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Alessandro Ventura da Silva A cidade como personagem: um estudo sobre passado e vanguarda na Buenos Aires do escritor Jorge Luis Borges Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio. Orientadora: Profª. Flávia Maria Schlee Eyler Rio de Janeiro Setembro de 2007

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Alessandro Ventura da Silva

A cidade como personagem: um estudo sobre passado e vanguarda na

Buenos Aires do escritor Jorge Luis Borges

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio.

Orientadora: Profª. Flávia Maria Schlee Eyler

Rio de Janeiro Setembro de 2007

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Alessandro Ventura da Silva

A cidade como personagem:

um estudo sobre passado e vanguarda na Buenos Aires do escritor Jorge Luis Borges

Dissertação apresentada como requisito parcial paraobtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamentode História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª Flávia Maria Schlee Eyler Orientadora

Departamento de História PUC-Rio

Profº Antonio Edmilson Martins Rodrigues Departamento de História

PUC-Rio

Profª. Adriana Facina Gurgel do Amaral

Departamento de História UFF

Profº João Pontes Nogueira

Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais PUC-Rio

Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2007.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Alessandro Ventura da Silva Graduou-se em História na Universidade Federal Fluminense em 2004. É autor de vários artigos em revistas acadêmicas especializadas, alem de ter participado de congressos no Brasil e no exterior.

Ficha Catalográfica CDD: 900

Silva, Alessandro Ventura da A cidade como personagem : um estudo sobre passado e vanguarda na Buenos Aires do escritor Jorge Luis Borges / Alessandro Ventura da Silva ; orientadora: Flávia Maria Schlee Eyler – 2007. 143 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Argentina. 4. Modernização. 5. Vanguarda. 6. Borges, Jorge Luis. 7. Buenos Aires. 8. Passado. I.Eyler, Flávia Maria Schlee. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História.III. Título.

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À Lully é claro...

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Agradecimentos À medida que fui compondo o texto desta dissertação contraí inúmeras dívidas de

gratidão com pessoas das mais diversas latitudes. Pra começar esta seção, no

entanto, é preciso frisar que nenhuma delas pode ser comparada a Jean Baptiste

Lully.

Lully é especial não apenas por “Alceste ou Triomphe D’Alcide”, mas é também

pela serenidade, por sua leveza e paciência, sem as quais não poderia ter sido

possível esta dissertação. Ademais, Lully compôs o “inteirinho” cuja graça e

beleza sou eternamente grato. Para que esta seção não se transforme num

enfadonho name dropping, admoesto que por Lully deixarei de fora nomes de

peso como Heráclito e Wittgenstein.

Devo ao tema geral desta dissertação a duas importantes figuras. Membro da

banca examinadora, Professora Dra. Adriana Facina, talvez sem perceber, abriu-

me perspectivas não apenas no momento de orientação da monografia de final de

curso, mas sobretudo pelo que pessoalmente representa para minha formação uma

inesquecível disciplina em tempos de graduação na Universidade Federal

Fluminense: História das Formas e Artísticas e Literárias da América Latina. O

impulso inicial um tanto ingênuo, o de tentar discorrer sobre literatura como a

Professora Adriana discorria, coincidiu com a primeira leitura de Borges, em tom

audível e numa residência prazerosamente habitada: a “Alvitinho” devo minha

primeira leitura de “o Aleph” de Jorge Luis Borges. Daí em diante... Bem, resta-

me agradecer a estas duas pessoas nas quais muito me orgulho ainda estar ligado

de alguma forma.

Já na PUC foi fundamental o contato com os autóctones Murilo Sebe e Thiago

Florêncio. Quanto aos oriundi, D. Pinha e Eduardo serão os agraciados. Entre os

dois grupos situam-se Janaína Oliveira e Rômulo. Todos estes foram

fundamentais em conversas, indicações de leituras e demonstração de amizade.

Karina Vásquez foi preciosa nas conversações e no acesso que me franqueou à

Revista Punto de Vista, bem como a um importante livro de Beatriz Sarlo. A

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Gustavo Naves, agradeço a muitas das idéias proporcionadas pelos bate papos nos

cafés e nos corredores. Aos funcionários do departamento de história agradeço a

gentileza e presteza.

Devo muito ao Prof. Robin Lefére da Universidade Livre de Bruxelas pelos textos

enviados, leitura e interesse demonstrado. A Michel De Reymaeker, Blanche

Verhaegen e Hélène meus agradecimentos por tudo que fizeram por mim, pela

amizade, textos, jornais e revistas sobre o assunto e, naturalmente, por Lully.

Aos amigos Marcelo do Prado, Leonardo Lopes e Danielle Cristina, devo o

conforto de uma amizade afetuosa. Marisa e Josué foram imprescindíveis neste

momento final. A vocês dois agradeço a carinhosa acolhida, as conversas e a

generosidade revelada em mais de um ato. Obrigado mesmo!

Aos Professores Antônio Edimilson e Luiz Costa Lima pelas ricas indicações no

exame de qualificação.

Ao CNPq por tornar viável esta pesquisa.

Aos meus familiares, minha mãe e Elaine Ventura.

A minha orientadora Prof. Dra. Flávia Schlee Eyler, adorável, impecável em

todos os quesitos, devo a paciência, leitura atenta e encorajamento em todas as

etapas deste processo. Pertence a nós, Prof. Flávia, a felicidade de encontrar em

seu labor o equilíbrio de respeito e severidade necessários a confecção daquilo

que é tão caro em nossa formação. Esta dissertação possui a feição deste

venturoso relacionamento.

À tudo agradeço a Coline, mon petit chou, alfa e ômega dos agradecimentos.

Divisor de águas em minha vida...

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Resumo

Ventura, Alessandro da Silva; Eyler, Flávia Maria Schlee. A cidade como pesonagem: um estudo sobre passado e vanguarda na Buenos Aires do escritor Jorge Luis Borges. Rio de Janeiro, 2007. 143p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Tema desta dissertação, o escritor Jorge Luís Borges nasceu em Buenos

Aires, centro político-financeiro e capital da Argentina no ano de 1899.

Remontando à aurora de seus escritos, o momento de largada de sua produção

literária coincide com um intenso processo modernizador em sua cidade natal.

Com efeito, frente a uma Argentina que cresce em escala alarmante, Borges em

1921 e aos 21 anos regressa a Buenos Aires após uma temporada de sete anos em

solo europeu. Ao chegar se depara com uma cidade profundamente distinta de

quando partiu: aumento populacional, imigração maciça e uma inegável

transformação no tecido físico da cidade e dos meios de transportes. Estas novas

características faziam parte do impulso modernizante que soprara na capital

portenha. Por seu turno, Borges engaja-se nas correntes vanguardistas do período

e do seu interior fazia ecoar tanto um tom de franco otimismo acerca das recentes

possibilidades de intervenção no panorama literário local, quanto numa clave

melancólica, um Fervoroso lamento poético sobre a abrupta transformação de sua

cidade Buenos Aires.Esta dissertação tem como objetivo analisar o movimento

literário do escritor frente às alterações que permitiram um alcance mais amplo

para sua prática vanguardista, assim como refletir sobre o sentimento de

perplexidade que se deu em seu retorno, ao perceber uma cidade alterada em seus

traços primordiais. Desta forma, o entusiasmo de vanguarda será discutido à luz

dos manifestos assinados pelo autor e seus textos programáticos de renovação

literária. Quanto a outra postura, será analisada pelo Réquiem produzido por

Borges em seu primeiro livro de poemas Fervor de Buenos Aires em que o

escritor dá ensejo ao movimento de irrealização de uma realidade percebida como

estranha com o fito de realizar seu imaginário.

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Palavras-chave

Argentina; Modernização; vanguarda; Jorge Luis Borges; Buenos Aires; passado.

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Résumé

Ventura, Alessandro da Silva; Eyler, Flávia Maria Schlee (directrice de dissertation). La ville comme personnage: une étude du passé et de l’avant – garde dans le Buenos Aires de l’écrivain Jorge Luis Borges. Rio de Janeiro, 2007. 143p. Dissertation de Maîtrise – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Thème de cette dissertation, l’écrivain Jorge Luis Borges, né en 1899 à

Buenos Aires, centre politico-financier et capitale de l’Argentine. En reprenant le

début de sa production littéraire, on remarque que celui-ci coïncide avec le

moment d’un intense processus modernisateur dans sa ville natale.En effet, face à

une Argentine qui grandit dans des proportions alarmantes, Borges, en 1921,

revient à Buenos Aires après un séjour de sept ans sur le sol européen. En

arrivant, il sera confronté à une ville profondément distincte de celle qu’il a

quittée : augmentation de la population, immigration en masse et une inégale

transformation dans le tissu physique de la ville et des moyens de transport. Ces

nouvelles caractéristiques faisaient partie de l’impulsion modernisatrice qui

soufflait dans la capitale porteña. À son retour, Borges s’engage dans les courants

avant-gardistes du moment et y fait aussi bien éclore un ton de franc optimisme

quant aux récentes possibilités d’intervention dans le panorama littéraire local

qu’une note mélancolique, une fervente plainte poétique sur l’abrupte

transformation de sa ville, Buenos Aires.Cette dissertation a pour objectif

d’analyser le mouvement littéraire de l’écrivain face aux altérations qui ont

permis une portée plus ample à sa pratique avant-gardiste, ainsi que réfléchir sur

le sentiment de perplexité vécu à son retour, en voyant une ville altérée dans ses

traits primordiaux. De cette façon, l’enthousiasme de l’avant-garde sera discuté à

l’aide des manifestes signés par l’auteur, ainsi que ses textes « programmatiques »

de rénovation littéraire. Quant à l’autre posture, elle sera analysée à partir du

Requiém produit par Borges dans son premier recueil de poèmes Fervor de

Buenos Aires où l’écrivain laisse la possibilité au mouvement

d’ « irréalisation d’une réalité » perçue comme étrange avec l’intention de réaliser

son imaginaire.

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Mots-clés Argentina ;modernisation ; avant-garde ; Jorge Luis Borges ; Buenos Aires ; passé.

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Sumário

1. Introdução 13

2. O Fascínio da Urbe Moderna: Buenos Aires, a Cidade do

Espetáculo Cindido 18

3. Jorge Luis Borges e o vanguardismo entusisasta 51

4. Jorge Luis Borges e a cidade na poesia de Fervor de

Buenos de Aires 90

5. Conclusão 132

6. Referências Bibliográficas 135

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Empecé a buscar la tierra de mis sueños desvanecidos cruzando el país del Sur al Norte y del Este al Oeste, y descubrí una Argentina cuyas bellezas se brindan a quien las trata con cariño y amor.Estas pocas imágenes son como un puñado de flores recogido en un ignorado jardín cuyas múltiples hermosuras dificultan la selección. GustavoThorlichen, La Republica Argentina

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1 Introdução

Podemos dizer que nos anos de 1920 o ritual excêntrico da cidade de Buenos

Aires encorajou a prática das vanguardas em Jorge Luis Borges, assim como seu

refluxo. A partir da segunda metade do século XIX, com a consolidação do sistema

econômico capitalista no predomínio das relações comerciais, temos o advento de um

vertiginoso crescimento da Argentina refletida especialmente em sua capital, Buenos

Aires. Historicamente, seus interesses foram sendo pouco a pouco impostos sobre outras

regiões da Argentina. Na verdade, seu destino acabou por configurar-se na tão

famigerada batalha entre unitários e federalistas. Assim, após estas lutas intestinas,

Buenos Aires terminou por conquistar seu lugar de grandeza na história do país e pôde

finalmente adentrar no tão almejado processo modernizador.

Fatalmente, esta marcha é mais ampla. Num processo de modernização

deliberadamente polêmico, muitas capitais da América Latina engajam-se na

transmutação de seu casco físico e na conversão da atmosfera espiritual ao redor. São

metamorfoses em escala tão grandiosa que muito dos contemporâneos assistem ativa ou

passivamente como que perplexos a esta guinada poderosa. São transformações de toda

ordem: desbaratamento do passado representado nos edifícios coloniais, alargamento

das ruas transformando-as em avenidas, modernização das vias comunicacionais e

meios de transportes para citar alguns. Neste sentido, o caso buenairense é mais que

especial.

Impulsionadas por estatísticas otimistas quanto ao futuro do país, as elites

argentinas decidem como projeto não mais contribuir ao triste folclore político que

manchara seu passado no século XIX: uma história de caudilhos, militares, violência,

assassínio e, naturalmente, colonização. Um outro horizonte se descortinava. Um

otimismo urbano dilatava-se nas mais extravagantes teorias e tomava conta dos debates

em torno de qual compleição a Argentina deveria adotar. Assim, sendo possível uma

favorável oscilação deste pêndulo agourento, caberia ao Estado apenas o fomento na

criação de riquezas e fortuna que os diagnósticos de um futuro venturoso cada vez mais

iriam apontar.

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O admirável a se constatar nesta expansão, é o grau de desequilíbrio e

instabilidade gerados pela tentativa de materialização daqueles sonhos. As contradições,

inerentes em qualquer ser, grupo ou sociedade, são elevadas a patamares pungentes com

o processo modernizador da cidade de Buenos Aires. A cidade se transforma. Em sua

circulação, passado e futuro passam a ser encarados como moedas confusas. Nesta

ciranda plena de enlevo e sedução, passam a ter expressão o aleatório e o insólito, as

alegorias e complexidades, aglomerados de fatores que somados e diuturnamente

engendrados podem ser identificáveis no âmbito do pensamento de uma nova

modernidade.

Seguramente, logramos dizer que Buenos Aires como locus de um absurdo tão

rapidamente adquirido, passara então, a ser domicílio de um estranhamento sem

precedentes em sua história. Em crescente medida, este sentimento de estranhamento

estava associado a inúmeros fatores que permeavam a vida na cidade no seu alvorecer:

as incertezas sobre a significação de muitos fragmentos simultâneos; a perda por parte

de seus habitantes de saber interpretar a si própria e o entorno; a coexistência de

linguagens e de variadas mídias; a comunicação de grupos heterogêneos através do

espaço; o desenvolvimento de uma cultura da individualidade e nas formas de

violência.1

De nossa parte, parece que a mais alta gradação de estranhamento estava

presente na cidade de Buenos Aires pelos elementos acima sublinhados. Eles serão

tratados através da presença maciça de imigrantes que ao desembarcarem na capital

portenha ao longo dos anos, especialmente na virada do século em diante, deram ensejo

a um novo mosaico numa cidade já em franco processo de mudanças. As conseqüências

advindas desta nova composição urbana, um verdadeiro batalhão de seres humanos que

abandonaram seus laços familiares para enriquecer ou “fazer a vida” e que alistaram-se

nas fileiras em busca de uma vida melhor, serão observados no primeiro capítulo da

dissertação, sob a forma de manifestação bastante comum deste sentimento de

estranhamento: os imperativos de ordenamento da nova horda produziu a moralização

do espaço vivencial público.

Como veremos, se é verdadeiro que os imigrantes contribuíram para compor

uma sociedade buenairense mais heterogênea, também não é menos verdade que

ajudaram a compor um novo elenco de imagens que, associados as novas comunicações

1 GOMES, R. C., Todas as Cidades, a Cidade: literatura e experiência urbana, p. 77.

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em jogo, alteraram sensivelmente o espaço citadino. Pretendemos com isso afirmar, que

as transformações rápidas tiveram de ser processadas tanto para o imigrante estrangeiro

quanto para o transeunte comum, habitante de Buenos Aires desde sempre. Deste modo,

as novas modulações em circuito tornaram quase ilegíveis os códigos herdados

propiciando a cidade símbolos poderosos que atestaram a existência de uma sociedade

cada vez mais rica e complexa.

Naturalmente, as alterações se dão em diversos níveis: individualidade

exacerbada pela contínua pressão por melhores postos de trabalho, novas tecnologias de

comunicação e transportes, entre outros. A escolha destas modificações para compor o

corpo do texto é tributária das diversas leituras sobre os projetos-processo de

modernização em Buenos Aires e suas conseqüências mais salientes. Mais de uma vez

nos sentimos tentados, dada a riqueza do assunto, a desviar o olhar para um outro

chamado, igualmente fecundo em temática, e que certamente poderia produzir uma

análise em outra direção. Ao vedarmos os ouvidos para o canto da sereia não é

improvável que poderíamos deleitar-nos com uma suave e bela melodia.

A alusão incidirá recorrentemente na orientação das formas que a modernidade

em Buenos Aires foi paulatinamente adquirindo e que assim passou a transformar a si

própria e aqueles que com a cidade tiveram contato. E mais, serão enfatizados os

aspectos que na modernização da capital portenha mais impressionaram o escritor Jorge

Luis Borges em seu retorno.

Com efeito, é lugar comum a difusão de algumas particularidades da biografia

do escritor Jorge Luis Borges. Sabe-se, portanto, que com 14 anos, ainda um

adolescente, Borges parte com sua família para uma estada de sete anos em solo

europeu. No regresso do escritor e sua família a cidade natal, percebe-se uma Buenos

Aires alterada em seus aspectos mais ostensivos. Uma idéia deste retorno é outro lugar

comum no que tange a vida do escritor: símbolos importantes de uma fascinante cidade,

quando Jorge Luis Borges retorna a Buenos Aires, estão de pé ou em vias de serem

construídos, ou até mesmo em processo de remodelação o Jardim Botânico, Zoológico

da cidade, Teatro Colón (la mejor acústica del mundo) dizem os portenhos, Casa

Rosada e o Edifício do Congresso Nacional Argentino. Estes locais são relevantes na

medida em que comportam os signos de boa parte da história moderna da cidade de

Buenos Aires. Embora não iremos nos deter mais sobre eles, o importante é perceber o

quanto foi alterado, ou ainda o quanto foi destruído para que tais logradouros surgissem

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e contribuísse para a perplexidade imaginária do início da carreira literária do nosso

jovem escritor.

Neste momento em Buenos Aires, procura-se perceber as intervenções como

sendo essencialmente urbanas e a sociedade que a compõe como detentora de várias

contribuições que a cultura ocidental lhe legou. Naturalmente, esta idéia ganha mais

força se não desdenharmos do papel desempenhado pela modernização e o

extraordinário crescimento da cidade, não se omitindo, é claro, a função que obteve a

imigração no sentido de incrementar essa intensa permuta.

No segundo capítulo veremos que o verdadeiro turbilhão de que a cidade de

Buenos Aires é lugar, como centro irradiador de cultura e lugar de cruzamentos, é que o

jovem Borges é incontestavelmente assaltado. Assim, como se fosse impossível evitar, a

sedução do escritor pelo impacto da nova cidade faz com que ela se torna receptáculo

para suas idéias e um favorável ambiente para a experimentação literária. O

desdobramento do segundo capítulo notará que há sempre uma busca de uma arte nova

e absoluta que substitua a falta de sentido das produções literárias anteriores: trata-se do

Borges das vanguardas. Nesta perspectiva, o escritor compactua com o otimismo

presente em mais de uma parte da vida urbana buenairense e apela para o esgarçamento

da relação autor-recptor presente na dedicação beligerante da confecção dos manifestos

murais. Borges subemete-se, entrega-se a esta atmosfera nova e passa a atacar

publicamente tudo aquilo que representava o passado em termos de literatura e estética.

Deste modo, veremos que a cidade de Buenos Aires com seu cosmopolitismo cada vez

mais extenso vai se transformando no lugar onde se procede a remodelação do passado

cultural. A forma escolhida pelo escritor não poderia ser mais pública que os manifestos

murais.

Certamente o conforto borgeano frente a expansão da cidade e suas

possibilidades de experimentação artísticas continha alguns riscos inerentes. Numa

exposição sumária, podemos dizer que o sentimento otimista, essa escancarada

liberdade franqueada pela cidade moderna e seus aparatos que encorajavam uma postura

aguerrida em nome do novo, forneceram coordenadas para que o escritor sentisse do

interior do seu labor as próprias vicissitudes da ambiência moderna materializadas na

angustiosa dimensão desta transitoriedade. Assim, o terceiro capítulo discorrerá sobre as

determinantes que fizeram com que Jorge Luis Borges produzisse seu primeiro livro de

poemas Fervor de Buenos Aires no seio da modernidade portenha. Refletiremos, então,

na direção de que sentindo uma profunda profanação de aspectos vitais de sua cidade

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nesta atualidade moderna, o escritor aparenta recorrer a sacralização de elementos

presente na antiga cidade antes do processo modernizador.

Representando o momento de largada da produção literária de Jorge Luis

Borges, a década de 1920 em sua cidade natal, Buenos Aires jamais sairá de seus temas

e contos. A finalidade do nosso procedimento é atestar como o contato com a urbe

produziu obras tão densamente complexas e marcadas por uma indeterminação típicas

de uma atmosfera em voltagem. Na verdade, há de pensar-se no redimensionamento da

categoria cidade, passado e moderno e como tais instâncias naquele início propiciou os

primeiros passos de um admirável escritor.

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O Fascínio da Urbe Moderna: Buenos Aires, a Cidade do Espetáculo Cindido.

Quando o século XX eclodiu em Argentina trouxe consigo inúmeras

transformações e as mais diferentes modalidades de progressos técnicos. E, paralelo a

estas transformações e desenvolvimentos, havia uma série de questões propriamente

humanas, de rupturas e quebra de laços fraternos, que urgiam há muito serem

respondidas. No caso deste novo século que então iniciava, no interior daquilo que só

mais tarde se saberia como sendo sua turbulenta viagem, os mais recentes aparatos

técnicos e invenções, inovações de ampla latitude deram pouca contribuição para

resolução dessas questões. Na verdade, poderíamos começar a desdobrar nossa análise

desse início de século em Buenos Aires convergindo nossa investigação numa direção

marcadamente acusatória. O advento do horror materializado na execução sumária dos

indígenas e os desdobramentos para a imposição da cidade de Buenos Aires como

capital federal em 1881, representaram de fato, verdadeiro custo humano. Este processo

que à luz do tempo deixa a impressão, dada a relativa distância quando comparado com

os tempos atuais, de que foi paulatinamente conduzido por si mesmo forneceria

materiais eloqüentes para uma análise neste sentido.2

Mas não obstante a importância desses acontecimentos, o que se pretende, é

verificar o quanto ao adentrar o século XX buenairense as questões que por razões

diversas não foram resolvidas e que, conforme dissemos estavam urgindo para que o

fossem, foi se acumulando a outras, o que certamente contribuiu para a exigência de

novas sensibilidades. Eventos que, como outras possibilidades de análise já

demonstraram, ganham relevância a medida que se percebe que os fatos se

desenrolaram numa direção absolutamente fascinante do ponto de vista histórico e

2 Para este assunto reporto-me por: DONGHI, T. H., Historia Contemporânea de América Latina; BEIRED, J. L., Breve história da Argentina; ROMERO, L. A., Breve História Contemporânea de la Argentina.

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cultural.3 Neste sentido, a escolha da cidade de Buenos Aires após esses relevantes

reveses é mais que particular: dada as suas especificidades podemos caracterizá-la como

uma cidade marcadamente sui generis frente a outras cidades em Argentina, ou como

nos diz um geógrafo da cidade portenha Florêncio Escardó:

Ninguém se apresse a entender o que é uma cidade argentina ou a capital da República. Não; é, sim, a capital dos argentinos e uma cidade do mundo na costa do Prata. Não se parece com nenhuma das capitais da América que encefalizam e miocardizam o país que as contém. Buenos Aires é Buenos Aires; se define, sem enunciação possível, apenas pelo prestígio de sua presença. 4

É, pois, neste cenário de singularidade e turbulências, que a palavra vertigem

surge com palpável inevitabilidade. Com um mundo passando por um processo de

transformação veloz, Buenos Aires, capital Federal da República Argentina, aparece

como cidade espetáculo e vai conquistando seu lugar central no território em um país

cultural e economicamente periférico. De posse deste diagnóstico desanimador, que, no

entanto era (por que não?) passível de sensíveis alterações, ensaia-se a tentativa de

inserção do país no concerto das nações mais bem sucedidas do Ocidente. Assim,

Buenos Aires funcionaria como materialidade em Argentina e entre suas principais

concorrentes na América do Sul como a cidade que estava mais que pronta a fornecer ao

submundo do sul do continente o exemplo mais eficaz na produção de estatísticas

econômico-sociais que fossem menos tímidas e de caráter mais positivadas. 5

Umas das primeiras grandes transformações por qual passou a cidade portenha

data desde muito tempo. Por um esforço de reconstrução histórica poder-se-ia alçá-la

desde os tempos mais pretéritos. Último recanto da ingerência espanhola, um antigo e

obsoleto porto dava à cidade um aspecto quase místico. De fato, o impulso

modernizador que estava na ordem do dia a transformou em um lugar bastante

instigante: a exigência de se transformar o espaço físico deu ensejo a uma tradição

ambígua com contribuição de diversas comunidades e estilos culturais:

É ademais uma cidade da raça branca e de língua espanhola em uma medida que nenhuma outra cidade do mundo pode reclamar. É uma cidade branca de uma América mestiça. Nela um negro é tão exótico como em Londres (...) Seus

3 O elemento de fascínio e singularidade como outras atribuições usadas para denominar a experiência em Buenos Aires da década de 1920 está marcado em vários estudos sobre a cidade e este período. Ver: SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930; ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires. 4 ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p.18. 5 ROSARIOS, O., América Latina: veinte repúblicas, uma nación, p. 13.

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homens e suas mulheres não possuem todos a mesma cor nem da pele nem do cabelo, mas são brancos. Isto não constitui um privilégio, sobretudo do ponto de vista decorativo, mas é uma boa possibilidade eugênica. 6

Ao longo dos anos, ao contrário dos traços de constância homogênea

sublinhados por Florencio Escardó, a cidade crescia granjeando novas cores,

esparramada que estava sobre a geografia pampeana que a cercava. O advento da urbe

babélica propiciou a perda de sua suposta homogeneidade alva. Com tons cada vez mais

criolo e cosmopolita do ponto de vista racial e étnico, a cidade parecia alheia aos

bulícios e sobressaltos causados pelas disputas entre unitários e federalistas, mesmo que

fosse dela e em seu interior que se desenrolassem as principais controvérsias sobre o

assunto. Por outro lado, embora o geógrafo admita não considerar a brancura da pele

dos cidadãos portenhos como um privilégio, assim mesmo deixa transparecer um ar de

vaidade quanto a “uma boa possibilidade eugênica”. Isto é, conforme Escardó, a

homogeneidade que a cidade de Buenos Aires era lugar antes da avalanche

modernizadora, estava visível na cútis e nos cabelos dos seus conterrâneos. Mas esta

reclamada homogeneidade veio a ser sensivelmente alterada com o advento do processo

modernizador. Esta linha de análise, cujo sentido é amplificado nas palavras de Juan

Sebreli:

A rua, de pátio familiar que era, passa a ser terra de ninguém, uma encruzilhada, onde qualquer coisa pode ocorrer a volta de cada esquina. O anonimato assegurado pela aglomeração e as inusitadas possibilidades de ocultação e de segredo na grande cidade, similar nisto a uma selva emaranhada, com todos os recovos, seus becos, seus esconderijos, são condições favoráveis para uma vida mais múltipla, variada e perigosa, com conflitos e antagonismos aguçados, com infinitas oportunidades para o drama e para aventura. 7

Contudo, no alvorecer de um empreendimento inovador e até certo ponto

revolucionário, o que mais pesou foi a tradição e a herança de um passado coloniais

visíveis nos mais diversos traços. Segundo Elisa Radovanovic bastava passear pelas

ruas da cidade de Buenos Aires para poder ver de perto e sentir os traços daquilo que os

argentinos não mais queriam se recordar: a persistência de tetos de azotea, um número

sem fim de edifícios de pouca altura e a carência de espaços verdes. Enfim, uma cidade

que em seu desenho apresentava-se absolutamente desprovida de projetos urbanos,

6 ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p. 18. 7 SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y alienacion, p. 22.

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mesmo de modesta escala e que conforme a estudiosa do assunto Elisa Radovanovic, o

interesse de transformar a edificação de Buenos Aires:

Propulsam a desaparição da cidade chata em benefício da saúde pública, da estética urbana e arquitetônica. Esses planos se centram em torno da modificação dos antigos traços de feições coloniais, ao crescimento da altura dos edifícios, assim como a necessidade de solucionar a irregularidade arquitetônica vigente, a trama viária e a notória escassez de espaços verdes. 8

Por outro lado, a vida citadina foi adquirindo características para além do

contraditório. Com a metamorfose da urbe ultrapassando o aspecto físico, novas

posturas passam a ser assumidas pelos transeuntes e habitantes: ao invés da pegajosa

intimidade da vida do vizinho, como descreve Juan Jose Sebreli sobre a Buenos Aires

antes do impulso modernizador, a cidade ao multiplicar suas funções, se tornou mais

anônima e impessoal.9 A atmosfera de perplexidade ganhava respaldo na transformação

em escala assombrosa do perímetro citadino, mas também na nova aglomeração que

passava a compor o mosaico da cidade transformada e, como diz Richard Sennett, na

falta de sentido que as pessoas faziam umas para com as outras.10

Desde os erráticos imigrantes até o exemplar mais original do argentino a

angústia passava ser a mesma: aquele que está a meu lado num trem ou dividindo

ombro a ombro os apressados passos no mais novo empreendimento urbanístico, que

poderia ser uma diagonal, já não é o meu conhecido e tudo se torna mais inquietante, já

que o anônimo que compartilha das benesses e das ansiedades da vida moderna, não

mais é possível saber nada sobre ele.11 O aparecimento em cena da aglomeração

populacional franqueou o anonimato como possibilidade aberta aos novos personagens

da urbe moderna. À expressão crescimento populacional para descrever o pelotão de

humanos que invadem a cidade de Buenos Aires acresce-se os novos papéis que

pareciam brotar como cogumelos esvaecendo assim a fronteira, outrora mais rígida

entre íntimo e público, formando insumos para uma vida secreta.

Esta é a trajetória trilhada pela urbe portenha. A cidade de Buenos Aires diante

de seu crescimento vê sendo aniquilada sua inocência e sossego aldeãos no caminho da

tão almejada modernização e cosmopolitização.12 As transfigurações pelas quais

8 RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 89. 9 SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y alienacion, p. 21-22. 10 SENNETT, R., Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental, p. 264. 11 Ibid., p. 264. 12 ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las ideas, p. 321.

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atravessa a cidade deixavam em seus habitantes e transeuntes a forte impressão de que

estariam prontos a embriagar-se diante da nascente torrente de heterogeneidades. Assim,

o perímetro citadino buenairense surgia como forma de absorção das representações do

moderno e do cosmopolita com vistas a um novo rearranjo do passado:

Correlativamente, isso coincide com que Buenos Aires seja a única parte do país que não é semi-colonial. Por que (Buenos Aires) é a sede dos colonizadores, não dos colonizados. Sem embargo, Buenos Aires sendo de todos não é de ninguém. É a cidade não possuída por excelência. Esta não possessão é seu signo característico no físico, no psicológico e no estético. 13

Peremptoriamente, conforme a percepção de Escardó o espaço urbano

buenairense aparenta abranger a performance cênica ou mesmo teatral com o fito de

impessoalidade (Buenos Aires não é de ninguém). Aliado a isto, a pretensão de

exorcismo de um passado indesejável talvez com vista a um futuro mais soberbo

(Buenos Aires é a sede dos colonizadores, não dos colonizados). Desta forma, a cidade

portenha em seu rumo à modernização confiante, ia cada vez mais se assemelhando à

capital de um império imaginário. Após ter superado os conflitos intestinos, a cidade

parece ter-se investido de autoridade incontestável e coroada a si própria com a não

dissimulada ambição de conquistar o cetro continental: 14

Buenos Aires se transformou então, em um privilegiado cenário da civilização ocidental, que aparece como uma intricada rede com superposição de culminações e inícios, onde se desataram mecanismos, procedimentos e problemáticas, antecipações de situações posteriores. Em um contexto crescente de globalização, as transferências, mobilidades e intercâmbios, tanto de idéias como de pessoas, produtos e serviços, alcançaram níveis inigualados, originando situações e fenômenos complexos e contraditórios. 15

A mutação do espaço físico da cidade situa Buenos Aires num dos domínios de

estudos em que mais se repercutiu a modalidade destes novos processos em câmbio.16

Evidentemente, para os habitantes e transeuntes sua percepção tornou-se intricada dado

que, enquanto fenômeno, ele revestia-se de características fantásticas para boa parte da

visão dos contemporâneos. Logo, uma definição completa, decisiva e segura que 13 ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p. 18-19. 14 GREMENTIERI, F.; VERSTRAETEN, X., Buenos Aires; arquitectura y Patrimônio, p. 11. 15 Ibid., loc. cit. 16 Há uma ampla literatura e estudos críticos sobre o assunto: Para Buenos Aires ver: SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930; SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y alienacion. Para a vinculação de crescimento citadino e aparatos intelectuais: RAMA, A., A Cidade das Letras.

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pudesse dar a platéia deste novo e por vezes estranho espetáculo algum antídoto que

representasse algo que fosse contra a sensação angustiante, nem sempre era possível. A

eclosão da ambiência metamórfica e arrebatadora que atravessava a moderna cidade de

Buenos Aires nem sempre se apresentava confortavelmente para seus habitantes. Neste

caso, além de ter de enfrentar-se com algo enigmático havia também uma carência de

nitidez ideológica, ou mesmo estilística nos projetos da cidade como um todo.17 Isto

poderia perfeitamente significar para um observador mais atento tons de verdadeiro

ecletismo protéico e um dos exemplos mais notáveis do formidável crescimento da

Argentina a fins do século XIX e princípios do século XX.18Desta forma, a tentativa de

definição da cidade através de um ideal de representação de um conjunto de

características a ela atribuídas seria absurdo conforme diz Adrián Gorelik.19

Assim, uma Argentina entusiasmada transformava a fisionomia de sua capital

como prova da visibilidade material da entrada de todos nos caminhos da civilização e

progresso infinitos. O esplendor argentino concretizado no fenômeno da metropolização

escandalosa esteve fortemente caracterizado por uma das suas peculiaridades mais

visíveis: a variedade e o desconhecido.

Estes dois elementos, aliados à posse de um diagnóstico animador forneceu aos

argentinos a possibilidade de espantar o fantasma de uma civilização de segunda mão

ou em termos mais claros “civilização de galho” proposta por Juan Bautista Alberdi.20

Para tal, seus principais planejadores deram vazão a toda vontade de construção de

edifícios suntuosos, avenidas, prédios e espaços públicos que significasse na prática

uma postura contrária as avaliações de teor pessimistas e desencorajadoras. Na verdade,

este é o período em que a diversidade de estilos passou a caminhar de mãos dadas com

uma interpretação de cunho nacional ou regional das novas construções simbólicas.21

Deste modo, com operações de adaptação, combinação e reinterpretação do passado

nestas novas edificações públicas, o resultado foi um verdadeiro arrebatamento frente a

17 ROSARIOS, O., América Latina: Veinte Repúblicas, uma Nación, p.15. 18 LUNA, F., Breve História dos Argentinos, p.14. 19 GORELIK, A., A Produção da Cidade latino Americana, p. 111. 20 Juan Bautista Alberdi, político, jurista e escritor argentino no século XIX. “Trata-se neste caso de uma metáfora botânica “civilización de gajo” proposta por Juan Bautista Alberdi na Argentina do século XIX diante do juízo generalizado de que” nessas terras nada de bom poderia nascer da raiz”. Reporto-me por: GORELIK, A., A Produção da Cidade latino Americana, p. 111; PALERMO, V., Pensamento Político Progressista no Liberalismo Argentino e Mexicano do Século XIX: Juan Bautista Alberdi e Justo Sierra. 21 É bastante fecunda a discussão sobre nacionalismos e regionalismos no período mesmo que não seja nosso interesse aqui discuti-la. Vale lembrar, entretanto, que o caráter heterogêneo da cidade marcou profundamente os debates sobre a “verdadeira argentinidade”. Em termos de costumes, variedades de línguas e imigração tornou-se imperante debruçar-se sobre essas questões.

