polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de...

21
Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998 ISBN 85-903587-3-9 1 1 Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de natureza amazônica em Alexander von Humboldt Renato Lopes Leite 1 RESUMO Propôs-se observar a descrição sobre natureza, de Humboldt, como uma conseqüência científico-ilustrada para reforçar/constatar/aprofundar o problema do direito natural. Ou seja, até que ponto Humbodlt procura (inconscientemente) constatar a validade histórica e lógica da tese sobre a transição da sociedade natural para o Estado civil? Se, por um lado, é perceptível a influência de escritores como Goethe, Herder e Schiller sobre a visão romântica da natureza de Humboldt. Por outro lado, é menos óbvio a possível influência do pensamento crítico de Kant sobre o naturalismo do historiador descritivo e do analista “viajante”, como Humboldt. Este último ponto, porém, é de difícil demonstração, pois Kant se afasta do “empirismo natural”, perspectiva à qual Humboldt também se aproxima. Foi assim que a possibilidade da influência de Rousseau sobre Humboldt surgiu como forma de se averiguar a importação descritivo-conceitual da natureza enquanto estado pré-político. Ou seja, a natureza que se contrapõe ao poder do papado, e desde o século XVI fundamenta a idéia de um poder secular, temporal, não religioso e revolucionário. A própria palavra “Estado”, em seu sentido moderno de burocracia-governamental, aparece entre os séculos XV-XVII. E também a idéia da política totalmente independente da igreja é formulada nitidamente no final do século XVI. Ou seja, o argumento da revolução, fundamentado através da doutrina da soberania popular, baseia-se na tese da transição do estado da natureza para a uma associação política de homens com liberdade moral. Por isso Rousseau se preocupa em descrever a liberdade natural hipotética do ente selvagem no estado da natureza. O problema parece ser, pois, que a palavra, idéia e conceito de natureza migram da política para a matemática, entre o século XVII e XVIII. Natureza, assim, passa a ser duplamente importante para a geração que viveu o século XVIII. A natureza sustenta a física, a matemática e a ciência. E Natureza também é uma das principais idéias da filosofia política, porque é ela que fundamenta a doutrina da soberania (tanto popular, quanto absolutista). Foi esse caráter polissêmico da palavra natureza que se procurou sublinhar em alguns dos textos sobre Amazônia, de Alexander von Humbodlt. 1 Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná - Curitiba - Brasil

Upload: hathuan

Post on 12-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

1

1

Polissemia da palavra natureza: descrição e conceit o de natureza amazônica em Alexander von Humboldt

Renato Lopes Leite1 RESUMO

Propôs-se observar a descrição sobre natureza, de Humboldt, como uma conseqüência científico-ilustrada para reforçar/constatar/aprofundar o problema do direito natural. Ou seja, até que ponto Humbodlt procura (inconscientemente) constatar a validade histórica e lógica da tese sobre a transição da sociedade natural para o Estado civil? Se, por um lado, é perceptível a influência de escritores como Goethe, Herder e Schiller sobre a visão romântica da natureza de Humboldt. Por outro lado, é menos óbvio a possível influência do pensamento crítico de Kant sobre o naturalismo do historiador descritivo e do analista “viajante”, como Humboldt. Este último ponto, porém, é de difícil demonstração, pois Kant se afasta do “empirismo natural”, perspectiva à qual Humboldt também se aproxima. Foi assim que a possibilidade da influência de Rousseau sobre Humboldt surgiu como forma de se averiguar a importação descritivo-conceitual da natureza enquanto estado pré-político. Ou seja, a natureza que se contrapõe ao poder do papado, e desde o século XVI fundamenta a idéia de um poder secular, temporal, não religioso e revolucionário. A própria palavra “Estado”, em seu sentido moderno de burocracia-governamental, aparece entre os séculos XV-XVII. E também a idéia da política totalmente independente da igreja é formulada nitidamente no final do século XVI. Ou seja, o argumento da revolução, fundamentado através da doutrina da soberania popular, baseia-se na tese da transição do estado da natureza para a uma associação política de homens com liberdade moral. Por isso Rousseau se preocupa em descrever a liberdade natural hipotética do ente selvagem no estado da natureza. O problema parece ser, pois, que a palavra, idéia e conceito de natureza migram da política para a matemática, entre o século XVII e XVIII. Natureza, assim, passa a ser duplamente importante para a geração que viveu o século XVIII. A natureza sustenta a física, a matemática e a ciência. E Natureza também é uma das principais idéias da filosofia política, porque é ela que fundamenta a doutrina da soberania (tanto popular, quanto absolutista). Foi esse caráter polissêmico da palavra natureza que se procurou sublinhar em alguns dos textos sobre Amazônia, de Alexander von Humbodlt.

1 Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná - Curitiba - Brasil

Page 2: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

2

2

I - O problema da classificação das formas da natureza

“... A recordação de um país distante e abundante em todos os dons da natureza, o aspecto de uma vegetação livre e vigorosa, reanimam e fortificam o espírito; oprimidos pelo presente, nos deleitam em fugir dele para gozar dessa singela grandeza que caracteriza a infância do gênero humano2.”

As conclusões sobre o problema do conhecimento da biologia são muito tardias,

apesar do objeto da biologia impor-se, como concepção direta das coisas, à ciência e à

filosofia do século XVIII.

Kant é o primeiro a pôr esta questão, ao problematizar sobre a possibilidade de

uma “ciência natural matemática”. Tal ciência abarca, para Kant, “...a totalidade do

conhecimento da natureza”. O “estudo da natureza” não admite outro tipo de

conhecimento, porque “...o estudo científico da natureza e seu estudo matemático são

uma e mesma coisa”. Ou ainda, em “... qualquer teoria especial sobra a natureza...”3 só há

verdadeira ciência onde há de matemática.

Porém, em 1790 Kant esboçou uma mudança decisiva de rumo, ao afirmar a

“autonomia” metodológica das leis da física em relação à biologia.

A unidade entre física e biologia já havia sido tratada. Por exemplo, Aristóteles

retira a “ciência da natureza” dos fenômenos da vida e da concepção geral do devir: as

categorias de “matéria” e “forma”, de “possibilidade” e “realidade”. E, também Leibniz

“Separa o conceito das ´formas plásticas´ da consideração da natureza e exige que todos e cada um dos fenômenos desta se expliquem com regra/ordem [arreglo] às mesmas leis, ou seja, de um modo ´matemático e mecânico´”4.

É este o problema com o qual Kant se debate no final do século XVIII: delimitar

novamente os campos da biologia e da “ciência natural matemática”. Para tanto, Kant

propõe-se modificar o conceito crítico de objeto. Ao solucionar a contradição entre

natureza e condições gerais a que o conhecimento da natureza está sujeito, Kant nota que

todo objeto da natureza deve ser enquadrado, por princípio, no marco que estas condições

traçam.

