prisioneiros de guerra na campanha do paraguai...
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Anais Eletrônicos do X Encontro Internacional da ANPHLAC São Paulo – 2012 ISBN 978-85-66056-00-6
Prisioneiros de Guerra na Campanha do Paraguai (1864-1870)
Marcelo Santos Rodrigues1
A guerra do Paraguai (1864-1870) muito pesquisada em seus aspectos militares, ainda
encontra-se com temáticas não exploradas. Entre os temas, o do prisioneiro de guerra,
especialmente aquele capturado pelo exército da Tríplice Aliança e enviados para o império
do Brasil. Assim, o estudo alusivo ao prisioneiro de guerra permite-nos abordar facetas de
uma história social da guerra que envolveu a Argentina, Uruguai e Brasil contra o Paraguai.2
A inexistência de monografias sobre prisioneiros de guerra deve-se a razões de
ordem política e historiográfica. Politicamente, o prisioneiro é aquele que fracassou
militarmente e, por isso, banido da memória nacional. Sobrepondo-se ao esquecimento,
destacam-se características próprias à escrita da história militar tradicional, preocupada em
registrar batalhas, combates e glórias alcançadas no teatro da guerra. Compreende-se, assim, o
fato dos prisioneiros estarem ausentes desta historiografia.
A guerra de Secessão nos Estados Unidos (1860-1864) e a da Criméia, entre Rússia e
França (1853-1856), produziram poucos estudos a respeito dos prisioneiros. Foi com a
Grande Guerra (1914-1918) que a historiografia internacional demonstrou interesse pelos
estudos dos prisioneiros de guerra, em pesquisas associadas à “nova história militar”.
Entretanto, ainda constitui-se em campo pouco explorado em quase todas as historiografias
nacionais.3
No Brasil, os estudos sobre prisioneiros de guerra são ainda um campo aberto. Sobre
brasileiros aprisionados pelo exército paraguaio existem relatos relevantes, um deles escrito
por prisioneiros sobreviventes do sequestro do navio brasileiro Marquês de Olinda, que
transportava o coronel Frederico Carneiro de Campos, designado para o governo da província
do Mato Grosso.4
Na Revista do Instituto Geográfico do Mato Grosso (1951-1952), Tomo 65 a 68, o
artigo de José Mesquita descreve os sofrimentos dos prisioneiros brasileiros no Paraguai e
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denuncia os maus tratos que levou o presidente da província do Mato Grosso à morte, em 4 de
novembro de 1867.
A Argentina também fez referências acerca do tema também de forma ampla. O
historiador José Maria Rosa, no livro História Argentina, mencionou a incorporação forçada
de prisioneiros nas tropas aliadas, obrigando-os a combaterem compatriotas, a prática de
castigos físicos e o fuzilamento de soldados que deserdavam.5 Garmendia, em seus Recuerdos
de la campana del Paraguay, considerou deprimente e bárbaro punir os prisioneiros que se
recusavam abrir fogo contra a própria bandeira.6 No Uruguai, Carlos Maria Ramirez relatou
situação semelhante ao afirmar que o exército argentino, uruguaio e brasileiro repartiram entre
si prisioneiros que foram vendidos como escravos.
Os registros acima mencionados possibilitam escrever a história social dos
prisioneiros de guerra na Campanha do Paraguai. Mas, para isto, é preciso refletir sobre a
natureza da documentação e do seu corpus documental. Fontes que se encontram, todavia,
dispersas e fragmentadas em arquivos brasileiros. Somente por meio de uma procura
meticulosa podemos escrever a respeito de prisioneiros de guerra.
No Arquivo Nacional do Rio de Janeiro deparamos com menções a prisioneiros
paraguaios no fichário do fundo documental identificado como Guerra do Paraguai. As fichas
não estão organizadas e quase sempre as informações contidas destoam ou não correspondem
aos documentos depositados nos maços. Na busca por amostragem encontramos casualmente
um processo crime julgado pelo Conselho Supremo Militar de Justiça onde um prisioneiro
paraguaio era o réu, mas o desmembramento do processo não permitiu conhecermos o
resultado do julgamento, existindo apenas a denúncia de insubordinação de um prisioneiro.
No Arquivo do Exército, também no Rio de Janeiro, encontramos alusões à
existência de prisioneiros que serviram nas Fortalezas de São João e na Ilha das Cobras,
ambas na corte, e que revelam as condições materiais dos prisioneiros. Essa documentação
refere-se, exclusivamente, a oficiais paraguaios, embora soldados sem patentes predominem
nos batalhões de prisioneiros transferidos para o Brasil.
