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A construção e a desconstrução da imagem da “Suíça latino-americana” no Brasil: O Uruguai
Teresa Cristina Schneider Marques – Mestranda em História (UFMT) 1. Introdução
A ênfase deste estudo consiste em realizar uma análise sobre a propagação e
manutenção da imagem de “Suíça Latino-americana” atribuída ao Uruguai durante a
primeira metade do século XX no continente sul-americano – sobretudo no Brasil. Para
tanto, serão analisados os discursos divulgados na imprensa brasileira sobre este país, e,
além disso, nos valeremos da iconografia e iconologia1 para analisar as imagens do Uruguai
divulgadas no Brasil. Em contrapartida, também buscaremos compreender como a
imprensa brasileira recebeu essas imagens desse vizinho, em um momento no qual a
população oriental enfrentava forte crise econômica e política, e, em conseqüência da
mesma, o acirramento das ações dos grupos terroristas.
2. A Construção Durante praticamente todo o século XX, a maioria dos países latino-americanos
foram conhecidos pelo seu atraso econômico e tecnológico, se comparados às regiões de
maior desenvolvimento mundial, tais como Estados Unidos e Europa. Entretanto, o
Uruguai mantinha uma imagem diferenciada: diversos fatores o levaram a ser conhecido
como a “Suíça Latino-americana”.
Essa imagem esta muito ligada ao governo de José Batlle. Quando assumiu o
cargo de presidente em 1903, Batlle deu início ao período nacional reformista, marcado por
um projeto econômico de desenvolvimento capitalista, que visava colaborar principalmente
com os interesses dos setores do país ligados à indústria. Com tal projeto, foi dado um
impulso às atividades fabris, comercias e industriais, principalmente na região de
Montevidéu. Para tanto, houve progressos na navegação marítima, nos métodos de
refrigeração de carnes para exportações - principalmente para os Estados Unidos e para a
Europa (LÓPEZ CHIRICO, 1985, p.46). Destaca-se o fato de que o Uruguai, ao lado da
Argentina, conservou durante anos a situação diferenciada de país latino-americano em que
o desenvolvimento se traduziu em melhoria efetiva das condições de vida de quase a
totalidade da população (FURTADO, 1970, p.78).
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Além dos avanços econômicos, as políticas sociais desenvolvidas por Batlle nos
períodos nos quais governou – de 1903 a 1907, e de 1911 a 1915 –, também deram início às
transformações que não haviam ocorrido até então em nenhum outro país da América
Latina. Entre as medidas sociais por ele estabelecidas destacaram-se as que favoreciam os
trabalhadores urbanos, tais como a criação do salário mínimo, a regulamentação da jornada
de trabalho de 8 horas, as pensões para velhice e doença, entre outras. Além disso, instituiu
o divórcio e separou a Igreja no Estado (LÓPEZ, 1998, p.125-126).
A democracia também era uma das bandeiras orgulhosamente levantas pela
população uruguaia. A criação do curioso “Conselho de nove membros” em 1951 com a
nova constituição que dissolveu a presidência, ajudou a reforçar a idéia de democracia
nesse país. Neste sistema político liberal, os dois partidos tradicionais mantinham-se no
poder partilhando a direção de entidades estatais e grandes empresas. Seu executivo tinha
poucos poderes, enquanto o poder legislativo se mantinha forte. Tal regime se mostrou
eficiente e garantiu um período de estabilidade institucional. Soma-se a isso o fato de que o
exército era praticamente inexistente no Uruguai, devido às diretrizes da sua política
externa, que automaticamente a excluía. A natureza geográfica do país tornava
desnecessária a sua participação nas decisões do governo (LÓPEZ CHIRICO, 2000, p.180).
Assim, estes são alguns dos principais fatores que levaram o Uruguai a ser conhecido como
“Suíça Latino-Americana”.
