primórdios do liberalismo e relação com o cristianismo, luís aguiar santos

Upload: causa-liberal

Post on 06-Apr-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/3/2019 Primrdios do Liberalismo e Relao com o Cristianismo, Lus Aguiar Santos

    1/7

    Primrdios do Liberalismo e Relao

    com o CristianismoLus Aguiar Santos

    1992

    ... je suis port penser que, sil na pas de foi, il faut quil serve, et, sil est libre, quil croie.

    Alexis de Tocqueville, De la Dmocratie en Amrique, vol. 2, cap. V

    Aquilo que este breve comentrio vai tentar delinear e problematizar com o mximo possvel de

    coerncia interna e fidelidade histrica a emergncia do liberalismo no contexto do mundo

    cristo ocidental. E antes de iniciarmos a exposio das reflexes feitas, h que ter presenteque por liberalismo se entende a concepo de sociedade em que a liberdade individual

    erigida a primado tico, de modo que toda a organizao do convvio humano e das obrigaes

    sociais do indivduo equacionada a partir dessa exigncia.

    A primeira grande questo que se pe ao encararmos este tema de saber porque que uma

    tal concepo da sociedade, isto , do relacionamento temporal dos homens, s surgiu naquela

    parte do planeta em que o cristianismo foi implantado, mantido e transmitido por uma entidade

    espiritual e institucional que podemos designar por igreja romana ou igreja ocidental (desde o

    sculo XVI, obviamente, deixou de ser assim para parte importante da Europa). Neste sentido,

    sem dvida necessrio lembrar o prprio carcter revolucionrio do cristianismo, cujoaparecimento um momento histrico da maior importncia por quanto operou, na conscincia

    dos homens que afectou, uma mudana radical da percepo da condio humana: verdade

    astro-biolgica do mundo primitivo e antigo, sucedeu uma verdade antropolgica. Isto , ao

    contrrio das outras vivncias religiosas, que se baseavam na integrao e harmonizao do

    indivduo com o cosmos e com aquilo que era tido por ordem csmica, o cristianismo apela a

    uma conscincia aguda da individualidade por deslocar a sede da verdade do mundo

    envolvente para o interior do homem, para a sua conscincia. E como facilmente se percebe,

    uma tal deslocao da sede da verdade, esvaziou o mundo envolvente de toda a sua carga

    sagrada; o homem emerge, destaca-se do mundo. Sem querer fazer voos muito altos, o que

    tudo isto faz parecer que a vivncia espiritual crist deu aos homens por ela afectados a

    possibilidade de verem na sua prpria existncia individual a realidade de maior significado

    universal. De modo que uma sociedade onde esta experincia espiritual se tornou predominante

    tinha forosamente de passar a encarar-se no como um ser genrico mas como um conjunto

    1 Texto de 1992. A bibliografia demasiado francfona, mas, de qualquer modo, o contedo est

    claramente influenciado por leituras de Maquiavel (O Prncipe), Lutero (Da Liberdade do Cristo), Locke

    (sobretudo Epistola de Tolerantia), Orlando Vitorino (Refutao da Filosofia Triunfante) e Eric Voegelin (A

    Nova Cincia da Poltica).

    1

    1

  • 8/3/2019 Primrdios do Liberalismo e Relao com o Cristianismo, Lus Aguiar Santos

    2/7

    de conscincias particulares, dotadas individualmente da sua prpria espiritualidade.

    Este processo no entanto foi retardado pelas condies histricas que o cristianismo teve deenfrentar no ocidente: a ordem imperial romana e uma forte religiosidade popular imersa numuniverso de milagres, realidades que tanto no plano mental como no social e institucional

    mantinham o mundo e os homens com uma s entidade monadria. De modo que o espaogeogrfico e temporal da igreja medieval se caracterizou por uma realidade que, vendo-se comoprimacialmente crist, era de facto uma complexa interpenetrao do cristianismo com aestrutura institucional romana e a religiosidade pag. Competiu ao longo desse perodo aospensadores que puderam cultivar uma reflexo autnoma, desenvolver focos de conscinciadessa situao que assim permitissem o reencontro com um cristianismo liberto doscondicionalismos histricos; e o crescimento deste movimento de descoberta capaz j de ver, luz do Evangelho, o mundo dessacralizado e a pura mensagem de Jesus Cristo, o que hojeconhecemos com o nome de humanismo. Desse movimento no separvel a Reforma, que foino fundo a massificao possvel dessa vontade de recriar um cristianismo mais autntico. Mas

    o avano no sentido de uma libertao da conscincia individual no foi muito claro porque,como se sabe, o fervor religioso acabou em grande parte por ser canalizado para areconsolidao quer da velha disciplina romana quer de novas disciplinas reformadas entosurgidas.