No Arquivo Público do Estado da Bahia, nos códices que tratam das fortalezas
militares e do arsenal de guerra da província baiana, deparamos com prisioneiros servindo
naqueles locais nos anos da guerra. A pesquisa no arquivo mostrou o caminho feito pelos
documentos que abordam o tema, constituindo-se num modelo que podemos aplicar em
outros arquivos brasileiros.
Outro procedimento necessário é a busca da documentação do chamado depósito de
prisioneiros, criados para hospedá-los no Brasil. Os comandantes desses depósitos expediam
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às autoridades militares e ao ministério da guerra a relação dos prisioneiros falecidos,
hospitalizados, desertores e onde serviam enquanto prisioneiros de guerra. Sabemos, por
exemplo, que a certidão de óbito de um desses prisioneiros foi remetida ao Ministério da
Guerra, como também temos conhecimento que nos regulamentos fiscais do império
aparecem as escriturações com a manutenção de prisioneiros.
À documentação oficial se complementam as narrativas dos jornais editados na corte
e províncias, em que aparecem relatos de episódios envolvendo prisioneiros que viviam
livremente nas cidades. Assim, se os registros oficiais desvendam aspectos da vida material
do prisioneiro, os jornais traçam o perfil psicológico e as representações na sociedade
imperial.
A leitura dos jornais é parte fundamental da pesquisa e exige do pesquisador atenção
para aqueles publicados onde viviam prisioneiros. Não possamos descartar jornais editados no
estrangeiro, como na Argentina, críticos e adversários da política monárquica de D. Pedro II,
onde denunciavam as condições dos prisioneiros de guerra.
Um ponto de partida são os relatórios produzidos pelo Ministério da Guerra. Neles
encontramos mapas com o número de presos paraguaios morando na corte e províncias, e o
esboço das instruções para o tratamento dispensado aos prisioneiros de guerra. Esse esboço
foi elaborado pelo ministro da guerra, Ângelo Moniz da Silva Ferraz, que, diante da
impossibilidade de contar com as câmaras do senado e deputados, em recesso em dezembro
de 1865, redigiu as normativas para regulamentar a questão.
As instruções destinam-se a normatizar o aprisionamento e distribuição dos
prisioneiros pelo território imperial, classificação dos prisioneiros, do seu destino, sustento e
ocupação enquanto residentes no Brasil, assim como da organização dos depósitos e da
fiscalização das autoridades militares e civis. O objetivo das instruções era apresentar o modo
de proceder com os prisioneiros em território nacional.
As instruções baseavam-se nas normativas existentes desde o século XVIII e
princípio do XIX, acordadas por países beligerantes e no direito consuetudinário. Na Europa,
na década de 1860, surgiram os primeiros movimentos para tratar do tema, que foi
internacionalizado, em 1874, na Conferência de Bruxelas, com a criação do estatuto do
prisioneiro de guerra.
No caso da guerra do Paraguai, portanto, uma década antes do estatuto do prisioneiro
de guerra ser editado, essa questão foi tratada a partir do que se conhecia. Ainda é preciso
comparar as instruções editadas no Brasil com outras idealizadas antes da guerra do Paraguai
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e com a produzida em Bruxelas, para se verificar o grau de importância desse documento
brasileiro.
As instruções determinavam a concentração de prisioneiros em lugares distantes do
palco da guerra, para evitar que pudessem retornar as fileiras de onde saíram. Assim, o
ministério ordenou o envio dos prisioneiros à corte, na proporção em que o governo
despendesse recursos e forças militares para acompanhá-los até o Rio de Janeiro. A par deste
procedimento, as instruções garantiam meios de subsistência, o respeito à religião e as
convenções internacionais de troca de prisioneiros.
É importante destacar que os prisioneiros de qualquer categoria estavam sujeitos às
leis e regulamentos militares, assim, julgados em conselho de guerra por crimes, faltas e
indisciplinas cometidas, da mesma forma que oficiais e soldados brasileiro. As punições
também eram aplicadas a todo prisioneiro que se recusasse ao trabalho.
A primeira premissa em relação aos prisioneiros deveria atender à sua condição, grau
ou posto que ocupasse na hierarquia militar. De mesma forma, ao modo de sua captura, se
submissão ao inimigo no front ou rendição. Em seguida, os soldados capturados eram
repartidos entre as potências aliadas, cabendo a cada uma delas as despesas com a
manutenção dos prisioneiros.
