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FEAD MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO MODALIDADE: PROFISSIONALIZANTE PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DOUTRINA ESPÍRITA DOUTRINA ESPÍRITA DOUTRINA ESPÍRITA DOUTRINA ESPÍRITA Daniella Francisca Soares e Silva Belo Horizonte 2009

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FEAD

MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO

MODALIDADE: PROFISSIONALIZANTE

PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA

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Daniella Francisca Soares e Silva

Belo Horizonte 2009

Daniella Francisca Soares e Silva

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DOUTRINA ESPÍRITADOUTRINA ESPÍRITADOUTRINA ESPÍRITADOUTRINA ESPÍRITA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Profissional em Administração da FEAD, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Administração.

Área de concentração: Gestão, organização e mudanças

Orientadora: Profa. Dra. Patrícia Gazzoli

Belo Horizonte FEAD 2009

iii

AGRADECIMENTOS

À Patricia Gazzoli, minha orientadora, que aceitou o desafio de orientar meu projeto, mesmo

estando à distância, e cuja contribuição foi fundamental para a consistência deste trabalho,

indicando caminhos e alertando para situações perigosas ou fora do escopo.

Ao meu pai, que me incentivou a continuar a caminhada em um momento muito tumultuado

em que pensei em desistir.

À minha mãe, pelo enorme carinho e atenção, e aos meus irmãos, pela compreensão nos

momentos de ausência.

Aos colegas da FEAD, especialmente à Jurema Suely de Araújo Nery Ribeiro, Leonardo

Pereira de Andrade e Cristiano Rodrigues Pinho, pelo aporte no atendimento às demandas das

disciplinas cursadas.

Às casas espíritas e à AME da cidade onde se desenvolveu o estudo, cujas contribuições

possibilitaram o desenvolvimento desta pesquisa. Em especial à casa espírita na qual foi

realizada a pesquisa em profundidade, onde dei os primeiros passos no estudo da doutrina

espírita, que é a grande inspiradora do tema deste trabalho.

iv

“Sei que meu trabalho é uma gota no oceano,

mas sem ele o oceano seria menor.”

Madre Tereza de Calcutá

(1910-1997)

v

RESUMO

O presente trabalho, desenvolvido nas organizações do terceiro setor ligadas às casas espíritas

de uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, objetivou caracterizar o

funcionamento dessas organizações e avaliar a influência dos fundamentos da doutrina

espírita em sua gestão. Para atender a esse objetivo foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa,

descritiva, constituída de três etapas: entrevista com o Presidente da Associação Municipal

Espírita; sondagem realizada junto a 12 casas espíritas da cidade e às quatro organizações de

fins sociais a elas ligadas; e um estudo de caso em profundidade em uma dessas organizações

de fins sociais. Os resultados da pesquisa apontam para a inexistência de uniformidade das

atividades sociais desenvolvidas pelas casas espíritas, e aponta também para a influência dos

princípios da doutrina espírita no funcionamento e gestão das organizações de fins sociais a

elas ligadas. Isso é viabilizado através de seus dirigentes, que devem ter vínculo com as casas

espíritas, e através da influência do grupo gestor da casa espírita nas decisões estratégicas da

organização de fins sociais. Percebem-se, nas organizações de fins sociais ligadas às casas

espíritas, práticas que concretizam a codificação kardequiana, sobretudo no que tange às Leis

do Trabalho, Sociedade, Amor, Justiça e Caridade e Liberdade. O poder e a influência das

casas espíritas sobre as organizações não se atrela, dessa forma, ao aporte de recursos

financeiros, que são obtidos, na maioria dos casos, através de parcerias com o poder público,

perante às quais as organizações defendem autonomia.

vi

ABSTRACT

This work, developed at the third sector organizations related to the Spiritist centers located in

a city in the great Belo Horizonte, aimed to describe how these organizations work and to

assess the influence of the fundamentals of the Spiritist doctrine on the way they are managed.

In order to meet this goal, a qualitative and descriptive research was developed which

consisted of three phases: an interview with the President of the Municipal Spiritist

Association; a survey carried out at 12 Spiritist centers of the city and at the 4 social

organizations related to them; and an in-depth case study within one of these social

organizations. The outcome of the research indicates the inexistence of any uniformity in the

social activities developed by the Spiritist centers and the existence of an influence exerted by

the principles of the Spiritist doctrine in the way in which the related social organizations

work and are managed. This influence is conveyed through the organization leaders, who

must have a bond with the Spiritist centers, and through the influence that the managing group

within the Spiritist center exerts on the strategic decisions of the social organization. Within

the social organizations related to the Spiritist centers there were practices in place that

materialize the Kardecist codification, particularly regarding Labor Laws, Society, Love,

Justice and Charity, and Liberty. Thus, the power and influence of the Spiritist centers on the

organizations is not linked to the contribution of financial resources, which in most of the

cases are obtained through partnerships with the public sector, from which the organizations

claim autonomy.

vii

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Organização do movimento espírita no Brasil...........................................39

FIGURA 2 – Organograma do Conselho Espírita Internacional.....................................42

FIGURA 3 – Organograma das organizações de fins sociais..........................................67

FIGURA 4 – Diploma de Honra ao Mérito “Mariinha Moreira”....................................98

FIGURA 5 – Placa referente a Destaque na Ação Social em 1996.................................99

FIGURA 6 – Medalha de Honra ao Mérito de 1996........................................................99

viii

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 – Síntese das características gerais das organizações do terceiro setor ........30

QUADRO 2 – Síntese das particularidades de funcionamento das

organizações do terceiro setor ...................................................................31

QUADRO 3 – Ethos espírita brasileiro no estudo de alguns antropólogos.......................39

QUADRO 4 – Organização de fins sociais x projeto social..............................................47

QUADRO 5 – Instituições e projetos sociais mantidos pelas casas espíritas....................55

QUADRO 6 – Características das organizações do terceiro setor mantidas

pelas casas espíritas....................................................................................57

QUADRO 7 – Requisitos para ser atendido pelas instituições..........................................60

QUADRO 8 – Funcionários contratados e voluntários......................................................63

QUADRO 9 – Dirigente das instituições...........................................................................67

QUADRO 10 – Parcerias.....................................................................................................70

QUADRO 11 – Fonte de recursos financeiros.....................................................................73

QUADRO 12 – Gestão dos recursos financeiros.................................................................74

QUADRO 13 – Projetos sociais mantidos pelas casas espíritas..........................................75

QUADRO 14 – Relação entre atividade social/filantrópica e a doutrina espírita................79

QUADRO 15 – Relação de Projetos da Casa Espírita Cantinho de Amor..........................84

QUADRO 16 – Parcerias do Centro Educacional Viver....................................................103

ix

LISTA DE ABREVIATURAS

AME Aliança Municipal Espírita

APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais

CEI Conselho Espírita Internacional

CEM Conselho Espírita Municipal

CEV Centro Educacional Viver

CFN Conselho Federativo Nacional

CLT Constituição das Leis Trabalhistas

CNPJ Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica

COFEMG Conselho Federativo Espírita de Minas Gerais

CRE/BARV Conselho Regional Espírita da Bacia do Alto Rio das Velhas

FEB Federação Espírita Brasileira

FEESP Federação Espírita do Estado de São Paulo

FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

FIA Fundo para Infância e Adolescência

FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização

dos Profissionais da Educação

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INSS Instituto Nacional do Seguro Social

LBA Legião Brasileira de Assistência

MEC Ministério da Educação e Cultura

OSCIPs Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público

PCA Programa de Complementação Alimentar

RITS Rede de Informações para o Terceiro Setor

SERVAS Serviço Voluntário de Assistência Social

SESC Serviço Social do Comércio

SETASCAD Secretaria de Estado do Trabalho, da Assistência Social, da Criança e do

Adolescente

x

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11

1.1 Objetivos da pesquisa ............................................................................................... 13

1.2 Justificativas da pesquisa ......................................................................................... 14

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .......................................................................... 16

2.1 Terceiro setor ............................................................................................................ 16

2.1.1 Definições e origens ................................................................................................... 16

2.1.2 Gestão no terceiro setor ............................................................................................. 21

2.1.3 Problemas e desafios enfrentados por organizações do terceiro setor ..................... 27

2.2 Doutrina Espírita ...................................................................................................... 31

3 METODOLOGIA .................................................................................................... 49

4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS .................................................... 54

4.1 Caracterização das instituições de terceiro setor estudadas ................................ 54

4.1.1 As casas espíritas e as organizações de fins sociais a elas ligadas: caracterização ... 54

4.1.2 Funcionários e voluntários ........................................................................................ 62

4.1.3 Dirigentes e estrutura hierárquica das instituições estudadas .................................. 66

4.1.4 Parcerias e recursos financeiros ................................................................................ 69

4.1.5 Projetos sociais desenvolvidos pelas casas espíritas ................................................. 74

4.1.6 Relação entre doutrina espírita e as atividades sociais das casas espíritas ............. 77

4.2 Constituição e funcionamento do Centro Educacional Viver, mantido pela Casa

Espírita Cantinho de Amor: um estudo de caso .................................................... 82

4.2.1 Histórico do Centro Educacional Viver ..................................................................... 83

4.2.2 Funcionamento e gestão da creche estudada............................................................. 90

4.2.3 Principais dificuldades enfrentadas pelo CEV .......................................................... 97

4.2.4 Relação entre o funcionamento e a gestão da organização e a doutrina espírita ... 107

5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 110

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 115

APÊNDICE A ....................................................................................................................... 120

APÊNDICE B........................................................................................................................ 121

11

1 INTRODUÇÃO

O tema terceiro setor tem alcançado destaque na atualidade, sendo constantemente citado pela

mídia nacional, cada vez mais fazendo parte das políticas públicas, mobilizando recursos e

gerando oportunidades de trabalho. Historicamente, a presença do terceiro setor e de suas

práticas são notadas desde os séculos XVI e XVII, na Europa, América do Norte e América

Latina, inicialmente com caráter religioso ou político.

Segundo Fernandes (1997), o conceito de organização do terceiro setor é constituído por duas

negações: trata-se de uma instituição “não-governamental” (que não faz parte do governo, e

portanto não pode ser confundida com instituições de direito público) e que “não tem fins

lucrativos”. Embora essas organizações arrecadem recursos, não são geridas a partir da lógica

de mercado: os dividendos auferidos são reinvestidos nas próprias organizações e seus

dirigentes, muitas vezes, prestam serviços voluntários.

[...] pode–se dizer que o terceiro setor é composto de organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não-governamental, que dão continuidade às práticas tradicionais de caridade, da filantropia e do mecenato e expandem o seu sentido para outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas múltiplas manifestações na sociedade civil (FERNANDES, 1997, p. 27).

Soares (2005) relata que o terceiro setor é uma realidade no Brasil há décadas. Empresas,

igrejas e diversas organizações investem em ações que geram um significativo impacto social

O autor observa o seguinte:

A própria sobrevivência de amplas camadas da sociedade brasileira parece inexplicável, quando lemos os dados relativos à renda e sua absurda distribuição, sem atentar para os laços e canais invisíveis que se estabeleceram e consolidaram, ao longo de anos, propiciando fluxos imperceptíveis de recursos dos mais diferentes tipos, em direções insuspeitas, criando condições mais humanas e suportáveis para muitos grupos marginalizados e redefinindo o pacto social, reinvestindo na sociabilidade, lançando pontos para a integração ecumênica no campo da cidadania, revalorizando redes e conexões transversais, infundindo renovada e oblíqua legitimidade nas instituições públicas (SOARES, 2005, p. 11).

Albuquerque (2006) também chama a atenção para o importante papel desempenhado pelas

igrejas, especialmente a católica, na formação do terceiro setor no Brasil. As Santas Casas

12

representam as primeiras organizações sem fins lucrativos do país. Outras instituições ligadas

“a igrejas protestantes, espíritas e afro-brasileiras também têm desenvolvido papel importante

na conformação do setor no país, ainda que numericamente sejam menores”

(ALBUQUERQUE, 2006, p. 34).

As organizações do terceiro setor enfocadas neste estudo situam-se em uma cidade da região

metropolitana de Belo Horizonte com aproximadamente 220 mil habitantes (IBGE, 2007), e

são mantidas por casas espíritas. Segundo dados da Aliança Municipal Espírita (AME) da

referida cidade, existem 13 casas espíritas nessa cidade. Algumas dessas casas espíritas

mantêm organizações ou projetos assistenciais; contudo, nem todos estão catalogados e nem

mesmo são conhecidos em sua totalidade pela AME. Devido à acessibilidade e à implicação

da autora no movimento espírita, as organizações do terceiro setor ligadas às casas espíritas

dessa cidade constituíram o objeto de investigação da presente pesquisa.

Para efeito deste estudo, é fundamental distinguir os termos “casas espíritas” e “organizações

do terceiro setor mantidas por casas espíritas”. As casas espíritas são locais onde os

seguidores da doutrina espírita se reúnem com o objetivo de estudar o Evangelho de Jesus e

os fundamentos da doutrina. Embora também exerçam papel assistencial, na medida em que

propiciam auxílio material e consolo espiritual para aqueles que buscam esses locais, essa não

é a sua finalidade principal (BIANCHINI, 2008). Segundo Pires (2008), a casa espírita

funciona como um centro de serviços, tanto no plano material como no plano espiritual, onde

há o esforço permanente de estudo evangélico puro, caracterizado por atividades de preces,

passes e doutrinação dos interessados.

Já as organizações do terceiro setor mantidas por casas espíritas são organizações

estruturadas, com um corpo de profissionais estável, de gestão relativamente autônoma, que

prestam serviços sem fins lucrativos, possuem objetivos sociais, e em grande parte são

mantidas também do ponto de vista material pela própria casa espírita. Essas organizações

são, por exemplo, as creches, escolas, asilos e hospitais que têm o objetivo de atender a

demandas da sociedade, configurando-se como organizações do terceiro setor.

13

Giumbelli1 (1998, apud Sampaio, 2004, p. 172) destaca “o incentivo à prática da caridade

como característico do Espiritismo Brasileiro [...]”. Segundo o autor, “de alguma forma a

atividade assistencial concedeu respeitabilidade ao movimento espírita ante a sociedade e as

instituições brasileiras”. Dentro da temática que envolve o papel das organizações religiosas

no terceiro setor, coloca-se como problema de pesquisa a seguinte questão:

Quais são as características de funcionamento das organizações do terceiro setor

mantidas por casas espíritas e qual a influência dos fundamentos da doutrina espírita

nas práticas adotadas por essas organizações?

1.1 Objetivos da pesquisa

Este estudo tem o objetivo geral de caracterizar o funcionamento das organizações do terceiro

setor mantidas pelas casas espíritas de uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte

e avaliar a influência dos fundamentos da doutrina espírita nas práticas dessas organizações.

O alcance do objetivo geral está diretamente relacionado aos seguintes objetivos

intermediários:

• identificar, na literatura existente, as práticas de funcionamento verificadas em

organizações do terceiro setor de caráter não-religioso;

• identificar as principais práticas de funcionamento adotadas pelas organizações do

terceiro setor mantidas pelas casas espíritas existentes em uma cidade da região

metropolitana de Belo Horizonte (Minas Gerais);

• analisar em profundidade o processo de criação de uma dessas organizações do

terceiro setor, e como ela tem se organizado e funcionado ao longo do tempo;

• estabelecer possíveis relações entre os princípios da doutrina espírita e as

características de funcionamento das organizações estudadas.

1 GIUMBELLI, Emerson. Caridade, assistência social, política e cidadania: práticas e reflexões no espiritismo. In: LANDIM, Leilah (Org.) Ações em sociedade: militância, caridade, assistência, etc. Rio de Janeiro: NAU, 1998.

14

1.2 Justificativas da pesquisa

Esta pesquisa se justifica na medida em que o terceiro setor tem se destacado no cenário

brasileiro, devido a seu considerável crescimento nos últimos anos. Segundo Corrêa et al.

(2006), houve um aumento de 157% do número de organizações do terceiro setor no período

compreendido entre 1996 (105 mil organizações) e 2002 (276 mil organizações). Muitas

dessas organizações são ligadas à igreja, conforme esclarece Albuquerque (2006, p. 34): “se

considerarmos todas as organizações criadas ou mantidas por igrejas, veremos que elas

representam 38,6% das organizações no Brasil, uma para cada três existentes”.

Em agosto de 2003, o número de organizações do terceiro setor registradas no cadastro do

Conselho Nacional de Assistência Social2 era de 15.311 (SAMPAIO, 2004), mas apenas

6.545 possuíam o certificado de instituições filantrópicas. Dessas últimas, 460 (cerca de 3%)

utilizavam o termo espírita ou kardecista em sua denominação. Analisando esses dados,

conclui-se que as organizações do terceiro setor ligadas a casas espíritas no Brasil têm uma

parcela de participação que não pode ser desprezada, o que impõe um estudo mais

aprofundado sobre possíveis particularidades dessas instituições, o que deve ser objeto do

interesse de acadêmicos que se dedicam ao conhecimento e à exploração do tema “terceiro

setor”.

Acredita-se que este estudo seja relevante para as instituições de financiamento e para os

órgãos associativos e governamentais que trabalham diretamente com a questão do terceiro

setor, uma vez que devem conviver com essas organizações de fins sociais ou mesmo avaliá-

las. Portanto, deve ser de seu interesse compreender melhor tanto o perfil das instituições

ligadas à doutrina espírita como as características de sua gestão e seu modo de

funcionamento.

2 CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Entidades registradas no CNAS. Disponível em <http://www.assistenciasocial.gov.br/iframe/cnas/cnas.htm>. Acesso em 21 de setembro de 2003.

15

O estudo é relevante também para as próprias organizações de fins sociais estudadas e para as

casas espíritas envolvidas. Evidenciar traços particulares do funcionamento de organizações

de terceiro setor mantidas por casas espíritas pode ajudar a identificar oportunidades de

melhoria, assim como erros repetidos que seriam prejudiciais ao cumprimento dos objetivos

das instituições sociais e das casas espíritas.

Por fim, o presente estudo contribui igualmente para a academia, na medida em que propicia o

estudo do terceiro setor e de suas práticas de gestão. Dessa forma, a pesquisa aqui apresentada

pode contribuir, do ponto de vista acadêmico, para ampliar o conhecimento sobre essa área do

conhecimento, o que pode ter como conseqüência a proposição de melhorias que venham a

aprimorar as práticas de funcionamento do terceiro setor.

A estrutura do texto é composta da fundamentação teórico a cerca do terceiro setor e da

doutrina espírita, apresentada no capítulo 2; da metodologia, abordada no capítulo 3; da

apresentação e análise dos dados da pesquisa, descritos no capítulo 4; e da conclusão,

apresentada no capítulo 5. O nome das casas espíritas e das organizações de fins sociais a elas

ligadas não foram revelados nesta pesquisa, sendo fictícios os nomes aqui utilizados.

16

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O referencial teórico deste projeto explora dois temas fundamentais para a elucidação do

problema de pesquisa. Primeiramente, como o objeto de estudo são organizações do terceiro

setor, aborda-se esse setor tanto em suas definições e características peculiares, como em sua

dimensão histórica e nos traços particulares de sua gestão e funcionamento, reconhecidos pela

literatura estudada. Em um segundo momento, são apresentados os fundamentos da doutrina

espírita, pois busca-se neste trabalho justamente identificar os traços particulares do

funcionamento de instituições do terceiro setor mantidas por casas espíritas, bem como a

influência da doutrina espírita no funcionamento dessas organizações.

2.1 Terceiro setor

2.1.1 Definições e origens

A definição de terceiro setor não é consenso no meio acadêmico, e mesmo as próprias

organizações desse setor não mantêm uma identificação com o termo (FISCHER;

FALCONER, 1998). Para efeito deste estudo buscou-se identificar conceituações do que seja

o referido setor, objetivando esclarecer a natureza das organizações pesquisadas, bem como

distingui-las do primeiro e segundo setores.

Segundo Resende (2006, p. 24), o primeiro setor (ou Estado) “é o ente com personalidade

jurídica de direito público, encarregado de funções públicas essenciais e indelegáveis ao

particular, tais como legislar; fiscalizar; aplicar justiça; dar segurança geral, etc”. O segundo

setor é “composto por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, encarregadas da

produção e comercialização de bens e serviços, tendo como escopo o lucro e o

enriquecimento do empreendedor” (idem, p. 25). Já o terceiro setor é “aquele que congrega as

pessoas jurídicas de direito privado, sem fins econômicos (ou sem finalidade lucrativa) e que

prestam serviços de interesse coletivo” (idem, p. 25).

17

Tomando por base a metodologia adotada pelo Handbook in Nonprofit Institutions in the

System of National Accounts, Corrêa (2006, p.viii) define as organizações do terceiro setor

nas mesmas bases. Segundo a autora, são organizações:

privadas, não integrantes, portanto, do aparelho do Estado; sem fins lucrativos, isto é, organizações que não distribuem eventuais excedentes entre proprietários ou diretores e que não possuem como razão primeira de existência a geração de lucros – podem até gerá-los desde que aplicados nas atividades fins; institucionalizadas, isto é, legalmente constituídas; auto-administradas ou capazes de gerenciar suas próprias atividades; e voluntárias, na medida em que podem ser constituídas livremente por qualquer grupo de pessoas, isto é, a atividade de associação ou de fundação da entidade é livremente decidida pelos sócios fundadores.

Silva (2004, p. 38), em sua dissertação de mestrado, fez uma pesquisa sobre as definições de

terceiro setor elaboradas por diversos autores e concluiu, no mesmo sentido, que esse setor é

composto por organizações que possuem as seguintes características:

a) são não-governamentais, independentes do Estado; b) não têm fins de lucro ou benefícios particulares; c) são movidas por objetivos sociais, de transformação da sociedade e de melhoria da vida humana; d) são provenientes da iniciativa da comunidade em benefício da comunidade - ou seja, a iniciativa privada atua em benefício de um bem público; e) buscam o bem-estar da sociedade como um todo; f) utilizam intensamente o trabalho voluntário para concretizar seus objetivos; g) traduzem os valores de solidariedade e participação da comunidade.

Teodósio (2001a, p. 2) cita alguns exemplos de organizações que podem ser definidas como

terceiro setor: “associações comunitárias, organizações não-governamentais, instituições

filantrópicas, projetos de caridade, igrejas e seitas religiosas, fundações, organizações sociais,

projetos sociais desenvolvidos por empresas e sindicatos”. Conceitos como responsabilidade

social, cidadania empresarial e filantropia empresarial também estão associados ao terceiro

setor.

Os primeiros registros de instituições com a finalidade de prestar assistência aos

desamparados no Brasil são encontrados no ano de 1.543, com a Irmandade da Misericórdia,

que se expandiu pelo país como Santa Casa de Misericórdia, com o apoio da Igreja

(THEODORO, 2008). Portanto, a Igreja está diretamente relacionada às primeiras associações

filantrópicas e de assistência social no país (OLIVEIRA, 2005).

18

No período que compreende o descobrimento do Brasil até o século XVIII, a Igreja católica se

envolveu muito mais em ações sociais do que o Estado, e foi responsável pelo fornecimento

de serviços em dois importantes setores sociais: a saúde e a educação. O primeiro setor foi

atendido através das Santas Casas de Misericórdia, instituições filantrópicas renomadas no

país, que implantaram os primeiros hospitais no Brasil. O segundo setor foi contemplado pela

atuação da Ordem da Companhia de Jesus, através da qual os jesuítas implantaram o primeiro

sistema educacional brasileiro, ação que o governo faria apenas no final do século XVIII

(OLIVEIRA, 2005).

Landim3 (1993, apud OLIVEIRA, 2005) esclarece que, além dos católicos, os protestantes

que chegavam da Europa e Estados Unidos também se mobilizaram em organizações de fins

sociais, de forma independente do Estado, através da experiência adquirida em seus países de

origem. Os luteranos desenvolveram o cooperativismo, criando um ambiente de organização e

participação praticamente inexistentes em outras regiões do Brasil. Os presbiterianos,

metodistas, batistas e congregacionais difundiram as idéias do liberalismo, formando líderes

religiosos atuantes no trabalho social e educativo. Os espíritas e as religiões afro-brasileiras

também começaram a exercer ações de cunho social (OLIVEIRA, 2005).

Com a crise do Estado Liberal, aguçada em 1929, essa situação foi alterada, desenvolvendo-se

no país, pelo menos em teoria, o Estado do Bem-Estar Social (Welfare State), que consiste

numa tentativa de reaproximação entre o Estado e a sociedade nos âmbitos econômico, social

e cultural. A orientação do Estado era então a de contribuir para a solução dos inúmeros

problemas locais, regionais, nacionais e mundiais, propiciados pelo “aumento da pobreza, da

violência, de doenças, poluição ambiental e conflitos religiosos, étnicos, sociais e políticos”

(ALBUQUERQUE, 2006, p. 23), decorrentes de alterações nos centros de poder, da

revolução dos sistemas de comunicação e do aumento da produção agrícola e industrial.

Na América Latina, somente na década de 1970 as organizações do terceiro setor recuperam

sua notoriedade, reemergindo com forte caráter político, voltadas para a redemocratização,

para “políticas sociais de desenvolvimento comunitário e para a execução de atividades de

3 LANDIM, Leilah. A invenção das ONGs: do serviço invisível à profissão. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993.

19

assistência e serviços nos campos de consumo, educação de base e saúde, entre outros”

(ALBUQUERQUE, 2006, p. 23). De certa forma, a mobilização da sociedade civil (desta vez

contra o Estado autoritário), preparou o terceiro setor para a sua ampla atuação nos países

latino-americanos a partir dos anos 80, quando houve uma alteração significativa da realidade

latino-americana. Fortes crises econômicas e altos índices de inflação, acirrados por uma

política neo-liberal de desenvolvimento adotada pelos governos, agravaram a situação de

pobreza na América Latina. Em paralelo, testemunhou-se o aumento da informalidade na

economia e o descrédito dos governos junto ao Banco Mundial e às instituições internacionais

quanto ao emprego dos recursos destinados aos programas de desenvolvimento social,

situação que tornou não só propícia, mas necessária, a atuação de organizações do terceiro

setor junto às comunidades carentes de serviços.

Além disso, o crescimento do terceiro setor se deve igualmente aos seguintes fatores: à

amplitude e gravidade do que se chamou “crise do Estado”, em sua incapacidade de atender

às demandas sociais; ao aumento do número, da abrangência e das áreas de atuação das

organizações do terceiro setor; à terceira revolução industrial; à revolução nas comunicações;

e à mudança da agenda de financiamento internacional (ALBUQUERQUE, 2006).

Sampaio (2004) afirma que existem diferentes abordagens sobre as origens do terceiro setor:

com relação ao Estado, com relação às empresas, com relação às universidades e com relação

às organizações sem fins lucrativos.

Com relação ao Estado, “o terceiro setor se tornou uma alternativa para uma reforma do

Estado que o pretenda tornar promotor, mais que realizador, de ações sociais” (SAMPAIO,

2004, p. 26). Na realidade brasileira, o terceiro setor contribuiu para a terceirização de mão-

de-obra para a execução de objetivos estatais, com fragilidade de vínculos empregatícios e

redução de encargos previdenciários. Além disso, a terceirização de serviços ao terceiro setor

representa uma maneira menos burocrática de contratação de serviços e cancelamento de

contratos, permitindo maior autonomia aos administradores públicos. Paralelamente, há maior

proximidade dessas organizações com a comunidade, o que facilita a consecução de seus

objetivos. No cenário internacional, as organizações do terceiro setor “ganharam notoriedade

pública e espaços para execução de políticas internacionais” (SAMPAIO, 2004, p.27).

