteriormente la independencia era una exigencia de los jueces considerados individualmente. Identificada con la inamovilidad correspondía a lo que se ha venido denominando independencia personal. Es en la decadencia del régimen absolutista francés del siglo XVIII donde comúnmente se sitúa una concepción de la independencia judicial que podemos denominar política y que se concreta en lo que se ha llamado independencia material, esto es, la exigencia de que el ejecutivo o el monarca carezcan de postestades de intervención en la función judicial47.
Houve, portanto, uma passagem do absolutismo ao liberalismo, sem dúvida,
mas o liberalismo não começou como um liberalismo democrático; antecedeu a ele 47 PASCUAL. Cristina García. Legitimidad Democrática y Poder Judicial. Madrid: Estudios Universitarios, 1997. p. 31.
39
uma fase chamada de “despotismo esclarecido”, caracterizado pelo movimento
iluminista, que foi uma espécie de transição. Só com o triunfo da Revolução
Francesa é que a idéias de democracia e direitos do homem chegaram à
hegemonia, criando-se as estruturas do Estado Liberal propriamente dito48.
Diante do cenário das revoluções e da positivação destas conquistas, além de
se inaugurar o chamado “estado Liberal”, exsurge um Estado submetido às leis, um
Estado de Direito (caracterizado, justamente, pela idéia de limitação do poder),
acrescido do elemento democrático, por estar se inserindo, ainda que de maneira
formal e restrita, à participação popular:
O Estado actua ou age através do direito. Também se compreende esta dimensão jurídica do Estado de direito. O Estado desenvolve actividades, desempenha tarefas, prossegue fins. O exercício dos poderes públicos através do direito significa precisamente que esse exercício só pode efectivar-se por meio de instrumentos jurídicos institucionalizados pela ordem jurídica. Mais do que isso: não é um qualquer órgão, um qualquer titular de órgão, um qualquer funcionário ou um qualquer agente de autoridade que, no uso de poderes públicos, pode praticar actividades, cumprir tarefas, realizar fins. Só quem esteja habilitado, só quem tenha uma competência previamente definida por regras jurídicas, está apto, num qualquer Estado de direito, a desempenhar funções com o selo de autoridade pública 49.
Assim, supera-se a fase de legitimação do Estado a partir dos fatos humanos
resultantes da natureza, das paixões ou interesse dos homens, isto é, ultrapassa-se
a antiga concepção de poder pessoal em favor de ordenações genéricas; a lei é a
nítida expressão da vontade racional. Este processo de racionalização, por razões
lógicas, é indissossiável do processo de limitação jurídica na garantia dos direitos
individuais, conquistas burguesas do Séc. XVIII, especialmente, a liberdade e a
propriedade como expressão desta.
Portanto, além de positivá-los primeiramente nas Declarações e,
posteriormente, nas Constituições, criam-se técnicas dirigidas a garanti-los da
usurpação por outrem, como é o caso da separação de poderes, uma vez que a
48 SALDANHA, Nelson. Formação da teoria constitucional. 2 ed. São Paulo: Renovar, 2000. p. 95 49 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Coimbra: Coimbra, 1999, p. 50.
40
história demonstra que a concentração de poder nas mãos de um único órgão ou
instituição tende, a resultar em excessos 50.
Así, entendían que para que pueda hablarse, en su acepción más honda, de sometimiento del Estado al derecho, han de darse las siguientes condiciones: a) Reconocimiento de un concepto objetivo de justicia superior al Estado, por encima de la voluntad del legislador, que excluye tanto el principio absolutista quod princip placuit legis habet vigorem, como su versión democrática de la ley “expresión de la voluntad general”. b) Aceptación de que el Estado está sometido al orden jurídico, que impone sus reglas generales tanto a gobernantes como a gobernados, y que excluye la también máxima absolutista del princeps legibus solutus. c) Existencia de suficientes garantías para todos contra la arbitrariedad, y procedimientos adecuados para hacer efectiva la responsabilidad de los gobernantes por sus trasgresiones del orden jurídico, juzgadas por una magistratura independiente. d) No confusión de la sociedad y el Estado, que, al elaborar sus leyes, debe respetar las ordenaciones jurídicas de los cuerpos intermedios existentes, sin suprimir su justa autonomía, y las del derecho históricamente instituido en la sociedad política 51.
A organização do Estado e a regulamentação de sua atividade segundo
princípios racionais, pressupõem, por sua vez, o reconhecimento de alguns direitos
tidos como básicos, tais como a cidadania, a liberdade civil, a igualdade jurídica, a
garantia da propriedade, a independência dos juízes para julgar, a submissão ao
domínio da lei, bem como a existência de uma representação do povo e sua
participação no processo legislativo. Para tais tarefas, a separação de poderes é
estratégica, no sentido de autonomia, principalmente legislativa, sendo que as leis
não mais se dão a mando de uma só pessoa, separando-se a figura de quem faz e
de quem executa a lei. Contudo, adverte-se, quanto ao cuidado com a idéia de
separação, para não se incorrer, com isso, na perda de unidade do poder, tão
trabalhosamente conquistada em anos na história52.
No mesmo sentido, impende elucidar outra constatação de Canotilho acerca
do Estado de Direito:
50 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito. Coimbra: Almeidina, 2007. p. 41-42 51 TORRES, Miguel Ayuso. El Poder e Sus Limites. Madrid: Estudios Universitario. 1997. p. 39. 52 BÖCKENFORDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Tradução Rafael de Agapito Serrano. Madrid: Trotta, 1998, p. 17-18. A unificação do poder através do absolutismo, é fruto da necessidade de um poder forte, para superar a fragmentação e a ausência de poder existente até então.
41
O Estado de direito transporta princípios e valores materiais razoáveis para uma ordem humana de justiça e de paz. São eles: a liberdade do indivíduo, a segurança individual e colectiva, a responsabilidade e responsabilização dos titulares do poder, a igualdade de todos os cidadãos e a proibição de discriminação de indivíduos e de grupos. Para tornar efectivos estes princípios e estes valores o Estado de direito carece de instituições, de procedimentos de acção e de formas de revelação dos poderes e competências que permitam falar de um poder democrático, de uma soberania popular, de uma representação política, de uma separação de poderes, de fins e tarefas do Estado. A forma que na nossa contemporaneidade se revela como uma das mais adequadas para colher esses princípios e valores de um Estado subordinado ao direito é a do Estado constitucional de direito democrático(...)53.
Um Estado racionalizado é um Estado fundado e limitado pelo Direito. No
exercício das funções estatais, ter-se-á uma relação de subordinação e de
autonomia, quer dizer, todos devem cumprir as determinações da lei, no entanto têm
autonomia para o exercício de suas funções. No entanto, Novais apresenta uma
questão essencial à proposta da compreensão da teoria da separação de poderes:
Porém, o verdadeiro sentido deste projeto não era unívono. Pois, se o império da lei e a divisão de poderes eram geralmente entendidos como subalternização dos órgão executivos e judiciais relativamente a supremacia do Parlamento, já a natureza do reconhecimento dos direitos fundamentais dependia do alcance que se atribuísse a soberania. Dirigir-se-ia a proteção dos direitos contra o próprio legislativo ou, pelo contrário, Estado limitado pelo Direito não seria mais que a Administração limitada pela Lei? (...) As Revoluções liberais convertem o antigo problema da limitação do Poder político em problema jurídico, mas convertido no programa revolucionário, era ainda o verdadeiro alcance da limitação jurídica54.
Este é o cenário em que irão desenvolver-se as idéias modernas de
separação dos poderes, para atender à exigência de submissão ao império da lei,
bem como para garantir, assegurar, os direitos fundamentais conquistados,
notadamente os direitos individuais, que demandam uma não-intervenção do Estado
na esfera de liberdade dos indivíduos. Obviamente, a teoria da separação de
poderes terá diferentes contornos conforme o Estado em que se desenvolver, mas é
preciso que se tenha presente os elementos referidos acima para a compreensão
das formulações dadas a idéia de separação de poderes, abaixo arroladas.
53 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 19. 54 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito. Coimbra: Almeidina, 2007. p. 44-45.
42
1.2 Separação de poderes como doutrina e separação de poderes para além de
Montesquieu
Muito embora comumente se reporte a Montesquieu, sempre que se refere a
doutrina da separação de poderes, seria um erro inescusável atribuir a ele, o título
de criador exclusivo desta doutrina, pois como se verá a seguir, Montesquieu se
valeu de muitas idéias já retratadas em outras doutrinas.
Indiscutivelmente, Montesquieu foi um grande sistematizador, tanto da
doutrina quanto da realidade que ele propôs analisar, dando a devida importância
para o papel que ela cumpre em um Estado Democrático de Direito.
Contudo, para tentar compreender a doutrina de Montesquieu, para além de
demonstrar a situação histórico – social, como relatado sucintamente nas páginas
anteriores, vale recordar algumas das mais importantes bases teórico- filosóficas
que antecederam sua doutrina:
It is evident that neither Locke nor Montesquieu invented the theory of the separation of powers. To regard them as having done so would be to ignore one of the recurring themes of European political history and the nature of the conflict between king and Parliament in England. The institutional division of powers in England, like that in the Roman Republic, was mainly the result of practical politics. Nevertheless, as in Rome, the nature of the political conflict and its ultimate resolution provided the ingredients for a theory of government. In the case of the Republic, the theoreticians were Cicero and Polybius and, in the case of England, the most influential, in the long term, were Locke and Montesquieu. M.J.C Vile notes that, by 1659, “the doctrine of a twofold separation of powers has become a commonplace” in England and that “John Locke´s treatment of the powers of government must be seen in the light of an assumption that his readers were well acquainted with such a doctrine, rather than as if he were hesitantly presenting a new concept of government.”55.
55 RAPNAPALA, Suri. Art. Jonh Locke´s Doctrine of the Separation of Powers: A Re-Avaluation.The American Journal of Jurisprudence, 1993, p. 190. Tradução livre: É evidente que nem Locke nem Montesquieu inventaram a teoria da separação dos poderes. Considerá-los como tendo feito isso seria ignorar um dos temas recorrentes da história política européia e a natureza do conflito entre o Rei e o Parlamento, na Inglaterra. A divisão institucional de poderes na Inglaterra, assim como na República Romana, foi sobre tudo o resultado da políticas práticas. No entanto, como em Roma, a natureza do conflito político e a sua resolução forneceram os ingredientes para uma teoria do governo. No caso da República, os teóricos eram Cícero e Políbio, e, no caso da Inglaterra, os mais influentes a longo prazo foram Locke e Montesquieu. MJC Vile observa que, em 1659, "a doutrina da uma separação dupla de poderes, havia se tornado banal" na Inglaterra, e que o "tratamento de John Locke para os poderes do governo, deve ser visto à luz de uma suposição de que seus leitores estavam bem familiarizados com essa doutrina, e não como se ele estivesse hesitantemente apresentando um novo conceito de governo. "
43
Nesta esteira, cabe fazer uma referência a teoria da Constituição mista56 que
referenciou ideais de separação de poderes na sua versão Aristotélica, (que terá
direta influência na moderna Separação de Poderes), indiscutivelmente, uma é uma
das suas fontes de origem. A teoria da Constituição mista tem seu foco no sentido
de separação como meio de limitação do poder, preocupando-se com os modos de
exercício do poder supremo.
Aristotle is concerned, however, that in this distribution of tasks all classes shall get a share and in that sense there will be a balancing of class interests. Albeit that the poor may participate only in deliberation and adjudication, and then only because otherwise they would surely turn into enemies. There is, here, a further principle of distribution of power57.
Contudo, nas condições políticas do medievo, a Constituição mista (aquela
em que vários grupos ou classes sociais participam do exercício do poder político),
tornou-se símbolo de limitação e moderação do poder da monarquia absolutista
através da intervenção dos estamentos, pelos quais era assegurado o desempenho
de funções de natureza política junto ao rei e/ ou dos órgãos representativos nas leis
fundamentais e também nas decisões políticas, especialmente de caráter financeiro
e fazendário. Não obstante, neste período, a figura do Estado confundia-se tanto
com a figura do monarca, que a Constituição mista passou a ter a denominação de
monarquia mista. Curiosamente, a teoria da separação de poderes, ventilada
durante a guerra civil inglesa, foi proposta justamente pelos ferrenhos opositores da
monarquia mista, adeptos da idéia de soberania popular58.
56 A análise das Constituições concretas exige que se tenha igualmente em conta o seu substrato constitucional , isto é, a sociedade, que se compõem sempre de diversas partes, grupos ou classes. Esta diversidade é que é a causa real de tantas formas de governo. Neste sentido, constituição mista já será aquela em que vários grupos ou classes sociais participam do exercício do seu poder político, ou aquele em que o exercício da soberania ou o governo, em vez de estar nas mãos de uma única parte constitutiva da sociedade, é comum a todas. Contrapõem-se-lhe, portanto, as constituições puras em que apenas um grupo ou classe social detém o poder político. PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução.Coimbra: Coimbra, 1989. p. 33. 57 STEWART. Iain. Men of Class: Aristotle, Montesquieu and Dicey on ‘Separation of Powers’ and ‘The Rule of Law’, Macquarie Law Journal, Vol. 4, 2004, p. 196. Tradução livre: Aristóteles está preocupado, porém, de que nessa distribuição de tarefas todas as classes devam ter sua parte e assim existiria um equilíbrio nos interesses das classes. Embora a classe pobre pudesse só participar da deliberação e adjudicação ou, do contrário, eles certamente se tornariam inimigos. Existe, aqui, um princípio inicial de distribuição de poderes. 58 PIÇARRA, Nunes. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução.Coimbra: Coimbra, 1989. p. 41-43.
44
Em breves palavras, quer-se demonstrar a idéia que levou Aristóteles, em sua
obra “A Política”, a chegar à conclusão de que uma Constituição de meio (que tem
os mesmos pressupostos de uma Constituição mista e que na Constituição de meio
se inspirou) seria a melhor forma para atender às necessidades do povo. Nesta
obra, o pensador grego apresenta seis formas de governo que poderiam existir:
monarquia, aristocracia, república, tirania, oligarquia e democracia, destacando-se,
no entanto, três delas: a monarquia, como governo de um único detentor do poder,
que será passível de erros podendo transformar-se em tirano; a oligarquia, como um
governo em que poucos têm poder de mando, também podendo errar e não
representar suficientemente; e a democracia, em que muitos decidem e que tende a
virar uma anarquia59.
Diante desta constatação, a opção seria sempre pelo meio-termo, que ele
considera o mais justo, o melhor, porque atenderá o maior número de iguais e de
diferentes possível. Piçarra faz uma significativa comparação da Constituição mista e
da Constituição do meio:
Constituição mista e a constituição média são conceitos que abarcam a mesma realidade, embora de diferentes perspectivas, respectivamente, o equilíbrio estático e o equilíbrio dinâmico entre as classes sociais. A constituição mista atende, antes de mais, às desigualdades e diversidades existentes na sociedade com o objetivo de as compor na orgânica constitucional, de tal maneira que nenhuma classe adquira a preponderância sobre a outra. Neste sentido, a constituição mista não é mais do que um sistema político-social pluralmente estruturado. A constituição média encara o equilíbrio entre as classes como um processo de atenuação das diferenças entre elas, ou seja, como um processo de integração em uma grande classe média. Neste sentido, constituição média (governo médio) mais não é do que um programa político de aproximação ou assimilação econômico-social das classes. No entanto, a relação entre constituição mista e constituição média não se traduz numa evolução ou passagem da primeira para a segunda. Ambas encontraram sua razão de ser lado a lado, uma vez que o equilíbrio pretendido não se alcança apenas com a atribuição de relevância constitucional às diversas classes, mas exige a sua real aproximação social e institucional, sem que, todavia, a absoluta igualdade seja a meta possível ou sequer desejável60.
Aristóteles já fazia distinção, no Estado, de três poderes, sendo eles: o que
delibera sobre os negócios do Estado; o que compreende todas as magistraturas ou 59 ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fonte, 1991. p.132-133. 60 PIÇARRA, Nunes. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução.Coimbra: Coimbra, 1989. p. 35-36.
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os poderes (sua maneira de executar, suas atribuições e a forma realizá-las); e o
que abrange todas as tarefas de jurisdição, que compreendia juízes e tribunais, no
número de oito. Para ele, todas as formas de Constituição apresentam estas três
referências 61.
Segundo Aristóteles que o poder deverá ser dividido através da Constituição,
cuja função não deixa de ser a de ordenar Estado, mas para tanto, imprescindível
que conheça as diferenças de cada um:
A Constituição é a ordem ou a distribuição de poderes que existem num Estado, isto é, a maneira que eles são divididos, a desde a soberania e o fim que se propõe a sociedade civil. As leis não são a mesma coisa que os artigos fundamentais da Constituição; elas servem apenas de regra para os magistrados no exercício do governo, e também para conter os refratários. Donde se segue que as mesmas leis não podem convir para as Oligarquias, nem para todas as democracias. Portanto, se esses governos são várias as espécies, é essencial conhecer suas diferenças, para combinar a legislação62.
Ainda, tratando-se de antecedentes remotos, encontramos referência à idéia,
no pensamento de Políbio e também de Cícero, no entanto referindo-se ao contexto
da realidade romana, por volta do Século II a.C. (época da República Romana). A
versão polibiana retoma a idéia da Constituição mista de Aristóteles, recorrendo,
igualmente, à ordem cíclica de governo de um, governo de poucos e governo de
muitos, que tendem à degeneração. No entanto, vai mais adiante quando quer
distribuir às três classes (cônsules, patrícios e plebeus) iguais direitos políticos
constitucionais, pois o balanceamento, segundo ele, ocorre separando-se os
interesses de classe em níveis orgânico-institucionais, através de poder autônomo.
Desta forma, um poder neutralizaria o outro, visando, assim, ao equilíbrio,
através do contrapeso63.
61 MORAES FILHO, José Fiomento de. Teoria da Constituição - Estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p. 154. 62 ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fonte, 1991. p.131. 63 PIÇARRA, Nunes. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989. p. 38-42.
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A tese principal da teoria Polibiana das constituições é sem dúvida a do governo misto. Políbio passou para a história do pensamento político como defensor por excelência do governo misto. Não será difícil descobrir o nexo existente entre a idéia do governo misto e a teoria dos ciclos: esta pôs em evidência o fato que todas as formas simples- tanto aquelas consideradas tradicionalmente “retas” como as corrompidas – têm uma duração breve, porque estão destinadas pela própria natureza a transformarem-se numa forma diferente. Isso significa que todas as constituições sofrem de um vício, o da falta de estabilidade – vício grave porque, por consenso geral, quanto mais estável uma constituição, mais louvável64.
A solução proposta por Políbio é o governo entre cônsules, senado e as
eleições populares, que, gozando dos mesmos poderes, devem contrabalançar-se
entre si, controlando-se reciprocamente, visando evitar a desproporção. Há, de certa
forma, uma referência à autonomia e à independência quando afirma: “Como dessa
forma cada um pode ’obstaculizar’ os outros ou ’colaborar com eles, sua união é
benéfica em todas as circunstâncias, de modo que não é possível haver um Estado
melhor constituído” 65.
Note-se que ambas as versões, tanto o sentido de limites/equilíbrio de
Aristóteles quanto a forma de balanceamento/contrapesos proposta por Políbio, são
retomadas, mais tarde, para retratar a realidade inglesa de Constituição mista e para
a sistematização da teoria de separação proposta em Montesquieu. É preciso
considerar-se, contudo, que estes dois aspectos (limite/equilíbrio e
balanceamento/contrapesos) tiveram maior ou menor influência na Constituição
inglesa e na Constituição americana, respectivamente, marcando, de forma
diferente, o constitucionalismo, em virtude da forma de governo que se estabelece
em cada um destes países, aspecto que será aprofundado mais adiante no presente
trabalho.
Mais tarde, à época do Absolutismo, Maquiavel, no capítulo XIX de sua obra
“O Príncipe”, quando trata da forma de evitar que o príncipe seja odiado e
desprezado, fala da práxis da separação de funções já adotada em sua época,
referindo explicitamente as vantagens obtidas com relação ao fato de o poder de
julgar ser separado do poder absoluto do soberano:
64 BOBBIO, Norberto. Teoria das formas de governo. Tradução de Sérgio Bath. 10. ed. Brasília: UNB, 1998. p. 70. 65 BOBBIO.Op. Cit. p. 71.
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Em nossos tempos, entre reinos bem organizados e governados, deve-se enumerar o da França. Encontram-se nele numerosas boas instituições das quais dependem a liberdade e a segurança do rei. A primeira delas é a do Parlamento e a autoridade que possui, pois o homem que organizou aquele reino, conhecendo, de um lado, a ambição e a insolência dos poderosos, e julgando necessário por-lhes um freio a boca para corrigi-los, e de outro, conhecendo o ódio do povo contra os grandes, motivado pelo medo, e querendo protegê-los, não permitiu que esta tarefa ficasse a cargo do rei, para desculpa-lo da acusação dos grandes quando favorecesse o povo, e do povo quando favorecesse os poderosos. Por isso, constituiu um terceiro juízo que fosse aquele que , sem responsabilidades do rei, deprimisse os grandes e favorecesse os menores. Essa organização não poderia ser melhor e mais prudente, nem pode negar que seja a melhor causa de segurança do rei e do reino. Pode-se daí tirar notável instituição: os príncipes devem encarregar a outrem da imposição das penas; os atos de graça, pelo contrário, só a eles mesmos em pessoa devem estar afetos66.
Todavia, pode-se dizer que a versão “moderna” da separação de poderes
está estritamente ligada às conquistas históricas dos Séculos XVII e XVIII, tais como
a garantia da liberdade e da propriedade, sendo defendida como princípio jurídico do
império da lei e pré-requisito da Rule of Law. Ou seja, a versão mais remota refere-
se a opção dos governos pelo qual o poder político é distribuído, enquanto a versão
mais moderna trata das Rule of Law, referindo-se a separação como forma de
afirmação do império da lei, o Estado de direito. Outra importante observação é a de
que
Este princípio moderno veio a associar-se ou mesmo confundir-se com a teoria da constituição mista. Da associação destas duas idéias que, ‘a partida, nada tinham em comum, nasceu a teoria da balança dos poderes que, por sua vez, evoluiu para a teoria do checks and balances, sobretudo na América do século seguinte, a qual se autonomizou em relação a referência social da constituição mista. Os freios e contrapesos, por seu turno, foram-se integrando progressivamente na própria doutrina da separação de poderes 67.
Traçando-se uma referência moderna à teoria da separação de poderes,
agora, passa-se a demonstrar que a mesma está estritamente associada à noção de
Rule of Law68, ressurgindo na Inglaterra do Século XVII, com o seguinte cenário e
com uma significativa função:
66 MAQUIAVEL. Nicolau. O príncipe. Tradução de Antonio Carruccio Caporale. São Paulo: L&PM, 1998. p199. 67 PIÇARRA, Nunes. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989. p. 18. 68 Impende compreender a expressão Rule of Law, em diferentes contextos equivale a Estado Constitucional ou Estado de Direito, ou seja, a submissão a regras e instituição encarregadas a aplicação das leis.
48
À data do começo do reinado de Jaime I (1603-1625) era entendimento comum na Inglaterra que o rei era principal part of the Parliament e o parlamento um single mixed sovereign body, dotado de supremacia legislativa. O essencial da instituição King-in-Parliament (surgida na seqüência do ato de supremacia de 1533 que marcou a ruptura da Inglaterra com Roma) consistia no fato de uma função legislativa ser atribuída a uma assembléia de caracter misto composta pelo Ri, pela Câmara dos Lordes e pela Câmara dos Comuns. A dilucidação dos vetores fundamentais deste conflito histórico entre absolutismo e rule of law, que desencadeou na guerra civil inglesa (1642-1649), é a condição prévia essencial para a compreensão da exigência de uma separação-orgânica pessoal entre função legislativa e função executiva (designação inicial da função jurisdicional). Só com a definitiva rejeição do absolutismo 1689, essa exigência pode ser definitivamente concretizada inglesa69.
Uma significativa referência doutrinária moderna à separação de poderes é
atribuída a John Locke, que marcou seu pensamento por não fazer nenhum apelo
significativo a figura da antiga Constituição. Contudo, para que se possa entender a
separação de poderes em Locke, é preciso retomar-se a idéia de que o Estado é
fruto de um contrato, convenção entre os homens.
Portanto, para Locke, o Estado de natureza é um estado de perfeita
harmonia, sendo que a Constituição e a atuação do Estado se justificam apenas
para a defesa dos direitos naturais, sendo que neles se inclui a idéia marcante de
propriedade privada. Assim sua principal preocupação estava voltada à questão da
garantia da propriedade e à segurança dos direitos individuais, que não devem estar
à mercê dos governantes.
Destaca-se o caráter marcadamente liberal de seu pensamento que buscou
superar a controvérsia existente entre rei e parlamento na realidade Inglesa,
tentando projetá-las para um regime mais abrangente. Isso teve implicações cruciais
para a sua teoria do governo, trazendo consequências imediatas para a natureza do
Poder Legislativo e suas limitações, e, especialmente, traçando uma limitação ao
poder político do monarca, pois a maior preocupação era a de conter os excessos
do rei, poi o parlamento, para Locke, gozava de maior confiança. Apesar disso, não
se pode dizer, contudo, que o mesmo traçou uma clara diferenciação entre Poder
69 PIÇARRA, Nunes. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989. p. 44-45.
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Executivo, Legislativo e Judicial, pois ele não separou a questão da fiscalização e do
cumprimento das leis como funções independentes, apartadas70.
O grande teórico da Revolução Gloriosa desempenhou, pois, um grande
papel na Inglaterra, uma vez que sua doutrina está associada à separação de
poderes. Porém, conforme já referido, Locke não viu o aparelho judicial como um
ramo apartado ou um poder autônomo. Em sua tricotomia, os dois "derivados" ou
"inferiores" são o executivo e o federativo, enquanto que o supremo poder é o
legislativo, que dá vida, forma e unidade à comunidade. O legislativo vislumbrado
por Locke é obrigado, por sua vez, a pronunciar e a impor a eterna e imutável lei da
natureza, sendo que as leis naturais são encontradas, não são criadas por ele,
motivo pelo qual a jurisdição não está autorizada a rever ou a impor limitações às
leis naturais ou à vontade legislativa71.
A distinção feita por Locke consiste, por conseguinte, na existência de três
poderes, com funções meio confusas entre si:
70 RAPNAPALA, Suri. Art. Jonh Locke´s Doctrine of the Separation of Powers: A Re- Avaluation- The American Journal of Jurisprudence, 1993, p. 201-203. Texto na lingua de origem: Locke made no appeal to the common law and almost none to the Ancient Constitution. The independence he gave himself and the premises from which he argued, enabled him to transcend the immediate controversy between King and Parliament and to place both institutions in a wider political scheme. This had crucial implications for his theory of government. It resulted in a focus on the nature of legislative power and its limitations, whereas the contemporary political focus was on the limitation of the monarchical power. Is is true that, in the period of the Long Parliament, the question of government by Parliament had become the key issue. However, it was no longer the immediate issue, since executive power has been restored to the king. The concern once again had become monarchial excesses... The three deficiencies of the state of nature which Locke outlines, correspond closely to the lack of differentiation between legislative, judicial, and executive powers in the state. It has been said Locke did not formulate a separate judicial power alongside the legislative and executive powers, or, more accurately, he did not divide the functions of the enforcement of the law into two independent “powers” as Lawson had done. 71 CAPELETTI. Mauro. Repudiating Montesquieu? The Expansion and Legitimacy of “Constitutional Justice”. Catholic University Law Review, Vol. 35, 1985, p. 19-20. Texto na língua original: If the French brand of judicial powerlessness might find in Montesquieu its most authoritative, though not unambiguous, theorist, the great liberal thinker and theorizer of the Glorious Revolution, John Locke, might be seen to have played a similar role in England. Although frequently associated with the historic doctrine of separation of powers, Locke in fact did not even view the judiciary as a separate “branch” or “power.” In his trichotomy, the two “derivative” or “inferior” powers are the “executive” and the “federative,” whereas the “supreme” power, the “legislative,” is magnified as “the Soul that gives Form, Life, and Unity to the Commonwealth.” Even though Locke’s “legislative” was bound to “pronounce” and “enforce” the “eternal and immutable laws of nature,” which are found, not created, by reason, he did not see the judiciary as the authorized and privileged enforcer of these natural laws limits of the legislative will.
50
a) Poder Legislativo, que é o que tem o direito de estabelecer como se deve utilizar a força da comunidade no sentido de preservação dela própria e dos seus membros; b) poder federativo, ao qual cabe a guerra e paz, as ligas e alianças, e todas as transações com pessoas estranhas à sociedade; c) Poder Executivo, que deve acompanhar a execução das leis que elaboram e ficam em vigor72.
Segundo o contratualista inglês, o poder federativo e o Poder Executivo
deveriam ser exercidos pela mesma pessoa. A derivação da lei como sendo uma
função típica do legislativo, todavia, demonstra uma supremacia jurídica desta
função, justificando a existência de uma separação orgânico-pessoal entre aquele
que faz e aquele que executa a lei. O legislativo jamais poderá transferir a
prerrogativa de fazer leis a quaisquer outras mãos, pois ele só está incumbido desta
tarefa graças ao poder popular, que decidiu se submeter às regras, confiando ao
Poder Legislativo tal incumbência; mas, é quase inconcebível que Locke não tem em
sua mente, às conseqüências decorrentes de quando o legislador é livre de delegar
o seu poder73.
Sua preocupação, contudo, não estava precisamente voltada à solução para
os que cometessem excessos. Sua preocupação central, que deixa transparecer em
sua obra, parece se dar em relação à garantia dos direitos naturais, mais
precisamente a garantia da vida e da propriedade privada, enquanto expressões da
própria liberdade individual.
O Estado só interfere no estado de natureza, porque o legislativo deve
elaborar leis que regulem possíveis situações supramencionadas e, os julgadores,
pois acreditava que no estado de natureza deveria ter juizes imparciais aptos a lidar
com as controvérsias; enquanto o executivo se justificaria por ser um poder a altura
de garantia a execução das decisões proferidas legisladores. Por isso, é que Locke
72 MORAES FILHO, José Fiomento de. Teoria da Constituição - Estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 155. 73 RAPNAPALA, Suri. Art. Jonh Locke´s Doctrine of the Separation of Powers: A Re-Avaluation- The American Journal of Jurisprudence(1993), p. 219. Texto na lingua de origem: Locke´s final limitation was that “The Legislative cannot transfer the Power of Making Laws to any other hands. For it being but a delegated Power from the People, they, who have it, cannot pass it over to others … when the People have said, We will submit to rules, and be govern´d by Laws made by such Men, and in such Forms, no Body else can say other Men shall make Laws for them.” It is possible to understand this limitation purely on the principle of “delegata otestas non potest delegari.” But it is almost inconceivable that Locke did not have uppermost in his mind, the consequences that would occur when the legislator is free to delegate his power.
51
admite a necessidade de leis positivas, que, teriam a incumbência de garantir a vida
e a propriedade. Locke, também retoma a separação dessas funções, concebida
como um requisito indispensável à Rule of law, quando afirma que, para a lei ser
imparcialmente aplicada, é necessário que os mesmos homens que a fizeram não
tenham, também, o poder de aplicá-la, pois o fariam apenas em benefício próprio 74.
Consubstanciando este pensamento, tem-se que:
Locke projected both these ideas in his theory of separation of powers. Above all, Locke resurrected the idea that the making and execution of the law must be kept separate for reasons more fundamental than the need to create political checks and balances. From his interpretation of the state of nature, Locke derived the ancient principle that, for the preservation of liberty, laws should be general and therefore be kept distinct from their application to particular circumstances. The proposal he made for maintaining such distinctions, were, to a large extent, determined by the possibilities afforded by English history. They consisted of limitations on power which were to be enforced, in the last resort, by the people themselves. One may fault him for not recommending judicial review and procedures for popular determination of constitutional disputes.75
A rigor, pode-se dizer que a Locke faltou a preocupação da separação,
enquanto exercício do poder, não distinguindo ele, especificadamente, as funções.
Ele identificou como Constituição mista aquela em que o Poder Legislativo é
atribuído concorrentemente a três titulares distintos. Em contrapartida, é possível
verificar sua preferência pelo princípio da soberania popular, na mediada em que
identifica basicamente um tipo intra-orgânico, pois e não inclui a idéia de um Poder
Judicial autônomo e independente das demais funções, nem mesmo a idéia de
equilíbrio entre os poderes e suas diferentes funções diante da supremacia dos
representantes do povo.
74 PIÇARRA, Nunes. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução.Coimbra: Coimbra, 1989. p.68-71, passim. 75 RAPNAPALA, Suri. Art. Jonh Locke´s Doctrine of the Separation of Powers: A Re- Avaluation- The American Journal of Jurisprudence(1993), p.219. Tradução livre: Ambas estas idéias foram previstas por Locke na sua teoria da separação dos poderes. Acima de tudo, Locke ressuscitou a idéia de que a elaboração e a execução da lei deveriam ser mantidas em separado por razões mais fundamentais do que a necessidade de criar políticas de equilíbrio e controle. De sua interpretação do estado da natureza, Locke elaborou o antigo princípio de que, para a preservação da liberdade, a legislação deveria ser geral e, por conseguinte, ser mantida distinta de sua aplicação a circunstâncias particulares. As propostas que ele fez para manter tais distinções foram em grande parte determinadas pelas possibilidades oferecidas pela história inglesa. Elas consistiram de limitações ao poder que viessem a serem executadas, em última instância, pelo próprio povo. Pode-se culpar a ele por não recomendar a revisão judicial e procedimentos para a determinação popular de litígios constitucionais.
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Na verdade, tem-se, aqui, uma confrontação, das duas matrizes teóricas: a
primeira, estritamente liberal, com forte característica de limitação interna, equilíbrio
e fiscalização com relação ao exercício do poder, remontando à tradição da teoria da
Constituição mista; e a outra, de matriz democrática, cuja idéia preponderante é a
questão da soberania popular, em que os representantes do povo apenas poderiam
ser controlados por seus representados, sobressaindo-se a função legislativa como
centro da estrutura constitucional 76.
Feitas as explanações acerca de outras importantes referências doutrinárias à
separação de poderes, passa-se a análise das idéias de Montesquieu, o grande
referencial desta doutrina, que sistematizou suas idéias em sua obra “O Espírito das
Leis”, mundialmente conhecida por apresentar uma noção de separação de poderes,
pilar das Constituições liberais, ou melhor, de quase todas as Constituições
ocidentais que se sucederam.
1.3 Separação de poderes em Montesquieu - análise d e seus fundamentos
teóricos
A obra de Montesquieu intitulada o “O Espírito das Leis”, datada de 1748,
através de sua sistematização, traz sua preocupação com a afirmação dos ideais
liberais, pensando uma forma em que o poder não fosse acometido de abusos, em
que um poder controla o outro, visando garantir os direitos fundamentais, mormente,
o direito de liberdade. Antes de se adentrar na teoria da separação de poderes
propriamente dita, contudo, faz-se mister discorrer acerca das formas de governo
propostas por Montesquieu, o que se afigura necessário à compreensão do porquê
de uma teoria para limitá-los. Acerca do tema, Bobbio:
[...] As três formas de governo que, segundo Montesquieu, o estudo da história antiga revelou, são a república ( na qual estão incluídas tanto a democracia quanto a aristocracia), que se baseia no princípio da virtude, a monarquia, que se baseia no princípio da honra, e o despotismo, que se baseia no princípio do medo. Junto a esta separação das formas de
76 PIÇARRA, Nunes. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989. p. 79-80.
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governo, que se baseia ou tem pretensão de basear-se numa análise objetiva da realidade histórica, move-se ao longo de toda a obra uma outra distinção que não corresponde tanto ao critério do princípio inspirador (virtude, honra, medo) quanto ao critério da maneira com a qual é exercido o poder. O poder pode ser exercido de maneira que deixe uma margem de liberdade aos cidadãos e aos corpos intermediários, ou de maneira a reduzi-la ou mesmo suprimi-la. Com base neste critério, os poderes distinguem-se em moderados e absolutos77.
Faz referência ao homem no estado de natureza, pois as leis naturais, que
decorrem da própria constituição do ser, são anteriores a qualquer lei pactuada
pelos indivíduos. Nesta esteira, a primeira lei da natureza vislumbrada por
Montesquieu é a paz, pois os homens em estado de natureza se sentem uns
inferiores aos outros, amedrontados, ninguém tentaria atacar; assim se teria a paz e
não a guerra entre os homens. Já as outras leis seriam o sentimento de fraqueza,
acrescido pelo sentimento de necessidade (procura de alimentos), o prazer e a
atração entre os dois sexos e, por fim, o desejo de conviver em sociedade78:
A relação entre lei natural e as leis positivas é a que existe entre um princípio geral e suas aplicações práticas. A lei natural se limita a anunciar um princípio, como por exemplo, aquele segundo o qual as promessas devem ser mantidas; as leis positivas estabelecem a cada momento e de forma diversa de acordo com as diferentes sociedade- “como” devem ser feitas as promessas para que sejam válidas as sanções impostas aos que não as mantiverem, para tornar mais provável sua execução, etc. Montesquieu distingue três espécies de leis positivas: as que regulam relações entre grupos independentes (por exemplo, entre os Estados), as que regulam as relações entre governantes e governados dentro de um grupo e as que regulam o relacionamento dos governados entre si. Constituem, respectivamente, os direitos das gentes (internacional), o direito político (público) e o direito civil (que ainda hoje conhecemos por este nome) 79.
Com sua obra, Montesquieu procura, através do estudo da sociedade em
particular, criar uma teoria que sirva à sociedade em geral. Para tanto, ele tenta
considerar as particularidades de cada sociedade, com o intuito de explicar sua
variedade, partindo do pressuposto de que esta variedade só é incompreensível
para o homem porque ela é fruto de uma mente superior, que em sua imensa
sabedoria consegue unir todas as formas de civilização para uma misteriosa 77 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 3. ed. Brasília: UNB, 1995. p. 42. 78 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 40. 79 BOBBIO, Norberto. Teoria das Formas de Governo. Trad. Sérgio Bath. 10. ed. Brasília: UNB, 1998. p.128.
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unidade, ou que suas estranhezas são frutos de aberrações. Contudo, a proposta de
solução por ele apresentada, no que se refere a tamanha variedade, diz que a razão
da multiplicidade das leis pode ser encontrada quando se aplicam ao universo
humano métodos como os físicos, rigorosos, adotando-se o mesmo espírito de
observação dos fenômenos 80.
The SPIRIT OF THE LAWS is notable not merely because of its influence on institutions but by reason of its method. Though its conclusions are dogmatic enough, its approach is that of modern science. As said by Professor Brinton, “he approached his problem from the point of view of the sociologist, the psychologist and the historian, his method was essentially inductive.” Above all he was a student of comparative government. His theories were the product of research. He worked from the particular to the general, and as he winnowed the systems of the world, he came at last to England, “one nation there is also in the world that has for the direct end of its constitution, political liberty.” Sheer poetic fervor is his as he contemplates his ideal. James Madison sensed it as he wrote in 1787 “The British constitution was to Montesquieu what Homer was to the didactic writers of epic poetry”81.
Cabe ainda referir que, muito embora o autor trate deste tema apenas nos
capítulos IV e VI do Livro XI da obra “O Espírito das Leis”, sua proposta torna-se
compreensível a partir da análise do todo da obra, visto que nela procurou retratar o
governo do qual era profundo conhecedor: a realidade da política inglesa, muito
embora fosse ele um exímio conhecedor da realidade francesa, de cuja origem,
descendia sua formulação. Baseou-se, pois, na situação política da Inglaterra:
On the other hand, we take Montesquieu at his word, not as an evolutionist but as a student of British law and of the philosophy underlying law, he rises to sublime heights as an advocate of a legal system that has “for its direct end political liberty,” a system truly suggested and inspired by the laws of England. As an expositor of Dicey’s conception of the constitutional law which is known to the courts as distinguished from the conventions known only to statecraft, Montesquieu presents an accurate skeletal analysis of the English legal system. If it be unclothed with the flesh of organic life, still it is
80 BOBBIO, Norberto. Teoria das Formas de Governo. Tradução. Sérgio Bath. 10 ed. Brasília: UNB, 1998. p. 128-129. 81 BRAND. James T. Montesquieu and The Separation of Powers. Oregon Law Review, 1933, N. 3, Vol. XII, p. 182. Tradução livre: “O Espírito das Leis” não é só notável por causa de sua influência nas instituições, mas pela razão de seu método, embora as suas conclusões sejam dogmáticas o suficiente, e sua abordagem seja da ciência moderna. Como disse o professor Brinton, “ele abordou seu problema do ponto de vista do sociólogo, psicólogo e do historiador, seu método foi essencialmente indutivo". Acima de tudo, ele foi um estudioso do governo comparativo. Suas teorias foram o produto de pesquisa. Ele trabalhou do específico ao geral, e como selecionou os sistemas do mundo, ele chegou finalmente à Inglaterra: "também há uma nação no mundo que tem como o propósito direto de sua constituição a liberdade política". Ao contemplar seu ideal, demonstra um vibrante fervor poético. James Madison interpretou-o quando o descreveu em 1787 da seguinte maneira: "A constituição britânica foi para Montesquieu o que Homero foi para os escritores didáticos da poesia épica".
55
clothed with the spiritual life and body of genius. Under the influence of his structural plan, new living organisms have arisen. His maxim has become the foundation stone of the governments of the new world. The separation of powers is a living principle, and Montesquieu is its prophet 82.
Em se tratando da teoria de Montesquieu acerca da separação funcional e
institucional de poderes, a análise da coerência de suas reflexões precisa,
necessariamente, partir dos pressupostos a que ela se propôs ao seu tempo, bem
como de uma apreciação das instituições e de seus respectivos funcionamentos.
Assim, para se compreender a “tripartição”83, ou divisão, apresentada por ele, faz-se
mister entender o sistema político que lhe serviu como fonte inspiradora.
