elementos de doutrina neocartista, por luís aguiar santos

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  • 8/3/2019 Elementos de Doutrina Neocartista, por Lus Aguiar Santos

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    Elementos de Doutrina NeocartistaLus Aguiar Santos

    Novembro de 2005

    Elementos de Doutrina Neocartista

    O que o Neocartismo?#

    O Neocartismo defendido (rplica a Joo Noronha)#

    A Legitimidade Dinstica e a Carta (resposta a um miguelista)

    Notas

    O que o Neocartismo?1 O Neocartismo a doutrina que reafirma, sobre todos os outros modelos constitucionais

    portugueses, a superioridade da tradio de Direito Pblico consubstanciada na Carta

    Constitucional da Monarquia Portuguesa, de 29 de Abril de 1826. Mais afirma que a Carta

    constituiu uma soluo de continuidade constitucional, partindo da ordem jurdico-poltica

    anterior e da autoridade rgia nela legitimamente constituda. Afirma, enfim, que o ordenamento

    jurdico resultante da sua Outorga aquele que, relativamente aos outros modelos

    constitucionais, mais e melhor consagra os princpios ticos e jurdicos universais da Tradio

    Liberal Clssica.

    2 A Carta Constitucional, longe de ser uma curiosidade morta de um passado distante, , alm

    de um cdigo jurdico integrante da experincia histrico-poltica portuguesa, um enunciado de

    princpios e regras de validade perene e, como tal, passvel de leitura, reflexo e inspirao no

    tempo presente. Embora sofrendo vrias vicissitudes, a Carta serviu como Lei Fundamental do

    Pas entre 1826 e 1910 e foi tida em conta, como elemento de ponderao, na elaborao de

    todos os textos constitucionais subsequentes. Essa ponderao, mesmo na ausncia de uma

    tradio cartista contnua, assumida e estruturada, a prova da vitalidade dos princpios

    explcitos e implcitos consagrados na Carta Constitucional. Como se argumentar infra, esses

    princpios interdependentes so a continuidade constitucional, o primado da Lei, a liberdade

    individual, a separao de poderes e a partilha da soberania.

    3 Relativamente s chamadas constituies de 1822 e 1838, filhas de processos

    revolucionrios, teve a Carta Constitucional a sagrada vantagem de no nascer de uma ruptura

    com a legitimidade da ordem jurdico-poltica tradicional do Reino de Portugal, materializada nas

    prerrogativas da Coroa e nas Ordenaes. No prembulo da Carta, D. Pedro IV referia-se s

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    Trs Ordens do Estado que a deveriam jurar e, nas disposies finais, alude s Ordenaes,

    para as considerar em vigor e apenas revogadas naquilo que colidir com o disposto no texto

    outorgado. Enquanto a constituio de 1822 omitia toda a realidade jurdico-poltica

    preexistente, como se o Pas estivesse a ser fundado pelas disposies decretadas por umas

    Cortes soberanas que nunca haviam existido, a Carta de 1826 era outorgada pela majestade

    real e o seu texto publicado como Carta de Lei; nestes dois actos, o seu texto e respectivoalcance foram, por assim dizer, adicionados ordem jurdico-poltica preexistente, passando

    depois e s depois, pela consequncia de seu prprio enunciado, a tutelar essa ordem. Assim,

    na origem da Carta Constitucional est implcita a impossibilidade, ou a inconvenincia, do

    fenmeno ou processo constituinte, vrias vezes repetido na experincia histrico-poltica

    portuguesa. Da ideia de que uma nao se pode reunir e fazer a sua Constituio no

    partilham a Carta e a sua circunstncia histrica da Outorga. Esta foi estranha tanto a esse

    ideal voluntarista constituinte como ao seu ideal gmeo de uma soberania nacional ou popular

    que faz e desfaz as leis. Deste pernicioso ideal se fizeram eco os constituintes de 1822 e

    todas as constituies subsequentes Carta, incluindo as republicanas de 1911, 1933 e

    1976. Todas estas constituies tiveram em comum essa predisposio para fazer tbuarasa do que as precedia e, em consequncia, para se apresentarem como uma nova fundao

    do Pas resultante de uma suposta vontade colectiva toda poderosa e a qualquer momento

    podendo declarar-se constituinte. Foi assim que, inspirada nos precedentes deixados pelos

    textos de 1822 e 1838, a constituio de 1911 pde derrubar todas as formas precedentes de

    exerccio da soberania e criar, do nada, uma repblica democrtica; esgotado este modelo, a

    constituio de 1933 decretou que o Pas se transformasse em repblica corporativa; e,

    seguindo de facto tais exemplos, a constituio de 1976 quis moldar o Pas a uma

    democracia socialista. Como esta histria constitucional demonstra, a doutrina da soberania

    ilimitada, democrtica ou no democrtica, incompatvel com a continuidade constitucional,

    que o garante prtico do Primado da Lei.

    4 S a Carta nasceu sem ruptura constitucio-nal e s a Carta consagrou uma concepo de

    soberania partilhada; nela, cabe ao Rei, aos Pares e aos Deputados, conjunta e no

    isoladamente, o seu exerccio. A natureza mesma da soberania na Carta a sua condio

    partilhada, e de um modo que se pode dizer, com rigor, que ela permite que cada um dos trs

    pilares da soberania Rei, Cmara de Pares e Cmara de Deputados paralise a aco dos

    dois restantes (para se constatar isto, consulte-se o seu Ttulo IV, captulo IV, respeitante

    proposio, discusso, sano e promulgao das leis). De facto, a qualquer acto legislativo

    era requerida uma tripla aprovao: a da cmara proponente, a da outra cmara e a da sano

    rgia, cuja no concesso era derrogatria. O fundamento desta possibilidade de paralisao

    o de que um edifcio constitucional se destina essencialmente a preservar determinadas

    garantias e condies gerais adquiridas e no a assegurar a eficincia de um determinado

    poder na prossecuo de seus objectivos particulares. Historicamente, a oposio demaggica

    Carta radicou sempre na assero alis correcta de que ela impedia o estabelecimento de

    uma soberania democrtica plena. Da mesma forma, os chamados absolutistas, depois

    partidrios das pretenses indevidas do infante D. Miguel ao Trono, opunham-se-lhe porque ela

    impedia tambm o estabelecimento de uma soberania real plena. A verdade era, pois, que a

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    Carta limitava toda a soberania, monrquica, aristocrtica e democrtica. A propenso dosconstituintes de 1822, 1838, 1911, 1933 e 1976 para limitarem ou banirem a monarquia e paraestabelecerem de jure ou de de facto um parlamento unicameral devia-se a um desiderato maisou menos confessado de instalar uma soberania exclusiva (e, logo, tendencialmente ilimitada),da Cmara dos Deputados ou do Governo.

    5 Mas a partilha da soberania no uma mera diviso de poderes, que a Carta no sconsagra, mas relativamente aos outros textos constitucionais multiplica, acrescentandoaos trs comuns o quarto poder que especialmente incumbe monarquia (o moderador). Essapartilha de soberania diz, sim, respeito coabitao de duas fontes distintas da soberania anacional ou popular, e a dinstica. Ao contrrio dos outros textos, a Carta no diz que asoberania reside essencialmente em a nao (ou no povo); ela diz, sim, que os representantesda Nao Portuguesa so o Rei e as Cortes Gerais (artigo 12.). Tal frmula assume, antes demais, o carcter representativo de todo o poder poltico algo que nem sempre claramenteassumido pelas frmulas democrticas puras, que no raro se explicam a si mesmas como um

    autogoverno popular completamente fantasioso. possvel um indivduo autogovernar-se; no possvel um grupo autogovernar-se. Quando se diz que um grupo se autogoverna est-se ausar uma linguagem metafrica desapropriada que oculta a relao de comando e obedinciaforosamente existente em todas as formas de poder poltico. O principal problema da ideologiademocrtica pura o facto de ocultar essa incontornvel natureza do poder poltico, criando ailuso de um compacto em que a massa de indivduos e o poder poltico pretensamente sefundem, evacuando a relao de comando e obedincia. Tal relao, porm, est semprepresente onde quer que exista um poder poltico estabelecido, o qual se exerce universalmentepela representao, isto , pela transferncia da capacidade de deciso e aco de umconjunto de indivduos para um algum singular ou colectivo; e essa transferncia opera-se por

    delegao formal, como num processo eleitoral, ou por consentimento tcito, como no caso darelao entre sbditos e monarca hereditrio. S a conscincia desta natureza universal dopoder poltico permite, como na Tradio Liberal Clssica, centrar a reflexo no problema dasua limitao possvel ou desejvel, independentemente da sua forma (monrquica,aristocrtica ou democrtica, na melhor das hipteses, tirnica, oligrquica ou demaggica, napior). Os verdadeiros libertrios, integrados na referida tradio, julgam possvel e desejvel aeliminao do poder poltico e desta sua natureza; os restantes liberais clssicos (como oscartistas de ontem e os neocartistas de hoje), por a julgarem improvvel, continuam acentrar-se na problemtica da limitao do poder ou, dito de outra forma, na conteno, senoneutralizao, da soberania. A mesma frmula da representao na Carta significa ainda queesta recusa qualquer tipo de monismo poltico, como acontece quando se consagra uma nicafonte da soberania. Ora, implcita nesta recusa de monismo, est a convico de que s talpartilha da soberania cria condies de segurana para uma efectiva separao de poderes: setoda a origem da soberania uma, qualquer separao de poderes posteriormente institudaser sempre um artificialismo frgil. Pelo contrrio, a pluralidade de fontes de soberania fazradicar a separao dos poderes numa base slida e no fundvel.

    6 A liberdade pessoal ou individual de conscincia e aco, que a Tradio Liberal Clssica

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    quer acima de tudo preservar, exige um prvio primado da Lei, que neutralize toda a indevidacoero e arbitrariedade. Por seu lado, esse primado s existe num contexto de continuidadeconstitucional, no qual a Lei prevalece no tempo acima de qualquer voluntarismo poltico. Istorequer uma conteno do poder poltico constitudo que convida sua separao, a qual sertanto mais efectiva quanto mais a soberania se entender e for entendida como plural e

    partilhada. A Carta Constitucional no s reconhecia e consagrava a liberdade individual deconscincia e aco (basta ler o artigo 145., a melhor lista de liberdades essenciais do DireitoPblico portugus) como garantia ambas as condies que a tornam jurdica e politicamenteexequvel: a continuidade constitucional como raiz do primado da Lei e a soberania partilhadacomo raiz da separao de poderes.