20

No que se refere à relação com as empresas, Sampaio (2004) afirma que o terceiro setor

possibilitou a realização, por parte das empresas, de ações de responsabilidade social e

marketing solidário. A implementação de ações de cunho social por parte das empresas foi

facilitada através das organizações do terceiro setor, seja devido à utilização de benefícios

fiscais ou devido a políticas de destinação de parte do pagamento do imposto de renda a obras

culturais ou sociais. Por outro lado, o terceiro setor passou a ser reconhecido como agente

importante no relacionamento das empresas com os seus diversos públicos: clientes,

parceiros, fornecedores, empregados e comunidade. A atuação junto ao terceiro setor passou a

ser vista pelos empresários tanto como uma forma de promover a imagem institucional das

suas empresas, quanto como uma forma de influenciar de forma positiva o cenário social

brasileiro, que se apresenta repleto de problemas e carente de soluções efetivas.

Para as universidades, o desenvolvimento do terceiro setor abriu espaço para a criação de

cursos de graduação e pós-graduação específicos sobre o tema, assim como para a promoção

de congressos, seminários e para a formação de grupos de pesquisa direcionados ao assunto.

Alunos e profissionais são atraídos por essas organizações, na medida em que elas se

profissionalizam e se fortalecem (SAMPAIO, 2004).

Finalmente, quanto às organizações sem fins lucrativos, foram criados organismos e redes

nacionais e internacionais com o objetivo de consolidar e desenvolver as organizações do

terceiro setor. Foi dirigida aos meios acadêmico e social a demanda para que auxiliassem a

solucionar os problemas vivenciados nessas instituições. As parcerias com o Estado e com as

empresas privadas criaram a necessidade de melhoria da gestão das organizações do terceiro

setor. A instauração de governos de orientação social-democrata no Brasil facilitou a

execução de ações sociais pelo terceiro setor com o auxílio do Estado. Alterações promovidas

na legislação brasileira, como a Lei do Voluntariado (Lei Federal 9.608/98) e a Lei das Oscips

(Lei Federal 9790/99), promoveram a atuação das organizações do terceiro setor no país

(SAMPAIO, 2004).

Em uma perspectiva diferente, Falconer (1999) acredita que entidades internacionais e

multinacionais foram as grandes responsáveis pela introdução do conceito e pela valorização

do terceiro setor no mundo subdesenvolvido. Para o autor, “a construção do terceiro setor

21

brasileiro, pode-se afirmar com segurança, deu-se de fora para dentro: de fora do país e de

fora do setor para dentro dele.” (FALCONER, 1999, p. 4).

O autor cita como exemplo de fundação e instituição americanas e européias a Fundação

Ford, a Fundação W. K. Kellogg e o Banco Mundial. A Fundação Ford apoiou a participação

popular como forma de fortalecer a democracia, principalmente durante o período de regime

militar. “Uma forma comum de fazer isto era através do apoio a projetos de organizações

comunitárias e movimentos populares, principalmente junto a populações carentes.” (idem, p.

5). Quanto à Fundação W. K. Kellogg, o autor afirma que:

Nos anos noventa, outra fundação americana privada, a Fundação W. K. Kellogg, veio a assumir uma posição que pode ser caracterizada como um mecenato do terceiro setor: em praticamente toda a América Latina e outras partes do mundo em desenvolvimento, projetos pioneiros voltados para o “fortalecimento da sociedade civil”, para o estudo do terceiro setor e para temas como o desenvolvimento da filantropia e voluntariado contaram com o apoio financeiro maciço desta instituição. (FALCONER, 1999, p. 5).

No que se refere ao Banco Mundial, o envolvimento do Banco com as ONGs se intensificou

na década de 70 e a partir de então os projetos financiados para as referidas entidades têm

alcançado participações crescentes:

Entre 73 e 88, apenas 6% dos projetos envolviam colaboração de ONGs. Em 93, um terço e, em 94, a cifra alcançou os 50% [...] O Banco Mundial acredita que o trabalho em parceria com ONGs permite incorporar em seus projetos as vantagens características destas organizações: a inovação, devido à escala pequena dos projetos, a incorporação da multiplicidade de alternativas e opiniões diversas; a participação de populações locais e a consulta à população beneficiária; a melhor compreensão dos objetivos dos projetos pela sociedade; o alcance ampliado da ação, atingindo a quem mais precisa; e finalmente, a sustentabilidade, ou continuidade de projetos após a retirada do Banco. (MALENA4, 1995, apud FALCONER, 1999, p. 5).

2.1.2 Gestão no terceiro setor

Teodósio (2001b) destaca algumas das características positivas do terceiro setor: maior

proximidade do cidadão, maior agilidade e desburocratização, melhor utilização de verbas,

4 MALENA, Carmen. Working with NGOs: a practical guide to operational collaboration between the World Bank and nongovernmental organizations. Washington, D.C. Operations Policy Department, World Bank, 1995.

22

desenvolvimento mais profundo da cidadania, valorização de soluções da própria

comunidade, geração de emprego e renda, rompimento com o assistencialismo e possibilidade

de controle sobre o Estado. Segundo o autor, o grande desafio do terceiro setor é aperfeiçoar o

seu gerenciamento, adotando práticas que modernizem o setor, sem perder suas características

básicas: “conciliar eficiência com democracia, alcance de metas com cidadania e respeito ao

público beneficiário com respeito aos colaboradores do projeto social” (TEODÓSIO, 2001b,

p. 6).

Contribuindo com a temática, Falconer (1999) defende que as organizações do terceiro setor,

inicialmente reconhecidas como cronicamente deficitárias e subcapacitadas, têm diante de si a

possibilidade de romper com o ciclo de condições precárias ao buscar o bom gerenciamento,

que permitiria o alcance de resultados positivos, facilitando a captação de recursos financeiros

e de profissionais capacitados.

Nesse mesmo sentido, a Rede de Informações para o Terceiro Setor (RITS, 2008) relata

modificações que vêm sendo observadas: o setor tem alcançado lugar de destaque na mídia

nacional, passou a ser tema de políticas públicas, tem mobilizado mais recursos e gerado mais

oportunidades de trabalho. Toda essa expansão impõe ao setor novos desafios, como o

desenvolvimento da sua capacidade de gerenciamento, que tem ficado aquém das

expectativas.

A cultura do Terceiro Setor no Brasil é forte em voluntarismo e fraca no aspecto profissional. Nos centros religiosos, prevalece o espírito da caridade, como é próprio que o seja. Pouco se aproveita, contudo, da competência presente entre os membros do culto. [...] Resulta que o imenso esforço acumulado pelas boas intenções produz resultados muito aquém do que seria possível e desejável. Resulta, ainda, um acúmulo de frustrações. Cresce a expectativa em relação ao Terceiro Setor, multiplicam-se as oportunidades, mas a resposta não corresponde. (RITS, 2008)

Segundo Salvatore (2004), a deficiência de gestão do terceiro setor no Brasil deve-se ao

histórico do setor no país, focado em aspectos sociais, no atendimento das necessidades de

seu público-alvo, deixando de lado aspectos administrativos e de gestão, considerados

meramente como burocracia para atender às exigências do setor público, seu principal

financiador. Essa herança histórica justificaria, inclusive, a dependência que o terceiro setor

teria do Estado, sem o qual não se sustentaria, de acordo com o autor.

23

Teodósio e Resende (1999) apontam que vários autores defendem a necessidade de

profissionalização dos indivíduos que atuam no terceiro setor, principalmente dos gestores.

Para os autores, os gestores do terceiro setor são vistos como pessoas persistentes e

comprometidas com o objetivo da organização, cabendo a eles a busca de alternativas e

soluções para a sustentação da empreitada. No entanto, os objetivos propostos pelas

instituições do setor seriam mais facilmente atingidos se as pessoas que nelas desempenham

papéis gerenciais tivessem formação sólida e domínio de técnicas administrativas, fazendo

com que as práticas e políticas fossem mais sistematizadas e articuladas.

Desta forma, aspectos relacionados à gestão tornaram-se cruciais para o terceiro setor. Por um

lado, divulga-se a idéia de que o setor deve adotar mecanismos e instrumentos de gestão das

empresas privadas, apontando assim para uma postura que entende que tudo o que é bom para

a empresa privada é bom para as organizações do terceiro setor. Essa idéia – criticada por

Teodósio e Resende (1999) – admite que o primeiro e segundo setores seriam

desenvolvedores de técnicas gerenciais transferíveis para o terceiro setor através dos

profissionais por eles qualificados, ou seja, ex-executivos e consultores, e pela incorporação

de modelos gerenciais adotados pelos patrocinadores/mantenedores.

Por outro lado, autores como Salvatore (2004) chamam a atenção para o risco de não se

considerar que cada setor tem um papel na sociedade e desenvolve uma lógica própria, que

define as características de administração e gestão do setor. O Estado deve se pautar pela

coisa pública, tendo como objetivo o atendimento do interesse do cidadão. Assim, a lógica

que permeia o setor público deve ser baseada no princípio da legalidade, impessoalidade,

moralidade, publicidade, economicidade e eficiência. O segundo setor tem uma lógica voltada

para o interesse econômico, para a obtenção de lucro – baseado em cálculo e alcance de metas

técnicas – e para o aumento de poder social. Já o terceiro setor se baseia em princípios como

“cidadania, emancipação, autonomia, diretos da população em geral e dos excluídos em

especial” (SALVATORE, 2004, p. 28). Segundo o autor, a lógica de gestão do terceiro setor

deve ser de caráter sociológico, baseada na auto-realização, no entendimento, no julgamento

ético, na autenticidade, nos valores emancipatórios e na autonomia, permitindo a inclusão de

uma dimensão qualitativa, emocional e voluntária.

24

Confirmando essa idéia, Falconer (1999) questiona se a capacitação tradicional em gestão é

capaz de apresentar as soluções para os problemas do terceiro setor, e argumenta o seguinte:

Há consenso de que a formação de administradores profissionais para o terceiro setor deve ser modelada pelo perfil e demandas específicas destas organizações, e não meramente pela transposição de modelos e técnicas desenvolvidos no meio empresarial ou na administração pública (FALCONER, 1999, p. 3).

O autor ressalta ainda que as funções da Teoria Clássica da Administração, que se

caracterizam pelo “planejamento, organização, direção e controle” (TENÓRIO5, 1997, citado

por FALCONER, 1999, p. 16), são válidas para qualquer tipo de organização. Entretanto, há

que se considerar as especificidades do terceiro setor, que requerem de seu profissional

conhecimentos, habilidades, atitudes e valores específicos.

Conforme explicitado por O’Neill6 (1998), citado por Falconer (1999), existem oito distinções

fundamentais entre as organizações do terceiro setor e as organizações de outros setores, que

devem ser consideradas ao se estabelecer o tipo de qualificação profissional que o terceiro

setor necessita:

Propósito/Missão: Ganhar dinheiro, para as organizações sem fins lucrativos, é subsidiário ao propósito de prover algum bem ou serviço; enquanto para as empresas privadas, a provisão de produtos ou serviços tem por objetivo gerar dinheiro. Valores: Todas as organizações têm valores próprios, mas em nenhum setor os valores são tão centrais ao propósito quanto no terceiro setor. Aquisição de Recursos: Empresas normalmente obtêm recursos através da venda de produtos e serviços; órgãos governamentais obtêm a maior parcela de seus recursos através de impostos. Organizações do terceiro setor recebem dinheiro das mais variadas fontes: vendas de serviços, doações de indivíduos, grants de fundações, empresas e do governo, resultados de investimentos patrimoniais etc. A aquisição de recursos no terceiro setor é, portanto, uma tarefa altamente complexa e demandante de uma variedade de técnicas e conhecimento. Bottom Line (resultado): No terceiro setor não há a mesma clareza existente no mercado quanto ao que representa um bom resultado e quais são os melhores indicadores de eficiência e eficácia. Ambiente Legal: A legislação que incide sobre o terceiro setor difere significativamente das leis dos outros setores, particularmente no que diz respeito à aplicação dos recursos e à tributação.

5 TENÓRIO, Fernando G. (Org.). Gestão de ONGs: principais funções gerenciais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. 6 O’NEILL, Michael; FLETCHER, Kathleen (Eds.). Nonprofit management education: U.S. and world perspectives. Westport: Praeger, 1998.

25

Perfil do Trabalhador: No terceiro setor, uma parcela do trabalho é realizada por voluntários não remunerados. O tipo de atividade realizada, o nível de qualificação dos trabalhadores e a forma de remuneração diferem no terceiro setor da realidade do Mercado e do Estado. Governança: A estrutura de poder e tomada de decisão no terceiro setor atribui um papel importante ao conselho da entidade, formado por voluntários que não devem se beneficiar dos resultados da organização. A relação entre o conselho e o corpo profissional tende a ser mais próxima do que ocorre no Estado e no Mercado. Complexidade Organizacional: O’Neill argumenta que uma nonprofit é tipicamente mais complexa do que uma organização empresarial, no tipo e variedade de serviços prestados, na relação com múltiplos públicos, na dependência de fontes variadas de recursos e outras dimensões.

Teodósio (2001a), por sua vez, também identifica algumas peculiaridades na estrutura e

gestão das organizações do terceiro setor. Tais organizações possuem estruturas mais enxutas

devido à carência de recursos financeiros, o que também potencializa a utilização de mão-de-

obra voluntária que se diferencia por ser altamente motivada pelos objetivos sociais e

engajada no modelo de gestão participativo. A maior proximidade com o beneficiário facilita

a execução de seus objetivos, pois muitas organizações do terceiro setor nasceram da própria

associação dos beneficiários, visando sanar os problemas sociais. Outra particularidade dessas

organizações é a sólida imagem institucional junto à comunidade. Para superar suas

limitações operacionais, as organizações do terceiro setor formam parcerias com outras

instituições que atuam no mesmo setor (ação em rede), trocando informações, recursos e

metodologias. Ao mesmo tempo, a atuação em rede não elimina a alta competitividade entre

elas por busca de recursos financeiros, parcerias e reconhecimento social.

Teodósio (2001a) defende que, ao adotarem técnicas gerenciais oriundas das empresas

privadas, as organizações do terceiro setor devem estar atentas para não perderem o foco nas

transformações sociais mais amplas, perdendo-se na execução de objetivos de curto prazo

como alternativa para seu fortalecimento. Alguns conceitos e pressupostos da gestão privada

podem apresentar distorções quando aplicados na esfera social, como os termos “cliente”,

“usuário” e conceitos como “critérios de rentabilidade operacional”.

Na verdade, no terceiro setor não há cliente ou usuário e sim “cidadão-beneficiário”, o que

incorpora a idéia de cidadania. Por sua vez, critérios que levam em consideração a

metodologia utilizada na intervenção social, tomando como referência o bem público e a

cidadania, ocupam o lugar da rentabilidade operacional (alta utilização/elevado número de

26

atendimentos). Dessa forma, cabe ao terceiro setor conciliar os modelos e ferramentas

gerenciais das organizações privadas com as perspectivas sociais, políticas e legais. A

habilidade de articulação e de negociação desse setor é um seu atributo mais importante do

que a agressividade e a competitividade no alcance de metas.

Os conflitos entre lógicas de gestão próprias aos diferentes setores surgem sobretudo em

parcerias com o Estado ou com empresas, aos quais as organizações do terceiro setor

recorrem a fim de garantir sua sustentabilidade financeira. A dificuldade se apresenta porque

os parceiros de organizações do terceiro setor cobram os resultados segundo suas

perspectivas. Assim, as empresas privadas vêem os projetos sociais como produtos, e os

órgãos da esfera governamental lidam com números, estatísticas, o que é próprio das políticas

públicas. Isso faz com que a mensuração dos resultados no terceiro setor acabe se dando

segundo a visão do parceiro (RITS, 2008), o que pode comprometer e mesmo descaracterizar

o trabalho realizado originalmente por aquela organização de fins sociais.

O exposto acima cria um descompasso na atividade das organizações não lucrativas. Muitas

vezes financiadas por empresas privadas, ou mesmo pelo governo, elas devem reportar o

resultado de suas atividades de acordo com uma lógica econômico-financeira, ao passo que

sua atividade cotidiana é voltada para a promoção social. O resultado é a constatação de uma

grande complexidade na gestão das organizações do terceiro setor, pois a desconsideração dos

parâmetros de avaliação pode comprometer os recursos obtidos para sustentar os projetos

desenvolvidos, ao mesmo tempo em que a desconsideração dos objetivos de promoção social

pode causar atritos entre o corpo gerencial e o corpo voluntário (TEODÓSIO, 2001a).

No entanto, Veltz e Zarifian7 (1993, apud TEODÓSIO; RESENDE, 1999) ressaltam que a

assimilação de tecnologias de gestão não se dá de maneira imutável ou homogênea, pois ela é

construída na interação entre os diversos atores organizacionais, de onde surgem diferentes

percepções, posicionamentos e ações que embasam novos modelos de gestão, que estão

sempre inacabados. Por outro lado, Salvatore (2004, p. 33) afirma que “o terceiro setor é

heterogêneo e complexo”. Por isso ele acredita que não há possibilidade de se definir um

sistema único de gestão apropriado para o setor como um todo, devido à diversidade das

7 VELTZ, Pierre; ZARIFIAN, Philippe. Vers de nouveaux modèles d’organization?, Sociologie du travail, v. 35, n.1, 1993.

27

organizações não governamentais em sua “composição, porte, organização, finalidade e forma

de funcionamento”.

2.1.3 Problemas e desafios enfrentados por organizações do terceiro setor

Os problemas enfrentados pelas organizações do terceiro setor variam de acordo com a

perspectiva de análise. De acordo com Falconer (1999), existem quatro perspectivas que

devem ser consideradas ao se analisar as dificuldades do terceiro setor: stakeholder

accountability, sustentabilidade, qualidade de serviços e capacidade de articulação.

No que se refere à stakeholder accountability, Falconer ressalta a necessidade de

transparência e do cumprimento de prestação de contas aos diversos públicos interessados na

organização do terceiro setor, não apenas através da publicação de relatórios, mas da postura

responsável mantida no cotidiano das organizações, tanto em relação ao público interno

quanto em relação ao público externo. Demonstrar posições claras e resultados concretos faz

com que as organizações se legitimem perante a sociedade, eximindo-se dos escândalos que já

destruíram inúmeras organizações do terceiro setor. “Mais que um valor, a accountability

tende a estabelecer-se com estratégia competitiva” (FALCONER, 1999, p. 18).

Quanto à sustentabilidade, Falconer (1999) esclarece que se trata da capacidade de gerar

recursos financeiros, materiais e humanos suficientes e de forma contínua, bem como geri-los

de maneira eficiente, a fim de garantir o alcance dos objetivos pretendidos e a perpetuidade da

organização. Em conformidade com essa afirmativa, Teodósio (2001a) adverte que uma das

maiores dificuldades encontradas pelas organizações do terceiro setor é a obtenção de

recursos. Aquelas que mantêm maior credibilidade junto à sociedade conseguem mais

autonomia na execução de seus projetos sociais, e geralmente seus recursos são obtidos

através de doações e mesmo através da comercialização de produtos ligados à sua atividade.

Entretanto, Teodósio (2001a) alerta para o fato de que, no caso da comercialização de

produtos, torna-se necessário estar atento para que não se despenda maior energia na

sobrevivência organizacional do que no atendimento das demandas sociais, o que é um

fenômeno muito freqüente nas organizações de fins sociais.

28

A gestão da mão-de-obra voluntária, dificuldade que se relaciona à sustentabilidade do

terceiro setor, particularmente à gestão dos recursos humanos envolvidos em organizações

desse tipo, é ressaltada por Teodósio (2001a). Como solução para os problemas financeiros

que as organizações do terceiro setor enfrentam, parte da mão-de-obra remunerada é

substituída pelo trabalho voluntário. Entretanto, essa é uma solução que apresenta severas

implicações, pois o gerenciamento dos voluntários é muito mais complexo do que o

gerenciamento dos empregados. Além de a organização ter que estruturar suas atividades de

acordo com a disponibilidade dos voluntários, há problemas como o absenteísmo, a falta de

pontualidade, a qualidade do desempenho e a qualificação para o trabalho. Por temerem que o

voluntário abandone suas atividades por não aceitar uma postura de gerenciamento, as

organizações relutam em avaliá-los individualmente e em adotar estratégias de controle.

A presença de trabalhadores voluntários, entretanto, não exclui o emprego de mão-de-obra

remunerada, seja ela parcial, temporária ou “full time”. Alguns autores, conforme aponta

Teodósio (2001a), defendem a idéia de utilizar voluntários apenas em tarefas de menor

exigência quanto à formação profissional, ou em atividades que não comprometam o

funcionamento cotidiano das organizações.

Segundo o ponto de vista da qualidade dos serviços prestados, Falconer (1999) ressalta que

um dos problemas que se coloca ao terceiro setor é que cada vez mais esse setor será chamado

para atender a demandas de caráter público. Deve, portanto, deixar de lado a visão de caridade

e filantropia voltadas a uma parcela reduzida da população, e também abandonar o sentimento

de impotência diante do volume dos déficits sociais, para adotar uma postura de prestação de

serviços a consumidores ou cidadãos conscientes de seus direitos. O aprimoramento da

qualidade deve ser um objetivo contínuo de tais organizações.

Finalmente, ao abordar a capacidade de articulação como um problema enfrentado pelo

terceiro setor, Falconer (1999) ressalta que as organizações desse setor não poderão atuar de

forma isolada, como anteriormente, se pretendem tratar de forma séria os problemas sociais: é

necessário articulação em rede. Falconer (1999), citando Lester Salamon8 (1998), afirma que

o desafio fundamental do terceiro setor não é simplesmente o aperfeiçoamento da gestão, mas

8 SALAMON, Lester M. Nonprofit management education: a field whose time has passed?. In: O’NEIL, Michael; FLETCHER, Kathleen (Eds.), Nonprofit management education: U.S. and world perspectives. Westport: Praeger, 1998.

29

a capacidade de encontrar soluções para os problemas públicos através da interação

colaborativa entre os setores, ou seja, através da intersetorialidade, que tende a ser complexa e

cada vez mais comum no mundo todo.

Através dessa revisão da literatura, é possível resumir as características gerais das

organizações do terceiro setor, assim como as particularidades encontradas no funcionamento

dessas organizações, apresentadas respectivamente no QUADRO 1 e no QUADRO 2 a seguir.

Vale ressaltar que nesses quadros foram descritas as características do terceiro setor que mais

se adéquam ao problema de pesquisa e que serão exploradas nesse trabalho; não sendo,

portanto, os quadros conclusivos e abrangentes no que se refere a todas as organizações

pertencentes ao terceiro setor.

O objetivo desta pesquisa foi justamente verificar se tanto as características gerais como as de

funcionamento persistem em organizações do terceiro setor mantidas primordialmente por

casas espíritas, assim como verificar se essas organizações apresentam traços particulares em

sua criação e funcionamento, traços que possam ser relacionados à doutrina espírita ou à

organização institucional do espiritismo kardecista.

30

QUADRO 1 Síntese das características gerais das organizações do terceiro setor

Fonte: Elaborado pela autora

31

QUADRO 2 Síntese das particularidades de funcionamento das organizações do terceiro setor

Fonte: Elaborado pela autora

Como já mencionado, o presente trabalho se desenvolve em organizações ligadas à doutrina

espírita, sendo portanto, necessário discorrer a cerca da referida doutrina com o intuito de

esclarecer os princípios que norteiam tais organizações de fins sociais.

2.2 Doutrina Espírita

A história da doutrina espírita é reportada por Wantuil (1994) como oriunda de numerosos

percussores que “evidenciaram a comunicação dos supostos mortos com os vivos da Terra”

(WANTUIL, 1994, p. 5), através de visões, profecias e outras maneiras de intercâmbio com o

mundo dos espíritos.

32

Entretanto, conforme esclarecem Wantuil e Thiesen (1990), foi a partir de 1848 que o

espiritismo foi divulgado pela imprensa dos Estados Unidos, quando, na aldeia de Hydesville,

(próxima a Nova York, nos Estados Unidos) começaram a ser ouvidas pancadas à noite, nas

paredes de uma casa onde residia a família de John D. Fox. O Sr. Fox vistoriou toda a casa,

interna e externamente, e nada encontrou. Sua filha mais nova começou a imitar as batidas,

batendo os dedos sobre um móvel, e foram ouvidas pancadas na mesma quantidade das que

haviam sido produzidas pela menina. Definido um critério de comunicação através do número

de pancadas, várias perguntas foram formuladas, sendo respondidas corretamente pelo

“desconhecido”.

Posteriormente, o próprio “desconhecido” indicou outra maneira de comunicação: as pessoas

deveriam se colocar ao redor de uma mesa em cima da qual poriam as mãos; a mesa daria

uma pancada toda vez que fosse dita uma letra do alfabeto que servisse para que o

“desconhecido” formasse a palavra desejada. Esse processo deu origem ao fenômeno

conhecido como “mesas girantes”. Essas manifestações teriam se espalhado em seguida por

diversas partes do mundo (WANTUTIL, 1994).

As insólitas manifestações de Hydesville (Estado de New York), misteriosamente surgidas na residência das irmãs Fox, em fins da metade do século XIX, rapidamente foram tomando terreno e em pouco tempo todo o Velho Continente estava a par do rappings, das mesas girantes e dançantes e de outros fenômenos inabituais. O grande ruído da América comunicou-se à Alemanha, à França, à Inglaterra, à Espanha, à Itália, à Turquia e a outros países, invadindo todas as classes sociais, da choupana ao palácio. Verdadeira época de loucura – comentavam os jornais da época. Revolução inacreditável nas leis físicas. Os objetos pareciam ter adquirido movimento autônomo, nos pontos mais diferentes do mundo. (WANTUIL; THIESEN, 1990, p. 49)

Em 1853, na França, os fenômenos das “mesas girantes” começaram a ser observados e

analisados, o que deu origem ao que se chamou doutrina espírita, espiritismo ou kardecismo.

Segundo relatos da Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP, 2006), na época

testemunhavam-se, em várias partes do mundo, fenômenos conhecidos como “mesas

girantes”, em que mesas se movimentavam em todos os sentidos, giravam e alcançavam o

teto. O público fazia perguntas e as mesas respondiam com batidas, o que levaria à suposição

da existência de uma inteligência por trás daqueles fenômenos, e à hipótese de atuação do

mundo espiritual.

33

A história da doutrina espírita apresentada nos seus textos oficiais indica que Hippolyte Léon

Denizard Rivail, cientista e filósofo da época (mais tarde conhecido como Allan Kardec),

interessou-se pelo fenômeno e começou a investigá-lo utilizando uma metodologia precisa.

Rivail, nascido em 1804, em Lyon, na França, faleceu em 1869. Para diferenciar seus

trabalhos como educador dos trabalhos do espiritismo, Hyppolyte Léon adotou o pseudônimo

de Allan Kardec (SAUSSE, 1980).

Desconfortável com a futilidade de perguntas que eram feitas aos espíritos, Kardec elaborou

uma série de perguntas a respeito de filosofia geral, psicologia e natureza. As perguntas eram

encaminhadas para as reuniões onde havia manifestação dos fenômenos e eram respondidas

pela suposta inteligência que produzia os fenômenos, ou seja, pelos chamados espíritos. O

método desenvolvido por Kardec para comunicação com o mundo espiritual consistiu em

fazer as mesmas perguntas para pessoas diferentes com objetivo de confirmar a informação, já

que Kardec não considerava que os espíritos faziam revelações, pois para ele os espíritos eram

fontes de informação; outro objetivo era eliminar a interferência da pessoa que produzia os

fenômenos nas respostas fornecidas (SAMPAIO, 2007).