Mas, como conseguir a “autonomia” da ciência biológica? Kant propõe solucionar

o problema através da análise do conceito de fim. Isto porque o conceito de organismo,

2 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. São Paulo, W. M. Jackson Inc. Editores, 1964, volume I, p. 212 (original não grifado). 3 CASSIRER, Ernst. El problema del conocimiento: de la muerte de Hegel a nuestros días. Mexico, FCE, 1948, p. 173 (original não grifado). As obras estrangeiras foram livremente traduzidas. E no caso das obras de Humboldt em português fez-se atualização ortográfica. 4 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 174 (original não grifado).

Page 3: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

3

3

para Kant, não pode confrontar-se sem cair no fator da adequação a um fim: “´um produto

orgânico da natureza é aquele em que tudo é fim e, reciprocamente, meio´”5, diz Kant.

Sobre a validade metodológica do conceito de fim, Kant recorre à diferenciação

lógica de significado dos conceitos de “subjetivo” e de “objetivo”. Isto porque todos os

conceitos da filosofia kantiana não aspiram a ser outra coisa que princípios dos

fenômenos. Têm pois por objetivo ensinar-nos a “´adivinhar [deletrear] os fenômenos

para lhes poder ler como experiências´”6. Enfim, o problema se reduz à relação entre o

tipo de conhecimento causal e o teleológico. A única pergunta que Kant faz é:

“...é possível e tem algum sentido conhecer os fenômenos, ao mesmo tempo, como sujeitos às leis naturais, ou seja, submetê-los ao princípio geral e dinâmico da causalidade, se forem considerados do ponto de vista da finalidade, classificados e ordenados com regra/ordem [arreglo] a ele”7.

O conceito de fim tem em vista a estrutura dos objetos empíricos denominados

fenômenos. Para reconhecer esta estrutura como tal, basta “...examinar um ser próprio -- o

ser das ´formas naturais´-- e concebê-lo em sua sistemática ordenação como uma

unidade...”. A unidade e a estrutura da biologia “... Enfoca a natureza de um ponto de vista

de um todo de tal índole que determina a natureza e as qualidades das partes. ...”8.

Kant só destina ao princípio de fim esta missão de conhecer a natureza, a qual não

deve confundir-se com seu conhecimento matemático. Atendo-se aos princípios

puramente mecânicos da natureza jamais se poderia chegar a conhecer devidamente os

seres orgânicos e sua possibilidade interna, muito menos sua existência pura e seu

verdadeiro modo de ser.

“´...A definição das combinações e das formas naturais com fins às normas é, pelo menos, um princípio mais para ajudar a reduzir os fenômenos naturais à ordem ali aonde não chegam as leis da causalidade, atentando-se ao simples mecanismo deles´”9.

Kant rechaça a tese positiva do conceito aristotélico de forma e de fim. E rechaça

também a tese negativa de Spinoza, segundo a qual o conceito metafísico das ciências da

natureza revela-se como um antropomorfismo único, capaz de impedir o estudo universal

da natureza. Kant “...considera sua meta alcançada quando logra compreender as

´especificações das leis gerais do entendimento´ como ´leis especiais da natureza´ que

Newton formulou e derivou de alguns princípios gerais”10.

5 KANT apud CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 176 (original não grifado). 6 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 176. 7 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 177 (original não grifado). 8 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 177, 178 (original não grifado). 9 Kant apud CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 178 (original não grifado). 10 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 180 (original não grifado).

Page 4: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

4

4

Enfim, Kant seguiu um caminho próprio porque o campo da biologia, no século

XVIII estava no começo. Porém, Kant partiu da forma científica concreta da biologia de

seu tempo para investigar a seguinte questão: como era possível a estrutura ou condições

de base desta ciência?

A lógica e a biologia estavam intimamente relacionadas desde Aristóteles, pois a

lógica aristotélica é uma lógica dos conceitos de classe, sendo pois, indispensável para a

descrição científica das formas da natureza. Na biologia dos séculos XVII e XVIII

permanece este predomínio dos conceitos de classes. Pois, “...a biologia assiste a um dos

maiores triunfos do conceito de classe com o Systema naturae (1735) e a Philosophia

botânica (1751) de Linneo. Tais obras haviam estabelecido uma classificação sistemática

das formas da natureza”11. Ou seja, o conjunto dos seres vivos se agrupava em espécies e

gêneros, ordens e classes, e assim era possível assinalar o lugar que cada um ocupava

dentro deste plano geral.

Kant se pergunta, então, sobre o enigma da coincidência entre a natureza e nosso

conhecimento: “... O que nos autoriza a considerar a natureza como um todo revestido

com a forma de um sistema lógico e que só pode ser tratado com tal? De onde precede e

sobre o que se apóia esta harmonia entre as formas naturais e as formas lógicas? ...”. Aqui,

os princípios12 condicionadores de toda experiência possível, ou seja, os princípios

ordenadores empíricos dos fenômenos no espaço e no tempo, tais princípios

desenvolvidos por Kant não servem para explicar o enigma proposto. Isto porque se tais

princípios fossem suposições explicativas, seriam pensados “... como elementos

constituintes do conceito de natureza em geral: se concebêssemos uma natureza, não

teríamos mais remédio que concebê-la sujeita à regra a que tais princípios superiores

servissem de expressão”13.

Porém, isto não ocorre com os conceitos de classe e espécie, devido à diversidade

irredutível da variedade de manifestações da natureza. Assim, “... Não cabe dúvida de que

semelhante natureza seria um cosmos14, e não um caos, pois seria regida por leis gerais.

...”15.

11 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 181 (original não grifado). 12 Trata-se do princípio causal e dos princípios sintéticos. 13 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 182 (original não grifado). 14 A última obra de Humbodt tem este título. Quase um século depois, Humboldt ainda discute o mesmo problema, concebendo a natureza como uma unidade cósmica. Isto mostra a importânicia do debate que se está travando no século XVIII. 15 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 182 (original não grifado).

Page 5: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

5

5

Este tipo de natureza apresenta-se a nós como uma ilusão, pois não é possível

aceitar semelhante disparidade das formas do ser. O filósofo, porém, tem que investigar o

princípio sobre o qual descansa tal ilusão. “... Kant elege, para designar este princípio, o

nome de princípio da adequação formal, no qual não vê, como nos princípios gerais da

substancialidade e causalidade, uma lei do entendimento puro, mas apenas um princípio

do ´juízo reflexivo´”. Ou seja, tem-se “... que partir sempre, necessariamente, do

pressuposto de que a natureza não só procede com sujeição a lei quando se lhe considera

como um todo, senão que também em suas manifestações particulares revela uma

ordenação constante, e todas as suas formas acusam determinadas relações de maior ou

menor semelhança, de maior ou menor afinidade. ...”16

Trata-se, pois, de uma “máxima”. Tal “máxima” sublinha o enfrentamento entre

razão e natureza: “Conseguirá está máxima impor-se? Será factível estabelecer uma

sistemática completa das formas de natureza baseada em classes e gêneros, famílias e

ordens? Isto só poderá ser decidido pela experiência. ...” 17.

