postone repensando a critica de marx ao capitalismo

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 18/04/11 16:11 Moishe Postone - Repensando a critica de Marx ao capitalismo... Página 1 de 29 http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/outros/postone_01.htm  TEXTOS Crítica do Trabalho Repensando a crítica de Marx ao capitalismo  Moishe Postone INTRODUÇÃO Neste trabalho, desenvolverei uma reinterpretação fundamental da teoria crítica madura de Marx a fim de reconceituar a natureza da socieda de capitalist a. A anális e de Marx das relações sociais e das formas de dominaç ão que carac teriza m a sociedade capitalista pode ser mais proveitosa mente reinterpretada pelo repensar das categorias centrais de sua crítica à economia política. (1) Com este objetiv o, procurarei desenvolver conceitos que preench am dois critéri os: primeiro, que os mesmos devem apreen der o caráte r essenci al e o desenvo lviment o histórico da socieda de moderna; e, segundo, serem capaz es de superar as famili ares dicotomias teóricas entre estrutura e funcio namento, signifi cado da vida e vida material . Com base nesta abordagem, tentarei reformu lar a relação entre a teoria marxia na e os atuais discurs os da teoria polít ica e social, de uma forma tal que tenha signifi cação teóric a, hoje, e forneça uma críti ca básica às teorias marxistas tradi cionais e ao que foi denominado de "socialis mo realmente existente". Ao fazer isto, espero lançar os fundamentos de uma anális e crítica da formaçã o social capit alista , diferen te e mais poderosa; uma crítica mais adequada ao final do Século XX. Tentare i desenvolver tal compreensã o do capitalismo com base na anális e de Marx, distingui ndo conceit ualment e o núcleo fundamenta l do capita lismo, na atualidad e, das formas que assumia no Século XIX. Fazer isso signifi ca questi onar muitos dos pressup ostos básicos das interpreta ções marxistas tradicionais. Por exempl o, não analiso o capita lismo, primordi alment e, em termos da proprie dade privada dos meios de produçã o ou em termos do mercado. Ao contrário, como se tornará claro mais adiante, conceituo o capita lismo em termos de uma forma historicament e especí fica de interdep endênci a, com um caráter impessoal e aparen temente objetivo . Esta forma de interdependência concretiza-se através de formas das relações sociais historicamente específicas, que são constit uídas por formas determinadas de prátic a social e, além disso, tornam-se quase independ entes das pessoas engaja das nessas prática s. O resultado é uma forma de dominação social nova e cresce ntemente ab strata - uma forma que subordina as pessoas a imperat ivos estruturais impesso ais e a restrições que não podem ser adequadamente cap tadas em termos de dominação concret a (e. g., dominação pessoal ou de grupo) e que gera uma dinâmic a histórica progressiva. Ao reconceituar as relações e as formas de dominação que caracterizam o capita lismo, tentar ei fornecer  bases para uma teoria capaz de analisar as características sistêmicas da socied ade moderna, tais como, seu caráter historicamente dinâmico, seus processos de racionalização, sua forma particular de "crescimento" econômico e seu modo de produzir dominante. Esta reinterpreta ção trata a análise do capita lismo desenvolvi da por Marx menos como uma teoria das formas de exploraçã o e de dominação no interior da sociedade moderna, e mais como uma teoria social crítica da própria nat ureza da modernida de. Modernidade não é um estágio evoluci onário na direçã o da qual evoluem todas as socieda des, mas uma forma especí fica de vida social que se originou na Europa Ocidental e tem se desenvol vido como um sistema glob al complexo. (2) Embora a modernidade tenha tomado diferentes formas em diferentes países e regiões, minha preocupação não é examin ar estas diferenç as, mas explorar, teoricame nte, a natureza da modernid ade  per se. Dentro do quadro de uma abordagem não-evolucionária, tal investig ação deve explicita r e explicar a feição carac terísti ca da modernida de, naquilo que se relaciona a formas sociai s histori camente específic as. Meu argumento é que a análise de Marx acerca das formas sociais considera das básicas para a estrutur ação do capitalismo - a mercado ria e o capita l - fornece um excel ente ponto de partida para a tentati va de aprofu ndar socialmente o entendimento das carac terísti cas sistêmicas da modernid ade e sinali za no sentido de ue a soc iedade moderna ode ser f undamentalmente transf ormada. Além

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nesse texto ponstone trata acerca de uma necessária recategorização do trabalho abstrato

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  • 18/04/11 16:11Moishe Postone - Repensando a critica de Marx ao capitalismo...

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    TEXTOS Crtica do Trabalho

    Repensando a crtica de Marx ao capitalismo

    Moishe Postone

    INTRODUO

    Neste trabalho, desenvolverei uma reinterpretao fundamental da teoria crtica madura de Marx a fimde reconceituar a natureza da sociedade capitalista. A anlise de Marx das relaes sociais e dasformas de dominao que caracterizam a sociedade capitalista pode ser mais proveitosamentereinterpretada pelo repensar das categorias centrais de sua crtica economia poltica. (1) Com esteobjetivo, procurarei desenvolver conceitos que preencham dois critrios: primeiro, que os mesmosdevem apreender o carter essencial e o desenvolvimento histrico da sociedade moderna; e, segundo,serem capazes de superar as familiares dicotomias tericas entre estrutura e funcionamento,significado da vida e vida material. Com base nesta abordagem, tentarei reformular a relao entre ateoria marxiana e os atuais discursos da teoria poltica e social, de uma forma tal que tenhasignificao terica, hoje, e fornea uma crtica bsica s teorias marxistas tradicionais e ao que foidenominado de "socialismo realmente existente". Ao fazer isto, espero lanar os fundamentos de umaanlise crtica da formao social capitalista, diferente e mais poderosa; uma crtica mais adequada aofinal do Sculo XX.

    Tentarei desenvolver tal compreenso do capitalismo com base na anlise de Marx, distinguindoconceitualmente o ncleo fundamental do capitalismo, na atualidade, das formas que assumia noSculo XIX. Fazer isso significa questionar muitos dos pressupostos bsicos das interpretaesmarxistas tradicionais. Por exemplo, no analiso o capitalismo, primordialmente, em termos dapropriedade privada dos meios de produo ou em termos do mercado. Ao contrrio, como se tornarclaro mais adiante, conceituo o capitalismo em termos de uma forma historicamente especfica deinterdependncia, com um carter impessoal e aparentemente objetivo. Esta forma deinterdependncia concretiza-se atravs de formas das relaes sociais historicamente especficas, queso constitudas por formas determinadas de prtica social e, alm disso, tornam-se quaseindependentes das pessoas engajadas nessas prticas. O resultado uma forma de dominao socialnova e crescentemente abstrata - uma forma que subordina as pessoas a imperativos estruturaisimpessoais e a restries que no podem ser adequadamente captadas em termos de dominaoconcreta (e. g., dominao pessoal ou de grupo) e que gera uma dinmica histrica progressiva. Aoreconceituar as relaes e as formas de dominao que caracterizam o capitalismo, tentarei fornecerbases para uma teoria capaz de analisar as caractersticas sistmicas da sociedade moderna, tais como,seu carter historicamente dinmico, seus processos de racionalizao, sua forma particular de"crescimento" econmico e seu modo de produzir dominante.

    Esta reinterpretao trata a anlise do capitalismo desenvolvida por Marx menos como uma teoria dasformas de explorao e de dominao no interior da sociedade moderna, e mais como uma teoriasocial crtica da prpria natureza da modernidade. Modernidade no um estgio evolucionrio nadireo da qual evoluem todas as sociedades, mas uma forma especfica de vida social que se originouna Europa Ocidental e tem se desenvolvido como um sistema global complexo. (2) Embora amodernidade tenha tomado diferentes formas em diferentes pases e regies, minha preocupao no examinar estas diferenas, mas explorar, teoricamente, a natureza da modernidade per se. Dentro doquadro de uma abordagem no-evolucionria, tal investigao deve explicitar e explicar a feiocaracterstica da modernidade, naquilo que se relaciona a formas sociais historicamente especficas.Meu argumento que a anlise de Marx acerca das formas sociais consideradas bsicas para aestruturao do capitalismo - a mercadoria e o capital - fornece um excelente ponto de partida para atentativa de aprofundar socialmente o entendimento das caractersticas sistmicas da modernidade esinaliza no sentido de que a sociedade moderna pode ser fundamentalmente transformada. Alm

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    sinaliza no sentido de que a sociedade moderna pode ser fundamentalmente transformada. Almdisso, tal abordagem capaz de sistematizar a elucidao daquelas caractersticas da sociedademoderna, que no quadro das teorias de progresso linear ou de desenvolvimento histrico harmnicopodem parecer anmalas. Essas teorias so incapazes de explicar a visvel e crescente produo dapobreza em meio abundncia e o grau em que importantes aspectos da vida moderna tm sidomodelados e subordinados aos imperativos de foras sociais abstratas e impessoais, mesmo que setenha ampliado substancialmente a possibilidade de controle coletivo sobre as circunstncias da vidasocial.