Ao receber as respostas, Kardec comparava-as, percebendo semelhanças entre elas e

descartando as respostas contraditórias. Assim, as perguntas e respostas foram submetidas ao

método empiricista, empregado por Kardec a fim de somente aceitar e divulgar o que tivesse

sido submetido a testes de lógica racional, ou seja, que não se justificasse somente pela fé ou

pela intervenção do sobrenatural. Por isso a lógica racional é considerada pelos seguidores da

doutrina como a grande legitimadora do espiritismo. Com relação ao uso da razão, Kardec

(1997b, p. 592) esclarece:

Falsíssima idéia formaria do Espiritismo quem julgasse que a sua força lhe vem da prática das manifestações materiais e que, portanto, obstando-se a tais manifestações, se lhe terá minado a base. Sua força está na sua filosofia, no apelo que dirige à razão, ao bom-senso. Na antiguidade, era objeto de estudos misteriosos, que cuidadosamente se ocultavam do vulgo. Hoje, para ninguém tem segredos. Fala uma linguagem clara, sem ambigüidades. Nada há nele de místico, nada de alegorias suscetíveis de falsas interpretações. Quer ser por todos compreendido, porque chegados são os tempos de fazer-se que os homens conheçam a verdade. Longe de se opor à difusão da luz, deseja-a para todo o mundo. Não reclama crença cega; quer que o homem saiba por que crê. Apoiando-se na razão, será sempre mais forte do que os que se apóiam no nada.

34

As perguntas e respostas de Kardec foram objeto da publicação, em 1857, do primeiro dos

cinco livros da codificação da doutrina: O Livro dos Espíritos (FEESP, 2006). A esse livro

seguiram-se: O Livro dos Médiuns, publicado em 1861; O Evangelho Segundo o

Espiritismo, publicado em 1864; O Céu e o Inferno, publicado em 1865; e A Gênese,

publicado em 1868 (SOUTO MAIOR, 2003).

Embora Kardec tenha sido o codificador da doutrina espírita, não foi seu criador, seu

idealizador. Os fenômenos espíritas remontam à antiguidade, sempre ocorreram na história da

civilização. Sobre o assunto, o próprio Kardec escreve:

O Espiritismo não é obra de um homem. Ninguém pode inculcar-se como seu criador, pois tão antigo é ele quanto a criação. Encontramo-lo por toda parte, em todas as religiões [...] Que faz a moderna ciência espírita? Reúne em corpo de doutrina o que estava esparso; explica, com os termos próprios, o que só era dito em linguagem alegórica; poda o que a superstição e a ignorância engendraram, para só deixar o que é real e positivo. Esse o seu papel. O de fundadora não lhe pertence. Mostra o que existe, coordena, porém não cria, por isso que suas bases são de todos os tempos e de todos os lugares (KARDEC, 1997b, p. 593).

Popularmente existe uma confusão entre doutrina espírita (espiritismo ou kardecismo),

espiritualismo, candomblé e umbanda, mesmo porque muitas casas de culto trabalham de

forma sincrética com essas seitas. Portanto, antes de se apresentarem os fundamentos da

doutrina espírita, é essencial esclarecer o que exatamente é a doutrina que esta pesquisa

entende como espírita.

Kardec (1997a) afirma que espiritualismo é toda doutrina filosófica que tem como princípio

básico a existência de algo mais além da matéria, do corpo físico; portanto, é oposta ao

materialismo, que defende que a alma é atrelada ao princípio da vida material orgânica, não

tendo existência própria e se aniquilando com a vida. Dessa forma, tanto o candomblé quanto

a umbanda, o espiritismo e todas as demais religiões são espiritualistas. No entanto, as origens

e o desenvolvimento histórico da doutrina espírita ou espiritismo, assim como seus pontos de

vista filosóficos, diferenciam-no do candomblé e da umbanda.

O candomblé é originário da África e chegou ao Brasil juntamente com os negros no período

da escravidão, instalando-se na Bahia do século XIX (PRANDI, 2008). Em seus cultos, os

negros utilizavam a camuflagem de altares com imagens de santos católicos, aos quais

correspondiam figuras sagradas da cultura africana. Daí a inserção de imagens e santos do

35

catolicismo no candomblé, forjando um sincretismo. Já a umbanda surgiu no século XX,

síntese do candomblé (que veio da Bahia para o Rio de Janeiro na passagem do século XIX

para o século XX) e do kardecismo (chegado da França no final do século XX).

A principal diferença do ponto de vista filosófico reside no fato de que a umbanda e o

candomblé são considerados “religiões mágicas”, pois o conhecimento e o uso de forças

naturais e sobrenaturais se fazem presentes em ambas as religiões para se interferir no mundo.

São assim identificados ritos e segredos iniciáticos nessas religiões. O espiritismo, por outro

lado, se reconhece enquanto filosofia e acredita estar embasado em princípios científicos,

segundo os textos da doutrina, e conseqüentemente procura buscar uma “explicação lógica”

para os fenômenos (PRANDI, 2008).

Com relação à distinção entre espiritismo e práticas das religiões afro-descentes, como o

candomblé e a umbanda, a Federação Espírita Brasileira (FEB, 2008a)9 esclarece a respeito da

prática espírita:

• Toda a prática espírita é gratuita, como orienta o princípio moral do Evangelho: “Dai de graça o que de graça recebestes.” • A prática espírita é realizada com simplicidade, sem nenhum culto exterior, dentro do princípio cristão de que Deus deve ser adorado em espírito e verdade. • O Espiritismo não tem sacerdotes e não adota e nem usa em suas reuniões e em suas práticas: altares, imagens, andores, velas, procissões, sacramentos, concessões de indulgência, paramentos, bebidas alcoólicas ou alucinógenas, incenso, fumo, talismãs, amuletos, horóscopos, cartomancia, pirâmides, cristais ou quaisquer outros objetos, rituais ou formas de culto exterior. • O Espiritismo não impõe os seus princípios. Convida os interessados em conhecê-lo a submeterem os seus ensinos ao crivo da razão, antes de aceitá-los. • A mediunidade, que permite a comunicação dos Espíritos com os homens, é uma faculdade que muitas pessoas trazem consigo ao nascer, independentemente da religião ou da diretriz doutrinária de vida que adotem. • Prática mediúnica espírita só é aquela que é exercida com base nos princípios da Doutrina Espírita e dentro da moral cristã. • O Espiritismo respeita todas as religiões e doutrinas, valoriza todos os esforços para a prática do bem e trabalha pela confraternização e pela paz entre todos os povos e entre todos os homens, independentemente de sua raça, cor, nacionalidade, crença, nível cultural ou social. Reconhece, ainda, que “o verdadeiro homem de bem é o que cumpre a lei de justiça, de amor e de caridade, na sua maior pureza.” (FEB, 2008a)

Notícias sobre as mesas girantes chegadas ao Brasil datam de 1853 e foram publicadas no

Jornal O Cearense (CRE/BARV, 2001). A nova doutrina encontrou campo fértil no Brasil,

pois a elite intelectualizada vivia sob forte influência européia, região onde a doutrina espírita

9 http://www.febnet.org.br/apresentacao/content,0,0,3167,0,0.html

36

tomava corpo (SILVA, 2007). Além disso, desde 1840 havia no país dois homeopatas, neo-

espiritualistas, Bento Mure e João Vicente Martins, que, antes mesmo da chegada da doutrina

dos espíritos compilada por Kardec, já se comunicavam com os espíritos (ABREU, 1987).

Sete anos mais tarde, em 1860, foram publicados os dois primeiros livros espíritas em

português: Os tempos são chegados, do professor Casimir Lieutaud; e O espiritismo em sua

expressão mais simples, tradução do professor Alexandre Canu (CRE/BARV, 2001).

A primeira instituição jurídica do espiritismo no Brasil, a Sociedade Grupo Confúcio, foi

fundada em 1873, com estatutos impressos e divulgados na imprensa nacional e estrangeira. O

Reformador, revista espírita existente até os dias atuais, foi fundada em 1883, pelo jornalista

Augusto Elias da Silva, e “propunha-se a renovar os costumes. Tinha uma secção “consagrada

a todas as corporações científicas, filosóficas e literárias”, e outra para o Espiritismo”

(ABREU, 1987).

Em 1884 foi fundada, no Rio de Janeiro, a Federação Espírita Brasileira – FEB, que

encampou a revista O Reformador e a mantém ainda hoje. A missão da FEB é:

Promover o estudo, a prática e a difusão do Espiritismo, com base nas obras da Codificação de Allan Kardec e no Evangelho de Jesus; a prática da caridade espiritual, moral e material, dentro dos princípios espíritas; e a união solidária e a unificação do Movimento Espírita, colocando o Espiritismo ao alcance e a serviço de todos (FEB, 2008b)10.

Um marco importante para o movimento espírita no Brasil, considerado um escândalo para a

época, ocorreu em 1886, quando o deputado e médico católico Dr. Adolfo Bezerra de

Menezes assumiu a tribuna na sala de honra da Guarda Velha, no Rio de Janeiro, diante de um

auditório com 2.000 pessoas, e divulgou sua conversão ao espiritismo.

Nesta ocasião, conforme explicitado em entrevista pelo Presidente da AME, havia uma

divergência quanto às práticas e ao futuro da doutrina espírita no Brasil. Diversos grupos se

formaram, como “os místicos” (que consideravam o espiritismo como religião), “os

científicos” (que defendiam o aspecto filosófico e científico da doutrina) e os “espíritas puros”

(que valorizavam apenas O Livro dos Espíritos). Como presidente da FEB, em 1890,

Bezerra de Menezes tentou unificar o movimento espírita, sem sucesso (ABREU, 1987).

10 http://www.febnet.org.br/apresentacao/content,0,0,265,0,0.html

37

Além da FEB, havia outro órgão destinado à unificação do movimento espírita no Brasil: a

União Espírita do Brasil, que mais tarde se tornou o órgão federativo estadual do Rio de

Janeiro.

O novo Código Penal Brasileiro, aprovado no mesmo ano, incluía a prática do espiritismo

como transgressão à lei, fato que fez com que as duas facções da doutrina se unissem para

defenderem a nova doutrina.

Paralelamente, como tentativa de unificar o movimento espírita, o Dr. Polidoro Olavo de São

Thiago teve a iniciativa de criar a assistência aos necessitados em moldes espíritas, o que foi

amplamente aceito tanto pelos “místicos” quanto pelos “científicos” e “espíritas puros”,

fazendo com que finalmente houvesse um ponto em comum entre as duas facções, o que

também favoreceu a unificação do movimento.

Bezerra de Menezes, que faleceu em 1900, deixou a FEB consolidada, com certa influência

em todo o território nacional. Um ano mais tarde, o estatuto da FEB foi revisto para favorecer

a adesão das instituições espíritas, fortalecendo o movimento de unificação. Multiplicaram-se

então os atos de adesão, que não comprometiam, no entanto, a autonomia administrativa e

patrimonial das entidades que haviam aderido à FEB (CRE/BARV, 2001).

As Bases da Organização Espírita, documento que passou a orientar o movimento no

Brasil, foram aprovadas em 1904, durante a comemoração de 100 anos de Allan Kardec, em

evento organizado pela FEB que teve a participação de 11 estados brasileiros. Previu-se, nesse

documento, a criação das federações estaduais, dentro da intenção de unificação do

movimento espírita. Mas foi em 1949 o marco decisivo na história do espiritismo brasileiro: a

instituição do Pacto Áureo. O referido acordo, celebrado entre a FEB e os representantes das

federações de diversos Estados brasileiros, visando a unificar o movimento a nível nacional,

previa a democratização da FEB, com a efetiva participação e delegação de poder de voz e

voto para todos os representantes estaduais.

Um dos maiores responsáveis pelo fortalecimento e expansão do espiritismo no Brasil foi

Francisco Cândido Xavier, popularmente conhecido como Chico Xavier, que é autor de 412

38

livros sobre a doutrina espírita, livros que venderam mais de 25 milhões de exemplares

(SOUTO MAIOR, 2003).

Toda a renda dos livros era cedida a editoras espíritas e os direitos autorais doados a obras

assistenciais, pois Chico Xavier alegava que os livros não eram dele, eram de seus “amigos

espirituais”, e ele apenas os transcrevia. O sustento de Chico Xavier sempre foi garantido

pelo próprio trabalho: quando criança vendendo verduras, e posteriormente atuando como

tecelão, faxineiro, vendedor de um armazém e finalmente escriturário do Ministério da

Fazenda. Faleceu em 2002, aos 92 anos de idade, dos quais 74 foram dedicados aos trabalhos

da mediunidade, que é o intercâmbio entre os vivos e os mortos (LEWGOY, 2001).

Ao levantar dados sobre o movimento espírita brasileiro, Sampaio (2004) constatou que não

havia informações sobre as atividades das casas espíritas ou sobre as organizações de fins

sociais a elas ligadas. Na ocasião, houve a iniciativa, por parte dos órgãos representantes do

movimento espírita, de coletar os dados junto às casas espíritas, mas houve pouca adesão à

pesquisa realizada. Segundo Sampaio (2004), os representantes da União Espírita Mineira

entendiam o seguinte:

Além da pouca preocupação em se levantarem dados institucionais, há alguma desconfiança com essa federativa (a União), alguns centros fantasiam que os dados possam ser utilizados para algum tipo de controle (informação fornecida pelo representante dessa organização). (SAMPAIO, 2004, p. 162-163).

O autor recorreu então a estudos acadêmicos para obter dados sobre as casas espíritas e

encontrou apenas informações sobre os Estados do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul

(CAVALCANTI11, 1983; GIUMBELLI12, 1998; LEWGOY13, 1998, apud SAMPAIO, 2004).

É a partir desses estudos que Sampaio elabora o QUADRO 3, que sintetiza aspectos do ethos

espírita.

11 CAVACANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. 12 GIUMBELLI, Emerson. Caridade, assistência social, política e cidadania: práticas e reflexões no espiritismo. In: LANDIM, Leilah (Org.) Ações em sociedade: militância, caridade, assistência, etc. Rio de Janeiro: NAU, 1998. 13 LEWGOY, Bernardo. Etnografia da leitura e da fala num grupo de estudos espírita. In: JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA, VIII, 1998, São Paulo, Anais... São Paulo, 1998.

39

QUADRO 3 Ethos espírita brasileiro no estudo de alguns antropólogos

Fonte: Sampaio, 2004, p. 173

Devido à escassez de informações sobre o movimento espírita no Brasil, a FEB e a AME da

cidade onde se localizam as casas espíritas foram contatadas durante esta pesquisa. O

representante da AME foi entrevistado, a fim de se conhecer melhor a estrutura do

Movimento Espírita Brasileiro, que está organizado como mostra a FIG. 1.

FIGURA 1 - Organização do movimento espírita no Brasil

Fonte: Presidente da AME

40

Segundo informações fornecidas pelo Presidente da AME, a FEB é a organização federativa

nacional brasileira. É gerida pelo Conselho Federativo Nacional - CFN, composto por

representantes das Sociedades Estaduais. No caso de Minas Gerais, a Sociedade Estadual se

intitula União Espírita Mineira. As Sociedades Estaduais são geridas pelos Conselhos

Estaduais (no caso de Minas Gerais, o Conselho Federativo Espírita de Minas Gerais -

COFEMG), que são compostos pelos presidentes de Alianças Municipais Espíritas – AMEs.

As AMEs, por sua vez, são geridas pelos Conselhos Espíritas Municipais – CEMs, compostos

por representantes das casas espíritas. Há ainda o CRE, Conselho Regional Espírita, que é a

reunião de um conjunto de AMEs de determinada região e tem por objetivo auxiliar as AMEs

na execução das atividades propostas pelo movimento espírita naquela região.

No entanto, vale salientar que embora o movimento espírita se organize de forma centralizada

em teoria, o que sugere certa uniformidade, na prática não há regras ou imposições que

normatizem o funcionamento das organizações federativas ou mesmo das casas espíritas.

Conforme esclareceu o Presidente da AME, a adesão de uma casa espírita à AME

correspondente não é obrigatória. O interesse em aderir à AME se deve à troca de

informações e à participação dos representantes das casas em encontros espíritas para melhor

capacitação. Para se associar, a casa espírita deve simplesmente encaminhar uma carta à AME

solicitando sua adesão. Dessa forma, o Presidente da Casa passa a ser votante no CEM.

Não existe igualmente nenhuma forma de controle sobre as atividades desenvolvidas pelas

casas espíritas que aderem à AME ou sobre as organizações filantrópicas ou projetos sociais

por elas mantidos. O controle sobre o modo de funcionamento das casas espíritas ou sobre a

divulgação da doutrina se dá unicamente a partir de denúncias. Assim, havendo alguma

denúncia de descumprimento dos preceitos da doutrina kardecista, a AME faz uma

averiguação e, constatado o descumprimento, solicita o desligamento da casa espírita daquela

AME.

Como mencionado, não há regras pré-estabelecidas para o funcionamento das casas espíritas

ou das organizações de fins sociais a elas ligadas. Isto porque as bases da doutrina espírita são

consideradas como descritas nos cinco livros básicos da codificação espírita, já citados

anteriormente. Portanto, esses textos são o guia das casas espíritas, que organizam suas

atividades a partir dessas bases filosóficas. A AME simplesmente as orienta quanto à

41

legislação vigente no Brasil, no que tange às casas espíritas ou às instituições por elas

mantidas.

No entanto, a FEB (2008c), através do documento A adequação do Centro Espírita para o

melhor atendimento de suas finalidades, elaborado pelo Conselho Federativo Nacional em

reuniões ocorridas no período de 1 a 3 de outubro de 1977, faz algumas recomendações às

casas espíritas. No referido documento, o CFN:

RESOLVE, por unanimidade, RECOMENDAR que os Centros Espíritas observem no seu funcionamento as seguintes diretrizes: [...] II) ATIVIDADES BÁSICAS: [...] h) - promover o serviço de assistência social espírita, assegurando suas características beneficentes, preventivas e promocionais, conjugando a ajuda material e espiritual, fazendo com que este serviço se desenvolva concomitantemente com o atendimento às necessidades de evangelização; [...] III) ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS: a) - Manter organização própria, segundo as normas legais vigentes, compatível com a maior ou menor complexidade de cada Centro e estruturada de modo a atender às finalidades do Movimento Espírita; b) - estabelecer metas para o Centro Espírita em suas diversas áreas de atividade, planejando periodicamente suas tarefas e avaliando seus resultados; c) - facilitar a efetiva participação dos freqüentadores nas atividades do Centro Espírita; d) - estimular o processo de trabalho em equipe; e) - dotar o Centro Espírita de locais e ambientes adequados, de modo a atender, em primeiro lugar, às atividades prioritárias; f) - zelar para que as atividades exercidas em função do Movimento Espírita sejam gratuitas, vedada qualquer espécie de remuneração; g) - não envolver o Centro Espírita em quaisquer atividades incompatíveis com a Doutrina Espírita; h) - aceitar somente os auxílios, doações, contribuições e subvenções, bem como firmar convênios, de qualquer natureza e procedência, desvinculados de quaisquer compromissos que desfigurem o caráter espírita da Instituição ou que impeçam o normal desenvolvimento de suas atividades, em prejuízo das finalidades doutrinárias, preservando, assim, a total independência administrativa da Entidade. [...] V) ATIVIDADES DE UNIFICAÇÃO: a) - Participar efetivamente das atividades do movimento de unificação; b) - conjugar esforços e somar experiências com as demais Instituições Espíritas de uma mesma localidade ou região de modo a evitar paralelismo ou duplicidade de realizações.

Em âmbito mundial existe o Conselho Espírita Internacional14 (CEI), que é o organismo

resultante da união das associações representativas dos Movimentos Espíritas Nacionais. Esse

Conselho tem como objetivo promover a união solidária e fraterna das instituições espíritas de

todos os países e a unificação do movimento espírita mundial; promover o estudo e a difusão

14 <http://www.spiritist.org/portugues/cei.html>

42

da doutrina espírita em seus três aspectos básicos: científico, filosófico e religioso; e

promover a prática da caridade espiritual, moral e material, à luz da doutrina espírita. O

organograma do CEI está apresentado na FIG. 2.

FIGURA 2 – Organograma do Conselho Espírita Internacional Fonte: CEI – Conselho Espírita Internacional

É importante ressaltar que doutrina espírita e movimento espírita são conceitos distintos. A

doutrina espírita consiste na codificação feita por Kardec. Movimento espírita é a estrutura

através da qual se pretende difundir a doutrina espírita. Ou seja, o movimento espírita consiste

na interação entre os estudiosos/praticantes da doutrina espírita, que estão organizados nas

AMEs, CREs, Federações Estaduais e Federais e no Conselho Internacional.

Sendo uma doutrina cristã, todos os princípios do espiritismo têm fundamento em Deus e em

Jesus Cristo; Deus é concebido como a “inteligência suprema, causa primária de todas as

coisas” (KARDEC, 1997b, p. 51) e Jesus como o guia e modelo mais perfeito para o homem e

o espírito de maior evolução que Deus já ofereceu aos homens. A doutrina espírita segue o

Novo Testamento, onde são narrados os ensinamentos de Jesus Cristo e as leis morais

necessárias à evolução do espírito, segundo o espiritismo (KARDEC, 1997b).

A doutrina espírita baseia-se no conceito de que o espírito é o ser inteligente da criação, que

sobrevive à morte do corpo físico, e corresponde ao que os católicos chamam de alma. Para o

espiritismo, todos os espíritos são imortais e são todos criados simples e ignorantes por Deus,

43

devendo buscar a própria evolução. Para que o espírito evolua, ele deve passar por várias

experiências, a fim de provar o que já aprendeu ou expiar o mal que tenha feito a outrem,

cumprindo dessa maneira a Lei de Justiça, que será comentada mais à frente. Essa é a idéia de

reencarnação, que consiste em admitir para o espírito muitas existências sucessivas, já que

numa só vida seria impossível vivenciar todas as experiências necessárias para seu

aprimoramento (KARDEC, 1997b).

Segundo KARDEC (1997b), no espiritismo o progresso intelectual e o progresso moral nem

sempre caminham juntos. Na maioria das vezes, primeiro acontece o desenvolvimento da

inteligência, o progresso intelectual, no qual o homem reduz sua ignorância e conquista a

sabedoria. Em seqüência vem o progresso moral quando, através da compreensão do bem e do

mal, o espírito desenvolve seu livre arbítrio. O progresso moral e o progresso intelectual são

desenvolvidos ao longo das encarnações, ou existências sucessivas dos espíritos. Ao afirmar

que o espírito é responsável por sua própria evolução, o espiritismo se apóia em outro

princípio básico: o livre-arbítrio, pois a doutrina incorpora a idéia de que todo homem tem a

liberdade de pensar e de agir.

No espiritismo, o processo evolutivo do espírito está fundamentado em “leis morais divinas

ou naturais”, que devem reger todas as ações do espírito. Essas leis estão impressas na

consciência do espírito e regem a dimensão moral do ser. Segundo a doutrina espírita, essas

leis são estabelecidas por Deus e, por isso mesmo, são invioláveis. Tais leis são apresentadas

por Kardec (1997b) em O Livro dos Espíritos. São elas: a Lei da Adoração, a Lei do

Trabalho, a Lei da Reprodução, a Lei da Conservação, a Lei da Destruição, a Lei de

Sociedade, a Lei do Progresso, a Lei de Igualdade, a Lei de Liberdade e a Lei de Justiça,

Amor e Caridade. Essas leis foram apresentadas pelos espíritos através das respostas às

perguntas feitas por Kardec.

Segundo a doutrina, se um espírito viola alguma dessas leis, o faz usando seu livre-arbítrio e,

portanto, está submetido a uma punição, como resultado da infração à lei. No entanto, essa

punição é feita pela consciência de cada um, pois não há, como no catolicismo, um tribunal

onde todos serão julgados e condenados. Segundo Kardec (1997b), quando o espírito vive

num corpo físico, ou seja, quando está encarnado, não se lembra de suas vivências anteriores.

Suas atitudes e decisões são conseqüência de seu progresso moral, que está impresso na

44

consciência do espírito. Ao morrer, ou desencarnar, o espírito se recorda das vivências pelas

quais passou e ele próprio é capaz de analisar se agiu conforme as leis divinas ou não. Por

isso, o julgamento e o sentimento de céu e inferno são pertencentes a cada espírito. É um

estado de alma, íntimo, de dentro para fora, e não um julgamento externo.

Para efeito deste estudo, considerou-se importante abordar em maior detalhe as leis divinas,

na medida em que elas regem a doutrina espírita. A identificação de cada uma das leis é tirada

diretamente do texto escrito por Kardec (1997b), O Livro dos Espíritos.

A Lei da Adoração consiste em louvar, agradecer e pedir a Deus através da prece, que deve

ser oriunda do coração, deve ser verdadeira, sentida, vivida. A adoração deve ser um

sentimento inato, assim como o da certeza da existência de Deus. “A consciência de sua

fraqueza leva o homem a curvar-se diante daquele que o pode proteger.” (KARDEC, 1997b,

p. 316). Entretanto, embora a adoração seja de extrema importância dentro da doutrina

espírita, isso não significa que o homem tenha que dedicar sua vida a adorar a Deus, pois o

objetivo da reencarnação, que é o progresso intelectual e moral do homem, não se dá apenas

através da adoração.

Na Lei do Trabalho o espiritismo chama a atenção para a necessidade do trabalho como

meio de aperfeiçoamento da inteligência do homem. Sem ele, o homem permaneceria na

infância da inteligência. “Por isso é que seu alimento, sua segurança e seu bem-estar

dependem do seu trabalho e da sua atividade.” (KARDEC, 1997b, p. 329). Por trabalho

entende-se toda ocupação que torna o espírito útil, seja ele o trabalho material ou o trabalho

intelectual. Dessa maneira, a Lei do Trabalho é válida tanto para o rico quanto para o pobre.

Para que possa se desenvolver, como já dito anteriormente, o espírito precisa passar por várias

experiências, o que é possível através da reencarnação. Para que o espírito possa reencarnar é

necessário um pai e uma mãe. Daí resulta a Lei da Reprodução, pois sem a reprodução

biológica o mundo corporal pereceria. Sabedor da importância da vida corpórea para sua

jornada espiritual, o espírito desenvolve, instintivamente, o senso de conservação (Lei de

Conservação).

45

Por outro lado, existe a Lei da Destruição, que afirma que é necessário que ocorra a

destruição para que haja o renascimento e a regeneração. Para se alimentar, os animais

reciprocamente se destroem, fenômeno que tem dois objetivos: manter o equilíbrio da

população e utilizar os despojos para a conservação e a manutenção (alimento e segurança) do

ser vivente. Há que se considerar, no entanto, que as guerras, os assassinatos, as crueldades,

bem como a pena de morte, existem não como integrantes da Lei da Destruição, mas como

conseqüência das escolhas feitas por homens ainda pouco evoluídos moralmente, que querem

satisfazer sentimentos e desejos inferiores.

A vida em sociedade constitui um meio de crescimento para o espírito (Lei de Sociedade).