Todavia, de acordo com Sélva López Chirico, tal a valorização da democracia
impediu que fosse feita uma crítica aos excessos do imperialismo e o seu papel no
agravamento do processo de dependência econômica, da mesma forma como o
enaltecimento de princípios igualitários ocultou a desigualdade social existente no país
(1985, p.49) Além disso, após o término da Segunda Guerra Mundial, o país começou a
perceber que estava atrasado tecnologicamente, se comparado aos seus concorrentes no
mercado internacional, que vivia o aprofundamento do processo de globalização. Diante
deste quadro, o Uruguai, um país dependente do mercado internacional, deu início a um
processo de estagnação econômica, que trouxe como conseqüência, a pobreza à parte da
sua população e total submissão aos projetos do FMI (Fundo Monetário Internacional),
além de facilitar demasiadamente a penetração de capital estrangeiro, principalmente
proveniente do Brasil e da Argentina (MORAES, 2001, p.270).
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2.1 O turismo como alavanca econômica
Diante desse quadro de crescente crise e sem ver possibilidades de alcançar
soluções para os problemas econômicos através das demais atividades produtivas do país –
tais como a pecuária –, o turismo passou a ser encarado pelos orientais como uma alavanca
para o crescimento econômico e como uma solução para a crise vivida pelo país. Os
diversos anúncios publicitários, assinados pela “Comisión Nacional de Turismo” e
divulgados em diversos jornais uruguaios, comprovam esta idéia, pois visavam persuadir os
orientais a se mobilizarem em favor de uma “cruzada nacional pelo Turismo”. Tais
anúncios tinham como principal objetivo instruir o cidadão uruguaio como se comportar
perante o turista, no intuito de manter a imagem de que o Uruguai e os seus cidadãos eram
extremamente cordiais e hospitaleiros.
Figura 1: “Demos ao turista lo que es del turista” (informe publicitário). Fonte: COMISIÓN Nacional de Turismo. “Demos ao turista lo que es del turista” (informe publicitário). Marcha. Montevideo-UY. Año XXVI, nº. 1238. Deciembre 31 de 1964. p.10.
Neste trecho do anúncio divulgado no semanário uruguaio Marcha, podemos notar
que todos os setores da sociedade eram instruídos quanto ao relacionamento com o turista.
Assim, toda sociedade – desde aqueles cuja profissão se baseia em atender diretamente o
turista, ao cidadão cuja ocupação não estava ligada ao turismo –, deveria contribuir para
manter a imagem de hospitalidade do Uruguai. A expressiva quantidade de anúncios como
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este em periódicos uruguaios, portanto, deixam claro o quão importante era considerado o
turismo nesse país.
Para atrair o maior número de turistas possível, o Uruguai procurou fortalecer a
imagem de “Suíça Latino-americana” por intermédio de campanhas publicitárias a serem
divulgadas em outros países. A sua maior aposta estava nas suas belezas naturais –
principalmente nas belas praias de Montevidéu, e nos cassinos e lojas de Punta del Este
(DANÇAS MÁGICAS..., 1968, p.42).
Entre as campanhas publicitárias lançadas pelo governo uruguaio para atrair
turistas, destaca-se a lançada em 1968 e idealizada por um espanhol que então, vivia há 25
anos no país, Ernesto Rodrigues, e apoiada pelo então ministro do turismo do país. Seu
slogan era: “O Uruguai esta à sua porta: abra-a”. Essa campanha merece maior atenção que
as anteriores, pois foi lançada neste momento no qual a crise econômica e social que
acometia o país já se fazia sentir pela população. Com efeito, com a campanha “O Uruguai
esta à sua porta: abra-a”, objetivava-se alcançar a entrada de 50 milhões de dólares em
moeda estrangeira no Uruguai, principalmente oriundo dos bolsos de turistas brasileiros e
argentinos. Diferentemente da maioria dos países sul-americanos, tais como Brasil e
Argentina, que destinavam a maior parte dos investimentos em turismo para atrair
visitantes europeus e norte-americanos, o Uruguai procurava investir no turista sul-
americano (URUGUAI: A PORTA..., 1968, p.45).
A preferência do governo uruguaio pelos turistas vizinhos tem uma explicação:
objetivava-se alcançar aqueles que não tinham dinheiro suficiente para viajar para os
destinos tradicionalmente mais procurados pelas elites sócio-econômicas latino-americanas,
tais como os países europeus ou os Estados Unidos. O próprio slogan remete à proximidade
e, conseqüentemente, à facilidade em se viajar para o Uruguai. Através das imagens
divulgadas, prometia-se que o turista que viajasse a esse país encontraria tudo o que
buscava em destinos mais dispendiosos, com a diferença de que tudo seria mais barato,
mais próximo e, portanto, mais fácil. Ou em outras palavras, o turista encontraria neste país
vizinho uma realidade totalmente diferente dos demais países da América do Sul, mais
próxima da realidade européia, afinal, era a “Suíça latino-americana”.