    O Neocartismo defendido (rplica a Joo Noronha)

    7 Comeo por esclarecer no ter defendido que a outorga da Carta tenha sido uma soluoperfeita de continuidade constitucional; foi a soluo possvel dentro da histria e das

    circunstncias que eram as nossas e no as dos Ingleses de 1688 (e eu no fiz nenhumparalelo com a Gloriosa). A Gloriosa Revoluo inglesa de 1688 tem muitos mais paraleloscom as revolues portuguesas de 1385 e 1640, que foram tambm crises dinsticasresolvidas com alteraes de sucesso e revises do pacto entre a Coroa e o Pas [1]. Mas emnenhum destes casos se tratou de uma revoluo com verdadeira ruptura constitucionalcomo no caso da Revoluo Francesa ou, j agora, da revoluo russa de 1917 (a revoluoamericana, como direi a seguir, um caso parte). Por muito que a Carta tenha partido davontade do Rei (ou do voluntarismo do Rei, se se quiser), no se pode dizer que a suaoutorga represente uma ruptura em termos de legitimidade; ela no se origina de um poder novoque irrompesse de uma revoluo ou de um golpe de estado, mas antes origina-se da fonte

    legtima do poder na ordem jurdico-poltica preexistente [2]. Outra questo: a de D. Pedro IVser, segundo a crtica, herdeiro de um poder absoluto. Quanto a isto, deve dizer-se que nohouve nunca um rei em Portugal que tivesse poder absoluto, nem de jure nem de facto; mesmoantes da outorga da Carta, por muito alargado que fosse o poder do Rei, este era limitado porleis, tradies, tribunais, municpios ou grupos sociais com capacidade de resistncia (mesmoque mais ftica que legal).

    8 O Rei foi um instrumento, o nico instrumento legtimo no quadro da nossa realidadehistrica, de um acto constituinte que era esperado, seno pedido, pelo Pas pelo que julgo umpouco redutor apresentar a outorga como um puro acto de vontade de uma pessoa. Se estapossibilidade de transio para um ordenamento jurdico-poltico liberal excluda, ficamosapenas com a soluo revolucionria; e porque havemos de ficar s com a soluorevolucionria? esta ltima mais digna, mais liberal por si mesma? No vejo porqu. Asrupturas revolucionrias so complicadas e indesejveis este um pressuposto neocartista,de facto. E so-no porque, uma vez quebrada a linha de continuidade de uma legitimidadepoltica historicamente consolidada, tudo o que se faz a seguir construdo sobre o vazio,

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    sobre o nada; tudo fica dependente da boa vontade das faces, que podero alis recorrer

    sempre ao precedente revolucionrio e da ruptura constitucional para defenderem os seus

    interesses e pontos de vista. Na verdade, que legitimidade tem um regime nascido de uma

    ruptura revolucionria para se defender, no campo dos princpios, de investidas

    revolucionrias? Eu digo: no tem nenhuma. O meu argumento que a continuidade

    constitucional uma base muito mais slida para o respeito pela Lei e para o primado da Lei doque uma mudana abrupta de fonte (que se pretende legtima) do poder.

    9 O facto de gnese do regime jurdico-poltico norte-americano ser uma ruptura constitucional

    no nos deve induzir em erro: que a revoluo americana de 1776 foi em si mesma um

    fenmeno de secesso poltica, um fenmeno em que uma determinada unidade territorial e

    humana se separou de uma entidade poltica mais vasta que era o Reino Unido da

    Gr-Bretanha e as suas dependncias. Ora, um fenmeno de secesso implica sempre uma

    ruptura destas, tal como quando o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, juntamente com os

    nobres portugueses, se separou do reino de Leo e Castela no sculo XII. Num caso e noutro,

    as secesses criam uma nova linha de continuidade jurdico-poltica que tem a sua legitimidadeprpria no acto fundador e na determinao de autonomia que a suportou. Os Estados Unidos

    resultaram historicamente do triunfo militar dos que defendiam nas treze colnias a ruptura com

    a continuidade jurdico-poltica britnica e o argumento da continuidade constitucional

    deslocou-se depois, nessa nova sociedade separada, para o ordenamento jurdico-poltico

    resultante da promulgao da Constituio Federal de 1787. Tal como em Portugal, no sculo

    XII, aps o triunfo militar dos partidrios da secesso, o argumento da continuidade

    constitucional e da lealdade dinstica se deslocou, dentro desta nova sociedade separada,

    para o Rei e a Lei de Portugal; a fundao desta legitimidade emancipada ficou gravada no grito

    atribudo aos nobres portugueses aps a batalha de Ourique, O nosso Rei livre e livres

    somos ns!Ora, o problema da instaurao do liberalismo entre ns faz-se no contexto de ummesmo Estado-Nao com uma continuidade histrica e uma ordenao jurdico-poltica

    preexistente; no se est a fundar um pas novo, como chegou a afirmar em vrias ocasies

    histricas a propaganda radical, est-se, sim, a reformar um pas antigo (ou, como se dizia no

    sculo XIX, est-se a regener-lo) [3].

    10 Eu concordo que os Estados Unidos so provavelmente a sociedade mais bem sucedida

    do ponto de vista das expectativas dos liberais; o que j no aceito a ilao que da se tira de

    que, no tendo essa sociedade uma monarquia hereditria estabelecida, logo a monarquia no

    um elemento favorvel consolidao dos princpios liberais. Quando afirmei alis, no no

    texto criticado que a monarquia hereditria o ponto de apoio mais fivel da liberdade

    individual estava a pensar em termos de poderes histricos fticos e no em cenrios ou

    regimes polticos ideais. Para esclarecer completamente a minha posio, eu julgo que o ponto

    de apoio mais fivel da liberdade individual , primeiro, o reino da conscincia individual e, nela,

    a determinao do indivduo de ser e permanecer livre; o segundo ponto mais fivel ser a Lei e

    tanto mais quanto consagre um ordenamento jurdico centrado no indivduo e nas garantias

    sua esfera privada de conscincia e aco; em terceiro lugar viria ento um regime poltico

    misto no qual os poderes polticos fticos (devidamente domesticados pela Lei e sobretudo pela

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    existncia de um grande nmero de pessoas que querem permanecer livres) se equilibram e

    limitam mutuamente. Neste ltimo ponto, julgo que o essencial j est dito, h quase dois mil e

    quinhentos anos, por Aristteles: o poder ftico pode ser de um (monarquia se regrado, tirania

    se desregrado), de vrios (aristocracia se regrado, oligarquia se desregrado) ou de muitos que

    sejam at a maioria (democracia se regrado, demagogia se desregrado). Para serem regrados,

    os poderes polticos fticos tm de submeter-se quilo a que os Gregos chamavam deisonomia e que era o primado de uma Lei igual para todos (descoberta, alis, que os Judeus,

    pioneiros da monarquia constitucional, j tinham feito muito antes: cf. Jos Nunes Carreira, A

    constituio monrquica de Israel, in Estudos em Homenagem a Jorge Borges de Macedo,

    Lisboa: I.N.I.C., 1992, pp. 49-58). Mas o velho Estagirita descobriu ainda outra coisa, que seria

    reafirmada, mais de dois mil anos depois, pelos gnios de David Hume e de Edmund Burke: que

    o melhor regime poltico aquele que rena, devidamente regrados e equilibrados, os trs

    poderes polticos fticos a esse regime misto Aristteles chamoupoliarquia [politeia] [4]. E a

    Carta Constitucional no mais do que a consagrao de um regime poltico polirquico;

    inspirada de facto, tal como a Carta brasileira de 1824, na Carta francesa de 1814, a qual, pela

    via do garantismo e de Benjamin Constant, se inspirara directamente na prtica inglesa ou, maispropriamente, no que sobre ela havia escrito Burke em textos fundamentais como o seu Speech

    on the Representation of the Commons in Parliamentde 1782.

    11 Ora, o que me parece que, de entre os poderes fticos, a monarquia hereditria o mais

    inofensivo para a liberdade individual. O poder exercido por uma s pessoa aquele que mais

    facilmente se limita porque est claramente identificado, sendo o seu agente facilmente

    responsabilizado pelos seus actos; por ser eminentemente individual, tambm a forma de

    poder que menos opera a ilusria fuso do comando e da obedincia que se d nas formas

    colectivas de organizao do poder e , portanto, a que mais nos mantm conscientes da

    necessidade de limitar todo o poder. Por outro lado, a necessidade desta forma individual oumonrquica do poder est patente mesmo nas repblicas sob a forma do presidente ou do

    primeiro-ministro com competncia executiva de facto (que, nos termos da tipologia aristotlica,

    so monarcas temporrios e eleitos). A favor, porm, da monarquia hereditria esto

    argumentos magistralmente apresentados por Hume no ensaio That Politics May Be Reduced

    to a Science (1742): 1. que a eleio do monarca tem, na prtica, um factor de acaso to

    grande como a designao pelo mecanismo hereditrio, no garantindo a ocupao do cargo

    por uma pessoa em si mesma mais inteligente e talentosa ( preciso algum no perceber nada

    da realidade poltica ou chamar-se Thomas Paine para pensar que o mecanismo eleitoral

    permite escolher os melhores para o exercc io do poder); 2. que para chegar a ser candidato

    e depois a ser eleito, o monarca temporrio tem de fazer alianas e aceitar compromissos dos

    quais nunca se poder ou saber realmente libertar durante o exerccio do seu mandato

    (sobretudo, mas no s, se ambicionar a reeleio); 3. que a escolha eleitoral do monarca, ao

    contrrio da eleio de um parlamento, um germe cclico de guerra civil porque requer a

    constituio de duas ou mais faces rivais de cuja confrontao s uma sair vitoriosa e ficar

    representada (o hbito dos monarcas eleitos se declararem depois representantes de todos

    um wishfull thinking incapaz de apagar os sentimentos criados pelo ambiente faccioso e de

    confrontao). Assim, o que necessrio e mesmo saudvel para a eleio de um parlamento

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    e da sua representao plural, desastroso na designao do monarca.

    12 Neste sentido, a soluo norte-americana de um presidente eleito em vez de um monarca

    hereditrio no me parece o mais apropriado nem o mais ortodoxo do ponto de vista da boa

    doutrina constitucional de Hume e de Burke. Se, nos Estados Unidos, o sistema da eleio do

    chefe de Estado no tem tido consequncias to desastrosas como noutras sociedades porque a separao de poderes a muito mais efectiva do que na generalidade dos

    ordenamentos jurdico-polticos contemporneos. Essa separao de poderes foi, alis, um

    puro decalque do molde ingls do sculo XVIII que inspirou as reflexes de Montesquieu sobre

    o assunto: o executivo presidencial perfeitamente inspirado no governo de gabinete do Rei, tal

    como a sua clara separao do legislativo. O governo do presidente e responde perante o

    presidente, tal como at ao sculo XVIII o governo de Sua Majestade era do Rei e respondia

    perante o Rei; no do Congresso norte-americano que emana o governo, tal como no era do

    parlamento de Westminster que emanava o governo britnico (a presso democrtica levou

    depois a uma dependncia crescente do governo em relao ao parlamento e em especial

    Cmara dos Comuns). O que os Pais Fundadores norte-americanos consagraram foi essadistino, que j ento na Gr-Bretanha se estava a esbater, entre o executivo e o legislativo.