    Lutero no entanto a grande novidade e no h dvida que a sua interpretao do cristianismo,sobretudo a sua ideia de igreja, o anncio do fim da teologia civil crist. Lutero afirma com todaa veemncia que o cristianismo estabeleceu uma relao entre Deus e as conscinciasindividuais e no com nenhuma outra entidade; tudo o mais que houver fora dessa relao pura realidade profana. Assim profano tambm todo o tipo de associao que os homens

    fizerem neste mundo, seja a igreja visvel ou o Estado. A audincia que estas ideias tiveram,sofrendo obviamente aplicaes diversas e fortes resistncias, foi capaz de impor de novo aideia, de inegvel origem crist, de um homem face a um mundo dessacralizado, face a ummundo que lhe era oferecido por Deus. No menos importante que essa dessacralizao domundo, da vida social e das instituies, foi a consequente acentuao da liberdade deconscincia, da liberdade do indivduo fazer da sua f um assunto privado. E se isto era oprojecto cristo de Lutero, no h dvida que a poca moderna testemunha, quer pelaevoluo da f e das igrejas, quer pelas mudanas polticas concomitantes, uma luteranizaoprogressiva do cristianismo ocidental.

    neste cenrio que se compreende o aparecimento de um pensamento poltico que se desligada tica e da teologia, sobretudo desta ltima. Porque sendo a poltica a cincia ou a arte dascoisas que agora reapareciam dessacralizadas (o mundo, a vida social, as instituies), entovrios indivduos pertencentes ao meio intelectual que contactou com a concepointeriorizada, individualizada, do cristianismo, vo dedicar-se ao pensamento poltico de ummodo em que s consideram os puros factos profanos deste mundo.

    Maquiavel o grande nome desta viragem. E a questo que passa a estar latente em todo o

    2

  • 8/3/2019 Primrdios do Liberalismo e Relao com o Cristianismo, Lus Aguiar Santos

    3/7

    pensamento poltico desde ento a sua relao com a Revelao. O problema saber como que uma sociedade dessacralizada, que mesmo do ponto de vista cristo se v cada vezmais como uma realidade puramente humana e secular, se pode relacionar com a Revelao.Ser que pelo prprio carcter da Revelao crist (a Salvao pessoal), ela s diz respeito vida privada de cada indivduo ou dever ela ser a prpria base fundacional da sociabilidade e

    das instituies? Esta problemtica, que era onde todo o discurso que at aqui fizemos queriachegar, no de pouca importncia porque claramente nela que entronca a emergncia deum pensamento distintamente liberal ou proto-liberal.

    O desmoronamento nalguns meios sociais pelo menos mental da sociedade-igreja libertouo pensamento da teologia e permitiu assim o desenvolvimento da teorizao poltica comorealidade autnoma; permitiu o que hoje se designa de autonomia do Poltico. Isto, comotentmos demonstrar acima, no pode deixar-se de considerar resultado da maturao docristianismo na conscincia ocidental, da sua percepo como mensagem salvfica dirigida aoindivduo e sem projecto poltico (ao contrrio, por exemplo, do islamismo).

    Ora, um pensamento poltico autnomo, sem amarras em qualquer tipo de transcendncia, temgravssimos problemas para conseguir organizar a sociabilidade humana. Em primeiro lugarporque, no sendo a organizao social sancionada por Deus, como pode ela ser imposta? Porabsurdo, como pode ela sequer ser considerada necessria? E que organizao concreta sepode impor a todos os homens se ela tiver apenas uma natureza humana, isto , se for daautoria de um ou poucos indivduos? para uma humanidade nesta situao que se vfacilmente como vivendo num estado de guerra permanente que Maquiavel escreveu o seufamoso ABC da conquista e conservao do poder. Mas muitos pensadores, como Hobbes,no se sentiram satisfeitos com a precariedade da soluo maquiavlica e ambicionaram

    descobrir um modelo perene de organizao poltico-social. Mas a diferena mais importante que Maquiavel apresenta-nos a poltica a partir do Estado, da unidade (seguindo o exemploclssico), enquanto Hobbes na sua reflexo parte do indivduo.