Montesquieu was not concerned with sovereignty in the abstract but with constitutional distribution. The king had lost sovereignty long since but royal constitutional prerogative remained. To illustrate, Montesquieu did not claim legislative supremacy or even independence for his monarch, but executive independence only, the veto being merely a defensive weapon. Hence, the obvious loss of royal legislative power before his time involved no contradiction of his theory. That Montesquieu would oppose cabinet government is, I think, clear, though his statement concerning the subject is carefully guarded. “If there were no monarch,” he says, “and executive power should be committed to …. persons from the legislative body, there would be an end then of liberty.” But that he misconstrued the British constitution of his own time is far less plain. In England that which merely was may be constitutional. That which has been and is, is constitutional.84
82 BRAND. James T. Montesquieu and The Separation of Powers. Oregon Law Review, N. 3, Vol. XII, 1933, p. 196-197. Tradução de Por outro lado, consideramos Montesquieu, por suas palavras, não como um evolucionista, mas como um estudioso do direito britânico e da filosofia subjacente à lei. Ele os eleva a um nível superior ao considerá-los como um sistema legal que têm "como seu propósito direto a liberdade política"; um sistema realmente sugerido e inspirado pelas leis da Inglaterra. Como um expositor da concepção de Dicey do direito constitucional, o qual é conhecido pelos tribunais como distinto das convenções conhecidas somente pelos membros do Estado, Montesquieu apresenta uma precisa análise organizacional do sistema jurídico inglês, e se esta for despida de vida biológica, ainda assim ela estará vestida com a vida espiritual e corporal de um gênio. Sob a influência de seu plano estrutural, têm surgido novos organismos vivos. Seu lema tornou-se a pedra fundamental dos governos do mundo novo. A separação de poderes é um princípio vivo, e Montesquieu é seu profeta. 83 Em verdade, o autor que apresentou a tripartição entre executivo, legislativo e judicial, como denominamos atualmente, fora Kant, em sua obra a Metafísica dos Costumes: “ Cada Estado contém em si três poderes, ou seja, a unidade da vontade geral se decompõem em três pessoas; o poder soberano (a soberania) que reside na figura do legislador; o Poder Executivo na pessoa de quem governa (em conformidade às leis); e o poder judiciário (que determina para cada um o seu, segundo a lei), na pessoa do Juiz”. p. 500. 84 BRAND, James T. Montesquieu and The Separation of Powers. Oregon Law Review, N. 3, Vol. XII, 1933. p. 186. Tradução livre: Montesquieu não estava preocupado com a soberania em abstrato, mas com a distribuição constitucional. O rei tinha perdido a soberania há muito tempo, mas a prerrogativa real constitucional continuava. Para ilustrar isso, Montesquieu não reivindicou supremacia legislativa ou até mesmo independência para seu monarca, mas apenas a autonomia executiva, sendo o veto meramente uma arma defensiva. Daí, a perda óbvia do poder legislativo real antes de seu tempo não ter envolvido nenhuma contradição à sua teoria. Me parece claro que Montesquieu se oporia ao governo de gabinete, apesar de sua declaração sobre o assunto ser guardada cuidadosamente. "Se não houvesse monarca", ele diz, "e o poder executivo devesse ser concedido a… pessoas do órgão
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Sua famosa tripartição como categorização das competências aparece em um
capítulo intitulado "da Constituição da Inglaterra"85, enquanto que os limites deste
sistema são indicados nos capítulos posteriores de sua obra, como, por exemplo, no
capítulo VII do mesmo livro XI, quando trata das monarquias moderadas como
sendo a melhor forma de governo, contrapondo a isto outros capítulos
(especialmente no Livro II e Livro V), onde mostra a preponderância do princípio
representativo, tratando dos governos republicanos e da democracia, onde os
interesses se equilibram, contribuindo para a felicidade, como expressão da
liberdade propriamente dita:
The limits of this system as a model are further indicated in the chapters that immediately follow. In chapter seven of book eleven Montesquieu tells us that “the monarchies we know do not have liberty for their direct purpose as does that of which we have just been speaking; they care only for the glory of the citizens, the state, and the prince.” Yet monarchies may possess “a spirit of liberty that can … bring about equally great things and can perhaps contribute as much to happiness as liberty itself,” or the constitution that has liberty for its direct object. Moderate monarchies divide and balance political power, too. (...). England is not, then, the simply best regime for Montesquieu, as sometimes is suggested. It represents a republican species of Montesquieu’s ideal type of constitution, one in which the constitution of separate powers is combined with popular sovereignty; traditional monarchy is a different species of the same ideal type, where a balance of powers is combined with the sovereignty of one alone. Thus England is one particular instance of a more general constitutional structure defined by the separation or balance of powers, and whether it is a perfect instance of this general type is something that Montesquieu gives us reason to doubt. It is worth emphasizing that Montesquieu has no doubts about the merits of separate powers86.
legislativo, então chegaríamos ao final de liberdade". Mas que ele tenha interpretado erradamente a constituição britânica de seu tempo é muito menos evidente. Na Inglaterra em que o mero “foi” pode vir a ser constitucional. Em que o “tem sido” e o “é” é que são constitucionais. 85 CLAUS, Laurence, Montesquieu´s Mistakes and the True Meaning of Separation, Oxford Journal of Legal Studies, V. 25, N. 3, 2005. p. 421. Texto na lingua original: In The Spirit of the Laws, Montesquieu purported to describe, in abstract fashion, the system of government that he had witnessed. His famous tripartite categorization of powers and theory of their checked separation appears in a chapter entitled ‘Of the Constitution of England’. The ‘direct end’ of that constitution was, uniquely, ‘political liberty’, by which Montesquieu mean freedom from the fear that power will be exercised arbitrarily. 86 KRAUSE, Sharon. The Spirit of Separate Powers in Montesquieu. The review of Politics, 1939,pp. 242-243.Tradução livre: Os limites desse sistema como modelo serão indicados mais adiante nos capítulos que seguem. No capítulo sete do livro onze, Montesquieu nos diz que “nas monarquias que conhecemos não temos a liberdade como seu propósito direto como nas monarquias das quais estamos apenas falando; eles se importam apenas com a glória dos cidadãos, do estado, e do príncipe”. As monarquias podem possuir um “espírito de liberdade que pode... trazer quase que igualmente grandes coisas e pode talvez contribuir tanto para a felicidade como a liberdade mesmo”, ou ainda uma constituição que tenha a liberdade como seu objetivo direto. Monarquias moderadas dividem e equilibram o poder político também (...). A Inglaterra não é, então, simplesmente o melhor regime para Montesquieu, como às vezes é sugerido. Ela representa a espécie republicana do tipo ideal de constituição para Montesquieu, na qual a constituição dos poderes separados é combinada com a soberania popular; a monarquia tradicional é uma espécie diferente do mesmo tipo ideal, onde
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No entanto, há quem entenda que o retrato que Montesquieu traçou da
realidade Inglesa era equivocado:
If Montesquieu intended in his famous treatise to present the factual condition of the British constitution in his own time, then perhaps he erred. That great spiritual charter had already been transformed. England had slept a monarchy, it had awakened a republic. But before we concede a double error, first by Montesquieu and then by our constitutional fathers, we must look deeper. If the great Frenchman erred, few mistakes have been more profoundly couched in reason or have been more unavoidable. We must first consider what the separation of powers meant to the author. In later years the rule has received two different constructions. Both recognize in a general way a relation between the three functions of government and the three departments of government, respectively; and that each department has a special interest in one only of the three functions; but one school seems to have construed the maxim to mean that all legislative power should be vested in one department only and that likewise all executive and judicial powers should in theory each be confined to one appropriate department 87.
Contudo, no decorrer de sua obra, pode-se notar que Montesquieu era
conhecedor das demais formas de separação de poderes, tanto da sua origem na
Constituição mista quanto da forma de balanceamento dos poderes, com sua
construção a partir da realidade da política inglesa dividida em Monarquia (governo
de um só), Câmara dos Lordes (governo de poucos) e Câmara dos Comuns
(governo de muitos).88
um equilíbrio de poderes é combinado com a soberania de cada um. Assim, a Inglaterra é uma instância particular de uma estrutura constitucional mais geral definida pela separação ou equilíbrio dos poderes, e ser ela uma instância perfeita dessa espécie geral é algo que Montesquieu nos faz duvidar. Vale a pena enfatizar que Montesquieu não tem nenhuma dúvida sobre os méritos dos poderes separados. 87 BRAND, James T. Montesquieu and The Separation of Powers. Oregon Law Review, 1933, N. 3, Vol. XII, p. 183-184. Tradução livre: Se Montesquieu pretendia em seu famoso tratado apresentar a condição factual da constituição britânica de seu tempo, então talvez ele errou. Aquele grandioso estatuto espiritual já tinha sido transformado. A Inglaterra tinha adormecido como uma monarquia, e tinha despertado como uma república. Mas, antes de admitirmos um duplo erro, primeiro cometido por Montesquieu e, então, por nossos pais constitucionais, nós devemos olhar mais profundamente. Se o grande homem francês errou, poucos erros foram mais profundamente analisados sob a luz da razão ou foram mais inevitáveis. Nós devemos primeiro considerar o que a separação dos poderes significou ao autor. Nos últimos anos a regra recebeu duas construções diferentes. Ambas reconhecem, em sua forma geral, uma relação entre as três funções e os três departamentos do governo, respectivamente, e que cada departamento tem um interesse especial em apenas uma das três funções, mas uma escola parece ter contribuído ao máximo para que fosse compreendido que todos os poderes legislativos deveriam ser designados a um departamento e que ao mesmo tempo, os poderes executivo e judiciário deveriam, em teoria, serem designados cada um a um departamento apropriado. 88 STEWART, Iain. Men of Class: Aristotle, Montesquieu and Dicey on ‘Separation of Powers’ and ‘The Rule of Law’, Macquarie Law Journal, Vol. 4, 2004, p. 202-203. Texto original: Generations of jurists, therefore, seem not only to have attributed to Montesquieu a scheme that he actually rejected
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Em referência à Rule of Law, preocupou-se com a liberdade jurídica,
submetida à lei, como liberdade de o homem agir em conformidade com os limites
expressos na lei, ou seja, vislumbrou uma liberdade em sentido normativo, para
além do sentido natural, tanto que procurou idealizar um governo que não usurpasse
a liberdade dos indivíduos, de forma que o poder limitasse o poder; daí um Estado
moderado em nome da proteção da liberdade. Mesmo assim, adverte:
A democracia e a aristocracia, por sua natureza, não são Estados livres. Encontra-se a liberdade política unicamente nos governos moderados. Porém, ela nem sempre existe nos Estados moderados: só existe nestes últimos quando não abusa do poder, mas a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidade de limites89.
Nesta passagem da obra, Montesquieu define bem o ponto de partida e de
chegada da teoria da separação de poderes. Muito embora o poder seja uma virtude
humana e, ao longo da história as barbáries cometidas por seres humanos,
detentores de poder, o tenham tornado quase que um demérito, a experiência
humana demonstra que, como seres dotados de virtudes e também de imperfeições,
diante de uma situação de detenção de poder, tende-se à vulnerabilidade e, na
maioria das vezes, acaba-se por extrapolar, abusar, do poder:
When the plebeians attacked the legislative prerogatives of the patricians they undercut the basis of their own freedom, Montesquieu says, so that “the people, in order to establish democracy, attacked (choqua) the very principles of democracy” (XI.16). Similarly, when the power of judging was taken away from the senators in that republic, the senate could no longer stand up to the people. The result was that the people “attacked (choquèrent) the liberty of the constitution in order to favor the liberty of the
but also to have misunderstood even that scheme. His preferred scheme should be understood as spreading around among King, House of Lords and House of Commons both a legislative power that includes domestic administration and an executive power concerned mainly with foreign relations and defence (...) True, Montesquieu speaks enthusiastically of ‘political liberty’ in this part of The Spirit of Laws and in his ‘Notes on England’. But he means a liberty in which the aristocracy and the bourgeoisie will be free from oppression by a despotic monarch, free from conflict with each other and free from overthrow by what he refers to in the ‘Notes’ as ‘the rabble’.This perspective permits an answer to the still pending question: if Montesquieu preferred the scheme of mixed and balanced government (gouvernement modéré as he termed it, following Locke), why did he introduce the three-power scheme at all? He does not give a source for that scheme and he was the first to produce just this formulation, but the terminology is ancient. We have seen it in Aristotle and, like him, Montesquieu does not elevate it into a legal principle. 89 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 200.
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citizen; but the latter was lost along with the former” (XI.18). The sprit of extreme liberty causes the decline of democratic republics, for “democracies are lost when the people deprive the senate, the magistrates, and the judges of their functions,” resulting in what Montesquieu calls “the despotism of all” (despotism de tous) (VIII.6; see also VIII.2-3). Throughout The Spirit of the Laws Montesquieu warns against the tendency of free peoples to push their liberty to extremes – not because extreme liberty violates some higher teleological principle but because extreme liberty tends to undermine liberty itself 90.
Portanto, nenhum cidadão do Estado pode acreditar que, por ser possuidor
da soberania popular, poderá ter liberdades ilimitadas. A liberdade impõe limites
através da lei dentro do governo e da sociedade, estabelecendo o que deve ser
permitido fazer livremente e daquilo que é proibido, mesmo sendo possuidor da
liberdade, pois o exercício de uma liberdade sem limites acabaria com a própria
liberdade; em nome de sua total liberdade, uns acabariam por se apropriar da
liberdade dos outros. É o que Montesquieu denomina de “despotismo” do todo:
‘The political liberty of the subject’, said Montesquieu, ‘is a tranquility of mind arising from the opinion each person has of his safety. In order to have this liberty, it is requisite the government be so constituted as one man needs not be afraid of another. The liberty of which Montesquieu spoke is directly promoted by apportioning power among political actors in a way that minimizes opportunities for those actors to determine conclusively the reach of their own powers. Montesquieu’s constitution of liberty is the constitution that most plausibly establishes the rule of law. Montesquieu concluded that this constitution could best be achieved, and had been achieved in Britain, by assigning three essentially different governmental activities to different actors. He was wrong. His mistaken conclusion rested on two errors. The first of these was theoretical; the second, both empirical and theoretical 91.
90 KRAUSE, Sharon. The Spirit of Separate Powers in Montesquieu. The review of Politics, 1939, p. 240-241. Tradução livre: Quando os plebeus atacavam as prerrogativas legislativas dos patrícios, eles enfraqueciam a base de sua própria liberdade, como disse Montesquieu, de forma que “as pessoas, para estabelecer democracia, atacavam (choqua) os princípios mais verdadeiros da democracia” (XI.16). Da mesma forma, quando o poder de julgar foi tirado dos senadores daquela república, o senado não pôde mais impor-se sobre o povo. O resultado foi que o povo “atacou (choquèrent) a liberdade da constituição para favorecer a liberdade do cidadão, mas essa já havia sido perdida com a primeira (XI.18)”. O espírito de extrema liberdade causa o declínio das repúblicas democráticas porque “democracias são perdidas quando as pessoas privam o senado, os magistrados e os juízes de suas funções”, resultando no que Montesquieu chama de “o despotismo de tudo” (despotism de tous) (VIII.6; veja também VIII.2-3). Ao longo de O Espírito das Leis, Montesquieu alerta contra a tendência das pessoas livres de levar sua liberdade para extremos – não porque a extrema liberdade viola alguns dos mais altos princípios teleológicos, mas porque a extrema liberdade tende a sabotar a liberdade em si. 91 CLAUS Laurence, Montesquieu´s Mistakes and the True Meaning of Separation, Oxford Journal of Legal Studies, V. 25, N. 3, 2005. p. 419. Tradução livre: "A liberdade política do assunto", disse Montesquieu, "é uma tranqüilidade de espírito decorrente da opinião que cada pessoa tem de sua segurança. A fim de ter essa liberdade, é necessário que o governo seja constituído de forma que um homem não tenha medo de outro. A liberdade da qual falava Montesquieu é diretamente promovida pelo poder partilhado entre os atores políticos, de uma forma que minimiza as oportunidades desses atores determinarem conclusivamente o alcance de seus próprios poderes. A constituição de
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Cada indivíduo reclama liberdade ao governo em conformidade com seus
costumes e peculiaridades, e nestas formas de governo a lei acaba por falar mais
alto do que seus executores, o que, em geral, ocorre nas repúblicas, diferentemente
das monarquias, em que o monarca concentra poderes. Contudo, à primeira vista,
nas democracias, o povo parece falar e fazer tudo aquilo que deseja; mas atrelando-
se a liberdade com tais formas de governo, confunde-se a liberdade com o poder
atribuído ao povo, premissa esta que é uma inverdade, pois havendo lei em uma
sociedade, a liberdade é poder fazer somente o que se deve querer e não ser
compelido a fazer, o que, segundo Montesquieu, não se deve desejar 92.
En segundo lugar, el carácter liberal subyace en toda la obra; es notorio el deseo primordial de defender y proteger la libertad individual, libertad individual que no existe con suficientes garantías y condiciones fijas si un poder absorbe las funciones de otro. Como subraya Tierno Galván, <<la libertad para Montesquieu es un resultado de la buena organización por las leyes de las funciones principales de los poderes del Estado, es decir, de la división de poderes. Considerar la libertad un resultado es la gran innovación de Montesquieu. Antes de él era un principio, a partir de él será durante mucho tiempo una consecuencia, la consecuencia de organizar bien el Estado. No cabe por consiguiente confundir libertad con independencia. La independencia es un principio natural, pues no hay nadie que no quiera ser independiente respecto de los demás, pero este principio no puede actuar plenamente en una sociedad política. Si actúa sin limitaciones destruye la convivencia. En una sociedad políticamente organizada el principio, la independencia, tiene que someterse al resultado de las leyes, la libertad. El paso de la sociedad natural a la sociedad política – de guerra a la paz – es el paso de la independencia a la libertad.93
Foi como forma de tentar garantir esta liberdade que, na teoria da separação
de poderes, Montesquieu recorreu ao sistema de freios e contrapesos para garantir
que as pessoas não fossem obrigadas a fazer o que não estaria previsto em lei,
resultante do próprio abuso do poder. Em suas palavras: “Para que não se possa
liberdade de Montesquieu é a Constituição que mais plausivamente estabelece as regras do direito. Montesquieu concluiu que esta constituição poderia ser melhor executada, e tinha sido alcançada na Grã-Bretanha, pela determinação de três atividades governamentais essencialmente diferentes a diferentes atores. Ele estava errado. Sua conclusão assentava em dois erros. O primeiro deles foi teórico; o segundo, tanto teórico como empírico. 92 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 199-200. 93 PASCUAL, Cristina García. Legitimidad Democrática y Poder Judicial, Cap. Primero: Orígenes de la Idea de Administración de Justicia. Madris: Estudios Universitarios, 1997. p. 36-37.
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abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder.”94
Dessa forma, demonstra que, para além da preocupação de limitação do poder,
procurou encontrar meios de evitar tal abuso, que, pela experiência histórica, parecia
inevitável.
Em face do até então explanado, observa-se que a teoria de Montesquieu
apresenta alguns pontos fundamentais: a questão da liberdade, decorrente de uma
história de opressão humana devido à tirania dos governos e classes dominantes; as
fortes influências das revoluções oriundas das lutas pela democracia contra o
absolutismo e a necessidade de se afirmar juridicamente a democracia nas
Constituições modernas (na medida em que concentrou, nas mãos do Poder
Legislativo, enquanto representante do povo, a tarefa de fazer as leis comuns a
todos); e, sobretudo, a constatação de que o ser humano, quando detentor do poder,
tende a abusar dele, sendo que o único meio de se conter uma tal situação seria por
meio de outro poder que lhe impusesse limites, atuando como um sistema de freios
e de contrapesos.
No entanto, há quem diga que o equilíbrio e o contrabalanceamento aos quais
Montesquieu se referiu, diz respeito, não aos poderes propriamente ditos, tal como
hoje conhecidos, mas sim ao sistema inglês dos poderes do king, lords e commons:
“If one reads a few more pages on from the famous passage, one finds that
Montesquieu’s preferred scheme of checks and balances is not the three famous
powers but the established English scheme of king, lords and commons”95. O veto
era a maneira com que os poderes poderiam barrar um ao outro, sendo ele válido
tanto para a Câmara dos Lordes quanto para a Câmara dos Comuns. Certo, no
entanto, é que, para Montesquieu, a separação de poderes serve à garantia da
liberdade, que se dará através de um sistema de freios e de contrapesos do poder
que limita o próprio poder.
Para discorrer acerca da forma com que Monstesquieu separou/dividiu
poderes, uma observação se faz salutar. De sua idéia de separação, quando
94 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 200. 95 STEWART. Iain. Men of Class: Aristotle, Montesquieu and Dicey on ‘Separation of Powers’ and ‘The Rule of Law’, Macquarie Law Journal, Vol. 4, 2004, p. 198.
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apresenta a separação entre executivo e legislativo, entre legislativo e judicial e
ainda entre judicial e executivo, pode-se extrair daí uma separação orgânico-
pessoal, inserindo-se no contexto das Rule of Law ou do “regime de legalidade”,
aprofundando a versão originária da separação de poderes de conotação
exclusivamente funcional como meio de garantir a supremacia da lei na medida em
que o exercício de poder estivesse em consonância e subordinado a ela. No
entanto, quando Montesquieu faz menção, em sua teoria, às forças sociais que
devem se equilibrar na partilha do poder político, remetendo sua doutrina a uma
separação vertical e horizontal, ou ainda político-social, introduz também uma
separação social de poderes para fundamentar a tripartição de poderes entre rei,
nobreza e representantes do povo (monarquia, câmara dos lordes e câmara dos
comuns) 96.
Montesquieu apresenta uma divisão de poderes que deve se dar em cada
Estado, bem como as atribuições que competem a cada qual no exercício de suas
funções. Assim, vislumbra o Poder Legislativo, responsável pela elaboração das leis
nos Estados; o Poder Executivo como sendo o poder das coisas que dependem do
direito das gentes (uma referência ao direito público), cuja responsabilidade é a de
fazer a paz ou a guerra, prevenir contra invasões e manter a segurança, o qual se
denomina apenas de Poder Executivo do Estado; e o executivo, ao qual se atribuem
os assuntos do direito civil, atribuindo a este o poder de julgar e punir os crimes dos
indivíduos (o que doutrinariamente passou a se chamar de poder judiciário) 97.
Observa-se:
No existe, sin embargo y tras lo dicho, radical separación entre poderes, sino coordinación. La idea inspiradora es la del control recíproco entre las distintas fuerzas, lo cual no significa desde luego la exclusión de mutuas injerencias sino más bien la confirmación de su necesaria existencia. El ejecutivo se injiere en el legislativo puesto que el rey dispone del derecho de veto. Así lo declara Montesquieu cuando dice: <<El poder ejecutivo [...] debe participar en la legislación en virtud de su facultad de impedir, sin la cual pronto se vería despojado de sus prerrogativas>>, o en otro lugar: <<Si el poder ejecutivo no pose el derecho de frenar las aspiraciones del cuerpo legislativo, éste será despótico, pues, como podrá atribuirse todo el poder imaginable, aniquilará a los demás poderes>>. El legislativo ejerce una llamada facultad de inspección sobre el ejecutivo, puesto que controla la
96 PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989. p. 106-108. 97 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 200.
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aplicación de las leyes que ha votado: <<en un Estado libre el Poder Legislativo tiene, [...] el derecho y debe tener la facultad de examinar cómo son cumplidas las leyes que ha promulgado>> 98.
Com esta divisão de competências, a pretensão de Montesquieu era o
equilíbrio entre os mesmos, uma vez que somente o poder seria capaz de frear o
próprio poder, criando o sistema de freios e contrapesos. Com a racionalização e
distribuição eqüitativa do poder, o Estado, no exercício de suas funções, conseguiu
melhor equilibrar a relação do poder com o direito dos indivíduos. Vale, de qualquer
forma, relembrar que essa teoria surge num momento de afirmação do Estado
moderno, liberal, com pilar na democracia, contra o Estado absolutista comandado
pela monarquia, clero e nobreza99.
Assim, adverte o autor sobre o porquê da necessidade de divisão dos
poderes, justamente referindo o risco de uma concentração excessiva de poder em
um único órgão ou pessoa:
Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou mesmo o Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse ligado ao legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria o legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos100.
O trinômio apresentado por Montesquieu, tentando abarcar exaustivamente a
totalidade das funções estatais, apresenta uma conotação integralmente jurídica, e
não política. Ao separar executivo e legislativo, aponta para um sistema jurídico
(sistema de repartição de funções) e político (por serem escolhidos como
representantes populares) em que a legislação é peça essencial, pois tende a ser o
98 PASCUAL, Cristina García. Legitimidad Democrática y Poder Judicial. Madrisd: Estudios Universitarios, 1997. p. 49. 99 ARAÚJO Rosalina Corrêa de. Estado e Poder Judiciário o Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. p. 16-18. 100 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 199-200.
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único modo de constituição do direito; esta concepção estadista-legalista é, por sua
vez, integrante do modelo de Estado de Direito - legalidade - onde a função
executiva e a função legislativa são propositalmente contrárias, sendo a primeira,
enquanto mera executora, subordinada à função criadora e soberana de fazer as
leis 101.
Tem-se, pois, a separação como forma de garantia da soberania popular,
uma vez que o Poder Executivo se exerce sempre sobre coisas momentâneas,
sendo inútil o legislativo ter o poder de limitá-lo, pois suas ações ou seus limites são
oriundos e expressos pela própria lei, diferentemente do que se dá com o legislativo,
com relação ao qual o executivo tem o poder de veto (isso porque, se o Poder
Executivo não tiver o direito de vetar as ações do Poder Legislativo, ele poderá ser
despótico, uma vez que atribuiria a si próprio todo o poder que desejasse ter)102.
Checks and balances may be participatory or expository. Participatory checks and balances, like a chief executive´s decision whether to assent to legislation, a legislature’s decision whether to endorse executive appointments, or, indeed, the intra-institutional apportionment of power among members of a legislature or a court, make the exercise of power depend upon concerted action by multiple actors. Expository checks and balances, by which actors expound the laws that confer and limit other actors’ powers, may similarly be conditions precedent to action or may be triggered by ex post challenge to that action. Ex post exposition is lawmaking in the course of execution, but the liberty of the citizen is directly promoted by separating that expository lawmaking-in-execution from the law-making and executive powers that are the subject of exposition. The critical liberty-promoting criterion for separation is not whether powers differ in kind, but whether apportionment will prevent actors from conclusively determining the reach of their own powers103.
101 PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução.Coimbra: Coimbra, 1989. p. 92-94 102 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 207. 103 CLAUS Laurence, Montesquieu´s Mistakes and the True Meaning of Separation, Cap. IV - Montesquieu and Judicial Lawmaking - Oxford Journal of Legal Studies, V. 25, N 3, 2005. p. 436. Tradução Livre: Equilíbrio e controle podem ser participativos ou expositivos. Equilíbrio e controle, como uma decisão de um chefe executivo, seja para consentir a legislação, uma decisão da assembléia, ou se para aprovar nomeações executivas, ou, na verdade, a nomeação intra-institucional do poder entre os membros de uma assembléia ou de um tribunal, fazem o exercício do poder depender de uma ação conjunta de diversos intervenientes. Equilíbrio e controle expositivos, através dos quais os seus atores expõem as leis que conferem e limitam o poder de outros agentes, podem igualmente serem condições precedentes a ações ou podem ser acionados por desafios ex post àquela ação. Exposição ex post é o ato de legislar no curso da execução, mas a liberdade do cidadão é diretamente promovida pela separação daquela expositiva legislação no curso da execução dos poderes legislativo e executivo que são os sujeitos da exposição. O critério crítico da promoção da liberdade para a separação não é se os poderes diferem em tipos (espécies), mas se a repartição irá impedir os agentes de determinar conclusivamente o alcance de seus próprios poderes.
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Analisando-se, pois, o esquema de balanceamento apresentado em sua obra,
através da passagem acima descrita, nota-se que a balança de poderes idealizada
por Montesquieu existe apenas entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo,
enquanto titulares do poder político. O Poder Judicial, como observar-se-á a seguir,
estritamente a idéia do legislador, aparecendo como “nulo e invisível”, aspecto
reforçado pelo próprio contexto liberal de desconfiança para com os magistrados e
empirismo exegético como teoria interpretativa, como referido anteriormente.
Em conformidade ao supracitado, um questionamento que traz inquietude,
refere-se ao fato de que se havia desconfiança para com relação ao Judiciário, por
que Montesquieu o manteve ou previu, na separação de poderes, fazendo menção a
função de julgar? Não poderia ele, simplesmente, ter criado uma separação que não
previsse esse poder? Na verdade, acredita-se que o autor reconheça a necessidade
da função, da tarefa individual e aplicadora da lei, mas não a necessidade do
Judiciário ou dos magistrados, podendo em tese, ser qualquer outro a desempenhar
essa função:
En efecto, Montesquieu no empleó nunca la expresión “división de poderes”, utilizando tan sólo en una ocasión, y en forma exclusivamente negativa, el verbo “separar”. Es importante subrayar que en esa única ocasión se refiere concretamente, además, “al poder de juzgar en relación con los otros dos”, esto es, sin concernir a éstos. Aunque luego volveremos sobre el asunto, de momento y en cualquier caso, por tanto, puede afirmarse que la expresión “separación de poderes” traiciona el pensamiento de Montesquieu, así como que sería más exacto decir “no confusión” de los mismos, puesto que era esto lo que verdaderamente le preocupaba. Y es que Montesquieu sólo rechazó la confusión total de todos o de dos de los tres órganos que ostentan los tres poderes, en el sentido de que no deben estar integrados por los mismos elementos. En especial, entendía también que los titulares de la función judicial habían de ser excluidos del poder político supremo, manteniéndose así independientes del legislativo y del ejecutivo; mientras que éstos, por su parte, debían contrapesarse, balancearse y contrabalancearse entre sí para que les resultase necesario ponerse de acuerdo a fin de que el veto de uno no inmovilizase al otro 104.
Assim, é a função judicial que se apresenta como a grande “inovação” com
relação às teorias anteriores, embora não tenha sido literalmente mencionada. Em
verdade, muitos dos seus críticos dizem que sequer era intenção de Montesquieu
vislumbrar um Poder Judicial independente do executivo e do legislativo. No entanto,
uma pergunta parece pertinente ao tema: 104 TORRES, Miguel Ayuso. El Poder e Sus Limites. Madrid: Estudius Universitarios, 1997.p. 235.
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Why was Montesquieu so concerned to distinguish the essences of three governmental activities and to claim that the separation of those activities was the secret of maximized liberty? Why did he not simply say that dividing government power among multiple actors might promote liberty, especially if every exercise of power ultimately depended on the approval of multiple actors? In other words, why did he characterize the British model as a checked separation of different kinds of power, rather than simply as power-sharing? The monarch’s power to disallow legislation was, after all, qualitatively indistinguishable from, and quantitatively greater than, the voting power of any individual member of Parliament. Why try to distinguish primary exercises of power from supervisory ones? The answer seems to lie in then-prevailing understandings of the nature of political sovereignty. In the pantheon of French political theorists, Montesquieu’s most prominent predecessor was Jean Bodin105.
Quando o autor se refere ao fato de que, nas monarquias moderadas, o
príncipe é o titular da soberania, não está, portanto, fazendo referência ao poder
absoluto do príncipe no sentido de posse exclusiva e ilimitada do poder político, mas
sim no sentido com que Bodin via a superioridade do centro de poder político da
entidade soberana sobre outros centros de poder, como um conceito pré-estatal de
soberania. O pensador deixa claro tal entendimento quando afirma que os poderes
subordinados e dependentes constituem a natureza de um poder monárquico, a
ponto de afirmar que, se numa monarquia forem abolidas as prerrogativas do clero,
da nobreza e das cidades, restaria apenas um Estado popular, que se transformaria
em um Estado despótico 106.
Todavia, Montesquieu já manifestou sua intenção de preservar a figura do
monarca, que a esta época estava em decadência na Inglaterra e em toda a Europa.
No entanto, para preservar a liberdade e prevenir quanto aos abusos do monarca,
como ocorria à época do absolutismo, optou por dividir o poder enquanto exercício,
105 CLAUS, Laurence, Montesquieu´s Mistakes and the True Meaning of Separation, Oxford Journal of Legal Studies, V. 25, N. 3, 2005, p. 425. Tradução livre: Por que Montesquieu estava tão preocupado em distinguir as essências de três atividades governamentais e convencer que a separação daquelas atividades era o segredo da liberdade maximizada? Por que ele não disse simplesmente que dividir os poderes entre muitos atores poderia promover a liberdade, especialmente se cada exercício do poder dependesse da aprovação de múltiploss atores? Em outras palavras, por que ele caracterizou o modelo britânico como uma controlada separação de diferentes tipos de poder, em vez de simplesmente compartilhamento de poder? O poder do monarca de rejeitar a legislação era, afinal, indistinguível qualitativamente de, e quantitativamente superior ao poder de voto de qualquer membro do Parlamento. Por que tentar distinguir exercícios primários do poder de fiscalização? A resposta parece estar em entendimentos então prevalecentes de natureza de soberania política. No panteão dos teóricos políticos franceses, o antecessor mais destacado de Montesquieu foi Jean Bodin. 106 PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989. p. 116-117.
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contra excessos. Tanto que, no decorrer de sua obra, apresenta a defesa da
existência da monarquia na Inglaterra:
O Poder Executivo deve permanecer nas mãos de um monarca, porque esta parte do governo quase sempre tem necessidade de uma ação momentânea, é mais bem administrada por um do que por muitos; ao passo que o que depende do Poder Legislativo é, a miúde, mais bem-ordenado por muitos do que por um só. Porque, se não houvesse monarca, se o Poder Executivo fosse confiado a um certo número de pessoas extraídas do corpo legislativo, não haveria mais liberdade, pois os dois poderes estariam unidos, neles tomando parte, algumas vezes ou sempre, as mesmas pessoas 107.
Em sua divisão na forma de exercício do poder, sendo todas submetidas ao
império da lei para a garantia da liberdade de seus cidadãos, procura ele, ainda,
sustentar sua reverência à figura do rei, demonstrando sua essencialidade no
regime britânico.
If a constitutional balance of power sometimes requires principled resistance to political authorities, it also depends on the mutual respect that the different powers (and their supporters) have for one another. Thus while the English must be willing to resist a king who exceeds his legitimate authority, Montesquieu tells us that they must nevertheless regard his person as “sacred” (sacrée) if the balance of power is to be preserved. “His person must be sacred,” Montesquieu says, because “this is necessary to the state so that the legislative body does not become tyrannical” (XI.6). If he were “accused or judged there would no longer be liberty … [but rather] an unfree republic” (XI.6). Thus the separation of powers in England rests on a measure of reverence for the separate authorities (legislative, executive, judicial) that the constitution establishes. Montesquieu’s emphasis on the need for the people to hold the king’s person “sacred” further indicates the importance of character-based self-limitation on the part of the populace. Although a constitution of separate powers takes much of the weight off individual character with respect to sustaining the government and preserving individual liberties, it does not make individual character altogether irrelevant 108.
107 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 206. 108 KRAUSE, Sharon. The Spirit of Separate Powers in Montesquieu. The review of Politics, 1939, p. 254. Tradução livre: Se um equilíbrio constitucional do poder algumas vezes requer imbuir resistência a autoridades políticas, isso também depende do respeito mútuo que os diferentes poderes (e seus partidários) têm um pelo outro. Assim, enquanto os ingleses devem estar dispostos a resistir a um rei que excede sua autoridade legítima, Montesquieu diz que eles devem respeitar, todavia sua pessoa “sagrada” (sacrée) se for necessário preservar o equilíbrio do poder. “Sua pessoa deve ser sagrada,” Montesquieu diz, porque “isto é necessário para o estado para que o corpo legislativo não se torne tirano.” (XI.6). Se ele for “acusado ou julgado não haveria mais liberdade… [mas ao invés] uma república não-livre” (XI.6). Assim, a separação dos poderes na Inglaterra apóia-se em uma medida de reverência para as autoridades em separado (legislativo, executivo, judicial), como a constituição estabelece. A ênfase de Montesquieu na necessidade das pessoas manterem a pessoa do rei como “sagrada” mais distante indicará a importância da auto-limitação baseada no caráter por parte da população. Embora uma constituição de poderes separados tire muito do peso do caráter individual
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Tais informações sobre sua preferência, ora pela soberania dos
representantes populares/república, ora pelos governos monárquicos moderados,
bem como sua pretensão de defender a monarquia que estava em decadência na
Inglaterra (abalada pelo forte espírito republicano/democrático, fruto do cenário da
própria Revolução Gloriosa às vésperas das revoluções americana e francesa) é,
por seu turno, essencial à compreensão da conotação que Montesquieu dava à
função judicial em sua teoria, ou, pelo menos, do que interpretaram dela, o que veio
a torná-la uma das vigas mestras das constituições modernas.
Sua concepção de Poder Judicial demonstra-se plenamente consentânea
com a idéia iluminista da lei e do seu império na comunidade. Via ele com
desconfiança o Poder Judicial, devendo ele se demonstrar distante das questões
políticas e de qualquer forma de questionamento ou de interpretação da lei que ele
deveria apenas cumprir, extraindo dela, literalmente, a vontade do legislador. Tal
assertiva pode ser extraída do texto em que afirma que “os juízes de uma nação não
são, como dissemos, mais do que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres
inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor.”109. Assim:
When Montesquieu spoke of judicial power, or rather, of the ‘power of judging’, he meant a function wholly shorn of lawmaking potential. It was fact-finding, a precursor to the execution of existing law. When Montesquieu spoke of the legislative power, he meant the power to make law, by whomever held. But resolving disputes may require judicial exposition of existing law. Exposition is elaboration. Elaboration is lawmaking. Why? Because the doctrine of precedent makes it so. If a court uses more words to explain why a statute applies to established facts than the legislator used in the statute, and if courts pay attention to those additional words, then the expounding court has succeeded in supplementing the law. Identical elaborating words could have been included by the original legislator in his authoritative text. If observed and applied by courts, those words are equally law whether they were written by the original legislator or by an embroidering judicial body. Written expositions of legal texts are just an alternative vehicle for expanding the corpus of the law, analogous to the Roman rescripts that Montesquieu condemned as ‘a bad method of legislation’, but legislation nonetheless. There is nothing that courts can say about the meaning of an authoritative text ex post enactment that the text’s enacter could not have written in that text ex ante. The mission of law is to control the exercise of power through words; if one adds to the words, one adds to the law110.
com respeito a sustentar o governo e preservar liberdades individuais, isso não faz o caráter individual completamente irrelevante. 109 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 208. 110 CLAUS Laurence, Montesquieu´s Mistakes and the True Meaning of Separation, Cap. IV – Montesquieu and Judicial Lawmaking - Oxford Journal of Legal Studies, V. 25, N. 3, 2005. p. 432.
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Por outro lado, também é claro quando diz que “não haveria liberdade se o
poder de julgar não estivesse separado do executivo”, porque, se junto dele
estivesse, teria força de opressor. Segundo ele, a função em si já é temível quando
exercida apenas por juízes que não têm acesso à execução dos interesses públicos,
especialmente em matéria penal, que a opressão da força pública se voltaria sempre
contra os acusados111.
A idéia do liberalismo e do pensamento iluminista era, justamente, a de
cessar estas práticas, motivo pelo qual a confiança maior, embora não seja
mencionada na obra de Montesquieu, mas característica do período histórico em
questão, no Poder Legislativo, exatamente em face da extrema confiança que se
deposita ao império da lei.
Los jueces, sean quienes sean, no tienen otra regla de justicia que juzgar según la ley. Transmite Montesquieu una idea ya insinuada en otros lugares de su obra: la libertad de los hombres es engendrada por la ley y protegida por la ley. La legalidad es inherente a la Justicia; y una Justicia sin ley no podrá ser justa. La independencia judicial sólo tiene sentido bajo la suposición de que el juez no actúa, sino conoce, aplica las normas desde una posición neutral y aséptica por un simple proceso del que está excluida la interpretación. Su exclusión es una condición de seguridad jurídica. El juez o magistrado es independiente excepto de la ley. Respecto a ella su sometimiento es absoluto. La mitificación de la ley, a cuyo servicio está el Poder Judicial, explica por qué un poder que no es poder puede y debe ser independiente. Sin embargo y como ya vimos, la división de poderes no separa a éstos de manera absoluta sino que entre ellos existen injerencias que Montesquieu no trata de ocultar. Respecto al Poder Judicial, aunque, en general, no debe estar unido a ninguna parte del legislativo, existen tres excepciones <<basadas en el interés particular del que ha de ser
Tradução livre: Quando Montesquieu falou do poder judicial, ou melhor, do poder de julgar, ele falava de uma função totalmente desprovida de potencial legislativo. Isso foi um fato precursor para a execução da legislação existente. Quando Montesquieu falou do poder legislativo, ele quis falar do poder de fazer leis, por quem quer que o detenha. Mas a resolução de disputas pode exigir exposição judicial da legislação em vigor. Exposição é elaboração. Elaboração é legislar. Por quê? Porque a doutrina do precedente o faz assim. Se um tribunal usa mais palavras para explicar porque um estatuto aplica-se a fatos estabelecidos do que o legislador usou no estatuto, e se o tribunal presta atenção àquelas palavras adicionais, então, a interpretação do tribunal conseguiu suplementar a lei. Palavras de elaboração idênticas poderiam ter sido incluídas pelo legislador original ou por um órgão judicial. Exposições escritas de textos jurídicos são apenas um veículo alternativo para a expansão do corpo da lei, análogas aos reescritos Romanos que Montesquieu condenou como "um péssimo método de legislação", mas ainda assim, legislação. Não há nada que os tribunais possam dizer sobre o significado de um texto ex post promulgado que o legislador do texto não poderia ter escrito nesse texto ex ante. A missão do direito é controlar o exercício do poder através das palavras, pois se um acrescenta às palavras, acrescenta à lei. 111 PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989. p. 98-99.
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juzgado>>. Excepciones que nos recuerdan que es difícil sostener un modelo judicial mecanicista que excluya de manera tan radical el carácter si no creador al menos interpretativo de la función del juez. No es casual, por otra parte, que las <<legítimas>> injerencias al poder de juzgar sean por parte del legislativo y no del ejecutivo112.
Dessa forma, não cabem ao juiz práticas construtivas do direito, pois despido
de qualquer autonomia criativa, competindo-lhe apenas uma aplicação mecânica,
lógica, a partir do texto legal (exegética). No entanto, isso parece contraditório ao
sistema inglês (que lhe serviu de inspiração), no qual a função do juiz muitas vezes
aparece como criadora e construtiva, com margem para uma certa autonomia
decisória, no quadro do sistema de precedentes do Commow Law.
La segunda excepción hace referencia al problema de la interpretación de la ley. Montesquieu entiende que un juez que no interpreta (porque no debe), que se aferra a la literalidad de la ley aun siendo ésta garantía única y suficiente de justicia, puede pecar de riguroso y paradójicamente de injusto. Ante el dilema de un juez paralizado por los propios límites de su función que no le permiten ni siquiera buscar la llamada voluntas legislatoris y una ley cuya literalidad es fuente de desigualdades no existe para Montesquieu otra solución que permitir al Poder Legislativo constituirse en tribunal. En palabras del pensador francés, podría ocurrir que la ley, que es ciega y clarividente, a la vez fuera, en ciertos casos, demasiado rigurosa113.
No livro sexto de sua obra, Montesquieu também demonstra sua
desconfiança acerca da forma com que os juízes devam atuar: “Nos governos
despóticos, não existe a lei: a regra é o próprio juiz. Nos Estados monárquicos,
existe uma lei e, onde esta é exata, o juiz a observa; onde não existe, ele procura-
lhe o espírito114”, sendo que para tal feito, ensina que bastam-lhe “olhos”.
Curiosa, no entanto, é a descrição do autor acerca da função judicial como
sendo apenas a função de um júri, ou seja, não exercida pelos componentes do
poder judiciário, jurisdicional, mas por jurados de tribunais inferiores nos seus
respectivos Estados, a fim de julgar crimes comuns, tanto que demonstra, no Livro
Sexto, em seus primeiros capítulos, muita preocupação com a execução da lei
criminal. Refere-se sempre ao juiz como jurados em tribunais, sendo que não 112 PASCUAL, Cristina García. Legitimidad Democrática y Poder. Madrid: Estudios Universitarios, 1997. p.62-63 113Ibidem, p. 63-64. 114 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 116.
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necessitam ser fixos, devendo ser constituídos apenas quando houver necessidade
para o exercício da função. Dessa forma, na medida em que se multiplicam os
julgamentos, a jurisprudência não fica uniforme, cabendo ao legislador
posteriormente resolver tal problema. A pretensão de Montesquieu era a de resolver
os problemas criados com as barbáries do absolutismo, não demonstrando ele
preocupação com os juízes profissionais incumbidos do poder de jurisdição em
todos os aspectos do litígio; ele pensou em juízes como jurados e os julgamentos
como os locais de jurisdição 115.
The reason to separate judicial power was to protect the parties in dispute. If the adjudicator could make law, then those parties would be subject to ‘arbitrary control’, for the adjudicator might change the rules of the fight mid-way. If the adjudicator were an executive officer, then parties in dispute with the executive government might have no recourse. [...] For the first time, the King’s judges were insulated from his whims, and could be removed only through parliamentary address. Boling-broke, at the promising start of a disappointing political career, had helped prepare and introduce the measure. Of this, Montesquieu made nothing. He did not see that the officers of the British government who applied law to jury findings of fact were doing something significant.Montesquieu did not understand the nature of the common law. He showed no awareness of the opinion-writing practices of the English judges on which the common law was built and which could readily be turned to exposition of statutes and other authoritative texts. He seems not to have appreciated how the English common law had been formed through deference to precedent. He did not notice the binding nature of precedent within a judicial hierarchy. He did not realize that the exercise of judicial power in one case had implications for other cases; that dispute resolution affected more than the parties before the court; that the doctrine of precedent could turn individual dispute resolution into law of general application. Most critically, he did not see that the doctrine of precedent applied to all judicial interpretation of authoritative texts 116.