Kant deu a esta concepção do problema uma expressão curiosa, ao chamá-la de

“adequação” da natureza ao entendimento ou ao juízo humanos. Porém, este princípio da

“adequação formal” e suas conseqüências figuram dentre os problemas de maior

complexidade. Por fim, Kant esclarece o problema que se esconde na obra de Linneo.

Linneo foi um brilhante observador, lógico incansável e naturalista com mania de

classificar os fenômenos, colocando-lhes uma etiqueta. Porém, o grande progresso no

sistema de descrição das plantas suscitou dúvidas no aspecto epistemológico, dúvidas

para as quais o próprio Linneo era sensível. “... Que teremos conseguido, ainda que

abarquemos com uma olhada o conjunto do mundo vegetal, por meio deste sistema? Nos

moveremos por ele no terreno das coisas, ou simplesmente no dos nomes? Por acaso a

nomenclatura binária que aqui se introduz é algo mais que um simples recurso

mnemotécnico, útil sem dúvida desde um ponto de vista subjetivo, porém que em nada

nos ajuda a aprofundar na natureza das coisas?” 18.

O próprio Linneo sabia que para obter um “sistema natural” (a meta suprema da

botânica de Linneo) era necessário tomar em consideração todos os órgãos das plantas, e

não somente seu sistema sexual. Neste sentido, Linneo distinguia entre ordens naturais e

16 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 183 (original não grifado). 17 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 183 (original não grifado). 18 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 186 (original não grifado).

Page 6: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

6

6

artificiais, atribuindo à segunda um certo valor enquanto diagnóstico das formas da

natureza, porém sem reconhecer-lhes o mesmo valor no tocante ao conhecimento.

O problema, agora, formulava-se assim: as classificações são algo mais que

simples palavras, afetam, na verdade, a realidade mesma e fornecem distinções

“objetivas” nela existentes?

A resposta a esta pergunta foi dada por Cuvier, um pensador biológico empírico

que rechaçava a filosofia da natureza. Formula uma concepção fenomenista da natureza,

segundo a qual a essência da natureza orgânica tem que ser procurada na totalidade das

formas de vida existente. Este fenomenismo da concepção da natureza de Cuvier tem um

caráter kantiano, exemplificável através do conceito de organismo. Para Kant, “... O

organismo não é nenhum conglomerado de partes, pois em cada uma delas se descobre já

a forma do todo” 19.

Enfim, Cuvier desenvolve tal tese no seu conceito de tipo. Ao afirmar que a

anatomia comparada não é simplesmente uma disciplina empírica, Cuvier põe as bases

para a teoria da vida da biologia subseqüente. “´A teoria dos seres vivos é uma ciência

natural pura e não se propõe a outra finalidade que investigar os planos de construção dos

seres vivos, como se originam e como atuam´”20.

Este conceito de “planos de construção” foi introduzido por Cuvier:

“Nenhuma criatura da natureza, por insignificante que seja, deixa de mostrar um plano com regra ao qual está construída e ao que se ajusta com todo rigor na ordenação de suas partes, até o último detalhe. Por esta razão, resulta vão e inútil tratar de circunscrever a biologia ao estudo de fenômenos individuais e empenhar-se em não sair dele. ...”21

Ou seja, Cuvier contra-ataca Lamarck (e conseqüentemente Buffon), afirmando

que a biologia científica só seria factível se pudesse avançar do individual ao geral.

Diferentemente das leis do devir da física e da química, o que a ciência biologia busca são

simples relações estruturais. Por exemplo, através da anatomia comparada é possível

reconstruir a estrutura completa de um animal, baseando-se em uma só peça de seu

esqueleto.

“´ ... Quem conhecer as leis que regem o governo orgânico da natureza e dominá-las racionalmente, poderá, partindo de qualquer peça específica, reconstruir o animal completo. ...´”22 . [É cabível] “... afirmar, com respeito aos

19 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 187. 20 UEXKÜLL apud CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 188 (original não grifado). 21 UEXKÜLL, apud CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 188 (original não grifado). 22 CUVIER apud Cassirer. El problema ..., op. cit., p. 190 (original não grifado).

Page 7: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

7

7

demais órgãos e características orgânicas, não só que possuem determinadas classes da natureza, mas também chegar a compreender por que as possuem”23.

Um outro aspecto do pensamento de Cuvier diz respeito a sua polêmica com os

primeiros defensores de uma “teoria da evolução”. Curver cria as bases do estudo

sistemático da pré-história dos seres vivos, e utiliza tal concepção para fundamentar sua

“teoria catastrófica”. Segundo esta teoria, a terra e os organismos não se desenvolvem por

meio de um processo gradual, mas mediante a morte do antigo e o nascimento do novo.

Enfim, é esta divergência sobre a “natureza das coisas” que induz à famosa

polêmica entre Cuvier com Geoffroy de Saint-Hilaire. Cuvier não defende a “constância

das espécies” como um dogma ontológico ou teleológico, mas simplesmente como um

princípio metodológico. Em 1832, Cuvier diz que cada tipo de animal, dos vertebrados

aos moluscos, dos articulados aos radiados, descansa sobre um determinado plano de

construção, próprio e peculiar a ele: “...eliminar estas diferenças equivaleria a destruir a

possibilidade de uma rigorosa descrição da natureza. ...”24.

De Candolle transplanta ao campo da botânica a concepção fundamental de

Cuvier acerca da missão e dos métodos da ciência descritiva da natureza. Em 1813, este

botânico francês avança de um sistema artificial para fundamentar um “sistema natural”.

Assim, De Candolle se propõe a estabelecer uma teoria da divisão natural em classes,

que deveria basear-se “´nos princípios da lógica´”25. Também ocupa o centro desta lógica

da biologia o problema da validade objetiva do conceito de classe. Enfim:

“... A exigência fundamental que De Candolle põe a uma descrição sistemática da natureza consiste em que se apóie sobre a observação de todos os órgãos, ainda que sem atribuir, naturalmente, a mesma importância a todos eles”26.

O critério utilizado por De Candolle é o conceito de plano de simetria. Assim, a

essência do estudo do naturalista seria a simetria das partes, isto é, “...o todo unido e

combinado, tal como surge da ordenação relativa das partes”27.

Há, por fim, uma perfeita afinidade entre Cuvier e De Candolle. O conceito de

simetria deste, corresponde ao conceito de tipo daquele.