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estas transformações cuja parte mais sensível se traduziu no espanto dos transeuntes e

analisadores:

O conflito da modernidade suscitou o debate entre as formas do passado e do presente. As repercussões da implantação do modelo no acionar da classe dirigente tiveram sua crise posterior como efeito provável de sua deficiente aplicação. 22

Como não é difícil de imaginar, estas transformações possuíam um forte apelo

de verniz estético. As leis que passaram a regular sobre a altura dos edifícios deixaram

em toda superfície da cidade uma marca que distava muito do retrato da antiga cidade

colonial. A estas medidas somam-se a promoção das praças e jardins públicos

arborizados cuja maior contribuição estava na alterada imagem que suscitava essas

novas passagens naturais. Além da função ornamental que deles emanava, esses

verdadeiros “retiros da natureza” em pleno núcleo nevrálgico da cidade, propendiam ao

habitante um sentimento do privilégio de descansar, passear, ou simplesmente entregar-

se ao abandono e admirar estes recantos verdes de rara beleza. A monotonia do amplo

tabuleiro da cidade colonial portenha ganhava a cada nova atividade com vistas a sua

modernização salubre, ares de importância e nobreza altiva:

...Prosperou o gosto pelos traçados de influência italiana, e nos arredores de centro, as vilas neo renascentistas se enfeitavam com espaços abertos de espírito mediterrâneo... Uma cuidadosa planificação e gerência do espaço público através da Direção de Parques e Jardins permitiram aproveitar todos os vazios urbanos para incorporar áreas verdes cuidadosamente desenhadas. 23

E cujo objetivo principal residia:

Na preocupação estética, seu critério sistêmico no tratamento de cada peça e do conjunto, sua habilidade estratégica para definir harmonias com a arquitetura, a escultura e o urbanismo, ou sua capacidade para integrar preexistências e sintetizar diversas influências...24

Esta predileção pela magnificência estética, ademais, foi fortemente favorecida

por um complexo de fatores que desde o histórico e cultural fizeram com que as

22 RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 93. 23 GREMENTIERI, F.; VERSTRAETEN, X., Buenos Aires; arquitectura y Patrimônio, p. 92. 24 Ibid., loc.cit.

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inovações se dessem na parte mais antiga da cidade.25 Neste sentido, o centro da capital

buenairense se constituiu no foco principal das inovações de caráter estético, eclético e

inovador. Como nos afirma Margarita Gutman, nesta etapa de grandes e rápidas

transformações alguns edifícios históricos, aqueles cujos valores se preservavam de uma

demolição total, se tornaram objetos de remodelações diversas, especialmente os que

rodeavam a Praça de Mayo.26

O tenso diálogo do passado com o presente com pretensões a um futuro de júbilo

e proeminência inauditas produziram algumas profecias não tão animadoras. E, por

outro lado, mesmo que alguns destes presságios se assemelhassem às profecias bíblicas

de caráter apocalíptico, não seria difícil imaginar que o rápido crescimento da urbe

produzisse prognósticos quanto a sua possível destruição. Um verdadeiro torvelinho.

Esta é a impressão marcante das transformações da urbe metropolizada e que, enquanto

tal, uma hecatombe catastrófica era mais que esperada.

Mas dentro de um senso planejador, a reestruturação do centro da capital com

seus edifícios majestosos e de esplendor quase exagerados, novas avenidas, diagonais,

parques e amplas praças possuíram uma função importante de integração social num

momento de fragmentação, mescla, quebra de valores e imigração intensa. 27

A particularidade Buenairense tem contornos de fascínio quando se tem em

mente que até mesmo um sentimento de inferioridade fazia parte da alma de seus

habitantes ensombrecendo-a, antes da empreitada modernizante. Bastante difundido em

América Latina, o traço de orgulho e presunção que se atribui aos argentinos pelas

presumidas glórias de seu país e beleza de sua capital, sobretudo aos portenhos,

historicamente se revela difícil encontrar indícios do atual sentimento, se verdadeiro,

naturalmente. Na verdade, segundo Margarita Gutman e Jorge Enrique Hardoy, a cidade

nem sequer aparecia nos mapas, diários e importantes livros confeccionados por

expedições de viajantes espanhóis e estrangeiros que passavam pela região. Ao longo de

sua trajetória, a cidade portenha perdia em importância para outras do continente como

25 Estamos diante de um período de saturação teórica. Na verdade, muitos elementos contribuíram para tal efervescência: Reforma Universitária de forte apelo político, ampliação do mercado editorial, traduções economicamente mais acessíveis de clássicos da literatura, política, estética entre outros, crescimento dos índices de alfabetização e mais facilidade dos meios de comunicação. Ver: RAMA, A., A cidade das Letras.; RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos.; SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930. 26 GUTMAN, M.; HARDOY, J. E., Buenos Aires: Historia urbana del Área Metropolitana, p. 146. 27 Mesmo que não seja nosso propósito analisa-lo, note-se também o forte apelo de cunho nacional que se encontra bastante acentuado no período e que comporta várias manifestações, sobretudo às vésperas do centenário da independência.

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Cuzco e Montevidéu. Em grande medida, este sentimento de inferioridade residia no

fato de que a cidade possuiu ao longo de sua jornada poucas condições de rivalizar com

cidades vizinhas, como Assunção que se oferecia cada vez mais como centro

indiscutível da vasta região do Rio da Prata.28 Este cenário, no entanto, era passível de

transformação. Fatalmente, à medida que a cidade se modernizava ela foi angariando

desejos de ser decifrada. Esta mudança de cenário depois do furor modernizante, de

acordo com Richard Morse:

Uma nota de decadência, um alerta funesto soou tanto na cultura de cabaré do tango quanto na cultura sofisticada dos literatos. Mais que outras cidades latino-americanas, Buenos Aires compartilhava do ethos cosmopolitano do modernismo ocidental, de modo que os lugares-comuns da história e da cultura regionais assumiram uma feição mítica. A investigação perscrutou além da chamada realidade, em um domínio de enigma ou paradoxo. O desafio central não era a cognição, mas a decifração. 29

O verdadeiro senso de explosão que se deu em Buenos Aires trouxe à luz a

problemática do ordenamento, do cálculo e da organização para conter pelo menos em

algum grau, a fragmentação cada vez mais crescente da urbe babélica.30 Os resquícios

que inscreviam Buenos Aires numa cidade colonial, negativamente hispanizada, além

de terem de desaparecer, a cidade teria também de fornecer à imagem de desordem

crescente um apelo de progresso fáustico e generosidade urbana. De alguma forma,

pode-se dizer que a fragmentação residia no diálogo surdo e simultaneamente complexo

das manifestações visíveis da persistência de traços do passado que muitas das vezes

serviam como referência e a intenção de um Éden futuro, radiante e inseguro por decidir

quase sempre se manifestar na forma virulenta do caótico e da sedução sem limites.

O primeiro planejamento moderno para a cidade se deu nas primeiras décadas

do século XX. O impulso encorajador se deveu a forte apreensão que se verificou às

portas da comemoração do Centenário da Revolução de Maio. As ruas de Buenos Aires

ganham neste período uma atenção mais que especial de seu intendente municipal, seus

planejadores urbanos, arquitetos e presidente da República.31 Tem-se, desta forma, o

advento de uma intensa peleja para saber qual o melhor projeto para redesenhar todo o

traçado urbano buenairense. Verifica-se a gênese de uma ação racionalizadora que,

28 GUTMAN, M.; HARDOY, J. E., Buenos Aires: Historia urbana del Área Metropolitana, p. 25-26. 29 MORSE, R., As Cidades Periféricas como Arenas culturais: Rússia, Áustria, América Latina, p. 25. 30 RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 94-103. 31 Ibid., p. 93.

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visando instrumentalizar as posturas que deviam ser assumidas pelos transeuntes da

cidade, coincidiam com projetos de remodelação antigos que caminhavam na direção de

pensar nas conveniências de ruas mais largas, ou até mesmo a transformação das

mesmas em avenidas, diagonais e vias principais para melhor salubridade do perímetro

citadino.

Dentro desse espírito inovador, torna-se difícil imaginar todas as conseqüências

das transformações acarretadas pelo ideal liberal-moderno, mas de pronto, sabe-se que

este ideal atingiu diversos níveis e escalões do corpo social provocando desta forma

alterações das mais pungentes. À uma transformação econômica e uma vibrante

transformação social, junta-se uma verdadeira atmosfera confiante e eufórica às portas

da comemoração do centenário fortemente alavancada pelo crescimento de índices

positivos na esfera econômica. Este legado surge nas palavras de Félix Luna:

Os trinta anos que transcorreram entre 1880 e 1910 foram fundamentais para a modelagem da argentina moderna. De algum modo somos todos herdeiros daquela época. Os grandes edifícios públicos que se vêem em todas as cidades da República (...) a afirmação das instituições fundamentais nas quais se faz sólida a vida do país, desde a educação primária até a universidade... 32

Pode-se mesmo dizer que em Argentina estas metamorfoses provocaram

sentimentos de estranheza e perplexidade atravessando os mais diferentes campos da

vida social. Neste sentido, uma expressiva fração da comunidade buenairense que tinha

em mira dar uma resposta adequada a este singular período foi assaltada pela sensação

de que estavam em xeque vários dos outrora mais certos e confiantes paradigmas.

Assim, a tentativa de resolução dos conflitos na cada vez mais babélica Buenos Aires

passava pela investida em diagnósticos cuja precisão era, por sua vez, mais difícil. Esta

experiência, nas palavras de Angel Rama:

A mobilidade da cidade real, seu tráfico de desconhecidos, suas sucessivas construções e demolições, seu ritmo acelerado, as mutações que os novos costumes introduziam, tudo contribuiu para a instabilidade, a perda do passado, a conquista do futuro. A cidade começou a viver para um imprevisível amanhã e deixou de viver para o ontem nostálgico e identificador. Difícil situação para os cidadãos. Sua experiência cotidiana foi de estranhamento.33

32 LUNA, F., Breve História dos Argentinos, p.14. 33 RAMA, A., A cidade das Letras, p.97.

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Com a virada do século acompanhamos as singulares guinadas do ponto de vista

teórico que abarcam desde o plano histórico-sociológico até as artes com sua visão e

expressão do mundo que, se oferecia possibilidades de compreensão e sensibilidade a

este novo momento, também ofertava a sociedade as mais insidiosas e extravagantes

teorias. 34 Vislumbra-se, de igual maneira, a fecundação de explicações que disputavam

o consenso de qual o rumo a jovem nação Argentina deveria adotar. Mas singular, no

entanto, foi o sentimento de perplexidade a que todos estavam submetidos com o

advento da modernização da capital:

Já em 1890 se havia quebrado a imagem de uma cidade homogênea, mas trinta anos são poucos para assimilar, na dimensão subjetiva, as radicais diferenças introduzidas pelo crescimento urbano, a imigração e os filhos da imigração. Uma cidade que duplica sua população em pouco menos de uma quarto de século sofre transformações que seus habitantes, velhos e novos, deverão processar. 35

Este sentimento encontra ressonâncias nas mais diversas latitudes. Este alcance,

inclusive, ganha expressão na literatura e nas artes já que em grande medida, a nova

vida citadina se tornou elemento essencial para a própria confecção das obras estéticas e

poderoso ingrediente de fomento a imaginação. Configura-se a perplexidade no sentido

de tentativa de compreensão dos novos rumos e da estranheza frente às novas

modalidades de se reconhecer frente a essas mudanças. Esta atmosfera carrega consigo

e desperta nos contemporâneos velhos e novos como diz Beatriz Sarlo o sentimento do

inverossímil, um verdadeiro sentir-se deslocado, ou talvez, o receio de não mais poder

corresponder às expectativas constantemente engendradas e reengendradas quase que

diuturnamente. O sentimento de perplexidade e torpor, o assombro diante da verdade

indelével de um reconhecimento não pleno dos fenômenos, adquire nesses termos um

estatuto bastante próximo do sentido de vertigem:

A cidade (Buenos Aires) se vive a uma velocidade sem precedentes e estes deslocamentos rápidos não produzem conseqüências somente funcionais. A experiência da velocidade e a experiência da luz modulam um novo elenco de

34 No plano geral, as teorias oscilavam entre dois paradigmas principais: de um lado temos a tentativa de transplantar os modelos europeus de arquitetura política e, por outro, um combinado entre as contribuições européias e as características propriamente nacionais a serem descobertas e definidas. Quanto aos aspectos extravagantes de uma dessas teorias, veja-se por exemplo a frase na Avenida Corrientes no centro da capital Argentina de Domingo Faustino Sarmiento, presidente, escritor do clássico da literatura argentina “El Facundo” e teórico da nação argentina: “Nem negros nem índios, nós (Argentina) somos uma nação decente”. 35 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 17-18.

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imagens e percepções: quem tinha um pouco mais de vinte anos em 1925 podia se lembrar da cidade da virada do século e comprovar as diferenças. Sem dúvida, as coisas haviam mudado menos na floresta do que no centro. 36 Ou conforme a formulação de George Simmel:

As relações e os afetos do habitante típico da grande cidade são habitualmente tão diversos e complicados e, antes de tudo, a concentração de homens tão numerosa com os interesses tão indiferenciados que faz dessas relações e dessas ações um organismo tão complexo que, sem a pontualidade mais exata nas promessas e nas suas realizações tudo se desmoronaria em um inextricável caos. 37

Desta forma, a singularidade, própria de uma cidade em plena transformação

exponencia suas conseqüências em diversos e variáveis rumos. Ao tocar no funcional,

mas sem se deter nele, a experiência da cidade modernizada passa a demandar um novo

repertório de sensibilidades. 38 Assim, de nossa parte podemos considerar que a força

que jazia no reconhecimento das posturas e nos sujeitos que travavam relações mais

íntimas e cuja proximidade trazia conforto e custodiava uma ambiência prazenteira,

toma lugar um indivíduo órfão e desamparado que se debate buscando um frêmito de

autonomia. Ao mesmo tempo em que havia a ameaça da originalidade de sua antiga

existência face aos imperativos de um legado histórico e cultural que o poder da técnica

e do cálculo só faziam exacerbar.

Face aos inúmeros problemas do ponto de vista social, Beatriz Sarlo afirma que

é aos mais velhos e imigrantes que talvez se deva o mais agudo sentimento de

estranhamento, perplexidade e de surpresa. 39 Para estes, não é de se estranhar o fato da

modernidade lhes parecer muitas das vezes sob o olhar de uma verdadeira aventura,

quase sempre, claro, plenamente chafurdada com elementos de sofisticada crueldade.

Neste sentido, como também sublinha o estudioso dos fenômenos das cidades Lewis

Munford, habitantes em plena desorientação, uma persistente afluência de imigrantes,

mudanças freqüentes de domicílios, falecimento de limites reconhecíveis ou centro de

encontros comuns, tudo isso veio a reduzir os processos estabilizadores da vida de em

36 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.16. 37 SIMMEL, G., Philosophie de la Modernité, p. 238. 38 SARLO, B., op.cit., p.21. 39 Ibid., p.49.

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comunidade, em vizinhança40. Ainda nesta direção, a atmosfera de instabilidade era o

que mais gerava o sentimento de espanto segundo José Luis Romero:

Surpreendia-se dessas transformações que as faziam irreconhecível uma cidade em vinte anos. Foi isso precisamente, que ao começar o novo século prestou a imagem de América Latina um ar de irreprimível e ilimitada aventura. 41

Assim afirmava José Luis Romero no que concerne as transformações abruptas

no interior das cidades burguesas da América Latina da virada do século XIX para o

século XX. Ao se depararem com o advento do novo e do imponderável, os setores mais

senis da sociedade tendencialmente davam a esta experiência um sentido de perda e de

um imprevisível futuro. A dificuldade em não mais projetar com certeza estatística a

definição do porvir passou a condicionar as relações fazendo com que se abalassem os

antigos paradigmas de um tranqüilo desenrolar do passado até o presente e deste

presente até um futuro. Trata-se de um período de incertezas e desconfiança.

No capítulo ”As cidades Burguesas”, José Luis Romero caminha na direção de

pensar a radicalidade do fenômeno citadino nas sociedades latino americanas dentro do

acento da conjunção entre poder econômico e político aliada a desentronização de suas

classes privilegiadas que, segundo o próprio Romero, “destituíam a harmonia da estável

sociedade tradicional”. 42 Além disso, não deixa de ser de grande mérito a ênfase que o

autor dá ao aparecimento das possibilidades e as atividades inauditas e surpreendentes,

o que segundo Richard Morse, contribuiu para que o livro se tornasse um clássico na

matéria. Novas, inauditas que eram, essas atividades revestiram a sociedade de um

caráter absolutamente diferente da “grande aldeia” que era a fisionomia de boa parte das

cidades do sul do continente, epíteto bastante atribuído a Buenos Aires colonial. De

forma rápida, intensa, estes antigos territórios coloniais passaram a adquirir uma feição

tensa e inverossímil: a cidade se transformara em um conglomerado heterogêneo e

confuso:

O resultado não tardou a advertir-se, e o sistema tradicional das relações sociais começou a modificar-se. Onde havia um sítio pré-estabelecido para cada um começaram a aparecer uma onda de aspirantes para cada lugar; e não eram somente os recém chegados com vocação para aventura que destruíram a harmonia da estável

40 MUNFORD, L., A Cidade na História: suas origens, desenvolvimentos e perspectivas, p. 539. 41 ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las ideas, p. 247. 42 Ibid., p. 259.

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sociedade tradicional. Eram também os que já formavam parte dela sem participar, como marginais, muito dos quais começavam a incorporar-se por que possuíam atitude e aparecia a ocasião de que as demonstraram. 43

E mais adiante;

De pronto o urbano patriciado descobriu, antes que ninguém, que sua cidade, “A grande aldeia”, começava a transformar-se num conglomerado heterogêneo e confuso, em que se perdiam pouco a pouco as possibilidades de controle da sociedade sobre cada um dos seus membros, a medida que desaparecia a antiga relação direta uns com os outros.44

Todos esses complexos de componentes que à força do tempo foram se

adensando na experiência modernizadora de Buenos Aires ganham mais sentido se

avaliarmos o potencial da ênfase dada à morte das relações de proximidade.

Naturalmente, o advento do alvoroço modernizador trouxe consigo uns sem número de

atividades, novos ramos de profissões, possibilidades inusitadas de intervenção na arena

pública, radicalidade na alteração do espaço físico, novos estímulos e transformação da

visualidade. Nesta direção, a embriaguez do cenário talvez tenha tido como

correspondência não especulada o fato das pessoas se relacionarem de forma distante,

dificilmente de forma direta e espontânea, mas apenas em seu confronto solitário e

solidário com o turbilhão de que a rua, a grande artéria era lugar principal desta nova

platéia.45

O elemento de não especulação deve-se, sobretudo, ao adensamento a patamares

ingovernáveis da capital argentina e sua transformação em território simbólico das

manifestações do efêmero e no locus onde a coletividade teria de enfrentar-se, de forma

apaziguada esperavam os planejadores, nos cafés, transportes públicos ou num simples

olhar de uma tumultuada avenida recém reformada. Esta nova multidão em cenário

43 ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las ideas, p. 259-260. 44 Ibid., p. 260. 45 Mesmo que seja uma interpretação de cunho pessoal ela não se encontra totalmente desprovida de fundamentos já que podemos encontrar ressonâncias em outros estudos que tivemos acesso. De fato, Beatriz Sarlo estudiosa da modernização em Buenos Aires dá eloqüentes pistas para uma interpretação no mesmo sentido: SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930. Ver também: SCHORSKE, C., Viena Fin de Siècle.; SENNETT, R., O declínio do homem público: As tiranias da Intimidade.; SEVCENKO, N., Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20.

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passara a agir como que resguardando seu direito de não ser abordada levando desta

forma uma vida em sociedade que beirava a um alérgico contato ao outro.

De todo o exposto depreende-se que a vida na grande Buenos Aires não

garantira por si uma existência mais solidária nem favorecera a comunhão entre os

homens, essa nova multidão que passara a entrar em cena. A despeito de seu avultante

montante, esta nova multidão que adentrara o cenário urbano buenairense dificilmente

poderia ser considerada como totalidade, segundo a análise um tanto pessimista de

Florêncio Escardó.46 Assim, como a Viena tratada por Carl Schorske, o habitante da

nova e tensa Buenos Aires caminhava de um edifício a outro, de um aspecto da vida a

outro experimentando as novas modalidades em processo.47 A estabilidade residia

justamente neste consórcio de almas transitando, aparentemente desobjetivadas. A

angústia do isolamento e da falência do modelo das relações abertas, notoriamente mais

presentes na aldeia que era a antiga Buenos Aires, acentua-se com a diversidade e o

modelo intransigente dos planejadores urbanos:

A pontualidade, a confiança, a exatidão impõe a ele (o homem que vive na metrópole) as complicações e as grandes distâncias da vida na grande cidade, não somente em forte conexão com seu caráter financeiro e intelectual, mas devem também colorir os conteúdos da vida e favorecer a desqualificação dos impulsos e traços irracionais, instintivos e soberanos, que querem determinar a forma da vida a partir deles mesmos, ao lugar de acolher do exterior como uma forma universal, de uma precisão esquemática. 48

Nestes termos, ao habitante da recém transformada Buenos Aires consentiu-se a

oportunidade de experimentar as metamorfoses pela qual estava passando a antiga

cidade através dos planos de remodelação de seu tecido físico. Na verdade, desde a

virada do século XIX para o século XX, apesar das contradições que haviam se

manifestado durante a primeira presidência de Hipólito Yrigoyen, se viveu em

Argentina um período de relativa prosperidade.49 Como foi demonstrado pelas palavras

semelhantes de Félix Luna, ensaiava-se na Argentina caminhar na direção de

instituições mais estáveis, com amplas reservas de capital consolidado e fazenda

solvente.50 Desta maneira, e já que estas eram uma das exigências do momento, somente

a recuperação de uma imagem disciplinada e aberrantemente conservadora poderia 46 ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p. 19. 47 SCHORSKE, C., Viena Fin de Siècle, p. 54. 48 SIMMEL, G., Philosophie de la Modernité, p. 238-239. 49 GUTMAN, M.; HARDOY, J. E., Buenos Aires: Historia urbana del Área Metropolitana, p. 140. 50 LUNA, F., Breve História dos Argentinos, p.14.

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restabelecer os contornos de um país com um chão firme e que garantisse a adulação

dos créditos europeus. 51

Com esses rearranjos em concerto, a cidade portenha estava se transformando

em núcleo nervoso da ação reformista cujo húmus estava presente nos projetos de

melhorias propostos desde fins do século XIX e que perduraram até a segunda metade

do século XX. Neste sentido, a função atribuída ao passado vai adquirindo relevância a

medida que a versão prática dos projetos de reforma ia se aproximando da direção onde

ainda restavam os resquícios das antigas simbologias do passado colonial. Segundo

Elisa Radovanovic estes projetos afetaram principalmente:

O grande projeto transformador de Paris afetou globalmente a cidade. No restante do mundo as imitações baseadas neste principal referente apenas modificaram um setor da trama urbana. Nas capitais dos países latinos americanos, como Buenos Aires, ao operar sobre os velhos cascos fundacionais se destruiu o tecido que persistia do tempo colonial, desfigurando um dos símbolos principais de sua identidade. 52

Esta relação com as identidades passíveis de serem forjadas foram especialmente

salientadas nos embates ideológicos e políticos que traziam a marca de uma aposta

argentina da civilização contra a barbárie. 53 Tais medidas visavam incluir o país, na

materialidade majestosa de sua capital, no conjunto de centros metropolitanos

comparáveis as grandes urbes modernas. Para que este evento se concretizasse era

preciso emprestar a fisionomia de Buenos Aires uma imagem menos antiquada e mais

hodierna.

De fato, o centro metropolitano da cidade de Buenos Aires entra num processo

de franca expansibilidade. Poderíamos certamente sem muito esforço, imaginar o

alvoroço que estas mudanças provocaram nos que tiveram alguma forma de acesso a

urbe reformada. A cidade, pelo frescor e vivacidade de suas novas construções,

começava a experimentar algumas sensíveis mudanças em suas características

urbanísticas e que, por sua vez, também veria os monumentos que não faziam parte da

cidade no passado surgirem com a força do seu majestoso esplendor. No curso destes

51 LUNA, F., Breve História dos Argentinos, p.14. 52 RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 61. 53 Civilização e Barbárie são dois extremos de um dos preceitos fundamentais da visão de Sarmiento sobre o futuro da República Argentina. Sobre as políticas que traziam a marca desta aposta sarmientiana Ver: VIANA, F., Argentina, Civilização e Barbárie: a história Argentina vista da casa rosada.; LAMBERT, J., América Latina: estruturas sociais e instituições políticas.; SIMÕES, J. F. de O., Casa-grande & senzala e Radiografía de la pampa: ensaios de interpretação nacional na América Latina.

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anos, a cidade de Buenos Aires ia aumentando seu conjunto de instituições,

monumentos, parques e jardins públicos e áreas de lazer. 54

Assim, a cidade portenha foi adquirindo um semblante inédito. Por toda urbe as

novas construções pareciam escritas em um idioma híbrido, como que atestando uma

realidade imaginária, de fantasia e sonhos, podemos dizer quase virtual, e onde a

heterodoxia das regras parecia ser sua distinção inauferível. Buenos Aires apresentava-

se aos olhos dos seus habitantes e transeuntes como uma cidade eclética e rica de

possibilidades. Por isso mesmo grande parte da sedução da cidade jazia nas

características pretensiosas da construção dos complexos de mosaicos em que se

transformara a urbe buenairense:

O país em seu apogeu permitiu a Buenos Aires o luxo de ser apoteótica e decadente, brilhante e opaca de uma só vez. Suas insaciáveis pretensões buscavam condensar a festa de Paris, o vodevil de Berlim e a voracidade de Nova York... A capital européia da América não acusou o trauma de seus pares ancestrais o que lhe permitiu continuar com a prática de em ecletismo irrestrito, multiforme e já definitivamente institucionalizado. 55

Uma das maiores evidências que causa o efeito deste conjunto é a da aparente

evolução sensível na arte da construção. O século XIX se finda operando como que uma

suspensão com os modelos representativos que revelassem alguma forma de diálogo

com o passado colonial. Com efeito, Buenos Aires como centro espiritual da Argentina,

ao tentar lançar seu passado no ostracismo procurou oferecer mais que outras cidades no

interior do território ou mesmo do continente Latino Americano formas de beleza que

convidassem ao lazer ou que favorecessem a vaidade dos que desfrutavam de seu novo

aspecto risonho e longevo:

Com a revolução nos costumes de fins do século, o ritual começou a orgarnizar-se de forma mais pomposa com os passeios da Rua Flórida, da Recoleta e as Barrancas de Belgrano, e sobretudo o famoso “corso” de Palermo, as tardes de quinta e domingos: quatro filas de carros indo e voltando em uma área de três quadras pela atual Avenida Sarmiento, trocando em cada volta o local para que todos pudesse cruzar inevitavelmente com todos. A cerimônia tinha suas regras fixas: na primeira volta se saudavam, na seguinte fingiam não se verem e na última se despediam. 56

54 RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 98. 55 GREMENTIERI, F.; VERSTRAETEN, X., Buenos Aires; arquitectura y Patrimônio, p. 15. 56 SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y Alienacion, p. 46.

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Notoriamente, a sensação de impacto causado por estes novos logradouros

residia no aspecto espetacular de suas novas construções. Em Buenos Aires, este

sentimento estava aliado a ilusão de um espaço gigantesco produzido por obra humana e

seu engenho, bem no núcleo nervoso de um denso conglomerado urbano. Todas essas

novas edificações, desde os parques públicos que dialogavam através das diagonais até

as novas ruas como a Avenida e Plaza de Mayo, entravam em consonância com os

edifícios do Congresso e Casas de governo e poderiam ser vistos como monumentos

que rendiam homenagens a si mesmas dadas tamanhas força e expressividade.

Os planejadores estavam especialmente cônscios da nova e imensa

funcionalidade destes projetos. 57 Ao se criar espaços públicos pensavam-se na questão

social representada pela nova aglomeração populacional. Ao tentar reestruturar esta

nova densidade, as construções alteraram a liberdade com que as pessoas poderiam se

reunir ou simplesmente transitar. Na verdade, com ou sem eficácia, estes planejadores

buscarão refrear ou ao menos arregimentar os grupos humanos cada vez mais

fragmentados e dispersos. Nas palavras de Elisa Radovanovic:

A renovação do setor central orientou a nova imagem da capital em um desenho de corte modernizador, de cunho liberal e positivista imposto pelo poder. O processo de modernização requeria a substituição da estrutura urbana herdada do passado, apagando os traços daquela outra cidade de feição hispênica que perdurava no branco de seus edifícios, em seu baixo perfil, nas suas ruas estreitas, de dimensões quase coloquiais. Desde então as relações entre os cidadãos e seu habitat se modificaram profundamente. 58

Desta forma, a capital argentina na figura dos seus ideólogos planejadores seguia

o desenrolar de seu destino legendário prevista na planificação de uma cidade singular.

Imaginando estar dando largos passos rumo a uma ordem de outro tipo, esses

planejadores se obstinavam em seus desafios, ao mesmo tempo em que as novas

projeções metropolitanas deformavam a percepção habitual de seus habitantes. Desta

forma, a redenção do país pertencia ao futuro, e só a eficácia de um presente moderno

poderia excomungar um passado colonial de atraso e de barbárie. De fato, no momento

57 Trata-se de um extenso conjunto de planejadores urbanos e políticos da cidade cujos projetos por mais díspares que fossem tinham em comum o intento de revestir a capital do país de funcionalidade e “saúde”, como um organismo vivo. Desta maneira, conformou-se com urgência a questão do crescimento populacional destas décadas. Seus principais epígonos são, segundo Elisa Radovanovic: Torcuato Alvear, principal inspirador do projeto de reforma do setor central da cidade de Buenos Aires; Eduardo Wilde, a gestão presidencial de Julio Roca, Miguel Cané entre outros. Ver: RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 94. 58 RADOVANIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p.124.

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em que se agudiza o sentimento de perplexidade, a sensação de estranheza e contradição

era quase que inevitável, sobretudo na própria consciência dos que eram arrastados por

este intenso turbilhão:

Houve, portanto, uma generalizada experiência de desenraizamento ao entrar a cidade ao movimento que regia o sistema econômico expansivo da época: os cidadãos já estabelecidos anteriormenete viam desvanecer o passado e se sentiam precipitados à precariedade, à transformação e ao futuro; os cidadãos novos, pelo simples fato de seu translado da Europa, já estavam vivendo este estado de precariedade, careciam de vínculos emocionais com o cenário urbano que encontravam na América e tendiam a vê-lo em termos exclusivos de interesse ou comodidade.59

Vários fatores contribuíram para intensificar esta sensação. Além de uma cidade

em plena transformação, com avenidas mais amplas e um novo reordenamento da

espacialidade da urbe, Buenos Aires havia também que saber lidar com o crescimento

do número de imigrantes. Singularmente, tal fator a transformou numa cidade de feições

poliétnica e, junto com isso, o nascimento do imperativo de se conviver com patamares

de diversidade outrora praticamente impensáveis na aldeia portenha. Nesta direção, os

dados são realmente impressionantes.

Historicamente, após ter contribuído para dar uma resposta ao artificialismo da

idéia de América Hispânica com seus planos de dominação que retalhou os territórios

em Vice Reinos, após as incruentas guerras civis de fragmentação do pós

independência, a Argentina se via num problema de incorporação dos estrangeiros60. A

maciça presença de imigrantes já desde finais do século XIX fez com que nestes anos,

devido a política de imigração, a população argentina quadruplicasse seu número de

habitantes entre 1869 e 1914.61 Com isso os desembarques ultrapassavam a duzentos

mil por ano e como conseqüência, Buenos Aires é alçada em meados de 1880 a cidade

com o maior número de habitantes da América Latina, tendo superado poucos anos

antes Rio de Janeiro e Cidade do México.

O antes e depois do processo de modernização se fez sentir em mais de um

aspecto. Cidades inchadas, apresentando problemas sociais de difícil solução faziam 59 RAMA, A., A cidade das letras, p. 97. 60 O interessante a pensar nesta referência é que após a derrocada espanhola na América, além da questão dos estados nacionais surge a questão dos tão famigerados caudilhos que não é nosso propósito analisá-los. De qualquer forma, com a maciça chegada dos imigrantes pelo menos a nível simbólico foi mais uma vez adiada a idéia de unidade sem que houvesse representação de perigo. Ver: RIBEIRO, J. J.,O Brasil Monárquico em face das Repúblicas Americanas, p. 161. 61 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 18.

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parte do traçado característico em inúmeras delas. Nesta direção, algumas cidades

pareciam absolutamente desfiguradas, verdadeiros monstros. De acordo com Romero a

explosão urbana:

A explosão urbana modificou a fisionomia das cidades. Queixavam-se quem as desfrutou antes, aprazíveis e sossegadas, mas, sobretudo, com uma infra estrutura suficiente para o número de seus habitantes. Os invasores as desfiguraram e fizeram delas uns monstros sociais que revestiram ademais, pelos mesmos anos, os caracteres desumanos que lhe prestou o desenvolvimento técnico. 62

Neste cenário a cidade de Buenos Aires é mais cosmopolita que nunca. No

circuito de suas edificações recentes, parques e avenidas, a grande massa de estrangeiros

passara a compor também o novo teatro da urbe babélica: são agora notados pela

população nativa, pelos “argentinos autênticos”, o que evidentemente correspondia ao

seu contrário: a visibilidade entre argentinos e imigrantes era mútua. A diferença residia

na qualidade do olhar.

Segundo Luis Alberto Romero, havia além do impacto da visão da multidão por

si, a sociedade tradicional sentia o choque da audácia dos imigrantes que rompiam,

simplesmente pela presença física, a assepsia e higiene da cidade moderna. Com seus

costumes e hábitos de vestuário distintos dos nativos, esses imigrantes eram percebidos

desdenhosamente pelos setores da sociedade tradicional. Deste modo, aos estrangeiros

que ousavam não permanecer nos seus bairros periféricos e que por força das

necessidades saíam para trabalhar ao redor de Buenos Aires, eram pilheriados com os

mais criativos e maldosos ápodos. Dada a verdadeira corrida em direção ao ouro, não é

difícil imaginar que tais apodos estavam geralmente associados a sua origem ou a sua

mísera condição social. 63

Na verdade, como se tratava de um período de riquezas movediças e onde as

oportunidades iam sendo engendradas quase diuturnamente, a evidência inconteste de

inúmeras dificuldades era que nem todos conseguiam instalar-se nesta sociedade

comodamente. Não é difícil prever, entretanto, que para os imigrantes que deixaram em

terra longínqua uma história e relações pessoais, portadores do sonho de fazer um país e

serem recompensados por isso, fizeram com que a pressão por enriquecer tornar-se tão

62 ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las idéias, p. 329-330. 63 Ibid., p. 323.

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sufocante que muito poucos se abstiveram de tentar subir esta escada deslizante. Os

problemas sociais decorrentes desta situação naturalmente se avolumaram. 64

As cidades em que agruparam ingentes migrações rurais internas e às vezes ainda maiores externas, começaram a mudar sob este impacto que desbordou as planificações fundadoras e criou todo tipo de entorpecimento às comunicações, complicadas além disso pelo funcionamento intermediador das cidades-portos em uma economia exportadora-importadora vertiginosamente aumentada. Pela primeira vez se presenciou, na curta duração de uma vida humana, à desaparição ou transmutação dos decorados físicos que a acompanhavam desde a infância. 65

Por esta via, pode-se dizer que a Argentina ao comungar do credo do progresso e

da modernização crescentes converteu o espetáculo urbano buenairense em algo que era

muito mais constituído de transtornos, que se avultava de forma avassaladora

resvalando o inadministrável, do que de respostas fundamentais. Com a entrada em cena

dos estrangeiros, a parte dos recursos que lhes era destinada, tíbia já no que se referia

aos nativos, insistia em não ser suficiente no que tange às questões mais básicas: como

habitação e serviços públicos emergenciais. Diante de tais perspectivas, os imigrantes

convocados ao enriquecimento, a “tentar a sorte” no deserto, eram lançados para além

da vociferante concorrência comum e universal, a uma outra de segundo tipo entre seus

pares, àqueles que eram simplesmente estrangeiros ou estrangeiros oriundos de uma

mesma localidade66. Naturalmente, o que estava posto em tela aumentava a dificuldade

de adaptação e dava incremento ao sentimento de estranhamento produzido por tais

adversidades:

Mas passaria muito tempo – ninguém podia dizer quanto – até que os imigrantes descobrissem e aceitassem que tudo o que constituía a estrutura da sociedade normalizada pertenciam também a eles. Entretanto suas atitudes estavam presididas pela certeza de que tudo era dos outros: o grifo de água, o banco do passeio, a cama do hospital, tudo era alheio e para tudo havia outro que tinha melhor direito. 67

As inúmeras conseqüências dessa nova situação determinaram, para os

habitantes da Buenos Aires moderna, o contingente como ambiência constante e 64 ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las idéias, p. 323-324. 65 RAMA, A., A Cidade das Letras, p. 96. 66 Idéia similar expressada por Adorno em outro contexto. Ver: ADORNO, T., Mínima Moralia,, p. 26-27. 67 ROMERO. J. L., op.cit., p. 333.