    Minha leitura da teoria crtica de Marx concentra-se em sua concepo da centralidade do trabalhopara a vida social, a qual geralmente considerada como estando situada no ncleo de sua teoria.Argumento que o significado da categoria trabalho em suas obras maduras diferente do quetradicionalmente tem sido apresentado: ela historicamente especfica, no lugar de transhistrica. Nacrtica madura de Marx, a noo de que o trabalho constitui o mundo social, e a fonte de toda ariqueza, no se refere sociedade em geral, mas especificamente sociedade moderna ou capitalista,Alm do mais, e isto crucial, a anlise de Marx no se refere ao trabalho como ele concebido emgeral e transhistoricamente - uma atividade social direcionada para um objetivo que estabelece aintermediao entre o homem e a natureza, criando produtos especficos a fim de satisfazerdeterminadas necessidades humanas - mas atribui-lhe um papel peculiar que desempenha nasociedade capitalista. Como aprofundarei mais tarde, o carter historicamente especfico destetrabalho est intrinsecamente relacionado forma de interdependncia social, caracterstica dasociedade capitalista. Ele constitui uma forma de mediao social, historicamente especfica e quaseobjetiva que, no quadro analtico de Marx, serve como o fundamento social decisivo das caractersticasbsicas da modernidade.

    esta reconsiderao do significado do conceito de trabalho em Marx que fornece a base para minhareinterpretao de sua anlise do capitalismo. Ela introduz consideraes de temporalidade e situa acrtica produo no centro da anlise de Marx, e lana o fundamento para uma anlise da modernasociedade capitalista como uma sociedade dinamicamente regulada, estruturada por uma formahistoricamente especfica de mediao social que, embora socialmente constituda, possui um carterabstrato, impessoal e quase objetivo. Esta forma de mediao estruturada por uma forma de prticasocial historicamente determinada (o trabalho no capitalismo) e por estruturas, no lugar das aes daspessoas, de suas vises do mundo e de suas competncias e talentos. Tal abordagem reformula aquesto da relao entre cultura e vida material, transformando-a em uma relao entre uma forma demediao social historicamente especfica e formas de "objetividade" e de "subjetividade" sociais.Como uma teoria da mediao social, um esforo para superar a clssica dicotomia terica entresujeito e objeto na medida em que explica esta dicotomia historicamente.

    Assim, em termos gerais, estou sugerindo que a teoria marxiana deveria ser entendida no como umateoria universalmente aplicvel, mas como uma teoria crtica especfica da sociedade capitalista. Elaanalisa a especificidade histrica do capitalismo e a possibilidade de sua superao por meio decategorias que captam suas formas especficas de trabalho, riqueza e tempo. (3) Alm disso, a teoriamarxiana, de acordo com esta abordagem, auto-reflexiva e, por conseguinte, , ela mesma,historicamente especfica: sua anlise da relao entre teoria e sociedade tal que pode, de umamaneira epistemologicamente consistente, localizar-se historicamente atravs das mesmas categoriascom as quais analisa seu contexto social.

    Esta interpretao relativa teoria crtica madura de Marx tem importantes implicaes que tentareidesvendar no decorrer desta obra. Para tanto, iniciarei fazendo a distino entre duas importantesvertentes da anlise crtica, fundamentalmente diferente: uma que considera a crtica ao capitalismodo ponto de vista do trabalho, e a outra vertente, para qual deve ser feita a crtica ao trabalho nocapitalismo. A primeira, baseada em uma compreenso transhistrica do trabalho, pressupe queexista uma tenso estrutural entre os aspectos da vida social que caracterizam o capitalismo (porexemplo, o mercado e a propriedade privada) e a esfera social constituda pelo trabalho. O trabalho,portanto, constitui a base da crtica ao capitalismo, o marco a partir do qual esta crtica elaborada.De acordo com a segunda vertente de anlise, o trabalho no capitalismo historicamente especfico epermeia as estruturas essenciais desta sociedade. Assim, o trabalho o objeto da crtica sociedadecapitalista. Do ponto de vista da segunda vertente de anlise, possvel identificar que diferentesinterpretaes de Marx mantm em comum vrios pressupostos bsicos da primeira vertente deanlise. Por este motivo, caracterizo estas interpretaes como "tradicionais". Investigarei seuspressupostos do ponto de vista da minha interpretao da teoria de Marx como sendo uma crtica ao

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    pressupostos do ponto de vista da minha interpretao da teoria de Marx como sendo uma crtica aotrabalho no capitalismo, a fim de demonstrar no apenas as limitaes da anlise tradicional como anecessidade de uma outra mais adequada teoria crtica da sociedade capitalista.

    Apresentar a anlise de Marx como uma crtica historicamente especfica do trabalho no capitalismoconduz a uma compreenso da sociedade capitalista muito diferente daquela que est presente nasinterpretaes marxistas tradicionais. Isso sugere, por exemplo, que, na anlise de Marx, as relaessociais e as formas de dominao que caracterizam o capitalismo no podem ser suficientementeentendidas enquanto relaes de classe enraizadas em relaes de propriedade e mediadas pelomercado, como pretendem as interpretaes tradicionais. Ao contrrio, sua anlise da mercadoria e docapital - ou seja, das formas quase objetivas de mediao social constitudas pelo trabalho nocapitalismo - deveria ser entendida como uma anlise das relaes sociais fundamentais destasociedade. Estas formas sociais impessoais e abstratas no apenas encobrem o que tradicionalmentetem sido avaliado como as "reais" relaes sociais do capitalismo, isto , as relaes de classe; elas soas reais relaes sociais da sociedade capitalista, estruturando sua trajetria dinmica e seu modo deproduzir.

    Longe de analisar o trabalho como o princpio de constituio social e a fonte de riqueza em todas associedades, a teoria de Marx sugere que, o que caracteriza inequivocamente o capitalismo so suasrelaes sociais bsicas constitudas precisamente pelo trabalho e, por conseguinte, em ltimainstncia, uma espcie fundamentalmente diferente daquelas que caracterizam as sociedades no-capitalistas. Embora sua anlise crtica do capitalismo inclua a crtica explorao, desigualdadesocial e dominao de classe, vai alm disso, ao procurar elucidar o prprio tecido das relaessociais na sociedade moderna, e a forma abstrata de dominao social que lhes intrnseca, atravs deuma teoria que fundamenta sua constituio social em determinadas e estruturadas formas deprticas.

    Esta reinterpretao da teoria crtica madura de Marx desloca o foco central de sua crtica para longedas consideraes sobre a propriedade e o mercado. Diferentemente das abordagens marxistastradicionais, a mesma fornece a base para uma crtica da natureza da produo, do trabalho e do"crescimento" na sociedade capitalista, ao sustentar que tais dimenses, em vez de tecnicamente, sosocialmente constitudas. Tendo assim deslocado o foco da crtica ao capitalismo para a esfera dotrabalho, a interpretao aqui apresentada conduz a uma crtica ao processo industrial de produo -por conseguinte, a uma reconceituao das definies bsicas de socialismo e a uma reavaliao dopapel poltico e social tradicionalmente atribudo ao proletariado, na possvel superao histrica docapitalismo.

    medida que esta reinterpretao implica numa crtica ao capitalismo que no est presa scondies do capitalismo liberal do Sculo XIX, e acarreta uma crtica produo industrial, enquantocapitalista, pode fornecer a base para uma teoria crtica capaz de esclarecer a natureza e a dinmica dasociedade capitalista contempornea. Tal teoria crtica pode tambm servir como o ponto de partidapara uma anlise do "socialismo realmente existente", enquanto uma forma alternativa (e fracassada)de acumulao de capital - no lugar de um tipo de sociedade que representou, no obstante, demaneira imperfeita, a negao histrica do capitalismo.