23 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 190 (original não grifado). 24 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 195 (original não grifado). 25 DE CONDOLLE apud CASSIRER. El problema ..., op. cit., p.196. 26 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 197 (original não grifado). 27 CASSIRER. El problema ..., op. cit., p. 198 (original não grifado).

Page 8: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

8

8

II - As “naturezas” no/do pensamento de Humboldt

Estes debates mencionados acima, de que participam Cuvier e De Candolle,

transcorrem mais ou menos entre 1813 e 1832. Humboldt viajou pela América entre 1799

e 1804. Escreveu e publicou suas obras, entretanto, nas décadas subseqüentes. O que

evidencia que seu pensamento é fruto deste debate de subdivisão da filosofia e

consolidação metodológica de outros ramos científicos. Exemplo disso são as ressalvas e

críticas de Humboldt à teoria da evolução de Darwin. E também, e conseqüentemente, o

fato de Humboldt conceber a relação homem-natureza como uma história moral.

Sobressai, portanto, a importância do contexto cultural para se conhecer as

motivações intelectuais de Humboldt na Amazônia. A viagem (iluminismo) e a

experiência (kant) justificam o interesse de Humboldt em aventurar-se num tal

empreendimento. No entanto, fica a questão de por que, como e quando se modificou o

olhar Europeu da/sobre a América?

Iluminismo

As características do pensamento de Humboldt, como universalismo,

enciclopedismo, curiosidade intelectual, gosto pelas ciências naturais e pelas viagens, são

todas propriedades dos sentimentos e idéias do século XVIII 28 . Apesar do

incompreendido “ecletismo” da época, Humboldt é fortemente marcado “par l´esprit dês

Lumières”. Com os Enciclopedistas, Humboldt compartilha, por exemplo, a crença em

uma “... conception unitaire de l´Univers, la croyance en l´origine commune de l´homme,

impliquant une égalité biologique de príncipe, ... et de l´évolution dês sociétés politiques

...” 29.

Humboldt foi seduzido pela viagem não apenas para abandonar o mundo

cotidiano -- em 1796 ele perdera sua mãe --, mas também devido a sua formação

intelectual, às suas leituras mais freqüentes. O contato de Humboldt com a obra de Kant30

parece não haver provocado influência semelhante à leitura de Rousseau. Mas não se trata

apenas do Iluminismo. No caso específico da viagem, as leituras que mais influenciaram

28 Cf. MINGUET, Charles. Alexandre de Humboldt: historien et géographie de l´Amérique espagnole (1799-1804). Paris, Institut des Hautes Études de L´Amérique Latine, p. 69. Nas páginas seguintes, no entanto, o autor prefere ressaltar o aspecto eclético da filosofia do Iluminismo. 29 MINGUET, Op. cit., p. 71.

Page 9: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

9

9

Humbodlt foram “...J. J. Rousseau, Haller, Mac Pherson et Goethe, qui exaltent la

nature, lê voyage, lê retour à l´état de liberte que l´homme recherche loin de la

civilisation”31. Vê-se, pois, que a hipótese originária da presente pesquisa, de averiguar a

liberdade natural existente no estado pré-político, não é fora de propósito para explicar o

pensamento humboldtiano. Isto porque o argumento segundo o qual a teoria da soberania

popular se sustenta no direito natural desenvolve-se entre os séculos XVI e XVIII.

Em meio a tais leituras juvenis da filosofia política de Rousseau, Humboldt, com

apenas 18 anos de idade, já havia formulado um plano de viagem através do globo, onde a

viagem americana seria apenas uma escala32.

Em 1795, Humboldt, então com 26 anos, desejava viajar à América “pour y

mener une vie heureuse et paisible à l´écart dês hommes dits civilisés´”33, projeto em

consonância com os sentimentos de Rousseau.

Enfim, o século XVIII “fut lê siècle dês voyages”. E Humboldt, que viajou para

lugares tão diversos como a Itália, Inglaterra, América e Sibéria, demonstra a preocupação

com a física do globo, com a geografia, com uma realidade espacial dada. E a criação da

geografia, uma outra obra do século XVIII, é atribuída à Kant. Humboldt, que também

deu sua contribuição à geografia, certamente não ignorava Kant neste aspecto específico.

A possível influência de Kant sugere a hipótese, não mencionada por nenhum dos autores

pesquisados, de que Humboldt talvez tenha utilizado o pensamento

sistemático-classificatório transcendental. Esta possibilidade é factível porque Humboldt

se preocupa com minúcias de sistematização conceitual. Por exemplo, Humboldt

distingue a geografia da fisiologia e da história da terra. A geografia, que Humboldt

denomina geognose, ciência da terra, teoria da terra ou geografia física, considera a

natureza orgânica ou inorgânica “sub specie loci”34. Seguindo Kant, Humboldt distingue

entre a descrição da Natureza e a história da Natureza, entre a representação de um estado

e o desenvolvimento da Natureza, entre ser e devir.

Humboldt afirma a importância da descrição exterior da paisagem geográfica, ou

“ tableau de la Nature”, para se perceber as diversas gradações presentes na Natureza.

30 Cf. MINGUET, Op. cit., p. 37, 40. 31 MINGUET, Op. cit, p. 95 (original não grifado). 32 MINGUET, Op. cit, p. 98, 99. 33 HUMBOLDT apud MINGUET, Op. cit., p. 96. Essa influência roussoísta mostra que a hipótese inicial da presente pesquisa não está fora de propósito. 34 MINGUET, Op. cit, p. 75.

Page 10: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

10

10

Assim Humboldt pretenderia criticar os “´méthodistes´ de la Nature”, sobretudo de

Linneo. Isto porque Humboldt deseja uma descrição da natureza realizada através da

história e da geografia das plantas, que estude a história geral do mundo através da

investigação da mais antiga vegetação primitiva em seus momentos fúnebres, como

petrificação e fossilização. E também uma geografia das plantas para explicar a confusão

da colonização dos vegetais.

Enfim, Humboldt pensa em uma descrição da natureza que inclua senso estético a

uma educação artística do ser humano. Nas palavras do próprio Humboldt, seu desejo era:

“...L´harmonie générale dans la forme, lê problème de savoir s´il y a une forme de plante originelle, quei se présente sous des milliers de gradations, la répartition de ces formes sur la surface de la Terre, les diverses impressions de joie et de mélancolie que le monde des plantes produit chez les hommes sensibles, le contraste entre la masse rocheuse, morte, immobile, et même entre les troncs des ararbres qui semblent inorganiques, et le tapis végétal vivant qui revêt, en quelque sorte, délicatement, le squelete d´une chair plus tendre” 35.