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inexaurível. Para esses moradores, residentes há muito ou recém chegados, o que

prevalecia era o sentimento de deslocamento próprio dos que se sentem numa atmosfera

em que não há mais nada que lhes fiancie a estabilidade e a serenidade de épocas

pretéritas. Deste modo, a crise gerada pela metropolização acelerada da cidade portenha

era ao mesmo tempo deslumbrante e desorientadora. Na verdade, há um sentimento de

incoerência espiritual, uma justaposição de mentalidades que não aderem à fusão

perfeita dentre da lógica da racionalidade que lhes eram propostas. 68 Como a multidão

se tornou mais extensiva, o corpo político estava cada vez menos em condições de

corresponder àquilo que seus membros pleiteavam. O que emerge conforme análise de

Nicolau Sevcenko sobre a modernização paulistana, é uma sociedade multifacetada e

alijada das condições que, se não estavam relacionadas à aspiração de uma vida

confortavelmente burguesa e mais confiante, requeria uma dimensão que desse conta do

esgarçamento contumaz da figura humana diante da multiplicação ciclópica das escalas

do ambiente urbano.69

Verifica-se, então, toda uma gama de ações em prol de uma radical

transformação da imagem da cidade portenha. Na verdade, esses planos, mesmo que

fossem numerosos e variassem de objetivos, desde o século XIX tinham por destinação

a organização e controle do espaço físico da cidade. Estes se materializavam no

embelezamento da capital, nas construções imponentes, na extensiva arborização e

abertura de verdadeiros flancos urbanos cuja finalidade ajustava-se desde uma melhor

perspectiva visual até a higiene pura e simples. Esses fatores conjugados e confundidos

passaram a compor a união perfeita de ação racionalizadora pragmática e tradição

higienista que urgia aparecer desde muito tempo.

Conforme vimos dizendo, o viés científico orientado para uma direção

higinenista fazia parte dos principais projetos para a cidade desde o século XIX. Com a

solução das amplas diagonais e largas avenidas os urbanistas expandiam os corredores

para a passagem livre de vento e ar frescos, sempre muito bem vindos em casos de

adoção de medidas profiláticas para as cidades, ao mesmo tempo em que apresentava

medidas para a movimentação e circularidade de uma população cada vez mais

numerosa. 70 A circulação de pessoas e veículos, trens e as mais diversas atividades

68 ROMERO, J. L., La Experiência Argentina y otros ensayos, p. 105. 69 SEVCENKO, N., Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20, p. 19. 70 RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, 2002.

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surgiram no cenário buenairense e dá-lhes um ordenamento, e talvez mesmo um

sentido, se tornou uma necessidade imperiosa.

Quando a economia alcançou certo estágio de desenvolvimento, surgiu a questão da circulação. A estrutura urbana tornou-se um obstáculo ao desenvolvimento econômico. Na América do Sul, para acelerar a circulação de pessoas e artigos através do sistema de transporte assim como para a saúde pública, o estado interveio nestas cidades. Esta intervenção foi caracterizada pela renovação dos bairros centrais nas maiores cidades.71

Entretanto, uma das preocupações centrais residia no trato com os imigrantes:

A persistência do provinciano na vila se deve a fatores econômicos objetivos, mas também se deve a um intento de conservação da comunidade de origem, a um mecanismo de defesa frente a cidade e a sua diversidade de pautas e valores. Talvez também possamos interpretar o enclausuramento nas vilas misérias como uma resposta ao rechaço, as barreiras que o meio impõe. Faltam estímulos para sair da vila, e se estruturam mecanismos de defesa, por rechaço do meio. 72

Neste sentido uma das dimensões que adquire enorme volume na Buenos Aires

da época é a questão da loucura e seus derivados. Observando uma sociedade que põe

em xeque inúmero de seus códigos espirituais, Hugo Vezzetti tem posto em relevo o

papel desempenhado pelas transformações e a inquietude que elas geram.73 Culminando

muitas vezes numa espécie de não enquadramento das posturas adotadas pelos agentes

dum ambiente insólito e de rígida moral tradicional, os imigrantes se perceberam

fazendo parte de estatísticas psiquiátricas pouco animadoras.

Além do vertiginoso crescimento do número de estabelecimentos hospitalares

dedicado ao ramo, Hugo Vezzetti revela que dois terços do cada vez mais numeroso

contingente de internos são homens estrangeiros que possuem entre 21 e 40 anos. Na

verdade, a partir das últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século

XX, o recrudescimento do domínio positivista passa a vigorar com força de vendaval na

sociedade argentina e desenvolve-se sobretudo nos estudos profiláticos da loucura se

situando na massa de imigrantes e nos problemas derivados de sua inserção na

sociedade argentina:

O incremento das internações reflete, no nível de combate individual, a profundidade da crise social que afeta as condições de vida e relação de vários

71 OUTTES, J., Disciplining Society through the City: The Genesis of city Planing in Brazil and Argentina (1894-1945), p. 142. 72 MARGULIS, M., Migracion y marginalidad em la sociedad Argentina, p. 85. 73 VEZZETTI, H., La locura en la Argentina – Psiquiatria, Hospícios y Enfermos de Buenos Aires, p. 9.

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setores. A internação do discrepante – em termos sociais ou familiares – passa a ser um recurso cada vez mais difundido, ao quais as próprias autoridades dos hospícios procuravam por um limite.74

Desta forma, a exposição dos fatos acima descritos não deve levar a conclusão

de que havia exclusão de qualquer ordem ou que apenas os estrangeiros de condições

sócio-econômica mais modestas eram vítimas do processo de desorientação na urbe

moderna. O fenômeno perturbador e de contradição não escolhia apenas os mais

suscetíveis economicamente. Tanto no que tange a composição etária quanto no que se

refere a amostragem por profissão, os números apresentados por estes estudos deixam

entrever que todos poderiam fazer parte do universo dos não adaptados e engrossar as

fileiras daqueles que necessitavam de ajuda médica e psiquiátrica. No caso buenairense,

já a partir da virada do século temos um aumento global do número de internos e uma

intensa criação de hospitais psiquiátricos (los loqueros como eram chamados) para dar

conta a esta nova demanda. 75

Um outro fator de importância é que embora segundo Hugo Vezzetti

predominasse as profissões de caráter manual como sapateiros, lavradores, cozinheiros e

carpinteiros e um número significativo de comerciantes, passavam também pelos leitos

hospitalares dos loqueros profissões de caráter mais nobres e intelectualizadas.

Militares, padres, advogados e médicos, entre outros, se tornaram pacientes assíduos

desses novos ambientes. O que, na verdade, deixa transparecer amplos vestígios do

alcance social das novas teorias e dos experimentos psiquiátricos na sociedade em

transformação. 76

Seguramente, um dos maiores vetores de explicação para a dilatada extensão

social das teorias psiquiátricas é seu apelo moral. Num ambiente polifônico como a

moderna cidade de Buenos Aires, aberto a inúmeras vozes e possibilidades, a profusão

das taxas de internos, bem como o crescente avanço das instalações hospitalares não

deixa de ser um elemento sintomático do período. Desta feita, verifica-se que a

explicação sobre os desequilíbrios comportamentais transformara a loucura citadina

num sinônimo muito próximo, quase perfeito dos vícios e dos maus hábitos. De acordo

com Joel Outtes a conjunção entre apelo moral e a assepsia da cidade, esta última

74 VEZZETTI, H., La locura en la Argentina – Psiquiatria, Hospícios y Enfermos de Buenos Aires, p. 9. 75 Ibid., p. 9-10. 76 Ibid., p. 10.

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muitas vezes vista como um organismo vivo, deveria apresentar resultados de um ser

saudável e, sempre que possível, poder muito bem respirar. 77

Portanto, como afirma Hugo Vezzetti, não é por acaso que o alcoolismo,

percebido como vício maldito, figura entre a principal causa de internação e inquéritos

nos registros policiais. 78Paralelo a estes arroubos de apelo moral, instaura-se também a

ideologia de que a urbe buenairense como lugar das novas possibilidades e suntuosas

construções deveria ser desfrutada com refinamento e moderação. Com a transformação

da função médica numa espécie de pedagogia social ou quase de polícia, neste período

passa a ser condenado todo e qualquer comportamento considerado desviante e procura-

se estar atento a moderação de todos os excessos. Do mais ingênuo trago de bebida até a

ambição desenfreada por dinheiro e postos avançados na estrutura social, todas essas

posturas passaram a serem reconhecidos como fatores preponderantes da loucura e de

atuação não enquadrada79. Ao gerar o sentimento de estranhamento nos imigrantes, Juan

Carlos Portantiero afirma sobre as conseqüências resultantes desta política:

Foram tantos os que se encontravam no país como os que passaram como os que passaram como andorinhas; e os que permaneceram não abandonariam jamais sua erradicação, senão vicariamente, através de seus filhos. Esta imigração culturalmente segregada e politicamente ausente, era a prova do fracasso de uma decisão de “povoar o deserto” que na primeira década do século se aproximava perigosamente de um problema policial80.

Nesta direção, Buenos Aires em particular, era vista como um mosaico do ponto

de vista étnico, racial e em termos de cultura. A cidade ia crescendo, parecendo adquirir

dimensões quase infinitas. Segundo Mario Margulis, parecia um tanto difícil para um

argentino tradicional observar outros hermanos egressos do interior do país, italianos,

judeus e espanhóis tendo que conviver lado a lado no coração da cidade já tão

transformada. 81 Com uma maior densidade populacional a crise da cidade aumentou. E,

em crescente medida, grande parte do problema estava no fato de que agora, com uma

crença absoluta no progresso incontível, os problemas eram muito mais subestimados

do que outrora, na antiga aldeia que era Buenos Aires. As vicissitudes da modernidade

77 OUTTES, J.,Disciplining Society through the City: The Genesis of city Planing in Brazil and Argentina (1894-1945), p. 148. 78 VEZZETTI, H.,La locura en la Argentina – Psiquiatria, Hospícios y Enfermos de Buenos Aires”, p. 9. 79 Loc.cit. 80 PORTANTIERO, J. C., Nación y Democracia em la Argentina del Novicientos, p. 3. 81 MARGULIS, M., Migracion y marginalidad en la sociedad Argentina, p. 87.

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passaram a serem tão próximas e coexistentes que os buenairenses não se apressavam

em resolvê-las.82

A cidade moderna oferecia um eterno hic et nunc, cujo conteúdo é a transitoriedade, mas uma transitoriedade permanente – indivíduos únicos que confluem por um momento antes de voltar a separar-se (...) Este enriquecimento da sensibilidade exigia um preço terrível: alijar-se dos consolos psicológicos da tradição, abandonar qualquer participação em um todo social integrado.83

Com efeito, pode-se dizer que vertigem e torpor não são palavras

demasiadamente fortes para expressar a confusão que era experimentada pelo habitante

da Buenos Aires. Na verdade, podemos dizer que tal vertigem era acompanhada em

conjunto pelos sentimentos de entusiasmo e fascínio, simultaneamente sentidos. O novo

desenho da metrópole ao instituir o reto traçado operou uma transformação de cunho

mais que físico. Enquanto a cidade de Buenos Aires possuía características rurais a

própria atividade de contemplar as cercanias, de passear pela “grande aldeia”, pra se

valer de um vocabulário de como era chamada a Buenos Aires de outrora, produzia

resultados mais estáveis e inesitantes. É nesta direção que o grande projeto

transformador afetou globalmente a cidade buenairense. De fato, ao agir sobre os velhos

traços primordiais que residiam desde a fundação, aniquilou-se o que restava do tecido

colonial transfigurando um dos traços principais que fornecia explicações acerca das

origens do povo argentino. 84

De fato, muitos desses novos expedientes estavam conjugalmente relacionados a

um outro dado do período que iremos trata daqui por diante, assim como das suas

imediatas conseqüências: este expediente está representado pelo significativo aumento

da instrução formal e sua ressonância nos diversos setores da intelectualidade argentina

e especificamente buenairense.

Segundo Beatriz Sarlo na metade da década de 1930 as estatísticas sobre

analfabetismo em Argentina apontavam um patamar de 2,39 % para os sem instrução

que nasceram na Argentina em um quadro cujo número representava 6,64 % em termos

absolutos.85 A riqueza destes dados reside naquilo que o incremento da instrução formal

propiciou para o nascimento e o avançar do que seria característico no período: a gênese

82 MARGULIS, M., Migracion y marginalidad en la sociedad Argentina, p. 86. 83 SCHORSKE, C.,La idea de ciudad en el pensamiento europeo: de Voltaire a Spengler, p.15. 84 RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 61. 85 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 18.

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e a ampliação cada vez mais crescente do mercado de edição na região aliado ao

também cada vez mais extensivo número de leitores em potencial.

Verdadeiramente, estas novas possibilidades de acesso ao conhecimento, ainda

que acompanhadas de um nível não tão satisfatório de leitura compreensiva ou

interpretativa como requeria o mercado de profissões na incipiente economia capitalista

argentina, forneceu fôlego a um setor da economia cuja renovação e circularidade se

tornou bastante emblemático do período. A difusão da leitura de alguns livros e jornais

com alguma densidade significou a possibilidade, como diz Gutiérrez e Romero, de se

estar em condições de aceder a outro instrumento de conhecimento que não fosse a mera

experiência.86 Nesta perspectiva, o deslocamento do ato de leitura de um grupo restrito

da sociedade passando a setores significativamente mais amplos, representou, sem

sombra de dúvida, uma maior universalidade das oportunidades.

A título de ilustração podem ser enlencados os novos periódicos muitos deles

vanguardistas como “Él Mundo”, “Crítica”, e “Martin Fierro”. Ou mesmo o

fenômeno representado pelo periódico “Claridad” que, ao longo dos anos, se tornou

uma empresa editorial moderna, ativa, dinâmica e, naturalmente no que tange a

dimensão econômica, bastante bem sucedida. Suas tiragens alcançaram os dez mil

exemplares e na década de 30 já estavam nos vinte e cinco mil. 87 Um número de

tiragens inegavelmente alarmante para os padrões da época:

Grandes linhas da cultura argentina se apresentam e se impõe nas revistas dos anos vinte e trinta. Algumas delas vinculadas as editoras de “livros baratos”, outras como porta vozes das rupturas estéticas ou como plataformas de consolidação dos programas renovadores. A incidência dessas publicações nas transformações culturais não pode ser medida apenas em termos de exemplares vendidos (ainda que os 14.000 que declara Martín Fierro em algum momento, incluso se se reduz a cifra em cinqüenta por cento não desprezíveis), mas de repercussões no campo intelectual que logo alargam e se chocam no espaço do público e as instituições, sem dúvida com uma temporalidade e intensidade diferentes.88

Deste modo, é correto conjecturar que a amplitude de perspectivas mais

prósperas somada ao otimismo da temporada modernizante certamente animou o

circuito editorial local. As publicações eram variadas e contemplavam em suas

classificações os mais diversos tipos de leitores. Necessariamente devemos incluir

86 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 34. 87 Ibid., p. 19. 88 Ibid., p. 25.

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aqueles que possuíam algum poder financeiro para a aquisição deste novo bem. Beatriz

Sarlo aponta a ampla divulgação de periódicos leves com artigos breves e notícias que

não exigiam do leitor perguntas mais aprofundadas sobre um fato. Havia também

aqueles que poderiam ser consumidos durante uma viagem de trabalho, num rápido café

ou mesmo entre o intervalo das obrigações de trabalho, até as publicações e traduções

mais densas que comportavam ensaios filosóficos, sobre estética, política, arte e ficção

européia. Acerca disto nos diz ainda Beatriz Sarlo:

Armam a biblioteca do aficionado pobre; respondem a um novo público que, ao mesmo tempo, estão produzindo, proporcionando-lhes uma literatura responsável do ponto de vista moral, útil por seu valor pedagógico, acessível tanto intelectual quanto economicamente. Estas editoras e revistas consolidam um circuito de leitores que, pela ação do novo periodismo, está mudando e expandindo-se: se trata de uma cultura que se democratiza desde o pólo da distribuição e o consumo. 89

É insofismável, portanto, que as transformações que a modernidade buenairense

encerrava não se relacionavam apenas a um tino físico. Com a dilatação das referências,

presenciou-se uma nova espiritualidade, uma atmosfera de signos em alteração.

Aventuramos, entretanto, que num dado momento tornou-se mais nítida a percepção do

verdadeiro rebentar de fontes inauditas que, dada a inevitabilidade do advento, sua

existência real mesma, exigia dos partícipes uma perícia nem sempre passível de ser

lograda através dos meios seguros e tradicionais. Através do alargamento das

representações pelo novo repertório literário sucumbe em muito o ideal de uma

sociedade estática e de pouco movimento em termos sócio-culturais. Ao enriquecer o

imaginário com a reinserção de novos códigos, a sociedade moderna buenairense entra

em confronto direto com elementos constitutivos do corpo social antes da empreitada

modernizadora. Seus partícipes são levados a pensar a remodelação dos símbolos,

ícones de um passado que parece não mais responder às questões de uma cidade que

caminha em direção a um futuro cada vez mais incerto e contraditório:

A letra apareceu como a alavanca de ascensão social, da respeitabilidade pública e da incorporação aos centros de poder; mas também, em um grau que não havia sido conhecido pela história secular do continente, de uma relativa autonomia em relação a eles, sustentada pela pluralidade de centro econômicos que a sociedade burguesa em desenvolvimento gerava.90

89 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 19. 90 RAMA, A., A cidade das Letras, p. 79-80.

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Diante deste painel, a expansão dos meios de comunicação visando uma massa

de potenciais consumidores ávidos, ainda que muitos deles atônitos e confusos pelo

processo de modernização em curso, representaram um marco importante na nova

sensibilidade. Essas esferas tiveram de ser repensadas sob os estímulos recebidos de

fontes diversas.

Por outro lado, deve-se ter em mente o papel desempenhado pela nova indústria

dos já mencionados mercado editorial local, periódicos e revistas e sua conjugação com

a nascente indústria cinematográfica. Através desta aliança, os modelos de

comportamento, de visão de mundo, postura e ética do passado, sofreram um duro

golpe. Já que comummente se apresentavam de forma pouco dinâmica, estes modelos

foram impelidos dada a torrente de novidades, a rapidamente metamorfosearem-se.

Pode-se dizer que em Argentina o fenômeno cinematográfico alcançou

patamares de verdadeira loucura e status de febre nacional. Juan Sebreli sublinha que o

sentido de ilusão e entretenimento promulgado pelo recente aparato técnico fez com que

sua difusão, em números e em marcha, acompanhasse passo a passo a porcentagem das

regularidades de salas como o de países capitalistas centrais.91 Já segundo Beatriz Sarlo

a década de 30 presenciou uma argentina com mais de mil salas de exibição das

películas e que, com o surgimento do cinema sonoro, abriram-se em pouco tempo mais

600 salas para que argentino se deleitasse com a mais nova modalidade de

entretenimento e distração. 92

De fato, não há como negar a profunda transformação do imaginário coletivo a

partir da conjunção dos meios de comunicação de massa escritos e mercado editorial

com a recém nascida indústria cinematográfica argentina. Assim sendo, os agentes

dessas relevantes balizas culturais julgavam dar tudo ao homem em termos de cultura

atualizada. Além disso, estas práticas passaram a funcionar como símbolos de uma

sociedade certa em seu rumo, mas que oferecia como contrapartida, a confusão de

muitas das suas convicções e valores mais caros:

Como seja, modelos de relações mais modernas são difundidos pelas revistas e pelo cinema: as mulheres esportistas, condutoras de automóveis, empregadas em trabalhos não tradicionais, se convertem em um lugar transitado do imaginário

91 Juan Sebreli discute não apenas a difusão do cinema em Argentina, mas também a apropriação por uma classe para a produção de películas próprias. Ver: SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y Alienación, p. 95-97. 92 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.54.

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coletivo, ainda que se recortem contra as persistentes imagens da menina do bairro cujo horizonte se reduz ao casamento e a criança. 93

Destroçados, os grilhões que acorrentavam a eclosão e o desvelar dos novos

rumos tornaram-se, todavia, objetos das mais encarnadas discussões e material fecundo

para inspiração de artistas de diversas latitudes. Com o alvoroço cinematográfico e um

mercado de edição em crescimento pode-se imaginar as profundas alterações sofridas

em termos de comportamentos e latitudes culturais. O habitante da Buenos Aires de

baixos índices de analfabetismo encontrava-se com aquele que queria se divertir e ter

acesso a novos modelos de conduta cuja possibilidade concretização teria de ser

disputadas nas filas das salas de cinema da capital argentina. Isso certamente já compõe

um novo cenário. É deste modo talvez, que a cidade dá um dos passos mais largos em

direção a transformação dos novos hábitos no que tange a cultura. Com a modernização

crescente do centro urbano, a torrente de aparatos técnicos ensejou faculdades até então

despercebidas e que latejavam por aparecer.

Neste sentido, tanto a cidade mesma quanto as metamorfoses espiritualmente

experimentadas franqueou um leque de intervenções para artistas e intelectuais de

diferentes campos de atuação. Na verdade, tornou-se fascinante debater sobre a cidade e

seus problemas de densidade demográfica, as possíveis atividades e seu futuro.

Seguramente, parecia importar pouco que esse futuro se apresentasse na visão dos

interventores num verniz radiante ou sombrio: o movimento de expansão da cidade de

Buenos Aires exigia compulsoriamente recomposição de sensibilidades. Igualmente

fascinante foi poder prestar atenção, sempre que possível, nos novos símbolos em

profusão, autênticas cascatas de signos em movimento e poder pintá-los, redesenhá-los

segundo impulsos e percepções de um imaginário constantemente enriquecido pelo

mosaico humano que dia após dia adentrava a cidade de Buenos Aires, genuína Babel

ao sul do continente.

Isto posto, tendo havido desenvolvimentos extraordinários realizados pelas ações

estatais e pelas corporações, as situações dos estrangeiros tiveram de ser pensadas

diante deste novo marco, constituído pelo inchaço do perímetro urbano da cidade de

Buenos Aires. A cidade e seus arredores recebem nestas décadas a imigração massiva

de milhões de pessoas que agora passam a fazer parte desta nova cultura urbana. Neste

sentido, a fisionomia da cidade passa a ser resultado da fusão de múltiplas ondas

93 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 22.

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imigratórias que confluíram para a cidade num lapso de tempo bastante reduzido cuja

densidade cultural era cada vez menos nítida. 94

Com efeito, esses imigrantes contribuíram para a nebulosidade, sombra,

atmosfera saturna e movimento frenético com que a cidade havia sido envolvida. A elite

argentina em ascensão, cada vez mais ciosa dos seus méritos, passou a perceber que

precisava estar cada vez mais atenta aos matizes sempre mais sutis da turba que invadia

a cidade. A imigração fomentada pelo estado significou o surgimento de inúmeras

pessoas – difíceis de classificar- ou como diz Richard Sennett, materialmente

semelhantes, mas ignorantes de suas semelhanças pelo afrouxamento das posições

sociais tradicionais. 95

De todo reembaralhamento da urbe babélica, da nova densidade populacional

absolutamente imprevisível nos mais acurados prognósticos, resultou que agora existia

um lugar para a confluência exponenciada desse verdadeiro batalhão de pessoas: o

centro de Buenos Aires. À multidão de argentinos que tentava proteger sua

personalidade do impacto brusco que se deu nas normas e pautas de relações, somava-se

então, aos imigrantes, severamente condenados como vagabundos, anti-higiênicos e

outras qualificações moralmente apelativas. Esta profusão de pessoas foram se

comprimindo ao centro e conformando um fenômeno social vivo, complexo e de

considerável alcance cultural. 96

A cidade ao se transformar em urbe moderna, babélica por excelência, já que do

nosso ponto de vista a confusão engendradas na cidade portenha se assemelhava

bastante ao mito bíblico no que se refere a incompreensibilidade, oferta a artistas,

pintores, arquitetos, escultores e literatos um amplo repertório de temas e imagens que,

de outro modo, certamente não teria a voltagem típica dos lugares em descoberta

permanente. Esta é a particularidade de inúmeros deles: Xul Solar, Robert Arlt, Oliverio

Girondo e Jorge Luis Borges. E é sobre este último que, do nosso ponto de vista, se dá a

radicalidade das intervenções de vanguarda, bem como um importante papel de reflexão

sobre o passado e o futuro da cidade, lugar que figurou entre os temas sempre presentes

em sua rica e vasta obra.

Ao se deparar com uma Argentina cujo panorama é permeado de mudanças que

o impactaram radicalmente, Jorge Luis Borges em 1921, aos 21 anos regressa a Buenos

94 MARGULIS, M., Migracion y marginalidad en la sociedad Argentina, p. 22-28. 95 SENNETT, R., O Declínio do Homem Público: As tiranias da Intimidade, p. 69. 96 MARGULIS, M., op.cit., p. 90.

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Aires após uma estação de sete anos em solo Europeu, primeiramente em Genebra, solo

Suíço em que o escritor completou sua formação escolar e depois na capital de Espanha,

Madrid, onde trava contatos com artistas vanguardistas. Ao regressar a cidade de

Buenos Aires da qual partiu com 14 anos se vê diante de um país e uma cidade

profundamente alterados em vários de seus elementos: um vertiginoso aumento

populacional, imigração maciça, uma inegável transformação dos meios de transportes e

transmutação fisica e na atmosfera de seu local de nascimento. Na verdade, trata-se das

transformações que estamos vendo desde o início desta dissertação.

Como se depreende do seu impacto, Jorge Luis Borges volta a Argentina, em

consonância com os ventos da modernidade buenairense, ecoando sua voz no meio

literário e passa a explorar bem ao gosto dos vanguardistas do início do século XX, a

vontade de renovação do panorama literário argentino ainda fortemente marcado por

persistentes manifestações de arcaísmos no que tange a estética e seus nocivos

correlatos para o sistema literário local.97 Por outro lado, o escritor perplexo com as

mudanças operadas na capital argentina tematiza com afinco e sentimento de pesar um

dos termos que sempre revisitaria sua obra: a cidade de Buenos Aires.

É de se sublinhar, entretanto, como no caso da intervenção de Jorge Luis Borges,

que se trata de uma época marcada por rupturas em série, pela supressão de dogmas

seculares e que fornecia também aos seus interventores as mais dolorosas contradições e

entusiasmo latente. Num cenário de significativas ausências de referências confiáveis,

de limites mais precisos que pontuassem a construção íntima dos indivíduos, estar em

Buenos Aires era fazer parte de circunstâncias em que a passagem da mais dolorosa

tristeza até o estado de mais radiante euforia e vice e versa poderia se manifestar de

forma espontânea e imediata, quase imperceptível. Com isto e muito além da

particularidade de relações pontuais, esse poderoso conjunto de imagens alcança sua

concretude no cotidiano dos habitantes da cidade modernizada, densamente irrealizada

pelo escritor.

E, neste sentido, a especificidade da postura borgeana é que apenas o mais

inflamado sentimento de apego à cidade de Buenos Aires, o mais impetuoso “Fervor”

por ela e que, como afirma analogamente Raymond Willians98, ao mesmo tempo a mais

97ALAZRAKI, J., La prosa narrativa de Jorge Luis Borges, p 123. 98 WILLIAMS, R., Tragédia moderna, p. 152.

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aguda percepção de beleza, poderia produzir de forma avessa, um sentimento de horror

tão extremo com a contrapartida da alegria do momento imediatamente anterior.

O escritor Jorge Luis Borges percebeu que é pois, neste homem moderno, em

que convergem as disposições de fincar pé no infinito, no ondulante, naquilo que se lhe

apresenta como escorregadio e fugaz, sem que lhe seja afastada a perspectiva de fazê-lo

com algum sentimento de certeza e esperança num futuro mais palpáveis. E é nesta

direção que a escrita borgeana se revela como uma valiosa reflexão dos tempos em que

as coisas visíveis não parecem ser o que realmente são.

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Jorge Luis Borges e o vanguardismo entusisasta.

Sua vida inquieta repousa

Aqui, Oliverio Girondo

Gesto feroz, olhar fundo

E estranho poeta em prosa.

Perseguindo novos temas

Ia, e lhe matou um bonde

Enquanto o guarda lia

Seu livro “vinte poemas”.

Aqui jaz, bem sepulto

Capdevila, neste ossuário;

Foi menino, jovem e adulto,

Mas nunca necessário.

Seus restos devem queimar-se.

Para evitar desacertos:

Morreu para apresentar-se

Em um concurso de mortos.99

Cemitério de Martin Fierro.

I

O escritor argentino Jorge Luís Borges viveu com sua família em Europa entre

os anos de 1914 – 1921. E, um dado um tanto jocoso, como pertencia a uma família que

se orgulhava de não ler jornais, é bastante difundida a pilhéria acerca da surpresa que

99 “Cemitério de Martín Fierro”. In: Martín Fierro, Buenos Aires, Ano I, nº. 2, 20 de Março de 1924.

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significou para os Borges a deflagração da Primeira Grande Guerra onde estavam

situados no meio do seu núcleo nervoso, a Europa dos anos de guerra. A estada se deu

primeiro em solo suíço e, desde 1919 em Espanha, onde se vinculou ao movimento de

vanguarda que se denominou de ultraísmo. Em termos gerais, praticamente duas cidades

monopolizaram a atuação e os primeiros contatos daquilo que seria a gênese de uma

carreira de escritor em Espanha: Sevilla e Madrid. Na verdade, se aquela desapontou o

jovem escritor ao perceber um caráter um tanto provincial em muitos de seus

intelectuais e fomentadores de arte, significou também segundo Emir Rodriguez

Monegal, o primeiro contato real de Borges com uma incipiente vida literária.100 De

outra forma, ainda segundo as descrições de Emir Monegal, se Sevillla tinha algo de

desapontador e triste (ao menos visto retrospectivamente por Borges), Madrid significou

para o escritor o advento de uma verdadeira revelação pessoal: o encontro de Jorge Luis

Borges com o poliglota Rafael Cansinos-Asséns fundador do movimento ultraísta e que

teve enorme impacto sobre o escritor ainda segundo as palavras de Emir Monegal.101

A experiência deste movimento (ultraísmo) para o escritor, que pode ser

caracterizado como uma particular versão espanhola das tendências vanguardistas

européias como o futurismo, cubismo, expressionismo, surrealismo entre outros102, foi

capital quando da chegada de Borges em solo argentino e sua conseqüente intervenção

de vanguarda sendo vista por críticos e estudiosos como uma das mais importantes nas

letras do país naquele momento. Conquanto tais assertivas sejam de difícil

comprovação, a verdade é que em contato com essa vanguarda espanhola se gestaram as

primeiras reflexões e experiências poéticas de Borges, publicadas em algumas revistas

ultraístas madrilenas. Essas práticas cobriam um longo raio cuja circunferência abarcava

desde publicações de poesias de teor ultraísta, textos críticos e programáticos até

discusões e traduções de poetas expressonistas alemães, conforme assegura Emir

Monegal.103

100 MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: A Literary Biography, p.158. 101 Há neste caso uma polêmica em torno da criação do movimento ultraísta em Espanha e em América Latina. De um lado temos atribuído a criação do movimento a Rafael Cansinos-Asséns, de outro há a atribuição (ou auto atribuição) do jovem poeta chileno Vicente Huidobro. Ver: MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: A Literary Biography, p. 159-160. Para a prática vanguardista de Vicente Huidobro: LIMA, L. C., Sociedade e Discurso Ficcional, p. 324-331. Para os primórdios das vanguardas em América Latina. Ver: PAZ, O., Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda, p. 181. 102 A definição de ultraísmo além da especificidade acima descrita, possui também segundo Bella Jozef o caráter de tendência esteticista e intelectualista que se radica na corrente da poesia pura. Ver: JOZEF, B., A Máscara e o Enigma: A modernidade da Representação à Transgressão, p. 162. 103 MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: A Literary Biography, p.164.

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Ainda discorrendo sobre os tímidos passos do processo inciático do jovem

escritor, temos nos primórdios de suas experiências públicas literárias, um Borges que

se aventura na difusão do que considerava como característica essencial do movimento

de vanguarda em Espanha. Por esta via, o escritor dá ênfase aos conteúdos

programáticos elegendo as características de uma poesia que traduzisse as reais

necessidades do tempo e, simultaneamente, sublinhando seu caráter puro e dinâmico.

Bem típicos desses momentos de ruptura em que os textos programáticos aparecem

como compêndios dos novos princípios, vislumbra-se também na postura borgeana o

ataque à retórica anterior e o desejo de colisão, através de enunciados veementes, de

força e impressão quase bíblicas. O jovem Borges ainda em Espanha impregnado dessa

atmosfera vanguardista, enuncia também seu próprio programa poético:

Já cimentadas estas bases, exporei as intenções dos meus esforços líricos. Busco neles a sensação em si, não a descrição das premissas espaciais ou temporais que a rodeiam...Eu – note-se que falo de tentativas e não de realizações satisfeitas – desejo uma arte que traduza a emoção desnudada, depurada dos dados adicionais que a precedem. Uma arte que esquiva o dérmico, o metafísico e os últimos planos egocêntricos ou mordazes. Para isto – como para toda a poesia – exstem dois meios imprescindíveis: o ritmo e a metáfora. O elemento acústico e o elemento luminoso. O ritmo: não encarcerado nos pentagramas da métrica, mas ondulante, solto redimido, bruscamnte truncado. A metáfora: essa curva verbal que traça quase sempre entre dois pontos - espirituais - o caminho mais breve.104

Gesta-se dessa maneira, ainda no jovem escritor da década de 1920, uma

interessante particularidade daquilo que seria bastante presente em inúmeros

movimentos de vanguarda como um todo: a produção de uma obra que está em drástico

processo de ruptura com as caracterizações comuns com vistas ao purismo de sua

elaboração.105 De tal forma imerso neste espírito empreendedor e, mutatis mutandis, a

despeito da característica que o programa estético enunciado por Borges possuirá no

futuro de0 disputa simbólica, ao mesmo tempo o escritor visa inventar uma tradição

cultural que dê conta das novidades deste novo cenário alargando o campo para novas

modalidades expressivas. Deste modo, e pelo menos a princípio, os esforços líricos que

Borges enuncia possuíam uma relação de dependência com o afastar-se de tudo aquilo

que envelheceu, ou seja, com tudo aquilo que representasse um passado literário recente

104 BORGES, J. L., Anatomia do meu Ultra [1921], p. 27. 105 JOZEF, B., A Máscara e o Enigma: A modernidade da Representação à Transgressão, p. 96.

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e ineficaz em termos de ressonância com os novos tempos. Sob esta insígnia é que se

costura o empolgante entusiasmo pelas mais novas tendências em literatura, mesmo que

plenas de contradições.

Por certo, todo este admirável hino ao ritmo e a metáfora ao qual Borges se

entrega com abandono juvenil parece estar fundado na captação de valores vitais aos

modernos movimentos de vanguarda. Assim, concebe-se em Jorge Luis Borges, ainda

no Velho Continente, a prefiguração de um tempo literário que ande pari passu com as

modernas questões do homem e da sociedade. O escritor portenho parecia acreditar no

êxito inconteste das construções metafóricas breves, na sua significação profunda, ou

ainda como diz Juan García Ramos no que se refere ao estudo da metáfora em Borges,

uma obra criativa pura.106

Dificilmente significando uma contrapartida, ou mesmo negação das práticas

literárias em Espanha, o desenvolvimento de seus programas estéticos em Buenos Aires

será deveras grandioso. Desta forma, se em Espanha o desenrolar de suas inciativas

literárias davam-se em um ambiente cultural consolidado107, após o navio a vapor Reina

Victoria Eugenia trazer Borges e sua família de volta ao solo natal, o escritor além de

perceber uma cidade alterada em suas características físicas, encontraria também um

ambiente literário em efervescência. Assim, um dos aspectos mais salientes da postura

de Jorge Luis Borges em seu regresso se desenvolverá num desacato ante aos costumes

literários tradicionais, assemelhando-se fortemente a um irreverente movimento

iconoclasta:

(Paul) Groussac, (Leopoldo) Lugones, (José) Inginieros, Enrique Banchs são gente de uma época, não de uma estirpe. Fazem bem aquilo que outros já fizeram e esse critério escolar de bem ou mal feito é uma pura tecniquice com a qual não devemos nos aqui onde rastreamos o elementar, o genésico. Entretanto, é verdadeira a sua fama e por isso os mencionei.108

Estas manifestações desenham o traçado da atitude corrosiva que o escritor foi

pouco a poucos adotando frente a outros movimentos estéticos. Tanto ao conferir

aspecto de literatura datada a escritores eminentes da literatura latino americana quanto

a ode ao elemento acústico e luminoso, imprescindíveis na nova poesia, Borges em

nome destas premissas tenta rearticular o panorama literário local fornecendo-lhe um 106 RAMOS, J. M. G., La Metáfora de Borges, p. 13-16. 107 RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 122. 108 BORGES, J. L., O Tamanho de Minha Esperança [1926], p.574.

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fôlego mais vivo e dinâmico. Ao conjurar os deuses do passado, o Jorge Luis Borges

vanguardista deixa claro a abertura que exprime o lançar-se numa irradiosa aventura.