O primeiro assunto da instrução tratou de prisioneiro com patente de oficial. Este,
quando afastado qualquer motivo de suspeita e quando empenhavam a palavra na obediência
das regras estabelecidas, podia seguir livremente para o lugar designado até ulterior resolução.
Todavia, a “quebra da palavra” lhe reduzia à condição de simples praça e ele era posto em
prisão.
O oficial prisioneiro estava subordinado à autoridade militar mais graduada, e na
falta desta, passava à vigilância ao Delegado de Polícia ou qualquer outra autoridade local. O
oficial não mudava de residência sem a prévia autorização do comandante em chefe do
exército ou do presidente da província. A ele era permitido corresponder-se com outros
prisioneiros e pessoas de dentro do império, mas as cartas vindas do exterior ou por ele escrita
para fora do Brasil eram examinadas pelo comando do exército ou autoridades competentes.
O oficial prisioneiro era obrigado a comparecer semanalmente à presença do
comandante do exército brasileiro. Este último estava incumbido de apresentar todo mês um
mapa com informações sobre o prisioneiro para o Ministério da Guerra.
O soldado prisioneiro sem patente era escoltado até a corte ou lugar determinado
pelo ministério da guerra, exceto aqueles empregados nos hospitais e enfermarias. Ponto
polêmico das instruções refere-se ao fato do soldado capturado não assentar praça nas fileiras
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do exército mesmo que voluntariamente. Tal situação era denunciada pelos jornais argentinos,
mas faz-se necessária pesquisa para averiguação se as instruções não eram respeitadas. No
caso do Brasil, ainda não encontramos evidências para essa questão.
O Ministério da Guerra considerava fora da classe de prisioneiros: capelães, médicos,
enfermeiros, fornecedores, negociantes que acompanham o exército inimigo, as mulheres e
todos que não participavam diretamente das lutas. De toda forma, estes elementos eram
retirados do cenário de guerra.
As instruções previam a criação de depósitos de prisioneiros comandados por um
oficial reformado, ou da 2ª classe do estado-maior, e contava com oficiais inferiores para a
fiscalização, disciplina e detenção do prisioneiro de guerra, caso necessário. Assim, ficou
marcado que, para cada grupo de 50 prisioneiros, houvesse um guarda para vigiá-los e
inspecioná-los, e um interprete que frequentemente fosse retirado dentre os prisioneiros.
Para melhor vigiar os prisioneiros que viviam no depósito, estes eram obrigados a
apresentarem-se às revistas e chamadas diárias. Aquele que faltasse a revista, com exceção
dos doentes ou com licença do comandante, eram punidos com prisão.
O prisioneiro também podia exercer, por bom comportamento, sua profissão dentro
dos limites da povoação onde residia, retornando à noite ao quartel, onde era obrigado a
pernoitar e a se apresentar às revistas realizadas pela manhã e noite. O prisioneiro também foi
empregado em obras públicas, como construção de estradas e demais serviços do Estado,
recebendo, além do soldo e fardamento, uma gratificação pelo trabalho realizado e
atendimento médico.
O trâmite burocrático para utilização de prisioneiros pelos ministérios imperiais era
relativamente simples. O ministério que pretendesse empregá-los dirigia-se ao da guerra
através de requisição, declarando o número de trabalhadores necessários, a natureza do
trabalho e as providências para o aquartelamento, manutenção e segurança. Dessa maneira, o
trabalho permitiu ao prisioneiro relacionar-se com a sociedade, participando do mundo fora
dos quartéis. Nesse convívio social, correspondia-se com outros prisioneiros, assim como com
paraguaios que viviam no Brasil, obtendo informações sobre a guerra e a situação do seu país.
Finalmente, as instruções previam mecanismos que possibilitavam ao prisioneiro de
guerra reclamar sobre as condições que viviam, exigindo do comandante entender-se com
autoridades civis e militares para resolver as situações reclamadas. Por outro lado, era
terminantemente proibida a reunião pública ou privada de prisioneiros, tendo como castigo a
prisão. Dessa maneira, as autoridades afastavam qualquer tipo de rebelião.
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Segundo o relatório ministerial, a soma de presos em 1º de maio de 1868 era de
1.145 paraguaios distribuídos nas províncias e corte. Na capital do império, existiam 913
presos, nas províncias da Bahia e Pernambuco 50, na do Pará 60, no Rio Grande do Sul, 45, e
na de Santa Catarina, 27. Esses números, todavia, tratam dos remetidos para o Brasil nos três
primeiros anos de guerra, entretanto, devemos também destacar que a República argentina e a
uruguaia também receberam grande número de prisioneiros.