Como nenhum homem possui faculdades completas, lhes é necessária a vida em sociedade,

para que os homens possam se completar e assegurar seu bem-estar e progresso. Os laços

familiares são os primeiros com que o espírito tem contato, e o lar é de fundamental

importância na educação para a vida em sociedade.

A convivência em sociedade é uma das leis que conduz o homem ao progresso (Lei do

Progresso). Alguns indivíduos progridem mais rapidamente ou de maneira diferente, e os

mais adiantados devem auxiliar o progresso dos mais atrasados através do contato social. O

fato de uns progredirem mais rapidamente do que outros não significa que esses sejam

privilegiados, pois Deus criou todos iguais (Lei de Igualdade). Significa que, ou são mais

experientes, já tendo passado por mais reencarnações, ou se dedicam mais à própria evolução,

através das escolhas que fazem com o uso de seu livre-arbítrio. As desigualdades sociais e

materiais existentes no mundo são assim frutos do orgulho e do egoísmo da humanidade.

Através da Lei de Liberdade a doutrina chama a atenção para o dever de respeitar os direitos

alheios. Não existe liberdade absoluta porque o homem convive em sociedade e, assim sendo,

deve respeitar direitos alheios ao mesmo tempo em que tem os seus direitos respeitados.

Todos, no entanto, têm direito de liberdade de pensamento e de consciência, o que é exercido

através do livre-arbítrio.

No que se refere à Lei de Justiça, Amor e Caridade, a doutrina espírita afirma que o

sentimento de justiça está na natureza, de tal sorte que o homem se revolta com a simples

idéia de injustiça. O caráter do verdadeiro justo, segundo o espiritismo, é aquele que pratica o

46

amor ao próximo e a caridade, sem os quais não há verdadeira justiça. A lei de amor tem

como efeito o aperfeiçoamento moral do homem e a sua felicidade durante a vivência terrena.

Amar é ser honrado, leal e consciencioso, é fazer aos outros o que se deseja para si mesmo, e

é também levar aos sofredores uma palavra de esperança, apoio, alívio, olhando a grande

família humana como sua própria família (KARDEC, 2002).

Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec (2002) afirma:

Caridade e humildade, tal a senda única da salvação. Egoísmo e orgulho, tal a da perdição. Este princípio se acha formulado nos seguintes precisos termos: "Amarás a Deus de toda a tua alma e a teu próximo como a ti mesmo; toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos." E, para que não haja equívoco sobre a interpretação do amor de Deus e do próximo, acrescenta: "E aqui está o segundo mandamento que é semelhante ao primeiro", isto é, que não se pode verdadeiramente amar a Deus sem amar o próximo, nem amar o próximo sem amar a Deus. Logo, tudo o que se faça contra o próximo o mesmo é que fazê-lo contra Deus. Não podendo amar a Deus sem praticar a caridade para com o próximo, todos os deveres do homem se resumem nesta máxima: “Fora da Caridade não há Salvação” (KARDEC, 2002, p. 312).

Para maior aderência ao problema de pesquisa, as leis morais enfocadas neste estudo são as

seguintes: a Lei de Sociedade, a Lei do Trabalho, a Lei de Igualdade e a Lei de Justiça, Amor

e Caridade, vistas como passíveis de influenciar o funcionamento das organizações do terceiro

setor ligadas a casas espíritas. Através dessas leis descritas por Kardec, pode-se observar que

o espiritismo se baseia na convivência em sociedade como maneira de exercer o sentimento

de justiça, amor e caridade, a fim de restaurar a igualdade no progresso, ao mesmo tempo em

que defende a idéia de trabalho para que o indivíduo se torne útil na sociedade e vivencie o

sentimento do amor.

Para tornar essa proposta concreta e contribuir para a prática das leis universais, as casas

espíritas, em sua maioria, oferecem espaço para o estudo da doutrina espírita, para o exercício

da mediunidade (comunicação com os espíritos desencarnados com o objetivo de auxiliá-los)

e para o exercício da assistência social aos mais necessitados. Corroborando essa idéia,

Sampaio (2004, p. 167) ressalta o seguinte:

Há duas arenas privilegiadas para a ação social espírita: o cotidiano, uma vez que a proposta ética espírita propõe a transformação do homem na sociedade, e o centro espírita, que possui, pelo menos, um triplo caráter, o de espaço privilegiado para a comunicação com os espíritos, o de lugar dedicado, mas não exclusivo, de estudo da doutrina, e o de exercício da caridade em sua dupla dimensão: moral e material.

47

Com relação ao exercício da caridade, salienta-se o fato de que muitas casas espíritas estão

ligadas a organizações e projetos assistenciais nas quais acolhem idosos, crianças, jovens e

adultos. Como o objeto deste estudo são as organizações de fins sociais (organizações do

terceiro setor) e não os projetos assistenciais, houve a necessidade de definir parâmetros para

que uma atividade social fosse considerada inequivocamente como estruturada em uma

organização, tal como apresentado no QUADRO 4. Ressalta-se que os parâmetros

tradicionais, como a prova de existência jurídica (constituição de pessoa física - CNPJ) ou a

autonomia administrativa, não se aplicavam em algumas das organizações identificadas, que

utilizam o mesmo CNPJ da casa espírita ou que apresentam limites fluidos em relação à sua

autonomia administrativa em relação à casa espírita à qual estão ligadas.

QUADRO 4 Organização de fins sociais X Projeto Social

Fonte: Elaborado pela autora

Assim, para ser caracterizada como uma organização do terceiro setor e ser reconhecida como

objeto desta pesquisa, a atividade social ligada à casa espírita deve ter finalidade social,

envolver funcionários contratados, funcionar pelo menos três dias na semana por mais de

quatro horas, ser realizada continuamente ao longo do tempo, ter local definido para

48

funcionamento distinto daquele da casa espírita e ter funções definidas para os participantes,

havendo algum tipo de hierarquia vertical.

49

3 METODOLOGIA

A presente pesquisa utilizou uma abordagem qualitativa, que “parte de interesses amplos, que

vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve.” (GODOY, 1995a, p. 58). A pesquisa

qualitativa envolve a obtenção de dados através de pessoas, lugares e processos interativos.

Nessa abordagem, o investigador tem contato direto com a situação estudada, procurando

entender os fenômenos segundo a perspectiva do pesquisado (GODOY, 1995a). Ao realizar a

investigação, o pesquisador interfere na realidade estudada, almejando entender o

comportamento dos indivíduos, focando o seu significado e não a sua mensuração (COLLIS;

HUSSEY, 2005).

Quanto aos fins, a pesquisa é descritiva porque visa a estudar as características de um

fenômeno (VERGARA, 2005), ou seja, as características das organizações do terceiro setor

mantidas por instituições espíritas.

Para atingir o objetivo pretendido, a pesquisa foi realizada em três etapas. A primeira etapa,

que complementou a pesquisa bibliográfica que fundamenta o referencial teórico deste estudo,

foi constituída por uma pesquisa de campo, através de entrevista realizada com o Presidente

da Associação Municipal Espírita (AME) da cidade onde se localizam as casas espíritas

pesquisadas. O objetivo dessa etapa foi o levantamento de dados a respeito da estruturação do

movimento espírita no Brasil e no mundo, bem como o entendimento dos mecanismos de

controle exercidos pelos órgãos representativos do espiritismo sobre as casas espíritas e as

instituições por elas mantidas. Essa etapa se fez necessária, pois não foram encontradas

referências bibliográficas sobre a estrutura do movimento espírita, cujo conhecimento, no

entanto, era pré-condição para a realização da pesquisa pretendida.

Na segunda etapa da pesquisa foi realizada uma pesquisa de campo, através da aplicação de

sondagem nas casas espíritas existentes na cidade, no período compreendido entre 13 de

setembro e 18 de outubro de 2008. A sondagem é viabilizada através de um questionário, que

compreende uma seqüência de perguntas apresentadas por escrito, conforme define Vergara

(2005). Nesse caso, um grupo de pessoas é submetido a uma série de questões com o objetivo

de responder ao problema de pesquisa proposto. O intuito de realização da sondagem foi

50

mapear as instituições sociais mantidas pelas casas espíritas da cidade, assim como identificar

as características dessas instituições e algumas das práticas de funcionamento por elas

adotadas. Para a construção desse questionário (apresentado no APÊNDICE A), foi utilizada

como subsídio a teoria produzida sobre o terceiro setor.

Foram submetidas a esse questionário doze das treze casas espíritas da cidade cadastradas na

AME. Quando a casa espírita se encontrava ligada a alguma organização de fins sociais,

responderam ao questionário os dirigentes máximos das respectivas organizações de fins

sociais. No caso das casas que não se encontravam diretamente ligadas a organizações do

terceiro setor, os dirigentes das casas responderam a uma parte do questionário (apenas uma

das casas não foi contatada, por dificuldade de acesso através do cadastro da AME). A

princípio pensou-se em submeter os dados coletados a análises estatísticas descritivas simples.

Mas devido ao número reduzido de instituições mantidas pelas casas espíritas (apenas quatro),

optou-se por uma análise qualitativa das respostas obtidas através do questionário, que foi

aplicado, em todos os casos, em entrevistas pessoais com os respondentes.

Um aspecto que merece ser ressaltado é o fato de que o entrevistador foi bem recebido em

todas as casas espíritas, não havendo resistência ao fornecimento das informações solicitadas,

mesmo em uma das casas em que o entrevistado declarou não concordar com a escolha do

tema da pesquisa. Segundo ele, não seria característica da doutrina espírita a manutenção de

programas de assistência social, sendo que a atividade espírita deveria se concentrar no estudo

das obras de Kardec e no Evangelho de Jesus. Na visão dessa casa espírita, este estudo

deveria ter sido realizado em instituições do governo.

Em nenhuma casa houve solicitação de comprovação de vínculo do pesquisador com a

instituição de ensino ou com a doutrina espírita, embora o entrevistador tenha se apresentado

como participante ativo em uma das casas espíritas da cidade e mencionado que o contato

com aquela instituição foi favorecido pelo presidente da AME, o que pode ter contribuído de

certa forma para essa receptividade.

Na terceira etapa da pesquisa foi realizado um estudo de caso, em uma das instituições sociais

mantidas por uma casa espírita da cidade, a fim de conhecer particularidades da gestão dessa

organização, bem como seus processos de criação e funcionamento. Essa etapa fez-se

51

necessária para maior aprofundamento do tema pesquisado, já que a sondagem possibilitou

uma visão mais abrangente da gestão das instituições, mas não permitiu uma análise mais

detalhada e rica do histórico de funcionamento dessas organizações ao longo do tempo.

Yin (2005) afirma que um estudo de caso é realizado em resposta ao desejo de compreender

fenômenos sociais complexos. O estudo de caso caracteriza-se como sendo uma investigação

empírica que investiga um fenômeno em seu contexto de vida real, sendo que o limite entre o

fenômeno e o contexto não é bem definido. O estudo de caso baseia-se em diversas fontes de

evidências e beneficia-se de aspectos teóricos para conduzir a coleta e análise de dados.

De acordo com Ludke e André (1986, p. 17), o estudo de caso “é sempre bem delineado,

devendo ter seus contornos claramente definidos no desenrolar do estudo”. Tais autores

afirmam que os estudos de casos revelam experiência vicária, permitem generalizações

naturalísticas, visam à descoberta e enfatizam a interpretação em contexto, retratando a

realidade de forma completa e profunda, utilizando para isso de diversas fontes de

informação.

No estudo de caso proposto, a coleta de dados foi realizada no período de 13 a 27 de outubro

de 2008, através de entrevistas semi-estruturadas – conforme roteiro apresentado no

APÊNDICE B – e análise documental.

A pesquisa documental, segundo Vergara (2005, p. 48) é “realizada em documentos

conservados no interior de órgãos públicos e privados de qualquer natureza, ou com pessoas”.

Segundo Guba e Lincoln15 (apud LUDKE; ANDRÉ, 1986), os documentos constituem uma

fonte rica, estável, natural, não-reativa e poderosa de informação, de onde se podem tirar

evidências que fundamentem as declarações e afirmações do pesquisador, fornecendo

informações sobre um determinado contexto. No presente estudo, a pesquisa documental

beneficiou-se da leitura de documentos relativos à constituição da casa espírita.

De acordo com Collis e Hussey (2005, p. 160), “entrevistas são um método de coleta de dados

no qual perguntas são feitas a participantes selecionados para descobrir o que fazem, pensam

15 GUBA, E. G.; LINCOLN, Y. S. Effective evaluation. San Francisco, Ca: Jossey-Bass, 1981.

52

ou sentem”. Os autores afirmam ainda que as entrevistas semi-estruturadas são apropriadas

nos seguintes casos:

− [quando] é necessário entender o construto que o entrevistado usa como base para suas opiniões e visões sobre determinada questão ou situação; − [quando] um objetivo da entrevista é desenvolver um entendimento do “mundo”do respondente, de modo que o pesquisador possa influenciá-lo, de modo independente e colaborativo (como pode acontecer na pesquisa ação).

COLLIS; HUSSEY (2005, p. 160)

Uma das doze casas espíritas participantes da segunda etapa de pesquisa, a Casa Espírita

Cantinho de Amor, foi o foco desse estudo de caso. Essa casa foi escolhida por acessibilidade

e por ser a instituição mais antiga da cidade. Três sujeitos de pesquisa foram entrevistados: a

fundadora da casa espírita, Sônia Bitencourt Vieira, que foi dirigente da creche mantida pela

casa, o Centro Educacional Viver (CEV) por 25 anos; a atual dirigente dessa organização de

fins sociais e irmã da sua fundadora, Sueli Bittencourt Drummond; e uma das dirigentes

anteriores, Patrícia Bitencourt Vieira, filha da fundadora, que ficou à frente da organização

por apenas um ano, mas acompanhou de perto a gestão de sua mãe. Essas pessoas

acompanharam o processo de criação do CEV, podendo assim reconstituir seu histórico desde

a fundação, e podendo igualmente depor sobre seu funcionamento e gestão. Depois de

redigido o capítulo da análise dos dados, uma nova entrevista foi realizada com a fundadora

da casa, a fim de esclarecer dúvidas e complementar informações.

A análise dos dados coletados foi realizada através da análise de conteúdo das entrevistas

transcritas, cada uma com aproximadamente 1 hora e meia de duração. A análise de conteúdo,

à qual foram submetidas as entrevistas transcritas, de acordo com Bardin16 (apud GODOY,

1995b, p. 23), “consiste em um instrumental metodológico que se pode aplicar a discursos

diversos e a todas as formas de comunicação, seja qual for a natureza do seu suporte”.

Segundo Goulart (2002), a utilização da análise de conteúdo para a interpretação dos dados é

um recurso valioso, mas há que se definir claramente o objeto de análise para que se reúnam

informações passíveis de serem combinadas a analisadas.

Goulart (2002) descreve três etapas da análise de conteúdo: pré-análise, exploração do

material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Na pré-análise, o pesquisador

faz uma leitura flutuante dos documentos; escolhe os documentos que deseja analisar e,

16 BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 60, 1977.

53

finalmente, formula as hipóteses e objetivos. Na etapa de exploração do material, o

pesquisador faz a codificação dos elementos do texto analisado e faz uma categorização do

conteúdo. No tratamento dos resultados, o pesquisador realiza a síntese e seleção de

resultados, inferências e interpretações. “O objetivo final e mais importante da análise de

conteúdo é produzir inferências válidas.” (GOULART, 2002, p. 172).

54

4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

4.1 Caracterização das instituições de terceiro setor estudadas

4.1.1 As casas espíritas e as organizações de fins sociais a elas ligadas: caracterização

A fim de mapear as organizações ou projetos sociais mantidos pelas casas espíritas de uma

cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, bem como identificar as características

dessas organizações do terceiro setor e as práticas de gestão por elas adotadas, 12 das 13 casas

espíritas da cidade responderam a um questionário fechado, aplicado em entrevistas pessoais

realizadas pela própria pesquisadora com o responsável pela casa espírita. Nas casas espíritas

ligadas a organizações de fins sociais, onde o dirigente da casa espírita e o da organização não

eram a mesma pessoa, a entrevista foi realizada apenas com o dirigente da organização.

Como pode ser observado no QUADRO 5, apenas quatro casas mantêm organizações de

cunho social, conforme os critérios definidos por esta pesquisa: Casa Espírita Cantinho de

Amor, Grupo de Fraternidade Espírita Luz e Paz, Grupo Espírita Maria João de Deus e Grupo

Espírita André Luiz. Todas essas casas espíritas estão ligadas a organizações de fins sociais

onde se constata a presença de funcionários contratados, todas elas funcionam mais de três

dias da semana por mais de 4h / dia, apresentam atividade contínua ao longo do ano, realizam

as atividades em locais apropriados, distintos da casa espírita, e apresentam algum tipo de

hierarquia.

55

QUADRO 5 Instituições e projetos sociais mantidos pelas casas espíritas

Fonte: Elaborado pela autora

Três das casas espíritas às quais estão ligadas instituições do terceiro setor têm mais de 20

anos de funcionamento, e uma quarta casa tem 15 anos; ou seja, são todos centros que

perduraram ao longo do tempo, sendo por isso considerados sólidos e possuidores de

reconhecimento social estabelecido.

Acredita-se que a solidez e o reconhecimento da casa espírita possam estar ligados ao fato de

que a casa manter uma organização do terceiro setor. No entanto, parece estabelecer-se uma

dinâmica de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que a organização de fins sociais fortalece

a reputação da casa espírita, a solidez e a reputação da casa espírita favorecem sua dedicação

à gestão de uma instituição filantrópica, como se verá adiante. No caso da organização de fins

56

sociais estudada em profundidade, essa foi chamada a gerir uma creche, devido justamente ao

reconhecimento de suas ações junto à comunidade.

Apesar da longa permanência das casas espíritas que mantêm organizações de fins sociais,

observa-se que não há relação determinante entre o tempo de existência das casas espíritas e a

manutenção de organizações do terceiro setor, visto que o Centro Espírita Allan Kardec

funciona há 28 anos, foi a segunda casa espírita a ser fundada na cidade, e não mantém

instituição filantrópica ou social. O contrário se constata a respeito do Centro Espírita Padre

Germano: uma casa espírita relativamente nova, de 15 anos, à qual está ligada uma

organização do terceiro setor.

Percebe-se que todas as casas espíritas mantêm projetos sociais (inclusive aquelas que

mantêm organizações de cunho social). Através desses projetos, as casas declararam que

acreditam aplicar as Leis Morais preconizadas por Kardec (1997b), como a Lei de Amor

Justiça e Caridade, onde é enfatizado que amar, ser caridoso e justo é levar consolo aos que

necessitam, tendo-os como parte integrante da grande família humana. A prática social das

casas espíritas responde também à Lei de Sociedade, segundo a qual Kardec defende que é a

convivência em sociedade que faz com que os homens se complementem e assegurem o bem-

estar e o progresso. Fortalecendo essa idéia, Giumbelli17 (1998, apud Sampaio, 2004) afirma

que o espiritismo brasileiro se destaca pela prática da caridade, o que foi corroborado pela

entrevista realizada junto à AME, segundo a qual a prática da caridade se revela como

característica marcante, aglutinadora do movimento espírita e diferenciadora do espiritismo

brasileiro em relação à doutrina espírita praticada na Europa.

As questões que se colocam são as seguintes: em primeiro lugar, por que algumas casas

espíritas mantêm organizações e projetos sociais e outras mantêm apenas projetos sociais, e

em segundo lugar, por que a predominância da realização de projetos sociais em relação à

manutenção de organizações. A presença de diferentes maneiras de se colocar em prática os

fundamentos da doutrina espírita pode ser explicada pela inexistência de diretiva a respeito e,

conseqüentemente, de controle por parte dos órgãos integrantes do movimento espírita

brasileiro, como a AME e a FEB. Acredita-se também que as diferentes práticas podem ser

17 GIUMBELLI, Emerson. Caridade, assistência social, política e cidadania: práticas e reflexões no espiritismo. In: LANDIM, Leilah (Org.) Ações em sociedade: militância, caridade, assistência, etc. Rio de Janeiro: NAU, 1998.

57

explicadas pela Lei de Liberdade, explicitada pela doutrina espírita, e pelo princípio do livre-

arbítrio, que defendem que todos têm direito à liberdade de pensamento e consciência, o que

se aplica também às decisões e às atividades das casas espíritas.

Finalmente, é inegável a maior dificuldade da manutenção de uma organização de terceiro

setor em relação à prática de projetos sociais pontuais, mesmo que esses se repitam com

freqüência e apresentem certa perenidade. A estrutura necessária a uma organização, a

presença de funcionários contratados, o planejamento a curto e médio prazos, a

sustentabilidade financeira e a dedicação intensa e mesmo exclusiva de voluntários dificultam

ou mesmo impossibilitam a fundação e a manutenção de instituições filantrópicas ou sociais

por todas as casas espíritas.

Como o objeto de estudo da presente pesquisa são as organizações do terceiro setor mantidas

pelas casas espíritas de uma cidade da grande Belo Horizonte, a partir deste ponto as análises

serão restritas às quatro organizações identificadas no QUADRO 6. A análise dos projetos

sociais será retomada posteriormente.

QUADRO 6 Características das organizações do terceiro setor mantidas pelas casas espíritas

Fonte: Elaborado pela autora

As quatro organizações do terceiro setor objeto deste estudo são três creches e uma casa de

repouso para idosos. Portanto, não há público-alvo específico de instituições ligadas às casas

espíritas, mas constatou-se certa preferência pelo trabalho com crianças.

58

Como apresentado no QUADRO 6, todas as organizações foram fundadas por casas espíritas.

Isto leva a crer que o ideal de fundação de uma organização de fins sociais ou filantrópica

corresponde aos preceitos defendidos pelo espiritismo. Duas dessas instituições têm CNPJ

próprio e duas utilizam o mesmo CNPJ da casa espírita. O interessante é que as duas

instituições que não têm CNPJ próprio são as mais antigas: Centro Educacional Viver,

mantida pela casa espírita mais antiga da cidade, a Casa Espírita Cantinho de Amor (objeto da

terceira etapa dessa pesquisa), e a mais nova, Casa de Repouso Amor, mantida pelo Grupo

Espírita André Luiz, a segunda casa mais nova da cidade. Dessa forma, a idade das

instituições não se relaciona à manutenção ou não de CNPJ próprio. Na pesquisa não foi

identificado o motivo que levou as duas instituições a se distinguirem juridicamente das casas

espíritas às quais estão ligadas.

Outro fato que merece destaque é o tempo de atuação dessas organizações do terceiro setor.

Uma delas existe há mais de 20 anos, e outras duas há mais de 15 anos, o que demonstra que

as instituições sociais se organizaram de tal forma que foram capazes de enfrentar desafios ao

longo do tempo, mesmo não estando legalmente definidas.

Ao observar o horário de funcionamento das organizações, constata-se que as creches

funcionam em tempo integral, abrigando as crianças durante todo o dia. As atividades

desenvolvidas nas creches incluem alimentação (café da manhã, lanche leve na metade da

manhã, almoço, lanche leve na metade da tarde e jantar), higiene pessoal (banho e escovação

de dentes), atividades educacionais direcionadas, repouso, lazer, comemoração de datas

especiais (como Dia das Crianças e Natal) e excursões. São também realizadas atividades para

a transmissão de princípios morais cristãos, comuns a todas as religiões cristãs, e atividades

específicas relacionadas à doutrina espírita, tais como a evangelização e o culto espírita.

A divulgação dos princípios da doutrina espírita para as crianças é uma característica peculiar

das creches espíritas, que se preocupam com a formação moral das crianças, nas quais

desejam ver enraizados os conceitos relacionados aos princípios cristãos. Não se abordam

questões mais polêmicas, como a reencarnação, mas são discutidos vários dos princípios

adotados pelo espiritismo que estão presentes em todas as religiões cristãs, como a existência

de um Deus único, a imortalidade da alma, o amor ao próximo, a figura de Jesus, as penas e

os gozos futuros. Apesar de existirem críticas a esse respeito por aqueles que defendem a

59

educação laica, as creches entrevistadas defendem a idéia de que as crianças devem ter uma

formação moral e religiosa, independentemente da religião adotada pela família.

As três creches controlam os resultados obtidos, ainda que de maneira informal. No Centro

Educacional Viver - CEV, ao fazer o acompanhamento das crianças ao longo do tempo, os

monitores e a diretora do Centro avaliam se as crianças desenvolveram hábitos salutares

(como a cordialidade), se apresentam o comportamento esperado (sentando-se à mesa para

fazer as refeições, escovando os dentes e tomando banho) e se respeitam as regras de

convivência. Verifica-se se as crianças que chegam à creche desnutridas ganham peso, e se as

crianças que têm dificuldade na fala obtêm progressos com o passar do tempo.

Este tipo de avaliação é muito subjetiva e só é possível quando se acompanha de perto o

assistido, atendendo às suas necessidades individuais. Tal prática, presente no CEV, reforça a

afirmação de Teodósio (2001b) de que as organizações do terceiro setor estão mais próximas

do cidadão, o que facilita a execução dos objetivos propostos (TEODÓSIO, 2001a).

Na Creche Futuro, a mensuração dos resultados é feita pelas pedagogas em relação às crianças

maiores de seis anos que têm necessidade de reforço escolar. É também acompanhada a

melhoria do desempenho dessas crianças na escola regular. Não foi mencionado

acompanhamento para as crianças menores.

Na Creche Esperança, cada criança tem uma ficha onde é anotado seu rendimento. É feita

uma análise trimestral da ficha pelo pedagogo da creche, pelos professores e pelos pais. Em

2009 essa ficha será também encaminhada para a escola regular, para que a escola tenha

conhecimento das crianças que estão recebendo. Este será o primeiro ano em que essa medida

será adotada. É nessa creche, portanto, que o controle dos resultados é mais formalizado e

realizado com regularidade pré-determinada.

É interessante notar que em todas as creches entrevistadas, quando se pergunta sobre o

controle de resultados, os respondentes citam espontaneamente o controle dos efeitos

qualitativos do trabalho da creche sobre sua clientela, as crianças. Não foram mencionados

controles administrativos, parciais ou quantitativos (como número de assistidos, horas

trabalhadas, horas de freqüentação ou número de crianças que atingem determinado nível de

60

escolarização), o que demonstra a percepção particular que esses dirigentes têm dos resultados

atingidos por suas organizações, que se voltam ao acompanhamento qualitativo, contínuo e

individual do desenvolvimento das crianças.

A quarta organização estudada é uma casa de repouso. Sendo um local para a residência de

idosos, ela funciona 24 horas por dia. As principais atividades desenvolvidas são higiene,

alimentação, fisioterapia, serviço médico, fornecimento de remédios de acordo com

prescrição médica, além de atividades de lazer, como assistir televisão e ouvir música. Não foi

citada nenhuma forma de mensuração de resultados.

Todas as instituições impõem requisitos que devem ser atendidos por seus assistidos. No caso

das creches, uma exigência feita por todas elas é que as mães das crianças devem comprovar

vínculo de trabalho. Em duas delas devem também comprovar baixa renda, e na creche que

atende crianças acima de seis anos através do reforço escolar, há exigência de que as crianças

estejam devidamente matriculadas em escola regular (QUADRO 7).

QUADRO 7 Requisitos para ser atendido pelas instituições

Fonte: Elaborado pela autora

Acredita-se que o impacto social visado pela exigência de que as mães estejam trabalhando,

embora aparentemente pequeno, não pode ser desprezado, o que foi comprovado na entrevista

semi-dirigida realizada na terceira etapa desta pesquisa. Por outro lado, tal prática possibilita o

rompimento de tais organizações de fins sociais com o assistencialismo, uma das

características positivas do terceiro setor tal como ele se configura na atualidade, conforme

elucida Teodósio (2001b).