    A CRISE DO MARXISMO TRADICIONAL

    As consideraes apresentadas tm sido desenvolvidas em contraposio ao pano de fundo da crise domarxismo tradicional e emergncia do que parece ser uma nova fase no desenvolvimento docapitalismo industrial avanado. Neste trabalho, a expresso "marxismo tradicional" refere-se, no auma tendncia histrica do marxismo, mas, de um modo geral, a todas as abordagens tericas queanalisam o capitalismo do ponto de vista do trabalho e caracterizam esta sociedade, essencialmente,em termos de relaes de classe, estruturadas pela propriedade privada dos meios de produo e poruma economia regulada pelo mercado. As relaes de dominao so entendidas, principalmente, emtermos de dominao de classe e de explorao. Como bem conhecido, Marx argumentou que nodecorrer do desenvolvimento capitalista emerge uma tenso estrutural ou uma contradio entre asrelaes sociais que caracterizam o capitalismo e as "foras produtivas". Esta contradio tem sidocomumente interpretada em termos de um conflito entre a propriedade privada e o mercado, de umlado, e o modo industrial de produzir, de outro, de tal maneira que, a propriedade privada e o mercadoso tratados como marcas caractersticas do capitalismo, e a produo industrial apresentada como abase para uma futura sociedade socialista. O socialismo entendido, implicitamente, em termos da

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    base para uma futura sociedade socialista. O socialismo entendido, implicitamente, em termos dapropriedade coletiva dos meios de produo e do planejamento econmico num contextoindustrializado. Isso significa que a negao histrica do capitalismo entendida principalmente comouma sociedade na qual a dominao e a explorao de uma classe por outra esto superadas.

    Esta caracterizao ampla e preliminar do marxismo tradicional til na medida em que delineia umquadro interpretativo geral compartilhado por um amplo grupo de teorias que em outros aspectosdiferem consideravelmente umas das outras. Minha inteno neste trabalho analisar, criticamente,os prprios pressupostos bsicos desse quadro terico geral, em vez de reconstituir a histria dasvrias linhas tericas e escolas de pensamento no interior da tradio marxista.

    No centro de todas as formas de marxismo tradicional encontra-se uma concepo transhistrica detrabalho. A categoria trabalho analisada por Marx entendida em termos de uma atividade social comobjetivo definido que efetiva a mediao entre os homens e a natureza, criando produtos especficos afim de satisfazer determinadas necessidades humanas. O trabalho, assim entendido, consideradocomo sendo central a toda a vida em sociedade: constitui o mundo social e a fonte de toda a riquezasocial. Esta abordagem atribui transhistoricamente ao trabalho social quilo que Marx analisou comocaractersticas historicamente especficas do trabalho no capitalismo. Tal concepo transhistrica dotrabalho est amarrada a uma determinada compreenso das categorias bsicas da crtica de Marx economia poltica e, por conseguinte, de sua anlise do capitalismo. A teoria do valor de Marx, porexemplo, tem sido geralmente interpretada como uma tentativa de mostrar que a riqueza social sempre, e em qualquer lugar, criada pelo trabalho humano e que, no capitalismo, o trabalhofundamenta o no-consciente, "automtico", modo de distribuio mediado pelo mercado. (4) Suateoria da mais-valia, de acordo com tais abordagens, procura demonstrar que, apesar das aparncias,o produto excedente no capitalismo criado apenas pelo trabalho e apropriado pela classecapitalista. Dentro deste quadro geral, por conseguinte, a anlise crtica do capitalismo elaborada porMarx , principalmente, uma crtica explorao do ponto de vista do trabalho: desmistifica asociedade capitalista, primeiro revelando ser o trabalho a verdadeira fonte da riqueza social; e,segundo, demonstrando que esta sociedade repousa sobre um sistema de explorao.

    A teoria crtica de Marx, naturalmente, tambm delineia um desenvolvimento histrico que indica apossibilidade emergente de uma sociedade livre. De acordo com as interpretaes tradicionais, suaanlise do percurso do desenvolvimento capitalista pode ser esboada como segue: a estrutura docapitalismo de livre mercado d origem produo industrial a qual aumentou significativamente omontante de riqueza social criada. Contudo, no capitalismo, esta riqueza continua a ser extradamediante um processo de explorao e distribuda de forma extremamente desigual. Todavia,desenvolve-se uma crescente contradio entre a produo industrial e as relaes de produoexistentes. Como um resultado do processo contnuo de acumulao de capital, caracterizado pelaconcorrncia e pelas crises, o modo de distribuio social baseado no mercado e na propriedadeprivada torna-se cada vez menos adequado a uma produo industrial desenvolvida. Deste modo, adinmica histrica do capitalismo, no apenas torna anacrnicas as antigas relaes de produo, mastambm d lugar possibilidade de um novo conjunto de relaes sociais. Ela gera as pr-condiestcnicas, sociais e organizacionais para a abolio da propriedade privada e para o planejamentocentralizado - por exemplo, a centralizao e concentrao dos meios de produo, a separao entre apropriedade e a gesto, e a constituio e concentrao de um proletariado industrial. Estesdesenvolvimentos fariam emergir a possibilidade histrica da abolio da explorao e da dominaode classe e o surgimento de um novo modo de distribuio, justo e racionalmente regulado. O foco dacrtica histrica de Marx, de acordo com esta interpretao, o modo de distribuio.

    Esta afirmao pode parecer paradoxal, porque o marxismo geralmente considerado uma teoria deproduo. O papel da produo na interpretao tradicional pode ser assim resumido. Se as forasprodutivas (que, segundo Marx, entram em contradio com as relaes capitalistas de produo)esto identificadas com o modo industrial de produzir, em consequncia, este modo entendidoimplicitamente como um processo puramente tcnico, intrinsecamente independente do capitalismo.O capitalismo tratado como um conjunto de fatores exgenos colidindo com o processo de produo:propriedade privada e condies exgenas de valorizao do capital no interior de uma economia demercado. Analogamente, a dominao social no capitalismo entendida, essencialmente, como umadominao de classe que permanece externa ao processo de produo. Esta anlise implica que aproduo industrial, uma vez constituda historicamente, independente do capitalismo e no a esteintrinsecamente relacionada. A contradio marxiana entre as foras produtivas e as relaes deproduo, quando apresentada como uma tenso estrutural entre a produo industrial, de um lado, e

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    produo, quando apresentada como uma tenso estrutural entre a produo industrial, de um lado, ea propriedade privada e o mercado de outro, entendida como uma contradio entre o modo deproduzir e o modo de distribuir. Consequentemente, a transio do capitalismo para o socialismo vista como uma transformao do modo de distribuir (propriedade privada, mercado), e no do modode produzir. Ao contrrio, o desenvolvimento da produo industrial de larga escala tratado como amediao histrica ligando o modo capitalista de produo possibilidade de uma outra organizaosocial de distribuio. Uma vez desenvolvido, o modo industrial de produo baseado no trabalhoproletrio considerado historicamente definitivo.

    Esta interpretao da trajetria do desenvolvimento capitalista expressa claramente uma atitudeafirmativa com relao produo industrial, como um modo de produzir que gera as condies paraa abolio do capitalismo e constitui o fundamento do socialismo. O socialismo visto como um novomodo de administrar politicamente e regular economicamente o mesmo modo industrial de produzirque o capitalismo fez surgir; e concebido como uma forma social de distribuio que no somente mais justa, mas tambm a mais adequada produo industrial. Esta adequao considerada assimcomo sendo a pr-condio histrica central para uma sociedade justa. Tal crtica social essencialmente uma crtica histrica do modo de distribuio. Enquanto uma teoria da produo, omarxismo tradicional no requer uma crtica produo. O fundamental exatamente o oposto: omodo de produzir proporciona a base para a crtica e o critrio com o qual avaliada a adequaohistrica do modo de distribuio.

    Esta crtica ao capitalismo implica numa outra maneira de conceituar o socialismo, como sendo umasociedade na qual o trabalho, liberto das relaes capitalistas, estrutura a vida social abertamente e ariqueza que ele cria distribuda de forma mais justa. Dentro do quadro tradicional, a "realizao"histrica do trabalho - seu pleno desenvolvimento histrico e sua emergncia como a base da vidasocial e da riqueza - a condio fundamental da emancipao social geral.