Portanto, Humboldt reclama um método comparativo para explicar a interação

homem-natureza. Por isso Humboldt compara os Ameríndios aos Gregos e aos Romanos,

e vê o futuro da Europa na América. Para Humboldt, a ciência deveria se ocupar da

compreensão e do entendimento do cosmo36.

É neste ponto que moral, ciência e natureza se interpenetram/interagem.

A ciência proporcionou um rico contato intelectual com a natureza do mundo

posterior a Colombo37 . Para Humboldt, contudo, a ciência era carregada de um

romantismo historicista38 e ingênua objetividade.

Por exemplo: ao discutir com os irmãos Roberto e Ricardo Schomburgk sobre a

localização da nascente do Orenoco, Humboldt afirma que “...uma empresa atrevida...

supõe menor força íntima do que paciência necessária para suportar os sofrimentos

físicos...”. E acrescenta: “Se a isto se unir um amor apaixonado a algum dos ramos da

ciência (história natural, astronomia, hipsometria ou magnetismo) e o sentimento puro

dos gozos que dá o livre contato com a natureza...”39, estará assegurado o êxito do

empreendimento.

35 Carta de Humboldt à Schiller, de 1794, citada por Charles Minguet. Op. cit, p. 77. 36 PAGDEN, Anthony. European encounters with the New World: from Renaissance to Romanticism. Londres, Yale University Press, 1993, p. 8-9. 37 PAGDEN, Op. cit, p. 111. 38 Sobre a influência de Herder e do historicismo, ver Charles Minguet. Op. cit., p. 64, 66. 39 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 237, 238.

Page 11: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

11

11

Outro exemplo: para justificar as divergências com um amigo, Humboldt diz-se

favorável à “... imparcialidade de que se deve fazer lei em toda a exposição científica...”

40.

Se, por um lado, a crença ingênua no progresso científico é habitual ao século

XVIII-XIX, o próprio Humboldt, por outro lado, parece perceber tais limitações do

conhecimento da natureza, ao dizer:

“... A natureza fecunda desenvolve incessantemente os seus gérmenes sem que pareça inquietar-se em investigar se o homem, raça implacável, há de destruir o fruto antes da sua maturação”41.

Portanto, essa concepção imparcial e objetiva da ciência não invalida, nem

compromete, a acepção ético-moral do pensamento de Humboldt quanto a natureza. Pelo

contrário, uma vez que para Humboldt o encontro/descobrimento homem-natureza deve

pautar-se por um caráter ético. A moralidade científica surge, neste aspecto, como uma

forma de criticar a ideologia do progresso do século XVIII.

Um excelente exemplo dessa crítica à idéia de desenvolvimento ocorre quando

Humboldt interpõe argumentos contra a teoria da “eleição natural” de Darwin. Para

Humboldt, tal teoria “... não exclui a finalidade da natureza...”. Contudo, apesar de “... a

eliminação dos fracos pelos fortes representa[r] um grande papel, talvez mesmo um papel

preponderante...”, a teoria de Darwin “... não é mais do que a teoria do útil aplicada à

natureza. ... [Mas] no mundo vivo, há mais do que o útil, há o belo. ...”, a “estética

instintiva” 42, o ideal de beleza.

Dentro da chuva-floresta do Orenoco, Humboldt confia na absoluta veracidade de

sua linguagem narrativa. Isto porque Humboldt está seguro da autoridade do seu “Eu”, do

olhar do man of science. Ou seja, entre o século XVI e o século XVIII se havia

modificado o papel e a imagem do observador estrangeiro. Portanto havia-se

transformado, também, o lugar da América na percepção Européia43.

Por isso Humboldt refere-se com paixão, a floresta do Orenoco:

“´...c´est là alors (que l´on excuse ce rappel de mes sentiments personnels) dans la splendeus calme du ciel méridional ou lorsque à la saison des pluies, sur les rives de l´Orénoque, la foudre tonitruante éclairait la forêt, que nous

40 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 241. 41 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 233 (original não grifado). Neste trecho Humboldt parece auto-criticar-se por haver levado crânios e um esqueleto de um cemitério indígena em uma caverna. 42 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Volume 2, Op. cit, p. 324, 325, 327 (original não grifado). 43 Cf. PAGDEN, Op. cit, p. 87.

Page 12: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

12

12

nous pénétrions tous deux de l´admirable vérité avec laquelle dans ce petit livre, la puissante nature tropicale est décrite dans sa totale orginalité” 44.

Este trecho também sublinha, uma última vez, a influência da concepção do

estado da natureza pré-política, de Rousseau, sobre Alexander von Humboldt.

Goethe

Em 20 de dezembro de 1796, três semanas antes da morte de sua mãe, Humboldt

expressa pela primeira vez seu desejo de viajar à América. Nos preparativos intelectuais e

técnicos para a viagem marítima, Humboldt travou contatos com Goethe, que iria resultar

numa influência duradoura na mútua concepção de natureza. “Lês recherches d´histoire

naturelle d´Alexandre et sá passion pour lês sciences en général devaient favoriser, entre

lui et Goethe, des relations suivies et consolider les liens...”45.

Até 1797 Goethe publicou grande parte de seu trabalho científico sobre o caráter

geral da relação do homem com a natureza. Em uma carta endereçada à Schiller, de 26

abril 1797, Goethe afirma haver desfrutado de momentos agradáveis e úteis na companhia

de Humboldt. E, especificamente sobre suas pesquisas sobre natureza, Goethe afirma:

“´mês travaux d´histoire naturelle ont été, grâce à sa présence, réveillés de leur sommeil

d´hiver ”46.

Eles não permitiram que as inevitáveis divergência intelectuais -- o idealismo de

Goethe, e o materialismo de Humbodlt -- abalassem a amizade. Houve grande estímulo

entre ambos quanto a troca de informações sobre as ciências da Natureza, área de trabalho

em que havia um mútuo interesse.

As diferenças de abordagens e de critérios de observação da natureza eram,

porém, muito grandes. Goethe, por exemplo, pensava na possibilidade de apreender a

totalidade dos fenômenos47. Enquanto Humboldt preocupa-se com o que ele chama

“Elemento” (a matéria), Goethe atém-se exclusivamente na forma exterior (“Gestalt”).

Contudo, a convergência intelectual dos dois pensadores não ocorre somente na

concepção do progresso da Natureza, de um “`développement calme´” tanto da “...

physique du globe et dans le monde animal et végétal” 48 quanto da vida política.

44 HUMBOLDT apud MINGUET. Op. cit., p. 96, nota 5. 45 MINGUET. Op. cit., p. 50 (original não grifado). 46 GOETHE apud MINGUET, Op. cit., p. 50 (original não grifado). 47 Cf. MINGUET, Op. cit., p.72. 48 MINGUET, Op. cit., p. 74.