61

Ainda sobre as creches, o Centro Educacional Viver atende a 60 crianças que contribuem

mensalmente com R$20,00 cada. A Creche Futuro atende 70 crianças que contribuem com

R$10,00 cada. Já a Creche Esperança é menor, atende 30 crianças e tem uma contribuição

mensal de 10% do salário mínimo. Considerando que o salário mínimo em 2008 é de

R$415,00, o valor dessa contribuição corresponde a R$41,50, ficando portanto acima do valor

das demais creches.

Já que não foram destacadas diferenças nas atividades desenvolvidas com as crianças que

justifiquem a diferença entre os valores das contribuições mensais, explicações para esse fato

podem ser a quantidade de funcionários contratados por assistido, a remuneração dos

dirigentes ou a dificuldade de se obter recursos junto aos parceiros, elementos que serão

comentados mais à frente.

No entanto, deve-se destacar que a contribuição mensal das crianças representa um valor

simbólico, pois somente essa quantia não seria capaz de cobrir os custos de manutenção das

atividades das creches. Por outro lado, a contribuição mensal tem um valor substancial

quando observada sob o ponto de vista do comprometimento dos pais com a creche. Os

entrevistados acreditam que a mensalidade imposta pelas creches é uma forma de fazer com

que as mães valorizem o trabalho desenvolvido e se interessem pelos assuntos que dizem

respeito à manutenção de seus filhos na creche. A obrigatoriedade de que as mães trabalhem

faz com que haja um compromisso de mão dupla: a mãe busca o sustento da família enquanto

a creche cuida dos filhos pequenos.

A casa de repouso atende 27 idosos, que, para serem aceitos na instituição, devem ter: idade

acima de 60 anos, boa saúde mental, capacidade de se alimentar sem uso de sonda, e

capacidade de respirar sem uso de balão de oxigênio. Cada idoso contribui mensalmente com

um salário mínimo. Entretanto, existem exceções, pois em alguns casos os familiares recebem

a aposentadoria do idoso e não a repassam para a instituição ou a repassam parcialmente,

devido a dívidas contraídas com base no benefício do idoso. Em outros casos os idosos

encaminhados para a casa de repouso não têm família nem condições financeiras de arcar com

suas despesas.

62

O valor da contribuição mensal dos assistidos não difere do de outras instituições similares,

não espíritas, que acolhem idosos. É um valor elevado em relação ao valor cobrado pelas

creches, mas deve-se levar em consideração que os gastos envolvidos também são maiores.

Por outro lado, são muito divulgadas as parcerias do Governo para aprimorar a educação de

crianças, mas raramente se fala em auxílio para instituições que assistem idosos.

A casa de repouso se responsabiliza por todos os gastos dos idosos, como alimentação, fraldas

geriátricas, médicos, exames e remédios. Uma das dificuldades financeiras enfrentadas por

essa organização se deve ao fato de que, embora na época da admissão seja exigido que o

idoso possa se alimentar e respirar adequadamente, caso haja necessidade de cuidados

médicos especiais ou a necessidade da utilização de instrumentos especiais, a casa não pode

“devolver” o idoso para a família, já que essa não lhe dedicou a atenção necessária nem

mesmo enquanto o idoso possuía boas condições de saúde. Nesses casos, a organização acaba

por também absorver as despesas com esses cuidados especiais.

Kardec (1997b), quando aborda a Lei do Trabalho, faz referência àqueles que precisam

trabalhar para sobreviver e não podem fazê-lo – como é o caso dos idosos –, cujas

necessidades devem ser supridas pela sociedade. Nesse ponto observa-se aderência do

trabalho desenvolvido pela casa de repouso à Lei de Sociedade.

4.1.2 Funcionários e voluntários

Em todas as organizações de fins sociais pesquisadas trabalham funcionários contratados e

voluntários, como pode ser observado no QUADRO 8. A presença de mão-de-obra voluntária

é uma característica do terceiro setor, sendo que, como elucida Teodósio (2001a), a existência

de voluntários não exclui a existência de mão-de-obra contratada em tais organizações.

63

QUADRO 8 Funcionários contratados e voluntários

Fonte: Elaborado pela autora

Nas três creches, os funcionários são contratados de acordo com a Consolidação das Leis

Trabalhistas – CLT, tendo, portanto, carteira assinada, encargos como INSS e FGTS

recolhidos pelas instituições, bem como direito a férias, 13° salário e demais direitos

determinados pela CLT. Na casa de repouso trabalham funcionários contratados que não

possuem carteira assinada. Provavelmente esse fato se deve aos custos envolvidos na

contratação de funcionários de acordo com a CLT. A manutenção da casa de repouso, como já

mencionado, implica em um maior número de funcionários e em grandes despesas, no que

essa se diferencia das creches, prevalecendo igualmente uma grande dificuldade em se

estabelecer parcerias com o setor público.

Nas instituições do terceiro setor estudadas, aparentemente não existe uniformidade no que se

refere à participação de contratados e voluntários nas atividades espirituais propostas pela

casa espírita. Em duas creches não há vínculo dos contratados com a casa espírita, mas todos

os voluntários freqüentam a casa espírita ligada à creche em que trabalham, embora essa não

seja uma exigência da creche. Na outra creche pesquisada acontece a situação contrária:

apenas os contratados freqüentam a casa espírita. Na casa de repouso, nem contratados nem

voluntários participam das atividades espirituais da casa correspondente.

Assim, exclui-se a possibilidade de que o controle das atividades exercidas pelos contratados

e pelos voluntários se realize unicamente (ou fundamentalmente) pela casa espírita à qual a

organização de fins sociais está ligada. A pressão simbólica, espiritual ou religiosa pode

64

contribuir para o controle das atividades desempenhadas pelos contratados e voluntários, mas

não é, nos casos estudados, sua a principal forma de controle. Assim, a questão colocada é a

seguinte: como as organizações estudadas fazem com que os que ali trabalham cumpram suas

tarefas, de maneira efetiva?

Os funcionários contratados nas creches são professores, monitores, cozinheiros e faxineiros.

Em uma das instituições (Creche Esperança), o dirigente também é contratado. O controle

formal do desempenho dos funcionários é praticamente inexistente em todas as organizações.

Faz-se controle de presença através de livro de ponto e, em duas organizações, (Centro

Educacional Viver e Creche Esperança), há acompanhamento das atividades realizadas com

as crianças, acompanhamento esse efetuado por pedagogas. Não existe controle formal das

tarefas dos contratados na casa de repouso.

No entanto, a perenidade das instituições ao longo do tempo, administrando tanto

funcionários contratados como voluntários com tarefas aparentemente definidas, leva a crer

na existência de controles informais que garantem que as diretrizes traçadas pelo dirigente da

instituição sejam cumpridas. Assim, acredita-se que as atividades desses funcionários sejam

controladas, sobretudo por supervisão direta, realizada pelos dirigentes das instituições (e, no

caso das duas creches, pelas pedagogas), assim como por pressão dos pares, que também

transmitem seus conhecimentos aos novos funcionários e voluntários na prática cotidiana. Os

pares acabam por impor, uns aos outros, um padrão de comportamento. A clareza das

determinações do dirigente foi mencionada na entrevista em uma das creches como definidora

do sucesso do trabalho desempenhado pelos voluntários. Acredita-se também que os

treinamentos e reciclagem periódicos, presentes em duas creches e na casa de repouso,

contribuam igualmente para o controle do comportamento dos trabalhadores dessas

instituições.

No momento de realização das entrevistas, a Casa Espírita Cantinho de Amor e o Grupo

Espírita André Luiz constataram que há necessidade de se aprimorar o controle nessas

organizações, já que as informações existem, mas não estão organizadas de maneira que

possam ser rapidamente consultadas. Nessas duas organizações os dirigentes mencionaram

que é seu desejo criar mecanismos que transformem os dados em informação, permitindo

análises para identificar oportunidades de melhoria. Como exemplo, foi citada a necessidade

65

de um maior controle sobre a evolução mensal dos gastos da organização, e ainda a

elaboração de estatísticas sobre as crianças atendidas. Essa observação, feita pelos dirigentes

das organizações estudadas sobre a necessidade de melhorar o controle e garantir a

transparência das informações, é também abordada por Falconer (1999) com base no princípio

da stakeholder accountability, que consiste na manifestação de posições claras e apresentação

de resultados concretos que legitimem a organização de fins sociais perante a sociedade,

protegendo-a dos escândalos oriundos das organizações fraudulentas existentes no terceiro

setor.

Os funcionários contratados das organizações de fins sociais estudadas participam de

treinamentos que são oferecidos pela Prefeitura ou por outras instituições, como o SESC e a

APAE. No Centro Educacional Viver é realizado um treinamento introdutório quando da

contratação dos funcionários, e anualmente, antes de iniciadas as atividades, é feita uma

reciclagem com o corpo de funcionários. Além disso, periodicamente são feitas reuniões

administrativas entre o dirigente e os funcionários. Na Creche Esperança são oferecidas

palestras, ministradas por professores de educação física, que ensinam aos funcionários

atividades com brincadeiras direcionadas e métodos de reciclagem de material pedagógico.

Na casa de repouso os funcionários exercem tarefas como medir pressão, fazer exame de

glicose, dar banho, cortar unha, auxiliar os idosos nas refeições e na ingestão de remédios,

fazer atividades relativas à faxina, lavanderia e manutenção da horta. Como grande parte dos

funcionários não freqüentou cursos na área de saúde, tais como formação em auxiliar de

enfermagem, é oferecido treinamento a esses funcionários sobre como lidar com idosos e

realizar práticas simples, como medir pressão e glicose.

Os voluntários, tanto nas creches quanto na casa de repouso, exercem tarefas como auxílio na

limpeza, auxílio na cozinha, auxílio às monitoras do maternal, suporte pedagógico e

psicológico, evangelização, tarefas administrativas (relacionadas à gestão da organização) e

serviços de cabeleireiro.

Na casa de repouso não existe controle formal das atividades exercidas pelos voluntários. No

entanto, eles devem seguir as normas gerais da instituição, não havendo distinção entre as

normas dos funcionários e dos voluntários. Tais normas se referem, por exemplo, ao cuidado

66

com os idosos, que não devem ser obrigados a nada: por exemplo, não são obrigados a cortar

o cabelo, a fazer a barba, a comer o que não gostam, nem a receber visitas de representantes

de religiões que não a sua (já que existem idosos de diferentes credos na instituição). Também

não existe treinamento para os voluntários, que se interam das normas da organização e

aprendem a desempenhar seu trabalho na casa de repouso na prática cotidiana.

Nas creches, é feito o controle de presença dos voluntários e o dirigente é quem determina as

atividades a serem desenvolvidas por eles. As normas a serem seguidas pelos voluntários

diferem entre as instituições. Na Creche Futuro, há exigência da assinatura do “termo do

voluntário”; na Creche Esperança é solicitado que o voluntário avise com antecedência

quando precisar faltar; e no Centro Educacional Viver os voluntários têm que participar do

treinamento e da reciclagem anual e assistir semanalmente a uma reunião evangélica na casa

espírita.

Teodósio (2001a) e Moretti (2007) esclarecem que alguns autores defendem a utilização de

voluntários apenas em tarefas de menor exigência profissional e em atividades que não

comprometam o funcionamento das organizações. Entretanto, embora essa possa ser a

situação ideal, não é o que se constatou na pesquisa, pois os voluntários exercem atividades

fundamentais nas instituições estudadas, como suporte pedagógico e gestão administrativa e

financeira das instituições. Os voluntários também auxiliam na cozinha, na limpeza e no

cuidado com as crianças e idosos. No entanto, é fato que a regularidade do funcionamento

cotidiano das instituições é garantida por professores, monitores e cuidadores contratados, que

lidam diretamente com as crianças e com os idosos.

4.1.3 Dirigentes e estrutura hierárquica das instituições estudadas

Com relação aos dirigentes das organizações, conforme explicitado no QUADRO 9, em todos

os casos estudados eles são indicados pela casa espírita e devem ser trabalhadores atuantes na

mesma, o que indica a influência da casa espírita (e da doutrina) na direção e na gestão das

instituições. Inclusive, em todos os casos, o órgão máximo no organograma das organizações

do terceiro setor é a diretoria da casa espírita, seguida pelo dirigente da organização e pelos

67

funcionários contratados e voluntários (FIG. 3). O administrador financeiro da organização de

fins sociais também é o tesoureiro da casa espírita, embora sua atuação, no que se refere à

organização, esteja subordinada ao dirigente de cada organização de fins sociais.

QUADRO 9 Dirigente das instituições

Fonte: Elaborado pela autora

FIGURA 3 – Organograma das organizações de fins sociais Fonte – Elaborado pela autora

A estrutura hierárquica das organizações estudadas tem apenas três níveis: como um deles é a

diretoria da casa espírita, dentro da organização de fins sociais propriamente dita existem

68

apenas dois níveis hierárquicos, além dos funcionários de staff, como tesoureiro ou

pedagogos. Portanto, constata-se em todos os casos a presença de uma estrutura simples

(MINTZBERG, 2003), centralizada na figura do dirigente, sem grande especialização de

tarefas. Estudos realizados por Teodósio (2001b) e Sampaio (2004) endossam como

característica de organizações do terceiro setor a presença de estruturas mais enxutas, mais

ágeis e desburocratizadas do que em outros setores.

Em uma das instituições, o Centro Educacional Viver, foi citado como requisito para a

escolha do dirigente que ele tenha noções de pedagogia e administração. Esse é um fato que

se destaca nessa organização em relação às demais, já que, conforme elucidam Salvatore

(2004) e Teodósio (2001b), a gestão é o principal desafio a ser enfrentado pelo setor. O

requisito demonstra o amadurecimento da organização e sua atenção para a necessidade de

aprimorar não apenas a parte pedagógica, mas também sua gestão.

Em duas organizações, o Centro Educacional Viver e a Creche Esperança, não existe mandato

pré-definido para o dirigente. Na Creche Futuro e na Casa de Repouso Amor, o mandato é de

dois anos.

Os dirigentes são responsáveis pela coordenação geral das organizações (incluindo a educação

infantil), supervisionam as atividades dos funcionários e voluntários, realizam o controle de

almoxarifado, dirimem assuntos relativos às crianças e constituem o canal de comunicação

entre a instituição e as mães das crianças. Na Creche Esperança o dirigente também é

responsável pela cozinha e faxina, e apenas nessa organização, dentre as estudadas, o

dirigente é remunerado.

Apesar de as organizações de fins sociais estudadas serem formalmente ligadas às casas

espíritas, inclusive em sua hierarquia, tal como apresentado pelos entrevistados, elas gozam

de relativa autonomia de gestão, devendo, no entanto, prestar contas à diretoria das casas

espíritas (a autonomia de gestão nos leva inclusive a reconhecê-las, em si mesmas, como

organizações de fins sociais pertencentes ao terceiro setor). Em todos os casos estudados, os

dirigentes das organizações definem onde serão aplicados os recursos e têm poder de decisão

de compra de produtos e serviços necessários para a manutenção da organização de fins

sociais. No Centro Educacional Viver observou-se que as decisões sobre a aplicação de

69

recursos no dia-a-dia são feitas pelo dirigente da organização, mas as decisões de gastos que

fogem à rotina da organização, como reformas e aquisição de móveis e equipamentos, são

submetidas aos dirigentes da casa espírita.

4.1.4 Parcerias e recursos financeiros

Para explorar a questão da sustentabilidade financeira das organizações de fins sociais

estudadas, foram abordadas nas entrevistas as parcerias que essas organizações mantêm

presentemente. Dentre as parcerias das organizações, apresentadas no QUADRO 10, destaca-

se a Mesa Brasil SESC, que é parceira de todas as quatro organizações de fins sociais.

Essa parceria com o SESC fornece orientação nutricional e fornece alimentos quinzenalmente

às organizações. O SESC recolhe excedentes de alimentos de produtores em pontos

comerciais e os redistribui. Esses alimentos são próprios para o consumo, mas não apresentam

valor comercial. Em contrapartida, as organizações beneficiadas devem apresentar a

documentação solicitada e encaminhar representantes para participar dos cursos de orientação

nutricional que são ofertados pelo SESC.

70

QUADRO 10 Parcerias

Fonte: Elaborado pela autora

Além da parceria com a Mesa Brasil SESC, as três creches têm parceria com o Fundo de

Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da

Educação - FUNDEB e com o Fundo para a Infância e a Adolescência - FIA. O FUNDEB é

mantido pelo Ministério da Educação e Cultura – MEC – e sua participação consiste em um

repasse mensal de verba do Governo Federal para a educação infantil. Essa verba é

encaminhada para a Prefeitura, que então a repassa para as instituições. Para se beneficiar

dessa parceria, as creches devem oferecer pré-escola (ou seja, admitir crianças de 3 a 6 anos

de idade), empregar profissionais formados ou em formação e prestar contas dos recursos

recebidos. O objetivo do MEC é regulamentar, em três ou quatro anos, todas as instituições

brasileiras dedicadas à pré-escola. Para tanto, algumas exigências são feitas às organizações,

como a presença de uma pedagoga na instituição, a presença de monitoras formadas ou em

71

formação, a adoção de um regimento interno com cláusula de inclusão social e a

regulamentação da situação burocrática da instituição de ensino junto ao MEC.

A parceria com o FIA consiste no repasse anual de verba para a execução de pequenas

reformas nas instalações das creches. Essa verba é oriunda da parcela do imposto de renda

que pessoas físicas e jurídicas direcionam para o Fundo através da Renúncia Fiscal. Para

terem acesso a essa verba, as creches devem elaborar um Plano de Aplicação, que é

submetido à avaliação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente,

responsável pela destinação da verba do FIA. As creches também devem ter executado o

Plano de Aplicação aprovado no ano anterior, caso exista.

Foram identificados outros quatro parceiros das organizações estudadas, entre eles somente

uma empresa privada, a CERNE Engenharia, que fornece mensalmente cesta básica e material

de construção para a Creche Futuro. Semestralmente a Caixa Econômica Federal fornece

sucata para a Casa de Repouso Amor; o SERVAS (organização do terceiro setor) também

fornece alimentos e material de construção anualmente para a casa de repouso. Três outras

casas espíritas (Casa Espírita Cantinho de Amor, Grupo Espírita Joana de Ângelis e Centro

Espírita Maria Nunes), oferecem apoio material e administrativo para a Creche Esperança.

Nessas parcerias não há contrapartida das organizações de fins sociais estudadas, além da

apresentação da documentação jurídica da organização.

Neste estudo foram constatadas, portanto, parcerias do terceiro setor com organizações dos

três outros setores: governo, empresas privadas e organizações sem fins lucrativos, o que

revela que as organizações mantidas por casas espíritas tendem a recorrer à intersetorialidade,

o que caracteriza atualmente outras organizações do terceiro setor (COMERLATTO et al.,

2007; JUNQUEIRA, 2004).

Por outro lado, apenas uma organização abordada possui parcerias com outras casas espíritas,

o que mostra que o fato de serem espíritas não faz com que as várias casas tenham uma

relação articulada, como foi apontado, aliás, na entrevista realizada com o representante da

AME. Também não foram constatadas parcerias com outras creches ou casas de repouso, o

que contradiz os estudos de Teodósio (2001a), que afirma que, para superarem seus desafios

72

operacionais, as organizações do terceiro setor tendem a formar parcerias com outras que

atuam no mesmo setor, formando uma rede de relacionamento.

Embora seja necessária uma investigação mais aprofundada sobre o assunto, pode-se dizer,

inclusive, que há disputa por recursos, já que as três creches têm basicamente os mesmos

parceiros, recorrendo aos mesmos fundos. Nesse ponto, pode-se afirmar aderência ao

argumento de Teodósio (2001a) sobre a disputa de recursos financeiros, parcerias e

reconhecimento entre as organizações do terceiro setor.

Os recursos financeiros mensais (QUADRO 11), necessários para a manutenção das

atividades das organizações do terceiro setor estudadas, giram em torno de 6 mil reais por

mês. A Creche Esperança, que apresenta uma estrutura menor, tem gastos mensais em torno

de 4 mil reais, e na Casa de Repouso Amor esses gastos atingem os 8 mil reais mensais. Os

recursos financeiros são oriundos de parcerias, da contribuição dos associados, de campanhas

de coleta de fundos, alimentos ou bens materiais realizadas pelas casas espíritas, de doações

dos participantes da casa espírita e de doações da comunidade.

Cerca de 70% das despesas das creches são financiadas pelos parceiros. Como a maior parte

de seus parceiros são órgãos públicos, observa-se a dependência de recursos públicos para a

sobrevivência dessas instituições, como sustentado por Salvatore (2004) em relação às demais

organizações do terceiro setor. Em alguns casos, as parcerias impõem às creches

flexibilizações e contrapartidas que podem inclusive ir de encontro às diretivas estabelecidas

pelas próprias organizações ou pelas casas espíritas às quais elas estão ligadas, como foi

constatado na terceira parte desta pesquisa.

Na casa de repouso, o volume de recursos advindos das parcerias é irrisório. A

sustentabilidade financeira da instituição, ao que tudo indica, é assegurada pela contribuição

mensal dos assistidos. Nesse aspecto, aparentemente a casa de repouso sofre menor ingerência

dos órgãos públicos em comparação com as creches.

73

QUADRO 11 Fonte de recursos financeiros

Fonte: Elaborado pela autora

O QUADRO 12 revela que em duas das instituições estudadas a contabilidade é feita por um

profissional externo; nas outras duas, não há separação entre a contabilidade da instituição e

aquela da casa espírita. A prestação de contas da instituição é feita aos responsáveis pela casa

espírita, pelos parceiros e pela diretoria da instituição.

Em todos os casos estudados, a captação dos recursos financeiros e materiais é feita em

conjunto com a casa espírita, que se configura por isso como parte mantenedora das

organizações de fins sociais a elas vinculadas. Justifica-se assim parte da influência das casas

espíritas sobre as organizações estudadas.

74

QUADRO 12 Gestão dos recursos financeiros

Fonte: Elaborado pela autora

4.1.5 Projetos sociais desenvolvidos pelas casas espíritas

Devido à grande importância que os projetos sociais assumem nas atividades desempenhadas

pelas 12 casas espíritas estudadas, julgou-se necessário abordar esse tópico, pois os projetos

sociais parecem constituir uma alternativa mais flexível e igualmente eficaz de atuação social

dessas casas, que objetivam cumprir, na prática, os princípios da doutrina. Projetos sociais,

em contraposição com as organizações de terceiro setor, foram aqui definidos de acordo com

os seguintes critérios: não envolvem funcionários contratados, têm atuação em menos de três

dias na semana, envolvem uma carga horária menor do que quatro horas por dia, podem ou

não se repetir periodicamente, não apresentam estrutura hierarquizada e não dispõem de local

próprio, distinto da casa espírita, para sua concretização.

A seguir é apresentado o QUADRO 13, onde são descritos esquematicamente os projetos

sociais que são mantidos pelas 12 casas espíritas entrevistadas.

75

QUADRO 13 Projetos sociais mantidos pelas casas espíritas

Fonte: Elaborado pela autora

Todos os projetos são desenvolvidos a partir de doações de alimentos, de roupas e de demais

itens necessários para sua execução. Todos os projetos são realizados nas dependências das

casas espíritas. Dentre os projetos destacam-se:

• Almoço/sopão: projeto adotado por nove casas espíritas. Consiste no fornecimento de

refeição, normalmente aos sábados ou domingos, para a comunidade carente atendida

pela casa espírita. Em algumas casas é servido sopa; em outras é servido almoço com

arroz, feijão, macarrão, carne e salada. Foram identificados três objetivos desse

projeto: suprir necessidades de alimentação, promover a integração dos membros da

comunidade e promover a divulgação da doutrina espírita para a comunidade.

76

• Bazar: realizado por quatro casas espíritas. O bazar consiste no repasse de roupas,

calçados, brinquedos, móveis, eletrodomésticos e todos os tipos de mercadorias que

são doados para as casas espíritas. Além de oferecer à população carente a

oportunidade de aquisição de mercadorias a baixo custo, o bazar tem o objetivo de

angariar recursos para sustentar outros projetos da casa espírita. Cada casa espírita

define uma periodicidade que considera adequada para o bazar, sendo encontradas as

seguintes freqüências: duas vezes na semana, uma vez ao mês ou de dois em dois

meses.

• Distribuição de cesta básica: mantido por oito casas espíritas. O projeto tem o objetivo

de suprir necessidades de alimentação, além de divulgar os trabalhos de evangelização

da casa. A freqüência é variada conforme o tipo de cesta. As cestas que envolvem

leguminosas e verduras são distribuídas semanalmente por duas casas espíritas; as

cestas que envolvem itens não perecíveis são distribuídas por cinco casas

mensalmente, e por uma casa sob demanda.

• Distribuição de marmitex e de pão com café com leite: realizado por uma casa, com o

objetivo de suprir necessidades de alimentação. Consiste na distribuição de alimentos

aos pacientes dos postos médicos da cidade onde se localiza e de Belo Horizonte.

• Distribuição de roupas: realizada por duas casas espíritas, consiste na distribuição de

roupas, agasalhos e cobertores para suprir as necessidades da comunidade. Não tem

freqüência definida.

• Doação de enxoval para bebês/curso para gestantes: quatro casas espíritas oferecem

esse projeto social, sendo que a Casa Espírita Cantinho de Amor, além do enxoval

para o bebê, oferece orientações à gestante sobre as precauções necessárias durante a

gravidez e sobre os primeiros cuidados com o recém-nascido. Esse projeto acontece

sob demanda, exceto na Casa Espírita Cantinho de Amor, que oferece o curso e

distribui os enxovais de bebês bimestralmente.

• Oficina de artes/curso de pintura: oferecido pelo Centro Espírita Allan Kardec e pelo

Grupo Espírita Chico Xavier. Tem o objetivo de inclusão social dos participantes,

77

através do ensino de ofícios que possam contribuir para o aumento da sua renda

mensal. Tem freqüência semanal e em uma das casas, Centro Espírita Allan Kardec,

há cobrança de contribuição dos participantes.

• Reforço escolar: realizado duas vezes na semana, no Grupo Espírita Emmanuel e três

vezes na semana no Grupo Espírita Amizade. Tem o objetivo de auxiliar as crianças

que têm dificuldade de aprendizado. Além das atividades pedagógicas, as casas

espíritas oferecem também auxílio psicológico e alimentação para as crianças que

freqüentam o reforço. Em uma das casas, Grupo Espírita Amizade, estão incluídas

atividade de higiene, como banho e escovação de dentes. Essa atividade específica não

foi qualificada como estruturada em uma organização porque é executada apenas por

voluntários, sendo que, na ocasião da pesquisa, havia sido iniciada há apenas dois

meses no Grupo Espírita Amizade.

• Tratamento de saúde/distribuição remédios: objetiva o tratamento físico e psicológico

das pessoas que buscam auxílio na casa espírita. O tratamento de saúde, oferecido pelo

Grupo Espírita Leon Denis, acontece aos domingos e consiste na utilização da

medicina alternativa, como acupuntura. A distribuição de remédios é feita pelo Grupo

Espírita Joana de Ângelis, sob demanda e com apresentação do receituário médico.