Mas não é de outro lugar que da cidade de Buenos Aires que o escritor faz

irromper sua voz numa clave marcadamente aberta e empolgante. Por certo descortina-

se em Borges os motivos que tornam aqueles escritores filhos de uma época, a despeito

de sua fama: o atavismo de uma ligação com o passado cuja prática literária não oferta

ao presente momento nada de novo (fazem bem aquilo que outros já fizeram). Da

atitude do escritor depreende-se que o momento exigia novas sensibilidades, não é

difícil pensar. Desta forma, são estes fatos que, coabitados á percepção de um panorama

pulsante da urbe buenairense; cidade que passou a brindar aos artistas e intelectuais com

o fomento de suas novas atividades e estímulos de diversas ordens, que induziu

certamente Beatriz Sarlo a escrever sobre as vanguardas do período uma afirmação um

tanto quanto categórica:

A vanguarda é a forma de ruptura estética carcterística de um campo intelectual consolidado e de um mercado de bens culturais relativamente extenso: por que reacciona contra o sistema de consagração, as hierarquias culturais e a mercantilização da arte, o surgimento da forma vanguarda tem como condições a verificação do campo intelectual, a existencia de um público que a vanguarda divide, e os mecanismos de um mercado frente ao que a vanguarda experimenta, ao mesmo tempo, náusea e fascinação.109

Tal é a moldura que incide na dedicação devotada pelo Borges vanguardista no

início dos anos 20. Esta incidência é esclarecedora na medida em que da chegada do

escritor em solo argentino, buenairense especificamente, se conforma nele a percepção

da cidade como que inserida num sistema onde existem dificuldades de percepção de

um desenho mais nítido de futuro e ausência contínua de regras que possam servir como

roteiro de condução mais segura para os homens.110 Incide ainda uma vez mais, na

medida que a cidade de Buenos Aires é percebida pelo escritor como fonte profícua de

inesgotáveis paradoxos, estranhamentos e arena aberta a inúmeras possibildades de

intervenções. Neste sentido, a corrosão que reacciona contra o sistema de consagração

e hierarquias culturais que Beatriz Sarlo postula aos movimentos de vanguarda em

Argentina, termina por ajustar-se singularmente bem aos imperativos da conduta

dinâmica dos novos tempos da cidade de Buenos Aires que, ainda segundo a autora:

109 SARLO, B., Sobre la Vanguardia, Borges y el Criollismo, p. 3. 110MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: A Literary Biography, p.167-168.

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A conjuntura estética hegemonizada pela vanguarda não reclama a autonomia em nome só da beleza, mas, fundamentalmente, da novidade. “O novo” é o eixo que resolve a autenticidade. Não constitui um traço qualquer do programa, mas que organiza e dá significação ao conjunto de reividicações. Por isso, por que “o novo” é intransigente, a vanguarda esgrime um programa de máxima.111

Esta disposição em promover a renovação estética nas artes já estava sendo

anunciada no horizonte artístico do período. Em literatura, desde muito, e alguns

conjecturam que desde o século XVIII, a literatura hispano americana carecia de uma

renovação que abalasse os fundamentos de suas bases, pois demasiado presas que

estavam ao que provisoriamente chamamos de ausência de substituição.112 De acordo

com Jaime Alazraki, os literatos hispano-americanos referenciavam-se sempre nas

habituais figuras mitológicas, em que os exemplos do que seria uma excelência na

forma de escrever, passaram a figurar como entraves a reabilitação da sua

profundidade.113

De posse deste discernimento, Ruben Darío, figura importante no modernismo

latino americano já reclamava da igualdade prosística presente na maioria dos escritores

situados no eixo de América Latina. Importantes precursores da renovação da prosa

castelhana, José Martí e o próprio Darío, inquietaram-se frente a este diagnóstico

desanimador. De início, como preceito de rearranjo das formas literárias, eles sugeriram

uma atitude de não imitação: primeiro, não imitar a ninguém, e sobretudo, a mim dizia

Ruben Darío. Ao mesmo tempo se conceberam como adversários ferrenhos do vulgar,

pois perplexos que estavam com a insípida prosa que o realismo de fim de século

deixara como legado. Inimigos do entusiasmo retoricista que consideravam gangrena da

literatura espanhola, os modernistas tinham como projeto a criação de uma prosa

virtuosa cujo ideal era a beleza eterna da arte.114 Ao peso e ao hermetismo da velha

sintaxe, devia se contrapor segundo as premissas Darianas, a agilidade da oração breve,

o colorido plástico da frase nominal, a música de ritmos que haviam sido monopólios do

verso, de acordo com a análise de Alazraki. Sem falar na contribuição dos mais diversos

neologismos, renovação das palavras antigas, denominada no período de arcaísmo,

assim como o empréstimo de palavras que poderiam dar, à literatura de Latino América,

o frescor e a lubrificação que os diagnósticos de então há muito preconizavam. Desta

111 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 98. 112 ALAZRAKI, J., La prosa narrativa de Jorge Luis Borges, p. 122. 113 Ibid., loc.cit. 114 Ibid., loc.cit.

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forma, segundo Bella Jozef, o modernismo cumpriu os cânones que havia fixado a si

mesmo; deu origem a uma prosa plena de cor e melodia; tudo concorria para a

configuração de um mundo em que os caracteres da arte ganhavam primazia. Estas

características ganham nas palavras de Bella Jozef:

A conexão das frases segundo a emoção, apoiada no adjetivo e no ritmo, livre e subjetivamente, foi umas das principais características técnicas do estilo modernista. A expressividade de cada escritor ficava assegurada ao substituir a linha lógica da sintaxe tradicional. Em cada país, o Modernismo adquiriu matizes próprios e bem definidos. O próprio Darío, intérprete das inquietações continentais, havia aconselhado cada escritor a que procurasse a sua expressão particular, dentro da orientação estética geral, tornando mais flexível o idioma, capacitando-o a expressar a nova complexidade do presente.115

O projeto de reforma, a procura por soluções estéticas já se revelara como

intento desde os modernistas em Argentina. No caso das vanguardas, foram gestadas no

seio de uma cultura urbana quando se observa uma profunda diversificação nos meios

de comunicação, emergência de novas linguagens e regimes sobrepostos de

historicidade. Ao lado destas inovações em termos de linguagem, há também uma nova

configuração do público, alfabetizado e mais numeroso conforme vimos sublinhando

desde o capítulo anterior. Este nova configuração do público revelou também uma

incrível capacidade de deixar ser capturado pelas novas modalidades expressivas

levadas a cabo pelos interventores do espaço público:

O desacordo entre ambos os planos – artístico e social – impunha a correção dos padrões literários, para que obedecessem ao ditame da nova realidade. Com isso, esta voltava a instaurar-se como mestra da criação: a cidade moderna era agora para os vanguardistas o que fora a natureza para os pré-românticos. 116

Com efeito, a geração do que se chama em Argentina modernistas,

cronologicamente um pouco anterior a de Borges, já estava bastante determinada a

encontrar um ponto fixo em meio às transformações de que Buenos Aires era lugar e

palco principal. De fato, buscavam-se caminhos que pudessem garantir com alguma

115 JOZEF, Bella. História da Literatura Hispano Americana. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1989, p.112. 116 RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 112.

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chance de êxito a inserção da América Latina, representada na constelação dos seus

mais diversos estados nacionais, em um rol de países com uma literatura própria e dessa

forma poder fazer parte do concerto das nações cultas. A partir daí, ensaia-se a

configuração de um campo intelectual que, como diz Luiz Costa Lima referindo-se ao

caso brasileiro, pudesse possuir seu próprio centro de decisão. 117

Já no que tange a prática vanguardista borgeana, o caso de um escritor que

adquiriu fama e renome também pelo fato de suas obras literárias estarem repletas de

citações e associações das mais díspares, eruditas, ou a imagem de um escritor cego e

ávido por leitura, contribuiu, certamente, para a construção da imagem de irrealidade e

pureza que envolve ao escritor e boa parte de sua obra ficcional. Mas, por outro lado, ao

almejar como programa “uma arte que traduza a emoção desnudada, depurada dos

dados adicionais que a precedem”, Jorge Luis Borges, imerso na atmosfera de

vanguarda ultraísta, estrategicamente fomenta uma distinção frente a outras

manifestações literárias do passado que no seu cerne é absolutamente herdeira, ou pelo

menos dialogava de forma intensa com a ambiência de utopia esteticista que pulsava

nos mais diversos grupos vanguardistas nas cidades européias. Sendo um importante

vulto deste novo desenho, a postura borgeana ao requerer uma arte que se esquive do

dérmico, não dissente em nada da exemplar posição purista frequente em outros

movimentos de vanguarda do período. 118

Ora, longe de pretender que estas características sejam reconhecidas de forma

negativizada apenas pelo que se pode depreender do intercambio que Jorge Luis Borges

ensaiou com vistas aos movimentos de vangurdas similares, interessante, do nosso

ponto de vista, é ressaltar o caráter daquilo que Hans Ulrich Gumbrecht disse com

respeito as vanguardas históricas: um leque de artistas e autores que se auto-revestem de

uma suposta autoridade e passam a competir entusiasticamente partindo para a

conquista no campo das letras e das artes.119 Deste modo, as manifestações

aparentemente subeversivas ou até mesmo revolucionárias encontráveis nos programas

117 LIMA, L. C., Dispersa Demanda: ensaios sobre literatura e teoria, p.23. 118 Embora não seja nosso propósito considerar a problemática do diálogo dos grupos de vanguardas em Argentina com movimentos europeus e suas vinculações culturais, há uma interessante discussão acerca das similitudes e diferenças estéticas e ideológicas tanto entre as capitais em América Latina quanto no diálogo entre os dois continentes. Ver: VERANI, H., The Vanguardia and its implications.; VASQUEZ, K., Redes intelectuais hispano-americanas na Argentina de 1920.; RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos. 119 GUMBRECHT, H. U., A Modernização dos Sentidos, p. 19.

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e manifestos caminhava de mãos dadas com a tentativa de romper com o peso de uma

forte tradição literária cujo eixo principal deste rompimento segundo Angel Rama:

Esse tempo não transcorreu em vão, tanto para a consciência progressiva de si que a América Latina vinha elaborando, como para a exacerbação da ruptura postulada no processo cultural europeu, de tal modo que essa nova revolução desenvolveria em terras americanas uma captação mais lúcida de sua idiossincrasia e de sua herança peculiar junto a um aniquilamento mais cortante, se é possível dizer, da tradição poética recebida.120

O que nas palavras do Jorge Luis Borges vanguardista recebia esta forma de

tratamento:

Afirmo isto apesar da grande quantidade de moedeiros falsos da arte que nos impõe ainda as enferrujadas figuras mitológicas e os imprecisos e longínquos epítetos que Darío esbanjou em vários de seus poemas. A beleza rubeniana já é uma coisa amadurecida e saturada, semelhante à beleza de uma tela antiga, completa e eficaz na limitação de seus métodos e em nossa aquiescência em nos deixarmos ferir por seus recursos previstos; mas por isso mesmo, é uma coisa acabada, concluída, aniquilada.121

No caso dos grupos de vanguardas em Argentina a que Borges se filia com

entusiasmo de verdadeiro militante, esta função ou mesmo a emergência de sua

possibilidade, ao menos em nível de algo pensável e factível, conecta-se com o advento

daquilo que, ainda conforme denominação de Hans Gumbrecht, da simultaneidade do

tempo histórico.122 Como comungante do novo espírito buenairense, Borges partilha

com outros confrades vanguardistas o momento de cisão representado na instabildade

que significou a concomitância de passado, presente e futuro. Na verdade, era tamanha a

sensação de estranhamento que se impunha por parte desta ebulição que fomentar

respostas a esta ambiência passou a envolver a própra identidade da cidade.

Assim, podemos perceber que era esta a sensação experimentada por Jorge Luis

Borges em seu regresso à cidade natal, Buenos Aires. E isto, não apenas em virtude dos

incentivos tecnológicos que a cidade recebeu como lugar privilegiado. Ao lado do novo,

acresce-se uma situação política cada vez mais instável, fragilidade econômina e

conflitos sociais temperados por um volume crescente de imigrantes insatisfeitos. Na

verdade, a ambiência de inovação colossal se deu justamente pelo gesto largo

120 RAMA, A; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 114. 121 BORGES, J. L., Ultraísmo [1921], p.108. 122 GUMBRECHT, H. U., A Modernização dos Sentidos, p. 19.

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representado pelos paradoxos e suas propriedades conseqüentes a patamares

lancinantes. As vanguardas, atentas e vigilantes, respiravam e engendravam novas

modalidades de expressão estética que dialogavam com esta nova ambiência ao mesmo

tempo que percebiam inúmeras das suas mais imediatas perplexidades num processo de

aparência palpitante. Ao discorrer sobre algumas caracteríscas do pensamento de

vanguarda e sua relação com outros domínios da sociedade do inicio do século XX,

Luiz Costa Lima afirma:

Importa-nos realçar esse fenômeno do afastamento do poeta, em busca de sua expressão irredutível...Ou seja, a linguagem se converteu no centro a explorar e sua conquista se media por sua ductilidade quanto ao que ignoram, desprezam ou temem os servidores, voluntários ou involuntários, da sociedade estabelecida. Como uma bola de neve, este processo cresce desde os românticos até o aparecimento das vanguardas, nas primeiras décadas do século XX.123

Nesta direção, a apresentação borgeana de seu programa poético é próspera

quando concertada com aquilo que foi produzido por seus companheiros mais velhos

não apenas no que tange a tentativa do uso da palavra impermeabilizada e não

contaminada pela imprecisão do uso corrente124, mas também quando visadas as

condições socio-culturais nas quais a produção e recepção de sua linguagem estética

estão inseridas. Nesta direção, de acordo com o que seriam os traços comuns dos

movimentos vanguardistas, Luiz Costa Lima ainda assevera:

A intelligentsia da época (das vanguardas) vivia uma espécie de variante iluminista, da qual se afastara a intenção pedagógica, mas que mantivera seu propósito de transformação radical. A vanguarda artística, científica ou política se via na obrigação de elaborar uma linguagem mais precisa e refinada, resistente às mistificações da própria fala e independentes da motivação voluntária do agente, assim como formas de ação capazes de dinamitar o statu quo. Quanto às massas, nenhum problema mais grave senão o de fazê-las entender e seguir a direção aberta pela vanguarda.125

No seio da intelectualidade buenairense, a dinamitação do statu quo, de fato, já

estava em curso. Sendo assim, um dos resultados mais bem sucedidos deste

procedimento eclodiu na forma com a qual Borges se expressava em seus manifestos e

123 LIMA, L. C., Sociedade e Discurso Ficcional, p. 319-320. 124 Ibid., p. 326. 125 Ibid., loc.cit. [Grifo do autor].

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nos textos assinados nas revistas, jornais e periódicos de Buenos Aires. É singularmente

forte em seus manifestos a impressão deixada pela tom aguerrido prontamente assumido

pelo escritor na tentativa de transformação radical do panorama literário oferecido como

lêgado. Nestas condições, parecia ser natural o escritor tentar eliminar uma parte de um

passado embaraçante com vistas a um salto longínquo em direção ao que se cria ser o

futuro.

Em sua ênfase ao pensamento de vanguarda e a seu programa, em cuja diferença

queria matizar no que tange ao ultraísmo em Sevilha e Madrid, o escritor inicia sua

crítica elencando as característiscas do que era o Ultraísmo nestas cidades e o que o

movimento de adiquiriu de inovador em terras argentinas. Assim, configura-se ainda

uma vez mais o aspecto de pureza e limpidez almejados por grupos de vanguarda em

mais de uma parte. A busca da intemporalidade, de algo perene e eterno faz conjunção

com ataques, mais uma vez flamejados contra o passado literário do continente,

simbolizado mais uma vez ainda, na lendária prosa rubeniana e na eleição da metáfora

como elemento majestoso para marcar as diferenças de coordenadas entre os argentinos

e os espanhóis. É desta maneira que Jorge Luis Borges almejava que a fisionomia do

ultraísmo buenairense fosse vista por seus contemporâneos:

O Ultraísmo em Buenos Aires foi o anseio de alcançar uma arte absoluta, que não dependesse do prestígio infiel das palavras e que perdurasse na perenidade do idioma como uma garantia de beleza. (...) Nós, enquanto isso, sopesávamos linhas de Garcilaso ( de la Vega), errantes e graves ao longo das estrelas do subúrbio, solicitando uma arte límpida, que fosse tão intemporal quanto as estrelas de sempre. Abominamos os matizes imprecisos do rubenismo e nos inflamamos com a metáfora pela precisão que há nela, por sua algébrica forma de correlacionar distâncias.126

O tom francamente belicoso do escritor parece não se importar com

preocupações de tato “político” que se traduziriam em possíveis alianças que, se

estrategicamente costuradas poderiam render-lhe um lugar mais confortável nos círculos

literários de Buenos Aires. Mas o momento não era tão propício a estas ilusões.

Impondo-se de maneira aguerrida e combatente, Borges confecciona modalidades de

fliação em nome de temáticas diversas das que permeavam o ambiente intelectual

anterior. Portanto, em se tratando de Borges pode-se dizer com Miguel Bances que o

novo nesta clave foi haver levado até o limite o elemento crítico que subjaz na estética

126 BORGES, J. L., Comentários à Margem [1924], p. 470.

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moderna.127 O olhar corrosivo do escritor ao postular uma garantia de beleza, ataca de

frontalmente a palavra (infiel) ou seu prestígio cujo objetivo primeiro é alcançar uma

arte absoluta. A modernidade borgeana revela-se na busca do novo como crítica radical

ao discurso moderno.128

É claro que o fato de alimentar um sonho, por humilde que seja, de superação e otimismo implica condenar ou rever tacitamente o ponto de partida. É daqui que, sem nenhum temor ou hipocrisia, declaramos nosso amor por tudo o que signifique uma análise ou uma nova rota. E estas se revelam indistintamente no jovem e no velho. Declaramos, pois, que a nova geração não está limitada pela fatalidade temporal e biológica e que, para nós, mais vale um ancião batalhador e fecundo que dez jovens negativos e frívolos. Nunca foi tão justo rotular uma nova geração como na hora presente.129

No ventre da catarse vanguardista a intervenção de Borges se dá pela tentativa

de consagração do aqui e agora através da universalização potencial da capacidade de

seu auditório. É desta forma que o escritor portenho alarga o círculo restrito da

comunicação e dá ensejo a outras novas modalidades, podendo assim, depois de

esgarçar a situação dialógica face a face, extravasar sua sensação de incômodo com o

panorama da literatura em argentina do período e dar continuidade a euforia que a

ciranda efervescente de que Buenos Aires era lugar propiciava. Neste sentido, a postura

assumida pelo escritor compõe um pilar onde melhor se pode constatar a

ressemantização de universos em transformação permanente e a tentativa de forjar

respostas audazes, a altura que a coincidência de tempos exige.130

Esta é a forma que se explica no Borges das vanguardas a dinâmica da negação.

Absolutamente sensível a atmosfera do período onde havia uma ambiência favorecedora

de projeções e rítmos mais lépidos, ousados mesmos. Nesta pespectiva, ocorre uma

forma de anatemização como demoníaco de tudo aquilo que significasse impureza ou

ruídos da linguagem. Assim posto, os inconvenientes de uma locução desprovida de

pureza, encontrava uma forma de confronto imediato no Jorge Luis Borges das

vauguardas com o aceno do primado do supra sensorial resguardando desta forma

condicionantes para seus projetos de transformação radical. É desta maneira que a

prática da utopia lúdica e aparentemente descompromissada, quase irresponsável das

127 BANCES, M., Una nota sobre las poéticas del vanguardismo latinoamericano, p. 23. 128 Ibid., p. 25. 129 BORGES, J. L., Proa [1924], p. 34. 130 RICOEUR, P., Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p. 42-43.

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vanguardas argentinas insere-se num processo de formação de conjunturas em que a

contrapartida negadora e visível encontra-se concretizada no fragmento rebelde ou

numa atitude anticonformista da expressão estética. Deste modo, os novos signos

exigentes de releituras não lograram desvincular-se da totalidade que é o fenômeno da

modernidade materializada em nosso caso, na postura de vanguarda em Borges e sua

cidade natal modernizada.

Ao se reconhecer nesta atualidade efervescente fomentos variados para uma

prática mais móvel e múltipla dos homens das letras, é que desde já verificava-se

também um caminhar na direção de uma atuação mais cosmopolita e menos provincial

no campo das artes. Por ora, não seria menos verdadeira a atestação de um maior grau

de cosnciência da comunicação entre o escritor e artista com seu público conforme

Antonio Candido131, com a coincidência bastante aproveitada de uma industrialização

crescente e índices mais otimistas quanto a instrução formal. Com Walter Benjamin

podemos dizer sobre o fenômeno de ligação, de reciprocidade com o novo e a

visibilidade de seus indícios, que segundo o autor, estavam presentes no inconsciente

coletivo.132 Na verdade, trata-se de um período em que as modulações de cunho

estético, conduzidas até as últimas consequências, estavam ricamente compaginadas à

uma época, um locus , uma cidade, Buenos Aires, cosmópolis, na frase do modernista

Ruben Darío que não apenas serviu de palco para a eclosão dos modernos movimentos

artísticos de vanguarda, como efetivamente contribuiu para engendrá-los.

Como apresentação dos programas estéticos, o tom da melodia vanguardista

presente na assinatura dos manifestos era claro e rangia cordas sensíveis na emoção dos

leitores e mesmo de seus pares intelectuais. Estes manifestos programáticos, visados

como forma de arte pura, absolutamente isenta de qualquer mistura inoportuna, de

qualquer falsa grandeza observada na literatura do passado tornaram-se um caminho

inaudito para a exploração dos limites da latitude criativa do escritor.133 Neste sentido,

passaram a estar em xeque os valores que dominaram por longos períodos o circuito

artístico e intelectual. A transformação radical que as vanguardas tinham em mira

acarretou que em suas estratégias de atração de público optassem pelo novo, chamando

131 CANDIDO, A., Literatura e Sociedade, p. 73-88. Para a mesma temática em América Latina especificamente: RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 60. 132 BENJAMIN, W., Paris, capital do século XIX., p. 693. 133 VERANI, H., The Vanguardia and its implications, p. 116.

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a atenção para a necessidade de compreensão da imprescindibilidade que jaz na

necessidade de definir-se frente a presença de uma nova sensibilidade:

Martin Fierro sente a necessidade imprescindível de se definir e de chamar a quantos são capazes de perceber que nos encontramos em presença de uma NOVA SENSIBILIDADE e de uma NOVA COMPREENSÃO que, ao nos conciliarem com nós mesmos, descobrem-nos panoramas imprevistos, e novos meios e formas de expressão.

Martin Fierro aceita as consequencias e as responsabilidades de

posicionar-se, por que sabe que disto depende a sua saúde. Ciente dos seus antecedentes, da sua anatomia, do meridiano em que camimha, consulta o barômetro, o calendário, antes de sair à rua para vivê-la com seus nervos e com sua vitalidade de hoje.134

A gestualidade do manifesto de 1924, tensão vivida pelos resquícios de um

passado recente e um porvir a construir, declara fidelidade aos princípios dos novos

tempos lançando suas bases na exaltação de um instante. Por outro lado, estas novas

sensibilidades promulgadas pelo jornal mais popular da época135 foram, certamente,

caminhadas na direção de depurar os canônes modernistas, sobretudo no que refere ao

afastamento dos exemplos fornecidos por uma das figuras mais lendárias da literatura de

hispano america: Ruben Darío e Leopoldo Lugones.136 Os exemplos literários

fornecidos por estes escritores passaram a ser vistos como inexpressivos, ou mesmo

inadequados já que não surpreendiam frente a torrente de estímulos de que Borges e

seus confrades escritores estavam constantemente sendo submetidos.

Por sua vez, Oliverio Girondo no extrato anterior de Martín Fierro, manifesta-se

gracejosamente contra os aspectos que simbolizariam uma postura rígida frente aos

imperativos dos novos tempos: a impermeabilidade hipopotâmica do honorável público,

a aparência de funerária solenidade do historiador e catedrático, assim como a

incapacidade de algumas pessoas em observar a vida sem escalar as estantes das

bibliotecas.137 Após estes rompantes burlescos, o aguerrido espírito martinfierrista,

exaltado com os instrumentos tecnológicos representativamente mais hodiernos

presentes na sociedade buenairense, mais adiante ainda em seu estilo cômico e bem

humorado contra ataca: 134 GIRONDO, O., Manifesto Martin Fierro, p. 115. 135 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930. 136 Com respeito a Leopoldo Lugones, Borges chega a afirmar que suas metáforas eram tão visíveis que obstruíam o que deveria expressar. Numa outra perspectiva, Borges admite que a literatura argentina ainda se nutria deste escritor. Ver: JOZEF, B., História da Literatura Hispano Americana, p. 183. 137 GIRONDO, O., loc.cit.

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Martin Fierro sabe que “tudo é novo sob o sol”, se tudo for olhado com pupilas atuais e expremido com sotaque contemporâneo. Martin Fierro sente-se, por isso, mais à vontade num transatlântico moderno do que num palácio renascentista, e sustenta que um bom HISPANO-SUIZA é uma obra de arte muitíssimo mais perfeita do que uma liteira da época de Luís XV.138

O extrato do manifesto é significativo já que com vários escritores filiados em

diversos campos deixa revelar uma verdadeira batalha de programas estéticos e visões

de mundo. Neste caso, chega a ser comovente a inflexão vibrante, perspicaz, veloz e

declaradamente marcada sob a inspiração do Manifesto Futurista de 1909 de Filippo

Tommaso Marinetti.139 Mas a despeito das semelhanças com o manifesto europeu, a

apresentação de Martin Fierro é composta de forma que ressoe uma transcendência

temporal, uma atmosfera limite e derradeira, que é o lugar presente, parecendo dar um

ultimato aos que insistem em reverberar sobre o passado. À insígnia de Tudo é novo sob

o sol, está condicionada a moderna qualidade de enxergar com pupilas atuais e com

sotaque contemporâneo140 aquilo que era vetado aos antepassados. Assim, os símbolos

recém adquiridos nos círculos das sociedades atuais, o ensurdecedor automóvel ou o

transatlântico, que passava a singrar os mares oceânicos com velocidade e conforto sem

precedentes ganhavam mais status artístico do que o antiquarismo representado nos

majestosos palácios da renascença italiana ou numa eventual preciosidade estética de

um objeto do período de Luis XV:

Martin Fierro vê uma possibilidade arquitetônica num baú innovation, uma lição de síntese num radiograma, uma organização mental numa rotativa, sem que isto o impeça de possuir – como as melhores famílias – um álbum de retrato, que folheia, de vez em quando, para se decobrir através de um antepassado...ou rir do seu colarinho e da sua gravata.141

Neste sentido, pode-se afirmar que Borges tanto quanto seus pares vanguardistas

passaram a incorporar racionalmente os valores que jaziam no que podemos caracterizar

de ambiência citadina. Esta postura foi conduzida através de uma progressiva crítica aos

138 GIRONDO, O., Manifesto Martin Fierro”[1924], p.116. 139 Impressão confirmada também por Hugo Verani pela semelhança de idéias contidas nos dois manifestos: ”Um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia” diz o manifesto. Manifesto do Futurismo extraído de: TELES, G. M., Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, p. 91. A respeito da coincidência de idéias Ver: VERANI, H., The Vanguardia and its implications, p.117. 140 GIRONDO, O., loc.cit. 141 Ibid., loc.cit.

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pregressos paradigmas literários fundamentais. Assim, tanto os automóveis, navios

modernos e objetos reveladores do avanço científico como a radiografia faziam parte de

uma mesma moldura recente que lhes franqueavam o riso dos antepassados.

São estas conjunções que despontam no horizonte dos artistas e que passam a

transformá-los em interessantes personagens de intervenção cultural. De fato, a arena

em que a moderna cidade de Buenos Aires se metamorfoseia, passa com isso, a receber

destes artistas os mais diversos tratamentos, diagnósticos e análises. Neste sentido é

curiosa a imagem intensa, ultra moderna ao mesmo tempo que miserável da cidade

descrita por Roberto Arlt.142 A esse respeito se posiciona igualmente a pincelada

geometrizada, repleta de imagens de edifícios modernos, automóveis e premonições de

um futuro possível nas colagens de hélices de helicópteros produzidas pelos quadros de

Xul Solar em contraste com a Buenos Aires de Borges e tantos outros.143 De fato,

depreende-se que a cidade como portal mais visível das operações capitalistas

desenvolvidas em seu pleno vigor feroz funcionou também como élan anunciador de

novas tendências e aberturas para modalidades inauditas de intervenções. Muitas das

vezes estas modalidades assumiam a forma como diz Beatriz Sarlo de uma verdadeira

batalha da modernidade:

O capitalismo transformou profundamente o espaço urbano e complexificou seu sistema cultural: isto começa a ser vivido não só como um problema senão como um tema estético, atravessado pelo conflito de poéticas que alimentam as batlhas da modernidade, algumas delas desenvolvidas segundo a forma vanguardista; o realismo humanitarista se contrapõe ao ultraísmo, mas também se enfrentam discursos de distinta funcão ( o perodístico e o ficcional, o político e o ensaístico). A densidade cultural e ideológica do período é produto destas redes e de intersecção de discursos com origem e matriz diferentes.144

A significação profunda da tendência cultural argentina do período levada a cabo

pelas novas tecnologias e pelo vigoroso cruzamento do crescimento da orfeta de bens

simbólicos emprestava a experiencia dos homens de letras vanguardistas um caráter não

apenas de abertura, mas sobretudo de franca elasticidade e expansão. O universo

buenairense num processo de desembargada dilatação simbólica e material de seu

espaço propiciou uma renovação literária cujo gesto tradutor parecia evocar o direito à

142 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 13-15. 143 Ibid., p. 50-62. 144 Id., Borges, un Escritor en las Orillas, p. 41-42.

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irrevrência, e mesmo à violência e ao extremismo, fornecendo assim, um interessante

painel dos acontecimentos recentes da cultura platina:

Mas há algo que distingue os movimentos de vanguarda dos movimentos anteriores: a violência das atitudes e dos programas, o radicalismo das obras (....) A violência e o extremismo enfrentam o artista com os limites de sua arte ou do seu talento.145

A revalorização e, de alguma forma, o usufruto consciente dos novos aparatos

modernos forneceu elementos para que a cidade, na visão destes interventores, surgisse

como um tesouro pleno de robustez e de sentido. Todos os estímulos fornecidos pela

urbe, seus acordes dissonates, polifônicos, o hibridismo que passou a colorir as novas

ruas milimetricamente calculadas, a heterogeneidade das ações artísticas cuja

exemplaridade instigante é a pluralidade das vozes, sugere uma imagem em que, pela

cidade dificilmente não se teria um impulso de atração mágica:

No terceiro andar de um casarão que abre as janelas para a Rua Flórida, nos somaremos à artéria mais vital da cidade para, ao tomar-lhe o pulso, sentir as mais leves alterações de seu ritmo.

Estamos onde deveríamos estar: em pleno centro, onde a cidade é mais atual e mais vindoura. O subúrbio abusa de nossa ternura; nos aplaca com demasiada freqüência; devemos desconfiar um pouco desse abandonar-nos excessivamente a seu caráter fácil, demarcado, que nos impõe uma limitação.146 Este verdadeiro estado de devaneio pela urbe moderna apresentava-se muitas das

vezes como num esforço inclemente de adesão aos mais novos valores e num senso de

fascinasção que as urdiduras da cidade modernizada requeria, como diz Walter

Benjamim no que tange ao viver a modernidade, uma formação heróica.147 Um

otimismo atlético e de verniz olímpico predominava nas performances destes homens de

letras. Ao lado disso, uma alegria ingênua, vizinha da emoção infantil e nervosa se

revelou característica na ambiência artística que a cidade propiciava. Como sugere o

manifesto assinado por Jorge Luis Borges, era preciso não apenas estar em Buenos

Aires, mas em sua artéria mais vital, sentindo seu apelo em direção ao infinito ou a uma

direção qualquer como para que se sentissem mais envolvidos no processo que

cambiava a situação espiritual pública: 145 PAZ, O., Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda, p.145. 146 BORGES, J. L., Martin Fierro 1926. A Direção [1924], p. 48. 147 BENJAMIN, W., A Modernidade e os Modernos, p. 12.

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Buenos Aires já é mais que uma cidadi, é um país e é preciso encontrar nela a poesia e a música e a pintura e a religião e a metafísica que se harmonizam com sua grandeza. Esse é o tamanho de minha esperança, que nos convida a todos a sermos deuses e a trabalharmos na sua encarnação.148

Borges convoca todos à sensibilidade. E o chamado a esta afetividade,

apreendida através do contato com a nova urbe, possui entre outras finalidades, o de

laureá-la liricamente, o que significará o desenvolvimento de seu canto sentimental pela

cidade, as vezes em forma de tema e, em outras vezes como comoção poética.

Certamente, surpreende o desembaraço e a largueza (ou o tamanho da esperança

borgeana) com que se descortina os atributos mais ignotos: de nossa parte, Borges

parece querer espiritualizar Buenos Aires (convite a sermos deuses e a trabalhar na

encarnação da cidadi). Num chamamento que tem a força divina como impulso

convidativo, Borges empenha-se, em uma postura total, a desvelar a cidade de Buenos

Aires como símbolo de imensidão e grandeza. Do fragmento do manifesto do autor,

deduz-se que para Jorge Luis Borges, em Argentina, é apenas em sua cidade natal

portenha que é possível encontar poesia, música, pintura, religião e metafísica. Na

verdade, estas categorias funcionavam em Buenos Aires como disse o crítico uruguaio

Angel Rama:

Não apenas a cidade mecânica dos futuristas, que mal arvorecia na América Latina, mas principalmente esse instante de mudança representado pela conjunção de setores sociais díspares, pela violenta aproximação entre as tradições e as novas estruturas urbanas, pelo debate que se havia introduzido nos segmentos médios da sociedade cujo poder era reinvindicado ou estava em vias de consolidar.149

No seio mesmo das rupturas com as figurações tradicionais, a postura

vanguardista de Borges sobrepuja as categorias consagradas. E, por este viés de

interpretação, a assinatura por Borges de seus manifestos oferece aos leitores e

partícipes o efeito, como diz Atonio Candido de que se sente a impressão de estar em

contato com realidades vitais, de estar aprendendo, participando, aceitando ou

148 A grafia da palavra Cidadi que em espanhol deveria ser Ciudad revela o aspecto anteriormente citado da questão nacional no ambiente cultural buenairense. Esta forma de grafar as palavras insere-se num contexto em que a construção de uma “verdadeira língua” está em debate. BORGES, J. L., O Tamanho de Minha Esperança [1926], p.575. 149 RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 112.

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negando, como se estivesse envolvido nos problemas que eles suscitaram.150 De fato,

este furor rumo a universalidade, a busca pelo mais alto grau de ressonância ensejará em

Borges o salto acima de toda modalidade conveniente que significou a abertura inaudita

para criação de um novo panorama artístico e literário:

Consideramos da nossa geração todos os jovens, não pelo fato de o serem, mas porque, via de regra, a juventude tem como patrimônio essencial a inquietação e o descontentamento. É a esse momento psicológico de equilíbro instável, no qual todas as potências do espírito trabalham em atitude de superação e de otimismo, que chamamos, por antonomásia, de patrimônio virtual da nova geração.

E mais adiante, no mesmo manifesto, Borges ainda completa seu esforço programático: Colocamos proa nas mãos de todos os espíritos jovens, e seja ela tão audaz como o símbolo, a prístina amálgama dos sonhos e os desejos despertados de súbito como uma música platônica, entre o fragor da maquinaria e o canto do ouro, único hino que até agora levantava ao espaço a tensão da urbe.151

Entendamos, pois, que o tema do novo em conjunção com a apoteose da cidade

modernizada adquire um conteúdo vital para os vanguardistas portenhos. Suas

possibilidades inauditas, exuberantes e plenas de frescor marcam a cidade de Buenos

Aires como lugar de confinamento social e topográfico onde estas práticas se

desenvolvem.152 É no entorno da cidade que a escritura de vanguarda de Borges se faz

sentir realmente como amplitude dos canais expressivos e contribuição para subversão

das formas. Nesta direção, Borges se situa como vértice entusiasta de um novo

movimento no campo literário e passa a por em questão os processos de expressão

tradicionais.153 Ou aquilo que de forma enfática afirmou Octávio Paz no que tange aos

movimentos de vanguarda e sua diferença com outros movimentos artísticos do

passado: a vanguarda hispano americana seria para paz uma transgressão aos cânones

de Madrid, assim como fugas do provincianismo americano.154

Dessa forma, é mister sublinhar o elemento sedutor da prosa fervorosa que jazia

no interior deste espetáculo. Sob os umbrais da urbe modernizada o período em análise

foi fortemente marcado pela ascensão das vanguardas, que adotavam uma postura

ousada e bastante irreverente. Como a cidade de Buenos Aires passara a albergar

150 CANDIDO, A., O Discurso e a Cidade, p. 9. 151 BORGES, J. L., Proa [1924], p. 34. 152 CANDIDO, A., op. cit., p. 58. 153 GUIMARÃES, F., Simbolismo, Modernismo e Vanguarda, p. 17. 154 PAZ, O., Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda, p. 181.

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inúmeros valores, deu-se que a partir de uma ruptura artística os jovens artistas visaram

promover as principais mudanças em termos de literatura e arte. A entronização de

determinados elementos (Sua Majestade, a metáfora), assim como a era dos romances

regionalistas, ficava evidenciado nos conteúdos dos debates, nos manifestos e

programas cujo fim era atravessado pelo entusiasmo das novas possibilidades e a

tentativa de deslocamento daquilo que representava o passado em termos de litaratura.