115 Para uma maior compreensão ver : MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 114-119. 116 CLAUS, Laurence. Montesquieu´s Mistakes and the True Meaning of Separation, Oxford Journal of Legal Studies, V. 25, N 3, 2005. p. 431. Tradução livre: A razão para separar o Poder Judicial foi proteger as partes em litígio. Se o juiz de direito poderia fazer lei, então aquelas partes seriam sujeitas a "controle arbitrário", pois o juiz de direito poderia mudar as regras da disputa no meio da mesma. Se o juiz de direito fosse um oficial executivo, então, as partes em litígio com o executivo poderiam não ter nenhum recurso... Pela primeira vez, os juízes do Rei foram isolados de seus caprichos, e só poderiam ser retirados através do parlamento. Boling-broke, no início promissor de uma carreira política decepcionante, tinha ajudado a preparar e apresentar a medida. Sobre isso, Montesquieu nada fez. Ele não viu que os oficiais do governo britânico que aplicaram a lei a conclusões de fato do júri estavam fazendo algo significativo. Montesquieu não entendeu a natureza da lei comum. Ele não demonstrou estar ciente das práticas de escrever suas opiniões dos juízes ingleses, sobre as quais o direito comum foi construído e as quais poderiam facilmente levar à exposição dos estatutos e outros textos com autoridade. Ele também não notou a natureza de ligação do precedente dentro da hierarquia judicial. Ele não se deu conta de que o exercício do poder judicial em um caso tinha implicações em outros casos; que resoluções de disputas afetavam mais do que as partes diante do tribunal; que a doutrina do precedente poderia tornar uma resolução de disputa individual em uma lei de aplicação geral. Principalmente, ele não viu que a doutrina do precedente aplicava-se a todas as interpretações judiciais de textos com autoridade.
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Não se pode, pois, querer encontrar, na doutrina de Montesquieu, a
importância atribuída à jurisdição hoje, com a força que adquiriu notadamente após
a Segunda Guerra Mundial, pela necessidade de concretização de direitos como a
dignidade da pessoa humana, que abarca um conceito impreciso e abstrato. A rigor,
o problema que ele tentou resolver era fruto do seu tempo e da afirmação do império
da lei. A complexidade das relações sociais, hoje, de certa forma, exige a margem
construtiva do Poder Judicial enquanto última instância, como se verá no segundo
capítulo deste estudo. Indiscutivelmente, esta não era uma preocupação de
Montesquieu, pois estava distante da realidade de seu tempo. Pensou ele, em Poder
Judicial novamente tende em vista a realidade britânica:
Montesquieu saw none of this. His impoverished account of the judicial power in England treated law as exogenous to the exercise of that power, a pellucid source that unambiguously dictated the consequences of jury fact-findings in every case. The House of Lords might exercise its ameliorative jurisdiction to alter those consequences in individual cases, but the corpus of the law remained untouched. For Montesquieu, judicial decision-making in England left only an inconsequential and patternless array of one-off outcomes, a morass of single instances. That perception alone can explain his trivialization of the judicial function and his disregard of the role of appointed judges as authoritative exponents of both common and statutory law. His focus was solely on the fact-finding function of juries, assembled ad hoc and having no influence beyond the case in which they served. He did not critically analyze the function of applying law, nor distinguish its exercise by professional judges from its exercise by other executive officers 117.
Uma vez compreendendo-se que a forma com que Montesquieu vislumbrou o
exercício do Poder Judicial é completamente diferente da realidade existente nos
atuais Estados democráticos, o mérito de sua obra encontra-se, pois, justamente,
em ter separado esta função, que historicamente via-se unida com o executivo, o
que obrigava aos magistrados agir em consonância com a vontade do soberano e
117 CLAUS, Laurence, Montesquieu´s Mistakes and the True Meaning of Separation. Oxford Journal of Legal Studies, V. 25, N. 3, 2005. p. 432-33. Tradução livre: Montesquieu não viu nada disso. Seu pobre conhecimento do poder judicial na Inglaterra considerava a lei como exógena ao exercício daquele poder, uma fonte transparente que ambiguamente ditava as conseqüências e decisões do júri em cada caso. A Câmara dos Lordes podia exercitar sua jurisdição melhorativa para alterar aquelas conseqüências em casos individuais, mas o corpus da lei permanecia intacto. Para Montesquieu, a tomada de decisão judicial na Inglaterra trazia somente resultados inconseqüentes e sem padrão de resultados, um emaranhado de instâncias únicas. Aquela percepção pode, por si só, explicar a banalização da função judicial e sua desconsideração pelo papel dos juízes nomeados como expoentes de autoridade, tanto do direito comum, como estatutário. Seu foco foi exclusivamente a função de averiguação de fatos dos júris, apoiados em ad hoc e sem influência além do caso do qual tratavam. Ele não analisou criticamente a função de aplicação da lei, nem distinguiu o exercício dos juízes profissionais do exercício de outros executivos oficiais.
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dos demais (poderes Legislativo e Executivo). A partir de Montesquieu, os juízes
passam a ser autônomos, no sentido de decidirem apenas em conformidade com a
lei, pois somente a lei deviam submissão e obediência, sendo eles instrumento por
meio do qual a lei seria pronunciada.
Também, procurou, sucintamente, explanar a forma com que deveriam agir e
comunicar-se entre si, dizendo que “Estes poderes deveriam formar uma pausa ou
uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados
a caminhar, serão forçados a caminhar de acordo118”. Ou seja, nem mesmo
Montesquieu, embora verbalizando que seria a forma ideal, acreditou que seria
possível uma separação estagnada entre eles. As condições sociais e políticas,
mesmo nos governos moderados, poderiam trazer situações que causassem
imbricações entre eles, sendo que, nessas ocasiões, seria necessário caminharem
em acordo, cooperação:
En resumen y como ha sido indicado <<tanto en el caso de la Constitución inglesa como en el de los poderes intermedios franceses, no se trataría de una separación más o menos estratificada de los diferentes poderes y las fuerzas sociales que los sustentan, sino todo lo más de una distinción de elementos dentro de una totalidad inmanente y dinámica que produciría una combinación equilibrada, que tiene mucho que ver con la imagen newtoniana de un universo en que los distintos elementos se interrelacionan a través del principio de atracción sin perder por ello su identidad. [...] Si, por un lado, hay una tendencia natural al movimiento, a la apertura al mundo, también existe en la naturaleza humana la tendencia al reposo y aquí reposo significa siempre degeneración, significa aceptar la uniformidad y la no complejidad, lo que explica que los pueblos sucumban y toleren los regímenes despóticos>>119.
Superando as críticas em torno de sua teoria, se esta retratou corretamente
ou não a realidade inglesa ou se sua pretensão era separar o poder em três
diferentes figuras ou apenas dividir as funções de forma a manter a monarquia como
sistema de governo, certo é o fato histórico e jurídico de que, na vida do
constitucionalismo, a doutrina da separação de poderes, expressa primeiramente na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, quando afirma, em seu art. 16.º,
que “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem
118 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 209. 119PASCUAL, Cristina García. Legitimidad Democrática y Poder. Madrid: Estudios Universitarios, 1997, p. 51-52.
74
estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”, sendo, posteriormente
incorporada nas Constituições americana e francesa, passou a ser pilar da
existência do Estado desde o período liberal até os dias de hoje.
Já a adoção da doutrina de Montesquieu nas primeiras Constituições liberais,
assumiu diferentes contornos face às peculiaridades destas sociedades. Uma breve
exposição de como a separação de poderes, mesmo no período liberal, ganhou
diferentes conotações, em face dos contextos históricos e políticos em que esteve
inserida, justifica, de certa forma, as diferentes conotações que podem abarcar este
princípio no constitucionalismo contemporâneo, diante de paradigmas
diametralmente opostos.
Não é difícil de intuir que tal amálgama de idéias, todas elas reportadas à doutrina da separação de poderes, torna-se susceptível de ser tomada em acepções muito díspares e até contraditarias. Também não se surpreenderá que o princípio da separação de poderes tenha sido concretizado em contextos histórico-políticos muito diversos entre si e tenha, por isso, assumido formas manifestamente incompatíveis120.
Na Europa, a separação de poderes ganhou maior conotação no sentido de
salvaguardar o legislativo, como exigência para o controle do poder, notadamente
com a forte influência do pensamento de Rousseau, que previa, como base ao
contrato, a questão da democracia participativa e representativa e a supremacia do
legislativo como representante da vontade popular. Já nos EUA, a preocupação
maior no estabelecimento da separação estava voltada ao equilíbrio entre os
poderes, até mesmo porque havia uma desconfiança com relação ao parlamento,
diferentemente do que ocorria na Inglaterra:
Montesquieu had thought himself hamstrung by the indivisibility of sovereignty when proposing a liberty-promoting separation of powers. The American founders’ division of legislative and executive powers between national and state governments defied claims that those powers could not be internally divided. Yet if those powers could be internally divided, then every division of powers could have been directly keyed to promoting liberty and the rule of law. Every division of powers could have been directly designed around the simple criterion that political actors should not conclusively determine the reach of their own powers. Comparative constitutional experience since 1787 demonstrates that an essentialist separation between all lawmaking on one hand and all law-executing on the other is neither
120 PIÇARRA, Nunes. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução.Coimbra: Coimbra, 1989. p.18.
75
sufficient nor necessary to promote liberty and the rule of law. Moreover, such a separation is not actually attainable 121.
Tanto isto é verdade, que as primeiras menções ao princípio da separação de
poderes, antes da Declaração do Bom Povo da Virgínia e de sua positivação na
Constituição Americana de 1787, estão expressas nos artigos Federalistas
publicados nos jornais americanos, retratando a realidade americana, discutindo os
rumos da política e a criação da federação. Madison explicitou o sentido que devia
atender à separação de poderes na América, após citar exemplos da inobservância
da separação na práxis em diferentes países:
(...) o axioma político que se examina não exige a separação absoluta dos três poderes; demonstrar-se-á agora que sem uma tal ligação que dê a cada um deles o direito constitucional de fiscalizar os outros, o grau de separação, essencial a existência de um governo livre, não pode na prática ser eficazmente mantido. É coisa averiguada que o magistrado ou corpo, investido de um dos três principais poderes, não deve exercitar diretamente e em toda sua plenitude nenhum dos outros; assim como é igualmente evidente que nenhum dos poderes deve exercitar sobre o outro a influência preponderante. Como todo poder tende naturalmente a estender-se, é preciso colocá-lo na impossibilidade de ultrapassar limites que lhes são prescritos. Assim, depois de ter separado em teoria os diferentes Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, o ponto mais importante é defendê-los em prática das suas usurpações recíprocas122.
Assim, o princípio da separação de poderes passou a ser pilar das
Constituições liberais (e não só delas, pois se perpetua nos textos constitucionais
até os tempos atuais, democráticos), sendo positivado e mola mestra das
sociedades ocidentais, especialmente a partir do Século XVIII, embora assumindo
diferentes objetivos em conformidade com as necessidades históricas e com as
formas de governo incorporadas por cada Estado constitucional (seja monarquia,
121 CLAUS, Laurence, Montesquieu´s Mistakes and the True Meaning of Separation – The American Experience - Oxford Journal of Legal Studies, V. 25, N. 3, 2005. p. 444. Tradução livre: Montesquieu considerou-se prejudicado pela indivisibilidade da soberania quando propôs uma promoção da liberdade e separação dos poderes. A divisão dos fundadores americanos dos poderes legislativo e executivo entre os governos estadual e federal desafiou as afirmações de que aqueles poderes não poderiam ser divididos internamente. Ainda, se aqueles poderes poderiam ser divididos internamente, então cada divisão dos poderes poderia ter sido diretamente direcionada para promover a liberdade e o seguimento da lei. Cada divisão dos poderes poderia ter sido diretamente designada em torno do simples critério de que agentes políticos não deveriam determinar conclusivamente o alcance de seus próprios poderes. Experiências constitucionais comparativas desde 1787 demonstram que uma separação essencial entre toda a legislação sob determinadas mãos e toda a execução da lei sob outras mãos não é, nem suficiente, nem necessária, para promover a liberdade e o seguimento da lei. Além disso, tal separação não é alcançável de fato. 122 HAMILTON, Alexander.; MADISON, James. JAY, John. O Federalista. Tradução de Hiltomar Martins de Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 305.
76
presidencialismo ou parlamentarismo). Apesar desses aspectos quase “universais”,
contudo, há que se ter em mente sempre, para a sua adequada compreensão, a
realidade inglesa, que, de certa forma, foi a fonte inspiradora dessa teoria:
To be sure, the strict separation, “French style,” of the governmental powers, whether or not actually “Monstesquieuian” in inspiration, was miles away from the kind of separation of powers which almost contemporaneously was adopted by the American Constitution. Separation of powers in America is better described as “checks and balances”; under this principle, an extremely important role of review of both administrative and legislative action was to be reserved to the courts. Séparation des pouvoirs French style, on the contrary, implied that the judiciary should assume a role totally subservient to, and at any rate strictly separate from, the role and activity of the political branches; as such, it soon proved to be the source of problems and difficulties no less serious than those it was intended to solve. [...] More importantly still, the Montesquieuian (and Rousseauian) approach, as implemented by French Revolutionary legislation, while intended to protect against tyranny, left the doors wide open to both legislative and executive tyranny 123.
Postos estes aspectos teóricos preliminares, é preciso considerar-se que
pensar em separação de poderes, hoje, implica considerar, basicamente, dois
fenômenos: a instituição e as mudanças paradigmáticas inauguradas com as
Constituições do pós-guerra, assumindo a feição, verdadeiramente, de um Estado
Democrático de Direito; e a necessidade de concretização dos direitos
fundamentais, especialmente nos países de modernidade tardia, como é o Brasil,
onde a justiça social ainda parece uma utopia. Portanto, para a análise do
significado do princípio da separação de poderes na Constituição brasileira de 1988,
há de se compreender o contexto em que o mesmo está inserido, bem como a que
elementos essenciais o mesmo deve servir, enquanto mecanismo de garantia e de
concretização do próprio Estado Democrático de Direito.
123 CAPELETTI. Mauro. Repudiating Montesquieu? The Expansion and Legitimacy of “Constitutional Justice”. Catholic University Law Review, Vol. 35, 1985, p. 14-15. Tradução livre: Para ter-se certeza, a separação rigorosa, "estilo francês", dos poderes governamentais, quer seja ou não sob a inspiração Montesquiana, estava muito distante do tipo de separação dos poderes que quase que contemporaneamente foi adotada pela Constituição Americana. A separação de poderes na América é melhor descrita como “equilíbrio e controle". Sob este princípio, um papel extremamente importante da revisão das ações, tanto legislativas, como administrativas, era ser reservada aos tribunais. O estilo francês da Separação dos Poderes, ao contrário, implicou que o judiciário deveria assumir um papel totalmente subserviente, e a qualquer custo, estritamente separada do papel e da atividade das extensões políticas, tal como, logo provou-se ser a fonte dos problemas e dificuldades não menos graves do que aqueles que pretendia-se resolver. Mais importante ainda, a abordagem Montesquiana (e Rousseauniana), assim como implementada pela Revolucionária Legislação Francesa, enquanto pretendia proteger contra a tirania, deixou as portas bem abertas para as tiranias legislativa e executiva.
77
Por derradeiro, no segundo capítulo, propõe-se analisar o contexto do
constitucionalismo contemporâneo do segundo pós-guerra, bem como o sentido que
a positivação de um extensivo rol de princípios e de direitos fundamentais,
especialmente, o da dignidade da pessoa humana, como princípio basilar da ordem
constitucional, acarretará no sentido de compromisso solidário da comunidade para
com a sua concretização, repercutindo, desta forma, na própria doutrina da
separação de poderes, que alhures ao exposto, deverá ser repensada em seus
moldes iniciais.
78
2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAM ENTAIS: OS
NOVOS PARADIGMAS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUA
REPERCUSSÃO NA TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES
Neste segundo capítulo, parte-se da investigação dos próprios fundamentos
da Constituição da República Federativa do Brasil, a partir da própria adoção da
teoria dos direitos fundamentais, como base teórica ao constitucionalismo
contemporâneo.Isso pois, aspectos desta teoria, terão influência direta em outros
institutos constitucionalmente já consagrados ao longo da história constitucional,
como ocorre com a própria separação de poderes. Sob este aspecto, procura-se
demonstrar pontos inovadores da teoria dos direitos fundamentais, que terão direta
influência na repercussão da tradicional separação proposta por Montesquieu.
Assim, questões como a força normativa da Constituição, a perspectiva
objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais, seus limites e restrições, bem como a
eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais e, principalmente, o
comprometimento dos poderes instituídos e dos próprios cidadãos com a positivação
da dignidade da pessoa humana, serão pontos determinantes para apontar os
momentos que nasce um possível “conflito” entre os poderes instituídos na tentativa
de concretização dos preceitos constitucionais, motivo pelo qual, exige-se a releitura
da própria separação de poderes.
2.1 A teoria dos direitos fundamentais no constituc ionalismo contemporâneo:
novos desafios aos poderes instituídos
Na tentativa de buscar a compreensão de determinados conceitos que
exsurgem com o chamado liberalismo, para sua adequação aos dias de hoje, como
é o do princípio da separação de poderes, pilar das primeiras Constituições liberais,
e, da mesma forma, mola mestra das Constituições contemporâneas, faz-se
necessária a compreensão das grandes inovações constitucionais e doutrinárias que
acompanharam e deram causa à promulgação dos chamados Estados
Democráticos, as quais inauguram um novo cenário para a concretização dos
preceitos Constitucionais e para a relação entre os três poderes, pois adquirem força
79
e amplitude através de sua positivação e democratização dos seus conteúdos,
muitos indeterminados124 e genéricos, que caracterizam este novo momento do
constitucionalismo, como é caso do princípio da dignidade da pessoa humana.
A teoria dos direitos fundamentais do séc. XX125 tem sua origem no período
pós-guerra e inaugura um novo momento histórico do Constitucionalismo, que irá
além do reconhecimento dos direitos de liberdades, ditos direitos individuais126
característicos do período de conquista do liberalismo burguês; também, o
constitucionalismo contemporâneo irá além da garantia dos direitos sociais
(prestacionais) de caráter coletivo, visando à igualdade material dos seus cidadãos,
características do Estado interventivo do Welfare State.
O constitucionalismo contemporâneo traz, como forte característica, a
positivação do princípio da dignidade da pessoa humana como pilar das
Constituições Democráticas, bem como vai além do positivismo estrito127 e da antiga
hermenêutica128 que recorre ao método da subsunção para solução dos seus
124 Vale relembrar as lições de Rigaux, quando fala-se de conceitos jurídicos indeterminados: “Não se devem confundir as noções não definidas pelo legislador com os “conceitos indeterminados”cuja elucidação ele já confiou as cortes e tribunais”. RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução de Ednir Missio. São Paulo,: Martins Fontes, 2003, p. 240 125 A primeira teoria dos direitos fundamentais em verdade, tem sua origem na Revolução Francesa e, inclusive seu lema: Liberdade, Igualdade e Fraternidade originaram as três dimensões de direitos fundamentais positivadas ao longo do constitucionalismo moderno. Faz-se esta menção, pois a teoria dos direitos fundamentais da Revolução Francesa centrava-se nos direitos fundamentais de primeira dimensão, os chamados direitos individuais, que exigem abstenção do Estado, e,como exemplo, o direito a vida, a liberdade e a propriedade. 126 Contudo, deve-se ter em vista que o Estado Liberal de Direito apresentava-se, como bem “como uma limitação jurídico-legal negativa, ou seja, como garantia dos indivíduos-cidadãos frente à eventual atuação do Estado, impeditiva ou constrangedora de sua atuação cotidiana”. In: STRECK, L. L.; MORAIS, J.L. B. de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 2. ed. revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 91. 127 O Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no positivismo jurídico. O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito. Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição. [...]. Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores obrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas (p. 29). BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: ______. (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 28-29. 128 Os direitos fundamentais, em rigor, não se interpretam; concretizam-se. A metodologia clássica da Velha Hermenêutica de Savigny, de ordinário aplicada à lei e ao Direito Privado, quando empregada para interpretar direitos fundamentais, raramente alcança decifrar-lhes o sentido.Os métodos
80
conflitos, introduzindo uma nova forma de engajamento social para a realização dos
direitos e ampliando substancialmente o conceito que se tinha, até então, de
democracia129.
Vale lembrar, os ensinamentos de Bolzan, quando se remete a importância da
Constituição, como a própria materialização do pacto social, o quão isso abarca
significados em torno dos acordos e vontades políticas comungadas dentre de um
espaço democrático, que de regra, deve permitir a concretização das pretensões
sociais de um grupo, não apenas individual, mas visto de forma coletiva e
difusamente130.
Considerando tal idéia, acredita-se que a teoria dos direitos fundamentais no
constitucionalismo contemporâneo exigirá a releitura de determinados dogmas
jurídicos, vez que o constitucionalismo abarcará novos conceitos. Afinal, são vários
os elementos que compõem a teoria da Constituição:
1º) o elemento democrático, segundo o qual a constituição deve garantir que a concretização dos princípios e valores nela instituídos seja realizada por órgãos e processos de deliberação democrática aos quais todas as pessoas da comunidade possam ter pleno acesso, e nos quais os interesses de todos os indivíduos sejam considerados em um debate público, aberto e irrestrito; 2º) o elemento moral substantivo, pelo qual a constituição eleva e assegura alguns bens e valores substantivos, materializados no processo constituinte em princípios e direitos fundamentais por obra da própria soberania popular, e que são retirados da livre disposição dos órgãos e processos de direção política, porque garantem a vida digna da pessoa humana e a justiça política da
tradicionais, a saber, gramatical, lógico, sistemático e histórico, são de certo modo rebeldes a valores, neutros em sua aplicação, e por isso mesmo impotentes e inadequados para interpretar direitos fundamentais. Estes se impregnam de peculiaridades que lhes conferem um caráter específico, demandando técnicas ou meios interpretativos distintos, cuja construção e emprego gerou a Nova Hermenêutica (...). Demais disso, é de observar que a hermenêutica dos direitos fundamentais requer vias de investigação que transcendem os caminhos abertos pelo emprego dos métodos interpretativos da escola clássica de Savigny. Isto deriva da peculiaridade mesma imanente à estrutura normativa desses direitos fundamentais, que exigem, segundo Koch, “decisões de prioridade” ou primazia, tais como “entre sua pretensão de tutela (Schutzanspruch) e as interferências legislativas ou entre direitos fundamentais conflitantes, isto é, posições constitucionais cuja harmonia deve ser levada a cabo por via do legislador”.BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 21. edição atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 592-593. 129 Quando se tratar de democracia neste capítulo reportar-se-á a idéia de democracia inaugurada com a teoria dos direitos fundamentais do pós guerra que impõem deveres aos seus cidadãos para concretização dos direitos fundamentais. Conceito este diferente da democracia a que se referiu Aristóteles ou mesmo a democracia reivindicada com as Revoluções liberais. 130 MORAIS, José Luis Bolzan de. Constituição ou barbárie: perspectivas constitucionais. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Organizador. A Constituição Concretizada. Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 13
81
comunidade; 3º) o elemento judicial, que outorga ao Poder Judiciário a função de guardião do equilíbrio entre o elemento democrático e o elemento moral substantivo, permitindo-lhe participar e até intervir na interpretação e aplicação das normas constitucionais dos órgãos de direção política da sociedade, sempre que, de acordo com a interpretação do próprio poder judicial, eles frustrarem o sentido e a finalidade da constituição e, com esse erro, violarem bens e valores essenciais à dignidade da pessoa humana e à justiça da comunidade131.
Ainda, e, sobretudo, exigirá comprometimento mútuo entre cidadãos para a
realização dos valores eleitos pelos Estado Democrático de Direito e uma
flexibilização dos seus institutos em nome de sua concretização da dignidade da
pessoa humana, como valor fonte, essência de um Estado democrático. Portanto,
tais conceitos, como o de democracia e do próprio entendimento de separação de
poderes, tradicionalmente vinculado à idéia de democracia, ganharão uma nova
dimensão e proporção.
Teorias como a força normativa da Constituição e as novas propostas
hermenêuticas132, geram um campo de tensão às tradicionais instituições de direitos,
pois, em nome da concretização dos direitos fundamentais, reduz-se de certa forma
o campo da chamada “segurança jurídica”, momento em que o direito passa a se
identificar não apenas com a lei, mas propriamente com conceito de justiça, lendo-o
ao estudo das peculiaridades dos casos concretos mediante os conflitos gerados
pela gama de direitos fundamentais positivados nas Constituições.
O constitucionalismo chega vitorioso ao início do milênio, consagrado pelas revoluções liberais e após haver disputado com inúmeras outras propostas alternativas de construção de uma sociedade justa e de um Estado democrático. A razão de seu sucesso está em ter conseguido oferecer ou, ao menos, incluir no imaginário das pessoas: (i) legitimidade – soberania popular na formação da vontade nacional, por meio do poder constituinte;
131 MELLO. Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado , 2004, p. 173. 132 A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de tal proposição: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhes pretende dar. [...] Portanto, ao se falar em nova interpretação constitucional, normatividade dos princípios, ponderação dos valores, teoria da argumentação, não está renegando o conhecimento convencional, a importância de regras ou a valia das soluções substantivas. [...]. A nova interpretação constitucional é fruto da evolução seletiva, que conserva muitos dos conceitos tradicionais, aos quais, todavia, agrega idéias que anunciam novos tempos e acodem as novas demandas. BARROSO, Luís Roberto; BARCELOS, Ana Paula de Barcelos. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In: ______. (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 332-333.
82
(ii) limitação do poder – repartição de competências, processos adequados de tomada de decisão, respeito aos direitos individuais, inclusive das minorias; (iii) valores – incorporação à Constituição material das conquistas sociais, políticas e éticas acumuladas no patrimônio da humanidade133 .
As normas de direitos fundamentais apresentam um caráter denominado pela
doutrina pátria e alienígena, de fundamentalidade. Esta nomenclatura se justifica, na
medida em que se refere à proteção dos direitos fundamentais em dois sentidos,
formal e material. A fundamentalidade formal está relacionada à incorporação dos
direitos fundamentais e apresenta quatro relevantes dimensões: primeira, as normas
de direitos fundamentais estão num patamar elevado da ordem jurídica; segunda, as
normas constitucionais sujeitam-se a procedimentos de revisão; terceira, as normas
de direitos fundamentais certas vezes impõem limites de revisão; e, última, essas
normas possuem vinculatividade imediata do poder público, no que se refere às
suas ações e decisões. Por fim, a fundamentalidade material refere que os direitos
fundamentais são importantes na constituição de todas as estruturas básicas da
sociedade e do Estado, possibilitando a concretização e desenvolvimento do
sistema constitucional, na medida em que toda a sociedade deve voltar-se à
concretização de suas normas134.
Várias são as características identificadoras das normas de direitos
fundamentais, dentre elas: a inalienabilidade, isto é, a impossibilidade de
transferência e de abdicação destes direitos, não importando se é a título gratuito ou
oneroso; a historicidade, no sentido de ser histórico seu processo de incorporação
em conformidade às necessidades de cada momento; a imprescritibilidade, onde os
direitos fundamentais não se perdem, nem possuem decurso de prazo, podendo ser
invocados a qualquer momento; a irrenunciabilidade, não podendo ser objeto de
renúncia por parte de seu titular; inviolabilidade, pois não podem ser desrespeitados
por autoridades públicas ou normas infraconstitucionais; universabilidade, abrange
todos os direitos dos indivíduos, sem qualquer tipo de distinção; efetividade, tanto o
poder público como os particulares devem atuar no sentido de garantir esses
133 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: ______. (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 10. 134 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almeida, 2003. p. 284.
83
direitos; interdependência, que apesar de serem autônomos estão diretamente
ligados para atingirem suas finalidades; e, a complementariedade, que não devem
os direitos fundamentais ser interpretados isoladamente, eles completam-se entre si
e, para tanto, uma leitura sistêmica é primordial à sua compreensão e
aplicabilidade135.
No entanto, uma característica apresenta-se de forma expressa em nosso
texto Constitucional no art. 5º § 1º : a aplicabilidade imediata. Ao tecer tal
prerrogativa, o Constituinte, indubitavelmente com este dispositivo, quis que as
normas de direitos fundamentais não ficassem atreladas à vontade política dos
legisladores como normas meramente programáticas, estagnadas pela falta de
regulamentação:
[...] importa ressaltar mais uma vez que todas as normas consagradoras de direitos fundamentais são dotadas de eficácia e, em certa medida, diretamente aplicáveis já ao nível da constituição e independentemente de intermediação legislativa . Em verdade, [...] todas as normas de direitos fundamentais são direta (imediatamente) aplicáveis na medida de sua eficácia136.
Deste dispositivo outra importante afirmação pode ser subtraída, pois vincula
a idéia da eficácia imediata dos direitos fundamentais, que é sua incidência de forma
direta tanto nas relações do Estado/cidadão (vertical), bem como em relação aos
particulares (horizontal), sendo que ambas estão direta e imediatamente vinculadas
a realização dos direitos fundamentais, mesmo que em diferentes graus de
vinculação, quando reclamados frente à jurisdição na tutela destes direitos.
Muito embora o fato de se reconhecer a vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais não implique sua aplicação na mesma proporção nas relações
privadas quanto ocorre nas relações entre Estado e cidadão (vertical), visto que os
particulares são detentores do princípio da autonomia privada137; não retira sua
importância no contexto constitucional atual:
135 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 43. 136 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 289. 137 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Interprivadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 299-302, passim.
84
A construção de uma sociedade solidária, tal como projetada pelo constituinte, pressupõe o abandono do egocentrismo, do individualismo possessivo, e a assunção, por cada um, de responsabilidades sociais em relação à comunidade, e em especial em relação àqueles que se encontrarem numa situação de maior vulnerabilidade. É óbvio que o direito não tem como penetrar no psiquismo das pessoas para impor-lhes as virtudes de generosidade e altruísmo. Entretanto, se ele não pode obrigar ninguém a pensar e sentir de determinada forma, ele pode, sim, condicionar o comportamento externo dos agentes, vinculando-os a obrigações jurídicas138.
Nesta retórica, a tutela dos direitos individuais nas relações entre particulares
não se esgota na garantia de uma obrigação geral de abstenção, nem na reparação
de danos através da responsabilidade civil. Ela envolve uma tutela preventiva de
direitos com uma atuação repressiva e corretiva, bem como obrigações negativas e
positivas dos particulares, dependendo das circunstâncias do caso concreto.
Para o novo momento do constitucionalismo, exige-se a participação cidadã
de uma democracia por vezes deveras imatura e descompromissada com o grande
desafio assumido: o de concretizar os direitos fundamentais pressupostos à
existência do Estado Democrático de Direito. A teoria dos direitos fundamentais
mostra que estes não serão exigíveis somente contra o Estado, e que a força da
Constituição também depende da vontade constitucional de sua realização, e, neste
momento, declare uma nova dimensão da própria democracia em face da
necessidade de concretização destes direitos.
2.1.1 A necessária vinculação da democracia com os direitos fundamentais
A idéia de democracia oriunda do Estado liberal, juntamente com o princípio
da separação de poderes e o reconhecimento de alguns direitos fundamentais, tinha
um papel estratégico nas conquistas liberais, no sentido de frear o agigantamento
estatal do Estado absolutista, e, trazendo consigo, noções como segurança jurídica,
soberania do parlamento (como representantes do povo), direitos dos indivíduos
frente ao Estado (as chamadas liberdades negativas) e que são ampliadas no
constitucionalismo contemporâneo. A exemplo da vinculação estrita dos direitos
138 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Interprivadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 339.
85
fundamentais com o princípio da dignidade da pessoa humana, a democracia
assume uma dimensão mais significativa, mais complexa e mais comprometida com
este novo momento histórico-constitucional do pós 2ª Guerra Mundial.
Os ideais democráticos e os direitos fundamentais têm sua conceituação
praticamente indissociável. A Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, tem como fundamento a soberania nacional, cidadania, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa e, por fim, o pluralismo político. Então, indaga-se: como
atingir os ideais democráticos da República Federativa do Brasil sem que os
cidadãos, para exercer a soberania nacional, sejam livres e iguais uns aos outros e
perante o próprio Estado sem que se propicie o acesso público a todos os seus
cidadãos? Como tornar uma sociedade justa sem que se respeite primordialmente a
dignidade da pessoa humana? Diante de tais indagações, vislumbra-se a
possibilidade da efetiva realização do princípio democrático quando os direitos
fundamentais possuírem a devida eficácia no Estado Democrático de Direito.
A democracia nasceu de uma concepção individualista da sociedade, em um
momento histórico cuja máxima era a garantia dos direitos de liberdade, contra o
arbítrio do Estado e de quem detivesse o poder. Atualmente, o conceito de
democracia não se esgota na proteção dos interesses individuais dos seus
cidadãos, e, pode-se dizer que, este conceito, ganhou no cenário ocidental, uma
nova dimensão, ou no mínimo, o antigo conceito se tornou mais amplo, mais
significativo, mais comprometedor. Nesse sentido faz-se mister a exposição de
Canotilho para esclarecer a idéia de direitos fundamentais como base essencial à
democracia:
Tal como são um elemento constitutivo do estado de direito, os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: (1) significa a contribuição de todos os cidadãos para seu exercício (princípio-direito da igualdade e da participação política); (2) implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos; de liberdade de expressão, são, por ex., direitos constitutivos do próprio princípio democrático); (3) co-envolve a abertura do processo político no sentido de criação dos direitos, econômicos
86
e culturais. Realce-se esta dinâmica dialéctica entre direitos fundamentais e o princípio democrático139.
Prima facie, os direitos fundamentais, como másteres para as idéias de
democracia, podem ser considerados como garantia e instrumento do princípio
democrático da autodeterminação de um povo em que cada indivíduo, ciente de seu
papel de participação, bem como reconhecendo seu direito de igualdade na
construção comunitária e no processo político, pode ser considerado como elemento
funcional da ordem democrática. Para tanto, a democracia contemporânea, faz jus a
uma leitura no sentido, que Bolzan ensina:
A democracia como vir a ser cotidiano, precisa estabelecer vínculos fortes com a vida; é um estado de compromisso daqueles que participam do processo. Pressupõe a concentração no mesmo plano, de uma comunidade normativamente regulada, estabelecida, a partir do modelo da ação comunicativa onde nenhum dos membros esteja a mercê de um processo de violência institucionalizado nacisisticamente, seuqre de uma racionalidade onipotente, dominada por alguns140.
A liberdade de participação política que possibilita ao cidadão interferir no
processo decisório constitui um direito capaz de influenciar nos demais direitos
fundamentais e na sua eficácia na sociedade, tanto que o exercício dos direitos
políticos pode ser considerado como fundamento de qualquer ordem que se
pretenda democrática141. A possibilidade de intervenção política no processo
decisório e, conseqüentemente, a intervenção no exercício da soberania dá-se
através da liberdade de participação política dos cidadãos, é ao mesmo tempo
elemento essencial da democracia e também direito fundamental dos cidadãos. A
intervenção é capaz de garantir direitos das minorias que muitas vezes não
possuem voz ativa e representatividade, vez que existe a possibilidade de controle
dos desvios praticados pelos representantes dos cidadãos. Nesse sentido os direitos
139 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almeida, 2003. p. 284. 140 MORAIS, José Luis Bolzan de. A subjetividade do tempo. Um perspectiva transdiciplinar do direito e da democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.p.106 141 “Nesse sentido, percebe-se que os direitos fundamentais – cujas gerações ou dimensões podem ser associadas a cada um dos status propostos – desempenham um papel estratégico de garantia e de consolidação dessas conquistas, podendo se perceber elementos comuns – aqui analisados em face da Constituição brasileira de 1988 – ensejadores do que se poderia chamar de uma “teoria geral do constitucionalismo ocidental”. In: BRUGGER, Winfred; LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Os direitos fundamentais nas Constituições modernas: análise comparativa entre as Contituições Alemã, Norte-Americana e Brasileira. In: Revista do Direito-Universidade de Santa Cruz do Sul. N. 28, jul./dez. Santa Cruz do Sul: Unisc, 2007.
87
fundamentais servem como instrumento moderador de abusos na soberania
nacional142.
Acerca das funções dos direitos fundamentais no Estado democrático,
impende elucidar que:
Por sua vez, os direitos fundamentais, como direitos subjetivos de liberdades, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio majoritário, publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjetivos a prestações sociais, econômicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos143.
A positivação dos direitos fundamentais na Carta Magna de 1988, sofre
grande influência do espírito democrático, porque a elaboração dos catálogos de
direitos fundamentais dessa nova ordem constitucional foi resultado de um amplo
processo de discussão envolvendo a redemocratização do país, após mais de 20
anos de regime militar. A relevância atribuída aos direitos fundamentais, mais do que
em qualquer outra Constituição, está voltada a assegurar a democracia aos seus
cidadãos, sendo fruto das forças sociais e políticas que emergiram nesta época:
Mais ainda, torna-se relevante acrescentar que o Estado Democrático de Direito assenta-se em dois pilares: a democracia e os direitos fundamentais. Não há democracia sem o respeito e a realização dos direitos fundamentais-sociais, e não há direitos fundamentais-sociais – no sentido que lhe é dado pela tradição – sem democracia. Há, assim, uma co-pertença entre ambos. O contemporâneo constitucionalismo pensou nessa necessária convivência entre o regime democrático e a realização dos direitos fundamentais previstos nas Constituições144.
Deve-se ter em vista, também, que o Estado Democrático de Direito possui um
conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como ocorria no Estado
Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência,
142 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 70-71. 143 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almeida, 2003. p. 285. 144 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 104.
88
sendo que o seu texto ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida
digna para o homem, passando a agir simbolicamente como fomentador da
participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que faz irradiar os
valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos, e pois, também
sobre a ordem jurídica.145
Outra questão de suma importância suscitada por Bobbio diz que “o problema
fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los,
mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”146.
Diante de tal afirmação, pode-se verificar que o efetivo cumprimento dos direitos
fundamentais depende basicamente do cumprimento da política adotada pela forma
de Estado, no caso, a forma democrática, prevendo não somente a participação no
processo decisório como também sendo o instrumento para a realização de valores
essenciais à convivência humana em sociedade.
Não basta enumerar, definir, explicitar, assegurar só por si direitos fundamentais; é necessário que a organização constitucional esteja orientada para a sua garantia e sua promoção. Assim como não basta afirmar o princípio democrático e procurar coincidência entre a vontade política do Estado e a vontade popular, em qualquer momento; é necessário estabelecer um quadro institucional em que esta vontade se forme em liberdade e em cada cidadão tenha a segurança da previsibilidade do futuro147.
Contudo, pensar na máxima concretização dos direitos fundamentais pode
induzir a um relevante questionamento, sob a possível contradição entre direitos
fundamentais e democracia, haja vista que, por inúmeros vezes e motivos, em nome
dos direitos fundamentais, a própria esfera democrática estará limitada.
Neste sentido, Alexy responde a tal questionamento, afirmando que há três
modos de ver a relação entre direitos fundamentais e democracia: um modo
ingênuo, que acredita que tanto a democracia quanto os direitos fundamentais
podem ser aceitos ilimitadamente, pois ambos são bons e entre bons não há
145 MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. p. 74. 146 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. São Paulo: Campus, 1992. p. 24. 147 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional . Direitos Fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1998. Tomo IV. p. 177.
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conflito; o modo de ver idealista, que diz que jamais os representantes políticos
estariam interessados em ferir os direitos fundamentais, porque sua salvaguarda é o
motivo político eficaz para todos, possuindo os direitos fundamentais apenas um
sentido simbólico, no sentido daquilo que todos acreditam e querem; e por fim, o
realista, que, segundo esse, os direitos fundamentais exercem função democrática,
porque garantem a liberdade e asseguram direitos no processo democrático, mas
também são não-democráticos, pois desconfiam do processo democrático ao ponto
de manter todas as funções estatais a ele vinculadas, impondo-lhes limites e
restrições no poder de legislar, executar e garantir direitos148.
Assim, ensina Böckenförd que o princípio democrático atua como um limite
para a própria liberdade:
El principio democrático, tal y como lo establece la Ley Fundamental, no actúa sobre la teoría de los derechos fundamentales modificándola o transformándola. La vinculación que el principio democrático y el del Estado de derecho han introducido en el sistema del >>orden fundamental democrático-liberal<< radica en que democracia y libertad del Estado de derecho no se anulan parcialmente, sino que se complementan recíprocamente. En el marco de la garantía de la libertad delimitativa del Estado de derecho se hace relevante sin duda el principio democrático. Como princippio constitucional fundamental, representa un límite inmanente de la actuación y expansión de la libertad de derecho fundamental. Con ello, se puede prevenir suficientemente los peligros reales que pueden amenazar a la democracia a causa de la expansión del poder y la libertad de los derechos fundamentales149.
Sob os três prismas supramencionados acerca do princípio democrático,
chega-se a premissa de que os direitos fundamentais são essenciais ao
cumprimento dos valores democráticos, pois em um Estado em que não exista
respeito a direitos como igualdade, liberdade, pluralismo e soberania, não há como
se falar em democracia. Assim, seus conceitos e fins estão diretamente relacionados
e o cumprimento de ambos, é capaz de transformar a sociedade e tornar eficaz a
Constituição de 1988 no Estado Democrático de Direito. Aliás, pode-se dizer que a
Constituição é o meio e os direitos fundamentais o fim para transformar um mero
Estado de Direito, um Estado Democrático:
148 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 66. 149 BÖCKENFÖRDE. Ernst-Wolgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales - Lós métodos de la interpretación constitucional – Inventario y critica, Cidade: 1993, p. 71.
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Uma constituição democrática, como é a brasileira, remete a concretização dos direitos fundamentais e dos princípios previstos no texto constitucional preferencialmente às instâncias democráticas do sistema jurídico-político. Exatamente pela legitimidade moral e política e pelo valor epistêmico dos órgãos e processos de deliberação democrática, o reconhecimento e a definição do conteúdo e da extensão dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais no plano legal compete primordialmente aos órgãos de representação da soberania popular. [...] Portanto, não são apenas as idéias-chaves da separação dos poderes e da divisão de competências que justificam a liberdade de conformação legislativa, mas a própria concepção de democracia deliberativa que decorre do princípio republicano, tal como exposto nos parágrafos anteriores. O legislador dispõe de liberdade para concretizar as normas constitucionais, definindo seus conteúdos e estabelecendo seus limites, porque é nos parlamentos que deve ocorrer a plena participação das pessoas nos processos de deliberação pública das questões políticas de interesse da comunidade, e é por meio deles que se extraem normas legitimadas pela ética discursiva e pelo valor epistêmico que se pressupõem atributos desses processos. Por isso, o Poder Judiciário de uma constituição republicana deve adotar duas espécies de posturas respeitosas em relação aos órgãos e processos de representação da soberania popular: uma postura de deferência judicial às decisões dos órgãos de direção política do Estado; e uma postura de garantia e fortalecimento judicial do regime democrático150.
Neste panorama, há uma gama de valores expostos no preâmbulo
Constitucional, assim como princípios elencados no art. 1º da Constituição de 1988,
como sendo os valores fundamentais, que exigem uma ampliação da compreensão
do conceito de democracia, bem como alarga sua esfera de atuação, pois esta nova
dimensão exige comprometimento, vincula a esfera da autonomia individual para
com uma dimensão solidária, mais voltada à realização coletiva, um verdadeiro
comprometimento social:
Uma tal caracterização do Estado Social de Direito significa, não apenas que o princípio da socialidade tende para o progressivo estabelecimento de uma democracia econômica e social, mas, sobretudo e antes de mais, que as esferas de autonomia individual e dos direitos fundamentais- enquanto fins e valores essenciais do Estado de Direito- pressupõe a existência efetiva de regras da democracia política, desde a livre eleição de uma assembléia representativa de todos os cidadãos e a legitimação democrática de todos os órgãos de poder ao reconhecimento do pluralismo partidário, direito de oposição e princípio da alternância democrática, bem como os direitos de participação política (nomeadamente o sufrágio universal e o direito de associação), sem quaisquer discriminações de sexo, raça, idade, convicção ideológica ou religiosa e condição econômica, social e cultural151.
150 MELLO. Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado , 2004, p. 178. 151 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedida, 2006. p. 208.
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O princípio democrático faz erigir, por sua vez, o fundamento que confere
uma nova leitura dos elementos do Estado de Direito, a começar pela própria divisão
tradicional de poderes, que, muito embora tenha sua existência estritamente
vinculada à idéia de democracia – que exsurgiu com Estado de Direito, sua rigidez
não atende às demandas complexas da sociedade contemporânea, que em nome
da realização dos seus objetivos, obriga a uma maior “interferência”, flexibilização e
cooperação em nome desta opção de Estado.