Portanto, é possível observar que não existe uniformidade nem no objeto nem na freqüência

dos projetos sociais realizados pelas casas espíritas. Cada casa adota o projeto e a freqüência

que julgar mais adequados, sendo que mesmo entre os projetos há diferenças também em seu

formato e amplitude, em termos do número de assistidos. Além do mais, quase todos os

projetos são voltados exclusivamente à assistência social, com exceção do reforço escolar, da

oficina de artes/curso de pintura e do curso para gestantes. Nesses últimos é possível

distinguir um objetivo mais amplo, possibilitando também o desenvolvimento da cidadania.

4.1.6 Relação entre doutrina espírita e as atividades sociais das casas espíritas

78

Ao final de todas as entrevistas realizadas, foi perguntado aos entrevistados sobre a relação

existente entre a doutrina espírita e as atividades sociais desenvolvidas pelas casas espíritas,

através de projetos sociais ou por meio de uma organização do terceiro setor. O objetivo

dessa pergunta foi detectar qual a percepção dos entrevistados sobre o tema central desta

pesquisa, a fim de cotejar a percepção desses indivíduos com a análise do pesquisador.

Os representantes de todas as casas espíritas, com exceção do Centro Espírita Allan Kardec,

acreditam que a assistência social está diretamente relacionada aos princípios propostos pela

doutrina espírita. Os entrevistados reforçaram que a doutrina espírita sem caridade não é

doutrina espírita e chamaram a atenção para a necessidade de conciliar teoria e prática

espírita, auxiliando os mais necessitados e aumentando sua autoconfiança, que eles acreditam

ser uma forma de praticar a fraternidade. A síntese dos depoimentos feitos pelas casas

espíritas está descrita no QUADRO 14.

79

QUADRO 14 Relação entre atividade social/filantrópica e a doutrina espírita

Fonte: Elaborado pela autora

Kardec (1997b) defende, através da Lei do Trabalho, a importância da realização de uma

atividade útil para o progresso do homem. Nas casas espíritas, essa atividade útil poderia ser

traduzida pelas atividades sociais exercidas nas organizações do terceiro setor e através dos

projetos sociais. Por outro lado, a atividade social das casas também está diretamente

relacionada com a Lei de Sociedade e com a Lei de Amor, Justiça e Caridade. Isso porque,

conforme esclarecimentos de Ângelis (2004, p. 142), “a convivência cristã se caracteriza pelo

clima de convivência social em regime de fraternidade, no qual todos se ajudam e se

socorrem, dirimindo dificuldades e consertando problemas”.

80

Efetivamente, foi observado que no meio espírita existe uma grande preocupação com a

assistência social, o que pode ser comprovado através da presença das organizações do

terceiro setor e dos projetos sociais mantidos pelas casas espíritas. Apenas o representante de

uma das casas espíritas acredita que o trabalho de assistência social não faz parte da doutrina

espírita, e enfatiza que a casa espírita tem o objetivo de estudar o evangelho e os ensinos da

doutrina espírita, e que não se deve misturar assistência social com doutrina espírita.

Dessa forma, além do alinhamento teórico das casas espíritas, através da adoção dos

fundamentos da doutrina espírita, constatou-se que existe um alinhamento também quanto à

prática assistencial, uma vez que as opiniões dos representantes da maioria das casas

estudadas são muito similares.

Embora não haja um órgão regulador do movimento espírita, de alguma forma existe uma

coesão entre os princípios, práticas e objetivos das várias casas espíritas. A questão que se

coloca é como esse alinhamento perdura há tanto tempo, e se ele pode ser tributado única e

exclusivamente à crença nas idéias apresentadas por Kardec, ou se a prática assistencial

também promove o alinhamento das casas espíritas, como afirmou o representante da AME,

entrevistado igualmente no quadro desta pesquisa, relativamente ao espiritismo kardecista no

Brasil.

O estudo realizado junto às casas espíritas de uma cidade da região metropolitana de Belo

Horizonte permitiu conhecer as atividades assistenciais por elas desenvolvidas, sendo que

todas as casas têm projetos sociais, mas apenas quatro casas mantêm organizações, de acordo

com os critérios estabelecidos nesta pesquisa. As quatro organizações de fins sociais, três

creches e uma casa de repouso, têm mais de 10 anos de funcionamento, o que testemunha sua

perenidade.

Não há uniformidade no que se refere ao público atendido, à estruturação formal dessas

organizações e ao vínculo de funcionários contratados. Em dois dos quatro casos há separação

jurídica (CNPJ) da casa espírita e da organização de fins sociais. Apenas na casa de repouso

os funcionários não são contratados no regime CLT. Da mesma forma, não há uniformidade

em relação ao vínculo dos funcionários contratados e voluntários com a casa espírita, uma vez

81

que esse vínculo pode existir ou não. Tal quadro se justifica, entre outros aspectos, pela

inexistência de controle por parte do movimento espírita quanto às práticas adotadas pelas

casas espíritas, seja em relação às atividades que concernem o estudo e o desenvolvimento das

práticas espíritas, seja em relação à gestão das organizações do terceiro setor a elas ligadas.

Como ponto concordante em todas as organizações de fins sociais estudadas, aponta-se que a

escolha dos dirigentes das organizações é feita pela casa espírita, sendo que em duas

instituições não há mandato pré-definido. A hierarquia dessas organizações é bastante enxuta

e centralizada, estando os funcionários e voluntários subordinados diretamente ao dirigente da

organização. Apesar de gozarem de autonomia de gestão, todos os entrevistados foram

unânimes em afirmar que o dirigente da organização responde à direção da casa espírita,

estando a organização de fins sociais, portanto, atrelada diretamente à casa espírita e a ela

devendo prestar contas.

A obtenção de recursos financeiros difere segundo o tipo de organização de fins sociais. No

caso das creches, 70% dos recursos necessários são obtidos através de parcerias com o poder

público, destacando-se os seguintes parceiros: Mesa Brasil SESC, FUNDEB e FIA. Em

muitos casos, tais parcerias impõem contrapartidas às creches, que devem se adequar às

exigências dos parceiros, e por isso têm sua autonomia limitada. Já no asilo, a maior parte dos

recursos é obtida através da contribuição mensal dos assistidos e de doações da casa espírita e

de outras entidades públicas ou do terceiro setor. Não foram detectadas parcerias relevantes

das organizações de fins sociais com outras casas espíritas ou com outras organizações do

terceiro setor voltadas a um público similar, o que denuncia a fraca atuação em rede das casas

espíritas.

Finalmente, ressalta-se que os entrevistados se referem sempre, em relação às atividades

sociais desenvolvidas através das organizações e projetos sociais ligados às casas espíritas, a

uma prática assistencial, filantrópica e caritativa, e não a uma prática de promoção social. No

entanto, quando analisado o trabalho desenvolvido pelas organizações de fins sociais ligadas

às casas espíritas (o que é amplamente reforçado pela pesquisa junto à instituição estudada em

maior profundidade), essa prática social revela uma intenção transformadora, de

desenvolvimento social e cidadão (preparar as crianças para a escola regular, inserir as mães

no mercado de trabalho, promover a condição econômica das famílias e promover a

82

solidariedade social em relação aos idosos), o que é também defendido pela Lei do Trabalho,

pela Lei de Sociedade e pela Lei de Amor, Justiça e Caridade, apresentadas por Kardec.

4.2 Constituição e funcionamento do Centro Educacional Viver, mantido pela Casa

Espírita Cantinho de Amor: um estudo de caso

A realização desse estudo de caso foi considerada necessária a fim de colher dados

qualitativos e informações de maior profundidade, que por um lado melhor esclarecessem as

particularidades de uma organização de fins sociais mantida por uma casa espírita, a partir do

conhecimento do seu processo de criação e funcionamento, e que por outro lado também

permitissem uma melhor compreensão da influência da doutrina espírita no funcionamento

dessas organizações. Como objeto do estudo de caso, foi escolhida a Casa Espírita Cantinho

de Amor, por ser a casa espírita mais antiga da cidade e aquela que oferecia maior facilidade

de acesso para o pesquisador.

Foram realizadas entrevistas com três pessoas: Sônia Bitencourt Vieira – Dona Sônia,

fundadora do Centro Educacional Viver e da Casa Espírita Cantinho de Amor; Sueli

Bittencourt Drummond, atual dirigente da creche e irmã de Dona Sônia; e Ayla Patrícia

Bitencourt Vieira, ex-dirigente do Centro Educacional e filha de Dona Sônia.

A análise dos dados foi subdividida em quatro sessões. Na primeira sessão é feita a

apresentação da história do Centro Educacional Viver, na segunda sessão são abordados

aspectos relativos ao funcionamento e gestão da creche estudada, na terceira sessão são

relatadas as principais dificuldades enfrentadas pelo CEV e na quarta sessão destaca-se a

relação entre o funcionamento da organização de fins sociais e a doutrina espírita.

83

4.2.1 Histórico do Centro Educacional Viver

O conhecimento da história do Centro Educacional Viver permitiu analisar o processo de

criação dessa organização sob o ponto de vista da influência dos princípios espíritas nesse

processo. Além disso, permitiu analisar a participação da comunidade e da gestão pública

municipal ao longo da história da creche.

A Casa Espírita Cantinho de Amor foi constituída em 25 de agosto de 1972, por Dona Sônia.

É uma associação civil, religiosa, sem fins lucrativos, localizada em uma cidade da região

metropolitana de Belo Horizonte, que tem por finalidade proporcionar gratuitamente

assistência espiritual, moral, social, educacional e cultural. Além de presente em sua

denominação, o caráter caritativo da casa espírita se expressa formalmente no Art. 2º do seu

estatuto social, segundo o qual é uma das finalidades da instituição:

“criar e ser mantenedora de obras de caráter filantrópico e beneficente de natureza educacional, cultural, assistencial, tais como as de amparo à velhice, às crianças, atendimento e transporte de enfermos, a todos assistindo sem distinção de classe, sexo, raça, cor, nacionalidade ou religião.”

De acordo com as definições de projetos e organizações de fins sociais estabelecidas nesta

pesquisa, a casa espírita Cantinho de Amor pratica atividades assistenciais através de quatro

projetos sociais (apresentados no QUADRO 15) e mantém uma organização de fins sociais: o

Centro Educacional Viver. A casa espírita também manteve, por dois anos e meio, outra

organização de fins sociais além da creche: um abrigo para crianças que eram recolhidas na

cidade pelo Conselho Tutelar. Mas essa organização teve suas atividades encerradas há

aproximadamente sete anos, devido a conflitos com o poder público municipal, seu principal

financiador. As atividades sociais se apresentam, segundo o próprio estatuto da casa, como

uma oportunidade de realização de uma das finalidades da casa espírita, a saber, a oferta de

serviços filantrópicos.

Os projetos identificados foram: sopão, servido aos sábados para os participantes da

evangelização da casa espírita; bazar, que funciona duas vezes por semana nas dependências

da creche e atende à comunidade carente em geral; distribuição de cestas básicas

mensalmente, para participantes da evangelização ou pessoas necessitadas indicadas pelos

84

trabalhadores da casa espírita; e curso para gestantes, realizado bimestralmente, no qual são

fornecidas informações sobre os cuidados com o bebê nos primeiros meses de vida, a futuras

mães carentes, além de ser ofertado um pequeno enxoval para o bebê.

Como pode ser observado, os projetos são primordialmente assistenciais e dois deles se

vinculam diretamente à evangelização espírita. A exceção pode ser notada em relação ao

curso de gestantes que, além de apresentar cunho assistencial, revelado pela doação do

enxoval ao bebê, apresenta também uma preocupação educativa, sendo fonte de informação e

instrução para as futuras mães cuidarem dos recém-nascidos de forma adequada.

QUADRO 15 Relação de Projetos da Casa Espírita Cantinho de Amor

Fonte: Elaborado pela autora

Como o objetivo desta pesquisa é a análise do funcionamento das organizações mantidas

pelas casas espíritas, todo o desenvolvimento da análise foi focado no CEV, organização do

terceiro setor mantida pela Casa Espírita Cantinho de Amor.

O Centro Educacional Viver – CEV é uma creche em funcionamento desde 1981. A história

de criação do Centro Educacional foi relatada por Dona Sônia, sua fundadora, como descrito a

seguir.

85

A idéia de criação da creche partiu de Dona Elza Pinto Coelho, nascida e criada na fazenda da

família na cidade ora em questão. Essa senhora era adepta dos princípios da doutrina espírita,

mas não era particularmente freqüentadora da casa espírita Cantinho de Amor. O filho de

Dona Elza possuía uma empresa de casas pré-fabricadas e construiu um projeto experimental

em um terreno de sua mãe, localizado em uma das fazendas da família que havia sido loteada.

D. Elza resolveu que aquela construção abrigaria uma creche. Entretanto, ela mesma, apesar

de poder auxiliar com recursos materiais, acreditava não poder desenvolver o projeto, nem

gerir a creche. Procurou então alguém que pusesse em prática seu projeto de amparo às

crianças carentes. Foi quando, não se sabe como, D. Elza tomou conhecimento dos trabalhos

desenvolvidos por Dona Sônia, que mantinha um projeto de evangelização para crianças em

um bairro carente da cidade.

Dona Sônia, ao ser inquirida por Dona Elza a respeito de sua experiência com creches e do

seu interesse em gerir aquela creche, relata que respondeu afirmativamente e aceitou a

empreitada de pronto, sem, na verdade, nunca ter entrado em uma creche e não fazer idéia de

como gerir tal organização, pois essa seria também a primeira creche da cidade. Conforme

esclarece Patrícia, filha de Dona Sônia:

...e aí mamãe pegou isso, assim meio que do nada, né, como sempre! Sempre que surgiam as coisas pra ela, surgiam meio que do nada. E aí ela passou muito aperto, porque nessa época eu era novinha ainda e não tinha muita condição de ajudar. Titia (Sueli) com muito pouco tempo também, estava na batalha ainda, com as meninas novas. E mamãe começou quase que do nada num bairro que tinha toda a formação de ser um bairro de luxo. [...] mamãe foi uma guerreira, porque foi do nada mesmo. Ela não tinha nenhum conhecimento de educação.

Nesse ponto, a história relatada permite algumas observações interessantes. D. Sônia foi

contatada por D. Elza (a primeira benfeitora que cedeu o espaço da creche) devido a seus

trabalhos em evangelização. A reputação dessa experiência foi mais determinante para a

escolha de D. Sônia do que propriamente sua experiência ou conhecimento em educação ou

gestão social. Muito provavelmente, o fato de D. Elza ser adepta da doutrina espírita pesou

nessa escolha, considerada mais pertinente para o sucesso de uma creche prestadora de

serviços à população carente, o que reforça a influência dos princípios da doutrina no sentido

da prática da caridade e da promoção social, desejada pela benfeitora da creche.

86

Dona Sônia assumiu a creche sozinha, em uma iniciativa de caráter inteiramente voluntário,

sendo criticada por sua família, que alegava que ela trabalhava o dia todo na Legião Brasileira

de Assistência – LBA – e não tinha tempo disponível para ocupar-se das atividades familiares

e gerir a creche. Além disso, em todos os dias da semana à noite e aos sábados pela manhã

havia atividades sob sua responsabilidade na casa espírita. Durante os 25 anos em que esteve

na direção da creche, Dona Sônia respondeu por todas as questões administrativas,

pedagógicas, psicológicas e todas as demais que envolvessem a manutenção da creche e o

bem-estar das crianças.

O imóvel foi legalmente doado por D. Elza para a casa espírita ainda em 1981, tendo sido

feita apenas uma exigência: que a creche se chamasse Maria Salomé, nome da mãe de Dona

Elza; daí o nome de Centro Educacional Viver – CEV. Embora não tenha assumido um papel

ativo na creche, Dona Elza nunca se afastou, tornando-se amiga de Dona Sônia e

acompanhando as atividades ali desenvolvidas. Durante os 28 anos de funcionamento da

creche, essa senhora sempre se fez presente, ou através de doações ou participando das

festividades da instituição. Essa situação se alterou somente em 2007, devido à debilidade de

saúde de Dona Elza.

Após fazer o cadastramento de 15 crianças e depois de tentativas infrutíferas junto à Cemig

para obter energia elétrica, Dona Sônia, pressionada pelas futuras funcionárias da creche e

pelas mães, optou pelo início das atividades sem luz elétrica, sendo necessário aquecer água

para dar banho nas crianças e ferver o leite diariamente para que esse não azedasse. Quinze

dias depois, a Cemig fez a ligação da energia elétrica.

Os móveis e utensílios da creche foram todos doados pela comunidade e por Dona Elza.

Quando havia alguma necessidade material, Dona Elza era acionada, e sempre que possível

contribuía para manutenção da creche. Após o início das atividades, foi construído um

refeitório para as crianças pelo esposo de Dona Elza, e em seguida houve a construção de

mais duas salas de aula e dois banheiros, dessa vez pela Prefeitura.

Um amigo de Dona Sônia, Sr. Antônio Teixeira da Costa, conhecido como Bilé, na ocasião da

fundação do CEV era prefeito da cidade e foi ele quem cedeu quatro funcionárias da

87

Prefeitura para que fosse possível iniciar as atividades da creche: duas monitoras, uma

faxineira e uma cantineira. Vale ressaltar que nada foi pedido em contrapartida: não houve

troca de favores e nunca mais se falou no assunto, sendo que poucas pessoas sabem da ajuda

cedida pelo prefeito naquela época.

A creche se situava em um local isolado, em um novo bairro que se destinava a uma clientela

de luxo, onde não havia construções na vizinhança e era de difícil acesso. Somente em 1985 a

creche passou a receber água do encanamento público. Até então a água utilizada pela creche

vinha de um poço artesiano em seu terreno. Fato curioso relatado por Patrícia é o seguinte:

Era um disparate a pessoa fundar uma creche num fundo de um bairro de luxo onde as pessoas teriam que caminhar muito para chegar. Porque era difícil. Não tinha aquela via de acesso que tem hoje. [...] As pessoas vinham de longe, a pé, trazer as crianças pra creche. Era uma coisa muito complicada. Mas o fato é que a coisa deu certo.

Quando trabalhava na LBA, D. Sônia relata que resolvia os assuntos da creche no horário de

almoço, deslocando-se todos os dias até a creche, onde almoçava. Pela LBA, D. Sônia era

responsável pelo posto de distribuição do Programa de Complementação Alimentar – PCA,

que distribuía farinha vitaminada para fazer sopa e vitaminas para crianças com problemas de

desnutrição, para gestantes e para famílias com necessidades nutritivas. Como elucidado por

Dona Sônia, na ocasião da instituição do Programa na cidade, a LBA procurou um local onde

pudesse instalar um posto de distribuição e tomou conhecimento do espaço existente na Casa

Espírita Cantinho de Amor. Ao ser procurada pela referida instituição, Dona Sônia se

interessou pela proposta e o PCA passou a funcionar nas dependências da casa espírita, apesar

de não ter ligação com as atividades doutrinárias, já que a LBA era uma instituição do

Governo Federal. Dona Sônia trabalhou por aproximadamente sete anos como responsável

pelas atividades do Programa, e há 22 anos pediu seu desligamento do PCA, devido a

dificuldades de conciliação de todas as suas atividades. Quando encerrou o trabalho na LBA,

a entrevistada relata que intensificou seu trabalho na creche, lá permanecendo o dia todo,

quase todos os dias da semana.

D. Sônia considera que o trabalho na LBA a auxiliou na gestão da creche, já que o público

atendido era o mesmo, ou seja, pessoas carentes. Ao observar a freqüência das famílias no

Programa, Dona Sônia indicava a creche, mostrando para a mãe que ela seria capaz de obter

seu sustento, sem passar fome, se a criança tivesse onde ficar durante o dia. Também a LBA

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era responsável por um projeto de creches, o Projeto Creche Casulo, que inspirou as

atividades do CEV. Nas creches-casulo, as mães deixavam as crianças pela manhã e as

buscavam à tarde, para poderem trabalhar. Sábado e domingo as crianças deviam ficar com a

mãe, para não perderem o vínculo familiar. Nessas creches, as crianças eram alimentadas e

protegidas. Como Dona Sônia trabalhava na LBA, teve fácil acesso às informações sobre esse

projeto e, segundo a entrevistada, o CEV foi a primeira instituição a se cadastrar junto à LBA

como creche-casulo.

O Projeto Creche Casulo se viabilizou através de uma parceria entre a LBA, o CEV e a

Prefeitura da cidade. A LBA fornecia uma verba para a manutenção da instituição e para a

aquisição de alimentos; o CEV cedia seu espaço físico; e a Prefeitura cedia os funcionários.

Dona Sônia escolhia as pessoas e a Prefeitura contratava. Um contador contratado pelo CEV

prestava contas à LBA da destinação da verba. A creche garantiu assim a continuidade de seu

funcionamento.

Posteriormente, a Prefeitura, que era responsável pela contratação dos funcionários da creche,

transferiu essa responsabilidade para o CEV, mantendo uma verba mensal que, embora fosse

de grande valia, não era, no entanto, suficiente para cobrir os gastos da folha de pagamento da

creche, sendo necessário que a casa espírita angariasse fundos com o objetivo de completar os

recursos financeiros necessários para o funcionamento da creche. No final do ano a situação

se agravava, pois o valor da verba recebida era fixo, mas havia gastos extras com o pessoal,

como férias e 13º salário das funcionárias.

Entretanto, a Prefeitura passou a encaminhar alguns funcionários excedentes em seu quadro

para a creche. D. Sônia relata que houve problemas de adaptação dos funcionários da

Prefeitura ao trabalho da creche, que ela acredita que era mais pesado. Eles também se

recusavam a seguir normas da creche, e D. Sônia citou, em particular, que estavam abordando

assuntos e adotando expressões incompatíveis com um ambiente infantil. Foram mencionados

também casos de furto de alimentos. Por isso, Dona Sônia solicitou que esses funcionários da

Prefeitura não fossem mais destinados para o CEV, na tentativa de recuperar o controle da

creche sobre a gestão de seu pessoal.

89

Quando a LBA foi extinta, em 1995, foi instituída a Secretaria de Estado do Trabalho, da

Assistência Social, da Criança e do Adolescente - SETASCAD, de onde a creche passou a

receber recursos financeiros. A creche recebia então duas verbas: uma da Prefeitura, destinada

ao pagamento de funcionários; e outra da SETASCAD destinada à manutenção e aquisição de

alimentos. Seguindo o princípio de municipalização, a verba da SETASCAD passou a ser

encaminhada para a Prefeitura, que a repassava para a creche. Entretanto, o montante total

recebido pelo CEV passou a ser inferior ao recebido anteriormente. Parte da verba foi

substituída por alimentos, que eram fornecidos de acordo com a disponibilidade da Prefeitura

e não segundo as necessidades da creche.

Nota-se, portanto, ao longo de todo o percurso da creche, que sua fundadora e dirigente

(também fundadora da casa espírita) foi responsável por uma contínua mobilização de

esforços e recursos de várias fontes que permitiram à creche superar adversidades que, no

entanto, sempre existiram. Tais adversidades se justificavam pela localização da organização

(em um bairro distante, sem serviços públicos em atividade), mas principalmente pela

escassez de recursos financeiros. Ao recusar funcionários contratados pela Prefeitura a creche

buscou recuperar seu controle sobre o comportamento dos seus empregados, que deveriam

atender a padrões considerados adequados à instituição. Nota-se aí a postura de não

negociação da autonomia da creche para a obtenção de recursos humanos ou materiais. Nesse

quadro, a casa espírita surge não como mantenedora da organização, mas como mobilizadora

de recursos extras, em caso de necessidade, que complementam as verbas regulares recebidas

para o funcionamento da organização.

O recurso a várias fontes financiadoras se fez presente na história da creche desde sua

fundação, principalmente através de participação ativa de membros da comunidade, como é o

caso de Dona Elza e do prefeito Bilé; e dos órgãos governamentais, como a Prefeitura, e o

Governo Federal, através da LBA. A não-exigência de contrapartidas da organização tanto

por parte da doadora do terreno quanto por parte da Prefeitura e da LBA merece ser

destacada. Constata-se aí a ausência histórica de controle de doadores particulares e dos

órgãos públicos sobre resultados efetivos das organizações do terceiro setor, consideradas

então sob uma ótica estritamente caritativa. Hoje em dia, como observado no marco teórico

desde trabalho, essa realidade está sendo transformada. Isso é demonstrado, em parte, através

das exigências impostas por órgãos financiadores como o FUNDEB.

90

Para Dona Sônia, não há separação entre a casa espírita e o CEV, pois o objetivo dos dois é

mesmo: esclarecer e consolar. Aliás, o CEV é considerado por ela como um departamento da

casa espírita. Mas a entrevistada acredita que não são todos os freqüentadores da casa espírita

que pensam dessa forma. Segundo seu relato, até os anos 90 a casa espírita enfrentou

dificuldades relativas à implicação de seus participantes como voluntários nas atividades da

creche. A entrevistada atribui tais dificuldades ao fato de que havia poucas pessoas que

freqüentavam regularmente a casa espírita Cantinho de Amor e existia, entre os seus

participantes, a noção de que a creche era uma atividade desenvolvida em apêndice às

atividades da casa, não pertencente a ela.

Essa situação se modificou há aproximadamente dez anos, com uma participação mais ativa

dos freqüentadores da casa espírita. Essa alteração se deu por estímulo de Dona Sônia que

sugeriu a inserção do trabalho voluntário na creche como uma opção para a assistência social

de duas horas semanais, que deviam ser cumpridas pelos freqüentadores da casa espírita.

Além disso, algumas atividades da casa espírita começaram a se desenrolar nas dependências

da creche, como a confraternização de final de ano e a evangelização infantil, numa tentativa

de fazer com que os participantes da casa visitassem a creche e se interessassem pelo trabalho

com as crianças.

4.2.2 Funcionamento e gestão da creche estudada

A creche foi fundada com o ideal de fazer com que crianças carentes, quando chegassem à

escola regular, tivessem sucesso nos estudos como as demais crianças, apresentando

capacidade funcional, orgânica e psíquica semelhante àquela de crianças criadas com suas

famílias em um contexto econômico favorável.

Desde sua criação, foram definidos alguns critérios para o atendimento das crianças pelo

CEV, que são respeitados ainda nos dias atuais. As famílias dessas crianças devem ser

carentes, encontrando-se à margem da sociedade, e o responsável não pode ter outra pessoa

com quem deixar a crianças. Segundo Dona Sônia, essas crianças geralmente apresentam uma

91

deficiência alimentícia e são submetidas a sofrimentos físicos que as marcam profundamente,

o que as debilita face às demais crianças, a não ser que obtenham um tratamento diferenciado.

Nesse sentido, é perceptível o impacto dos princípios da doutrina espírita, que propaga que

nenhum ser humano é completo, necessitando uns dos outros para se aprimorarem. A doutrina

ressalta ainda que as diferenças existentes entre os indivíduos não é um privilégio, pois Deus

criou todos os espíritos iguais. Essa diferença se dá porque alguns já passaram por mais

encarnações que outros e por isso são mais experientes. Cabe a esses últimos, portanto,

auxiliar no progresso dos mais atrasados para que eles possam se desenvolver e, dessa forma,

garantir o bem-estar e o progresso da sociedade (KARDEC, 1997b). Pode-se dizer, portanto,

que é nesse sentido que o trabalho da creche se desenvolve: o objetivo é propiciar às crianças

o desenvolvimento de capacidades que as tornarão cidadãs mais preparadas, capazes também

de contribuir para o desenvolvimento da sociedade.