    A viso de socialismo como a realizao histrica do trabalho est tambm evidente na idia de que oproletariado - a classe trabalhadora intrinsecamente relacionada produo industrial - surgir comoa classe universal no socialismo. Isto , a contradio estrutural do capitalismo vista, em outro nvel,como uma oposio de classes entre os capitalistas, que possuem e controlam a produo, e osproletrios, que com o seu trabalho criam a riqueza da sociedade (e a riqueza dos capitalistas), aindaque tenham que vender sua fora-de-trabalho para sobreviver. Esta oposio de classes, porque estfundamentada na contradio estrutural do capitalismo, tem uma dimenso histrica: ao mesmotempo em que a classe capitalista a classe dominante da presente ordem, a classe trabalhadora estenraizada na produo industrial e, por conseguinte, nos alicerces histricos de uma nova ordem, aordem socialista. A oposio entre estas duas classes vista imediatamente como um conflito entreexplorados e exploradores e como um conflito entre interesses universais e interesses individuais. Ariqueza social geral produzida pelos trabalhadores no beneficia a todos os membros da sociedade sobo capitalismo, mas apropriada pelos capitalistas, para os seus fins particulares. A crtica aocapitalismo do ponto de vista do trabalho uma crtica na qual as relaes sociais dominantes(propriedade privada) so tidas como particularizadas, a partir de uma posio universalista. O que universal e verdadeiramente social constitudo pelo trabalho, porm impedido, pelas relaescapitalistas individualizadas, de se tornar plenamente realizado. A viso de emancipao contida nestacompreenso do capitalismo , como veremos, uma viso de totalizao.

    No interior deste quadro bsico, que tenho denominado "marxismo tradicional", existem diferenaspolticas e tericas extremamente importantes. Por exemplo, teorias determinsticas em oposio atentativas de tratar a subjetividade social e a luta de classes como aspectos essenciais da histria docapitalismo; conselhos comunistas versus partidos comunistas; teorias "cientficas" versus aquelas queprocuram, de vrias maneiras, sintetizar marxismo e psicanlise, ou desenvolver uma teoria crtica dacultura ou da vida cotidiana. Apesar disso, na medida em que todas elas tm-se apoiado nospressupostos bsicos relacionados ao trabalho e s caractersticas essenciais do capitalismo e dosocialismo acima esboadas, permanecem presas estrutura do marxismo tradicional. E noimportando quo incisivas tenham sido as diversas anlises sociais, polticas, histricas, culturais eeconmicas que esta estrutura terica tenha gerado, suas limitaes tornaram-se crescentementeevidentes luz das vrias transformaes ocorridas no Sculo XX. Por exemplo, a estrutura terica emquesto tem sido capaz de analisar a trajetria histrica do capitalismo liberal que o conduziu a umestgio caracterizado pela substituio parcial ou total do mercado pelo Estado intervencionista comoo agente primrio de distribuio. Porm, como o cerne da crtica tradicional o modo dedistribuio, o crescimento do capitalismo baseado na interveno do Estado colocou srios problemas

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    distribuio, o crescimento do capitalismo baseado na interveno do Estado colocou srios problemasa esta abordagem terica. Se as categorias da crtica economia poltica aplicam-se somente a umaeconomia auto-regulada, com a mediao do mercado, e apropriao privada do excedente, ocrescimento do Estado intervencionista tem feito com que estas categorias se tornem menosadequadas a uma crtica social contempornea. Ou seja, que no mais captam a realidade socialadequadamente. Consequentemente, a teoria marxista tradicional tornou-se cada vez menos capaz defornecer uma crtica histrica ao capitalismo ps-liberal, ficando confinada a duas opes. Pode-seapoiar nas transformaes qualitativas do capitalismo do Sculo XX e se concentrar naqueles aspectosda estrutura de mercado que continuam a existir - e deste modo reconhecer implicitamente que setornou uma crtica parcial; ou limitar a aplicabilidade das categorias marxianas ao capitalismo doSculo XIX e tentar desenvolver uma nova crtica, presumivelmente mais adequada s condiescontemporneas. No decorrer deste trabalho, discutirei as dificuldades tericas encontradas poralgumas das tentativas concernentes a esta ltima opo.

    As fragilidades do marxismo tradicional, ao considerar a sociedade ps-liberal, tornam-separticularmente visveis quando analisa de maneira sistemtica o "socialismo realmente existente".Nem todas as formas de marxismo tradicional afirmaram como "efetivamente socialistas" sociedadescomo a Unio Sovitica. Contudo, tal abordagem terica no permite uma anlise crtica adequadadessa forma de sociedade. As categorias marxianas, quando tradicionalmente interpretadas, so depouca utilidade para a formulao de uma crtica social a uma sociedade que regulada e dominadapelo Estado. Assim, a Unio Sovitica foi com frequncia considerada socialista porque a propriedadeprivada e o mercado foram abolidos; a persistente falta de liberdade foi atribuda s instituiesburocrticas repressivas. Esta posio sugere, portanto, que no existe relao entre a natureza daesfera scio-econmica e o carter da esfera poltica, indicando que as categorias da crtica social deMarx (tais como o valor), quando entendidas em termos do mercado e da propriedade privada, nopodem captar as razes para a contnua ou crescente falta de liberdade no "socialismo realmenteexistente" e no podem, portanto, fornecer a base para uma crtica histrica de tais sociedades. Dentrode tal quadro, a relao entre socialismo e liberdade tornou-se uma contingncia. Por conseguinte,isso implica que uma crtica histrica ao capitalismo, desenvolvida a partir do ponto de vista dosocialismo, no pode mais ser considerada uma crtica dirigida s razes da falta de liberdade e daalienao, da perspectiva da emancipao humana geral. (5) Estas questes fundamentais apontam oslimites da interpretao tradicional. Mostram que uma anlise do capitalismo que se concentreexclusivamente no mercado e na propriedade privada no pode mais servir como uma base adequadapara uma teoria crtica emancipatria.

    medida que esta fragilidade fundamental vai se tornando mais evidente, o marxismo tradicional vaisendo questionado com maior frequncia. Alm disso, a base terica de sua crtica social aocapitalismo - a afirmao de que o trabalho humano a fonte de toda a riqueza - tem sido criticada luz da crescente importncia do conhecimento cientfico e da tecnologia avanada para o processo deproduo. O marxismo tradicional no somente falha no sentido de fornecer bases para uma adequadaanlise histrica do "socialismo realmente existente" (ou de seu colapso), mas sua anlise crtica docapitalismo e de seus ideais de emancipao tem se tornado crescentemente distanciada dos temas erazes da atual insatisfao social nos pases industriais avanados. Isto particularmente verdade noque respeita nfase exclusiva e positiva sobre as classes, e sua afirmao de que so o trabalhoproletrio industrial e as formas especficas de produo e "progresso" tcnico que caracterizam ocapitalismo. Num momento de crescente crtica a tal "progresso" e "crescimento", de exaltao conscincia acerca dos problemas ecolgicos, de descontentamento generalizado quanto s formas detrabalho existentes, de aumento da preocupao concernente liberdade poltica e de uma progressivaimportncia relacionada s identidades sociais no baseadas em classe (gnero ou etnia, por exemplo),o marxismo tradicional parece definitivamente anacrnico. Tanto no Leste quanto no Ocidente tem-serevelado historicamente inadequado, diante das transformaes ocorridas no decorrer do Sculo XX.

    A crise do marxismo tradicional, no entanto, de forma alguma invalida a pertinncia de uma crticasocial adequada ao capitalismo contemporneo. (6) Ao contrrio, estimula a necessidade de que talcrtica seja elaborada. A presente situao histrica pode ser entendida em termos de umatransformao da moderna sociedade capitalista que tem um alcance to significativo - social, poltica,econmica e culturalmente - quanto a transio anterior do capitalismo liberal para o capitalismointervencionista de Estado. Parece-nos ainda que se configura uma outra fase histrica do capitalismodesenvolvido (7) Os contornos desta nova fase ainda no esto claros, mas as duas ltimas dcadastestemunharam o relativo declnio da importncia das instituies e instncias de poder que estiveramno centro do capitalismo intervencionista de Estado - este, caracterizado pela produo

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    no centro do capitalismo intervencionista de Estado - este, caracterizado pela produogeograficamente centralizada, grandes sindicatos industriais, crescente interveno progressiva dogoverno na economia e um Estado de bem-estar amplamente expandido. Duas tendncias histricasaparentemente opostas tm contribudo para este enfraquecimento das instituies centrais da faseintervencionista do Estado no capitalismo: de um lado, uma parcial descentralizao da produo e dapoltica e com ela a emergncia de uma pluralidade de grupamentos sociais, organizaes,movimentos, partidos e subculturas; e, de outro, um processo de globalizao e concentrao de capitalque tem ocorrido em novas bases, seguramente abstratas, sem qualquer paralelo com a experinciaimediata e, aparentemente, pelo menos por enquanto, para alm do controle efetivo do Estado.