[...] assume relevo a concepção, consensualmente reconhecida na doutrina, de que os direitos fundamentais constituem, para além da sua função limitadora de poder (que, ademais não é comum a todos os direitos), critérios de legitimação do poder estatal e, em decorrência, da própria ordem constitucional, na medida em que o poder se justifica por e pela realização dos direitos do homem e que a idéia de justiça é indissociável de tais direitos152.
Na mesma retórica, pode-se afirmar que o Estado Democrático de Direito
está, por assim dizer, “impregnado” de uma intenção material, para além de uma
igualdade perante a lei, que se revela fundamentalmente na natureza dos valores
que perseguem uma dimensão social da sua atividade. Esta intenção material da
própria democracia busca a promoção das condições objetivas de desenvolvimento
da liberdade, da igualdade e da personalidade, que constituem um momento
decisivo na realização da justiça social na sociedade dos nossos dias.
A novidade do Estado Democrático de Direito não está em uma revolução das estruturas sociais, mas deve-se perceber que esta nova conjugação incorpora características novas ao modelo tradicional. Ao lado do núcleo liberal agregado à questão social, tem-se com este novo modelo a incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado garantir através do asseguramento jurídico de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade153.
Esses valores exsurgem não mais em sentido metapositivo, mas em uma
vinculação axiológica e material positiva implicada na dignidade humana, assim
como esta axiologia se impõem como um limite originário e transcendente ao poder
152 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 69. 153 MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. p. 80.
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do Estado em seu conjunto, afastando toda e qualquer redução formalista deste
Estado Democrático154.
Ainda sob este prisma argumentativo, caberia falar em um conceito de
democracia como sendo tanto uma organização política quanto um conceito de
democracia como uma sociedade que escolhe colocar no seu seio a busca da
igualdade de condições. Também, ela está indissociável do conceito de justiça, pois
ambas partilhariam da mesma fragilidade, visto que também não seria a justiça
invocada a proteger qualquer atentado contra a democracia? E mais, a democracia
não procura na justiça uma espécie de salvaguarda? Da mesma forma, o exercício
da democracia não é invocado para a proteção da justiça social? Quanto mais a
democracia sob esta dupla forma de organização política e social se emancipa, mais
será a fortificação no aumento de próprio poder da justiça na sociedade
contemporânea155.
Através da justiça, a aspiração democrática é confrontada com o cerne social, com as paixões democráticas, com a ação desmedida dos homens, com o absurdo da violência e os enigmas do mal. Assumir a parte humana da justiça significa falar tanto das paixões como da razão, de emoções como de argumentação, de mídia como de processos, de prisão como de liberdade. Nossa democracia talvez tenha menos necessidade de construções - ou de descontruções – teóricas do que novas referências para assumir as “mediações imperfeitas” que são nossas jurisdições156.
No entanto, a Constituição brasileira não é uma Constituição meramente
procedimental e formalista, porque não se resume a instituir órgãos e procedimentos
democráticos; seja na democracia participativa ou representativa, direta ou indireta,
todos são responsáveis pela determinação dos conteúdos jurídicos e no
estabelecimento de alguns limites materiais aos poderes do Estado.
A concepção de Constituição inclui os chamados mandatos de otimização, ou
seja, princípios que demandam a máxima concretização. Assim, pensar no chamado
princípio democrático exige do intérprete a compreensão dos valores assumidos
154 NOVAIS, Jorge Reis. . Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedida, 2006 p. 212. 155 GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia. O guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza Carvalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Renan, 2001. p. 26-27. 156 Ibidem, p. 29.
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pela sociedade brasileira, e mais, que a soberania popular encontra limites e
restrições em nome desta dimensão comprometida com o próprio conceito de
justiça.
O extenso e não taxativo catálogo de direitos fundamentais, altamente
evolutivo, complexo e conflitante entre si, muito mais do que garantias que o
assegurem, exige engajamento e comprometimento social no exercício da cidadania
ativa, visto que as próprias características dos direitos fundamentais como a
multifuncionalidade e a complementaridade, os tornam um campo perigoso,
conflitante entre si.
Na tentativa de compreensão da extensão dos direitos e deveres expressos
na carta constitucional, mais especificadamente no rol do art. 5º e nas normas que
ali repousam, conflitantes e complementares entre si, o intérprete da nova
hermenêutica ou o cidadão, também responsável pela sua concretização, necessita
a leitura sistêmica dos seus dispositivos e o conhecimento dos novos paradigmas
inaugurados pela teoria dos direitos fundamentais que acompanham
necessariamente seu entendimento, tais como a força normativa dos princípios
constitucionais, a dupla perspectiva dos direitos fundamentais, a eficácia horizontal e
vertical, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana como cerne de todos
os demais direitos.
2.1.2 A força normativa da Constituição e a vincula ção da sociedade e dos
poderes aos direitos fundamentais
A força normativa da Constituição157 se refere, justamente, à força que os
cidadãos emprestam à Constituição no seu exercício diário, ou seja, na sua vontade
157 A força normativa da Constituição é a idéia que Hesse trabalha que a mesma somente se logra eficaz, se houver na nossa conduta diária a vontade de concretização: “A Constituição transforma-se em força ativa se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se fizerem presente na consciência em geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional”. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. p. 05.
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de Constituição, fazendo com que toda sociedade se volte à sua realização,
vinculando, a ela, todos os poderes estatais.
Nas próprias funções da Constituição percebe-se a importância dos cidadãos
para a devida aplicabilidade de seus princípios. Os cidadãos do Estado Democrático
de Direito deverão seguir os mesmos valores principiológicos através da sua
participação ativa, enquanto o Estado democrático permite a legitimidade do poder.
De acordo com Paine158:
É evidente que os homens querem dizer coisas distintas e separadas quando falam de Constituições e governos. Por que estes termos são usados distinta e separadamente? Uma Constituição não é um ato de governo mas de um povo constituindo um governo. Governo sem Constituição é poder sem direito. Todo poder exercido sobre uma nação deve ter um começo. Ele deve ser delegado ou tomado. Não há nenhuma outra fonte. Todo poder delegado é confiança e todo poder tomado é usurpação. O tempo não altera a natureza nem a qualidade de nenhum deles.
A Constituição, inegavelmente, é o instrumento de aplicabilidade e de
normatização dos direitos fundamentais, trazendo em seu texto não somente o rol
de direitos, bem como as garantias a fim de defendê-los e assegurá-los contra
qualquer que venha a feri-los, tanto o Estado como seus particulares. Contudo, por
mais que a Constituição tenha um caráter dirigente e seu descumprimento gere a
aplicação de normas coercitivas, não é nesse sentido que Paine se refere ao dizer
que a Constituição é o ato de um povo.
Nesse contexto pode-se pressupor que os direitos e modelos sociais nela
contidos refletem o ideal de um povo, seus anseios e desejos. Portanto, a sua
aplicabilidade também deve partir do respeito destes, enquanto cidadãos e enquanto
integrantes do poder, tanto Legislativo, quanto Executivo e Judiciário.
A Constituição transforma-se em força ativa se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se fizerem
158 PAINE , Tomas. Os direitos do homem. Tradução de Jaime A. Clasem. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 160.
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presente na consciência em geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional159.
No mesmo sentido, são salutares as considerações de Häberle que diz: “La
realidad jurídica del Estado constitucional representa solo uma parte de la realidad
de uma Constituición viva, que, em profundidad, és de natureza cultural. Los textos
deben ser literalmente cultivados para que resulten una Constitución160”.
A norma constitucional não tem existência autônoma perante a realidade que
esta pretende retratar161. A essência da Constituição repousa na sua vigência, quer
dizer, na situação que ela pretende concretizar na realidade social. Dessa forma é
um dever-ser, pois, ao mesmo tempo em que reflete normativamente uma realidade
social, a realidade também é refletida por ela. Isso remete à sua eficácia enquanto
norma fundamental162, e permite a compreensão da importância que assume o
exercício da cidadania. Ainda:
Cidadania pressupõe democracia, liberdade de manifestação, contestação, respeito ao indivíduo, à sua cultura e à sua vontade. Mas não só os modelos autoritários inibem a cidadania. Nas democracias, o assistencialismo, o paternalismo e a tutela do Estado, aceitos que são pela maioria das pessoas pro comodismo, também não permitem o desenvolvimento de uma cidadania plena, porque cidadania plena não pode ser dada ou outorgada, só é alcançada pela participação, pela luta e pelo empenho dos próprios indivíduos interessados163.
A construção do Estado Democrático de Direito influencia no entendimento do
texto constitucional e na aplicabilidade da norma constitucional, porque as condições
históricas permitem a compreensão da vontade do povo, como o anseio pela
democracia, a cidadania, o respeito pela dignidade, dando origem à Constituição. Os
cidadãos devem-se sentir legisladores e, ao mesmo tempo, destinatários dos
direitos. A aplicabilidade da norma constitucional em muito depende do respeito por 159HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. p. 5. 160 HÄBERLE, Peter. Libertad, Igualdad, Fraternidad. 1789 Como História, Actualidad y Futuro del Estado Constitucional. Tradução de Ignacio Gutierrez. Madrid: Editorial trotta, 1998. p. 47. 161 Essa é a noção central da “nova hermenêutica”, que a norma necessita dos seus intérpretes para lhe dar vida, aplicabilidade. 162 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. p. 15. 163 GORCZEVSKI, Clóvis. Direitos Sociais e Políticas Públicas. Tomo 5. Organizadores Jorge Renato dos Reis e Rogério Gesta Leal. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2005. p. 1286.
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parte dos cidadãos ao rol de direitos nela elencados. Portanto, é primordial a
participação do indivíduo na aplicação das normas constitucionais: “[...] a ordem não
logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém
sua vigência através de atos de vontade164”.
El punto de partida es para HESSE el desgajamiento del concepto de interpretación de la vinculación a un contenido normativo pretendido >>en sí<< e indagable (sólo) a través de la interpretación. La interpretación debe partir de >>que su >>meta<< ya no existe realmente<<; los problemas de interpretación hacen acto de presencia siempre y sólo allí donde la Constitución no contiene criterios claros, donde ella misma aún no ha decidido. La interpretación constitucional contiene con ello el carácter de rellenado creador de derecho; esta es, de acuerdo con la forma y el objeto, >>concretización<<. Esta concretización se pone en práctica, sobre todo, con el manejo de aquellas normas constitucionales que a su vez tienen sólo un contenido marco o principial, en especial los derechos fundamentales, decisiones fundamentales jurídico constitucionales y preceptos que contienen la fijación de determinados objetivos para el Estado165.
A Constituição, enquanto instrumento de soberania nacional, tem como um
dos fatores condicionais à devida eficácia, principalmente no que tange aos direitos
fundamentais e de dignidade da pessoa humana, a consciência dos cidadãos no
tocante aos seus direitos e deveres sociais, para compreendê-la como
implementação de um Estado Democrático de Direito. Quanto ao papel dos
cidadãos no Estado constitucional, no dizer do Hesse, tem-se que: “Quem se
demonstra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um
princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida
indispensável à essência do Estado, mormente democrático166”.
Talvez um dos caminhos para atingir a almejada eficácia dos direitos
fundamentais expressos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
esteja na consciência de cada um dos cidadãos no Estado democrático, pois o
reconhecimento de direitos inerentes e inalienáveis do homem é um conceito que
deve partir de dentro para fora, e não de fora para dentro. É o que diz o preâmbulo
da Declaração Universal dos Direitos do Homem:
164 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. p. 20. 165 BÖCKENFÖRDE. Ernst-Wolgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales- Lós métodos de la interpretación constitucional – Inventario y critica, 1993, p. 31. 166 HESSE. Op. Cit. p. 22.
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A presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações e como objetivo de cada indivíduo e cada órgão da sociedade, que, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros quanto entre os povos os territórios sob sua jurisdição167.
Destarte, verifica-se que o Estado Democrático de Direito, estabelecido pela
CRFB/1988, não apenas como uma forma de governo, mas como um modo de vida
escolhido por uma sociedade, é, por sua vez, o instrumentalizador da pragmática
dos direitos fundamentais na Constituição intitulada como Constituição Cidadã, pois
ambos surgem dos movimentos em prol da democracia, com as lutas contra o poder
dos tiranos e, essencialmente, com a concepção universal de que a vida, a
dignidade humana e a soberania de um povo são valores primordiais no novo
modelo de sociedade protegido pela Constituição, devendo estar intrínseco no
sentimento nacional, na consciência cidadã, como um ideal de vida a ser seguido e
coletivamente primado e defendido pelos indivíduos no Estado Democrático de
Direito.
Este espírito de máxima efetivação dos direitos fundamentais, da força
normativa que devemos proporcionar à Constituição em nossa prática cotidiana, na
vivência Constitucional, altera, pois, a forma de interpretar a Constituição, superando
a tradicional classificação interpretação proposta por Savigny, dando um passo à
frente não apenas nos institutos hermenêuticos, que se aplicam à forma de
interpretação da Constituição pelos poderes constituídos, como também, propicia
um alargamento do próprio círculo de intérpretes da Constituição168, na medida que
não ficaria adstrita apenas ao poder judicial.
167 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM, 1948. Organização das Nações Unidas – ONU. Centro dos Direitos do Homem das Nações Unidas, publicação GE.94-15440. 168 Häberle entende que há duas formas de interpretação: sentido lato – por todos intérpretes da Constituição, cidadãos, mídia, grupos, dentre outros, e em sentido estrito – que é a interpretação tradicional que ocorre dentro dos órgãos jurisdicionais. Não deixa de reconhecer a importância das duas no processo de concretização da constituição, mas chama a atenção ao risco que ficar adstrito apenas às formas tradicionais no sentido de enrrigecer a Constituição ao pluralismo cultural, estratificando seu próprio desenvolvimento. Por isso, deve a interpretação em sentido lato e em sentido estrito coexistir, muito embora considere a segunda de maior importância, podendo esta englobar a primeira no processo interpretativo, mas sempre subsistirá à jurisdição constitucional em fornecer a última interpretação da constituição que, para ser legítima, deve estar de acordo com a
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A mudança atinge também a Constituição. Deixa ela de ser um sistema de normas na imagem clássica do positivismo para se transverter num sistema de valores e, a seguir, num sistema de princípios, sendo esse o ponto inquestionavelmente crítico em que a passagem do sistema valorativo ao sistema principial faz surgir o embrião da nova teoria dos valores, desde muito em gestação jurisprudencial. É a esta altura, aliás, que se reconhecem na doutrina a inteira juridicidade e hegemonia normativa e hierárquica dos princípios, os quais encarnam doravante a alma das Constituições [...]. Com respeito à hermenêutica, a dimensão objetiva e valorativa dos direitos fundamentais, seguida do reconhecimento de sua natureza principial, foi decisiva para transitar-se da hermenêutica jusprivatista, de subsunção, da metodologia dedutivista para a moderna hermenêutica juspublicística, a chamada Nova Hermenêutica, a hermenêutica constitucional, basicamente indutiva, onde se aplica com freqüência o princípio da proporcionalidade e que gera conceitos novos quais os de “concordância prática”, “pré-compreensão” e “concretização”.O conceito de concretização é surpreendente por sua importância, utilidade e aplicabilidade na solução de questões constitucionais de direitos fundamentais e por indicar com nitidez o traço que separa as duas hermenêuticas169.
Outra referência que deve ser feita no tocante à força normativa da
Constituição, refere-se ao fato que os princípios, tidos anteriormente como valores
metafísicos, numa dimensão metajurídica, com a força normativa da Constituição os
princípios passam a ter a mesma força das demais regras que compõem o
ordenamento jurídico. As normas constitucionais passam a ser compreendidas como
regras e princípios.
A distinção entre princípios e regras não é uma distinção meramente
conceitual, ela constitui um elemento fundamental não apenas a dogmática dos
direitos de liberdade e igualdade, mas também tem direta correlação e influência na
questão da proteção, organização e prestação em sentido estrito. De outra banda,
constitui também a estrutura de uma teoria normativo-material dos direitos
fundamentais, impondo seu campo de possibilidades e limitações da racionalidade
primeira. O entendimento que a interpretação da Constituição deve ser a mais aberta possível, não devendo restringir-se no âmbito da jurisdição, exsurge do fato que, segundo o autor, a Constituição é um produto cultural, de nossa vivência em sociedade. Para tanto, para compreender melhor sua doutrina, mister entender o conceito de cultura. Para a melhor compreensão: HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997. p. 11. 169 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 662-633.
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dentro do âmbito dos direitos fundamentais, apresentando-se como vigas mestras
da construção desta teoria170.
Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores obrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. (...) Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete171.
Já as regras, como informa Ávila:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectiva e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos172.
Os princípios trazem unidade ao texto constitucional porque vinculam o
entendimento e a aplicação das normas que deverão estar de acordo com seu
sentido, sendo diretrizes fundamentais. Pelo caráter geral e abstrato não devem, em
tese, ser diretamente aplicados. Se houver uma regra regulamentando a situação
fática, e, como o direito é um conjunto de normas devidamente articuladas entre si,
dando a cada uma unidade de sentidos, os princípios são base para a interpretação
e a aplicação das regras. No entanto, em não havendo regra ao caso concreto, ou
ainda, havendo mas não estando em consonância com o princípio constitucional,
estes, serão diretamente aplicados graças a sua normatividade. Ganham
abrangência, pois sua definição se expande por todo o ordenamento jurídico.
Essa função de base para a interpretação das demais normas, porque a
vontade constitucional é atribuível a uma interpretação sistêmica que exclui qualquer
170 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 85. 171 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 29. 172 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição a aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 70.
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possibilidade de leitura e interpretação isolada de um artigo, pois, se assim não
fosse, a Constituição seria apenas uma compilação de normas. Por sua vez, as
regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas, com a
pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação
da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos
princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção
conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos173.
Diante da referida questão, Canotilho propõe considerar os seguintes critérios
de distinção entre princípios e regras:
a) Grau de abstracção: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida. b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as regras são suscetíveis de aplicação directa. c) Carácter de fundamentabilidade na aplicação ao caso concreto: os princípios são normas de natureza de papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica nos sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito). c) Proximidade da idéia de direito: os princípios são satandards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na idéia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculadas com conteúdo meramente funcional. d) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante174.
Os princípios, enquanto mandamentos de otimização, ordenam que algo seja
realizado, mas podem ter diferentes graus de realização, pois dependem de
possibilidades reais e jurídicas. Ademais, os princípios possibilitam a adequação da
Constituição à própria realidade constitucional, pois o sistema misto de regras e
princípios propicia a devida segurança jurídica sem, contudo, deixar de adequar a
norma constitucional à realidade que esta pretende regular. A abertura interpretativa
173 BARROSO, Luís Roberto. BARCELLOS, Ana Paula. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 337-341, passim. 174 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almeida, 2003. p. 1086.
101
possibilita uma adequação no tempo e no espaço que é fundamental à concepção
de Constituição dirigente.
Hodiernamente, a proteção dos direitos fundamentais ocorre através das
garantias expressas no texto constitucional, pois não basta enumerar, explicitar tais
direitos, se dentro do próprio texto não houver garantias para sua exigibilidade e
concretização; não passariam de belos textos “ilustrativos” ou, no mínimo,
simbólicos. O Título II da Constituição de 1988, refere-se aos direitos e garantias
fundamentais, porém, as garantias constitucionais também constituem direitos, de
ordem processual, permitindo ingressar em juízo a fim de obter uma medida especial
com força específica e com maior rapidez processual, tais como habbeas corpus,
habbeas data, mandado de injunção, ação direta de constitucionalidade e
declaratória de inconstitucionalidade, ação civil pública, ação popular, dentre tantos
outros.
As garantias vêm se modificando conforme a necessidade e evolução dos
próprios direitos fundamentais; do contrário, esses direitos tornar-se-iam letra morta
se não houvesse ações judiciais que pudessem garantir-lhes eficácia digna da
própria relevância dos direitos ora tutelados175. Por sua vez, Miranda esclarece a
diferenciação entre direitos e garantias:
Os direitos representam por si só certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjetivas (ainda que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, só nelas se projetam pelo nexo que possuem com os direitos; na concepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se176.
As considerações acerca, tanto da evolução dos direitos fundamentais, bem
como da sua função na Carta Magna e de suas características enquanto
fundamento de um Estado, deixam claro que a formação do Estado Democrático de
Direito não somente contribuiu para o reconhecimento dos direitos humanos no
Estado Constitucional, mas como os princípios norteadores do Estado democrático
175 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 239. 176 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - Tomo IV - Direitos Fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 88-89.
102
em tudo refletem os ideais e o modelo social expresso pelos direitos fundamentais.
A supremacia da constituição levou ao que conceitualmente se pode denominar de
constitucionalização do direito, em que todo o sistema jurídico se subordina às
normas no texto consagradas, especialmente aos direitos fundamentais, que
passam a ser o núcleo das constituições contemporâneas.
Dessa forma, permite-se a proteção dos direitos fundamentais através do
controle jurisdicional em nível de vinculação significativamente maior, na medida em
que as normas de direito fundamental deverão ter efeito vinculante, tanto na sua
interpretação, como na sua aplicação177, ou seja, toda e qualquer norma jurídica
deverá estar em consonância com os preceitos expostos pela Constituição,
especialmente às normas de direitos fundamentais. Em suma, o processo de
constitucionalização nada mais é do que o reconhecimento dos direitos
fundamentais nas normas constitucionais, emprestando-lhes o caráter de norma
fundamental de maior hierarquia e poder vinculante para todos os poderes
instituídos no sistema jurídico, na chamada eficácia vertical.
Como verificado até então, os direitos fundamentais visam à proteção do
indivíduo indistintamente, portanto, qualquer indivíduo, independente de sua
condição em território nacional, brasileiros e estrangeiros, poderá se valer destes
direitos, como preconiza o art. 5º da Constituição Federal de 1988, caput.
Desta forma, as garantias presentes no texto constitucional dão vida às
normas de direitos fundamentais, uma vez que visam assegurar a aplicabilidade dos
mesmos. Neste sentido é possível compreender o enunciado do art. 16° da
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, que estabelece: “A
sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida
a separação de poderes não tem Constituição”.
A rigor, tanto a sociedade enquanto integrante do Estado Democrático de
Direito, em uma Constituição que se intitula Cidadã, assim como os poderes
constituídos, cujas ações deverão estar condicionadas a proporcionar maior força
177 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almeida, 2003. p. 354.
103
normativa à Constituição, ambos estão significativamente comprometidos com o
objetivo de tornar os direitos fundamentais uma realidade concretizada, através da
ação e engajamento conjunto entre sociedade e Estado.
A força atribuída à Constituição e a seus compromete todos à sua realização;
portanto, sendo esta uma das causas do “desequilíbrio” (como os críticos referem-
se) entre os poderes instituídos, que vêem seu campo de atuação subordinado a
estas ações, bem como a legitimidade de suas próprias decisões passará sempre
por esta vinculação a realização dos direitos fundamentais. Ou seja, quanto mais
concretizar a Constituição, mais legítima será a atuação de um poder, mais
justificado será seu papel no Estado Democrático de Direito, incidindo diretamente
na chamada independência e harmonia da teoria da separação de poderes.
2.1.3 A Dupla perspectiva – objetiva e subjetiva - dos direitos fundamentais e a
teoria das restrições na Constituição de 1988
Antes de discorrer especificadamente sobre características, as funções e as
peculiaridades das normas de direitos fundamentais, faz-se mister a compreensão
da dupla perspectiva na qual os direitos fundamentais (subjetiva e objetiva) se
apresentam na Constituição de 1988, sendo essencial para uma leitura sistêmica de
seus dispositivos, por tratar-se de uma inovação com relação a teoria da
Constituição.
Considerando primeiramente a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais,
que vem sendo desenvolvida nas últimas décadas pelo acolhimento de algumas
concepções que superam o entendimento liberal tradicional dos direitos
fundamentais como direitos de liberdade, em que dos indivíduos possuem apenas a
faculdade de reclamá-los frente ao Estado; nesta perspectiva objetiva a teoria de
direitos fundamentais passou a eleger valores que ultrapassam a esfera individual,
de forma que estes valores pertencessem a própria sociedade que os adota,
clamando pela máxima concretização dos direitos fundamentais:
104
El efecto de irradiación de los derechos fundamentales en el Ordenamiento jurídico, tal y como lo desarrolló el caso Lüth, fue considerado desde el principio como contenido del derecho fundamental subjetivo. Sólo así pudo el caso Lüth – siguiendo la vía del recurso de amparo – alcanzar su resultado. Pero el problema era conocido. Si una sentencia se fundamenta, así se dice en la argumentación – no carente de rupturas -, en la desatención de la influencia constitucional, esto es, de la influencia procedente de los derechos fundamentales como decisión axiológica objetiva sobre las normas jurídico-civiles, tropieza entonces el juez” no sólo contra el derecho constitucional objetivo, en la medida en que desconoce el contenido de la norma de derecho fundamental (como norma objetiva), sino que más bien, como titular del poder público, viola mediante su sentencia el derecho fundamental a cuya observancia, por parte también del poder judicial, tiene el ciudadano una pretensión jurídico-constitucional””178.
Por um lado, ela consiste em uma espécie de “mais valia jurídica”, no sentido
de reforçar e reafirmar a juridicidade dos direitos fundamentais, e, como tal também
se apresenta como uma ordem objetiva de valores179, representando um conjunto
axiológico que a sociedade brasileira elege como fundamental à convivência em um
Estado Democrático180. Cabe elucidar a advertência feita por Sarlet:
Desde já, percebe-se que, com o reconhecimento de uma perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, não está se fazendo referência ao fato de que qualquer posição jurídica subjetiva pressupõe, necessariamente, um preceito de direito objetivo que a preveja. Assim, podemos partir da premissa de que ao versarmos sobre uma perspectiva dos direitos fundamentais não estamos considerando esta no sentido de um mero “reverso da medalha” da perspectiva subjetiva. A faceta objetiva dos direitos fundamentais, significa, isto sim, que às normas que prevêem direitos subjetivos é outorgada função autônoma, que transcende esta perspectiva subjetiva, e que, além disso, desemboca no reconhecimento de conteúdos normativos e, portanto, de funções distintas aos direitos fundamentais181.
Para a compreensão da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais,
primeiramente, é necessário o entendimento de que tanto as normas de direitos
fundamentais consagradoras de direitos subjetivos individuais, como as que impõem
apenas obrigações de cunho objetivo aos poderes públicos, podem ter tanto a
178 BÖCKENFÖRDE. Ernst-Wolgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales- Lós métodos de la interpretación constitucional – Inventario y critica, 1993, p. 119. 179 Nesse sentido, na obra de Hennig Leal, explica claramente que a primeira elaboração desta dimensão foi na histórica decisão da Corte Alemã, em janeiro de 1958, no caso Lüth-Urteil. Ver: LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta. Reflexões sobre a legitimidade e os limites da Jurisdição Constitucional na ordem democrática. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007. p. 64-66. 180 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 151-153. 181 SARLET. Op. Cit. p. 153.
105
natureza de regra, quanto a de princípio, motivo pelo qual, necessita-se diferenciar
quando se refere a perspectiva objetiva em seu cunho axiológico, como a ordem
objetiva de valores, ou no sentido da mais-valia, no sentido de reconhecimento e
efeitos jurídicos autônomos, indo além da perspectiva objetiva. Contudo, chegou-se
à conclusão de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais é uma função
axiologicamente vinculada, na medida em que a realização dos direitos subjetivos
individuais, de certa forma, está condicionada ao seu reconhecimento pela
comunidade a qual integra, com base no interesse público prevalecente, como uma
espécie de função limitadora dos direitos subjetivos individuais182:
Al respecto debe observarse lo siguiente: con la eficacia objetiva de principio de los derechos fundamentales irradiándose en todos los ámbitos del Derecho, tales derechos dejan de ser principios y garantías en la relación Estado-ciudadano para transformarse en principios superiores del Ordenamiento jurídico en su conjunto. Este es el punto decisivo y la premisa necesaria para el contenido jurídico-objetivo de los derechos fundamentales. Si se parte de esta premisa, la eficacia de principio de los derechos fundamentales es la consecuencia necesaria. Los derechos fundamentales clásicos eran por el contrario más comedidos; querían desde un principio únicamente afectar a un sector del Ordenamiento jurídico, erigiéndose en él como institutos jurídicos, institutos de garantías concretas de la libertad en la relación directa Estado-ciudadano. El Ordenamiento jurídico, por lo demás, encontraba tanto sus principios como su configuración concreta en la ley, era resultado de la conformación jurídica por el legislador, al que le era reconocida una competencia originaria de creación de derecho.183
Portanto, a perspectiva objetiva apresenta diversos desdobramentos184,
constituindo fundamentos para outras funções, tais como: eficácia dirigente com
relação ao que desencadeia em detrimento aos órgãos estatais, no sentido de uma
ordem permanente dirigida ao Estado para a concretização dos direitos
fundamentais; outro desdobramento seria a eficácia irradiante pois, como objetivos,
oferecem impulsos e diretrizes para aplicação e para a interpretação do direito
infraconstitucional; a questão dos deveres de proteção no sentido que cabe ao
Estado zelar pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos contra
agressões do próprio Estado e também de terceiros particulares; a eficácia
182 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 153-154. 183 BÖCKENFÖRDE. Ernst-Wolgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales- Lós métodos de la interpretación constitucional – Inventario y critica, 1993, p. 128. 184 Outra obra que explana com clareza o assunto é de: FREITAS. Luiz Fernando Calil de. Direitos Fundamentais Limites e Restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 35-56.
106
horizontal e sua incidência na esfera privada que, mais adiante, será abordada mais
especificadamente; e ainda, como parâmetros para a criação e constituição de
organizações estatais, no sentido que, com base nos seus conteúdos, pode-se
extrair conseqüências para interpretação e aplicação das normas procedimentais,
bem como parâmetros para a organização e procedimentos que beneficiem a
proteção dos direitos fundamentais, evitando-se o risco de redução do significado do
seu conteúdo material)185.
El efecto de irradiación de los derechos fundamentales en el Ordenamiento jurídico, tal y como lo desarrolló el caso Lüth, fue considerado desde el principio como contenido del derecho fundamental subjetivo. Sólo así pudo el caso Lüth – siguiendo la vía del recurso de amparo – alcanzar su resultado. Pero el problema era conocido. Si una sentencia se fundamenta, así se dice en la argumentación – no carente de rupturas -, en la desatención de la influencia constitucional, esto es, de la influencia procedente de los derechos fundamentales como decisión axiológica objetiva sobre las normas jurídico-civiles, tropieza entonces el juez >>no sólo contra el derecho constitucional objetivo, en la medida en que desconoce el contenido de la norma de derecho fundamental (como norma objetiva), sino que más bien, como titular del poder público, viola mediante su sentencia el derecho fundamental a cuya observancia, por parte también del poder judicial, tiene el ciudadano una pretensión jurídico-constitucional<<186.
Em linhas gerais, poder-se-ia dizer que, quando se referem aos direitos
fundamentais como direitos subjetivos, é como abrir ao indivíduo, titular de um
direito, a possibilidade de reivindicar juridicamente seus interesses diante de um
destinatário obrigado à sua realização, estando vinculados a alguns aspectos:
a) O espaço de liberdade da pessoa individual não se encontra garantido de maneira uniforme; b) a existência de inequívocas distinções no que tange o grau de exigibilidade dos direitos individualmente considerados; c) os direitos fundamentais possuem proposições jurídicas complexas, no sentido de poderem conter direitos, liberdades, pretensões e poderes da mais diversa natureza e até mesmo pelo fato de poderem dirigir-se a diferentes destinatários. [...] De outra banda, é de destacar-se a circunstância de que a referida complexidade dos direitos fundamentais na sua perspectiva jurídico-subjetiva remete a conclusão de que ainda se cuida de um feixe de posições estruturalmente diferenciadas, não só no que diz com a forma de positivação, seu conteúdo e alcance, mas também no que concerne às
185 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 154-160, passim. 186 BÖCKENFÖRDE. Ernst-Wolgang. Escritos sobre derechos fundamentales - lós métodos de la interpretación constitucional – inventario y critica, 1993, p. 119.
107
diferentes funções que desempenham no âmbito dos direitos fundamentais [...]187.
A partir da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais pretende-se refletir
sobre a existência de uma força conjunta na garantia e exigência das situações e
vantagens objetivamente concedidas. Impende dizer, neste sentido, que um dever
de proteção meramente objetivo teria menos força, ou no mínimo diferentes formas
de proteção, que um direito a proteção com igual conteúdo, segundo a compreensão
que envolve um direito fundamental subjetivo, pois através da dimensão subjetiva o
direito fundamental teria maior possibilidade de efetivação, através da judicialidade
deste direito, da sua exigência e reclamatória por seu titular. É chamada também de
autodeterminação na gestão dos interesses próprios de liberdade, enquanto a
dimensão objetiva vincula-se mais a uma ordem fundada na exigência de construção
de uma sociedade que respeite valores como a dignidade da pessoa humana188.
Aliás, se a dimensão objetiva fosse observada, a dimensão subjetiva seria aclamada
apenas quando se referisse aos direitos de liberdade.
Aos direitos subjetivos, pode-se fazer uma relação com a norma e sua
posição, no sentido de que o emprego genérico de uma norma individual, como dizer
que todos têm direitos à liberdade, garantiria um direito subjetivo. No entanto, este
direito subjetivo pode encontrar diferentes posições jurídicas fundamentais,
englobando: os direitos a atos negativos com relação à ação do Estado (numa tripla
perspectiva: de não impedimento de exercício de um direito como de liberdade de
expressão, pensamento - direito a não - intervenção nas situações jurídicos
subjetivas – direito a não eliminação de posições jurídicas fundamentais); direito às
ações positivas, que se refere ao direito subjetivo de prestações fáticas por parte do
ente público, bem como o direito a prestações normativas, produção de leis. Outra
posição que ainda pode tratar em termos de direitos subjetivos, é a categoria
jurídico- dogmática da liberdade, abarcando os direitos à liberdade de natureza
subjetiva, como pensamento, expressão, religião, criação cultural como direitos de
187 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 162-163. 188 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedida, 2006 p. 57-58.
108
ações negativas, bem como em um traço de alternativa de comportamento,
protegendo propriamente a liberdade de escolha189.
Diante do exposto, o reconhecimento destas duas perspectivas, tanto a
subjetiva quanto a objetiva, para além de demonstrar a preocupação do
constitucionalismo contemporâneo para com a efetividade das normas
consagradoras de direitos fundamentais, impõe uma dimensão diferente de exercício
das funções estatais, especialmente em se tratando do poder judicial, na medida em
que não será somente mediante a reclamatória de um indivíduo que se sente lesado
e busca a sua proteção através da jurisdição. Através da dimensão objetiva, poder-
se-á exigir a atuação judicial mesmo quando não provocada diretamente pelo
lesado, mas sempre que houver uma afronta aos valores eleitos como másteres do
Estado Democrático de Direito. Em verdade, a dimensão objetiva consiste mais em
um dever para todos os poderes do que um direito de exigibilidade, pois na prática,
recai ao campo subjetivo.
Ainda em se tratando das perspectivas com que esses direitos fundamentais
poderão ser exigidos frente ao Estado, incluindo, aqui, todos os poderes e não só a
administração, outra problemática que parece latente quando se refere à atuação
dos três poderes no exercício de suas funções, diz respeito aos limites e restrições
que estes direitos constitucionalmente reconhecidos irão sofrer face à sua
aplicabilidade prática.
Ao pensar na própria separação de poderes e no desafio que o Estado
Democrático de Direito enfrenta com o dever de máxima concretização dos direitos
fundamentais, considerando suas características de interdependência e
complementaridade, sua eficácia irradiante, bem como sua perspectiva subjetiva e
objetiva de concretização, outro desafio que enseja o enfrentamento dos poderes e,
conseqüentemente, traz um certo abalo nas suas funções dadas como típicas,
refere-se aos limites e restrições de ordem externa e interna que poderão sofrer em
face dos direitos fundamentais de outrem diante de sua aplicabilidade no caso
concreto.
189 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almeida, 2003.p.1260-1261.
109
Esse tema não será objeto de maior aprofundamento, mas merece ser
ventilado, pois é um dos motivos da acusação da “invasão de competência”, em que
os poderes passariam, na tentativa de concretizá-los, a exercer funções atípicas,
como, por exemplo, o Poder Judiciário fazendo Políticas Públicas190.
A regra geral sempre presente na teoria dos direitos fundamentais, é a
máxima da efetividade. Contudo, não se pode dizer que os direitos fundamentais
sejam absolutos; nem tudo se pode alegar em nome da realização de um direito
fundamental, motivo pelo qual, por exemplo, jamais um direito fundamental pode ser
invocado para a prática de um ato ilícito. Também, tendo-se em mente a titularidade
dos direitos fundamentais e sua aplicabilidade imediata quando invocada sua tutela,
certamente poderá haver conflito/colisão entre seus destinatários, pois ambos
poderão ser possuidores de um mesmo direito191 ou de direitos conflitante entre si.
Por todas essas assertivas, os direitos fundamentais encontram limites e
restrições, porém, sempre compreendidos como exceções, quando exsurge o
190 A exemplo do exposto, poder-se-ia citar inúmeras decisões judiciais destinando vagas para leitos do SUS, ou determinando o dever de fornecimento de medicações estando ou não na lista de medicações fornecidas pelo Sistema Único de Saúde. Como é o caso de recurso julgado pelo TJ/RS: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO (DIREITO À SAÚDE). AÇÃO ORDINÁRIA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. 1. Diante da regra inscrita no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, não há que se falar em esgotamento da via administrativa como condição para postular judicialmente o fornecimento de medicamentos. 2. A promoção da saúde constitui-se em dever do Estado, em todas as suas esferas de Poder, caracterizando-se a solidariedade entre União, Estados e Municípios. Exegese do artigo 196, da Constituição Federal. Precedentes desta Corte. 3. Comprovadas a enfermidade e a necessidade dos medicamentos, bem como a insuficiência financeira do postulante a arcar com tal despesa, sem prejuízo do próprio sustento, é de ser acolhida a pretensão. 4. O Estado está isento do pagamento das custas judiciais a Cartório Judicial Privatizado, com fulcro no parágrafo único, do art. 11, da lei 8.121/85. 5. Honorários ao Defensor Dativo. Possibilidade. PRELIMINARES REJEITADAS. APELO DO ESTADO E DO MUNICÍPIO DESPROVIDOS. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE EM REEXAME NECESSÁRIO. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70019868678, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogério Gesta Leal, Julgado em 12/07/2007). Como é o caso da decisão EMENTA: AGRAVO INTERNO. DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DESPROVEU AGRAVO DE INSTRUMENTO. SIMPLES PRETENSÃO DE REANÁLISE DO JULGADO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS-SUPLEMENTO ALIMENTAR. CABIMENTO DE BLOQUEIO DE VALORES DOS COFRES PÚBLICOS EM FACE DO DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL. TUTELA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE. PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INOCORRÊNCIA. Mantém-se (...) número: 70020484937 relator: José Ataídes Siqueira Trindade. 191 A invocação por parte de um cidadão de seu direito de privacidade e por parte de outro com relação ao direito de informar-se e de ser informado, ou o próprio conflito na aclamação do direito de propriedade privada frente à função social, a propriedade intelectual diante o acesso universal a cultura e educação, dentre tantos outros.
110
princípio da relatividade, tendo como regra a mínima afetação possível a direitos
fundamentais.
Os limites e restrições a direitos fundamentais são um vasto campo de
divergências doutrinárias acerca das teorias que os justificam, bem como o meio de
proteção e de controle dos próprios limites e restrições. Muito embora não se tenha
a pretensão de analisar os vários pontos divergentes e subdivisões dessas teorias,
vale visualizar o significado da teoria interna e da teoria externa, para posterior
compreensão dos limites e restrições aos direitos fundamentais no âmbito do
constitucionalismo brasileiro.
A chamada teoria interna não admite a existência de restrição a um direito,
sendo sempre um direito apenas e um determinado conteúdo. Dessa forma, o termo
“restrição” é substituído pelo termo “limite”, pois as dúvidas não são oriundas do fato
de se o direito deve ou não ser limitado, e sim, a respeito de qual o seu conteúdo.
Dito isso, ao se falar em limites ao invés de restrições, tratar-se-á de “limites
imanentes”, não no sentido de restrição às normas de direitos fundamentais, mas no
sentido destes limites integrarem o próprio conteúdo dessa norma. Portanto, o
conteúdo deste direito será decifrado uma única vez em um ato de interpretação
normativa, eliminando assim a possibilidade de ponderação192. Tal teoria também
prevê direitos com reserva legal:
Outro tanto se dá quanto aos direitos com expressa reserva legal, em relação aos quais, em acordo com tal compreensão, verdadeiramente se pode falar em limites – pois que neles o legislador recebe a autorização de efetuar um recorte adicional no respectivo conteúdo previamente obtido mediante a interpretação da previsão constitucional – já, que reconhecidos sem reservas, não podem ser limitados senão pela própria constituição193.
Por sua vez, a teoria externa admite que os direitos se apresentem como
direitos restringidos, embora também sejam concebidos direitos sem restrições.
Conforme esta teoria, não existe relação necessária entre o conceito de direito e o
de restrição, sendo que esta relação se cria externamente ao direito propriamente
192 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 1997. p. 268-270. 193 FREITAS, Luiz Fernando Calil de. Direitos Fundamentais Limites e Restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 81-82.
111
dito, através da necessidade de se compatibilizar e de se conviver com diferentes
direitos dos indivíduos, como também entre direitos individuais e direitos coletivos194.
A crítica à adoção integral desta teoria reside no fato de que os direitos
fundamentais teriam conteúdo ilimitado, pois alguns direitos individuais (como
liberdade e propriedade) seriam pré-estatais e, portanto, só admitiriam limites e
restrições mediante a existência de reserva legal, formal e material, ou seja, que
esteja descrito na lei quais os direitos que podem ser restringidos e qual o limite da
restrição. Segundo tal doutrina, apresentar-se-iam: 1) limites expressos na própria
Constituição; 2) restrições expressas nas normas infraconstitucionais, com ou sem
reserva legal, com reserva simples ou com reserva qualificada195.
Destaca-se que, em toda a teorização acerca dos direitos fundamentais,
sempre está presente a idéia de máxima da otimização, no sentido de máxima de
garantia e proteção dos direitos fundamentais nos Estados democráticos, como
assim pretende a Constituinte, de 1988, em diversos de seus dispositivos.
Neste sentido, também na Constituição de 1988, se observam restrições
internas, que dizem respeito ao próprio direito, por assim dizer, nascem juntamente
com o direito. Dentre muitos exemplos a serem arrolados, pode-se citar o art. 5º, XI,
XII e XIII, que trata dos casos em que se restringem/limitam direitos como a
inviolabilidade do domicílio, o sigilo de correspondência, o livre exercício do trabalho
(mediante a imposição de certas exceções ao exercício ilimitado destes
determinados direitos).
Além disso, encontra-se na Constituição de 1988, o que se pode denominar
de restrições de ordem externa, ou seja, espécies de “limitações” práticas que
precisam ser analisadas nos casos em concreto, pois a redução deste conteúdo de
direito fundamental se realiza por força de algo que é exterior ao seu próprio
conteúdo, através de situações fáticas as quais poderão exigir certas restrições.
194 Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 1997. p. 268-269. 195 FREITAS, Luiz Fernando Calil de. Direitos Fundamentais Limites e Restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.p. 140-168.
112
Não bastassem essas indeterminações conceituais, os mesmos gozam da
chamada eficácia direta e imediata, sendo este, certamente, um dos pontos que
produz o aparente conflito entre os poderes no exercício de suas funções, pois
quando judicialmente reclamados, exigem uma resposta do intérprete constitucional,
resposta esta que nem sempre condiz com o conceito da tradicional harmonia e
interdependência entre os poderes.
Embora não seja objeto de discussão todas as restrições externas aos
direitos fundamentais permitem um campo de atuação do intérprete constitucional,
que resulta em uma tensão entre a quem cabe dizer o limite desta restrição e
propriamente sua necessidade de efetivação, uma vez que, no constitucionalismo
contemporâneo, parte-se da compreensão de que o sistema de direitos
fundamentais apresenta-se como um modelo combinado de regras e de princípios,
que, por sua vez, são estruturalmente diferentes, podendo ser aplicados em
diferentes graus, dependendo apenas do contexto fático que requer a aplicação,
bem como as possibilidades jurídicas que o caso apresenta196.