Por meio da análise de uma coleção enciclopédica de geografia ilustrada sobre
países americanos lançada pela Editora Abril Cultural em 1971, e reeditada em 1977, é
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possível perceber de que forma as imagens divulgadas do Uruguai foram decisivas para que
o mesmo fosse conhecido como a “Suíça latino-americana” durante décadas. De acordo
com David Freedberg, é inquestionável o poder exercido pelas imagens sobre a
mentalidade dos indivíduos, independente de sua idade, nacionalidade, ou classe social
(1992, p.23). Sendo assim, podemos crer que imagens semelhantes a esta, ajudaram a
construir uma determinada visão sobre o Uruguai no Brasil.
Figura 2: Vista de Punta del Leste. Fonte: URUGUAI. GEO. Ed. Abril Cultural. n.º 65. 2 ª edição – 1977. Ilustração da capa.
A capa da edição que aborda o Uruguai, diferentemente dos demais países que
compõe a coleção, não buscava destacar as características da cultura local. A foto é uma
vista de um porto de Punta del Este, dando destaque às pequenas embarcações no primeiro
plano, e conta apenas com duas pessoas no cais, as quais quase não conseguimos ver.
Embora as duas embarcações à frente sejam mais simples, podemos perceber que as demais
embarcações que aparecem ancoradas ao fundo são mais luxuosas, sendo a maioria delas,
pequenos iates. Ao fundo, é possível ver grandes e belas residências – em sua maioria,
sobrados – e alguns prédios, cujos modelos arquitetônicos eram considerados modernos
naquele momento. Vale destacar, que entre os três prédios que aparecem na foto, um se
encontra em construção, o que visava representar que o Uruguai era um país moderno em
constante crescimento e prosperidade econômica.
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Ao analisar esta imagem, torna-se perceptível a gritante diferença que era sugerida
entre o Uruguai e os demais países latino-americanos, pois sabemos que: “Las edificaciones
y las imágenes reflejan el estado de una sociedad e sus valores, así como sus crisis y sus
momentos de eufori.” (ZANKER, 1992, p.13). Assim, por meio das imagens divulgadas do
Uruguai, pretendia-se impor a idéia de um país desenvolvido, próspero e seguro.
Contudo, contrariando as ambições turísticas dos uruguaios, outras imagens e
notícias passaram a circular na impressa internacional, denunciando que o caos político,
econômico e social pelo qual o país passava já era sentindo por diversos segmentos da sua
sociedade. Com o objetivo de conseguir apoio para as suas ações repressivas com a
emergência de um governo autoritário no Uruguai, ao apontar o sitema político que regia o
país vizinho como um “mal exemplo” (MRE. ROU. AHD..., 1964, p.01-02), o governo
brasileiro passou a incentivar a circulação dessas reportagens no Brasil, tal como
observaremos doravante.
3. A Desconstrução
Os investimentos em turismo, embora tenham trazido resultados positivos, não
foram suficientes para controlar a difícil conjuntura econômica vivida pelo Uruguai. Tal
situação impediu que o governo continuasse a investir em serviços sociais, que há décadas
eram oferecidos com qualidade à população uruguaia. Além disso, a inflação e
consequentemente o custo de vida aumentaram de forma significativa.
Acostumada a uma outra realidade social, a população se revoltou contra a nova
conjuntura imposta pela crise. Um dos resultados desse quadro foi o processo de unificação
iniciado pelo movimento sindical. A reforma monetária e cambial pela qual o Uruguai
passou em virtude da crise, teve como uma de suas principais conseqüências, a diminuição
do poder aquisitivo dos salários, e esse foi o principal impulso para que as centrais de
trabalhadores começassem uma caminhada em direção à unificação. Assim, em 1964 foi
criada a Convenção Nacional de Trabalhadores (CNT), que objetivava concentrar todas as
centrais de trabalhadores que existiam no país, até mesmo os autônomos (GUAZZELLI,
2004, p.42). Os partidos de esquerda menores, também deram início a uma caminhada em
conjunto, em favor dos seus interesses em comum (LÓPEZ CHIRICO, 1985, p. 111). A
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crise também é responsável pelo surgimento de movimentos de guerrilha. Entre tais grupos
guerrilheiros, o que alcançou maior repercussão foi o Movimento de Libertação Nacional
(MLN), cujos membros ficaram conhecidos como “Robin Hoods”, pelos esforços em
utilizar-se de suas ações para beneficiar a parcela mais carente da população (PADRÓS,
2005-b, p. 291).