    Hobbes chega a um modelo de ordem poltica auto-justificada, estabelecendo para tanto comoverdade a natureza hedonista do homem, a qual no encontraria no estado de guerrapermanente o seu habitat porque nesse mundo pr-social, natural, a vida e a integridadefsica de cada pessoa no estariam garantidas. Assim, a partir do mais inflamadoindividualismo, Hobbes consegue paradoxalmente uma justificao imanente da sociedade, quedispensa todo o recurso transcendncia; consegue ainda evitar o tipo de justificao baseadona pura secularizao do modelo teocrtico, em que a comunho espiritual totalitria destefosse substituda por um totalitarismo desta vez baseado na unidade da matria. O que aquivemos a primeira justificao de uma sociedade, de uma ordem poltica, integralmente feita apartir do ser humano individual, sem nenhum argumento transpessoal e que concebe todo orelacionamento desse indivduo com os seus semelhantes, no como obrigao exteriormenteimposta mas como anuncia interiormente decidida e explicitada na forma de contrato. Por esteseu individualismo radical que se faz eixo de toda a realidade, Hobbes indubitavelmente oanunciador do liberalismo, de tal modo que se o soberano de que fala fosse um mero agente da

    3

  • 8/3/2019 Primrdios do Liberalismo e Relao com o Cristianismo, Lus Aguiar Santos

    4/7

    lei (digamos de uma Constituio), sujeito a ela e no podendo legislar nem intervir no mercadoseno para aplicar a dita lei, toda a sua teoria seria a perfeita descrio do Estado liberal.

    Embora se possa arranjar argumentos poderosos para opor o cristianismo teoria hobbesiana,o paralelo da centralidade da pessoa humana evidente e, parece-nos, a simples oposio da

    tica crist ao pressuposto hedonista de Hobbes falsear involuntariamente a questo porqueaquilo que distingue a reflexo deste pensador, aquilo que faz dele um autntico revolucionrio conceber o homem fora de uma ordem poltica e, parafraseando Alexandre Herculano,conceber a sociedade como a coisa do indivduo e no o indivduo como a coisa dasociedade. Assim, o aparecimento do proto-liberalismo de Hobbes no s s compreensvel num cenrio prvio de uma espiritualidade evacuada do universo envolvente dohomem, como se filia logicamente naquela interiorizao do cristianismo que possibilitou aidealizao de uma sociedade constituda por um conjunto de conscincias particulares.

    A pouca aceitao da teoria de Hobbes pelos seus contemporneos merece alguma ateno. A

    opinio de C. B. Macpherson inclina-se para ver como causa dessa rejeio geral a relutnciaum pouco hipcrita da burguesia inglesa em validar o retrato pouco elogioso da naturezahumana em Hobbes. possvel que muita gente se tenha chocado tanto com esse retratocomo com as solues desinibidamente repressivas concebidas por Hobbes para barrar ecanalizar ordeiramente as tendncias naturais dos homens cujo choque descontrolado levaria anarquia. No entanto, parece-nos que as razes da reduzida aceitao da teoria hobbesiana sedevem procurar mais justificadamente noutro aspecto do seu contedo.

    Antes de mais, preciso dizer-se que a teoria de Hobbes no foi rejeitada em bloco; o seuindividualismo no foi contestado. E os princpios da propriedade privada vista como extenso