Page 13: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

13

13

Humboldt, depois de observar os vulcões da América e da Itália certificou-se da

importância das perturbações da geomorfologia do globo, e procurou uma síntese. A

síntese de Humboldt reúne “Gestalt” e “Element”. Ou seja, Humboldt aproxima termos

aparentemente contraditórios da Natureza, quais sejam, forma e conteúdo, elemento e

forma, fato e fenômeno.

Dito com outras palavras, o que unia os dois pensadores era a morfologia, isto é, o

estudo das formas de que a matéria pode revestir-se nos seres organizados, da forma e

posição dos diferentes órgãos do corpo e das relações que eles guardam entre si.

Humboldt e Goethe entendiam o pensamento morfológico da natureza como um cosmos,

um quadro de tipos. Goethe havia desenvolvido o conceito de tipo dinâmico como

princípio, isto é, a idéia de que na base de todas as plantas há um modelo. Assim, para

Goethe se poderia imaginar plantas novas incontáveis “´que se não existem poderiam sem

dúvida existir...´”49.

Essa síntese goetheana feita por Humboldt talvez seja mais bem compreendida

através da idéia de unidade. Porque a unidade natural de Humboldt é uma questão

goetheana. Trata-se da convicção de Humboldt na capacidade do novo para marcar

impressões imediatas na mente e, mais importante, sua convicção em uma história natural

do conhecimento científico50.

Apesar da influência das concepções filosófico-políticas do “lumière”

Enciclopedista sobre Humbodt, que produziu um pensador essencialmente

cosmopolitano, há também uma influência do romantismo de Herder. É o caso do

conceito de forma primitiva, que Humboldt também adquire de Goethe51.

Goethe, a partir da noção de “calme de l´Univers” 52, fundamentou a idéia de uma

forma primitiva, que está na origem do nascimento da noção de unidade de plano de

composição, de Geoffroy de Saint-Hilaire (ver item anterior). Enfim,

“On mentionne l´inlfuence de ´...Kant, Goethe, Lichtenberge et Forster´, pour souligner leur contribution à l´idée de ´Naturganzes´, ou de ´Weltall´ (la Nature ou le Monde compris comme un Tout), qui est aussi celle de Humbodlt”

53.

49 Goethe citado por Adolf Meyer-Abich. Alejandro de Humbodlt 1769-1969. Bad Godesberg, [Alemanha], Inter Nationes, 1969, p. 35. 50 Cf. PAGDEN, Op. cit, p. 26. 51 Cf. MINGUET, Op. cit., p. 65. 52 MINGUET, Op. cit., p. 66. Ver também p. 67. 53 MINGUET, Op. cit., p. 64.

Page 14: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

14

14

Humboldt exprime essa idéia de unidade da natureza, ao notar que “... Os seres

harmonizam[-se] sempre com a natureza física que os rodeia. ...”. Há uma “tendência

natural” no desenvolvimento espontâneo de um vegetal, pois ele “...é uma coleção de

indivíduos. A unidade viva é a folha, cuja flor e o fruto não são como Goethe foi o

primeiro a julgar, apenas transformações. ...”54. Ou seja, a folha, unidade individual, pode

ser utilizado como elemento tipológico-classificatório para diferenciar os vegetais uns

dos outros na natureza.

III - Descrição de natureza amazônica em Humboldt

“... Do mesmo modo as descrições da natureza impressionam-nos tanto mais vivamente, quanto mais em harmonia com a nossa sensibilidade; porque o mundo físico se reflete no mais íntimo do nosso ser, em toda a sua verdade. ... [Pois a paisagem das montanhas, dos bosques e das selvas] têm existido, em todos os tempos, em misteriosas relações com a vida íntima do homem”55.

No verão de 1800 Humboldt navega pelo alto Orenoco. Apenas alguns meses

antes, em 14 do setembro de 1799, Humboldt completara seus 30 anos de idade. Seus

relatos de viagem são extremamente detalhados.

Em sua rápida exposição sobre natureza Amazônica, Humboldt preocupa-se mais

em descrever e analisar as características do rio Orenoco. Ou seja, Humboldt não se ocupa

da descrição tipológica das plantas, mas sua existência é mencionada56. Já a floresta

sequer é mencionada no relato.

As quarenta páginas sobre a viagem ao Orenoco, no livro Quadros da Natureza,

dividem-se em três capítulos. O primeiro capítulo se subdivide em dois grandes

momentos: o primeiro descreve o Orenoco, e o segundo trata de suas cataratas. No

segundo capítulo Humboldt debate o problema das nascentes do Orenoco. E no terceiro

capítulo mostra a origem da tradição fabulosa do lago de Parimã.

Circunstâncias do curso do Orenoco

54 HUMBODT, Alexander von. Quadros da Natureza. Volume 2, Op. cit, p. 330. 55 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. volume I, p. 212, original não grifado. 56 Infelizmente, não pude obter a obra clássica de HUMBODT, Alexander von. Voyage aux regions equinoxiales du Nouveau Continent fait en 1799 et 1800 par A. de Humboldt et A. Bonpland: l´Orenoque, onde há um capítulo sobre o Orenoco.

Page 15: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

15

15

Humboldt inicialmente procura descrever as características do rio Orenoco, sua

extensão, largura, tamanho, direção, cor da água, para depois se ocupar das cataratas ou

quedas de Aturés e Maipurés. Humboldt navegou 380 léguas, desde as fronteiras do

Brasil até as costas de Caracas, passando do rio Negro ao Orenoco, através do Casiquiári

(rio que une o Orenoco ao rio Amazonas).

Humboldt descreve sua primeira impressão do Orenoco da seguinte forma:

Nas “...costas graníticas da Guiana, distingue-se a embocadura de um rio imenso que se espalha como um lago sem margens e que inunda de água doce o oceano. As ondas do rio, ordinariamente cheias de limos, mas brancas como leite nos baixios, contrasta com o azul do mar, que traça em volta delas um limite perfeitamente definido”57.

Os povos indígenas da região do Orenoco vivem, segundo Humboldt, “...

Submergidos em completa selvageria...”58, de tal modo que os rios Orenoco, Amazonas e

Madalena denominam-se apenas “o rio”, ou “o grande rio”, ou “a água”. O curioso é que

os pequenos rios são denominados por nomes particulares.

O impulso que o Orenoco dá às águas do mar, entre as costas da Guiana e a ilha de

Trindade é tão poderoso que os navios têm dificuldades em se governar. Foi tal aspecto

que fez Colombo, “...homem habituado a penetrar os segredos da natureza” 59, deduzir

que só um rio que atravessasse uma vasta extensão de território poderia arrastar tão

grande massa de água.