No entanto, este campo que, desde já parece delicado, consegue tomar uma
dimensão mais árdua e penosa quando se trata do princípio fundante de nossa
ordem jurídica constitucional: o princípio da dignidade da pessoa humana. Verificar-
se-á que sua difícil limitação e, ao mesmo tempo sua essencialidade, o torna
indispensável a qualquer tentativa de efetivação constitucional e, ao mesmo tempo,
exige dos poderes constituídos uma tarefa de força conjunta na busca de um
sistema composto por jurista, legisladores, administradores voltados,
necessariamente à sua diária realização.
196 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 253.
113
2.2 O princípio da dignidade da pessoa humana como elemento constitucional
vinculante dos poderes constituídos
Não é pretensão do presente estudo buscar qualquer espécie de
conceituação do que seja a dignidade da pessoa humana, mas sim o que a
normatização deste princípio, enquanto pilar de nossa Constituição, implica para a
leitura de conceitos como democracia e, também, inexoravelmente, a tradicional
separação de poderes.
O surgimento histórico do princípio da dignidade da pessoa humana dá-se em
meio às atrocidades humanas cometidas, especialmente, durante a 2ª Guerra
Mundial, que tomou proporções mundiais frente a aniquilação de qualquer idéia de
direitos humanos. O mundo assistia o holocausto com o massacre dos seres
humanos com o nazismo alemão e o fascismo italiano. O surgimento do princípio da
dignidade da pessoa humana não deixou de ser uma resposta da humanidade,
repudiando qualquer atitude invasiva e desrespeitosa com o ser humano, que jamais
pode ser utilizado como um objeto para alcançar a pretensão de outros seres
humanos.
Assim, pode-se dizer que foi um despertar da humanidade para a
vontade/necessidade política de sua positivação jurídica como princípio
constitucional, para que pudesse, em nome dela, existirem garantias e políticas
públicas ao seu efetivo exercício. Häberle diz: “A dignidade humana como reação
aos horrores da guerra e violações perpetrados na segunda Guerra Mundial, é
nestes textos digna de nota197 [...]”. Neste momento, a dignidade deixa de ser um
conceito apenas abstrato ou ideológico de cada comunidade e a ela restrito,
passando a ter dimensões e pretensões universais (ao menos ocidentais) através da
sua efetiva positivação em lugar destacado nas Constituições modernas.
Acerca do reconhecimento da dignidade pela ordem jurídica, Sarlet faz uma
advertência:
197 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: Dimensões da Dignidade: Ensaios de filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 91.
114
Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida em que este a reconhece, já que constitui dado prévio, no sentido de preexistente e anterior a toda experiência especulativa. Todavia, importa olvidar, que o Direito poderá exercer um papel crucial na sua proteção e promoção, não sendo portanto, completamente sem fundamento que se sustentou até mesmo a desnecessidade de uma definição jurídica de dignidade da pessoa humana, na medida em que, em última análise, se cuida do valor próprio, da natureza do ser humano como tal198.
Muito antes de qualquer positivação acerca da dignidade, ela possui vários
conceitos e momentos históricos. Na antigüidade, era característica uma posição
social e distinção da dignidade de cada indivíduo diante de criaturas não humanas;
para o Cristianismo da Idade Média, ela resultava da imagem e semelhança com
Deus; na Renascença, compreendida como possibilidade de escolha; no Iluminismo,
a dignidade foi vinculada à idéia de liberdade, sempre associada à racionalidade e,
posteriormente, no constitucionalismo social, associada à idéia de igualdade
material. Kant, ainda neste momento histórico, vê a dignidade como algo inerente ao
ser humano, que lhe torna único e insubstituível; e, por fim, a dignidade, no final do
séc.XIX, tornou-se uma bandeira para os movimentos trabalhistas com a Revolução
Industrial199.
Contudo, a primeira positivação da dignidade da pessoa humana no
ordenamento jurídico-constitucional, deu-se em duas Constituições inovadoras,
antes mesmo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: a
Constituição Mexicana de 1917, “que mencionava a dignidade como valor que iria
orientar o sistema constitucional daquele país200”, e a de Weimar, em 1919.
Quanto à dignidade da pessoa humana na Constituição de Weimar, assinala
Häberle:
198 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 79. 199 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: Dimensões da Dignidade: Ensaios de filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 119. 200 MARTINS, Fladimir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana -princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003, p. 33.
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O art.151, inc. I, da Constituição de Weimar constitui exemplar expressão desse desenvolvimento e, “finalmente”, sua conseqüência. A dignidade humana recebeu configuração textual jurídica, de tal sorte que a ruptura que a “ruptura” por meio da positivação e da idéia jurídica da Constituição foi levada a cabo. Seu desenvolvimento subseqüente ao texto fundamental universal é tributário, todavia de acontecimentos históricos-temporais negativos: o desprezo sem paralelo pela humanidade no período nacional-socialista. A evolução finalmente conduziu à união entre Estado Constitucional moderno, com patamar textual atual, e a comunidade jurídica dos povos, ambos moralmente comprometidos com a dignidade humana como texto jurídico central201.
A respeito da constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa
humana na ordem jurídica constitucional brasileira, objeto de nosso estudo, a sua
positivação na Constituição Federal, de 1988, atribui-lhe status de princípio e de
fundamento do Estado Democrático de Direito, o que implica inúmeras
transformações para a hermenêutica jurídica, na medida em que, enquanto princípio
basilar do ordenamento, toda norma constitucional e infraconstitucional deverá estar
em consonância com o mesmo, visto que ele assume uma função de matriz
interpretativa, além de função limitadora das ações estatais, bem como uma tarefa a
ser realizada pelo Estado Democrático.
O constitucionalismo moderno (democrático), contudo, coloca a dignidade no patamar mais alto dos direitos constitucionais. Em face disso, o que, num primeiro momento, aparece como uma inconsistência, pode, num olhar mais acurado, ser perfeitamente explicado. A dignidade serve como referência para todas as constituições modernas e para todos os instrumentos garantidores dos direitos humanos, sendo os seus elementos principais a liberdade e a igualdade, conforme se viu anteriormente. O aspecto de liberdade da dignidade humana abrange, primeiramente, proteção à base vital da vida humana, da vida em si e da integridade física e, complementarmente, a liberdade de escolha relacionada ao desenvolvimento da personalidade. Também se poderia explicar esta faceta da dignidade com base no pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant 19 , que sustentava que o governo nunca pode usar os cidadãos como meros meios para alcançar determinados fins – com base na compreensão de que todo ser humano, independentemente de critérios como sexo, origem ou raça, é um fim em si mesmo. A igualdade complementa a liberdade: como todo ser humano deve ter direito à vida e o direito de desenvolver livremente sua personalidade, este direito pertence a todos os seres humanos, indistintamente. A condição política para que se realizem estes elementos de liberdade e de igualdade inerentes à dignidade, por sua vez, é a existência de um autogoverno democrático; apenas por meio da livre escolha dos cidadãos – cada um, individualmente – é possível converter os princípios de liberdade e de igualdade em igualdade política. Desta forma, os dois diagramas utilizados para descrever o cerne do
201 A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: Dimensões da Dignidade: Ensaios de filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.p. 91.
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constitucionalismo moderno, em verdade, se complementam e se reforçam entre si202.
Antes, de se expor as funções do princípio da dignidade da pessoa humana
na ordem jurídica brasileira, faz-se mister uma pequena explanação acerca do
reconhecimento da superação da legalidade estrita, do positivismo jurídico estrito,
que não mais se sustenta diante da complexidade e da variedade de conflitos e
relações sociais. Explica Magalhães Filho:
O Novo Estado Democrático de Direito ou, ainda, Estado Constitucionalista, distingue-se pelo culto à Constituição, com ênfase no princípio da constitucionalidade e no reconhecimento da normatividade dos princípios que consagram direitos fundamentais, sendo tais preceitos supremos vistos não como meros conselhos ao legislador ou simples declarações políticas de direitos, mas, antes, como normas vinculantes203.
Os novos fenômenos sociais devem conduzir o direito a uma nova forma de
interpretação e aplicação das normas, para além do positivismo estrito característico
do Estado Liberal, a fim de proporcionar força normativa para dar verdadeira
efetividade à dignidade da pessoa humana e à democracia; é fundamental, para tal
pretensão, uma releitura do Direito, mais precisamente da Constituição, sob o
prisma da dignidade da pessoa humana, um sistema voltado precisamente à sua
realização. Essa interpretação é mais do que mera subsunção do texto jurídico, ela
permite uma unidade axiológica do sistema. Assim:
Retomando a questão hermenêutica, cumpre lembrar que dentre os valores fundamentais que vão conferir unidade a Constituição destaca-se a dignidade da pessoa humana. Esse valor é permanente, sendo o mais básico de todos e pra todos, pois não resulta de uma simples decisão, mas uma exigência da natureza humana. Como demonstrou o Kantismo, o homem é um fim e não um meio. Esta asserção tem respaldo mesmo na natureza das coisas, porquanto se o homem cria o direito para coloca-lo a serviço das finalidades de sua existência, não poderia este servir para degradação de sua personalidade204.
202 BRUGGER, Winfred; LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Os direitos fundamentais nas Constituições modernas: análise comparativa entre as Contituições Alemã, Norte-Americana e Brasileira. In: Revista do Direito-Universidade de Santa Cruz do Sul. N. 28, jul./dez. Santa Cruz do Sul: Unisc, 2007, p. 122. 203 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreia. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 64. 204 MAGALHÃES FILHO. Op. Cit, p. 101.
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Na mesma seara argumentativa:
Assim, o expresso reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz, em parte, a pretensão constitucional de transformá-lo em parâmetro objetivo de harmonização de diversos dispositivos constitucionais (e de todo os sistema jurídico), obrigando o intérprete a buscar concordância prática entre eles, na qual o valor acolhido no princípio, sem desprezar os demais valores constitucionais, seja efetivamente preservado. Por óbvio que a dignidade não será um único parâmetro, mas, sem dúvida alguma será o principal. Podemos, nesse contexto, até mesmo falar que a dignidade humana confere racionalidade ao sistema constitucional, visto que a unidade pretendida não é meramente lógica ou mecânica, mas uma unidade axiológica normativa205.
O Constituinte de 1988, ao inserir a dignidade da pessoa humana no art. 1º,
III, na condição de princípio e valor fundamental e não apenas no rol do art. 5º dos
direitos e garantias fundamentais, atribuiu-lhe valor fundamente da ordem jurídica,
colocando-a como pilar da vida política, social e econômica da nação brasileira. Nas
menções anteriores, observou-se que a dignidade, enquanto função hermenêutica,
produz uma unidade axiológica fundamental à boa interpretação e aplicação das
normas constitucionais e infraconstitucionais.
A retórica de princípio fundante não está apenas estreitamente vinculada aos
direitos fundamentais como também está presente em seu núcleo; deste modo, a
aplicabilidade desses depende de uma interpretação em face da realização da
própria dignidade:
Nesta linha de entendimento – admitir que o princípio da dignidade da pessoa humana atua como elemento fundante e informador dos direitos e garantias fundamentais também na Constituição de 1988 – o que, de resto, condiz com sua função como princípio fundamental – também é certo que haverá de se reconhecer um espectro amplo e diversificado no que diz com a intensidade desta vinculação [...] Neste passo, que seja ressaltada a função instrumental integradora e hermenêutica do princípio , na media em que este serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo ordenamento jurídico. De modo especial, o princípio da dignidade da pessoa humana, como, de resto, os demais princípios insculpidos em nossa Carta magna – acaba por servir de referencial inarredável no âmbito da indispensável hierarquização axiológica inerente ao processo hermenêutico sistemático, Não esquecendo- e aqui se
205 MARTINS, Fladimir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana- princípio constitucional fundamental. p. 63.
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adotamos a preciosa lição de Juarez Freitas – que toda a interpretação é sistemática ou não é interpretação206.
A dignidade humana exerce, também, na ordem jurídica, um papel essencial
de revelar novos direitos, que poderão ser reclamados frente aos poderes instituídos
quando verificados que a prestação omissiva ou comissiva dos mesmos está
associada à garantia da dignidade da vida humana. Ela sempre traduzirá um norte
para as funções estatais, que deverão estar atentas sempre às prestações positivas,
mesmo daqueles direitos e princípios que ainda não se encontram expressamente
expostos – os chamados implícitos - nos textos constitucionais, mas que à sua
realização, vincula-se a dignidade207.
Contudo, assume relevo uma outra função da dignidade da pessoa humana
no Estado Democrático de Direito: a função de limite e de tarefa aos poderes
estatais, tanto no planejamento quanto na execução de políticas públicas.
Visa-se, através deste princípio, impor limites à ação estatal e a qualquer
ação do poder público que possam representar uma ameaça ou afronta à dignidade
pessoal de cada cidadão. No entanto, não opera apenas como limite, mas também
como uma imposição e um programa para o governo na consecução de tarefas que
venham a fortalecer e desenvolver a promoção de vida digna aos cidadãos
brasileiros. Ou seja, é um dever de respeito que obriga o Estado e a terceiros
(particulares) um dever de proteção, que requer do poder público e da própria
comunidade, ações positivas, tanto do legislativo em edificar uma ordem jurídica
voltada a sua realização, quanto na prioridade do Executivo em sua realização208.
Para além de uma vinculação (na dimensão positiva e negativa) do Estado, também a ordem comunitária e, portanto, todas as entidades privadas e os particulares encontram-se diretamente vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, por sua natureza igualitária e por exprimir a idéia de solidariedade entre os membros da comunidade humana, o princípio da dignidade da pessoa vincula também entre os
206SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 78-79. 207 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Interprivadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 112-113. 208 SARLET. Op. Cit. p.110-111.
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particulares209. No que diz com tal amplitude deste dever de proteção e respeito, convém que aqui reste consignado que tal constatação decorre do fato que há muito já se percebeu –desigualmente em face da situação socioeconômica exercida pelos assim denominados poderes sociais – que o Estado nunca foi (e cada vez menos o é) o único e maior inimigo das liberdades e dos direitos fundamentais em geral210.
Mais do que os próprios direitos fundamentais, diante da importância atribuída
à dignidade na Constituinte de 1988, possui, desta forma, uma dimensão subjetiva
que se refere à faculdade de reclamar tal direito frente ao seu possível agressor,
mas também uma dimensão objetiva211 e, portanto, cabe a toda a comunidade zelar
pelo seu respeito e efetividade, pois o Estado Democrático de Direito, mais do que
uma forma de Estado e de Governo, é um projeto comunitário, que depende da
cidadania como um todo para a sua realização.
O princípio da dignidade humana tem exercido, em face da escassez de
recursos estatais ou pela própria falta de políticas públicas adequadas, com relação
à gama de direitos fundamentais constitucionalmente positivados, uma função de
limite de restrição, ou seja, limite para a restrição de direitos fundamentais. Acerca
do tema:
O princípio da dignidade humana opera também como fator de limitação e restrição de direitos fundamentais. Tal se dá em razão da refração de seus efeitos relativamente à ordem comunitária, onde se verifica a eficácia privada dos direitos fundamentais e resultam afetadas as relações entre particulares. Nada mais lógico que seja assim, na justa medida que as colisões e conflitos de direitos fundamentais e os conflitos destes com os outros bem constitucionalmente protegidos também induzem a restrições e limites àqueles direitos. Nesse sentido, o dever de proteção imposto
209Segundo Freitas, a vinculação dos direitos fundamentais aos particulares, denomina-se de eficácia horizontal, diz respeito que o sistema de direitos fundamentais projeta-se às relações jurídico-privadas, dando aplicabilidade aos direitos fundamentais também contra particulares. Ver: FREITAS. Luiz Fernando Calil de. Direitos Fundamentais Limites e Restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 210 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.111-112. 211 Acerca da dimensão objetiva, para maiores esclarecimentos Sarlet diz que “[...] a doutrina alienígena chegou à conclusão de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais constitui função axiologicamente vinculada, demonstrando que o exercício dos direitos subjetivos individuais está condicionado, de certa forma pelo seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra inserido e da qual não pode ser dissociado, podendo falar-se neste contexto, de uma responsabilidade comunitária dos indivíduos. É neste sentido que se justifica a afirmação de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não só legitima restrições aos direitos subjetivos individuais com base no interesse comunitário prevalente, mas também, que de certa forma contribui para limitação do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais, ainda que deva sempre ficar preservado o núcleo destes”. SARLET, Op. Cit, p. 160.
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essencialmente aos órgãos estatais, é igualmente estabelecido em face dos particulares nas relações entre si e mesmo no sentido da proteção da pessoa contra os atos que ela própria possa cometer atentórios à sua dignidade, como decorrência do caráter indisponível da dignidade humana enquanto parte do núcleo essencial dos direitos fundamentais212.
Outra questão de extrema relevância suscitada, é o fato de que a dignidade
humana, se observada sob a ótica da proteção pela dignidade, operacionalizará
como o limite dos limites dos direitos fundamentais. Quer dizer que qualquer
restrição, afetação, na aplicação do direito, jamais poderá retirar de um direito
fundamental aquilo que lhe é essencialmente vinculado pelo princípio da dignidade
da pessoa humana. Portanto, qualquer restrição que se atente contra os direitos
fundamentais, mesmo que em nome de outro direito fundamental, sempre estará
limitada ao núcleo essencial, a não afetação do que está umbilicalmente vinculado à
noção de dignidade; a dignidade é sempre parte do núcleo primordial de um direito
fundamental, o qual se denomina núcleo duro, intocável, intangível213.
Feitas as explanações preliminares acerca do papel desempenhado pelo
princípio da dignidade da pessoa humana no Estado Democrático de Direito, cabe
identificar que um dos principais problemas da sua aplicabilidade nas relações
jurídicas e sociais refere-se à amplitude que pode tomar o conceito de dignidade em
uma sociedade altamente diversificada em questões culturais, econômicas, sociais,
éticas, religiosas, raciais.
Há duas dimensões da dignidade que necessitam de uma abordagem teórica.
A primeira, se refere ao conceito ontológico214 de dignidade, como ensina Dworkin:
A dignidade da pessoa humana precisa nos fazer lembrar, que o ser humano jamais poderá ser tratado como objeto ou instrumento para a realização de outros seres humanos, a vidas não poderão ter valores distintos, devendo ser vedada qualquer fórmula-objeto tendo de ser
212 FREITAS. Luiz Fernando Calil de. Direitos Fundamentais Limites e Restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 175. 213 Ibidem. p. 225. 214 No sentido que nasce com a pessoa, é inata, intrínseca, inerente a sua qualidade enquanto ser humano, e este, dela não pode renunciar, abdicar, pois diz respeito à sua própria condição humana. Portanto, pode ser respeitada, reconhecida, protegida, mas jamais criada. Para uma leitura mais aprofundada. SARLET, Ingo Wolgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Dimensões da Dignidade: Ensaios de filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 18-19.
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reconhecida tanto sua dimensão ontológica como qualidade intrínseca e inalienável do ser humano, quanto sua dimensão instrumental, no sentido de prestação215.
Outra dimensão que se refere à dignidade é a questão cultural, que diz
respeito às práticas que se desenvolvem dentro de um espaço histórico-geográfico,
ou seja: o que se considera digno dentro de uma determinada comunidade. A
dimensão cultural da dignidade humana não pode deixar de ser considerada e, ao
mesmo tempo, não pode ser extremada a sua aplicabilidade. Mas é certo que as
tradições, os costumes, a história de cada comunidade, ajuda na compreensão e
respeito deste conceito cultural de dignidade criado dentro da mesma, pois dela é
fruto sem, contudo, esquecer de seu conceito ontológico. Nesta esteira:
Já por esta razão, há quem aponte para o fato de que a dignidade humana não deve ser considerada exclusivamente como algo inerente a pessoa humana (no sentido de qualidade inata pura e simplesmente), isto que na medida em que a dignidade também possui um sentido cultural, sendo fruto do trabalho das diversas gerações e da humanidade em seu todo, razão pela qual as dimensões natural e cultural da dignidade se completam e interagem mutuamente, guardando, além disso, relação direta com o que se pode designar de dimensão prestacional (ou positiva) da dignidade216.
Por óbvio, o conceito de dignidade há muito deixou de ser algo apenas
ideário, plenamente abstrato ou inaplicável. Argumentos neste sentido não mais
prosperam em um Estado Constitucional. Contudo, não há um conceito expresso e
fechado acerca da dignidade humana, e nem o poderia ter, sob pena de cometer
inúmeras injustiças ao pensá-o em abstrato. No entanto, quando reclamado frente à
jurisdição constitucional, este não poderá se abster, devendo se pronunciar através
de uma decisão, importando delimitar o campo de abrangência e de incidência da
dignidade.
A observância, a prática e a defesa dos direitos sociais, a sua inviolável contextura formal, premissa indeclinável de uma construção material sólida desses direitos, formam hoje o pressuposto mais importante com que fazer eficaz a dignidade da pessoa humana nos quadros de uma organização democrática da Sociedade e do Poder. Em função disso, essa dignidade se fez artigo constitucional em nosso sistema jurídico, tendo sido erigida por
215 DWORKIN, Ronald. El domínio de la vida. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fonte,1998. p. 69-70. 216 SARLET, Ingo Wolgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Dimensões da Dignidade: Ensaios de filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 27.
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fundamento de um novo Estado de Direito, que é aquele do art. 1º da Carta Política da República.Sem a concretização dos direitos sociais não se poderá alcançar jamais “a Sociedade livre, justa e solidária”, contemplada constitucionalmente como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil ( art. 3º). O mesmo tem pertinência com respeito à redução das desigualdades sociais, que é, as mesmo passo, um princípio da ordem econômica e um dos objetivos fundamentais de nosso ordenamento republicano, qual consta respectivamente do art. 170, VII, e do sobredito art. 3º217.
Frente a tal constatação, e diante da complexidade das relações sociais, a
concretização dos princípios eleitos pela soberania popular, como fundamentais ao
Estado Democrático de Direito, tem se concentrado na jurisdição constitucional, mas
especificadamente na figura do Poder Judiciário, no papel de garantidor e propulsor
desses direitos. A ampliação do papel deste poder, na opinião de muitos, gerou um
desequilíbrio entre os poderes, uma invasão do Poder Judiciário na esfera de
competência dos demais poderes, num processo denominado pela doutrina de
“judicialização da política” ou “politização do direito”.
Um dos grandes desafios do constitucionalismo é o de tentar responder aos
seguintes questionamentos: quais seriam os limites desta intervenção em nome da
realização de direitos? Quais os instrumentos hermenêuticos utilizados no exercício
de tal tarefa que não conduzam a uma extrema concentração deste poder, criando
um absolutismo do judiciário dentro de um Estado dito democrático? Quais as
conseqüências à própria separação de poderes do Estado? Porém, antes de se
buscar possíveis respostas a estes impasses, é preciso verificar a compreensão
deste fenômeno.
2.3 O fenômeno da “judicialização da política” e d a “politização do direito” na
pós-modernidade
A história de toda humanidade, e também da conquista de direitos, sempre foi
caracterizada pela existência de conflitos sociais. Entretanto, em cada época, nota-
se que a busca se dá conforme a necessidade do momento histórico que se vive.
Pode-se dizer que na história medieval os conflitos existiam, prioritariamente,
217 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 21. ed.. Malheiros. 2007, p. 642.
123
motivados pelas conquistas de territórios; no liberalismo, caracterizado pela disputa
de poderes no sentido de cessar o absolutismo da monarquia, os conflitos passam a
ser característicos pelas lutas em prol da democracia (ainda em sentido restrito –
direito de voto); já na modernidade, os conflitos, em sua maioria, se caracterizavam
pela busca da igualdade material de direitos.
A era da “pós-modernidade”, especialmente para o direito, é caracterizada
pela diversidade dos próprios conflitos e pela complexidade das relações sociais,
principalmente, a partir do momento em que o Direito passa a reconhecer as
peculiaridades das relações existentes entre os indivíduos e a preocupar-se mais
com a questão da justiça, do que propriamente com o cumprimento restrito das
normas expressamente positivadas218. Conforme exposto, relevantes as
considerações de Barroso:
Todos os objetos estão sujeitos à interpretação. Isto é especialmente válido para o Direito, cuja matéria-prima é feita de normas, palavras, significantes e significados. A moderna dogmática jurídica já superou a idéia de que as leis possam ter, sempre e sempre, sentido unívoco, produzindo uma única solução adequada para cada caso. A objetividade possível do Direito reside no conjunto de possibilidades interpretativas que o relato da norma oferece. Tais possibilidades interpretativas podem decorrer, por exemplo, (I) da discricionariedade atribuída pela norma ao intérprete, (II) da pluralidade de significados das palavras ou (III) da existência de normas contrapostas, exigindo a ponderação de interesses à vista do caso concreto. Daí a constatação inafastável de que a aplicação do Direito não é apenas um ato de conhecimento, mas também um ato de vontade [...]. O direito constitucional define a moldura dentro da qual o intérprete exercerá sua criatividade e seu senso de justiça, sem conceder-lhe, contudo, um mandato para voluntarismos de matrizes variados. De fato, a Constituição institui um conjunto de normas que deverão orientar sua escolha entre alternativas possíveis: princípios, fins públicos, programas de ação219 .
O cenário dos Estados Democráticos de Direito asseguram, em nome do
cumprimento de seus fundamentos, um significativo espaço para interpretações220
218 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 8-9. 219 Ibidem, p. 9. 220 Nesse sentido salutar as observações de Streck acerca do intérprete do direito: “ [...] O intérprete do direito não contempla o objeto (o direito, os textos jurídicos, os fenômenos sociais, para, assim, construí-los). É ilusão pensar – e aqui parafraseando Heidegger quando fala da obra de art – que é a nossa descrição enquanto atividade subjetiva, que faz figurar as coisas, para depois projeta-las. A partir do linguistic turn, o intérprete é alguém já inserido – desde sempre – na linguagem, da qual o
124
construtivistas221 da jurisdição constitucional, que, por sua vez, têm atuado como
guardiã da Constituição e concretizadora de direitos, podendo se falar até em um
direito que somente ocorre nas esferas judiciais, pois ali será ditado o que acarreta
um ativismo judicial.
Entende-se por judicialização da política a tendência de atribuir, ou submeter
aos tribunais judiciários, a decisão de mérito que de regra possui o chamado caráter
político, pois diz respeito ao interesse da comunidade ou importa orientar em direção
a determinados objetivos a estrutura governamental, em razão do interesse público,
do interesse comum. Através do processo de judicialização, atribui-se ao judiciário
decisões que, levando a cabo a teoria da clássica separação de poderes, incumbir-
se-iam ao poder Executivo ou ao Legislativo222. Está longe de ser um fenômeno
recente, na verdade. Ganhou tal nomenclatura na contemporaneidade, pois tal
fenômeno nasceu em face do próprio conteúdo das Constituições modernas.
É a concentração nas mãos do Poder Judiciário, ou seja, da jurisdição
constitucional, em face da abertura jurídica de conceitos fechados, através da
normatividade e da supremacia dos princípios. Isso, pois, vivendo-se sob a égide de
uma Constituição Cidadã, repleta de direitos fundamentais, que visam a garantir a
dignidade dos seus cidadãos, às exigências democráticas não mais comportam ou
recebem, passivamente, a inércia dos poderes públicos diante das questões sociais,
que clamam por maior efetividade. Explica Cittadino:
objeto inexoravelmente faz parte. Sem essa dicotomia sujeito-objeto e superados os dualismos próprios da tradição metafísica clássica, o intérprete, ao interpretar, somente pode o faze-lo a partir de seus pré-juízos (pré-conceitos), oriundos da tradição, na qual está jogado. Não há mais um sujeito, intérprete isolado, contemplando um mundo e definindo-o segundo seu cogito.” In: STRECK, Lênio Luis.Hermenêutica Jurídica em crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2000. p. 241-242. 221 A Idéia de interpretação construtivista, requer uma breve menção as duas correntes teóricas dividida entre os procedimentalistas e os substancialistas. Em linhas gerais, poder-se-ia dizer, que a corrente susbtancialista vincula-se a idéia de uma interpretação construtiva, no sentido de uma atuação mais efetiva da jurisdição constitucional, em face da inefetividade da Constituição frente a inércia dos poderes legislativo e executivo realização e promoção de políticas públicas. Em contraponto a este tipo de atuação, os procedimentalistas advogam que a Constituição tem apenas a função de limitar o poder existente, priorizando o modo de operar a democracia a partir de uma máxima universalização da participação popular. STRECK, Lênio Luis. Verdade e Consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de janeiro: Lúmen júris, 2006. p. 13-14. 222 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalvez. A Constituição de 1988 e a judicialização da política. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol.12. Porto Alegre, 1996, p. 188-189.
125
A ampliação do controle normativo do Poder Judiciário no âmbito das democracias contemporâneas é tema central de muitas discussões que hoje se processam na ciência política e na filosofia do direito. O protagonismo recente dos tribunais constitucionais e cortes supremas transforma em problemáticas os princípios da separação dos poderes e da neutralidade política do Poder Judiciário, como inaugura um tipo inédito de especo público, desvinculado das clássicas instituições político representativas. (...) é possível observar como uma forte pressão e mobilização política da sociedade está na origem da expansão do poder dos tribunais ou daquilo que se designa como “ativismo judicial”223.
Tratando de uma crítica a este fenômeno, Maus atribui ao mesmo de que,
com a introdução de valores morais na jurisprudência, a Justiça assume o papel de
administradora da moral pública, afastando-se do controle e da vontade popular. Os
espaços que antes eram de liberdade dos indivíduos passaram a ser objeto de
análise do “caso concreto”, diante de tantos conceitos com valores morais, conceitos
jurídicos indeterminados. Ocorre também que esta expectativa de que a Justiça
funcione como instância da moral, observa-se não apenas nas leis, como também
na confiança que a população tem depositado nestas decisões, demonstrando,
assim, um infantilismo na crença de uma decisão imparcial e justa224.
Neste contexto, ocorre a ascensão dos princípios e, conseqüentemente, do
fenômeno da judicialização da política, ocasionando grandes inversões dos
paradigmas sociais e balançando algumas bases do direito fixadas na dogmática
jurídica.
Inexoravelmente, a Constituição de 1988 alimentou e determinou amplamente
este processo de judicialização, não apenas pela adoção dos seus institutos, mas
também pelo caráter de seu texto que nem de longe segue os padrões da
terminologia jurídica, apresentando um fértil solo às interpretações para além do
dispositivo expresso. A amplitude de seu próprio catálogo, bem como a adoção de
um sistema combinado de regras e princípios, conduz seu intérprete (no caso, o juiz)
a muitos significados possíveis, na medida em que grande parte de seu texto
aprecia normas genéricas, de conteúdo indeterminado, a exemplo, “sadia qualidade 223 CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002. p. 17. 224 MAUS, Ingebord. O judiciário como superego da sociedade - sobre o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã. Tradução de Martonio Mont Alverne Barreto Lima e Paulo Menezes de Albuquerque. In: Novos Estudos, n.58. São Paulo, CEBRAP, novembro de 2000. p. 154-155.
126
de vida”, a “moralidade administrativa” e tantos outros. Tal situação força, no
mínimo, a interpretações valorativas, praticamente indissociáveis de um grande
caráter subjetivista225.
A conjuntura político-institucional do Brasil, tem como marco de sua redefinição, a Constituição de 1988. A partir desta nova carta política vislumbra-se a restauração das garantias individuais e políticas perdidas ao longo do regime militar. Este novo marco institucional, ao afirmar o de Estado Democrático de Direito reforça o papel das instituições relacionadas à atividade jurisdicional. Nesse sentido, abra-se um amplo leque de possibilidades de postulação de direitos consagrados na Constituição, assim como legislações que lhe sucedem226.
Diante deste cenário, antes mesmo de aprofundar a problemática no tocante
ao controle de constitucionalidade, os institutos da velha hermenêutica jazem a
olhos vistos diante de seu intérprete, que deverá recorrer a teorias em que o
reconhecimento da carga axiológica da Constituição é determinante de qualquer
leitura, que deverá sempre considerar o todo, o espírito constitucional contido nestas
normas. Entende-se por espírito, as propostas, os objetivos, os desejos e os anseios
contidos implicitamente em suas normas como a proporcionalidade, a igualdade
material ou, explicitamente, em seus princípios fundamentais, como justiça social,
liberdade e dignidade humana. Nesta árdua tarefa, os limites não se mostram tão
evidentes. Em nome da concretização, os abusos tornam-se possíveis e muitas
vezes camuflados.
Faz-se necessário, agora, uma breve menção aos dois modelos de sistema
de controle de constitucionalidade. No primeiro, tradicional dos países que adotam o
Common Law, como os Estados Unidos, por exemplo, do qual é originário, não só a
Corte Constitucional é que tem o poder de declarar a inconstitucionalidade das leis,
mas todos que fazem parte do Poder Judiciário. Dessa maneira, a jurisdição
constitucional está dispersa no sistema, podendo qualquer juiz deixar de aplicar uma
lei por considerar que a mesma é inconstitucional. O modelo concentrado, por sua
vez, tem como característica a de que o controle das leis é feito através de ações 225 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalvez. A Constituição de 1988 e a judicialização da política. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol.12. Porto Alegre, 1996, p. 190-191. 226 ENGELMANN, Fabiano. A “judicialização da Política” e a “Politização do Judiciário” no Brasil: Notas para uma abordagem sociológica. In: Revista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vol. 22, Set/2002. Porto Alegre: UFRGS, 2002. p. 193.
127
próprias e específicas, cujo objetivo é remover a lei do sistema jurídico. Nesse caso,
há um órgão jurisdicional227 – tribunal ordinário ou corte especial – que é competente
para fazer o julgamento dessas ações.
O caso brasileiro adota ambos os modelos de controle de constitucionalidade:
o concentrado e o difuso. Tal adoção também contribui para a chamada
judicialização da política, visto que, através deste modelo, em todas as instâncias
será discutida a constitucionalidade, embora um tenha efeito entre as partes e o
outro, erga omnes. Assim, a repercussão social e a interferência do Poder Judiciário
no campo de atuação típica dos demais poderes ocorre com ainda mais freqüência
e, até chegar a esfera de controle de constitucionalidade do Supremo Tribunal
Federal, o impacto dos efeitos destas decisões esparsas já gerou repercussão e
comoção em todas as esferas sociais. Para uma melhor compreensão:
A doutrina, no caso brasileiro, divide o sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade em duas espécies: o concentrado, modelo austríaco, atribui a um único órgão judiciário criado para esse fim, a função de julgar a constitucionalidade das leis e atos normativos; o difuso, indiferentemente, permite a qualquer juiz conhecer de matéria e discutir a constitucionalidade. No caso brasileiro, as decisões em sede de controle concentrado de constitucionalidade das leis têm sido conservadoras e não raro privilegiam e legitimam uma decisão tomada pelo executivo, o qual, em muitos os casos, apenas executa políticas econômicas ditadas por organizações empresariais estrangeiras. Deste modo, muito embora a judicialização da política nas demais instâncias desempenhe um papel fundamental para a democracia no país, não raro, tais decisões judiciais acabam sendo “atropeladas” por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, defendendo abertamente súmulas vinculantes como forma de racionalização das instancias judiciais no país228.
Tal fenômeno vem sendo vivenciado em vários países cuja lei magna é a
Constituição e seu sistema de direitos e garantias dos cidadãos, vem ganhando
amplitude, nas últimas décadas, frente ao grande processo de democratização fruto
da própria facilidade de informação, fruto da própria garantia de direitos, como a
liberdade de expressão e pensamento, o livre acesso à justiça, inclusive gratuita,
dentre tantos outros. A saber:
227 Essa idéia de órgão constitucional, dotado de jurisdição para o julgamento de matérias que envolvessem a Constituição, surgiu com Kelsen, em 1920, com a Constituição austríaca. 228 APPIO, Eduardo. A judicialização da política em Dworkin. In: Revista Estudos Jurídicos, vol. 36, n º o 38, p. 115-131. Unisinos: São Leopoldo, 2003.p. 127.
128
Nos Estados Unidos, a judicialização no sentido forte vem de longe. Talvez por isso seja esse país o lugar que aparece mais avançada. Está ela intimamente ligada ao judicial review, ou melhor, um alargamento do escopo da mesma. De fato, a Suprema Corte, de 1954 para cá, embora com menor intensidade nos últimos anos, vem, ao fulminar atos ou normas por inconstitucionalidade, afirmando padrões positivos que devem ser obrigatoriamente seguidos. Ora, estes padrões, são, conforme o caso, impositivos para o legislador, ou para a administração pública. O Fenômeno também é patente na Alemanha. A Corte Constitucional não tem se contentado, na função de controle de constitucionalidade, com a alternativa de, ou anular a lei, ou considera-la consentânea com a Lei Magna. Assim, constitui a técnica de interpretação de acordo com a Constituição (verfassungskonforme interpretation), pela qual entende constitucional uma lei, desde que ela seja interpretada de um determinado modo que fixa229.
No entanto, em todos os países em que este fenômeno é vivenciado, nota-se
que o mesmo não vem desacompanhado, visto que, como contrapartida inexorável,
tem-se a politização da justiça. Um aspecto bem relevante e notório deste processo,
verifica-se no fato de muitos votos dos próprios magistrados e decisões proferidas
pelos Tribunais, sofrem grande influência da chamada “opinião pública”, com o
desejo oculto de agradar ou de se justificar diante dos meios de comunicação,
eximindo-se da crítica da massa. Por outro lado, a exemplo do Brasil, a politização
da justiça é bem querida por muitos, seja por aqueles que batalham para a adoção
do controle externo (com a bandeira de “punir” as arbitrariedades dos magistrados)
ou por outros, os que postulam pelo direito alternativo (sobre o pretexto de servir aos
mais carentes)230.
Conforme alhures referido, em ambos os casos, mesmo que em distintas
bandeiras, na verdade, a politização da justiça daria um novo sentido às próprias
decisões, que não teriam sua vinculação na letra da lei, e, ao mesmo tempo, nem
mesmo vinculadas à tentativa de realização da justiça, mas, sim, apresentariam um
caráter direcionado a satisfazer a “vontade da maioria”, muitas vezes já manipuladas
pelos meios de comunicação ou passíveis de convencimento através da indução da
opinião pública, o que passará a se chamar de vontade popular. Neste panorama, a
subordinação do direito não estaria na legalidade, na sua vinculação com a lei,
proporcionando previsibilidade. Nem mesmo, a tentativa cotidiana de “fazer justiça”,
229 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalvez. A Constituição de 1988 e a Judicialização da política. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol.12. Porto Alegre, 1996, p. 188-189. 230 FERREIRA FILHO. Op. Cit. p. 194-195.
129
de buscar a máxima isonomia, de concretização constitucional, estaria, a seu turno,
vinculada ao desejo de aprovação do Direito, do judiciário, da opinião pública,
formada pelos meios de comunicação em massa. Inegavelmente estar-se-ia diante
da desvinculação do direito com dois de seus pilares essenciais e que justificam a
própria existência do mesmo.
Dessa forma, no exercício da cidadania, os cidadãos brasileiros passam a
requerer junto ao Poder Judiciário a gama de direitos garantidos pelo Estado
Democrático de Direito. Ocorre que esta invocação da sociedade feita ao Poder
Judiciário exige do mesmo uma conduta ativa, uma vez que também este não pode
abster-se de julgar e tem o papel de garantir e de impedir a lesão de um direito:
Em verdade, para fazer eficazes os direitos sociais, o Estado precisa de ministrar duas distintas formas de garantia: a garantia jurídica e a garantia econômica; a primeira de natureza formal, a segunda de natureza material. Com respeito aos direitos fundamentais, a concepção liberal entendia, dogmaticamente, que bastava a garantia jurídica, não havendo necessidade de garantia econômica, porquanto esta já fora proporcionada pelo sistema mesmo de regulação de bens da sociedade burguesa, que fazia, assim, da abstenção intervencionista um artigo de fé, talvez o cânone mais festejado de seu Estado de Direito. Mas não só a ausência de meios processuais se há invocado para declarar inferior e secundária a garantia dos direitos de segunda geração no corpo normativo dos ordenamentos constitucionais, senão também o caráter de prestação que da parte do Estado eles forçosamente assumem, caindo, por conseguinte, de certo modo num estado de dependência da vontade estatal. Não raro, esta os descumpre no âmbito da Lei Maior em virtude de uma alegada limitação de recursos e disponibilidades materiais. Fatores econômicos objetivos e reais seriam, portanto, decisivos para concretizá-los, Quanto mais desfalcada de bens ou mais débil a ordem econômica de um país constitucional, mais vulnerável e frágil nele a proteção efetiva dos sobreditos direitos; em outros termos, mais programaticidade e menos juridicidade ostentam231.
Passou-se, então, a discutir a questão de sua legitimidade na medida em que
começa a “gerir” recursos públicos, porque detém o monopólio da interpretação
constitucional e dos seus princípios, faz o papel de legislador. Diz-se que invade o
âmbito de sua competência funcional em nome da concretização do direito, dando
origem ao chamado ativismo judicial. Uma severa crítica acerca do novo papel do
judiciário é feita por Maus:
231 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 644.
130
Tais argumentações contêm uma dimensão metafórica, onde a “tópica” psíquica dos mecanismos políticos e redimensionada. O Parlamento aparece agora como um simples representante do entrechoque de impulsos e energias sociais, frente a cujo excesso a Justiça se coloca como censor. O suposto défict de conhecimento jurídico do Parlamento, a estrutura consensual de suas leis, das quais se reproduz o antagonismo do interesse social, o confronto dos vários particulares das diversas matérias jurídica entre si, põe em questão a unidade e coerência do sistema jurídico: tudo exige da Justiça um sendo de clareza, de acordo com a qual ela possa organizar a síntese social, distante de disputas partidárias, e garantir a unidade do Direito, independente de interesses envolvidos na produção legislativa. Desta maneira o juiz torna-se o próprio juiz da lei- a qual é reduzida a “produto e meio técnico de um compromisso de interesses” - e investe-se como sacerdote –mor de uma nova “divindade” – a do direito suprapositivo e não escrito.Nesta condição é –lhe confiada a tarefa central de sintetizar a heterogeneidade social232.
A moderna dogmática jurídica já superou a idéia de que as leis sempre têm o
mesmo sentido, produzindo uma única resposta para o caso. O direito preside as
possibilidades interpretativas que pode ter a norma e que poderão decorrer da
discricionariedade atribuída ao intérprete, pela pluralidade de significados das
palavras e pela existência de normas contrapostas que exigem ponderação.
Contudo, a própria Constituição impõe limites, pois define a moldura que se
dará à criatividade interpretativa e ao senso de justiça. Constata-se que o
constitucionalismo chega ao século XX revigorado e com força. Acredita-se, pois, ter
conseguido, ao menos no imaginário, ofereceu a legitimidade pela soberania
popular; a limitação do poder pela repartição de competência, e os valores que são
incorporados à constituição material. Verificou-se que a crença na Constituição e no
constitucionalismo não deixa de ser uma questão de fé, pois exige vivência, exige
que se acredite nas coisas que não diretamente apreendidas pelos sentidos233.
Com o intuito de concretização material dos direitos fundamentais e
pretendendo o exercício da forma normativa dos princípios constitucionais, a nova
interpretação constitucional conduz o Direito e a sociedade a repensarem seu papel
232 MAUS, Ingred. O judiciário como superego da sociedade - sobre o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã. Tradução de Martonio Mont Alverne Barreto Lima e Paulo Menezes de Albuquerque. In: Novos Estudos, n. 58. São Paulo, CEBRAP, novembro de 2000. p. 145. 233 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), in: A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 10-11.
131
para os novos tempos234. E, neste contexto, a teoria da separação de poderes
ganhará novos contornos frente à realidade dos Estados Democráticos de Direito,
fazendo-se necessária uma significativa revisão de seus fins e conteúdos
determinantes, a exemplo do próprio conceito de independência e harmonia.