A partir de 1968 a revista brasileira de circulação nacional Veja, ao expor sobre a
audaciosa campanha publicitária uruguaia, já alertava aos turistas brasileiros sobre os
“inconvenientes pelos quais poderiam ser submetidos” em uma visita ao Uruguai, em
virtude da grave crise econômica e social que acometia o país:
A política interna do Uruguai, com suas greves e atentados oferece um clima de imprevistos que podem afastar os visitantes. Os turistas já inauguraram a temporada deste ano em hotéis com elevadores paralisados desde as 3 horas da manhã por uma pane misteriosa e conheceram todos os lugares pitorescos de Montevidéu à procura de um banco aberto ao público. As explicações desses inconvenientes poderiam ser encontradas nos jornais, se eles não tivessem desaparecido das bancas por causa de uma greve de 48 horas do pessoal das redações e das oficinas. No Cassino do Carrasco, no entanto, o turista sem sorte teria o consôlo de saber que o seu dinheiro não ficou nas mãos dos donos das roletas: na madrugada do último dia 29 foi roubado por seis indivíduos da organização terrorista dos Tupamaros (DANÇAS MÁGICAS..., 1968, p.42).
Mas quais seriam os motivos que levaram a imprensa brasileira e demonstrar tanto
interesse em denunciar a falsa “Suíça latino-americana”? Desde o início do regime militar,
as relações bilaterais entre o Brasil e o Uruguai estavam sendo abaladas, devido
principalmente às agitações políticas dos brasileiros exilados nesse país após o golpe de 31
de março. A Ditadura Militar no Brasil gradualmente ia ganhando corpo, enquanto o
Uruguai anda era um país conhecido pela boa infra-estrutura dos setores de saúde e
educação pública, e pelo seu avançado sistema democrático. O fato de esse país oferecer
asilo irrestrito a estrangeiros com problemas políticos em seus países de origem, além das
inúmeras liberdades democráticas com as quais a sua população podia contar, atraiu um
grande número de brasileiros ligados ao governo deposto pelo golpe de 31 de março de
1964, entre eles o governo deposto João Goulart e Leonel Brizola.
O governo brasileiro se preocupava com as ações oposicionistas levadas a efeito
pelos brasileiros exilados no Uruguai, e esperava obter apoio deste país vizinho para levar a
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repressão a tais ações além das fronteiras nacionais. Contudo, apesar da crise econômica
que acometia o país, a defesa ao direito de asilo político ainda era um dos orgulhos da
população uruguaia, sendo assim, os militares brasileiros não foram prontamente atendidos
quando passaram a exigir medidas mais duras contra as ações de oposição desenvolvidas no
Uruguai. Soma-se a esse fato, a preocupação quanto aos movimentos de esquerda uruguaios
– tais como os Tupamaros –, e a influência destes para os grupos opositores que existiam
no Brasil. Por isso, apenas a instalação de um regime de inspiração militar no Uruguai
sanaria as preocupações da chancelaria brasileira, que desde 1964 defendia a tese de que o
governo uruguaio necessitava do apoio da maioria do congresso para ser mais receptivo às
suas exigências (EMBAIXADA..., 1964, p.01).
Nesse sentido, o seqüestro efetivado pelos Tupamaros em julho de 1970 do cônsul
brasileiro em Montevidéu, Aluízio Dias Gomide, e de Dan Mitrione – funcionário da
embaixada norte-americana em Montevidéu, especializado em repressão policial –,
contribuiu com os planos dos militares brasileiros. O recorde de período de permanência no
cativeiro alcançado pelo brasileiro – 206 dias (MARIANO, 2003, p.106) – e o assassinato
de Dan Mitrione, fez com que aumentasse as denúncias sobre o “fim da Suíça Latino-
americana”. Logo, essas ações esquerdistas ajudaram a justificar a pressão exercida pelos
governos estrangeiros – principalmente pelo Brasil e pelos Estados Unidos – para o fim das
liberdades políticas que ainda existiam no Uruguai. Assim, aumentou o interesse da
imprensa internacional pela crise enfrentada pelo Uruguai, e pela busca de uma solução
para a mesma.