    Este ltimo detinha o poder de decidir o que o governo podia levantar em termos de impostos

    (em grande medida o parlamento era entendido como uma representao dos contribuintes) [5]

    e o poder ou monoplio de fazer leis atravs de um processo de acordo entre duas cmaras

    distintas embora, consagrando um dos princpios da monarquia constitucional britnica, os

    norte-americanos tenham concedido ao seu presidente um veto derrogatrio sobre a actividade

    legislativa do parlamento. A Constituio de 1787 concedeu ainda ao presidente a nomeao

    dos grandes juizes, tal como acontecia com o Rei de Inglaterra; e esses juizes formaram um

    tribunal supremo que tem a competncia atribuda na constituio britnica aos Law Lords na

    cmara alta do parlamento tal como coube ao Senado norte-americano a competncia daCmara dos Lordes de julgar a m gesto ou os crimes dos responsveis polticos e Cmara

    dos Representantes a competncia da Cmara dos Comuns de levar a cabo as acusaes.

    Pode dizer-se que todas as garantias constitucionais britnicas, excepto uma (o carcter

    hereditrio do monarca), foram mantidas pelos norte-americanos e esse facto que nada tem

    a ver com a etiqueta republicana do seu regime que tem funcionado como receita de sucesso.

    13 Todas estas garantias, incluindo a monarquia hereditria, foram consagradas na Carta

    Constitucional portuguesa: o governo era do Rei e respondia perante o Rei (at 1910 usou-se

    sempre a expresso Governo de Sua Majestade), o qual nomeava os grandes juizes que

    constituam o Supremo Tribunal de Justia; o parlamento tinha duas cmaras e o exclusivo do

    processo legislativo que, para ter seguimento, pressupunha um acordo da cmara alta e da

    cmara baixa; o Rei podia, no entanto, interpor o seu veto; a Cmara dos Deputados era eleita

    pelo princpio democrtico e detinha toda a iniciativa em assuntos de impostos e de

    recrutamentos militares (o que significava que esses assuntos delicados eram retirados da

    alada do Governo do Rei); a Cmara dos Pares era designada pelo princpio aristocrtico e

    detinha a competncia de julgar a m gesto e os crimes dos responsveis polticos (e at de

    membros da Famlia Real), competindo a acusao aos Deputados [6]. Dadas estas

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    caractersticas, ser assim to abusivo como considerava a crtica apresentar-se a Carta

    como modelo de separao de poderes?

    14 Os Privilgios Reais, como a crtica os nomeia, o que so? De acordo com a Carta, o

    Rei tem competncias de dois tipos: as que, enquanto detentor do poder moderador, exerce

    directamente (artigo 74.); e as que, enquanto chefe do poder executivo, exerce indirectamente,atravs dos seus ministros (artigo 75.). Consideremos primeiro as competncias directas do

    Rei, isto , o seu poder moderador. Este poder diz respeito nomeao e demisso dos

    ministros, nomeao dos Pares, convocao, prorrogao ou dissoluo extraordinrias

    das Cortes Gerais (sendo que os Pares, uma vez nomeados, so inamovveis e que a

    dissoluo da Cmara dos Deputados implica a convocao imediata de novas eleies) e ao

    exerccio da sano dos actos legislativos das mesmas Cortes, de forma a que possam ter a

    fora de Lei; bem vistas as coisas, alm de promulgar as leis, o Rei tem o poder de nomear o

    Governo e de dissolver o Parlamento. O artigo 74. d-lhe ainda competncias moderadoras no

    mbito do sistema judicial: a suspenso de juizes havendo contra eles queixas e depois de

    estes e do Conselho de Estado serem ouvidos (embora s por sentena judicial pudessemperder o lugar, artigo 122.) , o perdo ou moderao de penas impostas a rus por sentena

    judicial e a concesso de amnistias em caso urgente. Analisemos a natureza deste poder

    moderador, notando desde j que estas competncias so aproximadamente aquelas que as

    constituies republicanas se viram obrigadas a concentrar numa figura improvisada para

    substituir o Rei o presidente. A concesso destas competncias pressupe a concepo

    do poder moderador, primeiro, como uma instncia de desbloqueamento de conflitos: esto

    neste mbito a possibilidade de convocar ou prorrogar extraordinariamente a durao das

    sesses legislativas ou, pelo contrrio, de dissolver a Cmara dos Deputados e chamar os

    eleitores a escolherem novos representantes. Como, ao contrrio do que acontece hoje,

    ningum esperava no sculo XIX que o parlamento estivesse a funcionar o ano inteiro, o Reipodia convocar extraordinariamente as Cortes no intervalo das sesses legislativas em casos

    de emergncia pblica ou concordar na prorrogao dessas sesses pelos mesmos motivos;

    da mesma forma, a prudncia aconselhava que o Rei tivesse a faculdade de exercer sobre a

    Cmara dos Deputados algum poder dissuasor de dissoluo em caso de conflito grave com a

    cmara alta ou com o governo, de forma a desbloquear eventuais impasses legislativos ou, por

    exemplo, oramentais mas, neste ltimo caso, estando o Rei obrigado a convocar a eleio

    de novos deputados, os eleitores podiam, se assim quisessem, devolver ao Rei a maioria

    dissolvida e os seus pontos de vista. O poder moderador exercia-se assim num gnero de

    jogo de espelhos em que cada um, pela prtica poltica acumulada, tenderia a saber at onde

    era conveniente ir: o Rei, se sentisse a opinio pblica favorvel aos Deputados, dificilmente

    arriscaria uma dissoluo, tal como estes, se sentissem faltar-lhes essa opinio, teriam mais

    incentivos a favorecerem um acordo com o governo ou com os Pares. A nomeao dos

    ministros e dos Pares, que requerem anlise atenta, ser vista infra, importando para j passar

    em revista a faculdade moderadora do Rei sobre o sistema judicial.

    15 At onde o senso comum permite ver, qualquer sistema humano falvel e sempre

    reconfortante que, no extremo de uma cadeia de decises, exista uma vlvula de escape que

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    permita parar um processo que, por muito lgico que aparente ser, pode levantar dvidas. Aomanter a imemorial faculdade rgia de moderar ou perdoar penas impostas a rus por sentenajudicial (em que se inclui o princpio da amnistia), a Carta confirma a esperana muito humanada possibilidade de vencer o erro judicial por apelo clemncia. Nesta faculdade concedida aoRei, que no est isenta do risco de corrigir um erro com outro erro, preserva-se um dos

    laos mais fortes entre cada sbdito e o seu Rei: a garantia de que o detentor da legitimidadedinstica, por sobre o sistema judicial, no podendo condenar ningum nem agravar sentenas,mantm uma ltima possibilidade de, excepcionalmente, moderar ou perdoar aquelas gravesdecises que nos podem privar de parte fundamental da nossa liberdade ou dos nossoshaveres. Na mesma linha se inscreve a faculdade de suspenso de juizes sobre os quaispesem acusaes consideradas inibidoras da legitimidade das suas funes a Carta prev,no seu artigo 124., que qualquer juiz pode ser submetido a julgamento depois de acusado, emaco popular, de suborno, peita, peculato ou concusso. Parecendo-me sensato que, at umjulgamento estar terminado, prudente nalguns casos suspender-se a actividade de juizesnestas circunstncias, a quem deveria essa faculdade ser entregue? Corporativamente, aos

    prprios juizes (por exemplo, o Conselho Superior de Magistratura)? Aos Pares ou aosDeputados, detentores do poder legislativo? queles que exercem directamente o poderexecutivo (o conselho de ministros, isto , o governo)? No, a Carta entrega tal faculdade aoRei porque entende que ela se inscreve no poder moderador e no nos outros trs poderes doEstado: repare-se que, no sistema constitucional da Carta, o Rei a nica sede de poder queno exerce directamente nenhum dos trs poderes comuns do Estado (executivo, legislativo ejudicial), pelo que a lgica da separao de poderes convida a que nele convirjam todos osmecanismos moderadores. Este facto revela-nos a verdadeira natureza dos privilgios reaissob a Carta: o Rei no senhor nem agente de facto em nenhum dos trs poderes em que searticula a soberania; ele apenas senhor e agente de facto, directo, no exerccio dos

    mecanismos moderadores. A majestade real, na verdade, no legisla, no executa, nem julga;apenas modera.

    16 A nomeao dos ministros igualmente includa pela Carta nas faculdades moderadorasdo Rei; ser isto um erro ou uma forma indevida de concentrar poderes nas mos do chefe doEstado? A frmula clssica segundo a qual o Rei reina mas no governa aplica-seinteiramente na Carta Constitucional, mas com um significado claro: o governo no compete aoRei, mas este no s escolhe aqueles que de facto governam como exerce sobre eles umaforma de dissuaso j que, segundo o artigo 74., os pode livremente demitir. O Rei no esthabilitado a demitir ministros designados pelo parlamento ou pelos eleitores; est, sim, habilitadoa demitir ministros que ele prprio nomeou. Portanto, os ministros so da confiana do Rei epresume-se que s existem enquanto essa confiana se mantiver. No emanando a suaautoridade do parlamento nem podendo este demiti-los, os ministros esto no entanto sujeitosao acordo do parlamento para levantarem os impostos necessrios ao funcionamento dogoverno e da administrao, bem como para tudo o que na sua aco tenha de ser constitucionalmente feito atravs de actos legislativos (de que o parlamento tem o monoplio).Por outro lado, a Carta estabelece claramente a responsabilidade dos ministros, isto , apossibilidade de estes serem acusados de traio, peita, suborno, concusso, abuso de poder,

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    falta de observncia da Lei, actos contra a liberdade, segurana ou propriedade dos cidados, eainda de dissipao de bens pblicos (artigo 103.); como j foi mencionado anteriormente, aCarta estabelece ainda o modo como a Cmara dos Deputados tem a atribuio exclusiva deacusar e iniciar processos contra os ministros (artigo 37.), cuja especificao remetida paralei particular (artigo 104.). No menos importante o artigo 105., que explica que a

    responsabilidade dos ministros em nada diminuda por eventuais ou alegadas ordens quetenham recebido do Rei; isto , uma vez que o poder executivo de Sua Majestade s se podeexercer atravs dos ministros, se estes fossem hipoteticamente confrontados por ordens doRei de que resultassem actos inconstitucionais, deveriam recusar-se a cumpri-las (e se norecusassem, a responsabilidade passaria a ser sua). Por esta mesma razo, o artigo 102.obriga que todos os actos do poder executivo, para terem efeito, sejam assinados pelo ministrorespectivo, de modo a que esta responsabilidade lhes possa ser sempre imputada. Quando oartigo 72. declara a no responsabilidade, a inviolabilidade e, textualmente, o carctersagrado da pessoa do Rei, est no s a envolver o poder moderador em garantiasabsolutamente requeridas pela sua natureza, mas est tambm a demarcar os campos prprios

    de aco do Rei e dos seus ministros; uma vez que o Rei no nem pode ser responsabilizvel, os ministros sabem que a responsabilidade de qualquer acto executivo lhescabe a eles e que devem agir em conformidade com o conhecimento dessa circunstncia [7].Esta questo da responsabilidade dos ministros, que no fundo a questo da responsabilidadedo poder executivo, mostra at que ponto a soluo da Carta de estabelecer um governo do Reie no do parlamento uma garantia fundamental: cabendo aos Deputados a vigilncia sobreessa responsabilidade, ela s se efectuar se o executivo e o legislativo estiverem claramenteseparados. Ora, se o governo emanasse do parlamento e estivesse dependente da suaconfiana o que seria o mesmo que dizer que o governo seria a maioria parlamentar investidade capacidade executiva , nunca esse suporte do poder executivo o poderia simultaneamente

    vigiar. , pois, uma contradio, nos seus prprios termos, querer-se um governo parlamentar euma vigilncia parlamentar efectiva com um governo parlamentar ter-se- uma maioriagovernante indulgente e uma oposio minoritria inoperante.