234 Neste sentido, há que se considerar, como pontos teóricos basilares dessa afirmação, a alteração, dentro do paradigma contemporâneo de Estado constitucional, não só da própria noção de democracia - trasladada para um locus legitimador não mais meramente formal, senão, principalmente, substancial -mas especialmente, como decorrência da alteração da noção e extensão do conceito de democracia, de duas outras situações: primeiro, da noção de garantia, não mais restrita aos padrões liberais de limitação negativa da ação estatal, mas acrescida de um plus transformador, em que a concretização de obrigações que importam na transfiguração do status quo assumem efetivamente uma posição de primazia no espaço de legitimação constituído pela função de garantia; segundo, da distribuição clássica das funções dos poderes públicos, não mais sujeita a uma separação rigorosa, com o objetivo de reforçar uma estrutura de fiscalização, mas, noutro sentido, mais flexível, voltada a uma finalidade de cooperação entre os poderes para a realização de valores éticos substanciais positivados constitucionalmente e intensamente reclamados pela população.
132
3 NOVAS PERSPECTIVAS DA RELAÇÃO ENTRE OS PODERES:
REDISCUTINDO OS LIMITES DA JURISDIÇÃO SOB O VIÉS DE MOCRÁTICO E
CONSTRUTIVO PARA REALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Ao se pensar na teoria de Montesquieu, é necessário reportar-se ao período
histórico no qual tentou desenvolver suas idéias. A Inglaterra dos séculos XVII e
XVIIi e, em um contexto mais amplo, a própria Europa, experimentava as primeiras
idéias de democracia, ainda em seu sentido mais imaturo, rudimentar, e assistia ao
nascimento de uma nova classe dominante, a burguesia, repleta de novos planos na
ordem econômica, política e também social. Neste contexto, o Direito assume um
papel essencial e peculiar: o de propiciar a segurança jurídica frente ao império da
lei, e, assim firmar, institutos como a previsibilidade jurídica e igualdade formal. A
idéia de separação de poderes, somada à garantia dos direitos fundamentais, era o
cerne das primeiras Constituições liberais, cuja importância histórica, na conquista
de direitos, é irrefutável.
No entanto, é com o renascer do conceito de democracia, refundado e
ampliado, e de direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo, que a
proposta de Montesquieu passa a requerer novos moldes e contornos, sob pena de
ficar fadada à superação ou ao próprio esquecimento, caso a mesma, em face de
sua rigidez e inflexibilidade, venha a se tornar um empecilho, um obstáculo à
realização dos direitos fundamentais, o que não deixaria de ser um paradoxo, pois
nasceu justamente com a idéia de garantir esses direitos em sua concepção mais
primária, os direitos individuais como liberdade, vida e propriedade privada.
No desfecho desta pesquisa, em que se propõe a revisão de conceitos
tradicionais, como independência e harmonia, busca-se uma breve crítica à doutrina
de Montesquieu e de algumas leituras distorcidas de sua proposta inicial, bem como
procura-se construir um paralelo entre as pretensões da sociedade liberal e os
objetivos das sociedades contemporâneas, para, então, tentar demonstrar que o
exercício mais ativo de um dos Poderes instituídos, em sentido funcional, não
implica necessariamente, em um afronta à teoria da separação de poderes, desde
que no exercício de sua função se fortaleça a democracia através da concretização
das suas normas fundamentais. Nesse ponto, tem-se como possível a
133
admissibilidade de um “ativismo judicial”, não como um embate à independência e
harmonia dos poderes, mas como uma complementação funcional. Assim, quando
um dos poderes instituídos falhar diante do respeito aos preceitos constitucionais,
não há outra forma de protegê-los senão com a interferência do Judiciário para
garantir que os mesmos permaneçam acima de quaisquer disputas de poder, sob
pena de se ter um inaceitável retrocesso jurídico, político e social.
3.1 A teoria da separação de poderes: uma teoria e dois contextos
O prisma do estudo da teoria da separação de poderes, aqui proposta, parte,
justamente, da análise do contexto histórico e social quando de sua origem, para
chegar à análise desta mesma teoria diante novos paradigmas de realidades
significativamente diferentes, destacando-se, especialmente, a ampliação dos
conteúdos de direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo, como
demonstrado no capítulo anterior, em razão da própria complexidade dos conflitos
da chamada “pós-modernidade”, como por exemplo a proteção da dignidade da
pessoa humana, como referência máxima dos princípios constitucionais positivados.
Considerar as críticas tecidas à interpretação atribuída pela doutrina pátria e
alienígena com relação ao princípio da separação de poderes, mais propriamente à
formulação proposta por Montesquieu, também é ponto fundamental para a
compreensão da forma como deve ser recepcionada nos dias de hoje nas
Constituições, visto que, há atualmente, dois elementos que formam a base de
sustentação e de justificação da existência deste princípio: preservar a democracia e
os direitos fundamentais. Na medida em que estes conceitos ganham novos
significados e amplitude na contemporaneidade, rever a separação de poderes, mais
do que pertinente, faz-se necessário.
Nesta retórica, vale relembrar que a instauração dos Estados liberais, após as
grandes revoluções burguesas235, preocupava-se em garantir o direito de liberdade
do indivíduo frente ao Estado. Para tal feito, pode-se atribuir a dois grandes pilares a
235 Neste caso, refere propriamente à Revolução Inglesa, Americana e a Francesa, face da sua importância histórica no reconhecimento de direitos e de ideais de liberdade, igualdade.
134
consagração do Estado liberal, diretamente associado ao corolário da legalidade e
da separação de poderes, conceitos incorporados e refundados no Estado
Democrático de Direito:
Our two ideas have multiplied. The idea of separation of powers has given place to a (1) supposition that government caries out three main functions: legislation, execution and adjudication – or four, if one distinguishes between internal and external execution; (2) a policy that effects a division of labour among organs or officers of state – usually, although not necessarily, following; (3) a principle of distribution of power (to keep bastards honest) – within government and/or, in a federal system, between governments; (4) the idea of a government of laws (where officials are subject to law, even if their legal position remains one of legal privilege as with a constitutional monarch); (5) an idea of universal positive legality (where everybody, including officials, is equally subject to law)236.
Outro ponto que requer menção expressa ainda se pensando em
Constituições liberais, diz respeito ao interesse burguês de uma administração que
permitisse segurança para a livre concorrência entre os particulares, bem como a
garantia da sua propriedade contra medidas arbitrárias do “Estado”, que até então,
muitas vezes, se confundia com o próprio monarca, situação esta insustentável à
burguesia ascendente que detinha o poderio econômico e, portanto, buscava
também uma organização “Estatal” que atendesse às suas reais necessidades.
Pode-se dizer que, com o advento do Estado de Direito, sob a égide das
Constituições liberais, o Estado existe para servir ao cidadão, o que permite seu
distanciamento do Estado e da sociedade. Acerca do tema, Hennig Leal explica:
De outro lado, não se pode olvidar que o estado, enquanto criação artificial, um être pensé, é tido, aqui, como um mal necessário que, portanto, não pode interferir demasiadamente nas relações existentes na sociedade, devendo fazê-lo tão somente quando (e se) necessário. O que se tem, pois, em decorrência, é a liberdade dos cidadãos como regra e a autoridade e intervenção do estado como exceção. Daí resulta certa noção de oposição entre a esfera pública e a esfera privada (representada, eminentemente, pelo mercado, um espaço politicamente neutro, baseado numa série de
236 STEWART. Iain. Men of Class: Aristotle, Montesquieu and Dicey on ‘Separation of Powers’ and ‘The Rule of Law., Macquarie Law Journal, Vol. 4, 2004, p. 219-220. Tradução livre: Nossas duas idéias multiplicaram-se. A idéia de separação dos poderes deu lugar a (1) uma suposição de que o governo tem três funções principais: legislação, execução e adjudicação – ou quatro, se fizermos a distinção entre execução interna e externa; (2) uma política que afeita uma divisão de trabalho entre órgãos ou oficiais do estado – normalmente, embora não necessariamente; (3) um princípio de distribuição do poder (para manter os bastardos honestos) – dentro do governo e/ou, em um sistema federal, entre os governos; (4) a idéia de um governo de leis (onde oficiais são sujeitos a lei, ainda que sua posição legal permaneça como um dos privilégios legais, como com um monarca constitucional); (5) uma idéia de legalidade positiva universal (em que todo mundo, inclusive oficiais, é igualmente sujeito a lei).
135
relações entre indivíduos livres e independentes e tido como verdadeira sociedade natural, na qual não deve haver interferências externas- diga-se, estatais). Estado e sociedade apresentam-se, por conseguinte, como dois eixos paralelos e independentes, estando a sociedade, em verdade, colocada como oposta ao Estado237.
Diante deste distanciamento entre Estado e sociedade, no liberalismo, tem-se
a consolidação das conquistas burguesas nas Constituições e um direito voltado
estritamente à garantia da liberdade dos indivíduos, muito embora as Constituições
proclamassem direitos de igualdade, que, neste momento, eram apenas uma
realidade jurídico-formal, quando se esperava que o mercado se auto-regulasse,
promovendo um equilíbrio social com a economia capitalista.
Contudo, uma nova realidade social começou a surgir com a desigualdade
real dos cidadãos, fruto das mutações civilizatórias, decorrentes da evolução social e
tecnológica, que culminou com as revoluções industriais, em que apenas o respeito
e a proteção aos direitos de liberdade não eram mais suficientes. Assevera Leal:
A mão invisível do mercado, não foi suficiente para gerenciar a romântica e ilusória perspectiva de que as relações de produção e a lógica do capital fossem suficientes para dar conta de um desenvolvimento social harmônico e pacífico dos trabalhadores capitalistas. A sociedade Industrial que se forma, enseja demandas sociais diferenciadas- eminentemente urbanas- , bem como a realização de grandes obras e serviços públicos, fazendo com que o Estado se afigure como um grande fornecedor de bens materiais e assistenciais, principalmente visando gerenciar as profundas e tensas relações e conflitos sociais, advindos do modelo de produção e concentração de capital e riqueza, em face do conseqüente processo de marginalização e exclusão social das categorias sociais menos privilegiadas238.
Com esse no novo posicionamento do Estado frente às questões sociais, as
Constituições modernas passaram a incorporar, em seu texto, os direitos sociais,
que visavam amenizar as desigualdades existentes entre os cidadãos dentro do
Estado constitucional, situação esta já diferenciada dos primeiros objetivos
estritamente vinculados à proteção dos direitos individuais, ditos direitos de
liberdade, quando a sociedade manifesta-se pela consagração de novos interesses:
237 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta. Reflexões sobre a legitimidade e os limites da Jurisdição Constitucional na ordem democrática. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007, p. 9. 238 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 68.
136
Na esteira dessa evolução, constitucionalizam-se catálogos mais ou menos amplos de direitos econômicos, sociais e culturais - direitos estes que, contrariadamente aos direitos de liberdade, não são meros poderes de agir, mas poderes de exigir. Os textos constitucionais incorporam, pois, propósitos emancipatórios, tendo como meta a correção ou transformação da ordem social e econômica vigente no sentido de consecução de uma real igualdade, de modo que também a Constituição passa a ser atribuída uma nova função, no sentido de ser um programa de ação para governados e governo. Estado e sociedade sofrem então um processo de aproximação, criando-se de certa forma, uma relação de interdependência entre ambos. Dentro desse novo contexto, a Constituição no Estado social não se configura, pois, um simples registro das relações de poder vigentes no momento constituinte, assumindo antes, uma estrutura programática ao compreender sempre um elenco de “utopia concreta” cuja a realização é dependente da ação política. Tem-se, portanto, na Constituição do estado social, uma Constituição eminentemente política239.
No ápice do Estado Liberal, as Constituições visavam a justificar e a garantir a
separação de poderes e também a firmar juridicamente os direitos de liberdade que
exigiam do Estado apenas abstenção frente aos direitos dos cidadãos, cumprindo
apenas o dever de respeito, motivo pelo qual são caracterizadas como Constituições
notadamente jurídicas. Já as Constituições do Estado Social, são marcadas por
estágios polêmicos e trágicos da história mundial nos séculos XIX e XX, como as
Revoluções Industriais e a I Guerra Mundial. Nesse sentido:
Para que se possam compreender as transformações que operaram por ocasião do chamado constitucionalismo social, é preciso considerar que as Constituições liberais, são ainda, do estado, isto é, elas constituem um documento eminentemente jurídico cuja prerrogativa maior é a imposição de limites do Estado e a garantia dos direitos individuais negativos. Trata-se, porém, mais de uma adoção de medidas corretivas dos efeitos negativos de um sistema geralmente considerado como um auto-regulado (o mercado) do que de uma verdadeira ruptura na estrutura política, social e econômica240.
Outro ponto de extrema relevância, conforme referido ainda no primeiro
capítulo deste estudo, é a idéia de garantir os direitos fundamentais de liberdade e
de propriedade à burguesia dominante, período histórico, em que a democracia tinha
muito mais o sentido de justificar e legitimar este novo poder. Neste contexto, a
teoria do Poder Constituinte exsurge mais como modo de justificação e de
239 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta. Reflexões sobre a legitimidade e os limites da Jurisdição Constitucional na ordem democrática. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007, p. 33. 240 Ibidem, p. 31-32.
137
legitimação do poder, do que propriamente com intuito de propiciar a todos o
exercício da cidadania e a participação da sociedade na vida política do Estado.
Antes pelo contrário, o direito a voto, como se sabe, ainda estava restrito a uma
minoria que detinha a propriedade, excluindo mulheres e tantos outros que, nesta
época, sequer eram considerados cidadãos.
O essencial da luta burguesa era voltado contra o arbítrio nas relações de
poderes, traduzida no objetivo de subordinar quem tivesse o poder de mando, a
administração, o comando da lei. Constituída a separação Estado/sociedade,
garantida a legalidade dos atos da Administração, estaria assegurada a legalidade
de todos os seus atos, e, assegurar os direitos dos “cidadãos”. À burguesia não
interessava tanto controlar a execução de um programa político - que nem mesmo
existia em termos de sociedade, pois resumia-se à garantia de condições de
segurança ao livre desenvolvimento da concorrência – mas, sim, assegurar os
direitos individuais de liberdade e de propriedade, que não deveriam ser violados
arbitrariamente. Através do império da lei e da separação de poderes, tais direitos
estariam assegurados e protegidos no Estado de Direito241.
Assim, Kaufamann alerta quanto a impossibilidade do distanciamento da lei
com a dinâmica social, do contexto histórico que está atralada:
El iusnaturalismo racionalista que impulsa la codificación se tradujo en un planteamiento legalista, asumido luego por el positivismo jurídico, que reconocía escasa relevancia a la figura del juez. Arquetípica al respecto acabará siendo la matáfora de Montesquieu, que lo presenta como “la boca que pronuncia la palabra de la ley”. Su tarefa colaboraría al el equilibrio entre los poderes del Estado más bien por vía de inhibición, al ser Judicial un poder en certa medida nulo. Este punto de partida se verá sometido a discusión por partida doble: por inevitable destanciamiento histórico entre la ley y la dinámica realidade social a la que debe aplicarse, y por complejo destranãmiento de esa “palabra” que habría de pronunciar o juez242.
A separação dos poderes, contudo, ganha novos contornos com a realidade
dos Estados Democráticos. A função de assegurar a democracia é essencial à
241 NOVAIS, Jorge Reis. Conttibuto para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006. p. 94-95. 242 KAUFMANN, Arthur. Hermenéutica y Derecho. Coleción filosofia, derecho e sociedad. Tradução de Andrés Ollero y José Antonio Santos. Granada: Comares, 2007. p. 2-3.
138
compreensão que, da mesma forma, que no Estado liberal, a separação de poderes
surge para ser um instrumento de garantia dos direitos fundamentais - bem
presentes a esta época a liberdade e a propriedade: hoje, em nome dessa mesma
concretização, mas por direitos como igualdade material, dignidade da pessoa
humana e justiça social, o contrário mostra-se imprescindível. Assim, para poder
concretizar os direitos fundamentais, faz-se necessário que flexibilize243 a teoria,
para dar máxima realização a estes direitos consagrados.
Em suma, realizar um direito fundamental, como o de propriedade, no período
liberal e realizar direitos fundamentais que envolvam a dignidade da pessoa
humana, implica em diferentes tarefas pelos poderes instituídos, até porque,
atualmente, relê-se o conceito de propriedade através de sua função social, para
servir ao interesse público e à própria eficácia irradiante dos direitos fundamentais. A
rigor, o formalismo envolto na concretização dos direitos no Estado liberal é
absolutamente diferente do materialismo e do substancialismo que se requer para a
realização de determinados direitos característicos do Estado Democrático. Assim,
para contextos distintos, necessita-se de soluções distintas, pois se pode manter e
recepcionar determinados conceitos, no entanto, exige-se, em relação a eles, um
novo olhar, uma nova perspectiva, pois somente assim ter-se-á a chamada
adequação social da teoria do Direito: o Direito acompanhando os fatos e a
necessidade social que se apresenta.
3.2 Uma leitura de Montesquieu nos dias de hoje: so b um enfoque crítico na
tentativa de adequação da sua teoria ao novo contex to jurídico, social e
político
Em se tratando da teoria da separação de poderes, a referência que
imediatamente vem à tona é a de seu grande sistematizador, Montesquieu. O
desafio que se propõe, aqui, contudo, o de pensar na separação de poderes por ele
243 O sentido que se propõe a flexibilização é de não levar a uma aplicação literal da teoria, no sentido de uma rígida separação das funções atribuídas a cada poder, não significando, por sua vez, que qualquer ingerência seja possível. Desta forma, conceitos como harmonia e independência, podem assumir uma conotação de cooperação e respeito mútuo, na tentativa de máxima concretização dos preceitos constitucionais.
139
proposta e consagrada em nosso contexto constitucional, considerando-se as
peculiaridades do que a sociedade enfrenta hoje e os desafios e grandes pontos
críticos de sua teoria, que, permanece sendo aplicada, ainda hoje, após mais de três
séculos da sua concepção:
La teoría, añade el mismo autor, tuvo grandísimo éxito, y perdura aún hoy en la gran mayoría de los Estados modernos, lo cual se explica en cierto modo porque, con las debidas cautelas, resulta sin duda un presupuesto insustituíble para la estructura y funcionamiento de un Estado que aspire a ser realmente democrático. Aunque, desde luego, a juicio de él, convendrá señalar, junto a las ventajas, algunos posibles correctivos; las ventajas de la teoría son estas dos: en primer lugar, que la teoría garantiza y tutela en líneas generales los derechos ciudadanos que, de este modo, quedan sólidamente basados en las leyes vigentes frente a posibles desvaríos de los Poderes ejecutivo y judicial; y además, en segundo término, nos proporciona un criterio orientador con respecto a la competencia institucional de los órganos de cada uno de los tres Poderes en los casos de duda que por acaso pudieran presentarse244.
Em um primeiro momento, retoma-se a relevância que Monstequieu atribui à
separação de poderes como maximizadora da tão almejada liberdade, em pleno
Século XVII, liberdade esta pensada em conformidade com os moldes da
organização britânica, realidade que Montesquieu fez questão de referir em um
capítulo próprio dedicado à Constituição Inglesa.
The immense popularity of the SPIRIT OF THE LAWS resulted from causes both extrinsic and intrinsic. At the extrinsic we have hinted. Sufficient alone was the gathered force of the Renaissance vitalized by the rise of liberalism and the Romantic Movement to open wide the gates to new and appealing political doctrines. Intrinsically, the book held a challenge worthy of the ripening times. New concepts of liberty and of government were everywhere. The substance of the new earth had been created but it was without form and void. Montesquieu brought a plan. He separated the legislative from the executive waters and between them placed the rock of the judiciary. He established jurisdictions and surveyed boundaries for the new state245.
244 SERRANO. Nicolas Perez. El Principio de La Separación de Poderes. Santiago do Chile: Ius Publicum, 1990, p. 119. 245 BRAND. James T. Montesquieu and The Separation of Powers. Oregon Law Review. Vol. XII, April, 1933, Number3, p. 179. Tradução livre: A imensa popularidade de O Espírito das Leis resultou tanto de causas intrínsecas, como extrínsecas. Sobre as causas extrínsecas, já discorremos. Suficiente por si só foi a força reunida do Renascimento fortificado pelo aumento do liberalismo e do Movimento Romântico para abrir amplamente os portões para novas e atraentes doutrinas políticas. Intrinsecamente, o livro tinha um desafio à altura dos tempos que estavam amadurecendo. Novas concepções de liberdade e de governo estavam em toda a parte. A essência de uma nova terra tinha sido criada, mas foi sem forma e nula. Montesquieu trouxe um plano. Ele separou Legislativo das águas do Executivo, e entre eles colocou a pedra do Judiciário. Ele estabeleceu jurisdição e examinou os limites para o estado novo.
140
Desta forma, o referido autor notou a importância de obstaculizar o exercício
do poder, ou seja, quanto mais obstáculos o detentor encontrar no caminho no
exercício do poder que lhe é outorgado, menor será a probabilidade de este cometer
abusos, de exercê-lo de forma desvirtuada e, conseqüentemente, maior será a
chance de ser exercido em conformidade com a Constituição, concretizando a
liberdade246.
Ao pensar na realidade inglesa para maximizar a liberdade, Montesquieu
distribuiu o Poder Legislativo e Executivo entre três órgãos chaves do governo
inglês, composto pela Câmara dos Lordes, Câmara dos Comuns e o Rei. A
preocupação maior era notoriamente não deixar o poder em uma única mão, tanto
que, na verdade, o doutrinador colocou dois poderes (Executivo e Legislativo) em
três mãos, como uma tentativa para a solução do problema da propensão ao abuso
de poder247.
A preocupação com a liberdade possui, aqui, uma conotação para além do
viés de direito fundamental; indiscutivelmente, ela consiste numa garantia de
acomodação de funções, para atender à situação política da Inglaterra, até mesmo
porque, se a crítica com relação à ascensão de um ou outro poder fosse relacionada
a um atentado contra a liberdade, poder-se-ia argumentar que a liberdade, hoje, tem
sido bandeira para a própria ascensão do Poder Judiciário, visto que, pensando em
concretizá-la materialmente, se reconhece a necessidade de políticas públicas,
246 CLAUS, Laurence. Montesquieu´s mistakes and the true meaning of Separation. Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 25, Nº 3, 2005. p. 425. Texto original: According to Montesquieu, the purpose of Britain’s apportionment of power among multiple actors was to maximize liberty. The more obstacles that lie in the path of any actor’s exercise of power, the less likely power is to be exercised, and a fortiori the less likely power is to be exercised badly. The more minds that must concur in the constitutionality and virtue of a proposed exercise of power, the more likely that exercise is to be constitutional and virtuous. Apportioning power may promote good faith in its exercise, by resolving conflicts of interest. Apportioning power may prevent any actor from conclusively determining the reach of her own powers. 247 STEWART, Iain. Men of Class: Aristotle, Montesquieu and Dicey on ‘Separation of Powers’ and ‘The Rule of Law’. Macquarie Law Journal, Vol. 4, 2004, p. 198. Texto original: Next, Montesquieu distributes both the legislative power and the executive power among all of the three key organs of English government: the King, the House of Lords and the House of Commons. He adopts the traditional English notion of the ‘mixed and balanced constitution’. More specifically, his preferred position is essentially that of the opposition and Jacobite leader, Bolingbroke. Montesquieu’s concern is not that the three powers must each be in separate pairs of hands but that no two of them should be placed in a single pair of hands. He achieves this, and thinks that England achieves it, by placing both of two powers in three pairs of hands. It is a solution to the problem of the tendency of power to corrupt. If the possession of power always tends to encourage bastardry, one must get the bastards to keep each other honest.
141
como, por exemplo, investimentos em segurança, que se exige do Estado. Mais do
que apenas respeito e abstenção, exigem-se prestações positivas e vontade política
de execução. Frente a esta tarefa, muitas vezes não cumprida pelo Poder Executivo
no redirecionamento de verbas públicas, acaba o Judiciário sendo chamado à
proteção da liberdade.
A rigor, não parece gritar aos olhos, a preocupação de Montesquieu com
relação à forma de administrar este poder; tratava-se de garantir a liberdade, a
propriedade, questões estas não tão complexas em seu conteúdo jurídico, passível
de determinação. Quer dizer, pensando-se nos direitos que a separação de poderes
visava a assegurar, considerando a própria submissão do Estado ao império da lei, e
a importância que neste período histórico assumiu o princípio da legalidade, poder-
se-ia entender que, na idéia de Montesquieu, os poderes por ele visualizados
seguiriam esta mesma lógica do respeito a estrita legalidade, a vontade do
legislador, sem maiores questionamentos.
Este é um dos motivos pelos quais muitos dos críticos desta doutrina tratam a
separação de poderes como uma forma de solução de um conflito político, pois ela
não foi pensada considerando os possíveis problemas domésticos que surgiriam no
exercício de suas funções, nem mesmo a complexidade das relações que se
apresentariam internamente, além dos que poderiam ter interesse comum entre os
três poderes:
Montesquieu did not acknowledge that English courts might have to resolve disputes about what the law meant. He noted that under monarchies, laws might not be explicit, and then judges might have to ‘investigate their spirit’. But the ‘nearer a government approaches towards a republic, the more the manner of judging becomes settled and fixed’. The British system of government was well en route from monarchy, ‘in which a single person governs by fixed and established laws’ to republic, ‘in which the body, or only a part of the people, is possessed of the supreme power’248.
248 CLAUS, Laurence. Montesquieu´s Mistakes and the True Meaning of Separation, Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 25, Nº 3 (2005), p. 422. Tradução livre: Montesquieu não reconheceu que as cortes inglesas teriam que resolver litígios sobre o que a lei significava. Ele observou que, durante as monarquias, as leis poderiam não ser explícitas e, então, os juízes teriam de "investigar sua moral". Mas “quanto mais um governo se aproxima de uma república, mais a forma de julgar se tornam fixos e determinados". O sistema britânico de governo estava transitando do caminho da monarquia, "na qual uma única pessoa governa por leis fixas e estabelecidas", para o caminho da república, "na qual um grupo, ou apenas uma parte do povo, possui o poder supremo".
142
O termo “separação”, doutrinariamente, já propiciou, por sua vez, palco a
vários embates, na tentativa de se compreender qual o sentido ou a intenção
empregada por Montesquieu ao fazer uso desta expressão. Poder-se-ia
compreendê-la como uma tentativa de desmembramento do poder Estatal, na forma
de três poderes, visando o seu controle mútuo, a chamada separação orgânica; ou,
ainda, no sentido de separar as funções estatais, a chamada divisão funcional,
objetivando a manter a unidade e coibir a concentração de poder nas mãos de um
único, pois a experiência histórica demonstra que o homem, diante desta
possibilidade, tende a abusar do mesmo. Tentando esclarecer possíveis confusões
acerca da interpretação deste termo na obra de Montesquieu, cabe referir:
En efecto, Montesquieu no empleó nunca la expresión “división de poderes”, utilizando tan sólo en una ocasión, y en forma exclusivamente negativa, el verbo “separar”. Es importante subrayar que en esa única ocasión se refiere concretamente, además, “al poder de juzgar en relación con los otros dos”, esto es, sin concernir a éstos. Aunque luego volveremos sobre el asunto, de momento y en cualquier caso, por tanto, puede afirmarse que la expresión “separación de poderes” traiciona el pensamiento de Montesquieu, así como que sería más exacto decir “no confusión” de los mismos, puesto que era esto lo que verdaderamente le preocupaba. Y es que Montesquieu sólo rechazó la confusión total de todos o de dos de los tres órganos que ostentan los tres poderes, en el sentido de que no deben estar integrados por los mismos elementos. En especial, entendía también que los titulares de la función judicial habían de ser excluidos del poder político supremo, manteniéndose así independientes del Legislativo y del ejecutivo; mientras que éstos, por su parte, debían contrapesarse, balancearse y contrabalancearse entre sí para que les resultase necesario ponerse de acuerdo a fin de que el veto de uno no inmovilizase al otro.(...) Montesquieu trataba de crear un “equilibrio institucional”, que a la vez consistiera en un “equilibrio social”. La concepción de Montesquieu, pues, no supone una sociedad política artificial, compuesta de tres entidades distintas (legislativa, ejecutiva y judicial), sino diversos elementos o fuerzas reales, sociológica e históricamente imbricadas en el seno de un todo unitario (Estado o nación), que regulen sus intereses comunes o separados conforme un postulado de derecho249.
Isso posto, pode-se asseverar que a interpretação doutrinária imposta à
sistematização feita por Montesquieu, é, por sua vez, irresponsável, para não se
dizer absurda, quando atribui à sua obra uma tentativa de “compartimentalização”
que levaria a algo semelhante a “três governos”. Também, não deve prosperar a
interpretação de que, segundo Monstequieu, estes órgãos, no exercício de suas
incumbências, não pudessem exercer funções de outra natureza, embora descreva
249 TORRES, Miguel Ayuso. El poder e sus Limites. Madrid: Estudius Universitarios, 1997. p. 48.
143
algumas funções que poderíamos chamar de “típicas” (cabe, por exemplo, ao
Legislativo, legislar). O próprio Montesquieu deu exemplos, em sua obra, a partir dos
quais trata claramente desta possível ingerência de um poder em exercer, em certos
casos, a função do outro. É o que ocorre quando o Executivo, ao regulamentar às
leis e encaminhar projetos, pratica a função Legislativa.
Necessário ter-se presente, neste sentido, a intenção do autor em denunciar a
concentração de poderes, pois, diante deste fato, o risco à democracia seria
iminente e inevitável. Essas inversões teóricas retiram a verdadeira preocupação de
sua teoria, em que o responsável por fazer a lei não fosse também responsável pela
sua execução, bem como o julgamento, que em caso de infringência, não ficasse
nem a cargo de quem fez, nem a cargo de quem deveria tê-la executado
corretamente250.
Considerando os argumentos alhures, se Montesquieu considerava os
diversos elementos e forças reais, históricas, filosóficas e sociológicas presentes em
um Estado Unitário, sabia ele da dificuldade de coordenação entre estas três
funções, que, diante de elementos fáticos, teriam afetações em seus campos de
atuação. Tal situação justifica a importância atribuída ao sistema de freios e de
contrapesos, para que, em caso de abuso, um poder pudesse vetar a ação do outro.
No entanto, tudo leva a crer que, quando se referia à harmonia que deveria existir
entre os mesmos, teria esta uma conotação de cooperação, pois o controle
recíproco entre eles seria uma condição necessária à própria manutenção das três
funções, do Estado de Direito. Então, sequer Montesquieu, em tempos de afirmação
da liberdade, como estandarte do liberalismo, vislumbrou uma separação radical, em
que os poderes se limitam estritamente na sua função típica.
Segundo Montesquieu, deveriam os Poderes estar em repouso, em
inatividade. Entretanto, os fatos estão sempre em movimento, sendo eles
permanentemente obrigados a ter ação. Por esta mesma razão é que, por si só, vão
consertando-se, acomodando-se entre si. Portanto, no caso da Constituição Inglesa,
de 1689, e da Constituição francesa de 1891, não haveria como se tratar de uma
250 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário. Crise, certos e desacertos. Tradução de Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 84-85.
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separação estratificada destes poderes, visto que a dinamicidade social as obrigaria
a produzir uma combinação equilibrada que permitisse a acomodação dos fatos,
sem que recaíssem em ditames despóticos de um ou de outro poder, pois ambos
além de necessitarem uns dos outros para a concretização de direitos,
necessitariam uns dos outros para sua própria sobrevivência, face aos regimes
democráticos251.
Não obstante, como já referido no primeiro capítulo deste estudo,
Montesquieu tratou, em sua obra, de duas grandes funções, a de legislar e a de
executar e, dentro da última, a função de julgar, que, diante da máxima da igualdade
e da legalidade, era tida como meramente mecânica, de pronunciar a letra da lei
sem maiores questionamentos acerca de que pronunciar, o que implicaria
interpretar, sendo que, a interpretação, por si só, traz um aparato de elementos
subjetivos.
Outra crítica com relação à sua teoria, baseia-se no argumento de que a
separação por ele proposta não seria, na realidade, uma função tripartite, mas sim
uma função bipartite: “[...] cuando Montesquieu utiliza el término poder para
denominar la Justicia no lo está utilizando en el mismo sentido que referido al
Legislativo o ejecutivo [...] existe en su obra un esquema tripartito de poderes sino
más bien bipartito”252.
De outra banda, sustenta-se a tese de que teria dividido as três funções
estatais em dois grandes poderes, e que exerceriam a função de executar (que
englobaria a função de julgar) e a função de legislar. Muito embora, em sua obra,
não tenha referido expressamente a figura do “poder judicial ou Poder Judiciário”,
deixou claro o reconhecimento deste, quando explicou detalhadamente em que
consistiria cada função estatal253, reconhecendo a função de julgar como uma
função autônoma, embora não criativa, pois os juízes, segundo sua concepção,
seriam apenas a “boca da Lei”:
251 PASCUAL. Cristina García. Legitimidad democrática y poder judicial. Madrid: Estudios Universitarios: 1997, p. 51. 252 Ibidem, p. 50. 253 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 200.
145
Es evidente que el filósofo inglés no considera a la Administración de Justicia un poder autónomo. Muy al contrario los órganos judiciales se incluyen en el poder legilativo en la medida en que no son otra cosa que concreción de la ley o especificación del Derecho. Por ello es necesario que el poder soberano establezca jueces imparciales encargados de resolver los litigios mediante las leyes, jueces señalados y conocidos que apliquen las leyes <<fijas y promulgadas>>. [...] <<Montesquieu distingue ciertamente las tres funciones judicial, legislativa y ejecutiva, pero a lo largo de su análisis se esfuerza, insistiendo sobre las funciones específicas de cada órgano, en subrayar la estrecha colaboración que se establece entre las mismas.>> Colaboración frente a separación que nos permite, ya, sostener que Montesquieu no defendía una teoría de separación de poderes como se ha atribuido y aún hoy en día se le atribuye en tantas obras de teoría política o de Derecho constitucional254.
Mesmo reconhecendo a função de julgar, Montesquieu, de certa forma, deu
outra entonação à função judicial do que às demais de executar e de legislar, estas
muito mais autônomas e criativas do que aquela, cuja atuação deveria se dar de
forma mecanicista, seguindo rigorosamente o que estava na lei, eliminando-se
qualquer hipótese de interpretação criativa do direito. A tão só idéia de que o juiz
poderia valer-se de seus próprios conceitos ou de outras formas de interpretação se
não a exegética, certamente não foi uma hipótese cogitada por Montesquieu, que viu
nesta função apenas um órgão que prolataria a lei já elaborada e definida pelo
Legislativo:
La segunda excepción hace referencia al problema de la interpretación de la ley. Montesquieu entiende que un juez que no interpreta (porque no debe), que se aferra a la literalidad de la ley aun siendo ésta garantía única y suficiente de justicia, puede pecar de riguroso y paradójicamente de injusto. Ante el dilema de un juez paralizado por los propios límites de su función que no le permiten ni siquiera buscar la llamada voluntas legislatoris y una ley cuya literalidad es fuente de desigualdades no existe para Montesquieu otra solución que permitir al Poder Legislativo constituirse en tribunal. En palabras del pensador francés, <<podría ocurrir que la ley, que es ciega y clarividente, a la vez fuera, en ciertos casos, demasiado rigurosa>>255.
Ademais, não se pode olvidar, conforme alhures referido, que fortes indícios
de sua obra demonstram, que ele reconhece a necessidade da função, da tarefa
individual e aplicadora da lei, mas não aborda a necessidade de um Judiciário ou de
magistrados, sinalizando vaga idéia de que poderia ser outra pessoa a desempenhar
tal função. Aliás, no capítulo sexto ele bem demonstra sua preocupação com a
254 PASCUAL. Cristina García. Legitimidad democrática y poder judicial. Estudios Universitarios. Valencia: Valenciana: 1997. p. 46-47 255 Ibidem, p. 63-64.
146
função de julgar, extremamente voltada ao júri, à execução da lei criminal. As
hipóteses modernas de “conflito de direitos fundamentais” ou de “colisão entre
princípios” sequer eram cogitadas em face da realidade histórico-social:
Thus, although Montesquieu, unlike Locke, did list the judiciary as one of the “three powers,” coming after the legislative and the executive powers, he also made it clear, however, that the third branch, in a real way, is no “power” at all: “Of the three powers of which we have spoken, the judicial is, in a sense, null.” Whatever the actual influence of Montesquieu on the French Revolution, this idea was to become a central part of its ideology. The Revolution proclaimed as one of its first principles the absolute supremacy of statutory law, the law enacted by the corps législatif as the representatives of the people, while demoting the judiciary to what was seen as the purely mechanical task of applying that law to concrete cases256
Note-se que naquele período histórico, após décadas em que imperou o
sistema absolutista, em face dos arbítrios cometidos pelo Rei (como elaborador e
executor das leis), bem como, pela grande desconfiança para com a função (já
referida em Bodin) dos magistrados por terem sido braço direito e executores dos
mandos do Rei, observa-se que a confiabilidade e a esperança da mantença da
liberdade, da cessação dos abusos e arbítrios contra os direitos individuais,
concentravam-se na figura do Legislativo.
O Poder legislativo passou a ser o representante do “povo”, composto pela
maioria (proprietários, nobreza a este época), cuja função era a criação de leis,
atendendo a institutos decisivos neste período para afirmação dos ideais burgueses:
como anterioridade da lei, a previsibilidade. Dessa forma, todos estariam submetidos
à vontade da lei, e, conseqüentemente, os direitos individuais teriam sua garantia
jurídica contra os arbítrios dos governantes, na medida em que foi separado a figura
daquele que faz, daquele que executa a lei.
256 CAPELETTI. Mauro. Repudiating Montesquieu? The expansion and legitimacy of “constitutional justice”. Catholic University Law Review, Vol. 35, 1985, p. 12-14. Tradução de Assim, apesar de Montesquieu, ao contrário de Locke, ter listado o judiciário como um dos "três poderes", vindo depois do legislativo e do executivo, ele também deixou claro, porém, que o terceiro ramo, de uma forma real, não é "poder" de forma alguma: "Dos três poderes de que falamos, o judicial é, de certa maneira, nulo. "Seja qual for a real influência de Montesquieu sobre a Revolução Francesa, esta idéia foi a de se tornar uma parte central de sua ideologia”. A Revolução proclamou como um dos seus primeiros princípios a supremacia absoluta do direito estatutário, a lei promulgada pelo corpo Legislativo como os representantes do povo, ao mesmo tempo em que reduzia o poder judiciário para aquilo que era visto como uma puramente mecânica tarefa de aplicar aquela lei à casos concretos.
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São salutares as considerações de Capeletti no tocante à importância
atribuída ao papel do Legislativo:
Our century, however, was to teach us yet another lesson: that the Rousseauian idea of the infallibility of parliamentary law is but another illusion, for even the legislative, not only the administrative branch might abuse its power; that this possibility of legislative abuse has grown tremendously with the historical growth of legislation in the modern state; also, that legislatures might be made subservient to uncontrolled political power, and that legislative and majoritarian tyrannies can be no less oppressive than executive tyranny. Suffice it no remember Fascist legislation depriving the Jews and other minorities of their most basic rights. This is why Austria and Italy and Germany, surfacing from the moral and material ruins of political perversion, dictatorship, and defeat, soon turned to constitutional justice, as previously explained, to create a new kind of control to be added to the more traditional one of administrative justice. In so doing, they attempted to limit and check the power of the legislature and legislative majorities, within the scheme of the new constitutional norm made binding by constitutional adjudication. The historical influence of French ideas, however, can also help us understand why in order to do so all these countries felt it necessary to follow a path similar to that of justice administrative: they all created a new type of organ of control – almost as a pendant of the nineteenth-century Conseil d’Etat and its German and Italian analogues, the judicial organs of control of administrative action257.
No que concerne à confiabilidade atribuída ao Poder Legislativo, para gabo de
seus defensores, certos argumentos merecem ser trazidos à baila, a fim de serem
repensados. Além da amarga experiência com a monarquia durante séculos, cabe
frisar que, pensando no sistema Inglês relatado por Montesquieu, tanto a classe
minoritária - dos detentores do poderio econômico -, representada pela Câmara dos
Lordes, quanto a classe majoritária (demais componentes da sociedade),
257 CAPELETTI, Mauro. Repudiating Montesquieu? The expansion and legitimacy of “constitutional justice”. Catholic University Law Review, Vol. 35, 1985, p. 16-17. Tradução de Tradução de O nosso século, porém, ainda estava por nos ensinar outra lição: que aquela idéia de Rousseau sobre a infalibilidade da lei parlamentar não é mais do outra ilusão, pois até mesmo o legislativo, e não só o ramo administrativo, poderia abusar de seu poder; que a possibilidade de abuso do legislativo havia aumentado consideravelmente com o crescimento histórico da legislação no Estado moderno; também que, legisladores poderiam ser transformados em subservientes ao poder político sem controle; e que o legislativo e tiranias majoritárias podem ser não menos opressivas que tiranias executivas. Basta lembrar que a legislação fascista privaria os judeus e outras minorias dos seus direitos mais elementares. E é por isso que Áustria, Itália e Alemanha, emergindo da ruína moral e material, da perversão política, ditatorial e derrotas, logo se tornaram justiças constitucionais, como explicado anteriormente, para criar um novo tipo de controle para ser adicionado a mais tradicional justiça administrativa. Dessa forma, eles tentaram limitar e controlar o poder da legislatura e das maiorias legislativas, no âmbito da nova norma constitucional feita com a ajuda da adjudicação constitucional. A influência histórica das idéias francesas, contudo, pode também nos ajudar a compreender porque, para poder isso, todos estes países sentiram a necessidade de seguir um caminho semelhante ao da justiça administrativa: eles todos criaram um novo tipo de órgão de controle - quase como um pingente do século XIX- o Conselho de Estado e seus análogos alemão e italiano, os órgãos judiciais de controle da ação administrativa.
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representada pela Câmara dos Comuns, poderiam ter seu poder de voto e de veto,
ou seja, havia esta distinção entre os integrantes. Contudo, todos, ao menos
teoricamente, tinham sua representação definida no Parlamento.
O novo século, todavia, inaugura uma nova realidade em se tratando de
poder político a nível mundial:
As novas realidades saltam a vista: as primeiras décadas do século XX deram o golpe de misericórdia nas potências políticos-sociais tradicionais: as estruturas monárquico-aristrocráticas perderam definitivamente significado político, enquanto poderes independentes do poder democrático. A democracia parlamentar triunfou na Europa desse tempo, ainda que destinada, nalguns casos, a sofrer mais ou menos longas interrupções de sentido autoritário e totalitário. (...) Se as potências político-socias tradicionais desapareceram, nem por isso faltam na moderna sociedade de massas aparentes sucedâneos delas: grupos de interesses de vários tipos, por um lado, e partidos políticos, por outro. Trata-se então de saber, se para efeitos do controle e moderação do poder estadual, a separação funcional dos poderes deve assentar directamente na separação social que estas novas entidades de alguma maneira hão de formar, por notoriamente serem portadoras de interesses divergentes e constituírem, pelo menos, efetivas potências sociais258.
Ainda, nesta seara argumentativa:
el designio de Montesquieu de que el propio poder político no se ejerza de modo demasiado unilateral, sirviendo sólo a aquellos intereses encarnados en cada uno de los poderes o que realizaran únicamente las ideas de una determinada facción de la sociedad. (...) Montesquieu trataba de crear un “equilibrio institucional”, que a la vez consistiera en un “equilibrio social”. La concepción de Montesquieu, pues, no supone una sociedad política artificial, compuesta de tres entidades distintas (legislativa, ejecutiva y judicial), sino diversos elementos o fuerzas reales, sociológica e históricamente imbricadas en el seno de un todo unitario (Estado o nación), que regulen sus intereses comunes o separados conforme un postulado de derecho259.
Dessa forma, a balança dos poderes, tal como prevista por Montesquieu,
tanto dentro como entre os vários órgãos estatais, constituída pelos titulares do
poder político, não é mais possível nos dias de hoje em face do princípio
democrático, pois, além de obrigar os representantes a considerarem diretamente a
vontade do povo na sua tomada de decisão, ainda estreita esta representação do
poder democrático, pois se vê absolutamente vinculada à concretização dos direitos
258 PIÇARRA, Nunes. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional - Um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989. p. 230-231. 259 TORRES, Miguel Ayuso. El poder e sus Limites. Madrid: Estudius Universitarios, 1997. p. 54
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fundamentais. Tais órgãos de poder, mais do que controlar sua tomada de decisões,
devem ter suas atenções voltadas tanto ao tipo de representação quanto a
realização dos anseios populares, devendo ter a clareza quanto a sua limitação,
estritamente vinculada aos direitos fundamentais, o que faz com que o próprio
controle ganhe novos contornos.