O empenho da imprensa brasileira em denunciar à população a crise política e
econômica vivida pelos uruguaios ficou claro através das diversas reportagens que foram
lançadas na revista de circulação nacional, Veja2. Vale ressaltar que durante a ditadura
militar, as informações divulgadas muitos meios de comunicação nacionais foram
moldadas pela censura imposta pelos governantes militares. Além disso, diversos foram os
periódicos que não apenas se calaram com a censura imposta, mas ainda apoiaram as
decisões tomadas pelos governantes militares (KUSHNIR, 2004, p. 250).
A Veja foi criada em 1968 seguindo o padrão lançado pela revista norte-americana
Time, e se apresentava como um “espaço neutro”, ao adotar o chamado “jornalismo
informativo” (SILVA, 2005, p.55). Contudo, a sua ligação com os militares ficou clara no
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curso de formação inicial oferecido pela editora Abril aos jornalistas selecionados para
trabalhar nas primeiras edições da revista. O general Sizeno Sarmento, o ministro Delfim
Netto, o governador José Sarney Costa, entre outros, estavam entre os nomes escolhidos
para proferir palestras (SILVA, 2005, p.56).
Portanto, embora a revista simulasse apresentar neutralidade, é inegável a
influência dos militares na produção de suas reportagens. As manchetes das reportagens por
si só já levavam o leitor a conclusões induzidas3. Todavia, uma reportagem em especial –
trata-se de uma reportagem de capa inclusive – nos chamou a atenção, pois além das
palavras, utilizou imagens como uma forma de provar que o Uruguai era “o ex-país da paz”
(O EX-PAÍS..., 1970, p.34-38). Sendo assim, buscaremos identificar os significados
intrínsecos nas imagens escolhidas pela revista Veja para retratar o fim da “Suíça Latino-
americana”, além dos significados primários e convencionais. Tal análise apenas se torna
possível com o apoio da metodologia da iconografia, um ramo da História da arte que “se
ocupa do significado das obras da arte em oposição à sua forma” (PANOKFSKY, 1989. p.
32).
3.1 A crise uruguaia analisada pela revista brasileira Veja
A primeira imagem selecionada para análise é a que ilustrou a capa da edição da
revista número 101, de 12 de agosto de 1970. A referida capa não contém muitos
elementos, seu fundo é negro e apresenta abaixo da ilustração a seguinte manchete: “O
drama do Uruguai (a ex-Suíça americana)”. No seu centro, observamos a bandeira uruguaia
hasteada, balançando, como se um forte vento soprasse sobre ela.
Na imagem apresentada por esta capa de Veja, boa parte da bandeira é coberta por
um símbolo em vermelho – como se fosse uma marca de carimbo –, que representa o grupo
terrorista “Tupamaros”. Trata-se de um “T” formado através das iniciais do nome original
do grupo, Movimento de Libertação Nacional (MLN). Nota-se que o símbolo, além de
cobrir boa parte da bandeira, cobre principalmente os olhos do sol da bandeira uruguaia, o
que pode sugerir que este país – ou em outras palavras, o seu governo – esta de olhos
fechados para a agitação promovida pelos grupos terroristas.
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Figura 3: O drama do Uruguai: a ex-Suíça americana. Fonte: O EX-PAÍS da paz: o Uruguai descobre a crise e a violência. Veja. Ed. Abril. n.º 101. 12 de agosto de 1970. Ilustração da capa.
Através desta imagem, portanto, aponta-se a idéia de que o Uruguai se encontra
perdido, dominado pelas ações terroristas que seriam as principais responsáveis pela crise
enfrentada pelo país. Dessa forma, sugeria-se que medidas mais autoritárias contra as ações
da esquerda no Uruguai eram necessárias. Como já observamos anteriormente, isso já era
cobrado pelas autoridades brasileiras desde o início do regime militar em virtude da
movimentação política dos brasileiros exilados nesse país, mas foi intensificado após o
seqüestro do cônsul brasileiro pelo Tupamaros.