    Essas tendncias, no entanto, no deveriam ser entendidas em termos de um processo histrico linear.Elas incluem mudanas que destacam o carter anacrnico e inadequado da teoria tradicional - porexemplo, o surgimento de novos movimentos sociais, tais como os movimentos ecolgicos de massa,os movimentos de mulheres, os movimentos de emancipao das minorias, bem como o crescentedescontentamento (e a polarizao concernente) com as formas existentes de trabalho e os sistemastradicionais de valores e instituies. Ainda, o momento histrico, desde o incio dos anos de 1970,tem sido caracterizado tambm pela reemergncia de manifestaes "clssicas" do capital industrial,tais como suas relocalizaes econmicas em todo o mundo e a intensificao da rivalidadeintercapitalista, em escala global. Tomadas em conjunto, essas mudanas sugerem que uma anlisecrtica adequada sociedade capitalista contempornea deve ser capaz de incluir suas novas esignificativas dimenses e os fundamentos de sua continuidade enquanto capitalismo.

    Em outras palavras, tal anlise deve evitar a viso terica unilateral das verses mais ortodoxas domarxismo tradicional. Estas so frequentemente capazes de afirmar que crises e rivalidadeintercapitalistas so caractersticas que acompanham a evoluo do capitalismo (apesar daemergncia do Estado intervencionista); mas incapazes de se reportar s mudanas histricasqualitativas na identidade e na natureza dos grupamentos sociais que expressam descontentamento eoposio, ou no carter de suas necessidades, insatisfaes, aspiraes e formas de conscincia. Ainda,uma anlise adequada deve tambm evitar a tendncia igualmente unilateral de se reportar apenas smudanas mais recentes, ignorando a "esfera econmica" ou simplesmente pressupondo que, com osurgimento do Estado intervencionista, as consideraes econmicas tomaram-se menos importantes.Finalmente, nenhuma crtica adequada pode ser formulada, simplesmente juntando as anlises que seconcentravam em questes econmicas quelas que se reportavam anlise das mudanas qualitativassociais e culturais - e assim, com os pressupostos tericos bsicos de tal crtica permanecendo aquelesda teoria marxista tradicional. O carter crescentemente anacrnico do marxismo tradicional e suassrias fragilidades, enquanto uma teoria crtica emancipatria, so intrnsecas a esta abordagem dasociedade capitalista. Em ltima anlise, esto na origem de sua insuficincia na tentativa deapreender adequadamente o capitalismo.

    Essa insuficincia tem se tornado mais clara diante da atual transformao da moderna sociedadecapitalista. Da mesma forma que a Grande Depresso revelou os limites da "autoregulao" de umaeconomia mediada pelo mercado e as deficincias de concepes que igualavam capitalismo, acapitalismo liberal, o perodo caracterizado pelas crises que marcaram o final da era de prosperidade eexpanso econmica do ps-Guerra, evidenciou os limites da capacidade do Estado intervencionista deregular a economia. Isto abalou as concepes lineares de desenvolvimento do capitalismo, de umafase liberal a uma outra centrada no Estado. A expanso do Estado de bem-estar social, aps a IIGuerra Mundial, tornou-se possvel em virtude da expanso por um longo perodo da economiamundial, que se notabilizou como a fase de ouro do desenvolvimento capitalista; no como umresultado do fato das esferas polticas terem, exitosa e permanentemente, assumido o controle daesfera econmica. Contudo, o desenvolvimento do capitalismo nas ltimas duas dcadas fez retrocederas tendncias visveis do perodo anterior, enfraquecendo e impondo limites ao intervencionismo doEstado. Isto ficou manifesto na crise do Estado de bem-estar no Ocidente - que proclamou a morte dokeynesianismo e, de modo patente, reafirmou a dinmica contraditria do capitalismo - bem como, nacrise e colapso na maioria dos estados e partidos comunistas no Leste. (8)

    digno de ateno que, comparada situao depois do colapso do capitalismo liberal no final dosanos de 1920, as crises e desarticulaes associadas s mais recentes transformaes do capitalismoestimularam poucas anlises crticas, desenvolvidas a partir de uma perspectiva que apontasse para apossvel superao do capitalismo. Isto pode ser interpretado como uma expresso de incertezaterica. A crise do capitalismo intervencionista de Estado serviu para indicar que o capitalismocontinuou a se desenvolver com uma dinmica quase autnoma. Este desenvolvimento, portanto,

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    continuou a se desenvolver com uma dinmica quase autnoma. Este desenvolvimento, portanto,demanda uma reconsiderao crtica daquelas teorias que haviam interpretado a substituio domercado pelo Estado como significando a eliminao definitiva das crises econmicas. No entanto, anatureza fundamental do capitalismo, do processo dinmico que se afirma a si mesmo, mais uma vez,permanece sem explicao. No mais convincente clamar que o "socialismo" representa a respostapara os problemas do capitalismo, quando o que se est querendo justificar simplesmente aintroduo do planejamento central e da propriedade estatal (ou mesmo pblica).

    A frequentemente evocada "crise do marxismo" no expressa, ento, apenas a rejeio desiludida ao"socialismo realmente existente", a descrena no proletariado e a incerteza quanto a quaisquer outrospossveis agentes sociais de transformao social fundamental. Mais fundamentalmente a expressode uma profunda incerteza quanto ao significado essencial do capitalismo e do que viria substitu-locom sua superao. A diversidade de posies tericas formuladas nas dcadas passadas - odogmatismo de muitos grupos da Nova Esquerda do final dos anos de 1960 e no incio dos anos de1970, as crticas puramente polticas que reemergiram subsequentemente e muitas das posies "ps-modernas" contemporneas - pode ser vista como expresso de tal incerteza quanto natureza dasociedade capitalista e mesmo como um desapontamento quanto possibilidade de iniciativas nosentido de capt-la. Esta incerteza pode ser entendida, em parte, como uma expresso da insuficinciabsica da abordagem marxista tradicional. Suas fragilidades tm sido reveladas no somente pelasdificuldades com relao ao "socialismo realmente existente" e diante das necessidades e insatisfaesinerentes aos novos movimentos sociais. Mais fundamentalmente, tem-se tornado claro que esteparadigma terico no fornece uma concepo satisfatria sobre a prpria natureza do capitalismo;uma concepo que estabelea uma anlise adequada das mudanas que o atingem e que seja capaz deproporcionar o entendimento de suas estruturas fundamentais de modo a apontar a possibilidade desua transformao histrica. A transformao subentendida pelo marxismo tradicional no , emnenhuma medida, plausvel como uma "soluo" para os males da sociedade moderna.

    Se a sociedade moderna deve ser analisada enquanto capitalista e, por conseguinte, comotransformvel em um nvel fundamental, ento, o ncleo fundamental do capitalismo deve serredefinido. Sobre esta base poderia ser formulada uma teoria crtica diferente acerca da natureza etrajetria da sociedade moderna - uma teoria que buscasse apreender, social e historicamente, asrazes da no-liberdade e da alienao na sociedade moderna. Tal anlise contribuiria tambm parauma teoria poltica da democracia. A histria do marxismo tradicional tem apenas reveladoexplicitamente que a questo da liberdade poltica deve ser central para qualquer posio crtica. Noobstante, preciso ainda considerar que uma adequada teoria da democracia requer uma anlisehistrica das condies sociais de liberdade, que no pode ser elaborada a partir de uma posioabstratamente normativa ou de uma posio que atribua uma existncia material esfera da poltica.

    RECONSTRUINDO UMA TEORIA CRTICA DA SOCIEDADE MODERNA

    A presente reinterpretao da natureza da teoria crtica de Marx uma resposta transformaohistrica do capitalismo e s fragilidades do marxismo tradicional esboadas acima. (9) Minha leiturados Grundrisse de Marx, uma verso preliminar de sua crtica economia poltica, levou-me a rever ateoria crtica que ele desenvolveu em seus escritos maduros, particularmente em O Capital. Estateoria, como a entendo, diferente e mais poderosa do que as interpretaes do marxismo tradicional;e tambm possui um significado mais contemporneo. Considero que a reinterpretao da concepode Marx, quanto s relaes estruturantes bsicas da sociedade capitalista aqui apresentada, podeservir como ponto de partida para uma teoria crtica do capitalismo, superar muitas das deficinciasda interpretao tradicional e ser mais adequada para se reportar a muitas mudanas e questespostas recentes.