A atmosfera da produção literária e artística de forma geral dialogava intensamente com

a transformação que registravam na sociedade a que pertenciam.

A especulação prática de Borges, aliada aos entusiasmados Martinfierristas, auto

imbuídos em promulgar uma nova legislação estética e, subrepticiamente, a construção

de uma linguagem literária autônoma, oscilava num movimento pendular que ia desde a

negação do legado deixado pelos ícones da literatura modernista até o aproveitamento

das tradições que simbolizavam a pureza e autenticidade do verdadeiro espírito nacional

que visavam construir.155

Na verdade, o aglomerado destes elementos simbolizam um contexto socio-

cultural deveras frutuoso. Se nos atermos sobretudo aquilo que concerne aos processos

espirituais, a extrema racionalização técnológica, francamente desenvoltos no período,

revelarão uma profunda ligação a um sistema social em que a linguagem é um elemento

imprescindível para a reatualização constante do imaginário. As vanguardas, ao

pressuporem uma nova linguagem irredutível, mais precisa e refinada como Luiz Costa

Lima destaca156, deixam entrever seu aspecto de sonho de transformação da linguagem

estética. Desta forma, pode-se depreender que a postura do Borges vanguardista incide

ferinamente no status quo literário representado pelos ícones de uma linguagem estética

que não mais correspondiam as oscilações de uma atmosfera citadina, absolutamente

mais fecunda do que a que os antigos deuses do panteão das artes, agora postos em

xeque presenciaram e conheceram.157 Além disso, a perfídia contida nestes ataques

brutais eram frequentemente obscenos e não eram visitados por uma coerência

ideológica nítida a não ser no sentimento de total rejeição ao establishiment e as

tradições culturais.158

155 Refiro-me ao movimento criollista e gaúcho que neste momento estava presente nas discussões sobre o caráter nacional argentino mas que não é nosso propósito discutir. 156 LIMA, L. C., Sociedade e Discurso Ficcional, p.319. 157As enormes diferenças entre as sociedades do século XIX e século XX em franco movimento de modernização credencia-nos a pensar nas distintas possibilidades quanto ao uso de linguagens e construção cultural. 158 MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: A Literary Biography, p.187.

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II

Vejamos, pois, a simplicidade e até que ponto se estenderam as implicações das

posturas assumidas pelos jovens vangurdistas e como que se configuravam as modernas

tendências estéticas nas palavras de um correspondente de Martin Fierro, Gullermo de

Torre:

O novo é a metade da arte.159

O desprendimento extremo da expressão é aqui própria de um movimento que

terá encontrado o impulso de seu funcionamento para muito além do contato e

conhecimento das importantes questões suscitadas no interior da urbe moderna. O ano

de 1920 é, para a vanguarda argentina, o marco onde se reverdecem os sonhos de

construção de uma mitologia urbana voltada imediatamente para o futuro.160 Ademais,

uma predisposição espiritual às novas modalidades de exposição cunhou nestes jovens

de vanguarda a possibilidade de mútuo reconhecimento frente a empreitada a que

estavam se lançando: a transformação do panorama literário local. Assim pois, quando o

novo é a metade da arte, e apesar do caráter eclético de alguns grupos vanguardista, os

martinfierristas admitem tacitamente beberem do poder tonificante que jaz nesta

insígnia hodierna ao transformarem-na em síntese importante para a superação dos

limites estéticos impostos e fomentando a criação de outros paradigmas de literatura.

Mas no que tange ao espaço cultural da América latina, a agitação subsiste,

intensificada verbalmente pelo constante reescalonamento das figuras litarárias. Por

outro lado, sem possuir uma relação de sinonímia, em Buenos Aires se vivia horas de

especulação como a Paris sob o processo de modernização descrita por Walter

Benjamin.161 Pelo exposto, o panorama desenhado pelo perímetro citadino descortina o

159 SARLO, B., Sobre la Vanguardia, Borges e el Criollismo, p. 5. 160 Ibid., p. 3-8. 161 BENJAMIN, W., Paris, capital do século XIX, p.701-702.

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significado da estratégia das vanguardas argentinas em sua busca por visibilidade ao

lado da vida mais intensa na urbe moderna. Com efeito, o advento de amplos setores

artísticos mais organizados provocou, certamente, a alta dos valores espirituais da arte.

Que no caso de Buenos Aires, nas palavras de Solis aparecia desta forma:

O progresso material que exibe a city portenha e certas zonas do norte da cidade, o ritmo frenético da Rua Corrientes, a vida social e cultural em contato com as vanguardas européias, junto a cultura marginal derivada da nova pobreza, da mistura dos costumes e línguas dos imigrantes, assim como também o submundo da ilegalidade e o delito se entrecruzam e justampõe-se de maneira espetacular na Buenos Aires dos anos vinte.162

Estas evidências tornaram indiscutível a apreciação da cidade de Buenos Aires

como espaço privilegiado do cruzamento que a modernidade engendrou. É desta forma,

certamente, que o tecido urbano buenairense corporificou um cenário de mudanças

radicalmente inesperado para seus contemporâneos. A nova configuração do perímetro

citadino empresta a fisionomia da urbe moderna características que de outra forma

dificilmente poderiam ser tão sedutoras: com as novas atividades e funções, Buenos

Aires parece atiçar seus habitantes a se posicionarem frente a esta ambiência poderosa.

Dito de outra forma, a cidade se torna o recinto onde mais visivelmente pode-se pensar

a cultura urbana em função dos entrecruzamentos que necessariamente se sucederam no

marco da cidade. 163

À confusão da sua circulação, investimentos em sua infra-estrutura, acrescem-se

também as novas modalidades de exibição, velocidades de comunicação e meios de

transportes até então inimagináveis de serem atingidas, imigração intensa e os

freqüentes confrontos com os nativos e a metamorfose radical operada no tecido físico

da cidade que, por recursos a aparatos técnicos cada vez mais sofisticados, se

apresentavam muitas vezes de maneira bastante ostensiva. Na verdade, toda esta

opulência passou a se difundir e a se generalizar em escalas gigantescas, de forma quase

brutal. Tendo em vista sua transformação e a relação frágil que manteve com o passado,

Buenos Aires é, desta forma, elevada à categoria de lugar onde se faz possível o rechaço

ou a defesa do moderno:

162 SOLIS, C., Las Aguafuertes Porteñas de Roberto Arlt : la outra cara de modernidad en Buenos Aires de los años veinte y treinta, p. 8. 163 Ibid., loc.cit.

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Na argentina, a relação com o passado tem sua forma específica na recuperação imaginária de uma cultura que se pensa ameaçada pela imigração e a urbanização. No caso de Borges e outros vanguardistas portenhos se observa claramente o movimento para outorgar ao passado uma nova função. E o debate começa sobre o significado do passado: tem-se que fazer uma nova leitura da tradição. Borges avança: tem que retomá-la e pervertê-la.164

Buenos Aires cresceu, se densificou dando maior volume as suas atividades e

renovando o peso de suas atribuições em Argentina. Da mesma forma, as mudanças

experimentadas pela capital geraram simultaneamente vaidade, assombro, fascínio e

questionamentos nos habitantes e transeuntes. Ao lado disto, vemos franqueada uma

maior capacidade de intervenção no campo das letras e artes. Os debates acerca dos

mais diversos temas se desenvolviam ao redor de grupos diferentes na cidade de Buenos

Aires. Desde o nacionalismo até questões estéticas ou de políticas, era no centro político

em Buenos Aires que se dava o palco principal das discussões. 165 Jorge Luis Borges

chega a capital argentina em perfeito diálogo com as mudanças operadas no que se

referem a um alcance mais amplo da linguagem literária e, sobretudo no que tange ao

colóquio estabelecido com os processos globais de caráter estético, artístico e de

vanguarda.

Naturalmente, o recinto prático desta atuação foi o centro da capital cujas

transformações e reificação dos domínios tecnológico disponibilizou repertórios novos

de experimentações e maior visibilidade dos exercícios artísticos, muitos dos quais

irreverentes e bastante provocativos, sobretudo se tivermos em conta o horizonte

cultural anterior. Neste domínio, a cidade pareceu acolher uma ativa e vigilante espera

do diferente e inaudito como futuro palpável e desejável. Deste modo, o entendimento

do cruzamento se faz disposição para viver o novo, abertura a sua constante irrupção. E

que, quando damos a palavra à direção de Martín Fierro, estas disposições surgem desta

forma:

Mas nossa paisagem habitual há de ser menos restrita, mais heterogênea, aquela onde se cumpra o milagre da coesão harmoniosa de tantos elementos díspares e contraditórios. Aqui, na Rua Flórida, onde a cidade é como uma síntese de si mesma e do país, pertinho do Porto para não esquecer nunca que

164 SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas, p. 48. 165 Id., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.16.

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por ali, em grande parte, veio de longe nosso espírito e nosso sangue e para onde fatalmente iremos para ser julgados, por aspiração ou gravitação.166

Orbitando em volta da cidade os artistas empreenderam uma verdadeira

clivagem dos preceitos intelectuais que, embora ainda se mantivessem válidos no

circuito literário local, precisavam de alguma forma ser alterados. Diante desta

perspectiva cambiante, aqueles personagens, pressupostos ou mesmo sistemas de idéias

que pareciam não mais darem conta desta nova realidade espetacular, já que seus limites

eram absolutamente visíveis nos radares da intelectualidade buenairense segundo esses

artistas e escritores, foram rebaixados à condição de párias ou de verdadeiros animais

conforme a ácida demonstração do mesmo texto de Martin Fierro:

Ao mesmo tempo que teremos a satisfação de abrir de par em par as portas a todos que nos derem sua amizade ou sua crítica, por mais impiedosa que seja, contanto que bem cristalina e sincera, também poderemos batê-la no nariz das intenções rasteiras e da futrica peçonhenta. Que lindo poder abrir a janela e cuspir em silêncio nosso desprezo aos animais que não podem elevar-se até onde estamos!167

A conjunção estratégica entre furor iconoclasta e demonstração fraterna de

amistosidade desliza paulatinamente para a tentativa de renovação estética e promoção

dos novos valores intelectuais, assim como a criação de um ambiente cosmopolita,

determinado pelo cruzamento do exemplar mais fidedigno do argentino com as

contribuições legadas pela civilização ocidental:

A formação de um ambiente fecundo para a criação artística; revelar e divulgar novos valores intelectuais; promover a renovação estética em todas as artes, com a profunda determinação de colaborar eficientemente para o progresso da cultura nacional; com o sentido argentino de hoje, ou seja, com a forte raiz gaúcha e o sotaque genuíno da civilização ocidental da qual fazemos parte, e dentro da mais pura tradição e das projeções que os organizadores da nação quiseram dar ao nosso povo. Somos seu autentico fruto. Nosso nome, Martin Fierro, é a divisa do espírito que impera nestas páginas; Martin Fierro, pois, e de 1926.168

166 BORGES, J. L., Martín Fierro 1926. A direção [1924], p. 48. 167 Ibid., p. 49. 168 Ibid., loc.cit.

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A tonalidade verdadeiramente retumbante do texto de Martín Fierro assemelha-

se com o que Carl Shorske declarou em seu livro Viena Fin de Siècle a respeito de

algumas manifestações arquitetônicas que passaram a fazer parte do cenário de

remodelação do centro da cidade de Viena: o estilo de Adão, isto é, nu e forte.169 Para

estes círculos de jovens escritores, escrever é primeiramente questionar, repor em

questão os fundamentos.170E esta forma de questionamento serviu como senha para a

formação de outros círculos em torno da mesma temática: desorganizar para fornecer

uma nova dinâmica no interior daquilo que parecia um precário cinturão literário.

Ora, parece evidente que tais tentativas de reestruturação do sistema literário a

que Borges e os martinfierristas assinam estavam em perfeita consonância com um

cenário bastante conturbado em termos sociais, culturais e políticos. Notemos, pois que,

ao assumirem como tarefa primeira a recriação de um ambiente artístico e literário, os

vanguardistas buenairenses passaram a ter como premissa acreditar piamente nas

possibilidades de concretização de tais sonhos. É que, na verdade, ao insistirmos no fato

de tratar-se de uma atmosfera extraordinariamente vertiginosa, de câmbios vertiginosos

e que, como corolário óbvio, tem-se a queda dos antigos paradigmas e releitura dos

antigos cânones, as alternativas apresentadas, cujo um dos intentos era o preenchimento

das lacunas, estava em concerto com o que havia de mais inaudito no que se refere as

inquietações em diversos campos da vida social e não apenas em seu sítio cultural. Na

verdade, as diversas latitudes em que essas inquietações se manifestavam ganhavam

pleno vigor na cidade de Buenos Aires. Assim, não seria menos verdade que essa

efervescência serviu como pretexto de releitura em outros domínios da vida citadina:

Sem almejar visões globalizantes ou organizações definitivas das histórias da literatura, as revistas culturais argentinas do século XX não deixaram de revisar, diversas vezes, uma memória literária nacional à luz de critérios teóricos, críticos e ideológicos que variavam segundo o momento histórico. Essas revisões articularam diferentes espaços literários, por operações de inclusão e exclusão, deslocavam obras e autores dentro de um sistema nacional, decretando seu vínculo com esses sistemas ou sua ilegitimidade. 171

E mais adiante:

169 SCHORSKE, C., Viena Fin de Siècle, p. 63. 170 SOJCHER, J., La Démarche Poétique.Lieux et sens de la poésie contemporaine, p. 15. 171 OLMOS, A. C., Releituras de Borges. A revista “Punto de Vista” nos anos 80, p. 205.

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É evidente que nesses movimentos de leitura repercutem formulações ideológicas, teóricas e críticas que vinculam essas reorganizações do sistema literário nacional a uma práxis do presente que as revistas realizam como parte de suas estratégias de intervenção no campo da cultura. 172

Assim posto, é portanto nesta direção que se encontra a imperiosa necessidade

de remoção da água estagnada das opiniões pretéritas e de se fazer conhecidos,

difundidos e propagados os novos valores, representantes simbólicos de uma Argentina

venturosa e triunfante em seu rumo, por mais audazes que estes se apresentem em sua

forma aparente. Deste modo, ao regressar e perceber uma cidade em ebulição, a resposta

produzida por Jorge Luis Borges em seu período vanguardista, materializada na

convicção do novo e da confecção de uma outra fisionomia para a literatura, estava em

concerto com as transformações que a sociedade buenairense deixava transparecer, bem

como a de suas mais inéditas possibilidades, e esse é o sítio preciso onde devem se

inscrever tais tentativas de renovação das letras hispânicas:

No ano exato em que começamos a organizar esta empresa desinteressada, cujo objetivo primordial foi tentar a criação de um ambiente artístico, cumprir uma ação depuradora, coordenar o espírito desorientado da juventude intelectual, remover a água estagnada da crise de opinião, dar a conhecer os novos valores e mostrar as tendências literárias e artísticas que despontam ou se definem em nosso meio (por mais audazes que sejam), para cumprir nosso plano de difusão de idéias e intenções modernas fazendo da revista um reflexo da alma argentina de hoje, hão de nos permitir a indiscrição de decidir, finalmente, quem é Martin Fierro.173

De fato, este sucesso das práticas de vanguarda em Buenos Aires evidenciado

num dos casos mais proeminentes do período que é a revista Martín Fierro, por certo

tem haver com a característica de lata heterogeneidade do espaço público que, por sua

vez, ia se tornando mais vibrante e extensivo. Estas modalidades de intervenção

transformavam o centro da capital numa ágora, espécie de arena moderna em que se

debatiam as principais urgências e se multiplicavam os fermentos de uma disputa que ia

adquirindo densidade crescente à medida que a década de 1920 se arrastava. Fortemente

estimulada e propagada por esta revista, prosperava na cidade uma ambiência de mescla 172OLMOS, A. C., Releituras de Borges. A revista “Punto de Vista” nos anos 80, p. 206. 173 BORGES, J. L., Quem é Martín Fierro? [1924], p. 38.

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e conflitos simbólicos onde diferentes grupos culturais realizavam suas batalhas em prol

de objetivos quase sempre controversos. Em uma ordem de sentido desafiante, Jorge

Luis Borges não reluta em engajar-se plenamente. Em manifestos de poder irresistível,

revelando-se zelosamente inabalável em sua lealdade vanguardista, o escritor aponta o

caminho em sua busca angustiada de uma totalidade, de um absoluto que substitua o

fracionamento e a falta de sentido das realidades estabelecidas. 174

Para dar curso a esta empreitada, tornou-se imprescindível a articulação entre o

espaço de experiência pretérito percebidos como um mundo longínquo e o significado

da montagem de uma nova estrutura de pensamento que favorecesse uma recepção

menos tímida por parte do público. Na verdade, dentro da lógica de reaproveitamento,

as experiências pretéritas não se configuravam como um todo desprezível. É desta

forma que o regresso de Borges a Buenos Aires surge para nós como universo de

alternativas francamente escancaradas, conflituosas e o entusiasmo do autor portenho

frente a algumas delas é a resultante mais visível do poder de sedução que jaz na

modernidade da urbe babélica: estimulados pela capitalidade de Buenos Aires, o

reescalonamento que os vanguardistas se empenhavam em instituir abriam frentes a

uma nova compreensão fazendo dos elementos que surgiam na cidade um dos seus

principais fomentadores:

O manifesto Martín Fierro tem todas as características próprias do gênero, até pelo uso de certos vocábulos provenientes dos recentes avanços técnicos: Hispano-Suíça, rotativa e radiograma, que não aparecem nem mesmo nas obras de seu próprio autor.

Propõe uma nova compreensão para a nova sensibilidade, cortar com todo cordão umbilical e arrancar as teias de aranhas tecidas pelo hábito e pelo costume, mas não descarta a posse de um álbum de retratos que folheia de vez em quando para se descobrir através de um antepassado. 175

A reciprocidade destes movimentos – o entusiasmo pela novidade e a reviravolta

nos hábitos e costumes – passam nutrir a carência e a arrogância que as noções de

progresso e modernidade não fazia mais que exacerbar. Estes escritores, se sentido

como filhos diletos dessa prerrogativa, encarnavam em suas performances o

desconfortável equilíbrio que permanecia numa modernidade como a buenairense:

passado, presente e futuro estavam tão intimamente imbricados que o próprio Borges

174 COVIZZI, L. M., O insólito em Guimarães Rosa e Borges, p. 57. 175 ALCALÀ, M. L., Os textos programáticos, p.23-24.

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encarou a modernidade de sua cidade natal em mais de uma frente: a postura

vanguardista e sugestivamente “avançada” frente aos postulados literários de seu

ambiente local e a forma poetizada em seu canto à cidade.

Eis-nos, portanto, perante uma sugestiva definição de modernidade. Para nós,

sua riqueza reside justamente na implicação que jaz no surgimento de um campo novo

em que as expectativas morais, éticas, estéticas e sócio-culturais vão pouco a pouco se

afastando das experiências acumuladas. Segundo Beatriz Sarlo176, com a modernização

de Buenos Aires não era incomum que uma necessidade de resposta passasse a ser

encarada como tarefa essencial. E esse traço, naturalmente, se acentua quando os

processos de metamorfoses sociais adotam a forma do desvario e do insólito. E é

precisamente nesses imbricados cenários que se verifica o dsejo de abertura, implicando

a integração de um tipo de imaginação crítica da leitura dos velhos textos177. É aí que

estão tantos os modernistas na importante figura de Ruben Darío, bem como um pouco

mais tarde a não menos importante figura de Jorge Luís Borges. Esses processos de

inversão e mudanças no cenário intelectual só foram possíveis frente a incrementada

capacidade de circulação que em Buenos Aires estava relacionada a determinadas

combinações:

No interior de uma sociedade que conhece a escritura, todo texto poético, na medida em que visa ser transmitido a um público, é forçosamente submetido à condição seguinte: cada uma das cinco operações que constituem sua história (a produção, a comunicação, a recepção, a conservação e a repetição) realiza-se seja por via sensorial, oral-auditiva, seja por inscrição oferecida à percepção visual... O número das combinações possíveis se eleva, e a problemática então se diversifica. Quando a comunicação e a recepção (assim como, de maneira excepcional, a produção) coincidem no tempo, temos uma situação de performance.178

O propósito inicial de uma deliberada subversão constituiu o móvel comum da

atitude performática das primeiras vanguardas. São textos programáticos de

dissentimento frente aos antecessores imediatos que, por não viverem a ambiência de

uma cidade modernizada, dependeram de condições de recepção e de meio de

176 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 28. 177 ZUMTHOR, P., A Letra e a Voz: A “Literatura” medieval, p.18. 178 Ibid., p.19.

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comunicação mais precários.179 Deste modo, a escritura vanguardista portenha possui

características de um projeto polêmico e agressivo a serviço da ruptura da noção de

literatura até então vigentes. A rebelião é categorizada na virulência verbal e na

pulverização das convenções herdadas. Nesta direção o escritor portenho dá

prosseguimento:

Qualquer acontecimento, qualquer percepção, qualquer idéia nos exprime com igual virtude; vale dizer, pode-se incorporar a nós... Superando essa inútil obstinação em fixar verbalmente um eu vagabundo, que se transforma a cada instante, o ultraísmo tende à meta primeira de toda poesia, isto é, à transmutação da realidade palpável do mundo em realidade interior e emocional180.

Desta forma segura, a vanguarda argentina ao realizar de maneira prática o

projeto de utopia vanguardista que, como conseqüência de suas atribuições exigiu a

criação de uma nova linguagem, pôde considerar-se, como dizem boa parte dos

estudiosos do assunto, como um modelo exemplar de vanguarda em termos de riqueza e

criação estrepitosa.181 Um experimento consumado onde universalismo e nacionalismo,

produção textual, comunicação e recepção realizava-se por diferentes vias. Portanto, o

que Paul Ricoeur chama de dialética do par evento e significação resultara em

Argentina serem postulados de um círculo onde havia um estado de ressonância dado e

um perpétuo por fazer. Tais fatores correlacionados adquirem mais força se nos atermos

aos diversos conteúdos que Borges deu ensejo para fazer valer seu projeto de mudança

nas letras argentinas:

Não acredito tampouco na tradição. Essa palavra, usada com reverência em muitos discursos, é atacada em outros. Eu, entretanto, acho que é tão indigna de submissões como de ultrajes. É uma série de prudências para escrever, um monte de observações não comprovadas cuja validade, no melhor dos casos, nunca passaria de empírica. Por exemplo:

179RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos, p.60. 180BORGES, Jorge Luis. Ultraísmo [1921], p.112. 181 Há um tom de franco crédito em Jorge Schwartz no que tange as vanguardas argentinas e especialmente ao grupo de Martín Fierro. A aprovação se dá em tons de divisor de águas que a vanguarda argentina representou e na definição de um antes e depois nas manifestações culturais e artísticas da América do Sul. Ver: SCHWARTZ, J. (Org.), Vanguardas Latino-Americanas, Polêmicas, manifestos e textos críticos, p. 105-106. Para os aspectos distintivos das vanguardas em América Latina: PAZ, O., Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda, p. 148-181.

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É emocionante ouvir falar dos deuses gregos.

Não é tão emocionante ouvir de revólveres como de espadas.

Convém, de tempos a tempos, falar da lua. 182

A ironia contida na menção da fórmula certeira que é discorrer sobre os deuses

gregos e na conveniência de tempos em tempos falar da lua reside o sentimento de

insatisfação e a aposta em um outro tipo de linguagem. Por certo, Borges arrisca numa

nova atitude e nos novos meios de expressão sem desdenhar da idéia de que o risco de

experimentar algo novo se converta em encontro ideal entre a audiência e a sabotagem

de tudo aquilo que representa o velho e arcaico.

No caso de Borges essas estratégias se vinculam a uma maneira especial de

perceber a urbe buenairense em seu retorno e, somado a isso, a partir da produção de um

diagnóstico sobre sua própria posição no campo das letras em comparação com a

posição dos demais. Borges dá ensejo a um ritual infindável de entronização e

desentronização produzindo uma meditação extremamente complexa sobre a cultura

literária latino americana do presente. Como estratégia de alteração do panorama

ideológico, teórico e cultural, a postura transgressiva do escritor redesenha os contornos

deste cenário literário, enriquecida certamente, pela divagação, não tão precisa talvez,

daquilo que a experiência de leitura pode facultar aos que a ela podem ter irrestrito

acesso. Assim, o escritor vanguardista desfere suas setas contra o virtuosismo

lingüístico de matiz rubeniana183 que pouco tem a dizer aos tão poucos que os ouvem

neste período de intensa saturação teórica:

O que fazer então? O prestígio literário está em baixa; os intelectuais temem se deixar levar por palavras bonitas e inibem sua emotividade perante o menor alarde oratório (...) o seu companheirismo veemente nos parecem longínquo e legendário; os mais acérrimos partidários do susto clamam em vão por derrocadas e apoteoses. Em que rumo aproar a lírica?

O ultraísmo é uma das tantas respostas à interrogação anterior.184

182 BORGES, J. L., Página Sobre a lírica de hoje [1927], p. 79. 183 Segundo Bella Jozef o rubenianismo de Darío faz com que as coisas representadas fora da órbita instaurada pela poesia tornam-se vazias de significado. As palavras (modelo das coisas ) fundariam um universo distinto do real. Ver: JOZEF, B., A Máscara e o Enigma: A modernidade da Representação à Transgressão, p. 94. Para a temática do afastamento das vanguardas dos princípios de Rúben Darío, Ver: JOZEF, B., História da Literatura Hispano-americana, p. 183. 184 BORGES, J. L., Ultraísmo [1921], p.109.

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Borges retém a fórmula de intransigência marcada por um padrão

anticonvencional de crítica inscrevendo-se na postura daqueles vanguardistas que,

segundo Bella Jozef, pretendem realizar de forma simultânea o futuro no presente, como

se almejassem antecipar o curso da história.185 Tendo como pano de fundo um

complexo cenário, isso não ocorre somente em Borges. Em um sentido amplificado, os

vanguardistas de Buenos Aires como que integrados ao seu tempo se concebiam como a

personificação de um futuro imediato, instantâneo e, ao mesmo tempo, como portadores

privilegiados da mensagem artística que derivava da compreensão e ultrapasse, ainda

que abstratamente, das condições sócio-culturais típicas dos tempos conturbados. Neste

sentido, o ultraísmo postulado por Borges como resposta às lacunas deixadas pela

produção literária anterior, extremiza a singularidade criadora pondo em relevo uma das

suas características inerentes que, ainda segundo Bella Jozef, se traduziria numa versão

estética cuja prática se radicaria na corrente da poesia pura. 186

As vanguardas em nosso continente descobrem um novo espaço e um novo tempo para a literatura apresentando uma vontade comum de definição e expressão. E essas conquistas articulam-se na linguagem, a partir da poesia dos anos vinte, que enfatiza o visual, escreve os significantes no texto, e propões as bases de uma sintaxe labiríntica, fazendo com que a configuração do poema, do texto, seja a própria mensagem. Escrever um poema é construir uma realidade auto-suficiente.187

Assim, estas iniciativas nasceram em conjunto, ou melhor, foram regidas em

consonância à pressuposição da caducidade de uma literatura vista como passadista e

que não lograva mais obter êxito. Ademais, a posição vanguardista atribuíra ao passado

literário a incapacidade de forjar respostas que a presença de uma ambiência cultural

moderna exigia. De fato, a tendência foi de uma escrita de auto-corrosão livremente

manifestada nos atos em que tinham vez uma reflexão acerca não apenas do ofício do

escritor, mas também sobre a própria literatura. Esta postura em que está inscrita a

modernidade, segundo Bella Jozef:

185 JOZEF, B., A Máscara e o Enigma: A modernidade da Representação à Transgressão, p. 94. 186 Ibid., p. 162. 187 Ibid., p. 160.

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O modernismo hispano-americano inaugura na América a modernidade. A vanguarda desenvolve alguns de seus aspectos e inicia seu processo de diluição como crítica de toda a experiência poética anterior e do próprio poema. A modernidade institui nova escritura e nova visão do mundo. Amplia o repertório global do homem. 188

Nesta direção, absolutamente afinados como estavam com a orquestração

moderna da sociedade, arte e cultura, a falência de objetivos e funções atribuídas a

literatura passada e as suas modalidades de expressão, revela precisamente que não se

trata mais da mesma forma de discurso que até então cumprira as exigências de um tipo

específico de circuito cultural: escritores que, como numa comarca hermética,

produziam suas obras para o desfrute de um público produtor igualmente hermético

cujo traço comum eram se lêem, se pintarem e se esculpirem mutuamente. A crítica de

Borges se situa para além destes circuitos. 189

Neste sentido, vale ressaltar como se inscreve o novo dentro de um universo de

ressemantização, releitura dos antigos paradigmas das letras, sobretudo, quando as

intervenções estão inseridas na coincidência de vários fatores e circunstâncias que

asseguram multiplicidade e possibilidade de seu surgimento. De igual maneira, poder-

se-ia afirmar com Paul Zumthor ao se referir aos sistemas de circulação da “literatura”

medieval, que deveríamos auscultar os signos levando em conta a complexidade e

heterogeneidade das condutas e modalidades discursivas comuns tal qual se referem a

um sistema de representações e a possibilidade de interpretá-los.190 Da mesma forma,

pode-se dizer que a complexidade encontráveis na Buenos Aires dos tempos de Borges

estendeu um véu novo de significantes cuja tentativa de auscultação deve sempre levar

em consideração o entrecruzamento das modalidades interpretativas.

Deste modo, as transformações operadas na sociedade buenairense marcaram

profundamente seus artistas e intelectuais passando a exigir dos mesmos um novo

repertório de sensibilidades e outras modalidades de intervenção. Neste caso, a atitude

performática de Borges ao se referir a tradição literária argentina parece não comungar

188 JOZEF, B., História da Literatura Hispano-americana, p.180-181. 189 Reporto-me pela diferença marcada por Angel Rama quanto a “cidade letrada” em que havia a necessidade de formação de quadros e a “cidade modernizada” e a “cidade revolucionada”. As duas últimas são marcadas por diferentes níveis de formação intelectual e aparatos de progresso. Ver: RAMA, A., A cidade das letras, p. 43-44, 76-101, 126-156. 190 ZUMTHOR, P., A letra e a Voz: A “Literatura” medieval, p.22.

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do credo daqueles que pensam a poesia em termos de fórmulas seguras com o fito de

atingir um público cuja expectativa deve ser respeitada.

A idéia de performance é exacerbada quando Borges e os ultraístas oferecem à

Buenos Aires a sagração dos seus manifestos murais.191 Esses manifestos filiam-se

claramente a uma tendência eclética que, além de condensarem uma pluralidade de

direções, aspiravam ser o “vértice de fusão” das escolas estéticas de vanguardas.192

Todos estes cruzamentos resultam tanto mais significativos quando se observa o intento

histórico de realizar literariamente a idéia de utopia vanguardista em forma de

manifestos murais. Assim, liderados por Borges, um pequeno grupo afixa nos muros de

Buenos Aires dois manifestos iniciais que são as versões de 1921 e 1922 da folha mural

Prisma. Com esta nova modalidade de suporte os golpes deferidos por esses

vanguardistas nos pretéritos pressupostos literários atinge sua potencialidade

universalista. Ao contrário do que vinha ocorrendo até então, agora todos poderão ter

acesso às disputas intestinas do campo literário buenairense: dilata-se a lógica que

reside na dialética do autor-receptor193:

Os poetas só se ocupam de mudar de lugar as bugigangas ornamentais que os rubenianos herdaram de Góngora... Quanta hipocrisia i quanta mentira nesse manuseio de ineficazes i imprecisas palavras, quanto medo arrogante de penetrar verdadeiramente nas coisas, quanta impotência nessa vanglória de símbolos alheios! Enquanto isso, os demais líricos, aqueles que não ostentam a tatuagem azul rubeniana, exercem um episodismo loquaz i fomentam penas rimáveis que, esmaltadas de visualidades oportunas, venderão depois, com um gesto de amestrada simplicidade i de espontaneidade prevista. 194

A radicalidade da lógica imposta à produção/meio textual, bem como a negação

da doutrina literária dos antigos coloca a questão proposta por Ricoeur. Pois, para além

do desconcerto que instaura, os manifestos, sobretudo na sua versão mais ostensiva, na

plenitude do seu caráter de evento público, como é a versão dos murais Prisma, traz a

tona uma performance cujo grau de alcance pretendido e realizado só se tornaram

possíveis frente ao esgarçamento de todas as coordenadas que guiavam os escritores do

191 Em termos gerais Paul Zumthor considera performance quando há coincidência do ato comunicativo e do receptivo no tempo.Ver: ZUMTHOR, P., A letra e a Voz: A “Literatura” medieval, p.19. 192 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 95-107. 193 RICOEUR, P., Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p. 41. 194 BORGES, J. L., Mural Prisma nº1 [1922], p.112.

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período: o Jorge Luis Borges dos Manifestos Murais Prisma eleva a potencialidade

máxima o advento da possibilidade do discurso enquanto evento.

Nesta perspectiva, os manifestos Borgeanos estão submetidos ao poderio do

arbítrio criativo que faz proliferar as conexões mais surpreendentes nesta época de

intenso intercâmbio. Borges amplia seus leitores, mas não mais na relação íntima,

resignada e intelectual que ele mesmo já nos ofertou como opinião195. Trata-se, na

verdade, da condução até o extremo daquilo que Paul Ricoeur denomina de auditório

universal. A prerrogativa vanguardista borgeana faz uso particular da noção de

manifesto que ultrapassa o conceito comummente utilizado de declaração pública ou

solene das razões que justificam certos atos ou que se fundamentam certos programas

de cunho estético, político ou religioso. Como portadores de tal novidade, os manifestos

em que Borges intervém na Buenos Aires modernizada só serão possíveis graças à

paulatina transformação, na verdade, da passagem de uma realização cultural inscrita no

processo de escrita ao estágio de discurso enquanto evento e, como corolário à

significação:

Embandeiramos as ruas de poemas, iluminamos com lâmpadas verbais os seus caminhos, cingimos os seus muros com trepadeiras de versos: que eles, alçados como gritos, vivam a momentânea eternidade de todas as coisas, i que a sua beleza dadivosa i transitória seja comparável à de um jardim vislumbrando a música esparramada por uma janela aberta i que enche toda a paisagem196.

Borges, através do que chamamos de exteriorização intencional,197 se engaja

numa empreitada em que, primeiro predomina uma crítica a superficialidade, entendida

aqui como predomínio das sensações sem “profundidade”, sem constância num sistema

discursivo estruturado; e, também no sentido de predomínio de um regime de verdade

baseado na superfície, Borges rechaça a vitória alcançada pela beleza opaca obtida

através do manuseio conveniente das convenções legadas. E em segundo, mas não

menos importante, a tentativa de fixar o discurso por intermédio, talvez, de uma aguda

consciência da realização cultural que estava em curso. A consciência de ser parte de 195 As palavras de Borges são: “Ás vezes acredito que os bons leitores são cisnes ainda mais negros e singulares que os bons autores... Ler além do mais, é uma atividade posterior a de escrever; é mais resignada, mais atenciosa, mais intelectual”. In: BORGES, J. L., História Universal da Infâmia, p.11. 196 BORGES, J. L., Mural Prisma nº1 [1922], p.113. 197 É a constituição do par “evento-significação” própria dos diferentes estratos da fala e que torna a inscrição do discurso possível graças a significação do evento lingüístico. Ver: RICOEUR, P., Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p. 38-39.

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um momento singular proporciona ao escritor uma maior espetacularização de seu

evento, inscritos nas ruas embandeiradas de poemas e nos muros com trepadeiras de

versos. E é precisamente neste caráter de evento de discurso que se cruzam as

modalidades discursivas a que se refere Paul Ricoeur: A escrita pode salvar a instância

do discurso porque o que ela efetivamente fixa não é o evento da fala, mas o “dito” da

fala, isto é, a exteriorização intencional constitutiva do par “evento-significação” 198.

Não é de maneira alguma gratuita que um dos procedimentos capitais da

intervenção de Jorge Luis Borges é o papel da destinação do discurso. Esse

procedimento ganha força se caracterizando por aquilo que podemos denominar de

teatralização da palavra199. Estabelecendo mecanismos de ruptura, inversão e trocas

com a visualidade das revistas murais, Borges exterioriza sua intenção transformando

em evento como diz Ricoeur não a fala propriamente dita, mas o dito a que a ela

pertence. Assim, esse dito da fala metamorfoseado em evento-sifnificação ganha

plenitude pela concretização verbal do elemento visual materializado nas revistas e,

sobretudo nos manifestos. Deste modo, no vigor de seu entusiasmo, Borges materializa

seu sonho utópico e vanguardista de eliminar entre os intelectuais, artistas, escritores e

transeuntes de Buenos Aires a distância entre o visível, o dito e o racionalizável.