    17 A nomeao dos pares foi tambm referida na crtica como uma das armas do arsenalque a Carta alegadamente disponibiliza ao Rei. J aqui foi afirmado: uma vez nomeados, osPares do Reino so inamovveis como os juizes e, por esse mesmo facto, tornam-seelementos polticos inteiramente independentes. Essa independncia real em relao aomonarca e em relao Cmara dos Deputados: no se trata aqui de conjecturar, trata-se deobservar que este arranjo constitucional cria condies efectivas de independncia aos dignosmembros da cmara alta das Cortes. A origem da sua legitimidade evidentemente distinta dalegitimidade democrtica, eleitoral, dos membros da Cmara dos Deputados mas nessadistino que se fundamenta o lugar constitucional prprio da Cmara dos Pares. E esta maisum elemento que suporta, ao lado da legitimidade popular e da legitimidade dinstica, a partilhada soberania e a separao de poderes. A possibilidade de alguns dos lugares desta cmaraserem concedidos com direito de sucesso isto , de serem concedidos a pessoas que ospodem transmitir ao seu herdeiro natural sem necessidade de confirmao rgia , por muitorepugnante que isso seja lgica democrtica, refora essa independncia da cmara

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    relativamente ao Rei [8]. Em termos de eficcia da separao de poderes, o pariato , pois,inatacvel; a dvida que se pode legitimamente levantar sobre a sua harmonia com o princpioda igualdade dos Portugueses perante a Lei, j que o pariato confere, por nomeao rgia oupor herana, direitos polticos inerentes de participao no poder legislativo queles que estoinvestidos dessa qualidade. Esta questo importante porque permite esclarecer um aspecto

    da doutrina cartista que, devido prevalncia avassaladora dos preconceitos democrticos,ficou na sombra, mesmo nos escritos daqueles que sobre ela reflectiram sem atitude hostil(uma honrosa excepo a do mais eminente cartista e liberal clssico portugus, AlexandreHerculano, em textos comoA Desigualdade e a Democracia, 1851, e sobretudo Os Vnculos,1856-59) esse aspecto a distino entre a igualdade civile a igualdade poltica. Uma ordemconstitucional enformada pelos princpios liberais clssicos requer a igualdade perante a Lei,entendida como igualdade civil, mas no a igualdade poltica; a Lei igual para todos no sentidoem que todos esto sujeitos ao que ela prescreve e todos esto, sob o seu imprio,resguardados da arbitrariedade e da coero indevida, de onde quer que ambas venham. Essaigualdade perante a Lei no significa, porm, que todos tenham o mesmo estatuto jurdico e

    poltico: o prprio facto de determinadas pessoas serem eleitas (ou nomeadas, como os juizes)para determinados cargos pblicos, d-lhes, durante o seu exerccio e sob a forma decompetncias previstas na Lei, um estatuto jurdico e poltico diferente daqueles que no forameleitos (ou nomeados). Se se admite isto e a nica forma de no admitir seria permitir apenaso exerccio de todas as competncias directa e colectivamente por todos os cidados semdelegao alguma de poder admite-se ento que a eleio de deputados ou a nomeao dejuizes (no eleitos) so formas de se manifestar essa desigualdade jurdica e poltica. Amonarquia hereditria e o pariato so outras duas. Para estabelecer o primado da Lei e, nessequadro, a igualdade civil, aquilo que uma ordem constitucional tem de garantir e a Carta emparticular garante que essas competncias conferidas pela Lei ao Rei, aos Pares, aos

    juizes e aos Eleitos no possam, sob forma alguma, violar os direitos civis dos demaisPortugueses.

    18 A desigualdade, como bem disse Herculano, uma inevitabilidade econmica, social epoltica e, para os liberais, o objecto primeiro do Direito , no a Igualdade, mas a Liberdade. E anica desigualdade incompatvel com a Liberdade aquela que investe algumas pessoas depoder coercivo indevido sobre outras pessoas, aquela que d a alguns o poder ilegtimo deviolar a esfera de liberdade de conscincia e aco que o Direito bem ordenado concede a cadapessoa. A existncia de uma Dinastia encarnada numa Famlia Real, a existncia de Pares doReino hereditrios ou vitalcios, a existncia de juizes de Direito ou de Paz no eleitos, tal comoa existncia da natural e espontnea desigualdade social e econmica que a lei civil no spermite mas protege (garantindo, por exemplo, a propriedade privada e as heranas), estomuito longe de ser impeditivas de uma igualdade perante a Lei smente concebida. que aigualdade s deve ser concebida como o igual acesso de cada um liberdade individual e possibilidade de, sob a Lei, a defender.

    19 A subverso das garantias constitucionais e da separao de poderes foi uma realidade emPortugal, como na Gr-Bretanha e nos Estados Unidos. A tendncia para a fuso dos poderes

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    executivo e legislativo, atravs de governos de apoio parlamentar nos quais os membros do

    governo e a maioria representada na cmara baixa (democrtica) do parlamento tendem a

    funcionar como um s corpo poltico-partidrio, subverteu, em Portugal e na Gr-Bretanha, a

    arquitectura constitucional que visava mant-los separados. Isso deveu-se essencialmente

    presso daqueles que defendiam a legitimidade nica da representao democrtica e que

    foram por todos os meios atacando e debilitando a legitimidade e capacidade de interveno damonarquia e da cmara alta (aristocrtica) do parlamento. Em Portugal e na Gr-Bretanha, sob

    presso dos radicais, foram-se esvaziando as competncias prprias do Rei e da Cmara dos

    Pares, o que era obviamente visto como uma conquista democrtica; foi-se tornando hbito que

    estes elementos, apesar dos poderes constitucionais tericos que lhes estavam atribudos,

    no os deveriam exercer, a bem do progresso democrtico. E assim intimidados, eles foram

    de facto recuando at se tornarem quase inoperantes: o Rei passou a escolher os ministros do

    agrado da maioria na cmara democrtica, passou a despedi-los ou a dissolver o parlamento

    quando a mesma maioria o exigia e, por consequncia, habituou-se a promulgar todas as leis

    aprovadas pela mesma maioria; do mesmo modo, tornou-se inimaginvel que a cmara alta

    pudesse recusar o seu acordo a leis aprovadas pela maioria democrtica. Se os Parestivessem veleidades de se opor ao que quer que fosse emanado da cmara democrtica, logo o

    governo (emanao da mesma cmara) ameaava que foraria o Rei a nomear uma fornada

    de novos pares que reequilibrasse essa cmara retrgrada a favor da vontade popular;

    estas fornadas tornaram-se frequentes em Portugal na segunda metade do sculo XIX e, na

    Gr-Bretanha, foram o espantalho agitado em 1910 pelo radical Lloyd George contra a

    resistncia dos Lordes s suas medidas demaggicas (esta ltima tentativa da cmara alta de

    exercer os seus poderes ficou estranhamente conhecida como crise constitucional). Nos

    Estados Unidos, a subverso teve outro caminho, de que os partidos polticos parlamentares,

    erigidos a representantes da pretensa legitimidade nica da vontade popular, tambm foram

    os protagonistas; atravs da solidariedade partidria (facilitada pela natureza electiva de todosos rgos), representantes, senadores e presidente da mesma cor poltica passaram a

    funcionar cada vez mais em cooperao, galgando a distino de competncias dos diferentes

    rgos constitucionais. Foi assim que maiorias simpticas s administraes de vrios

    presidentes concederam administrao federal poderes fticos que no lhe pertenciam, como

    a capacidade de mobilizar tropas e fazer a guerra ou de legislar de facto atravs de

    regulamentos administrativos que na prtica obrigam tambm a sociedade civil e foram

    estendendo a interveno do governo e do Congresso a toda a vida econmica e social. A fora

    dessa subverso democrtica ficou patente quando, em 1936, Franklin D. Roosevelt acusou

    o Supremo Tribunal de estar a obstruir a vontade popular por considerar inconstitucionais

    as suas medidas social-cesaristas apesar de aparentemente ter resistido s ameaas de

    Roosevelt, o Tribunal acabou mais tarde por aceitar tudo o que havia recusado (e que era, nem

    mais nem menos, que a doutrina de que a letra da Constituio era passvel de ser lida da forma

    que agradasse vontade da maioria).

    20 Em Portugal apesar da prevalncia na primeira metade do sculo XIX e na Regenerao

    (1851), da tradio cartista sobre o desiderato setembrista, esta tendncia para a fuso do

    executivo e do legislativo reforou-se ao longo de toda a segunda metade de Oitocentos [9]. O

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    ambiente de compromisso ideolgico em que a Regenerao assentou pressups que boa

    parte dos alicerces doutrinais do cartismo fossem sacrificados a favor da concepo

    exclusivista da soberania popular; assim, at um constitucionalista equilibrado como J. J. Lopes

    Praa, nos seus Estudos sobre a Carta Constitucional(1878-1880), se revela adepto dessa

    concepo e entusiasta do seu aprofundamento. A Carta subsistiu at 1910, salvo rarssimas

    excepes, sem verdadeiros apoiantes da sua doutrina constitucional no mundo polticoportugus embora os partidos constitucionais se afirmassem fiis Carta, o ambiente

    ideolgico tornou-se claramente hostil sua base polirquica. Aliada crise econmica na

    transio do sculo XIX para o sculo XX, esta cultura poltica anti-cartista facilitou o avano

    das ideias republicanas, as quais consistiam numa reedio do radicalismo setembrista

    agravado pelo ataque fantico monarquia (e ao pariato) ataque esse que tinha como

    objectivo, na eliminao da legitimidade dinstica, a inviabilizao definitiva do pressuposto

    polirquico da Carta [10]. A consequncia do triunfo destas concepes conhecido: durante

    dezasseis anos, em nome da soberania popular, o Pas ficou merc do directrio de um

    partido revolucionrio e o caos da resultante preparou o caminho a um autoritarismo militar

    republicano de meio sculo. No ordenamento constitucional actual, inaugurado em 1976, aprincipal inspirao foi novamente a tradio radical, bem patente no unicameralismo

    parlamentar e na fuso prevalecente dos poderes executivo e legislativo uma prtica poltica

    muito prxima da da constituio de 1933, com a diferena de que as eleies so hoje livres

    sem que, porm, a participao do parlamento seja realmente maior (a maioria parlamentar e

    tem sido desde 1976 um apndice do directrio do partido mais votado instalado no governo). A

    presidncia da Repblica tem funcionado, no como um poder moderador (que no doutrina

    constitucional), mas como um contra-poder que, investido de uma legitimidade popular paralela,

    pode dissuadir o governo. A gritante imperfeio deste arranjo, que no assegura uma

    verdadeira separao de poderes (porque institui um super poder democrtico

    executivo-legislativo ao lado do poder judicial) e que remete a chefia do Estado para um limboda doutrina constitucional, de natureza nem executiva nem moderadora, torna-se patente no

    facto de no existir nenhum verdadeiro mecanismo de vigilncia do governo. Segundo o jargo

    poltico consagrado, competiria ao parlamento e, nele, em especial oposio ou, j agora, no

    cmulo da fantasia, opinio pblica essa impossvel tarefa no quadro deste regime de

    poder concentrado. Melhor seria que os defensores deste quadro constitucional admitissem

    apenas aquilo que muitos adeptos do radicalismo democrtico j admitiram no passado: que,

    para eles, no h problema nenhum na concentrao do poder, desde que este seja

    democrtico...!