    do Eu e materializao de uma esfera de liberdade individual inviolvel e da economia demercado encarada como o espao de interaco das vrias soberanias individuais ,aparecidos com grande clareza em Hobbes, mantiveram-se no pensamento dos autoresposteriores que vo agradar burguesia inglesa. Apesar de Hobbes na sua reflexo terpartido de um homem solto, livre no universo, a lgica que est na base da sua construopoltica indivduos com interesses pessoais na manuteno de uma ordem civil acaba porconstituir-se numa autntica mquina que funciona em circuito fechado e auto-suficiente, ao queno estranho o carcter perene e infalvel que ele queria dar sua proposta poltica numcenrio de vida social radicalmente imanentizada. E essa caracterstica mecanicista da ordempoltica por ele pensada que nos parece ter sido a razo do repdio de que foi alvo. Sintomticadessa ordem mecnica que se auto-alimenta a ideia do soberano que se perpetua a simesmo, pea fundamental para o funcionamento da sociedade hobbesiana. Na verdade,Hobbes, que pensou a poltica no contexto, aberto pelo cristianismo, de um mundodessacralizado e de homens que se concebem livres, radicalizou essa dessacralizao eliberdade humana at ao ponto de romper com a Revelao. Essas verdades desligavam-se daorigem divina e, tal como o seu sistema, eram vlidas por si mesmas. Eis o que a burguesiainglesa do sculo XVII no podia aceitar; no por mero preconceito religioso mas por entrevera inevitvel condio orgnica de uma sociedade sem amarras em algo que a transcenda. O

    4

  • 8/3/2019 Primrdios do Liberalismo e Relao com o Cristianismo, Lus Aguiar Santos

    5/7

    facto de uma sociedade de Antigo Regime, uma sociedade-igreja, ter essas amarras transcendncia e ser vincadamente orgnica, no nos deve confundir; porque nesse caso asgarantias transcendentais legitimam no os direitos do indivduo mas os direitos dacolectividade. O efeito do cristianismo, anestesiado durante muito tempo pela tradioinstitucional romana, foi, como vimos, o de transferir o elo da garantia transcendente do conjunto

    da sociedade para cada homem individual, de modo que essa ligao particularizada viria aimpedir que a sociedade se constitusse num todo fechado, englobante e auto-suficiente.Hobbes tentou resolver o problema de uma sociedade poltica que, no ocidente, j no podiacontar com a chancela divina para se auto-compreender e aceitar; mas, para o conseguir, coma tal infalibilidade e perenidade da sua proposta, viu-se forado a romper com aqueles elos comque o cristianismo ligava cada homem a Deus directamente e sem a mediao da colectividade.Viu-se portanto forado a suprimir a experincia espiritual que possibilitava aos homens superara experincia concreta e condicionante da vida social.

    Aquilo que pensamos, aqui chegados, poder afirmar que o cristianismo criou uma situao

    absolutamente nova no domnio da coexistncia dos homens sobre a Terra. Ele recusa sociedade e respectiva ordem poltico-jurdica a auto-sacralizao, sendo simultaneamenteum poderoso elemento resistente tendncia que a nova sociedade secularizada desenvolverde se reconstituir num mecanismo fechado e totalizante, j no com base em apoiostranscendentes mas numa verdade que a prpria sociedade na sua existncia real e terrena.E em Locke encontra-se a conscincia clara do desafio que representa a secularizao.

    John Locke surge-nos como o terico que, partindo tambm do pressuposto de que asociedade a coisa do indivduo, sente necessidade de explicitar a dependncia desseindividualismo em relao Revelao crist. esse o papel que tem no seu pensamento o

    direito natural, com o qual atribui ao homem individual direitos inalienveis, cuja autoridade lhesvem de terem supostamente precedido a prpria existncia da sociedade civil. Estaprecedncia no deve ser compreendida apenas em termos cronolgicos mas sobretudomorais; para Locke, os direitos individuais so, por assim dizer, decorrentes da lei divina,enquanto que a sociedade civil uma criao do homem que no pode desrespeitar essa lei. Ocristianismo assim a fonte da verdade sobre o homem e a sociedade equaciona-se tendo emconta essa verdade mas sem propriamente se poder dizer que se fundamente no direito divino.A sociedade em si, as suas leis e instituies a ordem poltico-jurdica vista como umaconveno humana, radicalmente desprovida de origem divina, feita pelo homem para seuusufruto, por convenincia. Desencantada, dessacralizada, a sociedade civil de Locke difereda de Hobbes por naquela o primado da liberdade individual ser estabelecido de modo positivo,afirmativo, e no ser mero resultado do funcionamento de um mecanismo onde estenclausurado.