Isto posto, soa-nos evidente que é principalmente nas revistas e manifestos que

esses artefatos dos quais Borges lança mão sejam os que provocam, nos leitores, um

efeito de sublimação da narrativa. De forma efetiva, conforme diz Ricouer ”o texto

subtrai-se ao horizonte finito vivido pelo seu autor. O que o texto significa interessa

agora mais do que o autor quis dizer, quando o escreveu” 200. Nesse caráter de evento

do discurso, o mecanismo desconstrutor das narrativas e clichês poéticos dos

antepassados passam a significar para Borges apenas mais uma oportunidade para dar

autonomia a escrita diante desse auditório agora bem mais amplificado:

Pela segunda vez, perante a copiosa indiferença dos muitos, a voluntária incompreensão dos poucos i a satisfação espiritual dos únicos, alegramos com versos as vossas paredes.

198 RICOEUR, P., Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p 39. 199 Baseio-me em Wolfgang Iser quando aborda a questão do “discurso encenado” na literatura. In: ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, 2002. 200 RICOEUR, P., op.cit., p. 41.

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Voltamos a crucificar nossos poemas sobre o acaso dos olhares.

Esta maneira de manifestarmos o nosso trabalho causou surpresa; mas a verdade é que isto – quixotada, burla contra os comerciantes da arte, atalho para a fama, o que quiserdes – é aqui o de menos. O importante são os nossos versos.201

A convergência de todas as características presentes na intervenção borgeana

citada peculiariza seu alcance verbal e torna significativa sua performance. Liberto das

malhas de uma situação dialógica, rompidos os diques que o prendia a uma relação face

a face, Borges exponencia as modalidades de leitura do manifesto pelo suporte material

que espiritualizou e tornou compreensível a todos os transeuntes através do

aproveitamento do léxico compartilhado por todos os membros da sociedade. A

indiferença de muitos lembrada por Borges em tom queixoso nos faz recordar da

pergunta e resposta dadas por Roland Barthes em O Prazer do Texto: “Escrever no

prazer me assegura – a mim escritor – o prazer de meu leitor?” E Barthes nos fornece

um caminho para a resposta: “De modo algum. Esse leitor, é mister que eu o procure

(que eu o “drague”), sem saber onde ele está (...) Não é a pessoa do outro que me é

necessária, é o espaço “202. Assim, Borges em estado de entusiasmo pleno dá

prosseguimento ao que parece um inquebrantável vínculo vanguardista:

Fartos daqueles que, não contentes com vender, chegaram a lugar a sua emoção i arte, prestamistas da beleza, dos que espremem a mísera idéia caçada por casualidade, talvez roubada, nós, milionários de vida e de idéias, saímos para presenteá-las nas esquinas, para esbanjar as abundâncias da nossa juventude, desatendendo as vozes dos avaros de sua miséria.

Olhai o que vos damos sem reparardes em como203.

Diante de tal exposição, a criação artístico-literária de Jorge Luis Borges se

destina menos as pessoas (ao leitor pessoalizado), ao indivíduo ou até mesmo a

sociedade do que a uma direção. E nessa trajetória, a intervenção vanguardista borgeana

parece incessantemente querer dar provas de que deseja o leitor, esse leitor imaginário,

imprescindível vértice da luta entre direito de autor e direito de leitor e que fornece

201 BORGES, J. L., Mural Prisma nº2 [1922], p.114. 202 BARTHES, R., O Prazer do Texto, p. 9. 203 BORGES, J. L., op.cit., p. 115.

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todos os ingredientes necessários da dinâmica da interpretação e que tem na produção de

Borges um poderoso testemunho de seus efeitos.

Por ora, trata-se de um período fecundo de estudo e de dúvidas sobre a cultura

argentina em franca transformação. As revistas de vanguardas deste período funcionam

como plataforma das novas reorientações no campo literário. As críticas, os novos

critérios de teoria e rearranjo de obras do passado pela análise do presente se

desenrolavam em torno dessas manifestações, onde as revistas tinham um lugar de

destaque. A relevância das mesmas se dá na medida em que se imagina um corpo de

jovens escritores que, além de terem de conquistar seu lugar no campo das letras,

corroboravam para alçar na cidade, os debates mais importantes e que ultrapassavam as

questões de cunho estético. Criou-se, verdadeiramente, uma atmosfera em que tinha

lugar os debates mais ferrenhos sobre os mais diversos temas: urbanismo, paisagismo,

nacionalismo, artes pictóricas, literatura e política figuravam na urbe buenairense entre

as temáticas que figuravam em primeiro plano. Deste modo, é na cidade de Buenos

Aires onde se torna possível encontrar diversas tendências artísticas e intelectuais e,

com isto, essas multiplicidade de tendências deixam a impressão de ter sido rompido os

diques que impediam um reprocessamento do sistema literário que vigia até então:

Estas obras foram lançadas como foguetes, rápidas como centelhas, ao longo dos anos 1920(...) Por que a sensação de abertura que todos viveram e a alegria que lhes inspirou esta convicção de iniciadores aumentaram sua capacidade inventiva, a instigação do imaginário, a descoberta da verdadeira realidade. Na eclosão de revistas literárias que cobrem os anos de 1920(...) encontraremos essa busca diligente que em alguns casos se afasta de qualquer demanda intelectual que o meio pudesse propor.204

É neste sentido que podemos afirmar que a singularidade do momento reside na

transformação advinda pelo processo modernizador e na concretização de possibilidades

de intervenção absolutamente inéditas que visavam abarcar um expressivo número de

pessoas.

Jorge Luis Borges, por seu turno, torna-se um intrépido militante desta animada

távola. E, talvez, seja esta uma das razões que pode-se dizer com Octavio Paz que se a

204 RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 116.

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história da poesia e da arte do século XX não seja mais rica em grandes obras do que a

do século XIX, neste quesito não há dúvida de que ela foi mais variada e acidentada.205

Podemos acrescentar ainda: a arte de vanguarda hispano americana se revelou mais

virulenta, pendular e agressiva cuja pauta passou cada vez mais a afastar-se do porto

seguro representado pelo meridiano que era a Europa em termos de artes e na produção

de bens culturais.206

Estando dadas as condições de recepção dos textos, Borges em coro uníssono

com os literatos de Buenos Aires amplia sensivelmente a capacidade de tratamento e

acolhimento perante o público, que por sua vez se tornava mais numeroso e com forte

tendência a renovação. A escrita, possuindo cada vez mais poder de veracidade nas

instituições nascentes, sobretudo se comparado com a palavra oral, vai ganhando

terreno próprio e se constitui numa das bases para a solidificação de um meio intelectual

mais autônomo e audaz.207 A diversificação somada à heterogeneidade do ambiente,

fomentou o imaginário materializado na escalada de suportes para veiculação das novas

idéias de cunho estético e franqueou estímulos que ultrapassava em muito a relação

textual comum do leitor com seu espaço escolhido para as leituras. Assim, Borges

visando um porvir próspero para o campo literário argentino intervém com textos cujo

caráter é a plena manifestação de algo que ainda não ocorreu, de algo que simplesmente

está em estado virtual208. Essas manifestações, ainda que carregadas de veemência e

ironia, atribuem mais tino a empreitada em que o escritor se auto incumbiu, de ver e

anunciar, a partir dos mecanismos próprios da linguagem artística, as infinitas

possibilidades que jazem na performance de comunicação entre os seres humanos.

Borges com suas bandeiras e iluminações se dirige a sociedade, ou a toda comunidade,

tentando estender seu apelo de renovação até os mais longínquos confins das

probabilidades.

O alicerce da intervenção está no anseio visível de edificar contato direto com a

problemática atualíssima da destinação do discurso. Assim, o que ecoa das inscrições

dos manifestos murais Prisma é que a própria forma de seu aparecimento já significa

uma tremenda realização cultural. O advento resultante da possibilidade de ser visto a

205 PAZ, O., Os Filhos do Barro : do Romantismo à Vanguarda, p. 145-146. 206 Veja por exemplo a retumbante polêmica lançada em torno da questão: Espanha meridiano intelectual da América hispânica. Ver: SCHWARTZ, J.; ACALÁ, M. L. (Orgs), Vanguardas Argentinas: Anos 20, p. 101-122. 207 RAMA, A., A Cidade das Letras, p. 79-80. 208 RICOEUR, P., Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p. 37.

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longa distância, de denunciar o marasmo e a atmosfera de quietude literária através de

suportes inauditos já significa um caso particular de transformação da situação

interlocucionária. Desta forma possamos talvez melhor compreender seu impacto, o

choque provocado, a mudança de curso operada no cenário cultural platense e o sentido

da sua recepção nos transeuntes da cidade modernizada.

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3 Jorge Luis Borges e a cidade na poesia de Fervor de Buenos de Aires.

Empiezo declarando que mis poemas, pese al fácil equívoco, que motivable por su nombre, no son ni se abatieron en instante alguno a ser un aprovechamiento de las diversidades numerosas de ámbitos y parajes que hay en la patria. Mi patria –Buenos Aires- no es el dilatado mito geográfico que estas dos palabras señalan: es mi casa, los barrios amigables, y juntamente con esas calles y retiros, que son querida devoción de mi tiempo, lo que en ellas supe de amor, de pena y de dudas.209

Conforme temos insistido desde o segundo capítulo desta dissertação, o impulso

que caracteriza a criação da obra de vanguarda de Jorge Luis Borges foi marcado por

duas frentes distintas: o sentimento de diferença frente a seus antepassados escritores e

artistas cuja produção vanguardista da década de 1920 se deu, em crescente medida, na

direção daquilo que seria o novo frente as possibilidades de circulação de idéias de que

os esses antepassados imediatamente careciam. Nota-se, pois, conforme a terminologia

de Jaime Alazraki, um descompasso entre a literatura que ainda insistia em vigir, com

seus belos temas, mas opacos de conteúdo (essa seria a visão de muitos contemporâneos

vanguardistas) e a sociedade argentina de então. 210

Em outra frente, ou melhor, na perseverança da aliança desses dois impulsos, e

numa direção distinta, Jorge Luis Borges intervém com a criação de um novo mundo

engendrado pelo impacto das mudanças de que Buenos Aires era lugar. Mundo povoado

209 BORGES, Jorge Luis. Prólogo, p. 162-163. 210 ALAZRAKI, J., La prosa narrativa de Jorge Luis Borges, p.123.

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de elementos dos mais variados, típico de um autor que se orgulha das enormes

contribuições advindas das mais diversas fontes. Por esta via, Borges produz a partir do

que considera como sendo uma veracidade do seu cogito, por intermédio das

perplexidades de suas meditações, a criação de um universo em Buenos Aires bastante

particular.

Por outro lado, ainda não é demais lembrar, que a cidade natal do escritor,

Buenos Aires, modernizou-se, complexificou-se, estava inundada de imigrantes e novas

construções físicas. Estas mudanças propiciaram metamorfoses em que os partícipes

tiveram de forjar respostas para esta nova atualidade. Assim, Buenos Aires engajava-se

em seu destino, quase místico conforme se verá, e passou a aliciar inauditas alterações

espirituais sendo desta forma palco das principais transformações que a modernidade

impunha.

No curso da modernidade buenairense, fortemente impulsionada pela virada do

século XIX para o século XX, tentaremos pois, o entendimento do caráter incerto do

pensamento e postura borgeanas num período que já caracterizamos como pleno de

vigor e de inauditas possibilidades. Como vimos tentando demonstrar, a cidade

impregnada da veia modernizante fecunda no escritor portenho uma das suas imagens

mais apaixonadas, tanto no que se refere ao engendramento de uma militância

vanguardista quanto no queixume poético frente a uma cidade imaginária desaparecida.

Portanto, é esta a última representação que iremos explorar neste último capítulo: a

criação imaginária de Jorge Luís Borges sobre sua querida cidade natal, Buenos Aires.

A nosso ver, a construção imaginária da cidade ganha no escritor argentino ares de

verdadeira nostalgia, em que as mudanças pela qual a capital está passando tem na sua

escritura um capítulo privilegiado para o entendimento da sociedade argentina do

período, bem como de seu próprio sentimento sobre a urbe, concretizada em seu

compêndio poético denominado pelo autor de Fervor de Buenos Aires.

Deste modo, o ainda jovem escritor Jorge Luis Borges, parecendo obliterar os

modelos de recepção aos novos valores, aplica-se a criar de forma saudosa uma cidade

que não mais existe, mas é como se existisse211 conforme o vocabulário de Wolfgang

Iser. Deste modo, podemos já depreender de seu prólogo a Fervor de Buenos Aires o

propósito e as inquietações contidas em seu primeiro livro:

211 ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 957-964.

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De propósito pues, he rechazado los vehementes reclamos de quienes en Buenos Aires no advierten sino lo extranjerizo: La vocinglera energía de algunas calles centrales y la universal chusma dolorosa que hay en los puertos, acontecimientos ambos que rubrican con inquietud inusitada la dejadez de una pobalción criolla. Sin miras a lo venidero ni añoranzas de lo que fue, mis versos quieren ensalzar la actual visión porteña, la sorpresa y la maravilla de los lugares que asumen mis caminatas. Semejante a los latinos, que al atravesar un soto murmuraban “Numen Inest”. Aquí se oculta la divinidad, habla mi verso para declarar el asombro de las calles endiosadas por la esperanza o el recuerdo. Sitio por donde discurrió nuestra vida, se introduce poco a poco en santuário.212

Como é possível atentar, Jorge Luis Borges, já a partir de seu prólogo,

oportunizaria adentrar-nos num cenário de perfeição sagrada, quase mística, se não

existisse a possibilidade, continuamente renovada, daquilo que ameaça a felicidade

perfeita. Na assertiva do escritor “Aqui se oculta a divindade”, a natureza reflexiva do

autor confere ao seu prólogo um sabor de descoberta e de origem. Mas ao mesmo

tempo, e contrastando com este sentimento de júbilo, o reverso da medalha está naquilo

que é provocado pela turba dolorosa dos portos e a energia de algumas ruas centrais.

Nesta paisagem criada por Borges, até poderíamos acreditar termos encontrado a

divinização mais sublime materializadas nas reflexões advindas das caminhadas

solitárias do autor. Entretanto, a despeito de que se pode chegar aos poucos ao santuário

como ele mesmo afirmou, não resta dúvidas que dela o escritor está separado de maneira

definitiva. Borges parece enfrentar a experiência do desconcerto que, no entanto, não

pode mais renegar. Para o autor, a divindade está oculta. Nem todos conseguirão ter

acesso à surpresa e à maravilha das caminhadas de que o escritor demonstra possuir o

privilégio. Neste sentido, é preciso saber encontrá-las tanto nas imagens dolorosas das

falhas representadas pela imigração intensa e demografia crescente, que devido a sua

expansão poderosa provocou ruídos e arbitrariedades, quanto no cada vez mais

minguado sossego de uma cidade mais apaziguada oriunda de um imaginário tempo

inicial que já não pode ser mais restaurado. No poema Musica Pátria veremos como se

situa o escritor frente a ao passado:

Quejumbre mora

212 BORGES, J. L., Textos Recobrados 1919-1929, p. 164.

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Bordeando oscuramente ambas eternidades Del cielo gigantesco y de las leonadas arenas, Llevada con horror de alfanjes heroicos A los límpidos prados andaluces Desgarrándose como una hoguera por las malezas del tiempo, Entre los siglos escurriéndose Quemando las vihuelas en llamaradas de jácaras Hasta el milagro de la gesta de Indias Cuando los castellanos Saqueadores de mundos Iban robando tierras de albur al poniente. Desmelenada por la pampa, Trasegada de guitarra criolla en guitarra, Entreverándose con la pena De avillanda gente quichua Descoyuntándose con la insolencia del puerto, Hecha otra vez picota de arrufianados vivires Y humilladero de mujeres malas, Ha logrado ahondar con tal virtud en nuestra alma Que si de nochecita una ventana La regala en sonora generosidad a la calle El caminante Siente como si le palparan el corazón con la mano.213

A exumação do passado, a comoção e seu arrebatamento definem, de forma

profundamente singular, o suporte de validez da intuição borgeana sobre o momento em

que vive e que compara com os tempos pretéritos. A maneira por excelência que o

escritor encontra para representar o desatino de tal sina são as metáforas em tons

genuinamente trágicos. O tom trágico de Borges revela não apenas o tempo que

transcorreu, mas o escritor apresenta-o sobretudo, sob a forma de uma irreversível

distância dos mundos em perspectiva: os elementos ausentes no momento presente são,

por essa razão mesmo, convocados. 214

Como podemos perceber, no poema Pátria os resultados das tensões aparecem

muitas vezes na forma de uma aparição inclemente e selvagem. De fato, para evocar

poeticamente a atmosfera do mal, Borges enfatiza os períodos de conflito e tensão.

Assim, desde os diferentes matizes do céu e mazelas do tempo até os castelhanos

saqueadores de mundos e as mulheres más, Borges dá livre curso a uma problemática

que será bastante presente em vários de seus escritos posteriores: a questão da pátria, o

213 BORGES, J. L., Textos Recobrados 1919-1929, p.165. 214 ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 961.

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que é ser argentino e, naturalmente, o papel desempenhado por sua cidade natal Buenos

Aires.215 Mas esta operação é também marcada por uma força que Borges dificilmente

pode conter. Estela Canto, uma das musas do escritor sublinha a postura desta forma:

Os poentes desgarrados do pampa põe manchas avermelhadas nas casinhas que se atrevem a se elevar no plano, marcando o tabuleiro interminável, que há de traga-lo todo. Uma prisão infinita e cambiante como as ondas, as formas que cremos idênticas repetições de outras formas, a extensão limitada por uma geografia imposta. Tinha de querer a sua cidade; não tinha nada mais. Era o mandado. 216

Nas palavras de Estela Canto, Borges é preso por uma força que não cabe a ele

controlá-la (Borges tinha que querer a sua cidade). É interessante de se notar que Estela

Canto e Jorge Luis Borges em Pátria exprimem-se por termos curiosamente análogos:

os poentes do pampa, céus gigantescos, planos longínquos, alguma tristeza e a idéia de

infinito. Além do mais, nada parece possuir um significado terreno, comum ou mesmo

material, inclusive a própria geografia é fruto de uma imposição. Nesta prisão

cambiante e infinita para usar os termos de Estela Canto, Borges não tinha escolha, ou

melhor, não tinha nada mais que sua cidade. O mandado já tinha sido expedido.

Por essa razão, em Borges, a plenitude imediata do sentimento de desconcerto

parece surgir como determinação de querer dispor ainda de uma última palavra. Frente a

possibilidade de consumação do esquecimento de um tempo “melhor”, cujo elo com o

processo de modernidade é indisfarçável, o ato de criação imaginária de uma aurora dos

tempos não tem nada de acidental. 217 Dentre as muitas conjecturas, Borges parece

querer assinalar que o processo desencadeado de modernização não nos permite à

festividades demasiadamente entusiastas, nenhuma comemoração antecipada desta

liberação duvidosa. Como queremos dá a entender, diante de uma atmosfera marcada

por desconcertos, o riso da celebração não poderia ser encarado no mesmo teor do

vanguardismo militante. Ou pelo menos, deveria sim, parece acenar o escritor portenho,

ser dosado o calibre de seu entusiasmo confiante. Assim, o escritor a partir de uma

difusa idéia de pátria como diz Julio Pimentel, marca importantes diferenças no novo

tabuleiro que é a cidade de Buenos Aires: 215 PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 87. 216 CANTO, E., Borges à contra luz, p. 53. 217 PIMENTEL, J. P., op.cit., p. 88.

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Um dos temas centrais de suas reflexões, Buenos Aires presta-se, a princípio, a múltiplas percepções: é a vinculação possível à difusa idéia de borgeana de pátria, quando referenciada por um lugar geográfico; é o resgate da infância; são as rotas de observação das diferenças entre o subúrbio e o centro europeizado; são os longos passeios pelas ruas guardadas na memória e por esta reconstruídas numa reurbanização imaginária, que afasta a possibilidade de que a Buenos Aires borgeana seja alterada pelas transformações efetivas vividas pela capital argentina. 218

Naturalmente, se Borges apela a cidade é por que ela era experimentada como

aparecimento a uma só vez de algo descomunal e sedutor. Com efeito, tudo concorre

para supor, em Argentina, a singularidade desta nova capital. Buenos Aires cada vez

mais modernizada transfigura-se em palco privilegiado no cenário argentino onde os

acontecimentos dos mais variados matizes são irradiados para o restante do país.219 Nela

ou em seu entorno, isto é, em seus arrabaldes e subúrbios, são produzidas temáticas e

polêmicas. Na década de 1920, período fecundo de produção de um imaginário da

cidade, franqueam-se inúmeras plataformas de debates, repertórios de discussões aos

escritores, artistas e intelectuais que aspiram à compreensão e ao entendimento do

processo de transformação por qual estava passando a capital argentina, bem como um

ávido interesse em intervir. Nesse sentido as possibilidades são enormes. Os debates

envolviam questões das mais variadas onde as questões sociais, linguísticas geográficas

e políticas ganhavam o primeiro plano220. A relação da cidade com o escrito, ganha nas

palavras de Lefere:

O sonho (de Borges) não é exatamente o de uma cidade provinciana, nem sequer o de uma cidade de aldeia feita de bairros e gratamente arborizada. Por uma parte, o bulício do centro resulta imprescindível na medida em que é condição necessária para que se possa sonhar uma posição pessoal periférica e criticamente distanciada.221

218PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges , p.128. 219 Ibid., loc.cit.. 220 Neste sentido os dois estudiosos de Borges e sua relação com a cidade concordam que o processo de modernização da cidade de Buenos Aires deu ensejo a discussões nos campos supra citados. Ver: PIMENTEL, J. P., Uma Memória do Mundo: Ficção, Memória e História em Jorge Luis Borges, 1998; SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930. 221 LEFERE, R, Primero fue el concepto, p. 66.

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O livro de poemas Fervor de Buenos Aires, então, traduziu e conferiu ao ardor

pelos tempos pretéritos uma variável visível da nostalgia do recomeço. Na verdade,

pode-se mesmo afirmar que a obra de Borges é elaborada a margem de suas verdadeiras

fontes, isto é, os primórdios da história da cidade. Talvez, Fervor de Buenos Aires deva

ser encarado na consciência mesma desta longitude. Borges parece falar solitário do

insólito destino que coube a sua cidade natal e, agregando os símbolos de uma difusa

idéia de origem numa linguagem plena de alegorias de que é o artífice, o escritor torna-

se, muitas vezes, enigmático e sombrio ao singularizar fervorosamente os encantos

perdidos de uma imaginária Buenos Aires antiga. Deste modo, frente a outras cidades

conhecidas pelo escritor, a Buenos Aires borgeana adquire, nas palavras de Júlio

Pimentel, o sentido de uma consagração religiosa obtida pelo evento do reencontro:

Após a distância dos anos europeus, a volta a Buenos Aires de que Fervor de Buenos Aires – que em seu título já assume a homenagem de tonalidade quase religiosa prestada à cidade – é palco insistente nas características peculiares da cidade, aquilo que a distingue das cidades européias por onde Borges passou.222

Desta feita, o retorno de Borges a sua cidade de nascença possui algo de ainda

mais particular. Neste sentido, é de se conjecturar que a condição desgarrada e

eminentemente solitária do escritor em seu retorno o tornou estranho a uma

possibilidade existencial confortável no seio da urbe modernizada. Esta prática, isto é, a

prática poética consumada de Fervor de Buenos Aires, em crescente medida contrasta

com seu entusiasmo de militância vanguardista. Em tais circunstancias, Borges decidiu

explorar o tema da vinculação eterna a uma cidade imaginária que pelas mãos do

escritor ganhará a concretude do disfarce de uma presença constante (sempre estive e

sempre estarei em Buenos Aires). Como uma espécie de salvaguarda do furor

vanguardista, Borges dá a entender que a modernização não pode apenas ser lida em

termos otimistas. Por esta via, Jorge Luis Borges, um verdadeiro crente da veracidade

de seu estado de torpor produz um feito poético que mescla, por sua própria condição de

recém chegado, uma consternação à luminosidade da imagem proporcionada pelo

período de efervescência moderna:

222 PIMENTEL, J., Uma Memória do Mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 136.

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O que se perde e se reivindica, é a experiência poética, espiritual e também mística que supostamente permitiu esta cidade; isto é, uma experiência essencialmente individual e, por isso mesmo, vertical. Nos deparamos portanto, com uma idéia antiurbana da cidade, que questiona qualquer conceito urbanístico e a noção da cidade mesma (se considerarmos que esta representa um espaço social e político que propicia experiências coletivas). Se corresponde com um pensar da cidade que não é racional ou conceitual mas afetivo: nutrido de uma sensibilidade poética a maneira tradicional (romântica...) e idiossincrásica e projetada em percepções e afetos que encarna a figura do passeante borgeano. O fato de que este pensar seja apolítico não impede que encubra um sentido político, variável segundo os contextos.223

Por seu turno, Borges consegue por em evidência algo que é ao mesmo tempo

regional e cosmopolita. De tal forma imerso que estava num ambiente de rápidas

conversões, onde as alternativas de inovações estéticas, de engajamento e ativismo

político social estavam ao alcance das próprias mãos, Borges retorna a Buenos Aires e

se concebe como figura de proa nesse processo de construção de uma imagem da

cidade. Consequentemente, a posição de Borges marchava em colisão contra aqueles

que se posicionavam pelo esquecimento da celebração da mesma. Em um sentido lato,

pode-se mesmo afirmar que, como núcleo mais sensível e irradiador, Buenos Aires é

apresentada nas intervenções desses intelectuais e artistas como a síntese do que seria a

Argentina, e isso se dá em qualquer dos campos que estes intelectuais pertençam. 224

Assim, descortina-se em Fervor de Buenos Aires que, em Jorge Luis Borges no

próprio instante em que sua prática poética reflexiva e imaginária se depara frente a luz

da origem, ela precisa se arrefecer diante da distância que dela a separa: Buenos Aires

não é mais a pequena aldeia do século passado, mas transformou-se no lugar onde se

cruzam as modalidades do particular e do universal, certamente uma cidade mundo... A

cidade ganha visibilidade própria e é vista como o lugar de referência onde se misturam

as tendências de teor europeizante e também é o lugar onde é possível encontrar o mais

puro exemplar do argentino.225 As transformações pela qual passa a cidade, em larga

escala de crescimento no período, deixam seus habitantes como que perplexos e

fascinados frente a essas mudanças imprevistas. Jorge Luis Borges também foi uma 223 LEFERE, R., Primero fue el concepto, p. 67. 224 No capítulo segundo de seu livro Sarlo discorre sobre três importantes escritores que pensam a cidade extraindo das suas produções as respostas forjadas pelos intelectuais em Buenos Aires. Os escritores são: Jorge Luis Borges, Oliverio Girondo e Robert Arlt. Ver: SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930. 225 PIMENTEL, J., Uma Memória do Mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 66-67.

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vítima de seu encanto. Diante de tal atmosfera, o escritor argentino projeta em sua

imaginação uma cidade mais tranqüila e amena, mas que, na verdade, já desapareceu ou

está em vias de desaparecer. No próximo fragmento extraído de Final de Año o

sentimento de paixão que Borges nutre pela origem deixa a sensação de que o escritor

contempla esta nova atmosfera como a angústia de uma longa espera:

...La altiplanicie de esta noche

y nos obligan a esperar

las doce irreparables campanadas.

La causa verdadera

es la sospecha general y borrosa

del enigma del tiempo;

es el asombro ante el milagro

de que a despecho de infinitos azares,

de que a despecho do que somos

las gotas del rio de Heráclito,

perdure algo en nosotros:

inmóvil226.

Em Pátria, as múltiplas perspectivas do escritor são inscritas em um processo de

percepção e lembranças que o vinculam a um passado diante de um processo acelerado

de mudanças. 227 Deste modo, surge a metáfora heraclitiana do tempo, dando expressão

e concretude a experiência de Borges em seu retorno. O rio de Heráclito outorgando

modalidades de expressão num lugar em que tudo transcorre de forma infinitamenete

mais rápida.228 Simultaneamente sentidos, reflexão e meditação como afirma Robin

Lefere sobre Fervor de Buenos Aires, são produtos de uma inquietação metafísica pela

urbe modernizada.229 Assim, o poema apresenta-se como uma expressão de seus afetos

sobre uma imaginária cidade de outrora transportados para o país inteiro

226 BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires, p. 30. 227 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.28. 228 ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p 109. 229 LEFERE, R., Pasión Gnoseológica y Poética Borgeana, p.623.

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É dessa forma que se evidencia em “Final de año” um enigmático tempo de

outrora que tem na imaginação de Borges um de seus mais afetuosos apelos. Percebe-se

que o receio da perda definitiva desse registro no tempo, tão caro ao escritor, aliadas a

clarividência do momento descrito como “assombro” e a descrição melancólica fincada

na expressão “a despeito de infinitos azares” faz com que em suas reflexões,

geralmente Buenos Aires apareça de forma marcadamente distinta do que era mesmo no

passado e no presente.

Nesta direção, no poema “Final de Año” a dimensão temporal ganha bastante

relevo. Em seu caráter polissêmico, o tempo da cidade que Borges conheceu antes de

sua partida para Europa ganha um perfil de verdadeiras transformações: a cidade se

metamorfoseou radicalmente e o apelo do escritor adquire, além do contorno estético,

dimensões francamente existenciais como afirma o artigo de Robin Lefere.230 Destarte,

no poema Borges sentia o tempo e sua encarnação no presente lhe era apresentada não

como dádiva, mas sobretudo como obstáculo angustiante, obstáculo que significava

negar e aniquilar seu valor intrínseco e tentar, através de uma invenção imaginária de

uma cidade do passado, saltá-los espiritualmente. Regressar aquilo que é reconhecível,

não estranho.231 Esta postura em Borges assume nas palavras de Julio Pimentel:

Produz o espaço do aceito e do inaceitável na produção textual; restringe o movimento de idéias a mesmice da contínua e invariável repetição; rejeita a diversidades de projetos e temporalidades; refuta a diferença histórica, universo do possível...Borges nega a própria especificidade que busca, pois produz a universalização de tudo que é específico, caracterizando-se mais pelo que dissimula e oculta do que pelo que revela.232

Na verdade, à medida que a década se arrastava, os intelectuais e artistas de

diversos matizes que se percebiam como que assaltados por esta intensa atmosfera

tornavam-se crescentemente determinados não somente a compreender esse vácuo

legado pela transformação abrupta, mas também tentados a ultrapassá-lo. De fato, para

que este empreendimento se concretizasse, se tornou bastante comum recorrer aos

repertórios de uma mitologia de tempos pretéritos.233 Esta é a razão por que Final de

230 LEFERE, R., Fervor de Buenos Aires en contextos, p. 210. 231 Esta análise é compartilhada por dois importantes estudiosos de Borges neste período: Beatriz Sarlo e Júlio Pinto Pimentel. Ver: SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930; PIMENTEL, J., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges. 232 PIMENTEL, J., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 76. 233 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 38-39.

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Año de Borges é um exemplo mais que eloqüente: empenhado em criar uma versão

lendária da cidade, a figura de Heráclito surge angustiosamente no poema como

impossibilidade de desprezo da dimensão temporal. É a sugestão imagética contida na

metáfora rio – tempo como se se perguntando da possibilidade de voltar duas vezes a

um mesmo período ou a uma mesma origem. Deste modo, como produto de um ato de

fingir, podemos dizer conforme Wolfgang Iser, que Borges em Fervor de Buenos Aires

dá ensejo ao processo de irrealização do real com o fito de concretizar seu

imaginário.234

Por outro lado, se em Final de Año a cidade aparece como paixão, ela mesma

não constitui, em Borges, um fator apreciável de ordem social ou coletiva. Portanto,

vale lembrar que de acordo com Carlos Alberto Zito, o apelo borgeano pelas qualidades

que emanava da cidade só a ele cabia enxergar.235 Conforme temos mostrado com

Robin Leefere, Borges aspirava a individualidade de seu relato.

Em Borges esta prática oferecia-se num sentimento íntimo e exclusivo, com um

leve toque de reserva. Deste modo, por mais que a cidade tenha se tornado matéria

fecunda de hinos e verdadeiros temas de análise por parte de escritores e artistas, a visão

borgeana almejava, sem sombra de dúvida a singularidade, que se materializava nas

diversas referências que Borges atribuía a sua cidade natal. Estas referências, por certo,

nem sempre são verdadeiras. O fenômeno que ocorre, ainda como diz Carlos Alberto

Zito, é que Borges recria a cidade que, por sua vez, reproduz o movimento inverso

recriando o autor.236 Assim, o que torna a prática borgeana ainda mais particular é que

mesmo que a cidade tenha caído nas graças de poetas que celebraram com entusiasmo

suas ruas, escritores que realçavam seus costumes, pintores que transfiguram seus

bairros dando a Buenos Aires uma nova fisionomia, Jorge Luis Borges a partir de seu

livro Fervor, é o único a obter uma ressonância neste período.237

234 ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 955-984. 235.Que se note o zelo de Jorge Luis Borges por sua cidade natal. Numa entrevista concedida a Maria Esther Vázquez que pergunta se a Borges é muito importante sempre voltar a Buenos Aires, o escritor lhe responde: “Mas sempre tenho sentido que há alguma coisa em Buenos Aires que gosto. Gosto tanto que não gosto que outras pessoas gostem. É um amor assim zeloso. Quando tenho estado fora do país, por exemplo nos Estados Unidos, e alguém disse de visitar a América do Sul, eu o incito a conhecer a Colômbia, por exemplo, ou lhe recomendo Montevidéu. Buenos Aires, não. É uma cidade demasiado cinza, demasiado grande, triste – lhes digo -, mas isso o faço por que me parece que os outros não tem direito de gostar.” In: ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 54. 236 ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 24. 237 Ibid., p. 21.

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Buenos Aires teve muitos poetas que cantaram suas ruas e escritores que recrearam seus bairros, mas sem dúvida foi Jorge Luis Borges o único que o fez obtendo uma audiência universal. O prestígio obtido por sua obra em todo mundo, logrou que a cidade de Buenos Aires alcançara na literatura o caráter legendário da Praga de Kafka, a Dublin de Joyce, ou a Lisboa de Pessoa.238

Assim posto, todos os emblemas que sobreexcedem na cidade imaginada por

Borges se enriquecem por estarem compaginados com a consciência de um tempo

pretérito, a cidade de outrora cuja contrapartida mais exuberante via-se na cidade nova,

modernizada e repleta de uma multidão alarmante para os padrões da época. Na

biografia de Borges, conhecido desde muito jovem como um caminhante contumaz, esta

nova Buenos Aires representava uma incógnita, abertura e expansão. Por esta razão,

pelo que viemos expondo até aqui sobre o regresso de Borges em 1921, não é difícil

aventurar a hipótese de que tanto no impulso de vanguarda do escritor quanto na sua

postura saudosista em relação a cidade, Borges parece aspirar uma restauração cujo

sentido último está no impacto causado pelo estranhamento de sua volta à cidade natal.

Na verdade, aquilo que podemos considerar como sendo uma verdadeira

cosmovisão borgeana, tentativa imaginária de criação demiúrgica de um outro universo

citadino aliada à consciência de um tempo que se perdeu, encontrou alta ressonância em

críticos de importância inclusive em solo brasileiro. Contemporâneo de Borges, Mário

de Andrade tentando explicar o que ele mesmo considerou como fenômeno que surgiu

no rio da prata nos contempla com a seguinte afirmação entusiasta:

Jorge Luis Borges, vivido muito anos de estranja, quando chegou na pátria já igualado, se espantou com ela e se aplicou a cantar a realidade dela. Disso lhe veio Fervor de Buenos Aires239

E mais adiante o escritor e crítico paulista nos fala da sensação do contato com a

poesia borgeana:

Os versos dele que conheço são naturezas mortas naquele sentido tão lindo de “vida silenciosa” que lhes dão os alemães. Jorge Luis Borges tirou dos estudos

238 ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 23. 239 ANDRADE, M. de, Literatura modernista argentina III, p.285.

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uma fadiga contemplativa e condescendente. Então diz: “El tiempo está viviéndome..240.