    21 Estas consideraes no pressupem o repdio da forma de representao democrtica.

    No posso, por isso, aceitar que se fale do carcter antidemocrtico da Carta; no creio que

    a Carta seja particularmente antidemocrtica como no antimonrquica. Ela consagra

    mecanismos democrticos (eleies locais e gerais), formas democrticas de representao

    (juntas de freguesia, cmaras municipais, Cmara dos Deputados) e d-lhes competncias

    nada despiciendas; basta ver, por exemplo, que a iniciativa de reforma constitucional (o

    processo de reviso do texto da Carta) reservado Cmara dos Deputados (artigo 140.) e

    que, segundo o artigo 138., o ministro da Fazenda estava obrigado a apresentar mesma

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    cmara, no incio de cada sesso legislativa, as despesas do ano transacto e o oramento para

    o novo ano. Portanto, em rigor, ela no antidemocrtica; o que se pode dizer que,

    consagrando uma representao mista, ela no democrtica tout court ou no s

    democrtica [11].

    22 O estatuto constitucional da religio na Carta , segundo a crtica, incompatvel com aLiberdade e o papel do Estado caracterizados por John Stuart Mill em On Liberty, antes se

    aproximando do sistema de coero social que o mesmo Mill prope em Utilitarianism. No me

    interessa aqui analisar contradies na obra de Mill, o qual, alis, em nenhuma das suas

    fases considero um liberal clssico; nesta designao inclui essencialmente o neocartismo

    os grandes tericos construtores da tradio Whig, de Locke a Burke, e no liberais tardios

    (no caso de Mill, tambm duvidosos) [12]. Concentremo-nos, pois, no texto da Carta: esta, no

    seu artigo 6., estipula que a religio catlica apostlica romana continuar a ser a religio do

    Reino e que todas as outras religies sero permitidas aos estrangeiros com seu culto

    domstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de

    templo; por seu lado, o 4. do artigo 145. estabelece que ningum pode ser perseguido pormotivos de religio, uma vez que respeite a do Estado e no ofenda a moral pblica. Este

    enunciado, no seu conjunto apenas aparentemente contraditrio, talvez assuma que os

    cidados portugueses so ipso facto membros da Igreja estabelecida, mas assume tambm

    que no podem ter a sua liberdade coarctada por motivos religiosos; assim, apesar da Lei os

    presumir, enquanto membros do Reino, ligados confisso oficial, eles podem perfeitamente

    viver livres em matria religiosa. De facto, o artigo 6. estabelece o princpio da

    confessionalidade do Estado e refere-se ao estatuto religioso dos estrangeiros; este artigo, no

    entanto, realmente omisso em relao ao estatuto religioso dos sbditos ou cidados

    portugueses, j que a referncia a ele foi reservada para o artigo final do texto constitucional,

    que enumera as liberdades e garantias individuais e que no seu 4. explicita esse estatutoclaramente, consagrando a liberdade religiosa. Parece-me assim evidente que a Carta

    consagra um regime de liberdade religiosa com Estado confessional com outras palavras, a

    mesma a constatao de J. J. Lopes Praa (Estudos, I, pp. 175-178). O que resta crtica

    provar que a confessionalidade do Estado seja incompatvel com a liberdade religiosa; tal

    incompatibilidade , porm, negada pela experincia constitucional inglesa (e em grande medida

    tambm pela portuguesa) e por uma anlise sria do texto da Carta. Este no tem disposio

    alguma que permita ao Estado impor a religio catlica romana aos Portugueses; pelo contrrio,

    o texto inclui uma garantia inequvoca de que isso no pode acontecer. O Estado apenas tem a

    competncia constitucional de manter a Igreja estabelecida, no de a impor; alis, como

    tambm notou Lopes Praa, o prprio Rei est constitucionalmente obrigado a jurar manter a

    dita Igreja, no a professar as suas doutrinas e muito menos a imp-las ao contrrio da

    constituio de 1822, a Carta no faz, alis, meno a nenhum servio religioso em

    solenidades ou actos polticos. A consagrao constitucional do beneplcito rgio relativo

    nomeao de bispos e publicao (oficial e prescritiva) no Reino de documentos pontifcios era

    uma contrapartida inevitvel do estabelecimento do estatuto oficial da Igreja Catlica Romana;

    isto porque, mantendo o clero e o culto desta Igreja, o senso comum convida a que o Estado

    possa recusar a nomeao de prelados ou a consagrao de doutrinas que, no seu entender,

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    coloquem em risco a harmonia da Igreja estabelecida com a ordem constitucional. Mas deve

    notar-se que a Carta no prev to-pouco que o Estado assuma uma atitude erastiana de

    controlo administrativo ou doutrinal sobre a mesma Igreja a Carta no institui nenhuma

    constituio civil sobre a Igreja e delimita bem as reas em que, relativamente aco

    prpria da Igreja, o Estado pode conterou contrapor[13]. O neocartista aceita que no seja do

    agrado de todos este estatuto constitucional da Igreja Catlica Romana; o que no aceita oargumento de que ele limite a liberdade religiosa dos Portugueses. Julga ainda, com Burke, ter

    motivos para pensar que, tendendo todos os Estados a desenvolver mitos e supersties em

    torno da sua prpria funo, prefervel que a ordem constitucional conserve uma ligao tnue

    e formala uma expresso religiosa tradicional que atrapalhe essa tendncia.

    23 A questo dos direitos sociais a ltima das includas na crtica a ser aqui respondida;

    esto em causa os 22. (garantia da dvida pblica), 29. (socorros pblicos), 30. (instruo

    primria gratuita) e 32. (colgios e universidades) do artigo 145. da Carta como pretensos

    embries do Estado Providncia. Indo por partes, comeo por notar que, at onde julgo

    compreender o texto da Carta, o 22. quer apenas dizer que a Coroa fica obrigada, com aoutorga, a assumir a dvida pblica existente e, portanto, a honrar os compromissos do Estado

    para com os credores da a incluso desta disposio no artigo das liberdades e garantias

    individuais (neste caso, dos credores do Estado) e logo a seguir ao 21. que garante a

    propriedade privada (veja-se Lopes Praa, op. cit., pp. 89-93). Quanto aos 29., 30. e 32.,

    julgo que a Carta quis criar o tal embrio como incentivo mnimo aceitao pelos cidados

    do seu pacto constitucional mas tambm que ela pretendeu dar cobertura legal existncia de

    instituies preexistentes (hospitais, escolas e universidade, nomeadamente) e que

    tradicionalmente todos os Estados mantinham e mantm; esta cedncia compreensvel no

    seu contexto histrico e a mais contida e resumida de todos os textos constitucionais

    portugueses no campo dos direitos sociais. Por outro lado, a consagrao destes direitos,como mais uma vez tambm nota Lopes Praa, no obriga o Estado a manter instituies suas

    que os garantam indiscriminadamente a todos os cidados; a sua garantia, sobretudo se lida

    num artigo que estabelece em toda a sua plenitude a propriedade privada (21.) e a

    impossibilidade de proibio pelo Estado de qualquer gnero de trabalho, cultura, indstria ou

    comrcio (23.), pode perfeitamente ser entendida como um mecanismo excepcional,

    selectivo e precursor da filosofia hayekiana da safety net(o que est subentendido no termo

    socorro). Do ponto de vista da ortodoxia liberal clssica e, em particular, das contribuies

    renovadoras que lhe foram prestadas pela Escola Austraca de Economia, estes trs do

    artigo 145. podem no ser o ptimo; mas, nalguma medida, uma Constituio tem de

    acondicionar diferentes sensibilidades e expectativas. Convenhamos que, fazendo-o neste

    caso muito especfico, a Carta Constitucional tem, no entanto, uma disposio geral e muito

    forte para esse ptimo.

    24 A reviso da carta uma possibilidade aceite no s pelo neocartista, mas tambm pela

    prpria Carta (artigos 140. a 143.); quanto a isto h a dizer que o processo de reviso

    consagrado, alm de equilibrado requer que a proposta seja aprovada pelas duas cmaras e

    sancionada pelo Rei responsabiliza de forma nica no nosso direito pblico os cidados

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    concedendo-lhes a faculdade de investir os deputados, nas eleies seguintes legislatura em

    que foi aprovada a proposta, da capacidade constituinte de dar ou no seguimento reforma.

    Este mecanismo era e suficiente para retirar toda a razo aos anti-cartistas que no passado

    justificaram as suas veleidades revolucionrias e anticonstitucionais em nome das imperfeies

    da poltica portuguesa no tempo de vigncia da Carta. Essas imperfeies foram

    essencialmente resultado do processo de subverso da separao de poderes, a que j sealudiu supra. A Carta nunca foi inteiramente respeitada, como demonstra o caso do 23. do

    artigo 145., sistematicamente violado pelas polticas econmicas de sucessivos governos que

    se permitiram condicionar as actividades econmicas de modo em absoluto inconstitucional; da

    mesma forma, os partidos polticos aceitaram tacitamente a manipulao eleitoral de modo a

    garantirem apoio parlamentar sempre que fossem chamados, vez, pelo Rei ao poder. Era isto

    que explicava o ritual das eleies se seguirem nomeao do novo governo, artifcio para o

    qual se usava a capacidade rgia de dissoluo da Cmara dos Deputados. Estas prticas

    abusivas no do razo a outras tendncias de direito pblico que, pela via democrtica ou

    pela via autoritria, reforaram a concentrao dos poderes executivo e legislativo; pelo

    contrrio, elas fazem o neocartista reflectir sobre a provvel necessidade de introduzir na Carta,pelo processo de reviso e no esprito da sua arquitectura constitucional, novos mecanismos

    que concorram para reforar a separao e limitao dos poderes, e melhor garantir os direitos

    individuais. [25-40 infra]

    A Legitimidade Dinstica e a Carta (resposta a um

    miguelista)

    25 I De como os prncipes estrangeiros no podiam ser Reis de Portugal: Custa-me que,

    num trabalho desta natureza, o meu amigo comece logo pela empresa de negao dos direitos

    dinsticos do senhor D. Pedro IV; parecer-me-ia mais lgico que recuasse, mesmo que

    sumariamente, ao primeiro monarca da Dinastia, o senhor D. Joo IV. Assim, parece que o

    ataque a D. Pedro o objectivo primeiro do texto. Tem todo o sentido invocar o articulado das

    resolues das Cortes de 1641 e os princpios sucessrios a definidos, mas no me parece

    que uma leitura desapaixonada desses princpios leve concluso de que eles excluam, em

    1826, o senhor D. Pedro IV da linha de sucesso Coroa. Tal argumento no foi invocado na

    altura e isto parece-me ter acontecido por razes muito compreensveis: porque o senhor D.