    As consequncias que Locke tira da sua reflexo sobre a vivncia da espiritualidade crist soperfeitamente coerentes com as suas ideias polticas: no h autoridades espirituais porquecada um se relaciona particularmente, individualmente, com Deus; a igreja ou as igrejas visveisque se constituam so simples associaes seculares de cristos. nas leis e instituies

    5

  • 8/3/2019 Primrdios do Liberalismo e Relao com o Cristianismo, Lus Aguiar Santos

    6/7

    civis, seculares, que reside a visibilidade e funcionalidade da comunidade poltico-jurdica. Este

    modelo, que nega tanto ao congregacionismo religioso como ao Estado a obstruo da via

    aberta e directa que cada um tem para Deus, acabar por triunfar em Inglaterra com a Gloriosa

    Revoluo de 1688 e o Bill of Rights do ano seguinte; dele se tornaro admiradores muitos

    homens do continente e com ele nasce sem dvida aquilo a que, no princpio do sculo XIX, se

    convencionar chamar liberalismo. Locke deu-lhe as formas sem lhe conhecer o nome.

    A articulao lockeana do cristianismo, da liberdade individual e da sociedade secular no

    deixou de conhecer desvios que levantaram novos problemas. Houve muito cedo a tendncia

    de determinados intelectuais, sobretudo continentais, de cortar de novo com a Revelao crist.

    Certos da necessidade de uma garantia da liberdade exterior sociedade, esses autores foram

    levados a apresentar um direito natural secularizado ou dependente de um Deus natural que

    no o revelado pelo cristianismo. Esta questo, que mereceria s por si um outro texto, ser

    aqui comentada com grande brevidade. Tanto num caso como noutro, parece-nos haver uma

    mudana muito significativa sobre o direito natural. Este torna-se, secularizado, num gnero de

    determinismo astro-biolgico que coloca na mecnica do Universo-Natureza a lei da liberdadedo homem; contrariamente ao que acontecia em Hobbes e mesmo em Locke, este

    Universo-Natureza, o mundo envolvente do homem, passa a ter um significado em que est

    includa a verdade sobre o homem e difcil no ver aqui como que uma restaurao do

    universo mental pr-cristo. O recurso a um Deus natural, isto , quela divindade que se teria

    manifestado apenas no facto de toda a humanidade se relacionar com uma verdade ou entidade

    transcendente, apresenta a dificuldade de na prtica se ser conduzido a uma espiritualidade

    neutra; porque afastando-se os particularismos (nos quais os adeptos deste naturalismo

    incluem a Revelao crist), nenhuma verdade fica afirmada a no ser a da existncia de Deus.

    Em ambos os casos se fica com aquilo que nos parece ser um gnero de pantesmo em que

    se perde aquele mnimo de ordem, de verdades, de garantias, que as religies estabelecem eque, no caso do cristianismo, proclama a singularidade e a liberdade de cada uma das pessoas

    a que se dirige a mensagem salvfica de Jesus Cristo.

    A emergncia do liberalismo parece-nos s ser explicvel por se ter dado a mudana radical da

    percepo da condio humana operada pelo cristianismo. Para se dar essa mudana foi

    necessrio vencer a herana pag mas tambm a romana o que no aconteceu na igreja

    oriental. Como doutrina poltica da liberdade individual, o liberalismo encontra as suas razes

    naqueles pensadores, tributrios do cristianismo, que consideraram pela primeira vez que a

    sociedade se devia organizar em funo do indivduo e no o contrrio. Mas ao querer

    separar-se das verdades crists que tanto dignificam o homem individual, o liberalismo

    encontrou grandes dificuldades em conseguir, por assim dizer, tornar-se evidente por si

    mesmo. Por nossa parte, e pelo que aqui ficou escrito, duvidamos que tenha conseguido ou

    venha a conseguir sobreviver sem aquele fio de f (ou de simples adeso intelectual) que o liga

    s verdades do cristianismo e que Locke bem vislumbrou e quis preservar.

    6

  • 8/3/2019 Primrdios do Liberalismo e Relao com o Cristianismo, Lus Aguiar Santos

    7/7

    Bibliografia

    Georges Gusdorf, 1972. Dieu, la Nature, lHomme au Sicle des Lumires, Payot, Paris.

    C. B. MacPherson, 1971. La Thorie Politique de lIndividualisme Possessif de Hobbes Locke,

    Gallimard, Paris.

    Bernard Plongeron, 1973. Thologie et Politique au Sicle des Lumires (1770-1820), Droz,

    Genebra.

    7