    A reinterpretao aqui apresentada tanto tem sido influenciada pelas, quanto pretende ser uma crticas abordagens desenvolvidas por Georg Lukcs (especialmente na obra History and ClassConsciousness) e por adeptos da teoria crtica da Escola de Frankfurt. Tais abordagens, baseadas emcompreenses sofisticadas da crtica de Marx, expressam uma resposta terica compreenso datransformao histrica do capitalismo, da forma liberal, regulada pelo mercado, para uma formaorganizada, burocrtica, dirigida pelo Estado, mediante um redirecionamento do capitalismo. Dentrodessa tradio interpretativa, a teoria de Marx no considerada como uma teoria da produomaterial e da estrutura de classes, e menos ainda, uma teoria da economia. No lugar disso, entendida como uma teoria da constituio histrica de formas determinadas, reificadas, deobjetividade e subjetividade sociais. Sua crtica economia poltica considerada como uma tentativa

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    objetividade e subjetividade sociais. Sua crtica economia poltica considerada como uma tentativade analisar criticamente as formas culturais e as estruturas sociais da civilizao capitalista. (10)Adicionalmente, a teoria de Marx considerada como capaz de compreender a relao entre teoria esociedade, de maneira auto-reflexiva, por procurar analisar seu contexto - a sociedade capitalista -,situando-se historicamente e creditando-se condio de se tornar o prprio ponto de vista. (Estatentativa de fundamentar socialmente a possibilidade de uma crtica terica vista como um aspectonecessrio a qualquer tentativa de fundamentar a possibilidade de ao social antittica etransformadora.) Encaro com simpatia o projeto geral de desenvolver uma ampla e coerente crticasocial, poltica e cultural, adequada sociedade capitalista contempornea, por meio de uma teoriasocial auto-reflexiva, com objetivo emancipatrio. Todavia, como ainda irei aprofundar, alguns dospressupostos tericos bsicos impediram, de modo diferenciado, Lukcs, bem como membros daEscola de Frankfurt, de realizarem plenamente seus objetivos tericos. Por um lado, eles reconheceramas inadequaes de uma teoria crtica da modernidade que definisse o capitalismo situando-o apenasno Sculo XIX, ou seja, em termos do mercado e da propriedade privada. Por outro, entretanto,permaneceram presos a alguns pressupostos deste mesmo tipo de teoria, em particular, no que dizrespeito a sua concepo transhistrica do trabalho. O objetivo programtico de ambos, emdesenvolver uma concepo de capitalismo adequada ao Sculo XX, no poderia ser realizado combase em tal compreenso acerca do trabalho. Pretendo melhor adequar a fora propulsora crtica dessatradio interpretativa, reexaminando a anlise de Marx sobre a natureza e significado do trabalho nocapitalismo.

    Segundo minha reinterpretao, embora a anlise marxiana do capitalismo pressuponha uma crtica explorao e ao modo burgus de distribuio (o mercado, a propriedade privada), no desenvolvidaa partir do ponto de vista do trabalho; ao contrrio, est baseada na crtica ao trabalho no capitalismo.A teoria crtica de Marx procura mostrar que o trabalho no capitalismo desempenha um papelhistoricamente especfico para mediar as relaes sociais e para elucidar as consequncias desta formade mediao. Sua nfase sobre o trabalho no capitalismo no implica que o processo material deproduo seja necessariamente mais importante do que outras esferas da vida social. Ao contrrio, suaanlise da especificidade do trabalho no capitalismo sugere que a produo no capitalismo no umprocesso puramente tcnico; mas sim que est inextricavelmente relacionada e moldada pelas relaessociais bsicas desta sociedade. Estas, por sua vez, no podem ser compreendidas tomando porreferncia apenas o mercado e a propriedade privada. Esta interpretao da teoria de Marx fornece abase para uma crtica da forma de produo e da forma de riqueza (isto , o valor), que caracterizam ocapitalismo, ao invs de simplesmente questionar sua apropriao privada. Tambm caracteriza ocapitalismo em termos de uma forma abstrata de dominao associada natureza peculiar do trabalhonele existente, e situa nesta forma de dominao, o fundamento social ltimo para o "crescimento"anrquico e o carter crescentemente fragmentado do trabalho, e at mesmo da existncia individual,na sociedade capitalista. A presente interpretao sugere que a classe trabalhadora essencial para ocapitalismo, em vez de materializar sua negao. Como veremos, tal abordagem reinterpreta aconcepo de alienao em Marx luz da sua crtica madura ao trabalho no capitalismo e situa estaconcepo reinterpretada de alienao no centro de sua crtica sociedade capitalista.

    Claramente, tal crtica da sociedade capitalista difere inteiramente daquele tipo de crtica"produtivista", caracterstica de muitas interpretaes marxistas tradicionais, que ratificam o trabalhoproletrio, a produo industrial e um "crescimento" industrial totalmente livre. Na verdade, do pontode vista da reconsiderao aqui apresentada, a posio produtivista no representa uma crticafundamental: no apenas fracassa por no apresentar uma alternativa de uma possvel futurasociedade alm do capitalismo, mas ratifica alguns aspectos centrais do prprio capitalismo. A esterespeito, a reconstruo da teoria crtica madura de Marx assumida neste trabalho fornece o ponto devista para uma crtica ao paradigma produtivista na tradio marxista. Como deixarei claro, aquilo quea tradio marxista tem geralmente tratado como positivo, precisamente o objeto de crtica nas obrasmais recentes de Marx. Pretendo enfatizar tal diferena, no somente para assinalar que a teoria deMarx no era produtivista e, portanto, questionar uma tradio terica que professa se apoiar nostextos de Marx - mas tambm mostrar como a prpria teoria de Marx fornece uma crtica poderosa aoparadigma produtivista, e que, no por acaso, o rejeita como falso, e ainda procura torn-locompreensvel em termos sociais e histricos. Assim o faz, fundamentando teoricamente apossibilidade de tal concepo nas formas sociais estruturantes da sociedade capitalista. Desse modo,a anlise categorial (11) de Marx do capitalismo estabelece a base para uma crtica ao paradigma doprodutivismo enquanto uma posio que, na verdade, expressa um momento da realidade histrica dasociedade capitalista mas o faz numa perspectiva transhistrica e, por conseguinte, numa perspectivano-crtica e ratificadora.

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    Apresentarei uma interpretao similar teoria da histria de Marx. Nas obras maduras, sua noo deuma lgica imanente ao desenvolvimento histrico tambm no transhistrica e nem categrica, mas crtica e se refere especificamente sociedade capitalista. Marx identifica o fundamento de umaforma particular de lgica histrica nas formas sociais especficas da sociedade capitalista. Sua posionem afirma a existncia de uma lgica transhistrica da histria, nem nega a existncia de algum tipode lgica histrica. Ao contrrio, trata tal lgica como uma caracterstica da sociedade capitalista quepode ser, e tem sido projetada sobre toda a histria da humanidade.

    A teoria de Marx, ao expressar dessa maneira formas de pensamento, social e historicamenteplausveis, procura tornar vlidas, reflexivamente, suas prprias categorias. A teoria, ento, tratadacomo parte da realidade social na qual ela existe. A abordagem que proponho uma tentativa deformular uma crtica ao paradigma da produo com base nas categorias sociais da crtica marxianada produo e, atravs disso, amarrar a crtica da teoria a uma possvel crtica social. Esta abordagemfornece a base para uma teoria crtica da sociedade moderna que no exige nem uma afirmaoabstratamente universalista e racionalista da modernidade, nem uma crtica anti-racionalista eantimoderna. Ao contrrio, procura superar ambas as posies, tratando suas contradies comohistoricamente determinadas e enraizadas na natureza das relaes sociais capitalistas.

    A reinterpretao da teoria crtica de Marx aqui apresentada baseia-se na reconsiderao dascategorias fundamentais de sua crtica economia poltica - tais como valor, trabalho abstrato, amercadoria e o capital. Estas categorias, de acordo com Marx, "expressam as formas de ser[Daseinsformen], as determinaes de existncia" [Existenzbestimmungen]... desta sociedadeespecfica. (12) Elas se apresentam como se fossem categorias de uma etnografia crtica da sociedadecapitalista realizada em suas entranhas - categorias que pretendem expressar as formas bsicas deobjetividade e de subjetividade que estruturam as dimenses da vida social, econmica, histrica ecultural desta sociedade, sendo elas mesmas constitudas por formas determinadas de prtica social.