Por último, e não menos importante tópico da teoria de Montesquieu que aqui
se pretende contrapor à realidade de hoje, é a liberdade que sempre esteve no
âmago das suas aspirações. A importância atribuída a liberdade na obra de
Montesquieu é a mesma que, analogicamente e sistematicamente, poder-se-ia
fazer, hoje, com relação à dignidade da pessoa humana.
A dignidade, para além de uma conceituação extremamente imprecisa (o que
indiscutivelmente necessitaria de um Judiciário com um papel mais significativo do
que apenas o de “boca da Lei”), é por deveras desrespeitada, possuindo uma
realidade muito distante das previsões constantes no ordenamento jurídico e sua
efetiva concretização material.
A mesma Constituição que lhe atribui normatividade e previsibilidade,
necessita de intérpretes, de uma sociedade que lhe propicie a devida eficácia. Neste
acalorado debate, no qual cabe definir o conteúdo dos chamados “conceitos
jurídicos indeterminados” ou concretizar as normas de caráter valorativo e
subjetivista, levanta-se a possibilidade de um Judiciário mais ativo e comprometido
com tais necessidades sociais, sem que, atuando de forma democrática, venha a
ferir mortalmente o princípio da separação de poderes.
150
3.3 Repensando os termos de “independência e harmon ia”, visando a uma
complementação funcional em face da vinculação dos poderes aos direitos
fundamentais
Por mais paradoxal que seja a realidade retratada hoje nos Estados
democráticos, em se comparando com a realidade do Estado liberal, a separação de
poderes, enquanto princípio constitucional, ainda é um dos princípios mais
importantes para a manutenção e concretização de direitos nos Estados
democráticos. No entanto, para continuar atingindo os seus objetivos, tanto a
garantia dos direitos fundamentais como a garantia do princípio democrático,
necessita-se, em pleno Século XXI, de uma releitura dos tradicionais conceitos como
“independência e harmonia”, para que não sejam fadados a se tornarem conceitos
ultrapassados, quiçá até mesmo um empecilho à concretização dos direitos
fundamentais.
Em suma, é o velho artigo da doutrina liberal clássica que ainda perdura em nossos dias, naturalmente escoimado dos vícios e das incompreensões derivadas da extrema rigidez de sua aplicação nos ordenamentos constitucionais do liberalismo. Sua acolhida, por uma das Constituições contemporâneas do Estado social, revela, portanto, irretorquivelmente, a legitimidade dessa conclusão: onde houver Estado de Direito ( e Estado de Direito é sempre o Estado onde impera a limitação de poderes), haverá, de necessidade, como um dos eixos da ordem constitucional, aquele princípio, a que tanto se ligaram os nomes de Locke e Montesquieu.Trata-se de um princípio invariavelmente sujeito a renascer das ruínas de todas as reformas políticas e jurídicas e institucionais que intentam bani-lo do novo Direito Constitucional construído por obra das idéias sociais do século XX. Nem poderia, aliás, ser diferente, desde que a primeira Constituição do Estado social pôs nos alicerces da divisão de poderes a proteção suprema dos próprios direitos fundamentais260.
O constitucionalismo democrático tem uma dívida eterna de gratidão para
com a teoria da separação de poderes, pois teve um crucial papel histórico na
consagração dos ideais de liberdade e democracia, sendo a grande porta para a
implementação do sentimento valorativo referente à garantia dos direitos
fundamentais individuais. No entanto, tomando-se a separação de poderes como um
260 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 21 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 557.
151
dogma intocável261, esta constituir-se-á em empecilho, uma obstrução, um possível
retardamento do processo constitucional, motivo pelo qual necessita ser reavaliada
em conformidade com a evolução político social262.
Com o intuito de não relegar sua importância histórica e lhe atribuir o devido
respeito e consideração à luz do constitucionalismo democrático, a leitura da
separação de poderes exige o reconhecimento da pluralidade teórica e fática da
sociedade, na qual a aclamação não é apenas por direitos individuais e coletivos,
mas por direitos difusos e transindividuais, de presentes e futuras gerações, que
estendam sua preocupação para além do indivíduo, da coletividade, voltando-se
para a humanidade como um todo.
Frente a tal constatação, este princípio permeia três diferentes dimensões de
direitos263, cuja solução passa distante dos tradicionais manuais de direito ou
dicionários jurídicos em que se aplicava o método tradicional de Savigny e o da
subsunção, pois incidem conceitos amplos, indeterminados, com um grau de
abstração propositalmente existente para exigir do intérprete melhor adequação,
acomodação, dos direitos fundamentais e princípios conflitantes.
Caso a separação de poderes não busque um novo equilíbrio político, uma
nova acomodação a esquemas constitucionais em que os objetivos não mais se
limitem a direitos individuais, conforme o teor clássico de sua concepção inicial,
estará condenada a uma gradual superação. Assim, “essa oscilação política para a
igualdade, que em nosso século é, sobretudo, oscilação de cunho social e
econômico, revela-se uma antinomia perante a liberdade clássica, que o Século 261 Intocável, no sentido de que a separação de poderes constitui cláusula pétrea em nossa Carta Magna, significando, dizer que, jamais poderá ser abolida do nosso estado democrático, ao menos, enquanto viger a Constituição de 1988. 262 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social. 7. edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 64. 263 Há doutrinas que consideram a existência de direitos de quarta e quinta dimensão, como direitos de bioética e realidade virtual, como há também os que sustentam como um direito de quarta dimensão a democracia e o pluralismo político . É pacífico na doutrina pátria e alienígena o reconhecimento das três dimensões de direitos. Contudo, o doutrinador Ingo Sarlet compartilha com Paulo Bonavides o reconhecimento do direito de quarta dimensão, como sendo de democracia, direito à informação e pluralismo político. Para um maior conhecimento do assunto, ler: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. p. 59. Há por sua vez, também entendimento doutrinário no sentido de reconhecer como quarta e quinta dimensão de direitos, os direitos referentes bioética e realidade virtual. Para uma leitura mais aprofundada, ver: OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Teoria Jurídica e Novos Direitos. São Paulo: Lúmen Júris, 2000.
152
XVIII conheceu”264. A Constituição abrange novas áreas de realidade social, quando
as questões notadamente de teor econômico passam a um plano secundário, pois
deixam de corresponder satisfatoriamente ao sentido das instituições democráticas,
voltadas à realização do social dos direitos do homem e de resguardar a
participação popular formação da vontade democrática265. Assim, vale as lições de
Streck:
Alinho-me, pois, aos defensores das teoria matérias substantivas da Constituição, porque trabalham com a perspectiva de que a implementação dos direitos e valores substantivos afigura-se como condição de possibilidade da validade da própria Constituição, naquilo que ela representa de elo conteudístico que une política e direito. Parece não restar dúvidas que as teorias materiais da Constituição reforçam a Constituição como norma (força normativa), ao evidenciarem seu conteúdo compromissório a partir da concepçãodos direitos fundamentais como valores a serem concretizados, o que, a toda existência – e não há como escapar desta discussão traz à baila a questão da legitimidade do poder judiciário (ou da justiça constitucional), para, no limite, isto é, na inércia injustificável dos demais poderes, implementar essa missão266.
Nesse sentido, sob o prisma da teoria material da Constituição e da força
normativa dos princípios Constitucionais, o conteúdo material de conceitos formais
deverá ser lido à luz destas novas exigências hermenêuticas e fáticas, tanto de uma
moderna teoria do direito/ Constituição quanto da realidade de uma sociedade
pluralista. Diferentemente do que ocorria no império do positivismo estrito, não há
mais como se falar de conceitos estanques; hoje, tudo é mutável, acalorados
debates em busca da justiça social propiciam novos contornos à aplicabilidade da
própria lei, ganhando espaço no cenário político e jurídico nacional. Não é diferente
com o princípio da separação de poderes, que passa a exigir um novo olhar da
sociedade contemporânea:
Com a queda do positivismo e o advento da teoria material da Constituição, o centro de gravidade dos estudos constitucionais, que dantes ficava na parte organizacional da Lei Magna – separação de poderes e distribuição de competências, enquanto forma jurídica de neutralidade aparente, típica do constitucionalismo do Estado liberal – se transportou para a parte substantiva, de fundo e conteúdo, que entende com os direitos fundamentais e as garantias processuais da liberdade, sob a égide do
264 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social, 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 66. 265 Ibidem, p. 65. 266 . STRECK, Lênio Luis. Verdade e Consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de janeiro: Lúmen júris, 2006. p. 14-15.
153
Estado social.Organizar os poderes e traçar a linha das competências indispensáveis ao seu correto e efetivo funcionamento fora anteriormente a preocupação dominante das forças e correntes mais conservadoras que circulavam no constitucionalismo da idade liberal, sobretudo em França, durante a segunda metade do século XX; tal preocupação, todavia, ainda se exprime no pensamento constitucional267.
Neste contexto, é significativamente importante explanar acerca da distinção
existente entre poder e função. Ao se falar na teoria da separação de poderes na
atualidade, entende-se que temos três poderes distintos: Poder Legislativo, Poder
Executivo e Poder Judiciário. Contudo, vale lembrar que o poder, em sentido
político, é uno; divide-se e distribui-se, através da soberania popular, nos sistemas
democráticos, competências e órgãos, que desempenharão suas funções de acordo
com suas diretrizes fundamentais. Portanto, cada um exerce no âmbito da sua
competência, servindo ao mesmo governo, a mesma administração do Estado
democrático, desenvolvendo apenas funções específicas:
Cumpre, em primeiro lugar, não confundir distinção de funções do poder com divisão ou separação de poderes, embora entre ambas haja uma conexão necessária. A distinção de funções constitui especialização de tarefas governamentais à vista de sua natureza, sem considerar órgãos que a exercem; quer dizer, existe sempre um distinção de funções, quer haja órgãos especializados para cumprir cada uma delas, quer estejam concentradas num órgão apenas. A divisão de poderes consiste em confiar a cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) órgãos diferentes, que tomam os nomes das respectivas funções, menos o Judiciário (órgão ou Poder Legislativo, órgão ou Poder Executivo, Poder Judiciário)268.
O poder estatal, uno e indivisível, cumpre várias funções, podendo-se
classificá-las a partir de seus diferentes critérios. Considerando-se o critério orgânico
ou institucional, fruto da adoção do sistema organizacional, constituído precisamente
sob a técnica da separação de poderes, está se referindo a função legislativa,
executiva e judicial. Utilizando-se do critério material, que conduz à idéia de poder
estatal, enquanto poder político juridicamente organizado que se traduz em função
da execução de seus atos, pode-se classificar como: função normativa (a de fazer
267 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 21 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 584-585. 268 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo.São Paulo: Malheiros, 2001. p. 112.
154
leis), função administrativa (como execução prática das normas jurídicas) e função
jurisdicional (englobando a aplicabilidade da lei)269.
Dessa forma, para o desenvolvimento do proposto neste estudo, adotar-se-á
a concepção da divisão de poderes como função estatal, que separa suas funções
entre três grandes ramos (legislar, executar e julgar), para desenvolver e cumprir
satisfatoriamente suas tarefas para com seus cidadãos, visando a garantir seus
direitos contra o abuso de qualquer um dos órgãos que desenvolvam tais funções.
Acerca do exposto, há, porém, um outro ponto de vista a considerar, dada a
importância da pessoa que o suscitou. Trata-se, aqui, da crítica levantada por
Kelsen270 de que o princípio da separação de poderes, enquanto princípio de
organização política do Estado, é falso, nasceu condenado a sucumbir diante da
realidade fática, pois não é verídica e possível a definição de fronteiras separando
cada uma das três funções estatais, até mesmo porque, segundo ele, na realidade,
existem apenas duas grandes funções, as quais seriam a de criação e de aplicação
do direito, que, na maioria das vezes, andam juntas, pois muitas vezes o Estado cria
e aplica o Direito ao mesmo tempo. Em suas palavras:
Assim, não se pode falar de uma separação entre Legislativo e as outras funções do Estado no sentido de que o chamado Órgão Legislativo- excluindo os chamados órgãos “Executivo” e “Judiciário”- seria sozinho, competente para exercer essa função. A aparência de tal separação existe porque apenas as normas gerais criadas pelo “órgão”Legislativos são designadas “leis” (leges). Mesmo quando a constituição sustenta expressamente o princípio da separação de poderes, a função legislativa- uma mesma função, e não diferente- é distribuída entre vários órgãos, mas apenas a um deles é dado o nome de órgão “Legislativo”. Esse órgão nunca tem um monopólio da criação de normais gerais, mas, quando muito, uma determinada posição favorecida, tal como a previamente caracterizada271.
269 GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 175-176. 270 Em sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado, diz que a separação de poderes não é uma realidade, pois seria um princípio que fere a concepção de democracia, porque fere significativamente o poder popular. Segundo ele, a democracia exigiria que, pelo fato de o Legislativo ser o representante da soberania popular, caberia a ele o controle dos órgãos do Executivo e do Judiciário, principalmente na função legislativa e administrativa exercida pelos tribunais. Ver: KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 403. Em sentido relativamente oposto, Tavares trata da questão da fragilidade da doutrina de Montesquieu e trabalha com a teoria das funções estatais revisada pelo solevamento do Tribunal Constitucional como um novo órgão. Para uma leitura mais profunda do tema: TAVARES, André Ramos. Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005.p. 175-177. 271 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 390.
155
A Constituição de 1988, em seu art 2º do Título I, institulado “Dos princípios
fundamentais”, trata do princípio da separação de poderes, que se divide em
Legislativo, Executivo e Judiciário, sendo este um princípio de organização estrutural
no exercício e cumprimento dos preceitos constitucionais, harmônicos e
independentes entre si. Assim, não deixa de relembrar o sentido atribuído pelo art.
16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que diz:
“A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem
estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição”.
Enquanto princípio fundamental do governo democrático, a separação de
poderes pode ser vista sob a perspectiva de uma repartição horizontal e vertical. A
repartição horizontal diz respeito à organização estrutural do poder político,
diferenciação funcional entre legislar, executar e julgar, em nível de suas
competências. Por sua vez, a repartição vertical visa à questão da delimitação de
competências, controle segundo os critérios territoriais, como a competência do
Estado central, das regiões e órgãos locais272.
O princípio de separação de poderes vai, pois, permanecer como princípio de organização optima das funções estatais, de estrutura orgânica funcionalmente adequada, de legitimação para a decisão e de responsabilidade para a decisão. Daí uma dimensão positiva, a par de uma dimensão negativa, de controle e limitação de poder. E, consequentemente, reconhece-se a necessidade de um núcleo essencial de competência para cada órgão, apurando a partir da adequação da sua estrutura ao tipo ou a natureza da competência que se trata273.
Essa divisão, como explica Silva, fundamenta-se em dois elementos:
(a) especialização funcional, significando eu cada órgão é especializado no exercício de uma função; assim às assembléias (Congresso, Câmara e Parlamento) se atribui a função Legislativa; ao Executivo a função executiva; ao Judiciário, a função jurisdicional; (b) independência orgânica, significando dizer que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente uns dos outros, o que postula
272 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almeida, 2003. p. 283-285. 273 MIRANDA, Jorge. Formas e Sistemas de Governo. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 63.
156
ausência dos meios de subordinação. Trata-se, pois, como se vê, de uma forma de organização jurídica das manifestações do Poder274.
Acerca do que foi explanado, observe-se que a sistematização da separação
de poderes contida em nossa Carta Magna segue os moldes e os parâmetros275 da
estrutura formulada por Montesquieu na tradicional teoria da separação de poderes.
Não se pode olvidar, que neste espaço histórico-temporal, há uma grande inversão
de paradigmas sociais. A sociedade contemporânea apresenta-se com maior
complexidade em suas relações e exige maior efetividade do Estado na solução e
na construção do Direito; o próprio direito, ao atribuir força normativa à Constituição,
reconhece, com isso, que o normativismo jurídico não consegue regular a
complexidade destas questões e passa a procurar, conjuntamente com outros
sistemas (político, social), a rever conceitos e buscar novas diretrizes, através de
uma hermenêutica que atenda às necessidades democráticas impostas pela
cidadania e pelo princípio fundamental da dignidade humana.
Dessa forma, recepcionar o princípio da separação de poderes com o mesmo
rigor teórico do Estado Liberal, não deixa de ser um risco, por mais contraditório que
isso possa parecer:
Por otro lado, el principio de división de poderes, en su interpretación más tradicional, puede resultar peligroso en la medida en que no permite garantizar con verdadera eficacia lo que se considera su finalidad primordial, la libertad del ciudadano. La libertad individual y la separación de poderes no son categorías asimilables, o, dicho de otro modo, si bien la separación de los poderes en Legislativo, ejecutivo y judicial, constituye un medio para la protección de la deseada libertad no es el único, ni tampoco suficiente. En este sentido se puede afirmar que se ha supravalorado el papel de la separación de poderes en la defensa de la libertad individual frente al supuesto carácter expansivo del poder o de los aparatos de dominio. [...] En este sentido, el principio de división de poderes plantea los problemas de su adaptación a las nuevas circunstancias. Es decir, si el Estado contemporáneo no puede prescindir de ese principio, será necesario averiguar en qué medida el modelo clásico de la división de poderes es compatible con las exigencias del Estado constitucional, cuál es su función en los actuales Estados constitucionales, o si sigue teniendo como principal utilidad la protección de la libertad de los individuos276.
274 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 113. 275 No sentido de atribuição de cada função a uma figura, cabendo: ao Executivo o poder de executar; ao Legislativo o dever de fazer as leis; e, ao Poder Judicial, o de julgar. Todos, independentes no exercício de suas atribuições, mas harmônicos entre si. 276 PASCUAL, Cristina García. Legitimidad Democrática y Poder Judicial. Madrid: Estudios Universitarios ,1997. p. 123.
157
Impende relembrar, que no âmbito da divisão de poderes tradicionalmente
concebida no Estado liberal, na prática, tinha-se consagrado a supremacia do Poder
Legislativo, através do império da lei e da subordinação do Executivo face ao
princípio da legalidade. No entanto, a confiabilidade atribuída ao Poder Legislativo
era justificada pela própria conformação política e jurídica daquele período histórico,
objetivando o rompimento com o sistema absolutista em que lei confundia-se com a
vontade do monarca, pois também cabia ao rei a missão de fazer as leis (as
chamadas ordenações reais), e, os magistrados tinham a função de executar os
desígnios do rei. Indubitavelmente, o único “poder” que no liberalismo se encontrava
distante desta realidade histórica e que o período tentou abominar, era o Poder
Legislativo,
O Legislativo aponta, no período liberal, como um fio condutor da própria
efetivação da democracia, motivo pelo qual, certamente, ocupou uma posição
destacada naquele cenário político. Ele era a garantia de limitação jurídica do
Estado, em detrimento dos direitos fundamentais de liberdade dos cidadãos.
Na equação dos poderes que se repartem como órgãos da soberania do Estado nas condições impostas pelas variações conceituais derivadas da nova teoria axiológica dos direitos fundamentais, resta apontar esse fenômeno de transferência e transformação política: a tendência do Poder Judiciário para subir de autoridade e prestígio, enquanto o Poder Legislativo se apresenta em declínio de força e competência277.
Ocorre que, mesmo considerando-se a importância que ainda jaz na
separação de poderes no Estado Democrático, a supremacia do Parlamento como o
órgão detentor da representação popular, enquanto o Executivo e o Judiciário
figuravam como meros executores da norma geral, passou a ser substituída pela
figura da chamada supremacia da Constituição, em que todos os poderes, inclusive
o Judiciário e a Justiça Constitucional, extraem da Constituição a mesma valia e
importância no seu exercício, em nome da realização dos preceitos expressos pela
Carta Magna278.
277 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 21 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 635. 278 PALU, Oswaldo. Controle dos atos de governo pela jurisdição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 289-291.
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True, the legislator in democratic societies is the representative of, and accountable to, the people, whereas it belongs to the very nature of the judicial function that judges shall not be so accountable. The paradox – entrusting unaccountable judges with the function of controlling accountable politicians – is merely apparent, however. In our societies, judges are nonaccountable only in the sense that they are not and shall not be held responsible to the other branches or to the people for their individual decisions and philosophies. Their nonaccountability, however, holds only in the short and medium term. There are many ties which, in the long term at least, connect them with their time and society. [...] It should also be noted that the very nature of the judicial process is a highly participatory one, for the judges’ role is based on real-life cases and can be exercised only upon, and within the limits of, the interested parties’ complaints and demands. In this sense, there is at least a high potential for a continuous contact of the judiciary with society’s real problems, needs, and aspirations279.
A tal aspecto acrescenta-se, ainda, no retrato do cenário político atual, o
fortalecimento das elites partidárias que mantêm o monopólio das listas de
candidatos; a expansão dos meios de comunicação em massa, banalizando o
discurso e manipulando a opinião pública, favorecendo a política como um produto
oferecido a um mercado eleitoral; e, a influência do poderio econômico na formação
dos conchavos políticos, são alguns dos fatores que levam o Poder Legislativo ao
descrédito social. 280
Situação semelhante ocorre também com o Poder Executivo, pois está
igualmente desgastado pelas experiências autoritárias e totalitárias e pela crise do
financiamento do Estado de Bem-Estar, e principalmente, no descrédito das
instituições tidas como responsáveis pela execução de políticas públicas.
Indiferentemente dos motivos que levam a inexecução e concretização dos direitos
fundamentais, seja pela falta de recursos públicos, seja por práticas eleitoreiras ou 279 CAPELETTI. Mauro. Repudiating Montesquieu? the expansion and legitimacy of “constitutional justice”. Catholic University Law Review, Vol. 35, 1985, p. 26. Tradução de É verdade que o legislador nas sociedades democráticas é o representante e ao mesmo tempo o responsável pelo povo, enquanto que está no mais íntimo da natureza da função judicial julgar-se não ser tão responsável assim. O paradoxo – embutir em juízes não responsáveis a função de controlar os políticos responsáveis - é apenas aparente, no entanto. Em nossas sociedades, os juízes são não-responsáveis somente no sentido de que eles não são e não devem ser responsáveis pelos outros ramos ou decisões individuais e filosofias das outras pessoas. A sua não-responsabilidade, no entanto, detém-se apenas ao curto e médio prazo. Há muitos laços, a longo prazo, pelo menos, que os conectam com sua época e sociedade. [...] Deveria também ser registrado que a verdadeira natureza do processo judicial é altamente participativa, pois o papel dos juízes é baseado em casos reais e só pode ser exercido sobre, e dentro dos limites das exigências e necessidades das partes interessadas. Nesse sentido, há pelo menos um grande potencial para um contínuo contato do judiciário com os problemas, necessidades e aspirações reais da sociedade. 280 PALU, Oswaldo. Controle dos atos de governo pela jurisdição. São Paulo: revista dos Tribunais, 2004, p. 290-292.
159
por falta de vontade política, o fato é que o Poder Executivo, em linhas gerais (salvo
algumas exceções), goza de um descrédito da população, que com o processo de
democratização do direito passou a ser conhecedora dos seus Direitos postulados.
Assim, muitas vezes a busca da solução dos problemas sociais desloca-se
para o Poder Judiciário, passando ele a ser “tutor”, garantidor, das promessas
constitucionais. Ao assumir o papel de guardião dos direitos fundamentais, ele
passou a ter uma conduta mais ativa, interventiva, que propicia acalorados debates
sobre a possível invasão de competência281, falta de legitimidade, afronta à teoria da
separação de poderes, questões essas, que necessitam ser seriamente enfrentadas,
pois não podem os direitos fundamentais configurar letra morta no texto
constitucional, enquanto se debate a quem efetivamente cabe a sua concretização,
até mesmo porque é uníssono, na doutrina pátria, o entendimento de que todos os
cidadãos e poderes instituídos estão estritamente ligados e atrelados à realização
dos mesmos, em um verdadeiro engajamento e mútua cooperação.
Ao se tratar da legitimidade ou não do Judiciário, e, se o mesmo realmente
intervém nas esferas do Legislativo e do Executivo, sob o argumento de que este
não gozaria da mesma legitimidade que aqueles, por não ter sido eleito pelos
cidadãos para a defesa dos seus interesses, tem-se que tal questão foi claramente
solucionada com a redação do art. 2º da Constituição de 1988, ao dizer que “os
poderes instituídos serão eleitos direta ou indiretamente nos termos da
Constituição”, e, assim, o Poder Judiciário teve sua legitimidade atribuída pelo poder
constituinte originário, que é o superior em sede de representação popular:
My second thesis has been that this judicial role is a legitimate one. Surely we might disagree with, even fight against, certain determinations or trends in constitutional adjudication. Still, a century and a half of Continental history is there to demonstrate that the alternative solution is worse indeed. In the absence of judicial control, the political power is more easily exposed to risk of perversion. Judicial control, of course, is no infallible remedy; as a bulwark of our freedoms, it might often prove to be too weak to resist tyranny, as the
281 No sentido que estaria extrapolando seus limites ao determinar a realização de políticas públicas, ou ao desconstituir uma decisão do poder executivo, que julgar ser contra os direitos fundamentais, como por exemplo o judiciário determinar a construção de mais uma escola ao invés de um ginásio esportivo, ou determinar que o Estado ofereça leitos em hospitais públicos ou forneça medicamentos aos cidadãos.
160
experience of many countries demonstrates. If not an invincible bulwark, however, it may at least act as a warning and a restraint282.
Na realidade do Estado Democrático de Direito brasileiro, em sede de
separação funcional, não há órgão mais ou menos legítimo para o exercício de sua
função, pois todos são devidamente consagrados como funções indispensáveis a
mantença desse status de Estado, que pressupõe, necessariamente, a existência da
democracia e a concretização de direitos fundamentais, que deverão ser o norte
para o exercício e respeito na divisão de poderes, ou melhor, de funções estatais.
No entanto, faz-se mister enfrentar o entendimento apresentado por Queiroz:
Poderá ainda argumentar-se que este é o problema que afeta essencialmente as nações mais pobres. Em todo caso, a implementação e concretização dos direitos fundamentais implica a política de distribuição de recursos disponíveis acompanhada das respectivas políticas setoriais. Para tal tarefa de distribuição e implementação de políticas públicas os tribunais, o sistema jurídico em geral, não se encontram especialmente vocacionados, o que não é o mesmo que afirmar que os tribunais e o poder judicial não possam aí jogar papel algum. E, designadamente, mesmo que se reconheça que os tribunais, e particularmente os tribunais de justiça constitucional, não se encontram vocacionados s gerir políticas econômicas e sociais distintas das legitimamente acordados pelos órgãos políticos conformadores, cabe-lhes, todavia, o poder de fiscalizar o sistema de prioridades concretamente fixado pelo poder constituinte. Estas últimas não podem estar em contradição com o fixado na constituição, posto que se aceita, que no quadro das constituições normativas o legislador não é livre na “escolha dos fins”.283
Historicamente, pode-se observar que existe uma “preponderância” de um
poder sobre o outro, de acordo com o momento histórico e social. No sentido,
obviamente, que após as Revoluções liberais e a tentativa de afirmação de um novo
poder político, abstraindo-se do poder monárquico o comando da sociedade e a
necessidade de positivação dos interesses da nova classe social que exsurge com 282 CAPELETTI. Mauro. Repudiating Montesquieu? The expansion and legitimacy of “constitutional justice”. Catholic University Law Review, Vol. 35, 1985, p. 31. Tradução de A minha segunda tese é de que esse papel judicial é um papel legítimo. Certamente poderíamos discordar, ou até mesmo lutar contra certas determinações ou tendências em julgamentos constitucionais. Ainda, um século e meio de história Continental está lá para demonstrar que a solução alternativa é, na verdade, pior. Na ausência de controle jurisdicional, o poder político é mais facilmente exposto ao risco da perversão. O controle jurisdicional, é claro, não é um remédio infalível, como uma murada de nossas liberdades, ele pode demonstrar ser muito fraco para resistir a tirania, como a experiência de muitos países demonstra. Se não uma murada invencível, contudo, pode, pelo menos, agir como um aviso e uma restrição. 283 QUEIROZ, Cristina. Direitos Fundamentais Sociais - Funções, âmbito, conteúdo, questões interpretativas e problemas de justicialidade. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 153.
161
estes movimentos-burguesia, o poder que assume maior destaque e relevo é o
Legislativo, pois era através da lei que se pretendia dar previsibilidade, segurança
jurídica aos cidadãos frente ao Estado, garantindo-se seus direitos e conquistas
históricas.
Já diferente, ao se pensar no Estado social, o chamado Welfare State,
quando o Estado passou a interventor, garantidor e provedor de direitos sociais, que,
para sua concretização, necessitaram de certa ascensão do Poder Executivo na
definição da conformação e distribuição de Estado providência, na destinação dos
recursos para o atendimento das demandas sociais, visando diminuir as
disparidades e tentando concretizar a igualdade material, sob pena de sucumbir a
igualdade formal garantida constitucionalmente.
Na realidade dos Estados Democráticos do pós-guerra, pode-se afirmar que o
cerne dos anseios populares é voltado muito mais à condição humana de existência.
Por um lado, as complexas relações sociais, acrescidas da gama de direitos
constitucionalmente positivados, e, por outro, a falta de recursos materiais e muitas
vezes de vontade política à sua concretização, formaram um campo de tensão entre
direito e política, entre norma e fato social, entre lei e realidade que passou a
desembocar no Poder Judiciário, guardião da Constituição, e última voz na garantia
dos direitos dos cidadãos:
Ontem, a separação de Poderes se movia no campo da organização e distribuição de competências, enquanto seu fim era precisamente o de limitar o poder do Estado; hoje, ela se move no âmbito dos direitos fundamentais e os abalos ao princípio partem de obstáculos levantados à concretização desses direitos, mas também da controvérsia de legitimidade acerca de quem dirime em derradeira instância as eventuais colisões de princípios da Constituição. (...) Na equação dos poderes que se repartem como órgãos da soberania do Estado nas condições impostas pelas variações conceituais derivadas da nova teoria axiológica dos direitos fundamentais, resta apontar esse fenômeno de transferência e transformação política: a tendência do Poder Judiciário para subir de autoridade e prestígio, enquanto o Poder Legislativo se apresenta em declínio de força e competência284.
Outro ponto de extrema importância para a abordagem da separação de
poderes na realidade de hoje, diz respeito à concepção que adota esta doutrina, 284 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 635.
162
quando da sua importação. No primeiro capítulo deste estudo, viu-se que a
separação, na teoria liberal, teve origem na concepção inglesa de supremacia do
Parlamento “Rule of Law”, que, em um primeiro momento, tem uma distinção da
separação americana de poderes, que considera mais propriamente o check and
balance.
No entanto, a separação de poderes, inicialmente consagrada nas cartas de
direitos das Revoluções Americana e Francesa, só tomaram a amplitude e
significação que possuem, diante de tantas outras, frutos dos antecedentes
britânicos (como a Carta Magna, Petição de Direitos de 1672, Habeas Corpus de
1679, Bill of Rights de 1689), pois diferentemente dessas últimas, cujo principal
objetivo era limitar os poderes do Rei, as primeiras traziam consigo a concretização
dos direitos ditos naturais como forma de limitação do poder Estatal, no sentido de
que caberia aos poderes estatais o seu respeito e também a sua realização. Dessa
forma, a consagração constitucional dos direitos fundamentais só poderia ser
traduzida em limitação dos poderes do Estado, se viesse acompanhada do
reconhecimento da supremacia da Constituição285.
Dentro deste contexto, se a supremacia parlamentar, nos tempos atuais, é
substituída pela supremacia da Constituição, haverá, então, uma radical inversão,
pois o Legislativo terá seu campo de atuação, mesmo como representante da
vontade popular, restrito pelos limites expressos na Constituição, enquanto que a
custódia desta caberá, propriamente, à jurisdição286.
No Brasil, ao menos do ponto de vista doutrinário, nota-se significativa
tendência de adoção da idéia de supremacia da Constituição, especialmente, após
o processo de constitucionalização do direito incorporado com toda força com a
promulgação da constituição de 1988 e, sobretudo, da extrema vinculação dos
poderes aos direitos fundamentais. No entanto, o Judiciário só atua em nome da
supremacia da Constituição para garantir os direitos ali inseridos, pois, em havendo
285 NOVAIS. Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Coimbra: Almedina, 2006. p. 76-77 286 PALU, Oswaldo. Controle dos atos de governo pela jurisdição. São Paulo: revista dos Tribunais, 2004, p. 289-291.
163
atuação legislativa e executiva responsável, não se necessitará de tal intervenção
judicial:
Uma Constituição democrática, como é a brasileira, remete a concretização dos direitos fundamentais e dos princípios previstos no texto constitucional preferencialmente às instâncias democráticas do sistema jurídico-político. Exatamente pela legitimidade moral e política e pelo valor epistêmico dos órgãos e processos de deliberação democrática, o reconhecimento e a definição do conteúdo e da extensão dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais no plano legal compete primordialmente aos órgãos de representação da soberania popular. (...) Portanto, não são apenas as idéias-chaves da separação dos poderes e da divisão de competências que justificam a liberdade de conformação legislativa, mas a própria concepção de democracia deliberativa que decorre do princípio republicano, tal como exposto nos parágrafos anteriores. O legislador dispõe de liberdade para concretizar as normas constitucionais, definindo seus conteúdos e estabelecendo seus limites, porque é nos parlamentos que deve ocorrer a plena participação das pessoas nos processos de deliberação pública das questões políticas de interesse da comunidade, e é por meio deles que se extraem normas legitimadas pela ética discursiva e pelo valor epistêmico que se pressupõem atributos desses processos. Por isso, o Poder Judiciário de uma constituição republicana deve adotar duas espécies de posturas respeitosas em relação aos órgãos e processos de representação da soberania popular: uma postura de deferência judicial às decisões dos órgãos de direção política do Estado; e uma postura de garantia e fortalecimento judicial do regime democrático287.
O fato é que a legitimidade parlamentar poderá confrontar-se com os
interesses expressos na Constituição, e, neste ponto, deverá acontecer uma opção
entre a supremacia da maioria e a supremacia da Constituição. À primeira vista, isso
não deveria voltar à discussão da invasão de competências com relação à
separação de poderes, e sim, a um embate resolvido antes, enquanto opção do
constituinte originário, buscando o verdadeiro “espírito288” constitucional expresso
pela adoção do próprio conceito de democracia, um conceito extremamente voltado
à solidariedade, ao comprometimento e ao engajamento dos cidadãos na
concretização dos direitos fundamentais.
Abandona-se, desta forma, a opção pela democracia enquanto mera forma de
eleição, de opção política. Assim, optar pela realização da Constituição deveria ser
considerado também como uma opção pela realização da democracia, pois a
287 MELLO. Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 178. 288 No sentido empregado por Konrad Hesse na sua obra “A força Normativa da Constituição”, (já mencionada no segundo capítulo deste estudo), enquanto essência, enquanto objetivo a ser concretizado na vivência da Constituição.
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Constituição é a expressão máxima da vontade do povo ou, pelo menos, deveria sê-
lo.
A rigor, não restam dúvidas de que a separação de poderes sempre esteve
vinculada à idéia de direitos fundamentais, sendo que a proposta de releitura da
teoria da separação de poderes e de conceitos como independência e harmonia,
visando a atender as demandas atuais, versa exatamente neste sentido, muito
embora, haja quem defenda que tais conceitos, na prática, jamais existiram:
Esta combinação, todavia, nunca existiu como pensou Montesquieu, e seria absurdo que assim existisse: em um sistema de forças opostas, ou se equilibram, ou opera-se o movimento no sentido geral da ação do mais forte. Imaginar que é possível conseguir uma ação política eficiente, dividindo o poder público em um sistema de três forças gerais, contrapostas umas as outras, é, admitindo o absurdo da prova da mais completa incapacidade, para decidir questões desta ordem o único resultado que se obtém é o equilíbrio, a paralisação mútua dessas três forças. Para que pudesse haver ação efetiva e útil, fora necessário tivesse uma delas mais energia, e, nessa hipótese, o equilíbrio preconizado romper-se-ia289.
Em verdade, quando do surgimento da teoria, vinculada à ascensão
burguesa, mais do que a intenção de instituir governos democráticos ou dividir
funções para que o poder não mais se concentrasse nas mãos de um único órgão
ou poder, a separação consistia numa forma de garantir os direitos fundamentais,
especialmente o direito individual de liberdade e também assegurar o direito de
propriedade.
Em dias atuais, a proposta de releitura desses conceitos, ou seja, pensando-
se mais em uma cooperação do que em uma divisão de poderes, mais em uma
complementação funcional do que em controle, tem-se o mesmo fundamento deste
princípio no período liberal: o de garantia dos direitos fundamentais, não mais
direitos fundamentais com conteúdo relativamente “simples” (no sentido de ser
determinado), como liberdade e propriedade, mas com conteúdos de cunho
altamente genérico, impreciso, complexo, porém de extrema significância, como a
dignidade da pessoa humana, função social ou direito das gerações futuras:
289 NASCIMENTO. Rogério José Bento Soares do. O abuso do poder de legislar. Controle judicial da legislação de urgência no Brasil e na Itália. Rio Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 54.
165
De facto, superada a concepção que, na recondução global e última do sistema de direitos fundamentais ao sistema da propriedade, identificava o estado de Direito a um Estado burguês, o Estado Social de Direito afirma-se como quadro aberta a pluralidade de concretizações (...)290.
Assim, ao direito cabe o desafio de encontrar a forma razoável entre o juiz
ativo na proteção dos direitos, na garantias constitucionais, e entre o outro extremo,
que é o de um Judiciário extremamente paternalista, que, ao invés de reforçar a
democracia, acaba por representar uma ameaça291, constituindo um Poder
incontrolável que afronta direitos fundamentais em nome de suas próprias
convicções.
O âmago da releitura do conceito de separação de poderes aqui proposta,
repousa, necessariamente, no mesmo fundamento que lhe deu origem, o de garantir
os direitos fundamentais, não mais apenas contra o Estado, mas também contra os
particulares. Considerando-se a supremacia da Constituição e o papel dos direitos
fundamentais como elementos indispensáveis à realização da democracia, é que se
acredita na possibilidade da existência de um Judiciário mais ativo e interventivo em
nome da própria manutenção do Estado Democrático de Direito, sem, contudo, que
isto seja sinônimo de uma afronta ao princípio de separação de poderes.
Obviamente, que esta atuação deve acontecer através da própria democratização
do Poder Judiciário, de forma séria, responsável, com o único intuito de não permitir
que conceitos genéricos, como dignidade da pessoa humana, fiquem à mercê da
vontade política dos governantes, que muitas vezes preocupam-se com suas opções
de políticas públicas, muito mais com vantagens eleitoreiras do que com a
realização das normas constitucionais.
290 NOVAIS. Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Coimbra: Almedina, 2006. p. 214. 291 CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. A Democratização do Poder Judiciário. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p.37.
166
3.4 A função e a legitimidade do Poder Judiciário n o Estado Democrático de
Direito em face da necessidade de concretização dos direitos fundamentais e
da dignidade da pessoa humana
Tendo-se em vista o papel atribuído ao Judiciário na concepção originária
proposta por Montesquieu, indiscutivelmente estava-se pensando na atividade de
execução das leis, sem propriamente se pensar no Judiciário como uma estrutura
complexamente composta tal qual temos nos dias atuais. A idéia era um poder para
expressar a lei conforme a intenção do legislador, sem sequer se imaginar qualquer
atividade criativa por parte dos juízes.
A referida proposta encontra respaldo legal na situação histórica social do
liberalismo do Séculos XVII e XVIII, quando, firmando-se um regime legalista, em
que todos deveriam se submeter à vontade da lei, como expressão máxima desta
nova sociedade que exsurgia e firmava-se contra os abusos do Estado Absolutista.
O papel da legislação era fundamental na garantia das conquistas burguesas
através da positivação de direitos fundamentais, individuais, como a liberdade, a
igualdade formal, a vida e a propriedade. A interpretação da lei era um problema que
não se propunha, aspecto que somente veio à tona com a superação da
identificação entre direito e lei.
Já, o constitucionalismo democrático do Século XX, baseado no binômio
dignidade humana/solidariedade social, que pouco lembra a tradição napoleônica de
direito privado, não comporta uma cultura jurídica extremamente positivista.
Contudo, estes direitos, enquanto valores supremos de uma comunidade e, agora,
na condição de normas, dada sua positivação, dependem, para sua eficácia a
participação política e jurídica, tanto no seu respeito quanto na sua interpretação e
aplicabilidade, o que conforma a abertura constitucional aos seus cidadãos,
concretizando, assim, a própria Constituição através da democratização do sistema
de direitos fundamentais292.
292 CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, Constitucionalismo Democrático e separação de poderes.. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002. p. 29.
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Os direitos fundamentais são a sintaxe da liberdade nas Constituições. Com eles, o constitucionalismo do século XX logrou a sua posição mais consistente, mais nítida, mais característica. Em razão disso, faz-se mister introduzir talvez, neste espaço teórico, o conceito do juiz social, enquanto consectário derradeiro de uma teoria material da Constituição, e sobretudo da legitimidade do Estado social e seus postulados de justiça, inspirados na universalidade, eficácia e aplicação imediata dos direitos fundamentais. Coroam-se, assim, os valores da pessoa humana no seu mais elevado grau de juridicidade e se estabelece o primado do Homem no seio da ordem jurídica, enquanto titular e destinatário, em última instância, de todas as regras do Poder.No que concerne ainda à figura abstrata do juiz social, este incorpora em seu juízo ou aparelho de reflexão e entendimento uma vasta e sólida pré-compreensão das questões sociais, pressuposto inalterável de toda a hermenêutica constitucional e de seu conceito de concretização; enfim, aquilo que os alemães com rigor científico costumam designar, numa feliz expressão de linguagem, por Vorverständnis e que sói fazer na cabeça do magistrado a ratio das decisões judiciais com mais sensibilidade para os direitos fundamentais e para o quadro social da ordem jurídica, a que se prende, doravante, a dimensão nova, concreta e objetiva daqueles direitos293.
O comprometimento, por parte do Estado, com a participação jurídico-política
da comunidade privilegia a ação e não a abstenção, no sentido de que se cobram do
Estado ações positivas, passíveis de controle em face das omissões dos poderes
Legislativo e Executivo no tocante aos seus deveres de legislação e de prestação. A
questão do controle ocasiona, por sua vez, de certa forma, a ascensão do Poder
Judiciário, que na qualidade de “’último intérprete da Constituição”, acaba por atuar,
como “regente republicano das liberdades positivas”294.
A associação entre um extenso catálogo de princípios e direitos fundamentais e um complexo e abrangente sistema de controle judicial da constitucionalidade das leis sinaliza para um modelo constitucional no qual o Poder Legislativo não goza de uma supremacia incontrastável, nem é o representante de uma soberania popular absoluta e ilimitada e, por conseqüência, não dispõe de total liberdade na definição de fins e valores no plano legal. Por um lado, o exercício do Poder Legislativo é limitado e condicionado normativamente pelas normas constitucionais e, de outro, é limitado e controlado institucionalmente pelo exercício da jurisdição constitucional. Essa coexistência, no plano constitucional, entre regime democrático e órgãos e procedimentos de representação e exercício da soberania popular, com um catálogo amplo e generoso de direitos fundamentais normativamente vinculantes à legislatura e uma jurisdição constitucional extremamente abrangente está fadada a produzir sérios
293 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 587. 294CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, Constitucionalismo Democrático e Separação De Poderes.. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002. p. 29.
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problemas de definição de limites entre as competências do domínio Legislativo e as funções do domínio judicial295.
É inegável a importância que assume o Judiciário na sociedade
contemporânea e, de certa forma, em nome da efetivação dos direitos, a própria
sociedade não pode renunciar a tal garantia e proteção. Dessa forma, o Judiciário
passa a assumir um papel que lhe é imposto pela própria sociedade, como ensina
Leal:
Respeitadas as variáveis de um ou outro modelo de Estado, pode-se afirmar que surge um Estado-Juiz mais compromissado com a mantença da pacificação das relações sociais, o que implica um compromisso com a mudança estrutural das relações de forma mantidas na sociedade. Mas quais os efeitos práticos deste compromisso então? Em primeiro plano, um Judiciário que vai se ocupar mais do tema que envolve a independência dos poderes entre si e das formas de controle do exercício destes poderes pelos diferentes órgãos da Administração Pública e do Legislativo. Em segundo lugar, um Judiciário que vai operar mais no âmbito preventivo das violações de direitos individuais e coletivos, dando maior efetividade à jurisdição como espaço de garantia e concretização das regras formais estabelecidas pelo sistema jurídico como um todo296.