De fato, a impressão extraída do pensamento de Mario de Andrade representa

uma das inúmeras sensações que se pode depreender no caso da Buenos Aires

imaginada por Jorge Luis Borges. Cidade inventada, imaginária, criada a partir do

impacto que a ausência dos anos passados em Europa lhe proporcionou. Este sentimento

de transformação temporal inaugura uma busca, em Borges, de uma linguagem poética

que ultrapasse os códigos herdados e demasiadamente gastos pela literatura argentina,

quiçá em América Latina.241 Para além de tais códigos, a intervenção borgeana nas

letras visa, conforme queremos demonstrar, chamar atenção para a sensibilidade do

momento vivido, ou conforme adverte Lefere na mesma direção, algo que é para o

indivíduo a condição sine qua non da liberdade e da autenticidade.242

A liberdade e autenticidade citadas por Robin Lefere como algo fundamental

certamente tem em mente dar conta das novas tensões que estavam surgindo na

sociedade buenairense depois do advento da modernização. Neste sentido, o contexto

cultural argentino, através do palco em que se transformou sua capital, deu ênfase aos

processos turbulentos de assimilação e intensa peleja intelectual. Desde os mais diversos

nacionalismos, em virtude da imigração massiva até questões de idioma (quem fala o

verdadeiro espanhol?) se tornaram objetos de intensa disputa243 que, nas palavras de

Lefere:

É a época em que se exasperam as tensões entre patrícios e seus contrários, entre tradicionalistas e progressistas, em que voltam ao primeiro plano as encruzilhadas de corte sarmientiano (...) Borges se somou a ela (em parte quiçá devido a sua condição de recém “retornado”) mas com vontade, explicitada e teorizada em diversos ensaios...244

Como temos sublinhado, trata-se, de fato, de uma nova paisagem urbana. O

advento da modernização dos meios de comunicação e transportes, imigração e

240 ANDRADE, M. de, Literatura modernista argentina III, p.285 241 LEFERE, R., Fervor de Buenos Aires en contextos, p. 210. 242 Ibid., loc.cit. 243 Deve-se notar que a problemática acerca do nacionalismo argentino embora importante e amplamente discutida pelos estudiosos não contempla este estudo que versa sobre a literatura de Borges e a relação com sua cidade natal. 244 LEFERE, R., loc.cit.

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metamorfoses no tecido físico da urbe, foram ingredientes suficientes para a colisão

desses processos nos costumes e nos hábitos acabando por oferecer, desta forma, uma

nova paisagem e uma série de mudanças para os intelectuais, da qual evidentemente

Borges se inclui. Ao longo de vários anos Borges regressa a Buenos Aires depois de

uma temporada em solo europeu. Os tempos são outros e este dado marcou diferença em

seu próprio impulso criador. De maneira que, tanto na vontade expressa de impugnar

uma literatura vista como passadista e esteticamente esgotada quanto na de rememorar

literariamente uma cidade que não mais existe, criando seu próprio universo, Borges se

mantém oscilando entre os dois paradigmas vigentes: o das vanguardas e sua busca pela

reformulação de uma concepção de literatura, muitas vezes concebida em nome do novo

e a tentativa de compreensão, bastante nostálgica, das perdas irreparáveis que a

modernidade engendrou. Nesses termos, Borges prossegue irrealizando a realidade, pelo

menos no sentido que parece compreender Beatriz Sarlo teórica e estudiosa do autor nos

diz que:

“Em Borges se cruzam duas perspectivas: a que se interroga por uma cidade que já não existe ( e que não existiu necessariamente como ele se recorda) e a que imagina Buenos Aires segundo o ideologema básico das Orillas.245”

Talvez, os motivos que Beatriz Sarlo tem sublinhado sejam uma das razões para

a impressão de algo impenetrável e enigmático que o livro de poemas Fervor de Buenos

Aires deixa emanar. Da extração de seu pensamento sobre o escritor portenho, arremata-

se que a singularidade da modernidade borgeana repousa justamente na renovação

aventurosa que o conduz longinquamente a um universo desconhecido, a uma cidade

mítica. Ademais, as duas perspectivas citadas pela estudiosa coincidem com a

transformação da cidade em personagem, ou aquilo que Ary Pimentel confirma que

estaria na confusão e no imbricamento das duas perspectivas, simultaneamente sentidas

na percepção da cidade pelos literatos. 246 Assim, tanto a mitificação da cidade e a sua

transformação em ideologema traduzem a resultante deste período fecundo na Buenos

Aires modernizada.

Na verdade, Beatriz Sarlo não cansa de sugerir aquilo que entrega Borges ao

confronto inquietante com a urbe transformada: a extrema autonomia do escritor, a

245 Orillas, zona indeterminada entre a cidade e o campo. SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 46. 246 PIMENTEL, A., A invasão do Labirinto: a casa e a cidade na literatura argentina, p. 8.

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tentativa ansiosa de superação dos esquemas retos e angulosos da fisionomia da nova

Buenos Aires representa a expressão máxima de uma de um homem que se deparou com

a dependência espiritual e sentimental pela cidade que lhe foi cara.247 Naturalmente, a

relação entre Borges e sua cidade natal havia sofrido diversas modificações desde o

advento de sua chegada. Pode-se ventilar que com a necessidade de confecção de

Fervor de Buenos Aires o escritor portenho certifica-se das potencialidades (que inclui o

estranhamento, que inclui o entusiasmo de vanguarda) causado pela urbe babélica:

Só se pode sentir nostalgia de algo que se perdeu. Em uma Buenos Aires transformada pelos processos de modernização urbana, onde a cidade criolla se refugiava em umas poucas ruas do bairro, e onde inclusive elas sofriam câmbios que afetavam seu perfil físico e demográfico, Borges inventou um passado. O fabricou com elementos descobertos ou imaginados na cultura Argentina do século XIX, que tinha para ele uma densidade baseada não apenas nos livros mas também numa espécie de tradição familiar. Mas ainda esses fragmentos e as imagens evanescentes de seus ancestrais estavam ameaçados pelo tempo, pela modernidade e pelo esquecimento. 248

Assim, o advento da modernização veio acompanhado de mudanças que, em seu

sentido mais profundo, afetaram as relações tradicionais, as formas de produção e

disseminação cultural, os modelos de comportamento. Desta forma, a postura de

inúmeros intelectuais como Jorge Luis Borges pode ser encarada como forma de dotar

de sentido às reações nem sempre assimiláveis de uma modernização desenfreada, de

criar mecanismo de organizá-las e preservar assim um norte quimérico.

Beatriz Sarlo nos diz ainda que na Buenos Aires da época se tornou bastante

comum a idealização de um místico passado citadino ao que se atribuiu traços de uma

sociedade mais integrada, orgânica, justa e solidária.249 Em outras palavras, numa

atmosfera de transformação latente, as lembranças, lamentos e até mesmo a nostalgia

podem ser encarados como formas de remediar uma situação percebida como insólita do

ponto de vista de seus partícipes.

O desconsolo borgeano pelo exagero das gentes que compõe a nova Buenos Aires e articula a função do real, controlado pelo passado definidor do presente, uma função do irreal, em que a imaginação opera de forma conclusiva e retoma os laços aparentemente perdidos com a face não evidente no presente.250

247 SARLO, B., Borges, un escritor en las Orilla., p. 32. 248 Ibid., p. 83. 249 Id., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.32. 250 PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p.132.

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Encaradas sob este ângulo, pode-se conjecturar que a inventividade imaginária

borgeana está a trabalhar em seus escritos citadinos, um átimo que seja, de compreensão

das novas contradições espirituais que, de forma cada vez mais contundente, projetavam

suas sombras sobre os debates argentinos do período. Com uma Buenos Aires

profundamente transformada, quase irreconhecível segundo o próprio Jorge Luis

Borges, o imaginário do escritor busca estabelecer uma salvaguarda que o auxilie a

resolver o conflito que jaz na perda e, por conseguinte, tenta a consecução de um projeto

de realização de uma cidade imaginária perdida que, ainda segundo Sarlo:

Afetados pelo câmbio, imersos em uma cidade que já não era a de sua infância, obrigados a reconhecer a presença de homens e mulheres que, ao serem diferentes, fraturavam uma unidade originária imaginada, sentindo-se distintos em outros casos, as elites letradas hispano criollas, os intelectuais de Buenos Aires intentaram responder, de maneira figurada ou retamente, a um interrogante que organizava a ordem do dia: como impor (ou como aniquilar) a diferença de saberes, de línguas e de práticas? Como construir uma hegemonia para o processo em que todos participavam, com os conflitos e as vacilações de uma sociedade em transformação?251

No cruzamento do não reconhecimento, Buenos Aires aparece como um lugar de

confecção de identidades possíveis, já que é essa cidade que Borges elege

imaginariamente como lugar de plenos significados. Ideologias, políticas, estéticas se

enfrentam nesta arena de debate que tem Buenos Aires não apenas como cenário, mas

sobretudo como protagonista como diz Beatriz Sarlo.252 Deste modo, Borges tem uma

forma de sentir a urbe, percebe-se que o aguerrido autor dos Manifestos de Vanguarda

nutre por ela inegável apreço e a transforma com Fervor de Buenos Aires em

personagem, em vitrine de sua pátria. Bella Jozef nos fala da relação de Buenos Aires

com o escritor portenho em termos de cidade berço, cidade sede. Para Bella Josef a

cidade representaria para Borges além de uma intuição do mundo numa contínua

procura metafísica, representaria também a totalidade de um mundo253:

São imaginistas de processos audazes. Elaboram novas perspectivas em relação a urbe moderna, sob o impacto da modernidade ao lado da recuperação de um

251 SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas, p. 49. 252 Ibid., p. 48. 253 BELLA, J. , Jorge Luis Borges, p. 44.

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passado. Se as recordações vinculam Borges ao passado, seu projeto poético e a retórica são renovadores.254

E mais adiante:

Borges tem um modo de sentir a pátria – uma rua, um crepúsculo, a cidade de Buenos Aires, berço e sede, a totalidade de um mundo.255

Jorge Luis Borges então esquivou-se, desertou-se da incumbência da celebração

órfica, talvez até ingênua, da modernização e sua revelação avançada de domínio

tecnológico no tecido físico da cidade de Buenos Aires. Por esta via o então jovem poeta

Jorge Luis Borges cria imaginariamente uma cidade do passado com aparatos modernos

de escrita poética segundo a estudiosa do autor Bella Jozef.256 Nesta direção, o escritor

percebeu, ou melhor, foi capaz de sentir, que o sentido pleno da modernização unilateral

emagreceu de forma singular o que podemos caracterizar nos termos de Octávio Paz

como a comunhão dos homens.257 E se Paz estiver correto, o homem segundo uma de

suas definições é nostalgia e busca por comunhão.258 Assim, na linha de Octavio Paz,

Borges parece tentar como poeta o esforço a escapar dos opostos que o atormenta numa

cidade onde a comunhão dos homens foi sensivelmente afetada pela persistência hostil

desta nova ordem cotidiana.259

Ao mesmo tempo, depreende-se que no processo de intervenção imaginária

borgeana há sempre a tentativa de definição da atmosfera do passado, entendido quase

sempre de forma nostálgica ou crítica. Neste sentido, a poesia borgeana contém, se

refletida em profundidade analítica, o verdadeiro sentido de um equilíbrio precário,

como é possível perceber do extrato destacado de seu poema chamado Benares:

Falsa y tupida como un jardín calcado en un espejo, la imaginada urbe que no han visto nunca mis ojos entreteje distancias y repite sus casas inalcanzables (...) Y pensar que mientras juego con dudosas imágenes,

254 BELLA, J. , Jorge Luis Borges, p. 44 255 Ibid., loc.cit. 256 Id., História da Literatura Hispano-Americana, p. 184-187. 257 PAZ, O., The Labyrinth of Solitude, p. 195-196. 258 Ibid., p.195. 259 Ibid., p. 196.

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la ciudad que canto, persiste en un lugar predestinado del mundo, con su topografía precisa ...y lentas alamedas260...

Resguarda-se, desta feita, o traspassar do sentimento de vacuidade imperecível

afetado em Borges e testemunhado em Benares, grito saudoso verbalizado através da

sensação de estranhamento causada pela incomunicação que a nova urbe buenairense

propiciava. Por esta via, a rota escolhida por Borges em Benares, a imaginada urbe

cujos olhos de Borges jamais viram, empresta a experiência do retorno de Borges a sua

cidade natal uma expressão pungente de perplexidade ante as mais inusitadas

manifestações da vida citadina. E é nesta nova paisagem, repleta de novos signos, que o

escritor dá início à teorização prática de uma nova forma de fazer ficcionalidade

baseada, inclusive, em pressupostos de seu programa de vanguarda anterior. Desta

forma, as metáforas que Borges faz pulsar na poesia de Fervor de Buenos Aires recebem

o tratamento prático do moderno impulso de vanguarda e o do lamento amargurado

pelas incertezas da urbe. Sendo assim, é possível enxergar na postura borgeana de

retorno uma forma de, como diz Jacques Rancière, dar sentido ao universo “empírico”

das ações obscuras e dos objetos banais.261

De nossa parte, conjeturamos que o fidedigno canto de protesto de Jorge Luis

Borges visava assegurar que ao menos uma imagem da cidade do passado persistisse

intocada em algum lugar do mundo, no seu próprio imaginário talvez. Deveras, o

escritor compenetra-se na invenção de uma imagem imaculada da antiga cidade, com

suas casas inalcançáveis e que, de forma a preservar esta cidade imaginária da

densidade da metropolização crescente, conformou-a com características próprias de

uma silenciosa aldeia, distante da balbúrdia que significava o reformado centro da

cidade babélica. Sem embargo, a Buenos Aires imaginada por Borges em Benares

reuniria, ao contrário da ritmização intensa da urbe dos anos 1920, os predicados de uma

localidade onde se poderia desfrutar daqueles prazeres simples e raros como reza os

propagados credos estereotipados do que seria uma comunidade aldeã, isto é, um lugar

onde seria possível consagrar-se às ditosas amenidades cuja configuração ganhava a

forma de uma topografia precisa e de lentas alamedas. Esta vertente da imaginação

ganhou terrenos também nas análises de Carlos Zito:

260 BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras completas, p.40. 261 RANCIÈRE, J., A Partilha do Sensível: Estética e Política, p. 54.

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Em Fervor de Buenos Aires está a exaltação das coisas insignificantes, pobres ou vestutas, que Borges torna fortemente significantes por meio de primeiros planos, a maneira das películas expressionistas: um cartel desbotado, uma figueira assomando sobre uma parede, o arco de um saguão, uma balaustrada...que deixa ver o céu entre suas colunas.262

Em nossos termos, certamente encontra-se nesta leitura do escritor feita por

Carlos Alberto Zito traços de uma imaginação fecunda que tenta encontrar consolo em

um passado longínquo e menos desorientador. Borges, o caminhante solitário, busca

refúgio na descrição dos prazeres que já não mais se encontram na Buenos Aires

modernizada ou pelo menos estão totalmente em vias de desaparescer. Com efeito, o

que concorre para a eclosão de tal sentimento não se encontra mais em Buenos Aires ou

em seu poderoso centro reformado: a imaginada urbe cujos olhos jamais viram passava,

seguramente, pela composição de uma cidade menos densa em termos demográficos e a

criação de um perfil que consolidasse as expectativas criadas em torno da mitologia de

uma cidade que se apresentasse sem discrepâncias de ordem política ou social.

Borges constrói uma paisagem intocada pela modernidade mais agressiva, onde todavia ainda restam vestígios do campo, e os busca nos bairros onde descobri-los é uma operação guiada pelo azar e a deliberada renúncia aos espaços onde a cidade moderna já havia plantado seus marcos.263

Na verdade, foi Beatriz Sarlo quem talvez primeiro tenha percebido o lado irreal

da cidade imaginária criada por Borges.264 Segundo a autora, a cidade cantada pelo

escritor não possuía nem estrangeiros nem havia cenários para conflitos de qualquer

natureza. Quase bucólica, a Buenos Aires do escritor convidava ao recanto e silêncio

típicos de uma aldeia ou de um rincão a léguas de distância de qualquer coisa que se

assemelhasse a um centro metropolitano. Na verdade, a cidade louvada pelo ainda

jovem escritor Jorge Luis Borges estava a léguas de distância com qualquer coisa que

lembrasse a contemporânea Buenos Aires vivida pelo Borges poeta:265

262 ZITO, C., El Buenos Aires de Borges, p. 97. 263 SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas, p. 36-37. 264 Id., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 43-45. 265 Há um tom de reprovação mesmo em uma pessoa bastante querida por Borges que á a pessoa de Norah Lange: “Mas lhe alcanço uma reprovação: nos deu em seus livros uma Buenos Aires de muito sossego e de domingo”. In: ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 103.

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Borges escreve um mito para Buenos Aires que, em sua opinião, a cidade estava necessitando. De uma recordação que quase não é sua, opõe à cidade moderna, esta cidade estética sem centro, construída totalmente sobre a matriz de uma margem.266

Assim, o processo de modernização da cidade de Buenos Aires surge como total

alastramento na escolha dos caminhos a serem trilhados, possibilidades incríveis de

atividades, inseridas num universo de diversos repertórios.267 Desta forma, em seu

regresso a cidade natal, Jorge Luis Borges faz da criação imaginária de uma nova

Buenos Aires tema e matéria de sua produção poética. Com um número quase infinito

de alternativas, o escritor oscila na busca de material para a confecção de seu primeiro

livro de poemas Fervor de Buenos Aires e a prática vanguardista. De forma simultânea,

a imaginação Borgeana costura os instantâneos da cidade modernizada com elementos

visíveis na realidade, mas, como não se detém fixamente neles, o escritor elege seus

componentes fictícios dando desta forma asas para sua deliberada criação imaginária.

Em seu processo de criação imaginária, Borges tenta apaziguar seu desconforto

pela urbe babélica no próprio ato da criação poética, imaginando uma cidade em termos

mitológicos, resvalando ao sobrenatural. Efetivamente, a poesia de Fervor é o lugar

onde o escritor revela aquela irrealização que será bastante característica em sua obra

vindoura. Na confecção poética de Fervor de Buenos Aires sugere-se que esta

irrealidade conforma-se com a dificuldade do autor colher os elementos para a produção

de sua poesia já que a cidade imaginada, razão mesma do poema, desapareceu como é o

caso de Buenos Aires percebido pelo escritor. Assim, na preparação de seu imaginário

encontra-se aquilo que como diz Wolfgang Iser:

O texto ficcional contém elementos do real, sem que se esgote na descrição deste real, então o seu componente fictício não tem um caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingida, a preparação de um imaginário. 268

Certamente, do exposto é possível depreender que a moderna cidade de Buenos

Aires e a réplica citadina imaginada pela ficção poética de Borges significam frutíferos

insumos para a prática do fingimento tão estudada por Wolfgang Iser. No caso

borgeano, atribui-se uma consciência para a prática do fingimento materializado na 266 SARLO, B., Un escritor en las orillas, p. 55. 267 Nos referimos ao processo que abriu inúmeras possibilidades nos diversos campos de atuação conforme a literatura sobre o assunto. Ver: BERMAN, M., Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 268 ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p 957.

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eleição das características que permaneceram no corpo do texto poético assim como no

desvelamento próprio de tal ato. Neste sentido, esta última operação geralmente está

submersa em conteúdos de natureza sentimental ou emocional.269Desta feita, podemos

ainda com Wolfgang Iser pensar a prática do fingimento borgeano ecoando ainda nas

suas próprias palavras:

Isto é altamente significativo para o texto ficcional. No ato de fingir, o imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria e adquire, deste modo, um predicado de realidade; pois a determinação é uma definição mínima do real. Na verdade, o imaginário não se transforma em um real por um efeito da determinação alcançada pelo ato de fingir, muito embora possa adquirir aparência de real na medida em que por este ato pode penetrar no mundo e aí agir. 270

É sob este ângulo que Fervor de Buenos Aires pode funcionar como busca da

recomposição de uma identidade que se perdeu frente as mudanças que a cidade era

lugar. Simbolicamente, o livro de poemas sobre a cidade inscreve a postura borgeana

num raio de compreensão muito maior, talvez até social. Borges capta uma cidade em

seu imaginário e realiza uma nova leitura, elegendo Buenos Aires em material estético

por excelência numa atmosfera onde os argentinos estão carecendo de algo que os

referencialize.271 E, na medida que o imaginário poético do escritor portenho vai

adquirindo determinação através do ato de fingir, pode através da sua ficção, penetrar no

mundo e compor uma nova finalidade que não pertencem a realidade transgredida:272

À realidade, assim, são impostos exercícios de exorcismo de um presente em grande parte indesejado... São sobrepostas alusões cifradas a uma temporalidade passada, permitindo distinguir este passado como lugar de tradições e de fixação de referências.273

Está composto, pois, o cenário para a prática do exorcismo de um presente

indesejado, como também estabelecida a temporalidade para conferir ao mais distante

passado uma função inaudita: o tempo pretérito como lugar de tradições e fixação de

referências. Assim, como esse vibrante processo de alteração da fisionomia da cidade

dificilmente deixaria de propagar seu efeito no então jovem escritor recém chegado em

269 ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p.958. 270 Ibid., p. 959. 271 PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p.101. 272 ISER, W., op.cit., p. 958-959. 273 PIMENTEL, J. P., op.cit., p. 122.

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sua a terra natal, recorrer a uma mitologia do passado significava estabelecer referências

neste espaço francamente transformado. Ademais, Borges encontrou através deste

processo, uma forma de tematizar sua cidade, seu sentimento por ela, tornando Buenos

Aires uma estrela singular na constelação das províncias argentinas.

Esta redefinição do passado surge em Fervor de Jorge Luis Borges como uma

forma determinada de tematização do mundo como diz Wolfgang Iser como sendo a

prática de todo autor.274 Em seu ato de fingir o escritor teve de incluir em suas

consideraçãoes as ideologias políticas, estéticas e culturais que se enfrentavam neste

debate e que tinha Buenos Aires como cenário. Assim, transgredindo os limites de

temporalidades e espaço, Borges alista Buenos Aires como recinto privilegiado para a

configuração do imaginário simbólico:

Na definição desses lugares de inscrição dos sentidos de coletivo – o argentino, o buenairense, o passado - Borges constitui territorialidades, inventa tradições, constrói memória histórica, redetermina espaço e tempo, permitindo por exemplo, localizar o argentino nos arredores de Buenos Aires, num mundo de margens, de orillas, num tempo passado, não obrigatoriamente ocorrido.275

Evidencia-se assim, uma carência que ao mesmo tempo o habita e o fecunda. O

que se conclui, é que ao mesmo tempo que a Buenos Aires de ficção se firma como

importante elemento na literatura borgeana, ela também, visivelmente, ganha um outro

corte: que é pela leitura real mas sem se esgotar nela, fazer ressoar esses apelos de uma

cidade fingida nos seus contemporâneos e nos do porvir. Jorge Luis Borges penetra no

mundo buenairense e aí age, como diz Wolfgang Iser:

A seleção é um ato de fingir, na medida em que por ela se assinalam os campos de referência do texto, com a finalidade de serem transgredidos. (...) Ela se mostra como “figura de transição” (Übergangsgestalt) entre o real e o imaginário, com o estatuto da atualidade. Atualidade é a forma de expressão do acontecimento, e a intencionalidade possui o caráter de acontecimento na medida em que não se limita a designar campos de referência, mas os decompões para transformar os elementos escolhidos no material de sua auto-apresentação (Selbstpräsentification). A atualidade se refere então ao processo pelo qual o imaginário opera no espaço do real.276

274 ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 960. 275 PIMENTEL, J. P., Borges, uma poética da memória, p. 122. 276 ISER, W., op.cit. , p. 963.

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Borges na escrita de Fervor vincula toda uma série de episódios que se

condicionam uns aos outros, até ao mais remoto passado onde apenas lá seria possível

encontrar uma pacata Buenos Aires encarnada em toda sua sublimidade. A intervenção

borgeana no real se dá na medida em que ao julgar compreender os desafios presentes

na sociedade da atualidade, seleciona, exclui, mescla e transforma a expressão manifesta

do evento modernizador em sua cidade como um acontecimento um tanto quanto

reprovador. O julgamento de Borges é daquele que percebe, finge e intervém. Na

medida em que para os argentinos havia inúmeras manifestações do inédito, do

transitório e do estranho, Borges talvez sentisse sua intervenção como algo de solidão

missionária. Todas as mudanças que sobrevieram na capital argentina produziram uma

vontade de intervenção nesta atualidade.

Sem dúvida, é este o sentido de transformação que tornam os argentinos carentes

de orientação, absortos e seguramente mais audazes. Aquelas modalidades que são

percebidas como mudanças abruptas são irradiadas para a nação como um todo ao

menos em nível de visibilidade. Desde que Buenos Aires se transformou em palco

principal dos embates sócio-culturais, as próprias leis e eventos políticos ali produzidos,

nesta recente capital, alça a cidade portenha a um estatuto que angariava um misto de

sedução e curiosidade.

Na verdade, ao se observar mais detidamente os diferentes caminhos trilhados

pelos “intérpretes” e interventores da realidade buenairense, conclui-se que os princípios

que norteavam as descrições dos artistas e intelectuais (especialmente os escritores)

eram utilizados em grande medida numa direção que visava a compreensão e algum tipo

de posicionamento frente às mudanças de caráter inédito. Como postura a ser assumida,

o contingente dos que praticavam tal ingerência era bastante volumoso para os padrões

do século anterior. 277 Deste modo, na tentativa de exorcizar os fantasmas advindos das

turbulências do processo modernizador, Jorge Luis Borges, nas palavras de Julio

Pimentel, apega-se ao passado e inventa seu próprio universo metafórico:

Um Borges embrenhado em constituir uma memória que sirva para conter os fantasmas das mudanças conhecidas pela Argentina; um Borges que responde à incerteza do tempo presente por meio do apego a um passado revisitado e recriado em sua escritura, inventado por seu universo metafórico. 278

277 O escritor fala do número dos intelectuais que passaram a atuar nos grandes centros das cidades de América Latina, fala-se mesmo em termos de verdadeiras falanges. RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 114. 278 PIMENTEL, J. P., Borges, uma poética da memória, p. 122.

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Perceptivelmente, trata-se de um período de profundas ambigüidades e não

apenas na produção poética de Jorge Luis Borges. Assim, para percebermos o alcance

de quão dual é este momento, pode-se tentar sumariamente, colidir a experiência poética

borgeana com a de outros epígonos da intelectualidade argentina do período,

representado especialmente no sacro nome de Oliverio Girondo.279

Restam poucas dúvidas, neste sentido, quanto a proeminência da exaltação do

presente modernizado, característica da obra de vanguarda de Oliverio Girondo de um

lado, e de outro o caráter incerto da tentativa borgeana de encontrar na irrealização

imaginária um fio condutor mais seguro por trás das vicissitudes moderna aplicada a

cidade. Por outro lado, ao mesmo tempo em que é possível atestar a existência de uma

prática poética que os mantém sob distância, ou talvez, sentidos distintos para a

percepção do mesmo evento, de igual maneira é possível testificar a existência de algo

que os unifica: afetados pelas transformações nasceu o sentimento de urgência em

recompor este heterogêneo universo referencial.

As transformações técnicas, as inovações em termos de atividades e imigração

massiva, para ater-nos apenas em alguns dos aspectos, fizeram surgir na capital

portenha inúmeros escritores que coroavam este momento com loas de agravo ou

descontentamento. George Waisman, ao discorrer sobre a cidade na literatura de

Roberto Arlt, a apresenta em termos de subjetividade, ou melhor, em termos de planos

apocalípticos visando a destruição da cidade moderna. Utilizando uma topografia

precisa, como afirma Waisman, Arlt põe em evidência as mazelas da cidade moderna

(as cidades são os cânceres do mundo,), mas não nega seu lado utópico de progresso.

Em se tratando de Buenos Aires, o que se ensaia por parte desses escritores e o

que simultaneamente os unem, é a forma pela qual se trabalha a transformação da cidade

bem como a eleição de lugares de referência. Já que o processo de modernização

cambiou de forma potente os locais que formavam parte do repertório de lembranças

infantis desses homens de letras, todos tentaram responder figurada ou mais diretamente

a relação que se mantinha com o passado e qual seria seu novo lugar:

279 De fato, inúmeros intelectuais se posicionaram frente as mudanças que afetaram o tecido físico da cidade de Buenos Aires. Nesta linha, além de Oliverio Girondo e Jorge Luis Borges, não deixa de ser interessante as posições de Roberto Arlt. Para este tema baseio-me em: SCHWARTZ, J., Vanguarda e Cosmopolitismo na década de 20: Oliverio Girondo e Oswald de Andrade; ALBUQUERQUE, M. T., A imagem da cidade na poesia inicial de Oliverio Girondo; WAISMAN, S., De la Ciudad futura a la ciudad ausente: la textualización de Buenos Aires; ARLT, R., Los Lanzallamas; GIRONDO, O., Veinte Poemas para ser leídos em el tranvía..

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Ante esta indecisão da urbe, onde as casas assumem um caráter temerário como um implorar agressivo frente a enormidade da absoluta e sovacada planície, desfilam grandemente os ocasos como maravilhosos navios verticais. Quem viveu na serra não pode conceber esses poentes, pavorosos como chamas de carne e mais apaixonados que um violão. Poentes e visões do subúrbio que ainda estão – perdoa-me a pedanteria – em sua aseidad, pois o desinteresse estético dos arrabaldes portenhos é mentira divulgadíssima entre nós. Eu, que enderecei meus versos a contradizer esta espécie, sei bastante acerca do desvio que mostram todos em elogios a desgarrada beleza de tão cotidianos lugares...280

A denotação saudosa na essência de Buenos Aires está aqui especialmente

salientada. O desenvolvimento de seu enredo é de que o escritor está na solidão (o

desinteresse estético dos arrabaldes portenhos é mentira divulgadíssima) e, neste

estado, o assalta a recordação do passado e contra ela Borges não pode precaver-se, já

que está totalmente sozinho e à sua mercê. Em sua descrição, Buenos Aires surge como

um lugar encantado, com seus ocasos assemelhando-se a maravilhosos navios verticais.

Na verdade, a despeito que estes pavorosos poentes como carnes em chamas sejam

inconcebíveis, a urbe padece do mal de uma indecisão, segundo o escritor portenho.

Mas para por fim a este estado de coisas, Borges admoesta-nos que já endereçou seus

versos em louvor a estas belezas cotidianas. Já cumpri minha missão, parece-nos acenar

o Borges de Inquisiciones. De fato, resta assinalar que o papel da indecisão atribuído à

urbe é típico da atmosfera de mudanças que adentrou Buenos Aires nas décadas de

início do século.

Naturalmente, este processo ao tocar em elementos caros às recordações de

vários intelectuais e escritores, passou cada vez a ter grande peso o elemento de

subjetividade em cada participação. Por esta razão, pode-se mesmo dizer que

representando latitudes diferentes, em todos esses escritores, Jorge Luis Borges,

Oliverio Girondo e Roberto Arlt (e certamente em outros casos) vislumbra-se

confeccionar um repertório de elementos que possam traduzir o que seria comum a

todos frente as difíceis e irreparáveis perdas. Nesta direção, ao se tentar definir uma

fisionomia menos insegura para a cidade, podemos dizer com Julio Pimentel que:

Mais do que isso, é a produção, pela memória, de referências – de origem ou de situação – para um conjunto de pessoas, que podem reconhecer na urbe algum

280 BORGES, J. L., Inquisiciones, p. 89.

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traço possível da identidade perdida no movimento de metropolização ocorrido nas primeiras décadas deste século. 281

O que perpassa em suas preocupações, aquilo que é comum a ambos, é

responder, de forma eufórica ou saudosa às perplexidades produzidas pelas alterações

recentes da qual a cidade de Buenos Aires era palco privilegiado. É exatamente por isso

que se torna frisante a postura de Oliverio Girondo que, tal qual Marinetti lançava suas

odes ao processo de modernização, percebendo-o de forma positiva e, num sentido

amplificado, enxergava nesse processo a inserção da Argentina nos quadros das nações

cultas e modernas.

Por outro lado, nos deparamos com a postura de Jorge Luís Borges que buscava

na inventividade imaginária de uma cidade perdida e no repertório de um passado

longínquo o elo já não mais existente entre as diversas temporalidades: o processo de

modernização trouxe consigo a dificuldade de percepção de um desenvolvimento

tranqüilo entre passado, presente e futuro.282 Fatalmente, é absolutamente improvável

que Borges esteja experimentando tais sentimentos com tranqüilidade e bem-estar:

A própria casa natal de Borges desaparecerá neste terremoto edilício que sacudiu o centro da cidade nos primeiros anos do século. Em seu lugar, agora com a numeração 838, há um local comercial.283

Na verdade, se se admite que Fervor de Buenos Aires funcione como

contrapartida do furor vanguardista, o reconhecimento da singularidade do livro pode

está na descrição da extenuação da vida urbana, da redução da atmosfera da cidade a

automatismos, massificação e velocidades. Assim, o impacto borgeano sobre Buenos

Aires se desenvolverá numa linguagem que certifica a presença de um manancial

inesgotável, e que lhe permitirá projetar extensões imaginárias, onde enfim, poderá

transitar comodamente. Neste sentido, nas palavras de Jorge Schwartz a postura do

escritor se insere numa tentativa de reconstrução mítica, totêmica:

A metáfora de Buenos Aires, reconstruída por Borges, aspira a visão mítica, totêmica. Recuperando o discurso histórico com a introdução de temas que pertencem a tradição de Buenos Aires: seus cemitérios, estátuas, heróis, ditadores, tradições gaúchas, Borges transfigura a história em mito. Assim, os

281 PIMENTEL, J., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 129. 282 SCHORSKE, C., La idea de ciudad en el pensamiento europeo: de Voltaire a Spengler, p. 13-15. 283 ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 64.

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processos de repetição especular, da cidade como labirinto, visam chegar a uma perspectiva unitária e eterna da urbe.284

Assim posto, o raio da invenção poética de Jorge Luis Borges em Fervor de

Buenos Aires se inscreve na direção de tentar lançar suas sombras sobre o mundo

formulado e palpável transgredindo suas normas por força do emprego da prática de

irrealização do real.285 A contestação mitológica do escritor diz muito a respeito da

cidade nova na medida em que ela é contrária a sua calma versão mítica. Havendo, pois

obtido a “revelação” totêmica de como era a Buenos Aires de outrora, Borges opõe-se à

cidade atual recusando sua face moderna e risonha através da transfiguração histórica

que permeia todo Fervor. Em sua apaixonada variante poética, Borges além de se

alienar de sua postura vanguardista deixa-nos a forte impressão de que parece assustar-

se que sua Buenos Aires tenha se tornado uma outra, certamente mais hostil e

inquietante. Neste sentido, a determinação em lançar-se pela causa de uma Buenos

Aires mítica, além da história, pode ser vista como imperioso subterfúgio a sua

condição de exilado frente a uma multidão de olhares opacos, estrangeiros e

transformação intensa.

Assim, seria fácil demonstrar que Borges oferece sua poesia como permuta entre

uma cidade mítica, sua deliberação historicamente transfigurada como nos diz Jorge

Schwartz286, pela consternação do mundo real e experimentado. A nosso ver, o escritor

embaralha as categorias de realidade e ficção através da invenção imaginária de uma

cidade que não existe, mas que ele supõe que tenha existido e, com isso, agudiza o

processo em que cidade-autor tornam um e outro seu mútuo reflexo. Além disso, Borges

dá livre curso ao desenrolar do fingimento tematizando o mundo com os restos de uma

cidade inexistente e elementos reais, selecionando aquilo que aos seus olhos deveria

estar presente e que cada vez mais, como num círculo infinito, revela o que daí foi

excluído. De nossa parte, no que se refere ao poema Fervor de Buenos Aires, podemos

mais uma vez retomar a palavra a Wolfgang Iser: os elementos presentes no texto são

reforçados pelos que se ausentaram.287

Desta mesma forma, em Barrio Reconquistado o escritor dá mais uma vez

provas de seu processo de irrealização do real com o fito de realizar seu imaginário:

284 SCHWARTZ, J., Borges e Fernando Pessoa, p. 414. 285 ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 958. 286 SCHWARTZ, J., loc.cit. 287 ISER, W., loc.cit.

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Nadie vio la hermosura de las calles hasta que pavoroso en clamor se derrumbó el cielo verdoso en abatimiento de agua y de sombra. El temporal fue unánime y aborrecible a las miradas fue el mondo, pero cuando un arco bendijo con los colores del perdón de la tarde, y un olor a tierra mojada alentó los jardines, nos echamos a caminar por las calles como por una recuperada heredad, y en los cristales hubo generosidades de sol y en las hojas lucientes dijo su trémula inmortalidad el estío288.

Verifica-se, desta feita, que Borges sente o impacto das metamorfoses operadas

nesta nova cidade. Percebeu com muito esforço, que Buenos Aires era uma nova cidade,

invadida e que cada vez mais se transformava em encruzilhada onde se viam elementos

de mescla imigratória, cultural e lingüística. Em “Barrio reconquistado” vislumbra-se

no imaginário borgeano aquilo que ninguém viu, que é privilégio seu: a formosura das

ruas de outrora cuja interrupção é descrita como pavoroso, como abatimento. O tempo

de céu esverdeado não existe mais. Jorge Luis Borges constata o absurdo da

modernidade buenairense e renuncia ver nela algo mais do que matéria e tema para seu

projeto irrealizador.

Neste encontro inesperado entre as seqüencialidades temporais – a do moderno e

a do antigo - as metáforas do escritor visam a compreensão da cidade que adquiria cada

vez mais visibilidade, já que era o cenário das maiorias das transformações no período.