Outra exigência feita pela creche para receber as crianças é que suas mães estejam

trabalhando. Essa exigência faz, segundo Dona Sônia, com que a creche não seja um

“depósito de crianças”, mas tenha um objetivo maior, o de proporcionar o desenvolvimento

profissional dessa mãe, tornando-a disponível para o mercado de trabalho. De acordo com a

entrevistada, tornar possível que as mães tenham seu próprio dinheiro e sejam independentes

é uma forma de fazer com que se sintam capazes, responsabilizando-as por seu crescimento.

No entanto, Dona Sônia ressaltou que tudo gira em torno do benefício da criança, inclusive o

crescimento pessoal e profissional da mãe. Ela também faz a ressalva de que a creche (ou uma

escola) não substitui pai e mãe, mas é parceira dos mesmos na educação, no bem-estar e no

crescimento das crianças.

A comprovação da renda da família e da indisponibilidade de adultos para ficar com as

crianças é feita através de entrevista realizada com a mãe. Nessa entrevista, o dirigente do

CEV faz perguntas do tipo: qual o seu horário de trabalho, quantas pessoas moram na sua

casa, qual a idades dessas pessoas, quantas delas trabalham. Nessas entrevistas, as mães

relatam fatos de sua vida de maneira indireta, possibilitando à creche a avaliação da situação

daquela criança.

92

Constata-se nas exigências para admissão na creche uma estratégia, ainda que não

reconhecida abertamente pelos entrevistados, de desenvolvimento social através do

desenvolvimento profissional das mães e do foco no desenvolvimento da unidade familiar

como um todo, em parceria com a creche, para o bem-estar da criança. Essa lógica se

distancia de lógica assistencial das atividades filantrópicas tradicionais, pois visa o

desenvolvimento social, econômico, pessoal do indivíduo, objetivo que caracteriza o terceiro

setor na modernidade, conforme apontam Teodósio (2001b) e Salvatore (2004). Mesmo

pregando expressamente a realização de ações caritativas, ou seja, filantrópicas, no fundo a

doutrina espírita corrobora a orientação de promoção social do indivíduo, pois defende a

complementaridade entre os indivíduos que vivem em sociedade e a necessidade de uma

ocupação útil para o homem, através da qual ele é capaz de suprir suas necessidades de

alimentação, segurança e bem-estar (KARDEC, 1997b). Isso vai além da assistência social, e

consiste em oferecer condições ao indivíduo para que ele mesmo atue em termos de seu

desenvolvimento social, profissional e pessoal.

Nota-se, na exigência do trabalho das mães imposta pela creche, a presença de um dos

princípios fundamentais da doutrina espírita, segundo o qual o trabalho dignifica o homem

(KARDEC, 1997b). A exigência formal faz com que, na prática, as mães terminem por se

sentir valorizadas através do trabalho remunerado que exercem, enquanto a proteção de seus

filhos pequenos é garantida. A oportunidade de obtenção de um trabalho (normalmente de

empregada doméstica), que mesmo sendo pago pelo salário mínimo aumenta a renda familiar

ou mesmo garante a subsistência da família, dá à família uma nova perspectiva de futuro. A

creche contribuiria assim para a realização na prática do princípio proposto pela doutrina

também no sentido do desenvolvimento social e econômico dessas famílias.

A creche objeto do estudo de caso é formalmente definida como um departamento da Casa

Espírita Cantinho de Amor, mas tem diretoria própria. O dirigente da creche toma todas as

decisões pertinentes à creche. Entretanto, dependendo da gravidade da situação, expõe o

problema para o grupo gestor da casa espírita, do qual o dirigente da creche faz parte, que

então o auxilia na tomada de decisão. Normalmente são decisões que envolvem gastos que

fogem ao dia-a-dia da creche, como a contratação de novos funcionários e a aquisição de

móveis e ferramentas. Nesses casos, é necessário consultar o Tesoureiro da casa espírita para

avaliar a disponibilidade de recursos. Portanto, nesses casos extraordinários a contabilidade da

93

creche se confunde com a da casa espírita, o que não acontece em relação às despesas

correntes de funcionamento da organização de fins sociais estudada. Em outros casos, o grupo

gestor também é chamado para discutir situações que podem comprometer o objetivo da

creche, como a formação de parcerias (principalmente no que tange a contrapartidas do CEV)

que podem ferir suas normas internas de funcionamento. Essa preocupação em garantir a total

independência administrativa da organização frente aos parceiros, doadores e demais fontes

de recursos financeiros é inclusive ressaltada pela FEB (2008c), através do documento A

adequação do Centro Espírita para o melhor atendimento de suas finalidades.

Quando a creche se depara com situações que podem colocar em risco sua finalidade, essas

situações são expostas ao grupo gestor da casa espírita, que auxilia a dirigente da creche na

sua tomada de decisão. Ressalta-se que o poder do grupo gestor da casa espírita sobre a creche

é hierárquico, não se justificando pelos recursos aportados pela casa à creche. Nesse sentido,

há inclusive uma constante preocupação de se preservar a autonomia da organização de fins

sociais face às fontes mantenedoras. Dona Sônia faz o relato seguinte, onde cita um exemplo

de questão que é levada para o grupo gestor da casa espírita:

...a transição da creche para a escola. É uma coisa que nós já reunimos duas vezes. “Tamo” estudando muito. Porque eu não acho que é a creche que está entrando na escola. É a escola que está entrando na creche. Então tem que haver uma parceria. Porque nós não podemos tirar a escola porque faz parte do progresso, e na realidade as crianças estão recebendo uma instrução melhor. [...] Nós estamos procurando uma forma de unir as duas coisas: nem que a creche vire escola e nem que fique só creche. Isso aí tem que ser o grupo de apoio [grupo gestor da casa espírita].

Hoje a creche atende a 60 crianças que permanecem na instituição de 7:30 h às 16:30 h e

recebem cinco refeições diárias: café da manhã, lanche no meio da manhã, almoço, lanche no

meio da tarde e jantar. Os cardápios são sugeridos por estagiários de nutrição da Faculdade

Newton de Paiva, através do Projeto Mesa Brasil SESC. Além da alimentação, as crianças

recebem noções de higiene (escovação de dentes, banhos diários, corte de cabelo e unha,

instrução quanto ao combate ao piolho e à verminose), noções de boas maneiras (como sentar-

se à mesa, comer com talheres) e aprendem a obedecer a horários. Anteriormente, o trabalho

da pedagoga era voluntário, ao qual ela se dedicava uma vez por semana, por quatro horas. No

segundo semestre de 2008 a pedagoga foi contratada e desde então vem permanecendo na

creche todos os dias, na parte da manhã.

94

Como pode ser observado, há uma preocupação da creche, ainda que embrionária, em se

profissionalizar, dentro de suas possibilidades, fazendo apelo a serviços especializados. Um

exemplo é a contratação da pedagoga, que se relaciona a uma melhor educação para as

crianças atendidas; e a parceria com o SESC, no que se tange à nutrição adequada dessas

crianças. A profissionalização do terceiro setor é assunto vastamente discutido por alguns

autores, como Salvatore (2004), Teodósio (2001b), Sampaio (2004).

Na creche, desenvolvem-se também atividades de lazer, como músicas, brincadeiras ao ar

livre, brincadeiras pedagógicas e disponibilização de desenhos animados instrutivos;

comemoração de datas cívicas, de aniversariantes do mês, e comemoração especial no Dia das

Crianças e no Natal, quando é servido lanche especial e as crianças recebem brinquedos,

roupas, calçados e alimentos doados por pessoas da comunidade que se simpatizam com o

trabalho da creche.

A creche tem normas estritas de funcionamento. As crianças entram impreterivelmente entre

7:30 h e 7:45 h e devem estar uniformizadas. Se houver atraso na chegada ou a criança estiver

sem uniforme, ela não entra na creche. O horário de saída é entre 16:00 h e 17:00 h. Caso haja

atraso dos pais para buscar as crianças, elas ficam suspensas das atividades da creche por um

ou mais dias, dependendo do caso. A saída da criança fora do horário só é permitida para

visitas ao médico e deve ser apresentado atestado médico no dia subseqüente. São ministrados

medicamentos quando da apresentação de receituário médico.

Essa disciplina se faz necessária, segundo Dona Sônia, na medida em que a creche tem

deveres a cumprir perante as crianças e as mães; por exemplo, não pode deixar a criança sem

almoço ou sem trocar as fraldas. Em contrapartida, é importante mostrar às mães que elas

também têm deveres que devem ser respeitados, como o atendimento ao horário e a

apresentação do uniforme das crianças. Uma maior disciplina foi necessária por questões

administrativas, porque a creche não dispõe de recursos para pagar horas extras para as

funcionárias, custo que é gerado caso as mães não sejam pontuais ao buscarem seus filhos.

Por outro lado, há uma intenção educativa na disciplina imposta. Segundo a entrevistada, a

creche entrega a criança limpa e bem cuidada para as mães, e portanto as mães devem deixar

as crianças na creche nas mesmas condições, ou seja, devem também fazer sua parte para a

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educação da criança. Segundo a entrevistada, no início as crianças chegavam na creche sujas,

com roupas rasgadas ou sem peças íntimas. Hoje, se isso acontecer, a criança não entra.

Na realidade, essa disciplina, nós “tamos” formando hábitos saudáveis nas crianças, né? Porque não é nem exigência. É mais uma formação de hábitos. Porque a mãe chega lá com a criança toda esfarrapada, short rasgado, menininho sem cueca, expondo, sujos, fedendo a xixi, cheio de cocô. Quer dizer, ela tem que ter suas obrigações conosco. Assim como nós temos que “tá” em dia com os deveres para com ela, ela tem que estar em dia com os deveres para conosco.

Segundo os preceitos espíritas, a criança é um espírito reencarnado que necessita ser orientado

e educado para que tenha condições de dar continuidade ao seu processo evolutivo, tornando-

se um homem de bem. Os pais e educadores têm uma tarefa primordial nesse sentido, pois são

responsáveis por essa educação. Barcelos (2003), pesquisador de temas relacionados à

doutrina espírita, compilou uma série de orientações aos pais e educadores espíritas no livro

intitulado Educadores do Coração. Segundo o autor, a disciplina é essencial na educação das

crianças, assim como o estabelecimento de limites. Entretanto, ressalta que, além de instrução,

as crianças precisam educar o coração, o que é mais difícil. E vai além, quando afirma que a

educação se faz na prática, através dos exemplos dos pais e educadores e da orientação diária,

feita na convivência com os filhos.

Impossível combater as más tendências dos filhos, outorgando-lhes liberdade sem limites na infância, fase mais acessível ao desenvolvimento do espírito da disciplina. [...] Só haverá educação se ajudarmos a criança a caminhar na estrada produtiva da disciplina. (BARCELOS, 2003, p. 96-97).

No momento de realização da pesquisa, o funcionamento do CEV era garantido por sete

voluntários, sendo um profissional especializado: a psicóloga. Os demais voluntários realizam

tarefas de faxina, auxiliam as monitoras do maternal e auxiliam na secretaria. A dirigente da

creche também é voluntária. Existem oito funcionários contratados, sendo uma cozinheira,

uma pedagoga e seis monitoras.

É importante atentar para o fato de que a tendência verificada em outras organizações do

terceiro setor se mantém, garantindo os serviços prestados cotidianamente através de

funcionários contratados. Afinal, a creche não funciona sem as monitoras e sem a cozinheira,

que são contratadas. A utilização de mão-de-obra voluntária não elimina, portanto, a

utilização de funcionários contratados.

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A participação dos voluntários em qualquer atividade da Casa Espírita Cantinho de Amor é

disciplinada através do regimento interno da casa espírita. Todo freqüentador da casa espírita

deve dedicar no mínimo duas horas semanais a uma atividade social, enquanto voluntário.

Cada voluntário define o projeto no qual irá participar e antes de se iniciar nas atividades deve

fazer um treinamento. Anualmente é feita uma reciclagem cuja participação é obrigatória,

ficando o voluntário impedido de participar daquela atividade caso não compareça. Os

voluntários são fixos nas atividades com as quais se comprometem, mas alguns voluntários

participam de mais de um projeto. Em caso de necessidade, o voluntário pode ter uma falta

por mês. Caso necessite faltar mais de uma vez no mesmo mês ou duas vezes subseqüentes, é

necessário contatar os dirigentes da casa espírita, que analisarão a necessidade de substituição

temporária ou permanente daquele voluntário. Essas mesmas regras são seguidas pelos sete

voluntários da creche.

A estrutura da creche se enquadra no que Mintzberg (2003) configura como estrutura simples.

Essa configuração se caracteriza por ser pouco estruturada, com reduzida hierarquia gerencial,

inexistência de divisão de trabalho rigorosa e de sistemas de controle rígidos e formalizados.

Além disso, as atividades de planejamento e treinamento são utilizadas minimamente e as

decisões são centralizadas na cúpula estratégica que, no caso de CEV, é composta não apenas

pelo seu dirigente como pelo grupo gestor da casa espírita, chamado a participar em situações

extraordinárias.

Falconer (1999) ressalta que a governança é um dos aspectos fundamentais que diferenciam a

gestão do terceiro setor da gestão de outras organizações. No caso dessa creche estudada, a

governança se divide entre a direção da creche e a direção da casa espírita. Embora a divisão

de funções seja estabelecida de maneira informal, o fato mostra adesão às idéias preconizadas

por Falconer, principalmente no que diz respeito à atribuição de papel importante a um

conselho da organização, na estrutura de poder e tomada de decisão.

Como pôde ser observado, no CEV não há níveis intermediários entre o dirigente da creche e

os funcionários contratados e voluntários. A estrutura de apoio é bastante reduzida:

basicamente tem-se a tesouraria, que responde ao dirigente da organização de fins sociais. A

esse quadro acrescenta-se também o fato de que os controles existentes são informais,

realizados por supervisão direta ou pelos pares.

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A maioria das organizações tem uma estrutura simples em seus primeiros anos de formação,

mas posteriormente emergem estruturas mais complexas (MINTZBERG, 2003). Entretanto,

existem organizações que preferem manter uma estrutura simples ao longo de sua existência

por acreditar na eficácia e conveniência da comunicação informal. É o caso do CEV, que

possui mais de 25 anos de existência e ainda mantém essa configuração. Aliás, O'Neill (1998,

apud FALCONER, 1999) e Teodósio (2001a) identificam como uma das peculiaridades do

terceiro setor a adoção de estruturas mais enxutas.

4.2.3 Principais dificuldades enfrentadas pelo CEV

O relato das principais dificuldades encontradas pela organização do terceiro setor estudada

ao longo de sua história permitiu conhecer melhor tanto os desafios e situações delicadas

enfrentadas por uma organização desse tipo quanto suas reações face a essas situações, ora no

sentido de resolver os problemas postos, ora no sentido de minimizar seu impacto no

cotidiano da organização. Igualmente, foi possível analisar o impacto dos preceitos da

doutrina nessas reações.

As três entrevistadas foram unânimes em apontar os assaltos e suas conseqüências como os

maiores dificultadores da atuação da organização. Segundo as entrevistadas, nos primeiros

dois anos e meio de funcionamento, a creche foi assaltada cinco vezes. Em um desses assaltos

as paredes da creche foram sujas com mercúrio (que era utilizado para cuidar das feridas das

crianças). A polícia foi chamada, fez a vistoria no local e registrou a ocorrência. Quando

caminhava por uma parte mais erma do terreno, Dona Sônia percebeu que a tampa do poço

artesiano tinha sido violada. Desconfiada, mandou averiguar e descobriu que a água havia

sido envenenada com veneno para ratos e formicida. Foi necessário esvaziar toda a água do

poço e aumentar sua profundidade para que pudessem utilizar a água novamente. A creche

ficou fechada por alguns dias devido a esse incidente.

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Patrícia, filha de D. Sônia e ex-diretora da creche, acredita que esses assaltos aconteciam com

o objetivo de assustar aqueles que trabalhavam na organização, já que nada era roubado. A

entrevistada justificou seu ponto de vista argumentando que, sendo uma cidade de tradição

católica, a comunidade não via com bons olhos nem a doutrina espírita e muito menos uma

creche que, embora não levasse em seu nome a palavra espírita, era gerida por uma pessoa

conhecida na cidade como espírita. Dona Sônia era com freqüência chamada de feiticeira e

suas filhas sofriam com o preconceito; sua filha relata que na escola havia pais de colegas que

não permitiam que seus filhos convivessem com elas. Em algumas situações as pessoas

mudavam de calçada quando percebiam a presença de Dona Sônia.

O preconceito, portanto, foi uma das grandes dificuldades enfrentadas pela creche, segundo as

entrevistadas. As palavras de Patrícia são as seguintes:

Era uma questão de se impor como espírita numa cidade totalmente ao inverso. Então foi custoso, foi muito custoso. [...] Hoje eu praticamente nem sinto mais essa questão religiosa. Quer dizer, eu até penso que está quase ao contrário. Eu sinto o maior orgulho de falar que sou espírita porque as pessoas entendem hoje o que que é a doutrina espírita. Então mudou assim da água pro vinho. Em qualquer lugar que eu “tô” eu me coloco e encontro várias pessoas que mesmo que não sejam espíritas comungam das mesmas idéias. Eu acho que essa questão aqui mudou muito. Eu não sei, porque com as famílias muito tradicionais eu também não tenho muito contato. Mas no geral a questão religiosa hoje em dia [...] foi praticamente diluída.

O preconceito foi vencido com o passar dos anos, à medida que Dona Sônia, não cedendo à

pressão da sociedade, continuava seu trabalho social, que mais tarde foi reconhecido e ganhou

o respeito da comunidade da cidade. Fato que ilustra a notoriedade desse trabalho são os

diversos prêmios recebidos por Dona Sônia, alguns deles apresentados nas FIG. 4, 5 e 6.

FIGURA 4 – Diploma de Honra ao Mérito “Mariinha Moreira” - 2007 Fonte: arquivo pessoal de Dona Sônia

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FIGURA 5 – Placa referente a Destaque na Ação Social em 1996 Fonte: arquivo pessoal de Dona Sônia

FIGURA 6 – Medalha de Honra ao Mérito de 1996 Fonte: arquivo pessoal de Dona Sônia

É importante ressaltar a postura assumida pela creche diante dos assaltos relatados e de

atitudes de preconceito. Aparentemente Dona Sônia não entrou em confronto com a

sociedade, mas procurou, através do trabalho desenvolvido e dos resultados alcançados, obter

o respeito da comunidade. Em O Evangelho segundo o espiritismo, Kardec afirma o

seguinte:

[...] que maior glória lhe advém de ser ofendido do que de ofender, de suportar pacientemente uma injustiça do que de praticar alguma; que mais vale ser enganado do que enganador, arruinado do que arruinar os outros. E, ao mesmo tempo, a condenação do duelo, que não passa de uma manifestação de orgulho. Somente a fé na vida futura e na justiça de Deus, que jamais deixa impune o mal, pode dar ao homem forças para suportar com paciência os golpes que lhe sejam desferidos nos interesses e no amor-próprio. Daí vem o repetirmos incessantemente: Lançai para diante o olhar; quanto mais vos elevardes pelo pensamento, acima da vida material, tanto menos vos magoarão as coisas da Terra (KARDEC, 2002, p. 252).

A reação de Dona Sônia, em consonância com a doutrina espírita, demonstra sua confiança e

perseverança no trabalho que desenvolvia, e ao mesmo tempo se configura como um exemplo

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de paciência e resignação. Se tivesse feito de outra maneira, se revoltando, talvez a creche não

tivesse resistido, pois aqueles que atacavam a creche poderiam ter angariado simpatia junto à

comunidade e ter visto reforçado seu preconceito contra as atividades espíritas.

Outra dificuldade enfrentada pelo CEV nesses 27 anos de história, conforme explicitado por

Dona Sônia, foi a realidade social brasileira, o que, por outro lado, também justifica sua

própria existência. Segundo a entrevistada, a criança chega na creche, com pouquíssimas

exceções, mal amada, mal alimentada, suja, vítima de negligência, de maus tratos em casa,

trazendo consigo os vários traumas que caracterizam a realidade social das crianças desse

país. A creche, vendo as dificuldades específicas de cada criança, auxilia as famílias, na

medida do possível, indicando outros profissionais (psicólogos, neurologistas, psiquiatras)

que fornecem seus serviços gratuitamente. No entanto, existem pais que não recorrem a esses

profissionais, ou por não acreditarem na gravidade da situação ou por descaso quanto à saúde

dos filhos.

Este assunto também foi levantado por Sueli, atual dirigente do CEV, que fez o seguinte

relato:

Teve o caso de uma menina lá agora com problema de sexualidade terrível. Conversei com o pai. O pai é um velho alcoólatra. A mãe é uma senhora já, que adotou essa menina, que é filha da sobrinha. Ela morreu de rir das histórias que eu tava contando pra ela. Rindo! Falei: “Olha, a senhora tem que tomar uma providência, a senhora tem que ajudar a gente. Porque a primeira menstruação que essa menina tiver ela vai engravidar.” [E a mãe respondeu] “Ah... ela falou comigo, desde três anos ela falou comigo que ela ia ter um neném pra eu poder criar.” E ela acha lindo. [...] Ela [a menina] falou com a Nilma [monitora] que vai pra trás da caixa d’água brincar de fazer sexo. Quer dizer, onde é que essa menina aprendeu isso? A menina tem 5 anos. A menina é rebelde, indisciplinada, bate em todo mundo. Quando eu chamo ela pra conversar com ela, a menina berra, esperneia, faz aquela confusão toda. O que que a gente faz? Vou arrumar um psicólogo pra ela. E ai? Ela sai da creche e vai ficar lá. Eles moram num cubículo [...] com casa de um lado e do outro, galinha, cachorro, tudo solto lá. [...] Até a velha chegar do serviço ela fica lá no meio da bagunça. Agora, sai da creche e vai ficar a parte da tarde lá, porque ela vai pro grupo (escola regular) e vai ficar lá no meio da bagunça. Vai engravidar, não tenho a menor dúvida.

Segundo Dona Sônia, tais crianças, carentes tanto material quanto afetivamente, se não

auxiliadas, podem desenvolver-se à margem da sociedade, tendo dificuldades em se manter na

escola regular devido ao seu comportamento agressivo. Muitas vezes essas crianças acabam

tornando-se criminosos. É o desejo de alterar esse curso de vida que justifica a atuação da

creche, que no entanto sabe que sua influência é limitada, já que a criança também é educada

101

em sua família, muitas vezes apenas por sua mãe (que em alguns casos estão envolvidas com

a prostituição).

Um ponto ressaltado durante as entrevistas é que, quando saem da creche e entram para a

escola regular, as crianças passam a ficar mais tempo em casa. Se não houver ocorrido uma

mudança de hábitos da família, ao longo do tempo em que a criança estava na creche, todo o

trabalho desenvolvido pela organização se perde, já que a criança volta para um ambiente

hostil, com falta de perspectivas futuras, no qual retoma toda a sua agressividade. Para que o

trabalho da creche fosse mais bem sucedido, ele deveria envolver de modo mais completo

toda a família, o que no momento é impossível, devido à dificuldade de recursos humanos e

financeiros.

É importante ressaltar que, embora haja o desejo da creche de contribuir para o

desenvolvimento social das crianças e das famílias, muito do trabalho da creche se perde na

prática. As entrevistadas reconhecem o que tem que ser feito, mas constatam que a creche não

pode fazê-lo como desejado. A ação da creche é localizada, e por isso menos eficaz.

As entrevistadas acusam os órgãos públicos de ignorarem tal situação, não porque não

existam profissionais competentes na administração pública, mas por falta de visão e boa

vontade para buscar uma solução social e econômica para as famílias. O resultado é que os

serviços fornecidos pela creche acabam sendo pouco efetivos, em termos de promoção social.

Essa é uma realidade à qual a creche se tenta se adequar, apesar de reconhecê-la e criticá-la

durante a entrevista.

A tendência a compartimentar as ações sociais caracteriza em grande parte o funcionamento

do Estado, que trabalha geralmente com o indivíduo, e não com a unidade familiar ou social.

Assim, a ação com vistas ao desenvolvimento social acaba se restringindo, na prática, ao

assistencialismo. Nesse ponto entra a idéia da “intersetorialidade”, muito discutida na

atualidade.

As estruturas setoriais (do governo, que dividem as responsabilidades entre as secretarias: educação, saúde, cultura, esportes, etc) tendem a tratar o cidadão e os problemas de forma fragmentada, com serviços executados solitariamente, embora as ações se dirijam à mesma criança, à mesma família, ao mesmo trabalhador e ocorrem no mesmo espaço territorial e meio ambiente. Conduzem a uma ação desarticulada [...]. Contrapõe-se à setorialidade uma nova lógica que se refere

102

basicamente à população [...]. As prioridades neste caso são definidas a partir de problemas da população, cujo equacionamento envolve ações integradas de vários setores. Esta proposta supõe a articulação dos dois eixos: descentralização e intersetorialidade. [...] descentralização [...] é compreendido como transferência do poder de decisão para as instâncias mais próximas e permeáveis à influência do cidadão (refere-se ao terceiro setor) e [...] (intersetorialidade) diz respeito ao atendimento das necessidades desses mesmos cidadãos de forma sinérgica e integrada. (JUNQUEIRA; INOJOSA; KOMATSU, 1997).

A escassez de recursos é outra dificuldade que sempre esteve presente na história da creche.

Quando falta algum recurso (humano, material ou financeiro), o dirigente da creche na

ocasião entra em contato com amigos pessoais e solicita auxílio. Outra maneira de enfrentar a

escassez de recursos são as campanhas realizadas pela Casa Espírita Cantinho de Amor, como

almoços e jantares beneficentes e rifas. Essas ações não são regulares, e acontecem quando

surge a necessidade.

No ano de 2.000 houve uma tentativa mal sucedida da creche de garantir sua sustentabilidade

financeira através do lucro gerado por uma fábrica de telas e vassouras, criada e controlada

pela creche. No entanto, não havia disponibilidade de voluntários com conhecimento

gerencial para administrar a fábrica nem recursos para se contratar um profissional. A

empresa era muito pequena, sem penetração no mercado, sem poder de compra perante os

fornecedores e oferecia produtos de baixa qualidade, fatores que determinaram seu

fechamento depois de dois anos de funcionamento. Patrícia relata:

...um problema ainda existe que é o que a gente tentou consertar com a fábrica de tela e de vassoura. [...] Mas é uma coisa que depende de uma doação completa, como é o caso da mamãe. Mamãe doou a vida dela completamente para a entidade. Então aí funciona. Mas depois da mamãe ninguém mais tem esse tempo pra doar. O exercício de montar a fábrica de tela e vassoura [...] não funcionou por falta de ter uma pessoa de tempo integral. [...] E essa pessoa pra ser paga não dá. Na época tinha uma visão menor do que tem hoje, né? Quando todo mundo falava da gente fazer um plano e fazer pesquisa e ver se o produto era bacana ou não no mercado, eu não tinha a visão que eu tenho hoje. E eu fico vendo isso hoje quando eu pego alguma coisa pra fazer na minha vida profissional. Eu falo: Nó, fizemos tudo errado!

Ainda hoje a creche apresenta insuficiência de recursos, principalmente financeiros, para que

sejam realizadas reformas necessárias à conservação e adaptação do imóvel onde funciona o

CEV. Desde o começo de suas atividades, em 1981, o Centro Educacional Viver realizou

somente pequenos reparos em sua estrutura física. No entanto, como se trata de uma

construção de madeira, percebe-se a necessidade urgente tanto da recuperação de partes muito

103

danificadas, quanto de adequação das instalações para atender às exigências da legislação

referente às creches.