    Pedro IV nunca foi ento considerado um prncipe estrangeiro em Portugal. E, de facto, no o

    era. O trecho que V. cita da acta das Cortes de 1641 diz que se ordene de modo que jamais o

    possa herdar (o Reino de Portugal) Rei algum, nem Prncipe Estrangeiro; de maneira que o Reique houver de ser deste Reino de Portugal, seja natural, e Portuguez legtimo nascido no Reino

    e com obrigao de morar e assistir nele pessoalmente [14]. Ora, D. Pedro no estava nas

    condies aqui descritas como impeditivas de o fazer herdeiro da Coroa; no nos podemos

    apenas centrar, por convenincia, na questo da secesso brasileira e da sua assuno da

    chefia de Estado desse pas cuja independncia s foi reconhecida pela Coroa portuguesa

    em 1825. D. Pedro era filho primognito do Rei de Portugal, tinha nascido em Portugal e era,

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    desde 1816, o legtimo e reconhecido Prncipe Real; ora, a acta das Cortes de 1641 refere-se amonarcas reinantes e prncipes estrangeiros que no filhos do Rei legtimo de Portugal,nascidos em Portugal e com o ttulo de Prncipe Real. A situao criada pela secessobrasileira e pela assuno da coroa desse pas pelo Prncipe Real de Portugal no estava nempodia estar presente na letra ou no esprito do articulado desses princpios sucessrios

    redigidos em 1641. Acresce a isto que o Brasil no era um pas estrangeiro qualquer: at1825 considerou-se em Portugal existir juridicamente o Reino Unido de Portugal, Brasil eAlgarves e D. Pedro, quando se tornou Prncipe Real em 1816, tornou-se em termos dinsticoso herdeiro legtimo de dois reinos, Portugal e Brasil (tal como seu pai era Rei legtimo dos doisreinos). Os efeitos dinsticos do tratado de 1825, no qual a Coroa de Portugal reconheceu aindependncia brasileira, foram estes: D. Joo VI abdicava no seu filho primognito (e PrncipeReal de Portugal) os seus direitos como soberano do Brasil. Mas D. Pedro, que era agorasoberano reinante no Brasil, no deixou de ser Prncipe Real de Portugal. Dizer-se que, poreste acordo de 1825, D. Pedro perdeu o direito de sucesso Coroa de Portugal estar-se aquerer encontrara posteriorium argumento para legitimar um acto do Infante D. Miguel em

    1828, mas que o prprio Infante em 1825 e 1826 no invocava nem, alis, ningum invocava[15]. evidente que, quando D. Joo VI falecesse o problema de D. Pedro ser monarca deoutro pas se poria e isto toda a gente ento sabia. E, de facto, quando o Rei morreu em 1826 oproblema resolveu-se e de uma forma em tudo consentnea com a letra e o esprito dosprincpios sucessrios definidos em 1641: D. Pedro teve de optar e optou pelo Brasil,separando as linhas de sucesso. O seu filho, futuro imperador D. Pedro II, tornava-se PrncipeImperial do Brasil e a sua filha D. Maria II tornava-se Rainha de Portugal, pertencendo a Coroaportuguesa da em diante aos descendentes legtimos desta senhora. Estavam, assim,assegurados os princpios de 1641, que a prpria Carta Constitucional consagrou nas suasdisposies relativas s regras de sucesso da Coroa portuguesa. importante ainda ler

    atentamente outro trecho que V. cita da acta das Cortes de 1641 no ponto II do seu texto; dizele que se o herdeiro da Coroa portuguesa herdar outro Reino ou Senhorio maior, sejaobrigado a viver sempre neste. Parece, de facto, que os redactores de 1641 anteviam algo deparecido com a secesso brasileira! Mas o que este trecho realmente demonstra que, deacordo com os prprios princpios sucessrios de 1641, no era possvel considerar-seirregular o ser o herdeiro da Coroa portuguesa desde que fosse prncipe portugus nascidoem Portugal, como era D. Pedro IV tambm monarca de outro pas, mesmo que maior; oque se exigia era que ele residisse em Portugal uma vez tornado monarca reinante. Ora, D.Pedro, cnscio destas regras, resolveu o problema com uma abdicao perfeitamente regular elegtima na sua filha, que enviou para Portugal como requeriam os princpios sucessrios.

    26 II De como o Rei de Portugal era obrigado a viver no seu Reino: A tornar-se primacialesta condio prevista no articulado da acta das Cortes de 1641 e sendo ela interpretada demodo a significar que D. Maria II no poderia ter permanecido no Brasil entre 1822 e 1826, aCoroa s poderia ser herdada pela Infanta D. Isabel Maria. mais um argumento deslocadopara justificar a posteriori o acto de tomada do poder do Infante D. Miguel em 1828.Independentemente de tudo o que se possa dizer da atitude de D. Pedro ao tornar-se soberanodo Brasil em 1822 em ruptura com os direitos dinsticos de seu pai em terras de Vera Cruz,

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    esse problema fora juridicamente debelado, resolvido e fechado com o tratado de 1825; assim,

    quando D. Joo VI faleceu, no ano seguinte, as implicaes dinsticas do problema brasileiro

    e da dignidade de D. Pedro como Prncipe Real de Portugal estavam tambm resolvidas.

    Diferente era, precisamente, a posio do Infante D. Miguel que, s por acordo com o irmo,

    pde regularizar a sua situao dinstica e poltica e regressar a Portugal; este senhor estava

    com residncia fixa em Viena e, h que record-lo porque no facto de pouca importncia,estava l na condio de exilado por exigncia do seu prprio pai D. Joo VI, contra o governo

    do qual o Infante se rebelara com uma tentativa falhada de golpe de Estado em 1824 (a

    chamada Abrilada). Ora, eu acho inacreditvel que monrquicos, fiis ao princpio da

    legitimidade dinstica, atribuam to pouca ou nenhuma importncia ao acto de traio

    perpetrado por D. Miguel contra seu pai em 1824 e venham invocar a seu favor o argumento de

    ser D. Maria II brasileira porque nascera no Rio de Janeiro e permanecera no Brasil at 1826!

    Se esse so princpio da residncia em Portugal do herdeiro da Coroa pudesse ser interpretado

    desse modo abusivo e absoluto, os republicanos, com o exlio do senhor D. Manuel II e o longo

    exlio do ramo colateral dos descendentes do Infante D. Miguel, haviam conseguido para

    sempre banir do Pas a possibilidade de existir um herdeiro legtimo da Coroa supostamentesem beliscarem os princpios sucessrios de 1641. De facto, tal interpretao, retirando

    quaisquer direitos ao senhor D. Duarte Nuno, em que posio deixaria os seus descendentes, o

    actual Duque de Bragana e seu filho o Prncipe da Beira?

    27 III De como D. Pedro era de nao brasileira: Ningum o nega, embora fosse tambm de

    nao portuguesa. A frase da carta de D. Pedro para seu pai de 14 de Maro de 1822 que voc

    cita (Deus guarde a preciosa sade de Vossa Majestade e vida que to preciosa para todos

    os portugueses honrados, e para ns os Brasileiros...) no tem o significado que V. lhe quer

    dar, por vrias razes: anterior declarao de independncia brasileira, esquece o facto de

    que desde 1815 Portugal e o Brasil eram de facto reinos distintos embora unidos dinasticamentee descontextualiza a posio de D. Pedro da conjuntura de ento, em que as Cortes

    Constituintes portuguesas com reservas conhecidas de D. Joo VI , pela exigncia

    insustentvel de fazer o Brasil regressar a uma situao anterior e mais dependente do que a

    conquistada por merc rgia em 1815, estavam forando os Brasileiros a uma atitude de

    ruptura. Dizer que D. Pedro votava aos Portugueses um indeclinvel e visvel desprezo

    parece-me igualmente abusivo: D. Pedro estava, sim, em conflito com as Cortes de Lisboa e

    com as suas atitudes prepotentes prepotncia, alis, de que usaram e abusaram contra o

    senhor D. Joo VI , achando politicamente necessrios os sinais de desagrado como os

    referidos por V. (recusa do beija-mo a portugueses no Rio de Janeiro, etc.) [16]. Que, nestas

    circunstncias, esse prncipe tenha abusado da linguagem escrita e falada ou cedido a dizer

    aos Brasileiros algumas coisas que eles queriam ouvir, no pode servir para provar que no era

    tambm portugus, ele que era Prncipe Real de Portugal e Duque de Bragana ttulos que

    nunca formalmente renegou ou lhe foram disputados por seu pai. A citao que V. faz de uma

    disposio da Constituio brasileira de 1824 (que Nenhum estrangeiro poder suceder na

    coroa do Brasil), alm de no ter nada a ver com a sucesso em Portugal, aplicava-se

    evidentemente queles que sucedessem ao prncipe que j era soberano do Brasil na altura da

    entrada em vigor dessa Constituio e no ao prprio D. Pedro, pelo que nem sequer impunha

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    que este senhor, para reinar no Brasil, renunciasse formalmente aos seus direitos dinsticosem Portugal. Quanto s disposies sucessrias da Constituio portuguesa de 1822 queno se pode esquecer estava suspensa e em vias de substituio aquando do falecimento deD. Joo VI a sua interpretao mais complexa do que simplesmente impedir a sucesso deD. Pedro por ser estrangeiro. A leitura que fao do articulado dessa Constituio leva-me at

    a considerar que ela d uma base muito slida aos direitos de sucesso de D. Pedro: 1.Porque ela no reconhece a independncia do Brasil e considera, no seu artigo 20., que o seuterritrio forma o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves; 2. Porque considera, no seuartigo 21. como portugueses os filhos de pai portugus nascidos no Reino Unido e mesmoos estrangeiros que adquirirem domiclio no Reino Unido, o que inclui o Brasil; 3. Porque, noseu artigo 141., apenas define como regras sucessrias a ordem regular da primogenitura,estipulando inclusivamente algo que nem a Carta Constitucional consagrou por escrito, a saber,que se o herdeiro presuntivo da Coroa falecer antes de haver nela sucedido, seu filho preferepor direito de representao ao tio com quem concorrer; 4. Porque o disposto no seu artigo144. (Se o herdeiro da Coroa portuguesa suceder em coroa estrangeira, ou se o herdeiro

    desta suceder naquela, no poder acumular uma com outra; mas preferir qual quiser; eoptando a estrangeira, se entender que renuncia portuguesa) no obstaria a que, navigncia desta Constituio tendo at em vista o que previa o artigo 141. , D. Pedrorenunciasse Coroa de Portugal abdicando na sua filha D. Maria da Glria.