    No entanto, muito frequentemente, as categorias da crtica de Marx tm sido consideradas comosendo categorias puramente econmicas. A "teoria do valor-trabalho" de Marx, por exemplo, tem sidoentendida como uma tentativa de explicar, "em primeiro lugar, os preos relativos e a taxa de lucro emequilbrio; em segundo, a condio de possibilidade do valor-de-troca e do lucro; e, por ltimo, aalocao racional de produtos em uma economia planejada". (13) Uma abordagem to restrita dascategorias, quando trata das dimenses sociais, histricas, cultural-epistemolgicas da teoria crtica deMarx, o faz apenas quando aparecem referncias quelas passagens que se referem explicitamente aestas dimenses, retiradas do contexto de sua anlise categorial. A amplitude e a natureza sistmica dateoria crtica de Marx, no entanto, s podem ser captadas completamente atravs de uma anlise desuas categorias, entendidas como determinaes do ser social no capitalismo. Apenas quando asafirmaes explcitas de Marx so entendidas com respeito aos desdobramentos de suas categorias, possvel reconstruir adequadamente a lgica interna de sua crtica. Por conseguinte, dedicarei especialateno reconsiderao das determinaes e implicaes das categorias bsicas da teoria crtica deMarx.

    Ao reinterpretar a crtica marxiana, tentarei reconstruir sua natureza sistmica e resgatar sua lgicainterna. No examinarei a possibilidade de ocorrncias de divergncias ou contradies nas obrasmaduras de Marx, nem reconstruirei o percurso do desenvolvimento de seu pensamento.Metodologicamente, minha inteno interpretar as categorias fundamentais da crtica economiapoltica feita por Marx de uma maneira logicamente coerente e sistematicamente rigorosa, tantoquanto possvel, a fim de desenvolver a teoria do ncleo do capitalismo embutida na essncia de taiscategorias - aquela que define o capitalismo enquanto tal, ao longo de seu desenvolvimento. Minhacrtica ao marxismo tradicional uma parte desta retomada conceitual da teoria marxiana, em seunvel mais coerente.

    Esta abordagem poderia servir tambm como o ponto de partida de um esforo no sentido de situarhistoricamente as prprias obras de Marx. Tal esforo reflexivo permitiria examinar as provveistenses internas e os elementos "tradicionais" contidos nesses trabalhos, do ponto vista da teoria danatureza imanente e da trajetria do capitalismo derivada de suas categorias fundamentais. Algumasdessas tenses internas poderiam, ento, serem entendidas em termos da tenso que se estabelece, deum lado, entre a lgica da anlise categorial de Marx do capitalismo como um todo e, de outro, suacrtica mais imediata ao capitalismo liberal - isto , em termos de uma tenso entre dois diferentesnveis situados historicamente. Contudo, este trabalho ser desenvolvido como se a autocompreenso

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    nveis situados historicamente. Contudo, este trabalho ser desenvolvido como se a autocompreensode Marx fosse aquela derivada da lgica de sua teoria do cerne da formao social capitalista. Uma vezque espero contribuir para a reconstituio de uma teoria social crtica sistemtica do capitalismo, aquesto se a efetiva autocompreenso de Marx era, na verdade, adequada quela lgica , para estepropsito, de importncia secundria.

    Este trabalho foi concebido para ser o estgio inicial de minha reinterpretao da crtica marxiana.Antes de qualquer coisa, prope-se a ser mais um trabalho de esclarecimento terico fundamental, doque uma exposio plenamente elaborada dessa crtica, e menos uma teoria acabada do capitalismocontemporneo. Portanto, no me reportarei fase mais atual da sociedade capitalista desenvolvida.Em vez disso, tentarei interpretar a concepo de Marx sobre as relaes estruturantes fundamentaisda sociedade moderna, da forma como esto expressas em suas categorias da mercadoria e do capital,de modo a no limit-las a quaisquer das principais fases do capitalismo desenvolvido - e talvez,atravs disso, permitir-lhes esclarecer a natureza imanente da formao social como um todo. Istopode fornecer a base para uma anlise da sociedade moderna do Sculo XX em termos de umaacentuada e crescente distino entre o capitalismo na atualidade e sua forma burguesa primitiva.

    Iniciarei com um esboo geral de minha interpretao baseado na anlise de vrias sees dosGrundrisse de Marx. Sobre esta base, no Captulo 2, prosseguirei no exame mais aprofundado dospressupostos fundamentais do marxismo tradicional. A fim de esclarecer minha abordagem, eexplicitar sua relevncia para uma teoria crtica contempornea, examinarei, no Captulo 3, astentativas empreendidas por membros do crculo da Escola de Frankfurt - em particular, FriedrichPollock e Max Horkheimer - de desenvolver uma teoria crtica social adequada s importantesmudanas ocorridas na sociedade capitalista do Sculo XX. Tomando como referncia minhainterpretao do marxismo tradicional e a de Marx, examinarei os dilemas e fragilidades envolvidasnessas tentativas. Em minha argumentao, procuro revelar que tais questes indicam os limites deuma teoria que tenta entender o capitalismo ps-liberal, mantendo ainda certos pressupostos bsicosdo marxismo tradicional.

    Minha anlise daqueles limites tem a pretenso de ser uma resposta crtica aos dilemas tericos daTeoria Crtica. A obra de Jrgens Habermas, obviamente, pode ser entendida como uma outraresposta; porm, ele tambm retm o que considero uma compreenso tradicional sobre o trabalho.Minha crtica a esta compreenso procura tambm apontar para a possibilidade de uma teoria socialcrtica reconstituda, que difere daquela apresentada por Habermas. Tal teoria prescindiria dasconcepes evolucionrias da histria e da noo de que a vida humana em sociedade esteja baseadasobre um princpio ontolgico que "se afirma a si mesmo" no curso do desenvolvimento histrico (porexemplo, o trabalho no marxismo tradicional, ou a ao comunicativa na obra mais recente deHabermas). (14)

    Na segunda metade deste trabalho, iniciarei minha reconstruo da crtica marxiana, a qual iresclarecer, ainda que retrospectivamente, a base para minha crtica ao marxismo tradicional. NOCapital, Marx busca desvendar a sociedade capitalista identificando suas formas sociais fundamentais,e sobre esta base, desenvolve, cuidadosamente, um conjunto de categorias inter-relacionadas, com asquais explica seu funcionamento subjacente. Comeando com as categorias que ele presume seremcapazes de revelar as estruturas nucleares da formao social - tais como a mercadoria, o valor e otrabalho abstrato - Marx ento desvenda seu significado, criteriosa e rigorosamente, a fim deincorporar aspectos e nveis cada vez mais concretos e complexos da realidade social. Minha inteno esclarecer as categorias fundamentais com as quais Marx inicia sua anlise, isto , o nvel maisabstrato e bsico desta anlise. Na minha opinio, vrios intrpretes passaram muito rapidamentepara o nvel analtico da realidade social concreta imediata e, consequentemente, no perceberamalguns aspectos cruciais das prprias categorias estruturantes fundamentais.

    Examino a categoria trabalho abstrato, no Captulo 4, e o tempo abstrato, no Captulo 5. Com basenestas categorias, examino criticamente a crtica de Habermas a Marx, no Capitulo 6 e, em seguida,nos Captulos 7, 8 e 9, reconstruo as determinaes iniciais do conceito de capital de Marx e suasnoes de contradio e dinmica histrica. Nesses captulos, procuro esclarecer as principaiscategorias bsicas da teoria marxiana, para assim fundamentar minha crtica ao marxismo tradicionale justificar meu ponto de vista de que a lgica da apresentao categorial revelada n O Capital apontana direo consoante com a apresentao da contradio do capitalismo e da natureza do socialismocontidas nos Grundrisse. Ao estabelecer o fundamento para o posterior desenvolvimento de minhareconstruo, algumas vezes extrapolarei meus argumentos para revelar suas implicaes quanto a

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    reconstruo, algumas vezes extrapolarei meus argumentos para revelar suas implicaes quanto auma anlise da sociedade contempornea. Tais extrapolaes so determinaes abstratas e iniciais deaspectos do capitalismo moderno, baseadas em minha reconstruo do nvel mais fundamental dateoria crtica de Marx; elas no representam uma tentativa de analisar diretamente, sem quaisquermediaes, nveis mais concretos da realidade social com base nas categorias mais abstratas.