Atualmente, a manutenção das atividades da creche é possível graças às parcerias mantidas

com órgãos governamentais (QUADRO 16), tanto para reformas e ampliações pontuais como

para a obtenção de alimentos para as crianças e pagamento dos funcionários.

QUADRO 16 Parcerias do Centro Educacional Viver

Fonte: Elaborado pela autora

A parceria com o FUNDEB, que é mantido pelo MEC, cobre o pagamento de funcionários e a

manutenção das atividades cotidianas. Através do FIA a instituição recebe recursos para a

execução de pequenas obras, para as quais deve ser apresentado um Plano de Aplicação para

apreciação do Conselho da Criança e do Adolescente. Atualmente está em vigor o Plano de

Aplicação para a reforma de toda a rede elétrica do CEV. A Mesa Brasil SESC fornece

orientação nutricional e doa alimentos à creche quinzenalmente.

Em 2008 houve alteração no formato do convênio com o MEC (FUNDEB), que passou a

disponibilizar recursos, através da Prefeitura, para a manutenção do CEV e para a realização

das adaptações exigidas pela lei em sua estrutura física. Até então, essa verba era insuficiente

para cobrir as despesas mensais, que eram complementadas pelas iniciativas para angariar

fundos, efetuadas pela casa espírita.

104

Como já mencionado, a diretriz do MEC é ter todas as instituições de ensino de pré-escola do

Brasil regulamentadas dentro de aproximadamente três ou quatro anos. Para isso, exigências

são feitas às instituições parceiras do MEC: elas devem empregar um profissional formado em

pedagogia, devem possuir monitores formados ou em formação, ter sua situação burocrática

regulamentada no MEC e adotar um regimento interno onde conste cláusula de inclusão

social.

Patrícia, filha de Dona Sônia, considera que o poder público utiliza uma forma de raciocínio

única para equacionar problemas e atender às necessidades de toda e qualquer entidade,

desconsiderando as características peculiares de cada organização. Por exemplo, a exigência

de que a creche acolha crianças especiais (cláusula de inclusão social) desconsidera a

impossibilidade de a creche fazê-lo presentemente, por falta de estrutura física e humana para

tal.

Por outro lado, Dona Sônia, fundadora da creche, acredita que exista um descompasso entre o

que ela mesma idealizava para a creche e as exigências do MEC.

Mudou tudo agora, a feição da creche. A creche antigamente era um lar para as crianças, né? Eu que fazia o cardápio, eu era psicóloga, eu era pedagoga, era tudo lá. Chamava a atenção dos meninos, mãe não falava palavrão; no meu tempo mãe não falava palavrão no portão da creche. Foi um tempo assim que era um lar, não é só para as crianças, é para as mães também. Agora hoje mudou. Acho que é por causa do progresso, né? Nós somos cadastrados no MEC e o MEC agora quer implantar lá o sistema de escola. Então nós estamos nesta transição. Como é que nós vamos fazer para atender o ideal da creche e para atender as exigências do MEC? [...] Não podemos deixar de seguir as linhas do progresso, mas não queremos deixar morrer o ideal de creche, de lar, de proteção, além da informação que é dada à criança. [...] Qual é a diferença da creche para a escola? Porque na creche a criança fica o dia todo, é o segundo lar delas. Então lá você corta cabelo, você cuida dos piolhos, você conversa com as crianças. A proteção é mais individual, não é global.

É importante observar a mudança do caráter pessoal, da assistência individual, para o modelo

de escola imposto pelo MEC, que pode ser mais estruturado, mas é mais impessoal. Nesse

sentido, a creche experimenta, no processo imposto de sua profissionalização (que

eventualmente pode até ser benéfico para os assistidos) o receio da despersonalização do

trabalho junto às crianças.

105

Por outro lado, há a frustração pessoal da fundadora da creche, com a descentralização do

poder do dirigente e sua perda de controle direto sobre o funcionamento da organização. A

reação de Dona Sônia é compreensível, já que ela esteve à frente da creche durante vários

anos e ainda se envolve nos assuntos da organização, que se apresenta a ela com um grande

apelo sentimental. A creche é por ela considerada como uma extensão de sua casa e com as

novas normas estabelecidas pelo MEC ela sente que seus ideais estão ameaçados.

Então a creche pra mim era igual minha casa. Como eu não tinha capacidade pra fazer nada diferente, a creche funcionava igual funcionava minha casa. Como é que eu queria tratar dos meus filhos? Como é que seria eu chamar atenção de uma criança, do meu filho? Então tudo eu fazia lá como se fosse meu filho. Então era a minha família. Agora, com a entrada da escola, a creche foi inundada de burocracia. E isso está me assustando, sabe? Isso está me assustando, mas eu também não posso virar as costas pro progresso. A vida anda. As coisas vão encaminhando. Só que eu acho que a minha noção de creche ela não pode ser perdida. Porque, vamos dizer assim, é o mel que adoça as outras coisas, entendeu?

Uma conseqüência importante da transformação da creche em pré-escola ligada ao poder

público, conforme o entendimento de Patrícia, é a possível obrigatoriedade do recebimento de

qualquer criança e não apenas daquelas que apresentam dificuldades financeiras e problemas

na família. O mesmo se aplica à exigência imposta pela creche de que as mães trabalhem.

Segundo Patrícia, todo o trabalho desenvolvido pela creche se volta hoje para a criança

carente, e não para qualquer criança. Por exemplo: a alimentação da creche é preparada para

suprir a necessidade daquela criança que não come em casa. Patrícia apresenta o seguinte

depoimento, bastante revelador da diferença de postura exigida pelo MEC:

É como se eles estivessem comprando o nosso sonho [...]. Estão impondo o desejo deles e fazendo com que a gente desista dos nossos sonhos. Porque são ambíguos, são completamente diferentes. [...] E não fazem nem com delicadeza, eles não estão achando que estão lidando com um sonho, não sabem o que tem por trás. Eles entram e arrebentam. Entram lá e tratam a creche como empresa, e não é. A creche foi construída em cima de um sonho. Ela é um sonho [...] Quem mantém a creche não mantém por dinheiro. É um trabalho voluntário, é um tempo doado em razão de uma causa.

Por outro lado, as entrevistadas reconhecem que a parceria com a esfera pública é

fundamental para a sobrevivência da organização e que, com sua efetivação, a creche deverá

seguir as exigências do órgão público parceiro. No entanto, como as regras foram

estabelecidas pelo MEC em 2008 e ainda não estão muito claras, optou-se por aguardar as

diretrizes do MEC para 2009 para então decidir o que será feito com relação à creche. Patrícia

acredita, no entanto, que a creche já começou a perder as bases que inspiravam e

106

fundamentavam seu trabalho, descaracterizando-o ao deixar de lado aspectos fundamentais de

sua finalidade. Ela comenta, por exemplo, que “as funcionárias começaram a ter postura de

funcionário que cumpre carga horária”. Novamente Patrícia apresenta outro depoimento

revelador, que sugere um atual comprometimento emocional dos dirigentes da creche que

pode se perder diante da burocratização:

Se a criança chorar no horário de almoço, paciência... [...] Começaram a trabalhar como uma indústria, uma fábrica, e não como um local aconchegante onde as crianças se sentiam mais em casa. [...] No que a Prefeitura massifica e impõe regras, as monitoras não podem ser mais aquelas escolhidas pelo coração, tem que ser aquelas escolhidas pela condição de sapiência. E aí pronto, a gente não tem mais como fazer com que o sonho dê certo; porque a gente perde isso no dia-a-dia.

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas ainda hoje, as entrevistadas afirmam que, ao

longo de sua existência, a creche alcançou o resultado esperado, referindo-se sempre ao efeito

da creche na vida das crianças que acolheu. As entrevistadas relataram histórias muito

positivas, de crianças que se tornaram adultos trabalhadores, que conseguiram formar uma

família, conseguiram se manter vivas. Segundo Dona Sônia, “o trabalho de formar pessoas

dignas na sociedade é o maior valor da creche”. Patrícia apresenta o seguinte comentário:

Acontece sempre que a gente encontra um menino da creche na rua. [...] Outro dia foi um no bazar, acompanhando a esposa. Chegou lá e falou assim: - Gente, mas eu já tive na creche. - É mesmo? Você se lembra de mim? - Claro que lembro! Lembro de você, da Carla... Que bacana! Um rapagão, com três meninas, comprando no bazar e que lembrava da gente. Isso é uma coisa tão bacana! Você ver que o cara está trabalhando hoje, numa peleja danada, mas trabalhando e com três crianças, com mulher e com três menininhas [...] Hoje até estar vivo nesta idade é bacana, já é uma referência bacana. [...] A gente vive encontrando com eles e eles vivem gritando “Oi tia Patrícia, oi vovó Sônia”, qualquer lugar eles gritam a gente, e é muito gostoso. (Patrícia)

Sueli, atual dirigente da creche e irmã de Dona Sônia, afirma que a melhor coisa que

aconteceu foi o reconhecimento da creche pela sociedade. Ela não se refere ao

reconhecimento como reputação positiva adquirida pela creche, mas ao reconhecimento da

contribuição pessoal de Dona Sônia à sociedade e ao reconhecimento da própria doutrina

espírita, que experimentou uma difusão muito grande na cidade. “Eu acho que isso foi uma

conquista muito grande.” A entrevistada completa, dizendo que assim mais pessoas aderiram

à causa da ação social dirigida às crianças:

107

E outras coisas, por exemplo, o prefeito que teve aí antigamente, o Bilé. O Bilé ele ofereceu voluntariamente para fazer aquela expansão da creche lá trás. [...] E isso não é pelo fato dele ter feito uma avaliação material, dizer: ‘Ah, a creche ficou mais bonita’. Não. Porque isso beneficiou as crianças e teve condição de ampliar o número de crianças que foram atendidas. Entendeu? Então são essas coisas que vêm acontecendo e vêm acontecendo regularmente. [...] As pessoas levam, doam, chegam lá e falam pra gente: ‘Olha aqui, nós “tamo” trazendo isso aqui porque a gente sabe que vai ser bem encaminhado’.

4.2.4 Relação entre o funcionamento e a gestão da organização e a doutrina espírita

Ao longo das entrevistas realizadas com as três entrevistadas ficaram patentes características

do funcionamento e da gestão da creche que se justificam ou se inspiram nos fundamentos da

doutrina espírita. Entre essas características estão o ideal de promoção social das crianças

atendidas pela creche, a exigência de que as mães trabalhem para que se desenvolvam

pessoalmente e profissionalmente, a participação constante de voluntários incitada e

controlada pela Casa Espírita Cantinho de Amor e a disciplina exigida às crianças e mães.

Quando indagada explicitamente sobre a influência da doutrina espírita sobre a gestão da

creche, Patrícia, filha de Dona Sônia, afirma que não há como separar a gestão da creche dos

fundamentos da doutrina espírita, uma vez que ambos estão intrinsecamente ligados. Como

exemplo de sua afirmação, a entrevistada relata que houve uma época em que havia

funcionários na creche que não eram contratados, e isso incomodava muito a direção da casa

espírita. Era um conflito, pois a creche não tinha condição financeira para manter funcionários

contratados, mas ao mesmo tempo não achava certo não contratá-los, pois isso era ilegal.

“Portanto, a creche não estava agindo de acordo com os preceitos do homem de bem.” Com o

passar do tempo, todas as funcionárias foram contratadas e hoje não existem mais

funcionários sem carteira assinada na creche.

Patrícia comenta ainda que às vezes é difícil tomar algumas decisões na gestão da creche, e

que é preciso que a decisão esteja de acordo com as idéias do gestor, com suas crenças e seus

conceitos. No caso do CEV, todos os gestores estão e estiveram imbuídos dos princípios da

doutrina. No entanto, a entrevistada afirma que a reação do gestor diante de uma determinada

situação também é muito pessoal. As pessoas são diferentes, umas são mais emocionais e

outras mais racionais. E a personalidade do gestor da creche também influi na tomada de

108

decisão. Por exemplo, Sueli é apresentada como sendo mais objetiva e mais preocupada com

assuntos administrativos que Dona Sônia. Dona Sônia, na visão dos entrevistados, é mais

dócil e carismática. As crianças da creche a chamam de “Vó Sônia”. Por isso, na sua gestão a

creche tenderia a ser mais humana, assemelhando-se a um lar, à casa de uma avó.

Sueli relaciona a maneira de gerir a creche com os princípios da doutrina espírita da seguinte

forma:

O que é básico lá na creche, que a gente procura passar, eu recebi isso da Sônia e todo mundo que trabalha lá tem, é que nós temos que tratar aquelas crianças como se fossem nossas. É um irmão em humanidade. A gente procurar ver aquelas crianças como se fossem nossos irmãos e dar o melhor pra elas em todos os aspectos, né? Esse é o ponto. Apesar de ter exceções, as pessoas que trabalham como voluntários na creche elas têm um vínculo com nossa casa espírita. Por que? Pra que elas não levem idéias que não sejam as nossas idéias. Por exemplo, de como conduzir com a criança, tipo de castigo, de punição. Às vezes nós damos uma aula de evangelização pras crianças, mas não é direcionada especificamente a doutrina espírita. Nós não damos aula de reencarnação. Quer dizer, dá aula de evangelização procurando passar pras crianças os valores morais que toda religião prega.

Na creche, as crianças são vistas como pertencentes a uma família, como filhos, como netos.

Segundo os relatos, quando a criança tem um problema, procura-se saber o motivo. Portanto,

o vínculo que se busca estabelecer com a criança é afetivo, pessoal e particular, o que se

sustenta, segundo Dona Sônia, pelos preceitos de amor interpessoal defendido pela doutrina

espírita. Veja-se a esse respeito o relato de D. Sônia:

E nisso entra a nossa visão religiosa do “amai-vos uns aos outros”. [...] Acho que é essa diferença aí que faz com que a nossa visão religiosa espírita faça efeito. Porque na realidade essas crianças precisam de amor. Tudo o que elas demonstram de rebeldia é carência afetiva de dentro do lar.

Os dados apresentados nessa etapa da pesquisa indicam que a idéia de criar a creche não

partiu da casa espírita, embora sua fundadora, Dona Sônia, tenha aceitado o desafio e

dedicado sua vida à organização, figurando como sua dirigente durante 25 anos. As parcerias

com os órgãos públicos sempre existiram na história da creche e ainda hoje estão presentes,

sendo responsáveis pela continuidade de seu funcionamento. A casa espírita se implica

financeiramente somente para completar os recursos obtidos através das parcerias e em casos

de necessidade. Por outro lado, há um claro vínculo hierárquico que submete a creche ao

conselho diretor da casa espírita, principalmente em relação a questões estratégicas, que

109

envolvem maiores investimentos ou reorientações administrativas. Na gestão cotidiana da

creche, contrariamente, seu dirigente goza de autonomia. Fato que merece destaque é que a

participação voluntária dos freqüentadores da casa espírita na creche só ocorreu há

aproximadamente 10 anos, por incitação de Dona Sônia. A participação dos voluntários é

controlada pela casa espírita, e suas atividades lhes são designadas pela dirigente da casa.

Dificuldades que o CEV enfrentou durante sua existência foram mencionadas pelas

entrevistadas: o preconceito em relação ao fato de a creche estar ligada a uma casa espírita; a

dimensão dos problemas sociais brasileiros, que limitam e mesmo tornam ineficazes as ações

da creche em relação ao desenvolvimento social; a obtenção de recursos e a adequação às

exigências dos parceiros públicos. Mesmo diante desses desafios, a creche persistiu em seu

trabalho social e insiste na preservação de sua autonomia face às fontes financiadoras. Tal

trabalho aporta como principais resultados o efeito positivo na vida das várias crianças que

foram atendidas e uma maior implicação da comunidade com os problemas sociais.

A creche foi criada com o objetivo de fazer com que crianças desfavorecidas tivessem as

mesmas oportunidades que crianças cujas famílias são estruturadas e apresentam melhor

situação econômica. A organização apresenta, portanto, um objetivo de desenvolvimento

social que vai além da assistência social, voltando-se também à organização familiar,

incentivando as mães ao trabalho e fazendo com que as famílias desenvolvam aspectos

relacionados à disciplina, elementos que se justificam igualmente pela concretização dos

princípios da doutrina espírita. Embora ainda de maneira incipiente, observa-se que há uma

preocupação com a profissionalização das atividades desenvolvidas no CEV.

A influência dos princípios da doutrina espírita (sobretudo da Lei de Sociedade, da Lei do

Trabalho e da Lei de Justiça Amor e Caridade) é preservada pela centralização de poder na

figura do dirigente da creche (dirigente escolhido pelo grupo gestor da casa espírita), pela

participação da direção da casa espírita na tomada de decisões estratégicas da creche e pela

participação dos freqüentadores da casa espírita, como voluntários da organização de fins

sociais.

110

5 CONCLUSÃO

Devido ao alcance cada vez maior das iniciativas promovidas pelas organizações do terceiro

setor na sociedade, e tendo em vista o vínculo que algumas dessas organizações apresentam

com a doutrina espírita, este estudo foi realizado a fim de caracterizar as organizações do

terceiro setor ligadas às casas espíritas e avaliar a influência dos fundamentos da doutrina

espírita em suas práticas de funcionamento. Para isso, foram escolhidas como objeto de

estudo as casas espíritas de uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, e as

organizações de fins sociais a elas ligadas.

Para atingir o objetivo pretendido, foi utilizada uma metodologia qualitativa descritiva em três

etapas: na primeira etapa foi realizada uma entrevista com o Presidente da Associação

Municipal Espírita da cidade para levantar dados acerca do movimento espírita, arrolando

informações que complementaram o quadro teórico da pesquisa; na segunda etapa foi

realizada uma sondagem em 12 das 13 casas espíritas da cidade para identificar as

organizações de fins sociais por elas mantidas e caracterizar seu funcionamento; e na terceira

etapa foi desenvolvido um estudo de caso em uma organização ligada a uma das casas

espíritas abordadas, a fim de conhecer em profundidade particularidades da gestão dessa

organização, bem como seus processos de criação e funcionamento.

Foram identificadas atividades sociais realizadas por todas as casas espíritas entrevistadas,

mas a maioria delas opta por empreender projetos sociais não estruturados em organizações.

Não foi constatada uniformidade em relação aos projetos realizados, percebendo-se variações

quanto ao seu objeto, ao público, ao formato, à periodicidade e ao seu escopo.

Foram identificadas apenas quatro organizações de fins sociais ligadas às casas espíritas

abordadas, de acordo com os critérios definidos nesta pesquisa. Entretanto, somente duas

dessas organizações possuem CNPJ distinto do CNPJ da casa espírita. O público atendido

também difere: três organizações se voltam para o atendimento de crianças, caracterizando-se

como creches, e uma organização se dedica ao atendimento de idosos, caracterizando-se como

casa de repouso. Percebe-se solidez nas organizações de fins sociais mantidas pelas casas

111

espíritas, já que a creche mais nova abordada existe há mais de 15 anos e a casa de repouso

está em funcionamento há mais de seis anos.

Não há obrigatoriedade de vínculo dos funcionários contratados ou dos voluntários das

organizações de fins sociais com a casa espírita, embora se constate tal situação em algumas

das organizações estudadas. Ainda que se verifique a presença de numerosos voluntários

nessas organizações, nas mais diversas funções, as atividades cotidianas são asseguradas pelo

emprego de funcionários contratados (nem sempre no regime CLT). A escolha do dirigente da

organização é feita pela casa espírita, devendo o dirigente ser trabalhador atuante da casa

espírita, o que viabiliza, em grande parte, a influência da casa espírita na organização de fins

sociais. Apenas em uma das creches o dirigente é remunerado.

No que se refere aos recursos financeiros, 70% dos recursos das creches são oriundos de

parcerias com órgãos públicos, destacando-se a Mesa Brasil SESC, o FUNDEB e o FIA.

Somente na casa de repouso a obtenção de recursos através de parcerias é pouco expressiva,

tendo em vista a carência de políticas públicas voltadas a esse público. Sua principal fonte de

recursos é proveniente da contribuição mensal dos assistidos. Campanhas de arrecadação de

fundos das casas espíritas e doações de outras instituições públicas e do terceiro setor

complementam os recursos dessas organizações de fins sociais.

Portanto, não há uniformidade nas organizações de fins sociais estudadas no que se refere ao

público atendido, à distinção jurídica em relação à casa espírita, à proveniência de recursos,

ao vínculo de funcionários e voluntários com a casa espírita e à remuneração dos dirigentes.

Essa ausência de uniformidade pode ser explicada devido à ausência de diretivas e controle

por parte dos órgãos relacionados à estruturação do movimento espírita, tais como a

Associação Municipal Espírita, a União Espírita Mineira e a Federação Espírita Brasileira, o

que pode ser debitado à prática do livre-arbítrio (Lei de Liberdade), defendida pela doutrina

kardecista.

O estudo de caso realizado junto ao Centro Educacional Viver – CEV revelou que, ainda que

ligado à Casa Espírita Cantinho de Amor, a idéia de criar a creche partiu da iniciativa de um

particular, que fez a doação das instalações físicas. No entanto, sua fundadora, que esteve à

frente da organização de fins sociais durante 25 anos, é fortemente ligada à direção da casa

112

espírita, assim como as diretoras que a sucederam na creche. A sobrevivência do CEV durante

seus 28 anos de funcionamento foi garantida através de parcerias com órgãos públicos, sendo

que, havendo escassez de recursos, a casa espírita se mobiliza para angariá-los.

A influência da casa espírita no CEV não se faz, portanto, através do seu aporte financeiro,

mas através do dirigente da organização, que é escolhido pelo grupo gestor da casa espírita. O

grupo gestor, ao qual o dirigente deve prestar contas, também emite decisões sobre os

assuntos estratégicos da organização, como novos investimentos e reorientações

administrativas. Além disso, a influência da casa espírita é assegurada pela participação de

trabalhadores da casa espírita, na qualidade de voluntários, sendo que esse tipo de dinâmica

foi intensificado nos últimos 10 anos. No entanto, é importante ressaltar que na gestão

cotidiana da creche a autonomia do dirigente é garantida.

As principais dificuldades enfrentadas pelo CEV, listadas pelas entrevistadas, foram as

seguintes: o preconceito enfrentado pela organização de fins sociais pelo fato de estar ligada a

uma casa espírita; a situação social do Brasil, que limita a efetividade do trabalho da creche; a

obtenção de recursos; e a adequação da creche às exigências dos parceiros públicos, que por

vezes ameaçam a autonomia dessa organização, autonomia essa que tem sido tenazmente

defendida. Apesar dessas dificuldades, foram citados resultados positivos obtidos pelo

trabalho realizado pela creche, relacionados ao efeito da creche no desenvolvimento das

crianças atendidas e ao maior envolvimento da comunidade em problemas sociais.

Foram constatadas na creche iniciativas de promoção social, no sentido de oferecer às

crianças carentes as mesmas condições de desenvolvimento propiciadas às crianças

pertencentes a famílias em situação financeira favorável. O objetivo de desenvolvimento

social também se revela através da preocupação da creche com a organização familiar das

crianças atendidas, exigindo que as mães tenham um trabalho remunerado e desenvolvendo

aspectos relacionados à ordem e à disciplina. Dessa forma, não obstante o fato de que os

entrevistados da pesquisa caracterizaram as atividades desenvolvidas nas organizações

abordadas como assistenciais, na prática verificou-se que essas organizações sempre se

preocuparam e atuaram no sentido de proporcionar o desenvolvimento social, o que vem ao

encontro da atual orientação das organizações do terceiro setor.

113

Através da pesquisa percebe-se grande aderência do trabalho realizado nas organizações de

fins sociais aos princípios da doutrina espírita. Verifica-se a aplicação da Lei do Trabalho à

medida que as creches incentivam as mães das crianças a exercerem uma atividade com

finalidade útil, qual seja, a manutenção do seu sustento e o de sua família. Ao mesmo tempo,

essa iniciativa visa à formação de um ambiente familiar mais saudável para as crianças, que

após completarem seis anos de idade ficarão mais tempo em contato com a família. Por outro

lado, existe a preocupação em oferecer às crianças uma condição de vida semelhante àquela

das crianças criadas em ambientes mais favoráveis, principalmente no que se refere à saúde,

alimentação e educação, o que se sustenta na aplicação da Lei de Sociedade. Ao visualizar as

crianças como membros de suas famílias, as gestoras das creches deixam transparecer a

influência da Lei de Amor, Justiça e Caridade. Conforme mencionado pelos entrevistados,

“fora da caridade não há salvação” (repetindo KARDEC, 2002, p. 312), ou seja, não é

possível amar a Deus sem praticar a caridade. A manutenção de projetos e organizações de

fins sociais configura-se assim como a concretização dos princípios da doutrina espírita.

Percebe-se por isso o alinhamento das casas espíritas quanto à necessidade de manutenção de

ações sociais.

É importante ressaltar que esta pesquisa foi realizada no universo de treze casas espíritas,

localizadas numa única cidade, da região metropolitana de Belo Horizonte, e que o estudo em

profundidade foi conduzido em uma dessas casas. Seu escopo é portanto limitado, mas

espera-se que estimule a produção de outros estudos sobre o tema, envolvendo casas espíritas

e organizações de fins sociais a elas ligadas em outras cidade e até mesmo em outros Estados.

Esta pesquisa abre espaço igualmente para o estudo de outros aspectos relacionados às

organizações do terceiro setor ligadas à doutrina espírita, como o perfil dos voluntários das

organizações de fins sociais espíritas, as estratégias adotadas por tais organizações para fazer

frente às exigências dos parceiros, conciliando-as com seus objetivos, e o impacto das

diretrizes do MEC na profissionalização das creches espíritas.

Acredita-se que as contribuições deste estudo são fundamentais para o movimento espírita,

principalmente para a AME, que não dispõe de informações sobre as atividades sociais

desenvolvidas nas casas espíritas da cidade. A partir desta pesquisa essa associação poderá

orientar e mesmo promover o trabalho em rede dessas organizações, a fim de beneficiar as

próprias organizações. Mesmo durante a realização da pesquisa, evidenciou-se seu impacto

114

positivo nas casas espíritas envolvidas, que demonstraram inteirar-se de possibilidades de

aprimoramento em sua gestão, como o exercício de um maior controle, principalmente no que

se refere a informações estatísticas e financeiras.

O estudo também oferece pistas para o setor público a respeito do estreitamento de suas

relações com o terceiro setor, bem como sobre a necessidade de busca de modelos de gestão

alternativos e flexíveis que possibilitem o alinhamento entre os objetivos das várias

organizações de fins sociais e as expectativas de resultados por parte dos órgãos

governamentais.

Espera-se, por fim, que a comunidade acadêmica também se beneficie deste estudo, na

medida em que esta dissertação trata de um tema pouco explorado, mas que tem se destacado

como um desafio para o terceiro setor, no que tange à sua relação com as várias orientações

religiosas e filosóficas existentes.

115

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120

APÊNDICE A

Questionário

121

122

123

APÊNDICE B

Roteiro de Entrevista

1) Como foi fundada a instituição? (Como surgiu a idéia, como foram obtidos os recursos

materiais e humanos?)

2) Como funciona a instituição, como se organiza na prática?

3) Quais os maiores problemas enfrentados na história da instituição e como foram

solucionados?

4) Quais os eventos marcantes na vida da instituição?

5) Como você correlaciona as práticas de gestão da instituição com os fundamentos da

doutrina espírita?