    28 IV De como D. Pedro se tinha privado da herana paterna: Invocar a rebelio de D. Pedrocontra a Coroa portuguesa no perodo conturbado das relaes luso-brasileiras entre 1822 e1825 pode ser importante historicamente mas, para a questo da sucesso em 1826, irrelevante. No se pode ir buscar esses acontecimentos, que nos podem legitimamentedesagradar, para defender uma posio que esquece inteiramente que existiu um acordo entre

    as Coroas portuguesa e brasileira em 1825, reconhecendo a independncia do Brasil e pondofim a esse conflito. Querer reforar esse ataque a D. Pedro indo buscar uma frase desabridadeste (dizendo que Portugal era um Pas envilecido e defecado...), e logo de 1822, paraacus-lo de anti-portuguesismo e compar-lo a Miguel de Vasconcelos, a ele, um prncipe daCasa de Bragana que, mesmo para miguelistas, foi durante oito anos legtimo Prncipe Real dePortugal, no me parece justo nem me merece mais comentrios.

    29 V Da renncia que fizera D. Pedro ao Trono de Portugal: Mais uma vez os desabafos deD. Pedro na correspondncia com seu pai: esses sim, so de dbia validade, para usar aexpresso com que V. se refere carta-patente de 13 de Maio de 1825 de D. Joo VI; no meparece que se possa reconhecer validade jurdica a essas frases, sem uma renncia pblica,formal, do interessado e sufragada da mesma forma pblica e formal pelo monarca seu paiainda ento reinante. Pelo contrrio, para dissipar quaisquer dvidas sobretudo depois dosacontecimentos de Abril de 1824 no Reino , el-rei D. Joo VI deu-se ao trabalho de fazerpublicar uma carta-patente em que explicitamente declara o que no se sabe ter algum ousadoat ento disputar, que o seu sucessor legtimo era D. Pedro. notvel que, perante estedocumento incontornvel, se avancem com dvidas sobre a sua validade; porque foi acarta-patente alegadamente escrita pelo embaixador ingls? Mas que concluses se quer tirar

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    da? Est ou no assinada por el-rei? ento tambm nula a validade do documento de 15 deNovembro de 1825 com que D. Joo VI ratificou o tratado de reconhecimento da independnciabrasileira firmado pelas duas Coroas em 25 de Agosto do mesmo ano? Essas suspeitas tm deser consequentes, cabendo o nus da prova (da alegada e grave acusao de falsificao)queles que as alegam. At l as assinaturas dos Reis de Portugal apostas em documentos

    lavrados em seu nome tm de valer o que sempre valeram como lei.

    30 VI De como D. Joo VI no declara quem seu sucessor: Envolver a questo dinsticanos baixos mexericos e intrigas sobre as relaes, preferncias e amores da Famlia Realparece-me, alm de inaceitvel, um mau princpio de argumentao. V. tem todo o direito de lera atitude de D. Joo VI para com o Infante D. Miguel em termos de afeio e desafeio sque, indo por a, estamos em terreno pantanoso onde tudo se pode dizer, se pode supor, sepode especular. Os historiadores parecem no ter dvidas de que o Rei,politicamente, queria asua esposa D. Carlota Joaquina e o seu filho D. Miguel longe dos assuntos de Estado deoutra forma, alis, no podem ser lidos a residncia fixada Rainha dentro do Pas, o exlio de

    D. Miguel em 1824 e a carta de 6 de Maro de 1826 na qual D. Joo VI entregou a Regncia(ou, melhor, a presidncia do seu Conselho) sua filha D. Isabel Maria, o membro da FamliaReal de quem indiscutivelmente o Rei se sentira sempre mais prximo desde o seu regresso aoReino em 1821. Mais uma vez, perante um documento desta importncia, so lanadassuspeitas sobre a sua validade e, para isso, V. vai buscar vrios precedentes histricos paramostrar que, em Portugal, era tradio, por falecimento ou incapacidade do Rei, caber aRegncia Rainha Viva: de facto, assim era e tanto a Constituio de 1822 como a CartaConstitucional consagraram essa prtica na letra da lei. Mas a que, precisamente, se justificaa carta de D. Joo VI de 6 de Maro de 1826: por haver essa tradio e por haver a clara faltade confiana poltica do Rei na esposa e no filho exilado, o monarca ainda reinante usou da sua

    prerrogativa de lavrar um testamento regulando esse assunto (algo que a Carta Constitucionalviria a prever como possibilidade). Podiam existir desafeies e motivos pessoalssimos mas, oque claro, que a Rainha e o Infante se haviam envolvido em actos insurreccionais contra oRei na Abrilada e isso era motivo mais que suficiente para a sua desconfiana poltica emrelao a eles; no deixa, entretanto, de ser sintomtico que, apesar do desafio que, enquantoimperador do Brasil, D. Pedro lanara a seu pai, este no manifestasse por ele a mesmadesconfiana (o que ficou claro na carta-patente de 13 de Maio de 1825). Estando D. Pedroausente e reinando no Brasil, a quem poderia o Rei entregar a Regncia seno a D. IsabelMaria? Portanto, luz da tradio e dos precedentes histricos, nada h de estranho nessacarta de nomeao da Regncia, tanto mais que ela faz todo o sentido dentro da conjunturapoltica da poca, marcada ainda pela tentativa de golpe de Estado de D. Miguel em 1824 paradar, ainda em vida e boa sade do pai, uma Regncia usurpadora a sua me. Ou seja, quandoD. Joo VI faleceu, a sua desconfiana relativamente a D. Carlota Joaquina e a D. Miguel era ade sempre, juntando-se a este facto o reconhecimento por escrito que fez dos direitossucessrios de D. Pedro e da dignidade de Regente a D. Isabel Maria. V. prefere lanarsuspeitas sobre a validade desta ltima dignidade, dando crdito aos rumores da poca deenvenenamento do Rei e indo ao ponto de sugerir a falsidade do documento de nomeao daRegncia (de que faziam parte homens como o Duque de Cadaval e o Marqus de Valada).

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    Entremos por essa via especulativa: mas quem seriam os autores do envenenamento do Rei?

    Os adversrios de D. Carlota Joaquina e D. Miguel no precisavam de matar o Rei para levar

    gua ao seu moinho poltico porque Sua Majestade fora sempre o primeiro a quer-los longe da

    Corte. Pode concluir-se, ento, que o partido contrrio pudesse ver nesse crime maiores

    compensaes polticas? At seprovaralgo tudo no passa de suspeitas; suspeitas que nem

    sequer se consubstanciam numa acusao formal que proponha responsveis identificados eum hipottico propsito [17]. No me parece que a ausncia de referncias a D. Pedro nas

    portarias assinadas por D. Isabel Maria aps o falecimento do pai, a 10 de Maro de 1826, se

    possa automaticamente considerar prova de que esta senhora hesitasse profundamente sobre

    a legitimidade de qualquer dos pretendentes Coroa. De qualquer modo, se dvidas tinha,

    ultrapassou-as em vinte dias [18].

    31 VII Da atitude de D. Miguel: A atitude conhecida do Infante D. Miguel foi jurar a

    legitimidade de D. Pedro como Rei de Portugal; isto o que se sabe, o que significa o seu

    acto de 4 de Outubro de 1826 em Viena; vir invocar que o Infante foi a isso forado pelos

    Austracos no s pouco credvel, criar uma complicada contra-argumentao que o prprioInfante poderia ter invocado e, que eu saiba, no invocou [19]. Mas, jurasse o Infante ou no a

    realeza de D. Pedro, isso em nada modificaria a posio de ambos na linha de sucesso

    Coroa. A carta da Infanta D. Maria Teresa de 8 de Outubro de 1826 que V. cita no pode provar

    outra coisa a no ser que alguns parentes de D. Miguel o incitaram (como se sabe) a tomar o

    poder mas esta senhora no tinha altas responsabilidades polticas no Pas. Quanto missiva

    de D. Miguel a D. Pedro, tambm citada neste ponto VII, com a referncia justa reclamao

    de ligar ao juramento que prestei Carta a minha reserva formal e ao mesmo tempo o meu

    protesto no menos formal contra toda a violao dos meus direitos lesados por alguns actos

    da Regncia, ela mostra apenas reserva do Infante, no em relao Carta e ao Rei D.

    Pedro IV, mas em relao a, como ele prprio diz, preto no branco, alguns actos da Regncia(ou seja, D. Miguel referia-se regularizao da sua dignidade de Infante e dos seus direitos,

    coisa a que, como V. sabe, D. Pedro anuiu). A questo que V. levanta da Outorga da Carta

    como um acto ditatorial ilegtimo parece-me um argumento de recurso, embora valha a pena

    ser discutido (e foi muito discutido entre os liberais portugueses, defendido pelos cartistas,

    atacado ou relutantemente aceite pelos ex-vintistas e depois setembristas). Mas, curiosamente,

    D. Miguel no o invocou na altura da Outorga nem, que se saiba, pelo menos, nos dois anos

    subsequentes. Sobre este assunto, para o qual eu me remeto para as opinies expressas por

    Alexandre Herculano na sua defesa da Outorga na polmica com o jornal miguelistaA Nao

    em 1851, tenho apenas algumas observaes a fazer. Falar, em 1826, de um poder legislativo

    constituinte legtimo em Portugal muito problemtico. Os democratas diziam e dizem que a

    Outorga foi um acto de absolutismo (o ltimo) e que a redaco de uma Constituio s cabia a

    Cortes eleitas pela Nao (e dessa representao nacional certamente excluiriam, como

    excluram em 1821-22, a Nobreza histrica, os Prelados e a representao tradicional dos

    Concelhos); esta posio assume um princpio de ruptura histrica na legitimidade legislativa da

    Coroa, que os monrquicos cartistas nunca assumiram, e transfere a soberania (e, portanto, o

    poder constituinte) para a Nao, por eles entendida como o conjunto dos sbditos do Rei (ou

    cidados) sem distino de condio (ou Estado). Para os miguelistas, aparentemente, s as

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    Cortes tradicionais podiam fazer ou redigir uma nova Constituio isto a posio que

    adoptaram para justificar a tomada do poder por D. Miguel em 1828. Mas esta posio esquece

    vrias coisas: 1. Que nunca as Cortes foram, seno talvez em situaes de excepo e

    vacatura de jure da Coroa, como em 1385 e 1641, um poder realmente legislativo em Portugal e,

    por maioria de razo, muito menos constituinte; 2. Que, mesmo em 1385 e 1641, as Cortes

    meramente confirmaram Reis j previamente aclamados e de facto reinantes, redigindo comestes senhores certos regulamentos que, como os princpios sucessrios de 1641, no eram

    grandes inovaes legislativas mas meramente uma preciso dos termos do pacto que unia a

    Coroa e o Pas; 3. Que, em 1826, havia j mais de um sculo que no se reuniam Cortes em