Indubitavelmente, há um grande risco à democracia e à cidadania com a
existência de um Judiciário soberbo, com características paternalistas e decisões
absolutas. O Poder Judiciário não pode atuar de forma incompatível e não
condizente com os deveres democráticos; deve, sim, fiscalizar cada poder para que
realize os direitos fundamentais. Não se pode, no processo hermenêutico de
interpretação constitucional, colocar em risco a lógica da democracia, da separação
de poderes. Mesmo que na prática, ao se recorrer a argumentos do direito não
positivado, deve procurar limitar-se a proferir decisões corretas, condizentes com o
que alude o texto constitucional, e não se ocupar da criação do direito297.
No entanto, como bem ensina as lições de kaufmann, o juiz que “pronuncia a
lei”, nada mais faz, que contribuir para dizer um direito que é linguagem, que nunca 295 MELLO. Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Os direitos fundamentais e os limites entre democracia e jurisdição constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado , 2004, p. 175. 296 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea. Uma perspectiva procedimentalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 47. 297 CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002. p. 32.
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será algo unívoco, e sim análogo. Nessa esfera, a questão versa acerca de como o
direito poderá compreender-se hermeneuticamente, quando o direito se aplica,
quando se realiza, pois é através desta atuação judicial que o ser (o sujeito) e do
dever ser (a norma) entrarão em contato298.
Frente à falência dos métodos tradicionais de aplicação e de interpretação do
direito299, por não atenderem às complexas demandas, a sociedade contemporânea
reconhece a necessidade de uma interpretação mais criativa dos juizes. Quando se
fala em uma interpretação mais ampla e em flexibilização da norma legal, não se
está pretendendo desatrelar o juiz do texto expresso, do princípio da legalidade e de
suas máximas como previsibilidade e anterioridade da lei, mesmo porque o juiz
sempre está vinculado ao ordenamento jurídico, especialmente quando a matéria for
relacionada aos direitos fundamentais. Retirar das esferas democráticas, da
participação popular, as decisões referentes à execução e à concretização destes
direitos, que, indiscutivelmente, são o campo mais fértil e adequado para a
construção da sociedade que se pretende com a instituição de um Estado
Democrático.
No entanto, a grande questão que se levanta é a de como ficam os direitos
fundamentais e, especialmente, a dignidade da pessoa humana enquanto não
houver o aperfeiçoamento democrático, a consciência cidadã e a solidariedade que
pressupõe a democracia, além da tomada de consciência, pois o ônus democrático
incide justamente no fato de que, para a concretização dos preceitos constitucionais,
necessita-se engajamento social, participação ativa e comprometida, cultura e
consciência constitucional:
298 KAUFMANN, Arthur. Hermenéutica y Derecho. Coleción filosofia, derecho e sociedad. Tradução de Andrés Ollero y José Antonio Santos. Granada: Comares, 2007. p. 9-10. 299 Alexy quando trata da teoria da argumentação jurídica, aponta os motivos que teriam levado a superação da subsunção enquanto método interpretativo. O primeiro, refere-se a imprecisão ( e, ressalta-se que uma norma deve ser interpretada de modo que cumpra seu objetivo- que poderá ser conflitante se os intérpretes tiverem concepções diferentes) existente na linguagem do direito; o segundo, refere-se as diversas possibilidades de conflitos entre as normas; terceiro, as possibilidades de haver casos que requeiram uma regulamentação jurídica, quando não enquadrarem-se em nenhuma norma válida existente; e, por último, a possibilidade, em casos especiais, de uma decisão ser contrária a literalidade de uma norma. ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução da Cláudia Toledo. 2 ed. São Paulo: Landy, 2005. p.33-35.
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Todavia, em uma república constitucional substantiva, os valores fundamentais para a dignidade da pessoa e para a justiça política da comunidade não ficam inteiramente à disposição das instâncias democráticas. Neste regime, os bens e valores essenciais da comunidade protegidos através dos princípios e direitos fundamentais da constituição são tutelados pelo Poder Judiciário no exercício da função de rnou mas litigante e guardião da constituição. A Constituição Federal brasileira é um modelo nítido de democracia constitucional que adota um regime republicano substancialista, ao prescrever que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”. Ou seja, o Supremo Tribunal Federal e, por extensão, em virtude da adoção do controle difuso de constitucionalidade, todo o Poder Judiciário, quando exerce a jurisdição constitucional, representam a soberania popular no que concerne à garantia final dos bens e valores essenciais reconhecidos pelo poder constituinte e consolidados nos princípios e direitos fundamentais da Constituição 300.
É necessário ter-se a clareza de que esta concepção, que vê no Judiciário o
último refúgio de um ideal democrático desencantado pela falta de efetivação, não é
um problema conjuntural, mas fruto e diretamente, relacionado à própria dinâmica
das sociedades democráticas. A sociedade não está mais litigante porque caíram as
barreiras processuais, mas porque a democratização do próprio direito induz ao
conhecimento e à pretensão da tutela e da garantia dos direitos. A explosão do
número de processos não é um fenômeno judicial, mas um fenômeno social, fruto do
próprio exercício democrático, ou seja, o papel que ocupa o Judiciário no
constitucionalismo contemporâneo não deixa de ser fruto da inércia dos demais
poderes frente às questões sociais301.
A realidade que assola as sociedades democráticas acaba, pois, provocando a
existência de uma jurisdição constitucional ativa. O conteúdo da teoria dos direitos
fundamentais, seja na sua perspectiva subjetiva e objetiva, na eficácia irradiante ou
na sua aplicabilidade imediata, coloca o Judiciário numa posição de porta-voz dos
direitos fundamentais, concretizando-os de certa forma, em um caminho inverso, na
medida em que as demandas são propostas à jurisdição. Certamente, a decisão dos
rumos destes direitos deveria dar-se na esfera pública, mas também é fato que não
pode o Judiciário abster-se de julgar uma demanda notadamente garantida pela
Constituição, como o acesso à saúde, à educação, dentre tantos outros.
300 MELLO. Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado , 2004, p. 187. 301 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. O guardião das promessas. Tradução Maria Luiza Carvalho. Rio de Janeiro: Renan, 1999. p. 25-26.
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O problema que envolve a questão da ascensão judicial não deveria ter seu
foco referente à legitimidade da atuação deste poder, pois na maioria das vezes,
quando ele é acionado, é justamente em nome a lesão de um direito fundamental,
atuando nesta arena, em nome da proteção e garantia da Constituição. Dito isso, o
que pode e deve ser objeto precípuo desta discussão não é a sua legitimidade
democrática, mas os seus limites de atuação em nome da realização constitucional.
Por eso, la cuestión relativa a la compatibilidad entre creación judicial del derecho y sometimiento del juez al ordenamiento jurídico, constituye más bien un problema de límites a dicha actividad creativa. Desde el punto de vista de la interpretación judicial, es evidente que el juez está sujeto a límites. De una parte, la Constitución misma de tal forma que toda interpretación judicial ha de ser conforme con la norma constitucional302.
Neste contexto, o problema da legitimidade da jurisdição constitucional não
pode ser resolvido no campo puramente especulativo, em embates dentre os que
são contra ou a favor da ação ativa do Judiciário. Quando se trata de realizar direitos
dos cidadãos, as soluções não podem ser resumidas como válidas ou inválidas, até
porque não existem soluções universais. No mundo ocidental, em que o papel da
atuação política tem crescido em diversas áreas, o controle, inevitavelmente,
tenderá a adquirir contornos mais acentuados. Assim, o princípio democrático exige
que todos tenham uma "voz" no processo político, mas também que, ao mesmo
tempo, seja garantido à minoria de hoje tornar-se a maioria de amanhã. Se os
direitos mais básicos, tais como as liberdades de expressão, de opinião e de
associação pudessem ser limitados pela vontade da maioria de hoje, o próprio
princípio democrático seria prejudicado. Tal premissa não é diferente para os direitos
de cunho social, onde impedir o acesso à justiça e à política, seria uma violação ao
mais básico dos direitos303.
302 SANCHES. Maria Navas. El poder judicial y sistema de fuentes. Madrid: Civitas Ediciones, 2002, p. 85. 303 CAPELETTI. Mauro. Repudiating Montesquieu? The expansion and legitimacy of “constitutional justice”. Catholic University Law Review, Vol. 35, 1985, pp. 27-28. Texto original: The “mighty problem” of the legitimacy of judicial review cannot be solved by means of purely speculative, abstract solutions valid for any place and time. Indeed there are no such universal solutions; and surely a page of realistic comparative analysis can be more worthy than many books of such abstract speculations. Should our judges today be of the kind that prevailed in pre-Revolutionary France, then of course judicial review would be hardly legitimate. But in our Western world, in which the roles of the political branches have grown into so many areas of our life, and indeed inevitably so, the scrutiny of a more “detached,” though not literally “separate,” judiciary can be most salutary. [...] The democratic principle requires that everyone should have a “voice’ in the political process and that it be possible for the minority of today to become the majority of tomorrow. If basic rights such as the freedoms of speech,
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Contudo, o que dizer da realidade brasileira, em que nem mesmo os mais
básicos304 dos direitos foram devidamente assegurados ao longo da história, com
uma democracia deveras imatura, que, constitucionalmente, positiva o cidadão como
aquele que está em pleno gozo dos seus direitos políticos? Esta indagação remete à
reflexão acerca de como e a quem cabe concretizar, dar vida à Constituição
enquanto não se chegar ao nível desejado de realização democrática, de cidadania
ativa, de comprometimento e de engajamento social. Certamente que não se
incumbe tal tarefa exclusivamente ao Poder Judiciário (até porque já se mencionou o
risco da concentração de poder), mas não restam dúvidas de que ele é uma das
figuras decisivas neste processo de democratização do direito, em que o cidadão
passa a buscar a tutela de seus direitos, a realização das promessas constitucionais,
pouco cumpridas na realização cotidiana da vida política brasileira:
Os juizes deverão aceitar a realidade da transformada concepção de direito e da nova concepção de estado, do qual constituem também, afinal de contas, um “ramo”. E então será difícil para eles não dar a própria contribuição à tentativa de tornar efetivos tais programas, de não contribuir, assim, para fornecer concreto conteúdo àquelas “finalidades e princípios”: o que eles podem fazer controlando e exigindo o cumprimento do estado de intervir ativamente na esfera social, um dever que por ser prescrito legislativamente, cabe exatamente aos juízes fazer respeitar.305.
Então, ao invés de apenas criticar esta atuação interventiva do Judiciário em
sentido genérico, são necessárias críticas concretas a decisões incoerentes e
discricionárias que atentem contra a democracia, pois uma decisão que garante a
liberdade e os direitos fundamentais àqueles que buscam sua tutela, só tem o
condão de reforçar a democracia e não o contrário, como leciona Capeletti: “Let us
condemn judicial decisions that in our perceptions are wrong. But let us be aware
that there is a worth and a legitimacy in an institution whose very raison d’être is to
of opinion, of association could be limited, without due process, by the majority of today, the very democratic principle would be impaired; and this is no less true for the “new rights” of a social and economic nature, for their rationale is to make effective the most basic of all democratic entitlements – the right of access to the legal and political system. 304 Nesse sentido, pode-se construir uma crítica com relação à falta de efetividade do direito à saúde e da situação calamitosa nos hospitais públicos; também, pode-se fazer referência com alto índice de analfabetos e evasão escolar, demonstrando a falta de concretização do direito fundamental à educação, quando a escola deveria ser a formadora de verdadeiros cidadãos; os altos índices de trabalho infantil e escravo no Brasil; enfim, cenas constantes de total indignidade a quem sofre, e muito descaso dos poderes públicos. 305 CAPELETTI. Mauro. Juizes Legisladores? Trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1999. p. 42.
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control the political power and to protect us against abusive exercise of that
power”306.
Assim, vale observar a crítica de Appio:
Ao formular políticas públicas que atendem suas prioridades pessoais, através da “interpretação adequada da Constituição”, os juízes se lançam em verdadeira aventura política, não possuindo real controle sobre suas conseqüências no processo, do que resultam graves impasses constitucionais. A fixação de limites à própria jurisdição representa, neste contexto, uma das mais graves funções outorgadas ao Poder Judiciário. A busca pela plena normatividade constitucional não pode significar o rompimento de delicado equilíbrio necessário a democracia. Um governo de juízes, neste sentido, em nada se difere de um governo aristocrático, pois o regime democrático não se coaduna com a concentração extremada de poder político junto a um único órgão307.
No entanto, a judicialização da política não precisa, necessariamente,
conduzir a um ativismo judicial desmedido, pois esta pode e deve estar vinculada a
uma cidadania ativa e à abertura dos intérpretes da Constituição, proporcionando
uma cidadania juridicamente participativa, através da pressão política exercida sobre
as decisões dos Tribunais, baseada na publicização das sentenças e tantas outras
medidas a serem concretizadas.
É manifesto o caráter predominantemente criativo da atividade judiciária de
interpretação e de atuação nos direitos sociais. Destaca-se, contudo, o fato de que a
diferença entre o papel tradicional dos juízes e o atual é muito mais de grau do que
propriamente de conteúdo, pois é o grau de abstração que propicia a expansão da
discricionalidade judicial, ou seja, leis vagas e imprecisas conduzem ao processo de
atuação judicial308.
306 CAPELETTI. Mauro. Repudiating Montesquieu? the expansion and legitimacy of “constitutional justice”. Catholic University Law Review, Vol. 35, 1985, p. 32. Tradução de Vamos condenar as decisões judiciais que estão em nossas percepções erradas. Mas sejamos conscientes de que há um vale e uma legitimidade de uma instituição cuja própria razão de ser é a de controlar o poder político e para nos proteger contra o exercício abusivo desse poder. 307 APPIO, Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. 1. ed. 4. reimpressão. Curitiba: Juruá, 2007. p. 71. 308Mauro. Juizes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1999. p. 42
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Atuação esta, que segundo boa parte de seus críticos, será chamada como
uma atuação auto-referencial, pois:
O fato de existir uma instância cuja principal função é julgar as sentenças é também uma ilustração de caráter circular do ordenamento jurídico. É mediante normas jurídicas que são fixadas as condições de produção das regras de direito e sua própria aplicação pelos juízes é encerrada num sistema auto-referencial: o único juiz dos juízes é um outro juiz. Uma vez atingido o último grau de jurisdição, o jurisdicionado não tem mais nada que esperar, pelo menos no interior do sistema que assim se fechou309.
Ainda que muitas sejam as críticas à forma de atuação dos juízes na
contemporaneidade, a experiência tem demonstrado que o Estado Democrático de
Direito não funciona sem uma justiça constitucional, que geralmente é incumbida da
realização dos conteúdos notadamente essenciais e principiológicos, face a sua
carga valorativa310, por isso, pois, a concretização dos direitos fundamentais,
necessita da interpretação dos mesmos. Portanto, a crítica que a atribui à jurisdição
acusando-a de ilegítima na sua atuação interventiva e concretizadora dos conteúdos
constitucionais deve estar consciente do empecilho que tal enfrentamento constitui
na tentativa de dar vida a estas normas:
Uma jurisdição constitucional ativa no controle do processo político não deve ser vista como uma restrição ilegítima da soberania popular. Sem dúvida que o ativismo judicial no controle da constitucionalidade importa em uma limitação da democracia. Entretanto, uma democracia constitucional como a brasileira, caracterizada pela convergência entre o elemento democrático, o elemento moral substantivo e o elemento judicial, converte a jurisdição constitucional em uma das formas de expressão da soberania popular311.
Visando solucionar o impasse entre a necessidade de concretização de
direitos e o perigo de se depositar a solução da vida política e social de uma
comunidade a um único poder, tende-se a buscar a construção de uma jurisdição
constitucional atuante, democratizando-se seu papel na sociedade.
O processo de democratização do Poder Judiciário não se insere somente na criação de controles democráticos das atividades que não sejam
309 RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução de Ednir Missio. São Paulo,: Martins Fontes, 2003, p. 260. 310 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 99. 311 MELLO. Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado , 2004, p. 186.
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jurisdicionais, ao contrário, vai mais além, já que, trata-se também de um processo de desmistificação do sistema judicial, portanto, de transparência e simplificação das suas atividades312.
A teoria da interpretação de uma sociedade que se apresenta fechada, reduz
o espaço para a interpretação, pois ficará apenas no âmbito do Poder Judiciário e
nos procedimentos formalizados. O direito deve buscar uma teoria que considere a
Constituição, bem como a realidade Constitucional. Para tanto, necessita da
incorporação das ciências sociais, das teorias jurídico-funcionais e de métodos
hermenêuticos que despertem o interesse e sejam voltados precisamente ao
entendimento dos cidadãos na realização do bem-estar de todos313.
O ideal, segundo Häberle, para a concretização das normas constitucionais, é
que o processo de interpretação e de concretização se desse em sentido lato (por
todos os que vivem a Constituição e, por isso, são seus legítimos intérpretes) e
estrito (pelos órgãos jurisdicionais). Reconhecendo a importância das duas no
processo de concretização da Constituição, ele chama atenção, contudo, ao risco
que ficar adstrito apenas às formas tradicionais no sentido de enrijecer a
Constituição ao pluralismo cultural, estratificando seu próprio desenvolvimento. Por
isso, devem a interpretação em sentido lato e em sentido estrito coexistir, muito
embora considere a segunda de maior importância, pois deve esta considerar a
primeira no seu processo interpretativo. Assim, maior será a legitimidade da decisão
proferida pela jurisdição caso esteja condizente com a interpretação feita pelo círculo
aberto, ou seja, a interpretação em sentido estrito deve atuar como um espelho, pois
deverá refletir a interpretação lata. No entanto, sempre subsistirá à jurisdição
constitucional fornecer a última interpretação da Constituição que, para ser legítima,
deve estar de acordo com a primeira314.
De fato, toda atuação judicial, para ser legítima, deve estar em consonância
com os valores democráticos; portanto, a criatividade judicial encontra limites formais
312 CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. A Democratização do Poder Judiciário. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 36-38. 313HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997. p. 11. 314HÄBERLE. Op. Cit. p. 41-43, passim.
176
constitucionalmente positivados. Interessa ao Estado de Direito discutir sobre a
função, legitimidade e limites do Poder Judiciário. A experiência histórica demonstra
a necessidade de lutar contra a concentração exacerbada de poder nas mãos de um
único homem, de um único órgão ou instituição; portanto, não há outro caminho
senão buscar-se a democratização do Poder Judiciário.
O conceito de independência dos poderes tem, por sua vez, no
constitucionalismo democrático, outros contornos, pois pode tratar da independência
de um com relação aos outros, mas todos estão atrelados à realização dos direitos
fundamentais:
En su origen la independencia judicial aparece íntimamente ligada al principio de división de poderes. Pero inicialmemente la independencia se predica de todos los poderes, especialmente del Legislativo y del Judicial respecto al Ejecutivo. En este momento, la independencia tiene su razón de ser en sí misma. Se trataba de garantizar la independencia recíproca de órganos provenientes de soberanías distintas. En su base, cada poder obedece a una diferente legitimidad, monárquica en un caso, democrática en el otro, y a una diferente realidad social, esto es, cada poder constituye la expresión de una clase social distinta. En la actualidad, esta dualidad ha desaparecido, de tal modo que todos los poderes obedecen a una única legitimidad democrática, lo que necesariamente ha incidido en la razón de ser de la independencia, que ya no se justifica en sí misma, sino en la medida en que es necesaria para el adecuado cumplimiento de las funciones propias de cada poder. Además, en el momento actual, y como consecuencia de los partidos políticos, se ha relativizado la independencia real entre el Parlamento y el Gobierno315.
No Estado contemporâneo não se pode definir, formalmente, o limite entre o
político e o judicial, pois, no estágio atual, a justiça não consegue e nem pode mais
ser apolítica. Indiscutivelmente, muitos direitos nascem de uma interpretação judicial
e, posteriori, vêm a ser positivados na esfera legislativa (por exemplo, a ação de
mandado de segurança, poder de polícia, a responsabilidade civil de pessoas
jurídicas por atos ilícitos, etc.). Nesse contexto, a distância entre as funções latentes
dos poderes constituídos torna-se um tanto paradoxal e utópica. Frente à admissão
legislativa, aciona-se o Judiciário; frente à inércia do Executivo, repete-se a mesma
situação, pois, normativamente falando, ao Poder Judiciário foi dada a incumbência
de ser a última voz para a proteção de um direito.
315 SANCHES. Maria Navas. El Poder Judicial y Sistema de Fuentes. Madrid: Civitas Ediciones, 2002, p. 41
177
O Poder Judiciário é o guardião da constituição e do equilíbrio entre os direitos fundamentais e a soberania popular. Por isso os órgãos de representação da soberania popular exercem uma preferência tão-somente relativa na concretização constitucional. Ainda assim, é uma preferência legitimada pela moralidade democrático-republicana e pelo valor epistêmico das suas decisões.
Dado o exposto, o questionamento que outrora se devia fazer, não o é,
propriamente, se há afronta ao conceito de independência e harmonia e quando o
Judiciário intervém com intuito de garantir e de proteger os conteúdos
constitucionais e, sim, se o mesmo está preparado para tal tarefa e como podem-se
desenvolver meios de controle para que essa atuação seja condizente com o
sistema democrático, com os princípios constitucionais e com o clamor social, fruto
da necessidade e anseio dos cidadãos.
Não restam dúvidas de que este é um terreno perigoso, em que a doutrina
hermenêutica e constitucional ainda engatinha frente à complexidade e o volume
das demandas, na tentativa de encontrar-se um meio termo entre a
discricionariedade arbitrária e a interpretação em conformidade com a Constituição e
com a realização de preceitos fundamentais. Uma possível solução a este aspecto,
precisa, no mínimo considerar as peculiaridades brasileiras, como as condições
estruturais da população, do governo, da multiplicidade cultural e as discrepantes
desigualdades sócio econômicas e culturais, sem referir, a falta de
comprometimento para com a cidadania e o processo democrático por parte dos
cidadãos e dos poderes constituídos:
A garantia dos direitos fundamentais, tanto os liberais e políticos quanto os sociais, depende de um Poder Judiciário ativo e capaz de exercer uma vigilância jurídica sobre o processo político de concretização da constituição. Não é possível nem uma confiança cega na democracia deliberativa, nem uma desconfiança total em relação à política. Uma constituição democrática impõe limites e direção ao processo político, e o controle do respeito desses vetores é tarefa indelegável da jurisdição. Essa é a conseqüência decisiva da assunção de um regime constitucionalista de exercício da soberania popular, vale dizer, de um regime jurídico-político que retira da esfera de disponibilidade das instâncias de representação popular alguns conteúdos considerados essenciais para assegurar e preservar a existência digna das pessoas e a justiça política da comunidade. Os bens e valores que preenchem o conteúdo dos princípios e direitos fundamentais orientam, predeterminam e limitam o espaço de decisão da democracia deliberativa. No entanto, sem a garantia do recurso
178
à jurisdição constitucional, a pré-determinação e a limitação constitucionais do processo democrático seriam inoperantes316.
Em meio aos incansáveis debates entre substancialistas e
procedimentalistas317, Hennig Leal318, na conclusão de sua obra, propõe uma
coerente fusão entre estas correntes, pois acredita que uma não é necessariamente
excludente uma da outra, antes pelo contrário, seriam correntes com lógicas
integradoras. Em seu ver, a legitimidade democrática pressupõe tanto um elemento
formal quanto material, e, não se pode restringir a atuação de um Tribunal (desde
que democrática), pois isto implicaria numa restrição à própria democracia, bem
como, não pode a democracia ser tomada sempre a partir de uma perspectiva
representativa. Nesta seara, a questão da legitimidade da jurisdição passa não
exatamente pela fixação de seus limites, mas propriamente por como deve se dar o
controle de conteúdo normativo.
De outra banda, não restam duvidas de que, para que os cidadãos possam
ter voz ativa e efetiva participação, faz-se mister garantir o mínimo de concretização
de direitos fundamentais para o exercício democrático. Sem a prática dos direitos do
homem e do cidadão, o “povo” se mantém como uma metáfora abstrata sem a
devida significância. Nas palavras de Müller: “Por meio da prática dos Humans
Rights ele se torna, em função normativa, “povo de um país” de uma democracia
capaz de justificação (...)”319.
A conduta ativa do Judiciário na garantia e efetivação dos direitos
fundamentais, pode ser decisiva no fornecimento das mínimas condições de
exercício da própria cidadania, fortalecendo o princípio democrático no Estado de
Direito. A desmistificação do “mito da separação” (no sentido de não ingerência ou
não intervenção) e o reconhecimento de que, em uma República constitucional,
316 MELLO. Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 185-186. 317 Os primeiros defendendo um papel interventivo do Judiciário em nome da garantia dos direitos fundamentais, e os segundos, aqueles que acreditam que a função maior é o de garantir o processo democrático, onde a concretização dos direitos se dá pela participação dos cidadãos. 318 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta. Reflexões sobre a legitimidade e os limites da Jurisdição Constitucional na ordem democrática. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007. 319 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. 3. ed. São Paulo, Max Limond, 2003, p. 63-64.
179
onde os valores primordiais que compõem o cerne do ordenamento jurídico, como a
dignidade humana, são os vetores essenciais que permitem a superação da rigidez
do conceito de independência entre poderes. A harmonia pressupõe uma
cooperação entre os mesmos para atender as novas exigências da sociedade
democrática e pluralista da contemporaneidade.
Nas palavras do Ministro Gilmar Ferreira Mendes:
Ao exigir o respeito às garantias do devido processo legal e das liberdades em geral, o Supremo, além de agir como guardião da Constituição, impede que o Estado Constitucional seja transformado em Estado de Polícia. O cumprimento dessas complexas tarefas, todavia, não tem o condão de interferir negativamente nas atividades do legislador democrático. Não há “judicialização da política”, pelo menos no sentido pejorativo do termo, quando as questões políticas estão configuradas como verdadeiras questões de direitos. Essa tem sido a orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal, o qual tem a real dimensão de que não lhe cabe substituir-se ao legislador, muito menos restringir o exercício da atividade política, de essencial importância ao Estado Constitucional. Os Poderes da República encontram-se preparados e maduros para o diálogo político inteligente e suprapartidário. Nos Estados constitucionais contemporâneos, legislador democrático e jurisdição constitucional têm papéis igualmente relevantes. A interpretação e a aplicação da Constituição são tarefas cometidas a todos os Poderes, assim como a toda a sociedade. A imanente e aparente tensão dialética entre democracia e Constituição, entre direitos fundamentais e soberania popular, entre jurisdição constitucional e legislador democrático é o que alimenta e engrandece o Estado de Direito, tornando-lhe possível o desenvolvimento, no contexto de uma sociedade aberta e plural, baseada em princípios e valores fundamentais320.
Tal entendimento também é compartilhado por outros ministros que compõem
a cúpula judicial, os responsáveis pela guarda da Constituição, e não vislumbram
esta ação interventiva como uma invasão de competência e atentado democracia.
Esta assertiva pode ser extraída, por exemplo, do discurso321 do Ministro Celso
Mello, quando da posse do atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, em que
suas palavras se fazem imperiosas ao presente estudo:
320 BRASIL. Superior Tribunal Federal. Discurso proferido em homenagem aos 20 anos da Constituição. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=91856&sigServico=noticiaArtigoDiscurso&caixaBusca=N. Acesso em: 15 out. 2008. 321 BRASIL. Superior Tribunal Federal. Discurso proferido pelo Ministro Celso Mello na posse de Gilmar Ferreira Mendes. Disponível em:<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/discursoCMposseGM.pdf.> . Acesso em: 15 out. 2008
180
Isso significa reconhecer que a prática da jurisdição, quando provocada por aqueles atingidos pelo arbítrio, pela violência e pelo abuso, não pode ser considerada - ao contrário do que muitos erroneamente supõem e afirmam – um gesto de indevida interferência desta Suprema Corte na esfera orgânica dos demais Poderes da República. Nem se censure eventual ativismo judicial exercido por esta Suprema Corte, especialmente porque, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário, de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito, inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada por pura, simples e conveniente omissão dos poderes públicos. Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República. Práticas de ativismo judicial, Senhor Presidente, embora moderadamente desempenhadas por esta Corte em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade. A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República.
Assim, acredita que:
Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. De outro lado, Senhor Presidente, a crescente judicialização das relações políticas em nosso País resulta da expressiva ampliação das funções institucionais conferidas ao Judiciário pela vigente Constituição, que converteu os juízes e os Tribunais em árbitros dos conflitos que se registram na arena política, conferindo, à instituição judiciária, um protagonismo que deriva naturalmente do papel que se lhe cometeu em matéria de jurisdição constitucional, como o revelam as inúmeras ações diretas, ações declaratórias de constitucionalidade e argüições de descumprimento de preceitos fundamentais ajuizadas pelo Presidente da República, pelos Governadores de Estado e pelos partidos políticos, agora incorporados à “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, o que atribui – considerada essa visão pluralística do processo de controle de
181
constitucionalidade – ampla legitimidade democrática aos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive naqueles casos em que esta Suprema Corte, regularmente provocada por grupos parlamentares minoritários, a estes reconheceu – pelo fato de o direito das minorias compor o próprio estatuto do regime democrático – (...) Ninguém ignora que o regime democrático, analisado na perspectiva das delicadas relações entre o Poder e o Direito, não tem condições de subsistir, quando as instituições políticas do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as leis, pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição.
E, mesmo reconhecendo a importância da separação de poderes e o grande
risco à democracia, que conforma a existência de um poder ilimitado, ainda assim,
demonstra acreditar que não haverá exercício abusivo quando se tratar de respeitar
os preceitos expressos na Carta Magna:
Como sabemos, o sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação de poderes, teve por objetivo instituir modelo destinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, em ordem a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos Poderes da República (ou daqueles que os integram) sobre os demais órgãos e agentes da soberania nacional. É imperioso assinalar, em face da alta missão de que se acha investido o Supremo Tribunal Federal, que os desvios jurídico-constitucionais eventualmente praticados por qualquer instância de poder – mesmo quando surgidos no contexto de processos políticos – não se mostram imunes à fiscalização judicial desta Suprema Corte, como se a autoridade e a força normativa da Constituição e das leis da República pudessem, absurdamente, ser neutralizadas por meros juízos de conveniência ou de oportunidade, não importando o grau hierárquico do agente público ou a fonte institucional de que tenha emanado o ato transgressor de direitos e garantias assegurados pela própria Lei Fundamental do Estado. O que se mostra importante reconhecer e reafirmar, Senhor Presidente, é que nenhum Poder da República tem legitimidade para desrespeitar a Constituição ou para ferir direitos públicos e privados de seus cidadãos. Isso significa, na fórmula política do regime democrático, que nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado - situe-se ele no Poder Judiciário, no Poder Executivo ou no Poder Legislativo - é imune ao império das leis e à força hierárquico-normativa da Constituição. Constitui função do Poder Judiciário preservar e fazer respeitar os valores consagrados em nosso sistema jurídico, especialmente aqueles proclamados em nossa Constituição, em ordem a viabilizar os direitos reconhecidos aos cidadãos, tais como o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis, pois o direito ao governo honesto traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania. É preciso, pois, reafirmar a soberania da Constituição, proclamando-lhe a superioridade sobre todos os atos do Poder Público e sobre todas as instituições do Estado, o que permite reconhecer, no contexto do Estado Democrático de Direito, a plena legitimidade da atuação do Poder Judiciário na restauração da ordem jurídica lesada.
182
Dos trechos supramencionados, note-se o conhecimento e preocupação da
cúpula do Poder Judiciário brasileiro com as questões atinentes à sua atuação, ao
processo de judicialização da política que enfrenta a sociedade contemporânea,
mas, mais ainda, a preocupação de que os direitos fundamentais não fiquem à
mercê da atuação ou omissão política dos poderes instituídos, tornando-se meras
utopias sociais desprovidas de qualquer força normativa vinculante. Reconhece-se a
necessidade de uma atuação democrática, condizente com as novas necessidades
da sociedade pluralista, mas extremamente comprometida com a guarda dos
preceitos constitucionais, principalmente os que envolvem o núcleo essencial de
qualquer direito. Trata-se do novo paradigma do Estado Democrático de Direito, qual
seja, a dignidade da pessoa humana.
Assim, resta demonstrada a importância da releitura de conceitos como
independência e harmonia, para que, através do comprometimento mútuo dos
poderes instituídos, acrescido da participação popular no exercício de uma cidadania
plena e de aperfeiçoamento democrático, tenha-se o cenário propício à
concretização dos anseios populares expressos na Carta Magna. Contudo, até o
aperfeiçoamento necessário desses institutos, não há como os direitos fundamentais
ficaram inertes, como meras figuras decorativas de cunho essencialmente filosófico,
para não dizer utópico. Tal tarefa incumbe, sim, à jurisdição constitucional enquanto
guardiã da Constituição, pois a exigência do devido respeito a estes preceitos é
indispensável ao Estado Democrático, ainda que isto implique uma releitura da
própria separação de poderes.
183
CONCLUSÃO A conclusão de um trabalho de pesquisa jurídica é apenas uma fração de um
texto um tanto pormenorizado, pois em se tratando de uma ciência prescritiva, não
há como apresentar dados conclusivos, uma vez que sempre se dependerá da
análise do contexto em que é recepcionada assim como do olhar e das pré-
compreensões do seu leitor. Neste momento da pesquisa, apenas reportar-se-ão as
indagações alhures apresentadas no transcorrer da investigação científica, com o
intuito de retomar brevemente o caminho transcorrido ao longo de sua elaboração.
Como se trata de uma tentativa de adequação teórica do “antigo” instituto da
separação de poderes, eis que “renasce” propriamente no Estado Liberal, a uma
realidade gritantemente diferenciada, a metodologia desta conclusão far-se-á a partir
do contraste para se chegar ao apontamento de um possível caminho: a solução do
problema apresentado no projeto inicial, e a realização do presente estudo.
A primeira questão levantada se refere à satisfação da temática relacionada
com a área de concentração – Demandas Sociais e Políticas Públicas - , bem como
à linha de pesquisa – Constitucionalismo Contemporâneo, nas quais o trabalho deve
estar necessariamente inserido. A pesquisa apresentou a preocupação com ambas
as temáticas, vez que, materializou-se tal preocupação trazendo-se à baila novos
paradigmas do constitucionalismo contemporâneo quando se tratou de um dos
pilares da sua construção, a teoria da separação de poderes, assim como, talvez, a
maior de suas inovações: o reconhecimento da força normativa do princípio da
dignidade da pessoa humana. Na medida em que se examinou a necessidade de
concretização dos preceitos constitucionais e, para tanto, a possibilidade de uma
jurisdição mais interventiva, filiou-se ao intento de investigar as demandas sociais e
as políticas públicas para a efetividade destes direitos na contemporaneidade.
Historicamente, pertence ao Estado Liberal - especialmente ao momento
revolucionário de 1789 – a positivação do princípio da separação de poderes, que,
juntamente com o reconhecimento e inserção dos direitos fundamentais, constituem
um núcleo basilar das primeiras Constituições Liberais, cujo objetivo era impor os
fundamentos dos ideais burgueses de liberdade.
184
Esta fixação na afirmação do direito de liberdade deu-se através da sua
positivação a fim de gerar a idéia de segurança jurídica através do império da lei,
que encontra respaldo quando se analisa o período histórico vivido anteriormente,
qual seja, o Estado Absolutista. Muitas das respostas às preferências das
Constituições liberais são compreensíveis quando se conhece a realidade existente
no Absolutismo, momento em que a figura do monarca, confunde-se com a figura da
própria lei. Assim, o Estado, como fonte única e exclusiva da lei, e o monarca
confundindo-se com a própria figura do Estado, a criação do direito, bem como a
quem os mesmos seriam destinados, dependeria da vontade do monarca.
Sob este aspecto, com clareza exsurge o receio em relação ao abuso do
arbítrio do poder, eis que a experiência histórica demonstrou que a concentração
exacerbada de poder nas mãos de um único órgão, tende a abusos. Portanto, a
recepção da doutrina da separação de poderes nas primeiras Constituições tem este
grande objetivo: garantir os direitos fundamentais através da separação de poderes.
Ocorre que a separação de poderes não se apresenta, enquanto doutrina, apenas
na época do liberalismo; ela encontra referências muito mais remotas, como no caso
da teoria da Constituição Mista322 - aquela em que vários grupos ou classes sociais
participam do exercício do poder político-, e tornou-se símbolo de limitação e
moderação do poder da monarquia absolutista.
Embora outros doutrinadores já tivessem ventilado esta preocupação com o
controle do poder, como Maquiavel e, especialmente, Locke – que para muitos foi o
primeiro a apresentar a separação de poderes - a referência moderna da separação 322 Pela tese do governo misto, Montesquieu estaria (somente) revitalizando as teorias desenvolvidas pelos filósofos gregos clássicos, como Aristóteles, por exemplo. O ponto de partida é aqui a obra de Heródoto ("História", Livro III, §§ 80 a 82), mais exatamente o debate entre os três príncipes persas que se perguntam: "qual a melhor forma de governo? O governo de um, o governo de poucos ou o governo de muitas pessoas?". É desde os gregos que se propunha como solução ideal para a forma de governo do Estado a tese do "governo misto": três órgãos distintos de Poder, cada qual representativo de uma classe social específica (um primeiro órgão para o governo de um: o monarca, um segundo órgão para o governo de poucos: a aristocracia, um terceiro órgão para o governo de muitos: o povo).Por causa da pormenorizada análise que Montesquieu faz da forma de governo adotada na Inglaterra, a real intenção de Montesquieu seria "provar" que o "governo misto" (ou: o "governo moderado") era a própria forma de governo inglesa (cabe novamente lembrar que o título do Capítulo é "Da Constituição da Inglaterra"), composta: 1) pelo Rei (governo de um),2) pela Câmara dos Lordes (governo de poucos),3) pela Câmara dos Comuns (governo de muitos).Ao final do Capítulo VI do Livro XI Montesquieu dirá então ter “descoberto” um Estado onde esse ideal perseguido desde os gregos antigos finalmente existia como realidade: "Não compete a mim examinar se os ingleses gozam atualmente dessa liberdade, ou não. Basta-me dizer que ela se acha estabelecida pelas suas leis, e não procuro saber nada mais".
185
de poderes tem seu liame na Rule of Law dos Séculos XVII e XVIII, pois, como já
referido anteriormente, a separação de poderes tem um papel a cumprir com o
chamado império da lei, com a idéia de propiciar segurança jurídica.
No entanto, indiscutivelmente, foi Montesquieu que abarcou o mérito de ser o
grande sistematizador desta doutrina e que ficou mundialmente conhecida através
de sua obra: Espírito das Leis, em que esclarece, com veemência, que sua
preocupação central era com a afirmação e mantença da liberdade.
Ao se analisar o contexto a que a obra se referiu, qual seja, a Constituição
inglesa, vê-se com clareza que encontra, na formação político/social da Inglaterra, a
figura do governo do meio já referido em Aristóteles, ou seja, Monarquia, Câmara
dos Lordes e Câmara dos Comuns. Ele pensou em um sistema de freios e
contrapesos voltado ao executivo e legislativo, pois a grande intenção da
sistematização consistia em separar a figura do criador e do executor da lei, a fim
de, justamente, garantir, assim, os direitos de liberdade e de propriedade - bandeiras
do ideal burguês contra o sistema absolutista que imperava até então.
Embora Montesquieu tenha feito referência às três funções - a de fazer leis, a
de executar as leis e a de julgar - esta última muito mais restrita, pois afirmou que
os juizes eram meramente a “boca da lei”, ou seja, não lhes cabia interpretá-la,
apenas deveriam proclamar o que fora decidido em sede legislativa. Também, ao se
referir ao papel dos juízes, o autor reporta-se aos Tribunais do Júri, deixando
transparecer que não pensou na idéia de juízes como uma organização judiciária,
composta por corpo de magistrados, como se tem nos dias de hoje.
Quando Montesquieu tratou da independência e harmonia entre os poderes, a
realidade era completamente diferente da dos Estados Democráticos, na concepção
de democracia comprometida e submetida à concretização dos direitos
fundamentais, que à sua época, restringiam-se apenas aos ditos direitos
fundamentais de primeira dimensão, os direitos individuais caracterizados pela idéia
de abstenção do Estado. Portanto, não se cogitava a idéia de pluralismo político, de
várias ideologias partidárias e, menos ainda, de uma sociedade altamente complexa
e conhecedora dos seus direitos.
186
Indiscutivelmente, a separação de poderes enquanto instrumento para a
afirmação dos direitos fundamentais e proteção do império da lei através da
distribuição de poderes, foi imprescindível e cumpriu imperiosamente o papel ao
qual se propôs. Contudo, para sua devida recepção nas Constituições
contemporâneas, faz-se mister reconhecer as diferenças políticas e culturais,
principalmente, os direitos que, com ela se visa assegurar, para então ser possível
sua adequação aos dias de hoje.
Dessa forma, alguns elementos merecem ser destacados. Da mesma forma
que quando exsurge a separação de poderes – com seu sistema de freios e
contrapesos, de independência e harmonia – sua rigidez era necessária como forma
de garantir os direitos fundamentais, especialmente, a liberdade e a propriedade.
Hoje, a flexibilização desta teoria se torna imprescindível pelo mesmo motivo: o de
garantir os direitos fundamentais. Assim, quando um dos poderes falhar frente a sua
realização, uma interferência não constitui uma afronta à separação, na medida em
que o intuito é justamente, concretizar o que a própria separação se propôs na sua
concepção.
O papel atribuído à jurisdição, atualmente, não deve possuir a mesma
desconfiança atribuída aos juízes em Montesquieu, visto que se outorga ao
Judiciário o papel de guardião da Constituição e, conseqüentemente, o de último
intérprete na proteção dos direitos dos cidadãos. Sequer se pode pensar em um
Judiciário como mero fiscalizador do cumprimento da lei, eis que, com o processo de
constitucionalização dos princípios, com a dupla perspectiva dos direitos
fundamentais e sua eficácia irradiante, e, essencialmente, a dignidade da pessoa
humana como princípio estruturante de todo sistema jurídico, torna-se impossível a
aplicação do direito sem um certo construtivismo interpretativo.
A judicialização da política é uma conseqüência natural da democratização do
direito e da tentativa da máxima concretização dos direitos fundamentais, motivo
pelo qual um Judiciário mais interventivo não fere a democracia se, no exercício de
sua função, fizer valer os preceitos constitucionais; antes pelo contrário, reforça o
regime democrático na medida em que não permite o desrespeito aos direitos
187
fundamentais. Caso o Poder Judiciário se negue a assumir tal postura, estará
colocando em risco os bens jurídicos que lhe cabe preservar através da outorga da
soberania popular.
Enfim, a separação de poderes tem como ponto de partida o próprio texto
constitucional ("atual e vigente" e "democraticamente promulgado"), e não as teorias
acerca da separação de poderes produzidas no passado por este ou por aquele
autor. Teorias não são direito vigente. E, sendo uma teoria positivada, o que vale
juridicamente falando é unicamente o direito positivado, não a teoria que lhe deu
origem, pois serve apenas com um subsídio teórico. Logo, um estudo dogmático-
jurídico do princípio da separação de poderes tem por objeto único e exclusivamente
o direito constitucional vigente. Só de modo "historicamente subjacente" ou "oculto"
permanece a idéia original: a separação de poderes existe ou se concretiza jurídico-
positivamente em função dos direitos fundamentais.
Corroborando as idéias discorridas, conclui-se pela necessidade de uma
releitura dos conceitos de independência e de harmonia vinculados à teoria da
separação de poderes, devendo os mesmos ser tidos como uma forma de
complementação funcional, quando um dos poderes falhar na realização dos direitos
fundamentais. Deve-se, no constitucionalismo contemporâneo, pensar, mais, em
uma cooperação entre poderes, cidadãos e sociedade como um todo, na busca dos
ideais democráticos, na construção de uma sociedade justa e igualitária, voltada,
precisamente, ao respeito e à realização da dignidade da pessoa humana, enquanto
valor fundante do Estado Democrático de Direito.
188
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