Dois outros mapas revelam informações importantes sobre os prisioneiros. No
primeiro, organizado pela repartição de guerra, pelo tenente-coronel e chefe de seção,
Francisco Egydio Moreira de S. Pedro, em 15 de abril de 1869, aparece novo contingente de
prisioneiros disseminados nas províncias citadas, acrescida a do Espírito Santo. Nele,
apresenta-se o número de oficiais distinguidos pelas patentes, assim como o número de
soldados, totalizando 799 prisioneiros. O mapa também trás informações sobre 8 prisioneiros
falecidos.
O segundo mapa apresenta a distribuição de prisioneiros no município neutro,
totalizando 2.466 presos. Interessa-nos o destino que tiveram e o emprego destes pelo governo
brasileiro. A maior parte, 708 prisioneiros, serviu na fortaleza de S. João e o restante foi
distribuído pelas fortalezas de Santa Cruz, Lage, Hospital Militar da guarnição da corte,
Hospital provisório do Andaraí, enfermaria militar da Armação, Hospício de D. Pedro II,
Santa Casa de Misericórdia, Asilo de Inválidos da Pátria, Depósito provisório de 1ª linha,
Primeiro Regimento de Cavalaria, Corpo policial da corte, fábrica de pólvora da Estrella,
Laboratório do Campinho, Campo Grande, Estrada de ferro D. Pedro II, Escola Militar,
Arsenal de guerra da corte, Quartel general da marinha, Picadeiro da guarda nacional e Linha
telegráfica. O mapa ainda apresenta o número de 66 prisioneiros hospitalizados, 4 licenciados,
8 ausentes e a existência de 22 prisioneiras paraguaias.
A Secretaria do Conselho Supremo Militar, em 31 de março de 1870, data do
encerramento da guerra, também apresentou ao Ministério da Guerra, o mapa estatístico dos
crimes cometidos por prisioneiros que foram julgados pelo Conselho Militar de Justiça no ano
de 1869. Nele encontramos o tipo de crime cometido e as respectivas penalidades.
Os crimes que prevaleceram foram os de deserções simples, desrespeito a sentinelas,
espancamento, ferimentos, insubordinação, insultos e roubo. Todavia, as penas sofridas não
são identificadas. Importa destacar que as mencionadas fortalezas e repartições públicas,
assim como os julgamentos realizados pelo Conselho Militar de Justiça, geraram rica
documentação.
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As instruções criadas para normatizar a vida do prisioneiro de guerra acabaram
originando abundante documentação. Estas, como os mapas, servem para quantificar e
visualização de aspectos do cotidiano dos prisioneiros. Mensalmente os comandantes do
depósito registravam os nomes dos prisioneiros, suas idades, naturalidades, filiações, local de
residência, baixa do hospital, deserções, falecimentos e mais circunstâncias que envolviam os
capturados na guerra.
Essa comunicação teve o objetivo de revelar a possibilidade de se escrever uma
história social da guerra do Paraguai, através do estudo dos prisioneiros de guerra, presentes
na massa documental identificada nos arquivos brasileiros e em fase de análise.
1 Universidade Federal do Tocantins, Doutor em História – USP. 2 A pesquisa intitulada Prisioneiros de guerra na Campanha do Paraguai encontra-se em fase inicial e as considerações aqui apresentadas são resultados dos primeiros estudos e pesquisas realizadas em arquivos históricos que guardam importante acervo sobre a guerra do Paraguai (1864-1870). A pesquisa envolve alunos bolsistas da graduação em história. 3 MENESES DE FREITAS, Maria Helena Brandão Cardoso de. Contribuindo para a história do prisioneiro português na guerra de 1914/1918. Revista de Ciências Históricas. Universidade Portucalense, v. II, 1987, p. 325-340. 4 LEMOS BRITO, José Gabriel. Guerra do Paraguay – narrativa histórica dos prisioneiros do vapor “Marques de Olinda”. Bahia, Lit. Tip. E Encadernação Reis & Cia, 1907. 5 ROSA, José María. História Argentina (1492-1946), 13 tomos. Buenos Aires: Juan C. Granda, 1965. 6 GARMENDIA, José Ignacio. (1843-1925). Buenos Aires: Casa Editora de Jacobo Peuser, 1884.