“...A suave frescura que, ao calor do dia, substituía a transparente pureza do céu estrelado, o balsâmico perfume das flores que as brisas da terra levavam, fizeram acreditar a Colombo, segundo Herrera, que o jardim do Éden, santa morada do primeiro homem, se encontrava ali próximo. Viu no Orenoco um dos quatro rios, que, segundo as veneráveis tradições espalhadas desde a infância do mundo, nasciam no paraíso para regar e dividir a terra, adornada de flores sempre desabrochadas. ...” 60.

A massa de água é tamanha que Humboldt fica indeciso sobre qual rio é o maior

da América Meridional: o Orenoco, o Amazonas ou o Rio da Prata. O Orenoco é o mais

estreito, e seu comprimento não excede 465 léguas, segundo as “... minhas observações

astronômicas”61.

É com grande júbilo que Humboldt diz ser o primeiro europeu a visitar as

nascentes do Orenoco. Através de “...meus cálculos trigonométricos...”, Humboldt diz

57 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 213. 58 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 213. 59 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 214 (original não grifado). 60 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 214. 61 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 215.

Page 16: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

16

16

que o imponente cume do Yeonnamari ou Duida, não tem menos de 2667 metros acima

do nível do mar. Descreve os ananases, bromeliáceas, palmeiras, cacaueiros silvestres e

amendoeiras. Como não é possível penetrar mais para oeste, pois os “... Guiacas, raça

quase branca mas pequena, ameaçam com as suas flechas envenenadas os viajantes...”,

Humboldt deduz o caráter fabuloso “...de um lago, de onde nasce o Orenoco...”62 (o lago

Parimã). Comenta ainda a lagoa do Eldorado, o lago Amacu e as montanhas de prata da

Parimã.

Quando relata o problema da direção do Orenoco, Humboldt procura dirimir as

dúvidas sobre sua união com o rio Negro ou Guainia. Trata-se de um exemplo único de

bifurcação que forma uma união natural e comunicação entre o Orenoco e o rio

Amazonas. “A natureza do solo e a acessão do Guaviaro e do Atabapo forçam o Orenoco

a dirigir-se repentinamente para o norte. ...”63.

Sobre a cor escura das águas nesta parte superior do rio, “...a natureza renovou

muitas vezes o misterioso fenômeno das chamadas geralmente águas negras”64. Para

Humboldt, é provável que a cor dos rios negros devem-se a uma dissolução de hidrogênio

carbonato, à riqueza da vegetação e a multidão de plantas. Humboldt nota que nas costas

do mar do sul, o rio Guaiaquil tem cor dourada, assemelhada à de café.

“O Orenoco, ao dirigir-se bruscamente para o norte, abre caminho através da

montanha”65. E, descendo além de Carichana, o Orenoco abre caminha através da estreita

garganta de Baraguã. O Orenoco, então, abandona a cadeia de montanhas seguidas até ali,

desviando-se para leste. Portanto, o Orenoco banha por três lados, ao sul, ao oeste e ao

norte, o grupo de montanhas da parimã.

Surgem então o escolho, os turbilhões e quedas de Aturés e Maipurés.

62 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 216, 217. 63 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 218 (original não grifado). 64 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 219 (original não grifado). 65 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 220.

Page 17: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

17

17

As cataratas e o RANDAL

O grupo de montanhas de Cunavami é o ponto de partida de uma cadeia granítica

que se prolonga a grande distância para oeste. No sítio em que está a região de Maipurés,

as próprias montanhas forma um vasto golfo. O Orenoco banha, com a sua espuma, a

encosta meridional da montanha. Ao longe se vê, porém, a antiga margem do rio, então

abandonada.

As duas rochas/colinas Keri e Oco, cujo aspecto assemelham-nas as ilhas, tem

escavações feitas pelas águas no mesmo nível que as da ilha Uivitari, situada em frente.

Portanto,

“...são aparências que mostram como o Orenoco enchia em outros tempos a baía, hoje completamente seca. É verossímil que estas águas tenham sido um vasto lago, enquanto o dique do Norte lhes opôs resistência. ... Pouco a pouco, as águas acabaram por se retirar para a cadeia de montanhas que as circunda pelo lado do oriente”66.

Muitas circunstâncias confirmam tal hipótese, como a cor negra das massas

graníticas tingidas pelo rio, e as cavidades já mencionadas.

Tais observações não passam despercebidas aos “indígenas incultos da Guiana” 67.

Diz-se que há gravado em uma rocha isolada, há 26 metros de altura, imagens que

representam o sol, a lua e animais. Contam os indígenas que tais sinais foram traçados

pelos seus antepassados quando a altura das correntes permitia que se chegasse com

canoas aos pontos elevados.

As cataratas de Maipurés apresentam inúmeras pequenas cascatas que se sobrepõe

umas às outras, em degraus. Forma-se verdadeiro arquipélago de ilhotas e rochas que os

Espanhóis nomearam Randal (torrente): “... observei, com espanto, auxiliando-me com o

barômetro, que toda a altura da queda do randal, desde a embocadura do Cameji até a do

Toparo, tem apenas 9 a 10 metros. ...” 68.

Após cinco dias nas imediações das cataratas, Humboldt constatou surpreso que o

ruído da massa de água que cai é três vezes maior à noite que durante o dia. Tal fenômeno

depende, segundo Humboldt, “... de correntes fracas e ascendentes de ar que, pela

66 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 222, 223. 67 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 223. 68 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 226.

Page 18: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

18

18

perturbação que introduzem no equilíbrio da elasticidade atmosférica, impedem a

propagação do som, rompendo irregularmente as ondulações. ...” 69.

O randal de Aturés assemelha-se ao de Maipurés. E, no randal do Canucári,

Humboldt foi arrastado para o interior de uma caverna. “... Por cima das nossas cabeças o

rio continuava o seu curso com espantoso ruído; espetáculo que tivemos ocasião de

observar por mais tempo talvez do que teríamos desejado...”70, pois pequenos macacos,

nas gaiolas, atraíam os crocodilos com lastimosos gritos.

“...Não mencionaria a presença desses animais, tão comuns no Orenoco, se os

índios não nos tivessem afirmado que nunca haviam visto crocodilos no meio

das cataratas. Fiados em tal afirmação havíamos-nos banhado muitas vezes

nesta parte do rio”71.

Há uma caverna muito célebre para os índios, na entrada meridional do randal de

Aturés: a caverna de Ataruipa. Trata-se de túmulo de uma raça extinta, com 600

esqueletos intactos guardados em cestos, preparados de três maneiras diferentes, inclusive

como múmias. Há também urnas de argila adornadas com desenhos parecidos com as

paredes do palácio mexicano de Mitla. Tais semelhanças explicam-se “... em razões

psicológicas e no fundo comum da inteligência humana, para provar a analogia das raças e

as antigas relações dos povos”72.