No interior da reportagem dois grupos de imagens foram selecionados, pois
através da comparação entre ambos, a revista procura provar que o Uruguai havia deixado
ser “um pequeno país sem problemas”, tal como era conhecido até então.
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Figura 4: O Uruguai de ontem. Fonte: O EX-PAÍS da paz: o Uruguai descobre a crise e a violência. Veja. Ed. Abril. n.º 101, 12 de agosto de 1970, p. 35.
Figura 5: O Uruguai de hoje. Fonte: O EX-PAÍS da paz: o Uruguai descobre a crise e a violência. Veja. Ed. Abril. n.º 101, 12 de agosto de 1970, p. 37.
No primeiro grupo de imagens, de acordo com a própria legenda apresentada pela
revista, lê-se: “O Uruguai de ontem: a alegre vida noturna na movimentada Avenida 18 de
julho [...], a tranqüilidade dos aposentados nos jardins. Nos cassinos e nos cafés [...] um
estilo de vida que lembra a ‘belle époque’” (O EX-PAÌS..., 1970, p.35). Nota-se que
através das imagens selecionadas pela revista para esta reportagem, a intenção era provar
que o Uruguai, antes das agitações terroristas, correspondia ao título que carregava, se
tratava de um “país europeu dentro da América Latina”, que realmente oferecia
tranqüilidade e prosperidade à sua população – como indica a foto dos aposentados nos
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jardins, em frente a uma agência de turismo –, e diversão semelhante ao estilo europeu –
tal como sugere a sua legenda – para os seus turistas e sua população mais jovem
O segundo grupo de imagens por sua vez, procurou apresentar provas de que o
país vivia naquele momento um verdadeiro caos em virtude das ações dos grupos
terroristas. De acordo com a legenda apresentada, lê-se: “O Uruguai de hoje: paredes
pichadas, tropas nas ruas” (O EX-PAÌS..., 1970, p.37). As fotos se propõem a apresentar a
crise vivida pelo Uruguai naquele momento, porém, nota-se que as mesmas se limitavam a
apresentar imagens de terroristas mortos e suas vítimas, bem como o caos em que suas
cidades mergulharam devido às ações dos grupos esquerdistas. Portanto, Veja apresentou
uma seleção fotográfica que abordava apenas um aspecto dos problemas enfrentados pelos
orientais naquele momento: a violência dos grupos esquerdistas. Era justamente uma reação
mais firme às tais grupos que interessava ao governo brasileiro, pois, conforme já foi
colocado anteriormente, temia-se que esses grupos influenciassem e incentivassem os
opositores que ainda existiam no Brasil.
Portanto, através da divulgação de fotos como estas, pretendia-se comprovar a
“ineficácia” do “sistema democrático exemplar” que regia o Uruguai. Entretanto, diferente
do que é sugerido pelas imagens, a crise que acometia o Uruguai não se limitava à esfera
política e social. Em realidade, o agravamento da situação política e social teve início em
virtude da decadência econômica que atingiu o país desde meados da década de 1950, em
conseqüência do seu atraso técnico no cultivo de campos – a base da sua economia – em
relação aos demais países do mercado internacional. Toda esta conjuntura levou esse país a
mudar as suas privilegiadas condições econômicas e sociais, das quais, entre os países do
Cone Sul, apenas a Argentina se aproximava, causando o descontentamento da sua
população.
Por isso, o Brasil não apenas apoiou o golpe de estado, mas disponibilizou parte
dos recursos que seriam necessários para concretizá-lo, tais como centenas de veículos.
Dessa forma, o Brasil influiu direta e indiretamente com o golpe de Estado no Uruguai,
visando garantir o apoio deste país vizinho na efetivação de medidas reacionárias
(BANDEIRA, 2003, p.01-02). Contudo, é importante destacar que não apenas os militares
brasileiros tiveram influência neste desfecho no Uruguai, mas inclusive os Estados Unidos.
O pentágono avaliava que o Uruguai, apesar de pequeno, tinha uma localização estratégica
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que poderia ampliar o alcance de qualquer movimentação esquerdista, o que justificava a
atenção que deveria ser dispensada a este país (VILLALOBOS, 2003, p.53).