    Portugal, tendo vrios monarcas desde ento sucedido na Coroa, sido aclamados e at

    introduzido importantes reformas e inovaes polticas (como as do reinado de D. Jos I) sem

    nenhum formal reconhecimento de Cortes. Tudo isto porque as regras constitucionais

    portuguesas no estavam codificadas e se haviam prestado a uma praxis evolutiva que

    reforara as competncias legislativas e executivas da Coroa e, de h muito tempo, dispensara

    as consultas do Rei s Cortes, um rgo que nunca foi permanente mas apenas supletivo do

    poder rgio [20]. Assim, mesmo que as Cortes se reunissem maneira antiga em 1826, muito discutvel que tivessem legitimidade para se assumirem como aquilo que nunca haviam

    sido nos sete sculos precedentes: um poder constituinte. Pelo contrrio, goste-se ou no, o

    Rei foi quem sempre deteve em Portugal o poder legislativo, desde o senhor D. Afonso I era o

    Rei quem concedia cartas de Foral, mercs, donatarias no Reino e no Ultramar, quem

    decretava leis e as prprias Ordenaes. A haver, pois, um poder constituinte tradicionalem

    Portugal, ele era o Rei. Da que todo o processo constituinte de 1820-22 seja, de facto, uma

    ruptura com a tradio poltica do Pas, com a legitimidade constitucional tradicionaldo Reino,

    se assim o posso dizer (mesmo com a anuncia formal de D. Joo VI, o qual, no entanto, em

    1823, na sequncia da Vilafrancada, que lhe entregou novamente a plenitude das suas

    competncias legislativas e executivas, denunciou esse processo constituinte de ruptura)[21]. Diferente a forma como a Carta Constitucional surge, de vontade rgia e, tal como a sua

    designao sugere, outorgada no exactamente como uma nova Constituio mas antes

    como uma Carta de direitos e deveres que vem na sequncia da legitimidade constitucional

    tradicionale a ela se acrescenta, passando a tutel-la [22].

    32 VIII Real! Real! Por el-rei de Portugal!: A histria da assuno da lugar-tenncia e do

    regresso a Portugal do Infante D. Miguel est aqui relatada de forma muito sumria e,

    parece-me, parcial. Mais uma vez, para defender a atitude do Infante em 1828, se torna

    necessrio negar a validade de qualquer coisa: desta vez o novo juramento da Carta que D.

    Miguel pronunciou em Lisboa aps o seu regresso ao Reino (26 de Fevereiro de 1828). O

    juramento tem, assim, de tornar-se num simulacro e toda a cena numa inverosmil

    tragicomdia que, a ser verdadeira, abonaria muito pouco a favor da honra das pessoas

    envolvidas. Eu recuso-me, sem provas concludentes, a acreditar que um Infante da Casa de

    Bragana se prestasse a uma tal atitude. Quem o constrangia desta vez? O Pas que, como V.

    diz, simpatizava com ele na sua maioria? De novo os Austracos? Os miguelistas deveriam,

    decididamente, meditar sobre o facto da sua posio radicar, toda ela, na assero de falsidade

    ou nulidade de dois documentos assinados por um Rei legtimo de Portugal e de dois

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    juramentos pronunciados pelo seu prprio pretendente ao Trono. Poderia ser uma dvida, v l,duas, trs j era difcil de no duvidar; mas quatro...!? Depois, dizer que D. Miguel fora exiladopor fora da escolta naval francesa e britnica pode estar bem mas falta explicar por querazo e por ordem de quem (as respostas so: insurreio e D. Joo VI). Que foi o jovemInfante a reserva moral da Nao, a aguardar por melhor oportunidade uma afirmao que eu

    comento da seguinte forma: poder ento ter sido essa reserva moral mas para uma dasfaces que se digladiavam no Portugal de ento e bom que quem subscreve tal ideia tenhapresente o que isso significava ento e significa hoje luz da histria em termos de lealdade (oufalta dela) para com D. Joo VI. No meio de tudo isto e da desafeio que os miguelistas nutrempor D. Pedro acaba por ser irnico que quem se tenha mostrado generoso, capaz depanache,em toda esta crise e desavena poltica entre os membros da Casa de Bragana, tenha sido osenhor D. Pedro, confiando no irmo, concedendo-lhe o fim do exlio e a lugar-tenncia e obenefcio da dvida que D. Joo VI no lhe deu em 1824. D. Miguel, por fim, cedeu tentao aque muitos o incitavam e eu no lhe ponho nenhum ferrete de traio nem de essencial malcia:acredito que era um prncipe bem intencionado, concedo-lhe mesmo algum brio, mas a quebra

    dos seus compromissos e da lealdade legitimidade dinstica da senhora D. Maria II tiveram asconsequncias desastrosas de uma guerra civil. A sua aclamao pelas Cmaras Municipaisde Lisboa e Coimbra a 25 de Abril de 1828 e pelas Cortes reunidas maneira antiga em 11de Agosto do mesmo ano, mostra um indiscutvel apoiopopularque tinha ento mas no lhe da legitimidade que ou tinha em termos dinsticos ou no tinha. Como monrquico, eu no soupropriamente um adepto do poder popular, das legitimidades adquiridas em banhos demultido ou em proclamaes de entidades e assembleias tomadas de assalto pelas vozes dosmais exaltados. Em 1828, quando pela primeira vez D. Miguel passou o risco da tomada dopoder (contenho-me e no digo usurpao), Portugal no estava a sair de um jugo estranho oude uma situao de perigo para a independncia da sua Dinastia como em 1383 ou em 1640

    pocas em que se justificaram, por isso, duas foradas aclamaes populares por cima dasformais regras dinsticas de sucesso Coroa, depois confirmadas em Cortes. O queaconteceu foi o destronamento pela fora, no meio de algum entusiasmo popular, de umaRainha menor e legtima havia dois anos.

    33 IX Da ingerncia das potncias estranhas: O relato aqui feito da interveno de potnciasestrangeiras em Portugal, nomeadamente da Gr-Bretanha, igualmente sumrio e parcial. V.esquece-se que as intervenes britnicas, que de facto pendiam para D. Joo VI, D. Pedro IVe D. Maria II porque no entender da Corte de St. James eram estes os monarcas legtimos dePortugal de quem os Reis britnicos eram aliados tradicionais , eram feitas paracontrabalanar ou contrariar as ingerncias de outras potncias, que tambm as havia(nomeadamente a Frana, a ustria e a Espanha), alm de que foram feitas a pedido do poderpoltico legtimo de Lisboa ou no eram governantes legtimos D. Joo VI e a Regncia queantecedeu a lugar-tenncia de D. Miguel at Primavera de 1828 (este Infante, que se saiba,nunca ps em causa tal legitimidade)? A ideia que V. quer transmitir que vrias decisesimportantssimas foram tomadas em Portugal sob presso, seno sob coaco, daGr-Bretanha (o abortamento do movimento da Abrilada contra D. Joo VI e o exlio de D.Miguel, o reconhecimento da inevitabilidade da independncia brasileira, a assinatura rgia da

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    carta-patente de 13 de Maio de 1825 e do tratado de 29 de Agosto desse ano e a promulgaopor D. Isabel Maria do decreto de outorga da Carta), alm de terem pouca verosimilhanahistrica, imputam a D. Joo VI e Regente D. Isabel Maria gravssimos actos de traio queafectariam decisivamente a honra de ambos. Julgo que V. no se apercebeu at que ponto issoimplica responsabilizar o Rei e a Regente de faltas que nunca soube nenhum historiador

    credvel tivesse provado. Francamente, penso que tudo isto um preo demasiado alto paratentar justificar, a todo o custo e deitando mo a qualquer explicao por enviesada que seja, oprocedimento de D. Miguel na Primavera de 1828. Nessa argumentao, quase parece seradoptada a mxima de emporcalhe-se tudo, denigra-se a memria de todos (at do Rei!) massalve-se o argumento de que D. Miguel nunca quebrou os seus deveres e juramentos! V.refere os casos de levantamentos miguelistas no Pas antes de 1828, o que est certo, masno deve esquecer que tambm houve outros levantamentos, nomeadamente em apoio daCarta quando D. Miguel tomou o poder (veja, por exemplo o mapa dos focos de resistncia a D.Miguel em 1828-29 que o Prof. Joaquim Verssimo Serro disponibiliza na pg. 406 do vol. VIIda sua Histria de Portugal) ou ainda a tentativa de organizar uma resistncia militar sediada no

    Porto. Passar daqui para o desembarque em territrio portugus do exrcito comandado por D.Pedro IV em nome de sua filha D. Maria II parece-me um grande salto. No meio e na penumbrafica o reinado do Infante D. Miguel, sobre o qual V. nada diz; mas, como sabe, muito haveria adizer sobre os desmandos em que o Pas mergulhou nesse perodo, j que todo o regime entoinstaurado (e que pouco teve a ver com o regime de direitos que apesar de tudo existia sob aMonarquia tradicional) se baseava no poder amplamente arbitrrio das vrias pessoas em quemo Infante teve de confiar para se manter no poder[23]. Ignora tambm todo o processo derenncia de D. Pedro coroa brasileira, saindo da posio de monarca reinante e viajando paraoutro continente para defender os direitos dinsticos da filha em Portugal, mais uma vez companache e abnegao e por imperativo de honra. O desembarque de 8 de Julho de 1832 na

    Arnosa de Pampelido dos 7 500 homens a quem Herculano chamou de homens de bronze e debravos do Mindelo marcou o incio das hostilidades militares que tiveram lugar at Convenode vora Monte em 26 de Maio de 1834 [24]. Embora eu no tenha dados para confirmar osnmeros que V. avana, sei que a sua contagem do nmero de estrangeiros no exrcitoconstitucional est errada: havia tambm, e em posio de comando, um brasileiro.

    34X Da legitimidade: Sobre o perodo aps a Conveno de vora Monte e antes de passarao segundo e definitivo exlio de D. Miguel, h a dizer que D. Pedro, literalmente, consumiu asua vida na guerra da Restaurao de 1832-34 (para usar a designao que Herculano d guerra civil); o ento Regente em nome da filha ainda menor D. Maria II resistiu apenas algunsmeses celebrao da conveno, vindo a falecer precocemente, ainda em 1834, no meio daincompreenso e de ataques sua honra perpetrados pela faco vintista-setembrista, que nolhe perdoava ter permitido a D. Miguel exilar-se e haver adoptado uma poltica de reconciliaoque impedia revanchismos e arbitrariedades contra aqueles que haviam servido ou apoiado oInfante deposto. Quero com isto dizer que, sendo inequvoco, como V. diz, que D. Miguel seportou honradamente na derrota, tambm verdade que D. Pedro se portou com nobreza navitria (alis, para ele pessoalmente, bem amarga) [25]. Mas o manifesto que D. Miguel assinouem Gnova a 20 de Junho desse ano, menos de um ms depois, declarando que a sua

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  • 8/3/2019 Elementos de Doutrina Neocartista, por Lus Aguiar Santos

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    capitulao deveria ser considerada nula e de nenhum efeito parece ser mais uma daquelas

    decises que ele tomava entusiasmando-se com os conselhos imprudentes de alguns dos seus

    correligionrios. O mesmo pode ser dito das suas declaraes perante o Papa, em Setembro,

    no propsito j de dificultar a reso