Humboldt e Bonpland abandonaram a caverna somente ao anoitecer, levando um

esqueleto e vários ossos. Contudo, tal botim naufragou nas costas da África.

Os índios Guarecas dizem que tais ossos são dos extintos Aturés que, perseguidos

por canibais, refugiaram-se nas cataratas lúgubres.

“... É de supor que a última família dos Aturés não se extinguiu senão muito tempo depois; porque, em Maipurés, vive (coisa rara!) um papagaio velho, que ninguém entende, segundo dizem os naturais, porque fala a língua dos Aturés”

73. Nos dois últimos capítulos Humbodt analisa a questão da nascente do Orenoco, e

do caráter fabuloso do “grande mar de parimã”. Sobre este, Humboldt conclui que

“graças as nossas investigações”, as 60 léguas de largura do lago parimã reduziram-se ao

lago Amacu, que não conta mais que duas ou três milhas inglesas.

69 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 228. 70 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 229. 71 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 229-30. 72 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 232. 73 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 232.

Page 19: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

19

19

IV - Conceito humboldtiano de natureza amazônica

“O nome de Parágua, pelo qual se indica um braço do Caroni, é também o que dão ao Orenoco superior os naturais do país. O nome de Orenoco pertence propriamente aos Tamanaques, e Diogo de Ordaz ouviu-o pronunciar pela primeira vez em 1531, quando subiu até à embocadura do Meta” 74.

O empreendimento de Humboldt foi compreender o significado do descobrimento

do Novo Mundo, da imagem de Colombo. Foi por isso que o livro Cosmos fundamentou

uma filosofia da história para a física universal. Para Humboldt, o descobrimento da

América delimitou uma nova época da história do mundo. A “época de Colombo”

significou um novo estágio da história Européia, pois tornou perceptível a fusão entre a

Idade Média e o mundo Moderno. Foi portanto uma lição para o futuro das sociedades

Européias. Porque os descobrimentos científicos e as conquistas intelectuais foram

também “a conquest of reflection´”75.

Humboldt nota que o descobrimento deu início a uma nova compreensão social e

moral Européia. Pois significou também o descobrimento do ser humano. Para Humboldt,

tratou-se de um estágio transformador no qual o progresso de todas as nações

direcionou-se para a obtenção de um elevado espírito e de um sistema de moralidade.

Porque nunca um descobrimento estendeu tanto os horizontes do ser humano, produzindo

mudanças morais tão extraordinárias. Desde aquela “´grand era” um novo estado

intelectual e sensível gradualmente penetrou a sociedade civil. Foram daquelas “´rare

epochs” em que todo o esforço intelectual possuiu um caráter comum, direcionado todo

ele para uma finalidade específica76.

Portanto, da ótica humboldtiana o “encontro” da América tornou-se o instrumento

que livrou o ser humano do seu passado, pondo-o em contato direto com a natureza77.

Na visão de Humboldt, o avanço científico é conseqüência de uma resposta a um

súbito incremento da mercadoria idéia, uma reviravolta que modela um novo padrão de

“´efeitos morais e intelectuais´”. A paisagem “´determina a imaginação e o senso estético

do povo´”78, então a extensão do conhecimento do mundo determina sua história moral --

o que o irmão de Humboldt, Wilhelm, denominou antropologia.

74 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 245. 75 Cf. PAGDEN, op. cit, p. 104, 105, 187-8, 99 (em ordem de citação). 76 Cf. PAGDEN, op. cit, p. 111, 112. 77 Cf. PAGDEN, op. cit, p. 115. 78 HUMBOLDT apud PAGDEN, op. cit, p. 113.

Page 20: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

20

20

Esta asserção de Humboldt poderia ser percebida como constitutiva de mudança

moral. O objeto do conhecimento do homem tinha sido uma história natural de todos os

aspectos da existência do homem. Para Humboldt, o objeto para a inelegibilidade do ser

humano era agora uma história natural da qualidade do homem moral. Ou seja, houve “´o

descobrimento de uma nova maneira de percepção´”79 da história da natureza e do agente

racional humano.

Uma última interrogação, também não mencionada por nenhum dos autores

pesquisados. Seria possível afirmar que a concepção moral de natureza, de Humboldt,

possua elementos da ética Iluminista de Rousseau e de Kant?

NOTAS FINAIS

“... Inumeráveis insetos espalhavam pela terra, atapetada de verdura, fosforescências avermelhadas, resplandecendo o solo como se a abóbada estrelada tivesse descido à pradaria. As begônias trepadeiras, as baunilhas perfumadas e as banistérias de flores douradas adornavam a entrada da gruta, murmurando sobre o túmulo os cimos das palmeiras. Assim morrem e desaparecem as raças humanas! Assim se perde o ruído que o seu nome produziu! Mas, se todas as flores do espírito murcham, se o tempo arrasta nas suas tormentas as obras do gênio criador, do seio da terra brota sempre nova vida. A natureza fecunda desenvolve incessantemente os seus gérmenes sem que pareça inquietar-se em investigar se o homem, raça implacável, há de destruir o fruto antes da sua maturação”80.

Relacionei Rousseau-Kant-natureza à Humboldt porque intuí que havia tal

relação. Ainda que minha conclusão seja parcial neste aspecto, certamente não é possível

compreender o problema do conceito de natureza sem se recorrer a formulação dos

filósofos iluministas para o problema da ciência da natureza, da teoria da soberania

popular, e da doutrina do direito natural.

Tal qual a bifurcação do Orenoco, também há uma bifurcação do problema e do

conceito de natureza. Ou seja, o conceito de natureza migra do campo da filosofia

político-analítica (o argumento da transição do estado natural, da teoria da soberania

popular), para a matemática, de modo a sustentar a física e as “ciências da natureza”

modernas.

Fica, assim, em aberto o problema do porquê a “natureza” é o elemento mais

importante na concepção ocidental sobre América. Por exemplo, por que no pensamento

Europeu dos séculos XVI a XIX a natureza sempre foi mais importante do que o homem:

79 HUMBOLDT apud PAGDEN, op. cit, p. 113-114. 80 HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Op. cit, p. 233.

Page 21: Polissemia da palavra natureza: descrição e conceito de ...anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/renato_leite.pdf · Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC

Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998

ISBN 85-903587-3-9

21

21

sendo o índio mais importante que o Europeu, e este mais importante que o Africano (no

Brasil, talvez a primeira frase valha mais para o século XVI). Por que essa tese buffoniana

não é tão original no século XVIII, já existindo antes? Por que a América não pertenceria

à história, mas à natureza (Hegel)? E Humboldt, apesar de considerar o indígena vítima de

brutal regressão cultural, por que se dirigiu preferencialmente ao meio81?

81 Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. “A polêmica do Novo Mundo”. Folha de São Paulo. Jornal de resenhas, 9 agosto 1996, p. 5.