De fato, após o golpe militar no Uruguai, as divergências políticas e ideológicas
não mais afetavam as suas relações com o Brasil. Pode-se afirmar que passou a haver maior
identificação entre os seus respectivos regimes governamentais, pois ambos passaram a ser
autoritários. Além isso, a presença de brasileiros exilados no Uruguai havia começado a
diminuir significativamente após fins do ano de 1967, com a desarticulação dos
movimentos de oposição organizados por exilados brasileiros e em virtude do
endurecimento gradativo do regime político no Uruguai.
4. Considerações Finais Foi principalmente através da propagação de imagens das suas belas praias e lojas
que o Uruguai conquistou e manteve durante décadas a imagem de “Suíça Latino-
americana”. Foi conhecido como o país da justiça social, com um avançado sistema
democrático e as melhores condições de vida oferecidas aos seus habitantes, se comparado
aos seus vizinhos sul-americanos. Contudo, a grave crise que o país passou a enfrentar no
início da segunda metade do século XX, demonstrou que o Uruguai não era uma “ilha de
prosperidade”, tal como o seu governo esperava que os seus vizinhos pensassem, no intuito
de alcançar uma saída para os seus problemas econômicos através do turismo. No Brasil, tal
crise foi explorada pela imprensa como uma “prova” de que o Uruguai – um dos principais
refúgios para os opositores ao regime militar brasileiro –, era regido por um sitema de
governo incapaz de conter o caos, o que fazia deste, um “mal exemplo” para a América do
Sul. Desta forma, os militares uruguaios, unidos ao governo golpista brasileiro e aos
Estados Unidos, encontraram os argumentos necessários para justificar a efetivação de um
golpe de Estado no Uruguai em 1973.
5. Fontes e Bibliografia citada A PORTA esta aberta. VEJA. Ed. Abril. n.º 65. 03 de dezembro de 1969, p. 45. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil e os golpes na Bolívia, Uruguai e Chile: 30 anos depois. Revista Espaço Acadêmico, n.º 28, setembro de 2003, Mensal, ISSN 1519.6186.
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Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/028/28bandeira.htm>. Acesso em 20 de julho de 2006. COMISIÓN Nacional de Turismo. “Demos ao turista lo que es del turista” (informe publicitário). Marcha. Montevideo-UY. Año XXVI, nº. 1238. Deciembre 31 de 1964, p.10. DANÇAS MÁGICAS para atrair muitos dólares. VEJA. Ed. Abril. n.º 15, 18 de fevereiro de 1968, p.42. EMBAIXADA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Comentários favoráveis ao governo brasileiro. Ofício recebido da Embaixada Brasileira em Montevidéu. n.º 210. Montevidéu, 25 de maio de 1964. FREEDBERG, David. El poder de imágenes. Tradução: Madrid, Cátedra, 1992, p. 23. FURTADO, Celso. A Formação econômica da América Latina. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lia Editor S.A., 1970. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. História Contemporânea da América Latina: 1960-1990. 2ª edição, Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. KUSCHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964 - 2004). Bauru, SP: Edusc, 2004. LÓPEZ, Luiz Roberto. História da América Latina. 4ª edição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998. LÓPEZ CHIRICO, Selva. Estado y Fuerzas armadas en el Uruguay del siglo XX. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental S.R.L, 1985. _________. Forças Armadas e Democracia: um olhar para o passado recente a partir do final do século. In: ARAÚJO, Maria Celina de & CASTRO, Celso (org). Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. MARIANO, Nilson. As garras do Condor: como as ditaduras militares da Argentina, do Chile, do Uruguai, do Brasil, da Bolívia e do Paraguai se associaram para eliminar adversários políticos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. MOARES, João Carlos Kfouri Quartim de. Liberalismo e Ditadura no Cone Sul. Campinas: UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 1989. MRE. ROU. AHD. Fondo Legaciones y Embajadas. Sécción Brasil (Embajada de la ROU em Brasil) Asunto: Informaciones e comentarios sobre la situación de la republica. Caja160. Carpeta 1ª 8-65. Rio de Janeiro, 13 de diciembre de 1964, p.01-02.
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