Por esta via, o juízo de Borges rompe com o processo de modernização em curso e

desencadeia o processo de lembranças e nostalgia infantis.289Conduzidas com tamanho

fôlego, diante da carência de um vínculo causal direto, Borges produz uma narrativa que

perpassa imagens de lembrança pessoal e elementos oníricos:

Em Fervor de Buenos Aires o poeta ocupa uma posição de exterioridade, é um narrador imparcial não de fatos – não se trata de uma poesia narrativa – mas de objeto. A cidade é percebida como que através de um sonho ou uma lembrança.

288 BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras Completas, p. 26. 289 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.42.

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(...) há em resumo uma cidade de uma época passada totalmente despovoada. Seus habitantes são mortos ou ausentes. Eles não estão presentes. Borges, na sua tentativa de recuperação de uma Buenos Aires do inicio do século, cria uma cidade artificial, irreal, uma cidade-museu já que o homem não vive lá.290

Concebemos então, Fervor de Buenos Aires como resposta estética que pertence

ao mesmo agregado de perguntas e inquietações. Como reafirma Beatriz Sarlo, não é de

estranhar a obsessão que os textos borgeanos do período mantém com a questão da

origem.291 Dessa forma, podemos então salientar aquilo que jaz como projeto no caso

borgeano: fruto de uma inquietação o escritor funda novas bases para a compreensão do

presente, forjando na literatura uma imagem inédita para a cidade. As letras surgem

como instrumentos de contraponto aos hábitos que foram esquecidos tornando-se uma

estratégia possível na literatura, já que ultrapassariam as diferenças nacionais e

lingüísticas. Portanto, a iniciativa de Borges é criar meios de recuperar um tempo

passado que gradativamente se perdeu, se diluiu frente aos artifícios modernos que

refutam as tradições e defendem a celebração imediata do novo.292 É o entrelaçamento

entre perplexidade e ressentimento do qual discorre Cristina Grau que, num momento

de perturbação tornar-se-ia mais estreita a relação esquecimento – memória e que faz

com que Jorge Luis Borges sensivelmente extraia dessas mudanças algo de saudoso:

Na sua volta, a cidade deveu parecer-lhe muito maior, transformada pelas novas construções, quase irreconhecível com seu novo urbanismo, suas ruas e suas avenidas construídas no meio das casas baixas deste outro Buenos Aires enfeitado pela lembrança. Ele ressente então a necessidade de fixar em imagens durável o passado desta cidade para não perdê-la totalmente, o passado do fim do século, de seu nascimento. É nessa época que aparece “Fervor de Buenos Aires”293

Assim posto, as imagens evocadas por Borges podem ser lidas como maneira ou

atitude que uma sociedade ou um setor dela adota frente a um passado cuja desaparição

é vista como irremediável. No caso do escritor portenho é fruto de uma reação. O

escritor argentino nutre com o passado uma relação de intensa afetividade ao que se

atribui os traços de uma sociedade menos confusa, mais orgânica e mais compacta.

Desta maneira entende-se melhor o “temporal unânime” do qual o escritor se refere em

290 GRAU C., Borges et l’architecture, p. 23. 291 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.45. 292 PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges. 293 GRAU C., op.cit., p. 19.

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Barrio Reconquistado. A imaginação de Borges tenta recriar aquilo que estava

desaparecendo, inclusive materialmente. Esta postura, segundo Nicolau Sevcenko,

encontra em Fervor de Buenos Aires um tom de verdadeira transformação

transcendental:

Borges, desse modo transformou, Buenos Aires no eixo simbólico do mundo, a cidade transcendente, o modelo ideal de comunhão humana e da subsunção no absoluto, a partir, no entanto, do registro pontual das presenças mais comezinhas e banais da paisagens dos arrabaldes, do rio da Prata, do Porto, dos imigrantes, dos vazios adjacentes. 294

Essa espécie de transcendetalismo e subsunção no absoluto que acreditamos ver

em Fervor de Buenos Aires, são aqueles em que o escritor parece exaltar-se a ponto de

esquecer de si, e se confundir na imagem criada da cidade. Já vimos como Borges não

tinha como deixar de cantar sua Buenos Aires em seu retorno como diz Estela Canto,

tratava-se de uma espécie de “chamado divino”; com Jorge Schwartz destaca-se seu

aspecto místico e totêmico acentuando ainda mais o elemento de espiritualização da

urbe; na visão de Beatriz Sarlo, o escritor através da estratégia de vinculação emcional

e familiar imiscui-se na cidade, que se transforma, dessa maneira em pátria de todos, ou

melhor, em eixo simbólico do mundo, como diz Nicolau Sevcenko.

Este expediente, que poderia chegar ao infinito atestam o caráter de solenidade

do escritor perante sua cidade natal. Lembremos, pois sua característica sobrenatural

desde a reinvidicação ovidiana na assertiva “Numen Inest” no prólogo de Fervor até sua

aparição suntuosa representada no matiz de céu esverdeado, nas imagens de cristais e

na imortalidade do estio na poesia anterior de Barrio Reconquistado. Naturalmente,

esses esforços correspondem a um apetite de se estabelecer num lugar que se assemelhe

a um santuário , uma versão onírica onde o conflito borgeano tenta reconciliar-se nesta

representação imaginária:

Anuncios luminosos tironenado el cansancio Charras algarabías Entran a saco en la quietud del alma. Colores impetuosos Escalan las atónitas fachadas. De las plazas hendidas Rebosan ampliamente las distancias. El ocaso arrasado

294 SEVCENKO, N., Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20, p. 221.

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Que se acurruca tras los arrabales Es escarnio de sombras despeñadas. Yo atravieso las calles desalmado Por la insolencia de las luces falsas Y es tu recuerdo como un ascua viva Que nunca suelto Aunque me quema las manos.295

Correspondendo ao desejo de estar numa cidade menos refratária, o universo

borgeano exigia a concentração de alguma normalidade baseada no emprego de uma

equação simples como vemos em Ciudad: menos anúncios luminosos em prol de uma

quietude de alma; um intenso sentimento de pesar igual a luzes falsas. No mais das

vezes, como no caso buenairense, o recrusdescimento dos fatores de fragmentação da

vida social levou os intelectuais a pensarem formas de fincarem elementos que

traduzisse a perspectiva daquilo que seria comum a todos cujo desaparescimento era

quase iminente. Por certo, esses elementos podem ser derivados duma perspectiva em

que resulte ser difícil saber lidar com diversos contrários simultaneamente. Neste

sentido, as luzes falsas e os estridentes anúncios luminosos faziam parte do novo

cenário buenairense. Os intelectuais menos entusiasmados sentiam esta presença de cor

e luzes como algo invasivo e devastador. Por esta mesma razão, nota-se que a poesia

borgeana está repleta de lamúrios contra este estado de coisas. Em contraste com o

mosaico de pesoas e as luzes falsas da cidade moderna, o escritor contrapões os

assombrosos poentes de coloração esverdeados, uma rua desconhecida e a

tranquilidade da cidade antes do processo modernizador.

Com efeito, Ciudad é um poema claro quanto as suas prentensões nostálgicas.

De fato, dificilmente deixar-se-ia de enxergar nele aquele sentimento de frustração

quanto ao otimismo que inundou Buenos Aires de falsas luzes e fachadas escandalosas.

Mas para além de tais conjecturas, Ciudad surge como sintoma de imcompatibilidade

com a nova urbe, o que certamente, faz com que o escritor o apresente como grito de

protesto contra o desatino atual, assim como necessidade imperiosa de superar a

desordem com a criação imaginária de uma nova cartografia. Jorge Luis Borges deixa a

entrever, no nosso ponto de vista, que o poema em Ciudad funciona abertamente como

lamento acompanhado de uma moralização do espaço buenairense:296

295 BORGES, J. L., Textos Recobrados 1919-1929, p. 166. 296 GIRONDO, O., Veinte Poemas para ser leídos em el tranvía.

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O poeta jovem prefere a perambulação ao pôr-do-sol, quando o alvoroço da cidade moderna começa a ser mais humano. Em poema após poema ele fala sobre as praças e as árvores, as casas e pátios, os campos para os quais as ruas se abrem. Ele vagueia e medita, ele sente e sonha, ele é superado por desejos e alucinações. Uma indagação metafísica constante corre debaixo dos seus passeios. Ele só acha refúgio na quietude...297

Em outros termos, conjecturamos que dentre outros escritores buenairenses do

período, Jorge Luis Borges é o que mais radicalmente ilustra a potência caótica, a

carestia de fundamento, a densidade do vazio, aspectos apresentados na desolação

sombria dos seus versos. Desse ângulo, a Buenos Aires descrita em Ciudad parece

horrenda, quase mefistofélica, e o escritor aparenta encontrar refúgio no sentido de

interpretação metafísica de seus passeios como vaticina Emir Monegal.298 Assim,

Borges parece desvalorizar o elemento de reconhecimento positivo da urbe

modernizada presente em outros comtemporâneos. Na verdade, sua significação

simbólica no poema de Fervor de Buenos Aires é desviada para a imagem mítica do

pretérito exorbitando o tempo presente e futuro imagetizados como negativos e tendo

nas lembranças, na invenção imaginária os tempos encantados da infância:

Atendido de amor y rica esperanza, Cuántas veces he visto morir sus calles agrestes En el Juicio Final de cada tarde! La frecuente asistencia de un encatno Acuña en mi recuerdo una predilecta eficacia Ese arrabal cansado, Y es habitual evocación de mis horas La vista de sus calles, El horizonte que se acurruca en los lejos, Las quintas que interrumpe el cielo baldío, La calle Pampa larga como un beso, Las alambradas que son afrenta del campo Y la dichosa resignación de unos sauces. Paraje que arraigó una tradición de amor en el alma No ha menester vanaglorioso renombre, Ayer fue campo, hoy es incertidumbre

Para além do fato que Ciudad não figura entre as edições completas de Borges devido ao expurgo de seus livros iniciais praticados pelo próprio autor, esta hipótese pessoal está baseada numa reflexão de Hans Gumbrecht sobre a questão centro e periferia de seu livro. Ver: GUMBRECHT, H. U., Em 1926: vivendo no limite do tempo, p. 317. 297 MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: a literary biography, p.176. 298 Ibid., loc.cit.

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De la ciudad que del despoblado se adueña: Bástale para conseguir las laudes del verso Ser el sitio implorado de una pena.299

Em Vila Urquiza descortina-se o sentimento de torpor do escritor portenho que

nos transmite uma noção de como há exasperação na condução daquilo que

repentinamente se transforma (quantas vezes vi morrer suas ruas rurais). Como para

alguns essas metamorfoses se introduzem nas sociedades de forma quase invisível,

muitos se vêem na contingência de não perder tempo e tentam prontamente fazer

ressoar algum tipo de lamento. Mas fatalmente, Borges estava ausente nesses anos.

Neste sentido, não é sem razão que Emir Monegal descreva a experiência de Fervor de

Buenos Aires em termos de retórica expressionista. Na verdade, Monegal fala mesmo de

tons apocalípticos e imagens cristãs nos poemas de Fervor de Buenos Aires, cuja

atestação podem ser apreciadas na imagem do julgamento final de toda a tarde na

poesia de Vila Urquiza.300

Em Vila Urquiza, Jorge Luis Borges mais uma vez aparenta instalar-se de forma

incômoda em seu imaginário sítio solitário. No interior do turbilhão que a cidade de

Buenos Aires é lugar, o jovem Borges é incontestavelmente assaltado pelo desejo de

intervir na nova cidade forjando repertórios com os mitos imaginários do passado para

criação de seu espaço ideal intangível. É a desaparição percebida como irremediável diz

Beatriz Sarlo, que torna Jorge Luis Borges capaz de em Fervor de Buenos Aires

contribuir para a formação de uma mitologia citadina mais justa, menos estranha e mais

palpável:

Buenos Aires pode ser lida com uma olhada retrospectiva que focaliza um passado mais imaginário que real de cidade hispano-criolla (e este é o caso do primeiro Borges) ou descoberta na emergência da cultura trabalhadora e popular, que é organizada e difundida pela indústria cultural...Isto começa a ser vivido não apenas com o um problema mas como um tema estético, atravessado pelo conflito de poéticas que alimentam as batalhas da modernidade.301

Ou ainda de forma mais expressiva:

Quando Borges regressa de Espanha, em 1921, Buenos Aires entrava em uma década de transformações vertiginosas: a cidade da infância coincidia apenas em

299 BORGES, J. L., Textos Recobrados 1919-1929, p. 168. 300 MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: a literary biography, p. 176. 301 SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas, p. 41.

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parte com a que se estava construindo. Borges chega a uma cidade que deve recuperar (como ele disse no momento), depois de sete anos de ausência: recuperar, em uma Buenos Aires transformada, a cidade de suas recordações e também recuperar essas recordações frente a um modelo que estava se transformando. Borges devia lembrar o esquecido de Buenos Aires no momento que este esquecimento começava a desaparecer materialmente. A experiência encontra seu tom poético: a nostalgia de Fervor de Buenos Aires.302

Fruto deste retalhado processo modernizador, o impacto sentido por Borges faz

com que o escritor adjetive negativamente a nova urbe de muitas maneiras: como “falsa

e densa”, “assombrosa”, “tempestuosa” entre outras. Mas a despeito do impacto

restritivo, esta negatividade não impediu que a cidade se tornasse receptáculo para suas

idéias e um favorável ambiente para a experimentação literária. Portanto, como tema

estético e tentativa de recuperação, conforme Beatriz Sarlo, a postura borgeana

propiciou uma visão insólita nos debates que aprofundariam a questão da identidade dos

argentinos. Deste modo, em Borges a criação mitológica da cidade de Buenos Aires é

elevada a categoria de personagem das suas tramas e passa a ser um dos temas centrais

de sua produção. Profundamente transformada desde sua partida para Europa, ao

regressar, uma outra Buenos Aires, a Buenos Aires de outrora, tem no escritor portenho

um dos seus paladinos mais convictos:

Las calles de Buenos Aires ya son mi entraña. No las ávidas calles, incómodas de turba y de ajetreo, sino las calles desganadas del barrio, casi invisibles de habituales, enternecidas de penumbra y de ocaso y aquellas más afuera ajenas de árboles piadosos donde austeras casitas apenas se aventuran, abrumadas por inmortales distancias a perderse en la honda visión de cielo y de llanura. Son para el solitario una promesa porque millares de almas singulares las pueblan, únicas ante Dios y en el tiempo y sin duda preciosas. Hacia el Oeste, el Norte y el Sur se han desplegado – y son también la patria- las calles: ojalá en los versos que trazo303

302SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas , p. 25-26. 303BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras completas, p.17.

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Seguramente um dos poemas mais significativos da colêtânea, nessa

representação as ruas de Buenos Aires são como entranhas, isto é, fazem parte do

universo mais íntimo do autor e o constitui. Em seu percurso imaginário a escritura

poética borgeana faz com que ele (escritor) e a cidade de Buenos Aires se confundam.

Percebe-se que desde então, o escritor ao longo de sua obra transita pelas ruas de

Buenos Aires, por seus encantos mais ocultos e a cidade ganha nova estatura em seus

debates sobre argentinidade, criollismo e tradição gauchesca.304 Núcleo nervoso desse

momento, Buenos Aires passa a funcionar como plataforma para as idéias sobre

identidade dos argentinos e lugar onde Borges pode ensaiar a consecução de uma

comunidade literária frente ao caos estabelecido pela metroplização em curso.305Assim,

expresso em forma poética e não em inflamados manifestos, Borges parece entregar-se

a um sútil ceticismo em Fervor de Buenos Aires. Esta postura fervorosa indica também

a contrapartida da reação borgeana frente ao processo modernizador: as ávidas ruas e o

incomôdo da multidão do primeiro poema de Fervor de Buenos Aires de Borges

ofertam ao partícipes da modernização o seu mais ardoroso Réquiem:

O jovem poeta prefere perambular ao redor, ao pôr do sol, quando o alvoroço da cidade moderna começa ser mais humano. Em poema após poema ele fala sobre praças e as árvores, as casa e os pátios, os campos para o quais as últimas ruas abriram. Ele vagueia e medita, ele sente e sonha, ele é superado por desejos e alucinações. Uma constante indagação metafísica corre sob suas andanças.306

Neste Réquiem“As ruas” é o poema de abertura em Fervor de Buenos Aires. E

Fervor de Buenos Aires o primeiro livro de Jorge Luis Borges após o regresso a Buenos

Aires em 1921. Nesse canto começa a se gestar na imaginação borgeana um dos temas

mais característicos desse período e que se torna evidente em sua obra vindoura: as ruas,

o bairro, e o subúrbio com suas transformações; as aventuras de homens cuja bravura os

entregam a destinos fatais; os cuchileros que marcam presença em seus duelos

frequentemente manchados pela idéia de honra e lealdade. Assim, de nossa parte parece

insofismável os liames que conduzem o fingimento, o imaginário de Borges em Fervor

304 SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, 31-67. 305 Refiro-me a idéia de que aquilo que preservava uma continuidade e senso de comunidade desde os tempos em que Buenos Aires era uma pequena aldeia recebeu com a modernização um forte golpe. 306 MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: a literary biography, p. 176.

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de Buenos Aires como um locus literário perpetuamente em construção para a

referência dos argentinos. De fato, esses lugares passam a funcionar como instâncias de

um imaginário possível dos termos de oposição e metamorfoses que a cidade sofre, se

tornando temáticas privilegiadas na literatura de Borges do período e do porvir.

No processo de transformação intensa, Buenos Aires surge, nas palavras de

Angel Rama, como as “cidades aluviais”307 que emergiram depois da Primeira Guerra

desenvolvendo um processo de aceleração de ordem universal propiciadas pelos

impérios do momento (Inglaterra, França, Estados Unidos). Ao regressar a Buenos

Aires depois de um longo período em Madrid, Borges ensaia a consecução daquilo que

tanto o impactou na sua chegada: a cidade se transformara em desaguamento prático das

diversas crenças sobre progresso, futuro e modernização. Dessa forma, “As ruas”

inaugura as representações borgeanas dessa capital alterada e inicia sua resposta a

questão de qual é o mundo desejado, a cidade desejada.

Nesse sentido, a construção imaginária de Buenos Aires é importante dentro da

função que as capitais exercem como centros representativos da dinâmica de uma

ruptura, e não a Argentina em sua totalidade.308 Borges foi testemunha de como sua

cidade se transformou e a própria possibilidade do escritor expor pela via da literatura

essa estranheza, é fruto dessa capitalidade que em Buenos Aires aparecia com muita

força.

Com efeito, pode-se conjecturar que “As ruas” se presta à imaginação de outras

possibilidades interpretativas. Uma das mais centrais se traduzem na confecção do

imaginário através das ruas, elemento bastante presente em vários poemas borgeanos da

coletânea de Fervor. Na tentativa de consagração de outros universos, na criação de

espaços diferenciados para responder a essa nova realidade, Borges transforma as ruas

de Buenos Aires na pátria dos argentinos como ele mesmo diz em sua poesia: y son

también la patria- las calles: ojalá en los versos que trazo.309

Pretendeu-se, desta feita, compor imaginários através dos quais por mais que a

metrpolização tivesse imposto seu ritmo e alterado a fisionomia do tecido citadino,

esses lugares jamais deveriam ser olvidados e por sua vez pertenceriam ao repertório

imaginário dos portenhos. A Buenos Aires que Borges traz na memória através das ruas

e arrabaldes é tudo aquilo que imaginário e tradição se completam na tentativa de 307 RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino Amerericanos, p. 79. 308 Ibid., p.117. 309 BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras completas, p.17.

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formarem uma entidade única e na qual todos se referencializem. A estratégia adotada

por Borges de consagrar a si mesmo estes lugares esbarra na angústia da solidão, como

afirma Beatriz Sarlo. Desta forma, Jorge Luis Borges compartilhando o dividendo de

seu sentimento tenta juntar os resquícios daquilo que ele reconhecia como mundo

familiar e seu:

Nas imagens de seu universo cotidiano (tudo que é autenticamente poético, Borges parte de sua própria experiência vivida, mesmo que ele coloque a máscara da erudição, das citações literárias, dos fantasmas livrescos) culmina uma poesia de Buenos Aires ou do mundo completamente destituída de intenção folclórica. Isto ilustra uma sensação de felicidade que é impessoal por que como bem compartilhou aquele dividendo, mas também a angústia que sente um homem que é como os outros e ao mesmo tempo não é ninguém.310

Assim, perderam-se os parâmetros identificadores e cria-se, nas palavras que

podem ser depreendias das análises de Emir Monegal, uma felicidade estranha. Jorge

Luis Borges sente intensamente o processo modernizador por qual passava as ruas de

Buenos Aires, que ele considera como suas entranhas. As ruas e avenidas de sua cidade

natal estão passando por um feroz processo de metamorfose e o escritor constata que já

não há mais referências, a não ser as que estão em vias de ser construídas. Tudo se

esvai. Borges põe em referência uma representação fragmentada do espaço territorial e

da unidade dos argentinos, o que acontece de forma paradoxal, pois os espaços

imaginariamente criados terminam por celebrar o fim de uma época tão cara ao escritor

e a muitos argentinos do período.

Por seu turno, o processo de transformação da cidade de Buenos Aires trouxe

consigo a destruição dos mitos argentinos que vinculavam estreitamente o futuro com o

passado e mediante tal quadro, acarretou como efeito quase imediato a autonomização

de duas instâncias: a do futuro entregue de todo a sua imprevisibilidade e, ao mesmo

tempo convertido em obsessão e a do passado que perde sua coerência organizativa e se

converte por completo em espaço patrimonial. Na verdade, aquela tão almejada antiga

convivência citadina, a nosso ver, jamais voltaria estar presente num cenário

ineditamente transformado como o buenairense, pois o passado já não funcionava como

parâmetro seguro para as ações futuras.

Se assim não fosse, o fingimento borgeano não instauraria a literatura como

principal motor da promoção do imaginário, como agente agregador e, sobretudo, como 310 MONEGAL, E., Borges par lui-même, p.40.

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promessa de continuidade. Vale ressaltar, que os escritos borgeanos se inscrevem numa

direção contrária a muitos dos intelectuais da sua época e, na contramão destes, passa a

celebrar em sua imaginação ficcional uma Buenos Aires do passado. Em seu processo

irrealizador, Borges apresenta a Buenos Aires do passado como algo inteiramente digno

de confiança, justamente por ser mais palpável do que a fisionomia sinistramente

risonha do futuro moderno, tanto pelo que apresenta de novo, veloz, e, sobretudo pelo

que tem de incerto. Assim, o escritor dá início a sua empreitada de construção de elos

com um passado que se configurou cada vez mais frágil frente a uma modernização que

Borges enxerga como diluidora de importantes vínculos. As mudanças já não são

impulsadas pelo movimento que asseguraria o deslizamento natural do passado ao

futuro pela mediação do presente. A iniciativa de Borges abre passo para uma relação

mediada entre o passado à custa de um futuro que se experimenta como imprevisível e

ameaçador.

Um outro poema significativo acerca da relação do escritor com a cidade de

Buenos Aires é “Rua desconhecida”, nele a interpretação de Buenos Aires aparece

tecida pela conotação duvidosa, impregnada de elementos que se esvaem no tempo. A

cor oscilante da tarde aparece juntamente com a sensação do que seu perdeu. Percebe-se

a atmosfera nostálgica, fruto do sentimento daquilo que era considerado como

reconhecível, e agora não é mais. Na metáfora bíblica do Gólgota, a cidade e as relações

que o escritor mantém com determinados lugares, espaços familiares, de outrora,

parecem caminhar para o seu fim. Buenos Aires se torna o espelho de outros lugares, na

qual o escritor, traduz em concreto sua percepção pessoal da cidade:

Quizá esa hora de la tarde de plata diera su ternura a la calle, haciéndola tan real como un verso olvidado y recuperado. Sólo después reflexioné que aquella calle de la tarde era ajena, que toda casa es un candelabro donde las vidas de los hombres arden como velas aisladas, que todo inmeditado paso nuestro camina sobre Gólgotas311.

311 BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras Completas, p.20.

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Desta maneira vemos o desenrolar de uma ampliação da dimensão do sentimento

de perda do escritor com a cidade. Mas tal fato não impede de que o escritor, na figura

do declamador engmático, manifeste seu afeto de maneira acintosa e sentida. O

sentimento de emoção provocado pela descoberta de uma rua até então desconhecida, é

projetado na própria rua, lugar de preservação dos tempos remotos. O sentimento

despertado pela descoberta faz ativar a recordação de um passado distante e perdido.

Mais do que cenário, a cidade é irreal (fazendo-a tão real como um verso esquecido e

recuperado) em “Rua Desconhecida”. De fato, torna-se cada vez mais inequívoca as

reflexões que víamos desenvolvendo anteriormente: ao irrealizar Buenos Aires, Borges

mistifica sua cidade natal e a transforma em protagonista da narrativa. Assim, no

Réquiem orquestrado pelo escritor ela torna-se sujeito da trama e provoca nele, a

reflexão antes inexistente e acentua a vinculação afetiva com a cidade.

Nos procedimentos poéticos em Fervor, a representação imaginária parece

assumir a função de permuta do real fortuito e arriscado da nova cidade e conservar nela

as bases da urbe lida por Borges. O universo citadino particular que Borges cria, tenta

compensar, ao menos parcialmente, a perda dos referenciais antigos com a restauração

imaginária de uma Buenos Aires que a modernização solapou. Esta restauração precisa

lidar com alguns elementos complexos: novo traçado urbano, imagens do moderno,

máquinas e assemelhados, e a presença acentuada de imigrantes. A maneira de Borges

exorcizar as manifestações do moderno é encontrar um espaço físico, costurado

evidentemente pela imaginação, que consiga se manter alheio às transformações.

Nesses ambientes, a ritmação do cotidiano era medida pelas pausas impostas pelo estilo de vida, como os momentos de fruição do mate, por exemplo, e não pelos relógios modernos. As referências esparsas aos imigrantes embutem lamúrias de um mundo que está se esboroando, dando alento às queixas pela perda de traços nativos. O jovem Borges assumiu uma postura lírica defensiva, resistindo a tratar literariamente dos elementos modernos e cosmopolitas de Buenos Aires, então em ritmo frenético de mudança.312

Configura-se, então, um espaço geográfico imaginário que faz parte da “mobília

mental” borgeana. Na verdade, para Borges parece não importar tanto que a cidade

imaginada seja pouco verossímil aos olhos dos observadores: extrái-se da tal postura o

valor da ressonância, que a adoração pela Buenos Aires antiga refute a perspectiva de

transformação abrupta e afirme, pela ficcionalidade, a verdadeira e ainda que

312 MICELI, S., Jorge Luis Borges: história social de um escritor nato, p. 176-177.

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paradoxalmente irreal, face de Buenos Aires e da Argentina. Em suma, entre lugares e

temporalidades dissonantes, o Réquiem ficcional da autoria de Borges dá ensejo a

imaginação de uma Buenos Aires que priorize não o centro radicalmente alterado, mas

as caminhadas em seus arredores, os poentes, praças e subúrbios que conservam com

mais transparência os registros da cidade antiga e que o fazem sentir parte da genealogia

portenha. Este é o recurso praticado pelo autor de Fervor após seu regresso em Buenos

Aires depois de uma longa temporada:

...Causou-me surpresa descobrir que minha cidade natal havia crescido, se alastrara e que agora era muito grande, quase infinita... Era mais que uma volta ao lar, era uma redescoberta. Se nunca tivesse saído do país, fico imaginando se alguma vez teria visto a cidade com o impacto que agora ela me proporcionava. 313

Contudo, a relação que Borges mantém com o passado é mais intensa quanto

mais volátil ela se apresenta. Em seu ato de fingimento, Borges cria uma cidade

hipotética através da expansão, repetição e supressão daquilo que o aflige. Mas ao

mesmo tempo em que Borges cria uma cidade imaginária tem consciência de que o

passado só pode ser capturado por via da literatura, não voltará jamais. Assim, a

convergência de todos esses atributos e eventos mesclados forma uma nostálgica

imagem tanto literária quanto do passado da nação argentina. De fato, Jorge Luis

Borges está plenamente consciente de que não há idade de ouro a restaurar. O que se

visa como projeto é a possibilidade de construção imaginária que na transformação em

curso se torne fundamental e eterno.

Os lugares que Borges recorda se percebe o tempo como história e como

presente: se por um lado a cidade é prova das transformações, por outro ela se converte

no sustento material que faz das mudanças um tema literário. Esta mesma cidade

atravessada pelas novas avenidas e cujo movimento se torna mais veloz pode ser negada

para buscar em seus contornos os lugares que a modernização ainda não chegou. São os

rincões que a poesia borgeana resgata sob a figura dos entardeceres, as ruas, lugares

onde a cidade resiste aos estigmas da modernização ainda que o bairro quase por

completo seja produto de uma intervenção modernizadora.

Borges em seu ato de fingir constrói uma paisagem intocada pela modernidade

em sua versão mais agressiva, onde ainda restam vestígios do campo, zonas marginais

que o escritor semantiza como a Buenos Aires de todos. Igualmente peremptória,

313 BORGES, J. L., Perfis: Um ensaio autobiográfico, p. 86.

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descobrir essa cidade se torna uma operação guiada pelo acaso, pelas andanças e que,

deliberadamente, o escritor renúncia os espaços onde a cidade moderna já havia

plantado seus ritos.314

El arrabal es el reflejo de nuestro tedio. Mis pasos claudicaron cuando iban a pisar el horizonte y quedé entre las casas, cuadriculadas en manzanas diferentes e iguales como si fueran todas ellas monótonos recuerdos repetidos de una sola manzana. El pastito precario, desesperadamente esperanzado, salpicaba las piedras de la calle y divisé en la hondura los naipes de colores del poniente y sentí Buenos Aires. Esta ciudad que yo creí mi pasado es mi porvenir, mi presente; los años que he vivido en Europa son ilusorios, yo estaba siempre (y estaré) en Buenos Aires.315.

Quanto aos quatro últimos versos temos a a recepção um tanto quanto perplexa

de um estudioso da obra borgeana, Carlos Zito:

Esta frase impressiona por sua justeza premonitória. Sobretudo, se pensarmos que quem a escreve tem ainda pela frente mais de quarenta anos de vida. O escritor não duvida em afirmar que Buenos Aires era seu futuro, como se já soubesse que – apesar de seu cosmopolitismo e suas múltiplas viagens por todo mundo – essa cidade periférica do planeta seria o receptáculo de toda sua obra e de toda sua vida. 316

A absoluta crença de se fazer parte de um passado agora inexistente. O impacto

e a nostalgia de ter percebido a destruição do mundo de que era parte constituinte antes

de sua partida para Europa. Na postura borgeana do período, é sintomática a oposição

irredutível entre o mundo do passado, isto é, a irrealidade dos lugares reconhecíveis,

314 MONEGAL, E., Borges par lui-même, p. 33. 315 BORGES, J. L.. Fervor de Buenos Aires. Obras completas, p. 32. 316 ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 53-54.

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palpáveis e o do presente, a qual o escritor concebe como uma realidade degradada e

dificilmente reconquistável.

Se entendermos a postura de Jorge Luís Borges do anos 1920, costurando um

imaginário ao tema da identidade dos argentinos não apenas como manifestação de uma

preocupação imediatista de busca de sistemas de identificação, mas também como

importante elemento de tentativa de explicação para o caráter paradoxal de todas as

formas de identidade, podemos perceber, de forma profunda, o quanto a memória do

escritor desenvolvida literariamente se torna um valioso testemunho para as

contradições do período.

Diante do triunfo da cidade sobre o campo, nas palavras de Angel Rama, ou seja,

no triunfo da polis civilizada contra a barbárie dos não urbanizados, que aliado ao

conceito de progresso propiciou todas as mudanças de que o escritor lamenta, entre elas,

fissura vulcânica, assim como a profunda alteração das relações sociais e a profunda

transformação de Buenos Aires, o discurso de Borges se funde dentro da mais pura

tradição anticosmopolita que tenta recuperar o passado de Buenos Aires através de seus

bairros periféricos, monumentos e outros elementos da tradição portenha, afim de que o

imaginário desta cidade funcione como muleta de um presente que já não se pode

sustentar, por que lhe falta a figura do futuro que Borges tenta ficcionalizar, irrealizar.

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5 Conclusão

Conforme vimos, a modernização pela qual passou a principal cidade

Argentina, Buenos Aires, ao invés de propulsionar uma maior unidade e segurança,

sugeriu níveis inesgotáveis de desintegração e reembaralhamento das relações

cotidianas. As mudanças operadas redundaram em questionamentos acerca da certeza

na crença em um progresso infinito. A difusão da idéia de que os ganhos pertenceriam

a todos, a modernização verticalizada, de cima para baixo, não encontraram uma

contrapartida política ou social, contribuindo ainda mais para a sensação de

estranhamento na nova urbe. De fato, as principais instituições argentinas do período

mantiveram-se absolutamente distantes do corpo da sociedade. Tal corpo enxergava

nos canais políticos poucas possibilidades de levar adiante suas reivindicações. Assim

também, o orgulho ostentado por uma metropolização cintilante esbarrava nas formas

literalizadas de expressão de lamento e perda de sentido.

As transformações ocorridas no perímetro urbano da cidade de Buenos Aires

franquearam o surgimento da problemática da relação do passado com o presente.

Representações simbólicas relevantes sobre o passado comum da cidade foram postas

em xeque em nome de um discurso racional cuja base era a confiança em poder varrer

os incômodos fantasmas de um tempo pretérito não tão bem sucedido.

Atmosfera inebriante, cuja percepção as vanguardas levaram à exaustão. Jorge

Luis Borges opta por construir a ligação entre o passado e a perspectiva do moderno.

Na verdade, percebeu que as possibilidades entre um passado circusncrito e um futuro

dilatado, o presente apareceria frequentemente em sua forma transitória e

imperceptivelmente breve. Assim, o escritor imbuído do espírito vanguardista

conduziu ao paroxismo as modulações de recepção de seus textos e impulsionou

publicamente as pelejas do campo intelectual: os manifesto e os murais.

Pelo exposto das características modernistas, não foi difícil constatar que a

empreitada em que se lançaram adoeceu por um defeito bastante característico

segundo Jaime Alazraki: a narração modernista funcionava mais como pretexto, que

permitia ao autor criar um mundo de impressões, um mundo de sons e ritmos, mas que

esquecia, em muito de seus momentos, dos próprios fatos que estavam romanceando

para extraviar-se em seus próprios devaneios de beleza e encanto. Conforme a crítica

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apontada indicou, a renovação modernista não está motivada por um afã de intensificar

o poder narrativo da prosa, mas está ancorada na tentativa de incrementar sua

capacidade de descrição ou como diz Jaime Alazraki “quietude e não movimento,

descrição, não narração. Este traço explica seu natural declive poético (do

modernismo), sua morosidade, suas demoras. Tudo devia se resumir em beleza”.317

Com efeito, Borges lançou-se contra tais premissas. Reverenciou, como vimos,

uma arte que se esquivasse do dérmico, buscou uma linguagem pura e absoluta. Em

nome do novo, Borges promove uma contrapartida literária estabelecendo uma ruptura

nas letras em Argentina. O novo passa a ser lugar comum na literatura de vanguarda

borgeana e enseja os movimentos de sua postura moderna. Mas como observamos no

desenrolar desta dissertação, Fervor de Buenos Aires ofereceu a oportunidade de uma

outra perspectiva.

Nesse sentido, a forte imigração, fez com que a questão sobre a

heterogeneidade e homogeneidade da cidade aparecesse de forma urgente. Estes novos

personagens compuseram um capítulo importante na configuração da Argentina

moderna. É sinalizadora, então, a tentativa da imaginação em Jorge Luis Borges de

reaver, numa cidade imaginária, a ausência destes novos homens e mulheres. Na

invenção de uma cidade pretérita, estes imigrantes desapareceram e o escritor compôs

uma Buenos Aires de ilusão e fingimento. A estranheza provocada por uma cidade que

se moderniza a ponto de não ser reconhecida pelo escritor, revelou o quanto foi

preciso, para Borges, resgatar imaginariamente uma cidade antiga, longe dos bulícios

da Buenos Aires babélica. Buenos Aires, torna-se assim mais que a simples capital de

uma país. Lá é onde se percebem as transformações que serão irradiadas para toda

Argentina.

Em suma, boa parte da obra de Jorge Luís Borges da década de 1920 se revela

um testemunho para percebermos o quanto a sociedade estava tensionada, com o meio

intelectual vanguardista em verdadeira ebulição. E Borges, enquanto escritor, propõe

uma nova leitura destes tempos conturbados.

Que se compreenda, neste momento final, que este trabalho termina na

estratégia de desenvolver uma reflexão que ultrapassa este movimento. Seguramente,

em algum lugar, incerto ainda, pretende-se-á voltar ao tema de Borges e sua

vinculação com a ficcionalidade imaginária que, como não é difícil de prescrutar, está

317ALAZRAKI, J., La prosa narrativa de Jorge Luis Borges, p 123.

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além do que aqui se disse. No geral, a função dessa dissertação é a de sinalizar e

aprofundar algumas hipóteses interpretativas que certamente aqui não se esgotoram.

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