    Com base no que estou desenvolvendo aqui, pretendo prosseguir meu projeto de reconstruo [de umateoria crtica] num trabalho futuro. Em minha opinio, este trabalho demonstra a plausibilidade deminha reinterpretao da crtica economia poltica de Marx e da crtica ao marxismo tradicional aesta associada. Revela ainda a fora terica da teoria marxiana e sua possvel relevncia para areconstruo de uma teoria crtica da sociedade moderna. No obstante, a abordagem deve ser maisaprofundada antes que a questo da viabilidade das categorias nela contidas, tendo em vista umateoria crtica da sociedade contempornea, seja discutida adequadamente.

    OS GRUNDRISSE:

    REPENSANDO A CONCEPO DE MARX SOBRE O CAPITALISMO E A SUA SUPERAO

    Minha reinterpretao da teoria crtica madura de Marx origina-se do exame de aspectos dosGrundrisse der Kritik der politischen konomie, os importantes fundamentos escritos por Marx em1857-1858. (15) O contedo dos Grundrisse ajusta-se muito bem para servir como ponto de partidapara a pretendida reinterpretao: so mais fceis de decifrar do que o Capital, o qual sujeito a mal-entendidos por estar estruturado de uma maneira rigorosamente lgica enquanto uma crticaimanente isto , uma crtica desenvolvida a partir de um ponto de vista que imanente ao seu objetode investigao, em vez de externo. Como os Grundrisse no esto estruturados to rigorosamente, oobjetivo estratgico geral da anlise categorial de Marx mais acessvel, particularmente naquelassees onde ele apresenta sua concepo da contradio bsica da sociedade capitalista. Nelas, suaanlise do ncleo essencial do capitalismo e da natureza da sua superao histrica tem importantesignificao na atualidade, pois lana dvidas acerca das interpretaes de sua teoria, centradas emconsideraes relativas ao mercado e dominao e explorao de classe. (16)

    Tentarei mostrar como essas sees dos Grundrisse indicam que as categorias da teoria de Marx sohistoricamente especficas, que sua crtica do capitalismo direcionada tanto para seu modo deproduzir como para seu modo de distribuir, e que sua noo da contradio bsica do capitalismo nopode ser concebida simplesmente como uma contradio entre o mercado e a propriedade privada, deum lado, e a produo industrial, de outro. Em outras palavras, minha discusso acerca do tratamentodado por Marx contradio do capitalismo nos Grundrisse aponta para a necessidade de umareconsiderao de mais longo alcance sobre a natureza de sua teoria crtica madura: em particular,sugere que sua anlise do trabalho no capitalismo historicamente especfica, e sua teoria crticamadura uma crtica ao trabalho no capitalismo, no uma crtica ao capitalismo do ponto de vista dotrabalho. Assim estabelecido, estarei em condies para me referir ao problema do porqu, na crticade Marx, as categorias fundamentais da vida social no capitalismo so categorias do trabalho. Isto no, absolutamente, evidente por si mesmo, e no pode ser justificado meramente apontando para aimportncia bvia do trabalho para a vida social humana em geral. (17)

    Nos Grundrisse, a anlise de Marx acerca da contradio entre as "relaes de produo" e as "forasprodutivas" no capitalismo difere da anlise das teorias marxistas tradicionais, que se concentram nomodo de distribuir e entendem a contradio como uma contradio entre as esferas da distribuio eda produo. Marx critica, explicitamente, aquelas abordagens tericas que conceituam atransformao histrica em termos do modo de distribuir sem considerar a possibilidade de que omodo de produzir seja transformado. Marx toma como exemplo de tais abordagens, a afirmao deJohn Stuart Mill para quem "as leis e condies da produo da riqueza compartilham do carter dasverdades fsicas... No assim com a distribuio da riqueza. Esta , unicamente, um problema dasinstituies humanas." (18) Esta separao, de acordo com Marx, ilegtima: "As 'leis e condies' daproduo da riqueza e as leis da' distribuio da riqueza' so as mesmas leis sob diferentes formas, eambas se modificam, experimentam o mesmo processo histrico; sendo, enquanto tal, puramentemomentos de um processo histrico." (19)

    A noo de Marx sobre o modo de distribuir, no entanto, no se refere apenas maneira pela qual asmercadorias e o trabalho so socialmente distribudos (por exemplo, atravs de mecanismo domercado); vai mais adiante, ao descrever que "a condio de no-proprietrios dos trabalhadores e a

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    mercado); vai mais adiante, ao descrever que "a condio de no-proprietrios dos trabalhadores e a...apropriao do trabalho alheio pelo capital", (20) isto , as relaes capitalistas de propriedadeenquanto "modos de distribuio [que ] so as prprias relaes de produo, porm sub speciedistributionis. (21) Estas passagens indicam que a noo de Marx de modo de distribuio envolve asrelaes capitalistas de propriedade. Elas tambm implicam que sua noo sobre "relaes deproduo" no pode ser entendida apenas em termos do modo de distribuir, mas deve tambm serconsiderada como sub specie productionis - por outras palavras, que as relaes de produo nopodem ser entendidas como tradicionalmente tm sido. Se Marx considera as relaes de propriedadecomo sendo relaes de distribuio, (22) decorre da que o seu conceito de relaes de produo nopode ser plenamente captado em termos de relaes capitalistas de classe, baseadas na propriedadeprivada dos meios de produo e expressas na desigual distribuio social do poder e da riqueza. Aocontrrio, aquele conceito deve tambm ser entendido com referncia ao modo de produzir nocapitalismo. (23)

    No entanto, se o processo de produo e as relaes sociais fundamentais do capitalismo esto inter-relacionados, o modo de produzir no pode ser igualado s foras produtivas, que acabam entrandoem contradio com as relaes capitalistas de produo. Em vez disso, o prprio modo de produzirdeveria ser visto como intrinsecamente relacionado ao capitalismo. Estas passagens sugerem, emoutras palavras, que a contradio marxiana no deveria ser concebida como uma contradio entre aproduo industrial de um lado, e o mercado e a propriedade privada capitalista do outro; suacompreenso acerca das foras e das relaes de produo deve ser, portanto, profundamenterepensada. A noo de Marx acerca da superao do capitalismo sugere que a mesma significa umatransformao, no somente do modo de distribuir existente, mas tambm do modo de produzir. precisamente a este respeito que, com certa simpatia, Marx aprova o significado do pensamento deCharles Fourier: "O trabalho no pode se transformar em diverso, como Fourier gostaria, o que nodesmerece sua grande contribuio em ter expressado a substituio, no da distribuio, mas doprprio modo de produzir, por uma forma superior, como o objetivo ltimo." (24)

    Assumindo que o "objetivo ltimo" a "derrubada" ou superao do prprio modo de produzir, estedeve incorporar as relaes capitalistas. Na verdade, a crtica de Marx a estas relaes aponta, numapassagem posterior, para a possibilidade de uma transformao histrica da produo:

    "No necessrio um grande esforo para compreender que, onde, e.g., o trabalho livre ou o trabalhoassalariado resultado da dissoluo da servido, o ponto de partida, as mquinas surgem comoanttese ao trabalho vivo, como propriedade que lhe alheia e como fora que lhe hostil; i.e., queelas devem confront-lo na condio de capital. Mas, da mesma forma fcil perceber que asmquinas no cessaro de ser agentes de produo social quando se tornam, e.g., propriedade detrabalhadores associados. No primeiro caso, porm, sua distribuio, i.e., em que elas no pertencemao trabalhador, obedece mesma condio de ser do modo de produo baseado no trabalhoassalariado. No segundo caso, a modificao da distribuio se iniciaria a partir de um fundamento daproduo modificado, uma nova base a ser primeiramente criada pelo processo da histria." (25)

    A fim de entender mais claramente a natureza da anlise de Marx e alcanar o que ele quer dizer ao sereferir transformao do modo de produzir, devemos examinar sua concepo quanto ao"fundamento" da produo (capitalista). Isto , devemos analisar sua noo de "modo de produobaseado no trabalho assalariado" e refletir sobre o que poderia significar uma "base de produomodificada".

    O NCLEO FUNDAMENTAL DO CAPITALISMO

    Minha investigao da anlise do capitalismo feita por Marx inicia-se com uma seo crucialmenteimportante dos Grundrisse, intitulada "Contradio entre a base da produo burguesa (valor comomedida) e seu desenvolvimento". (26) Marx comea esta seo como se segue: " A troca de trabalhovivo por trabalho objetivado -i.e., o posicionamento do trabalho social na forma da contradio entrecapital e trabalho assalariado - o desenvolvimento ltimo da relao valor e da produo baseada novalor." (27) O ttulo e a frase inicial desta seo dos Grundrisse indicam que, para Marx, a categoriavalor expressa as relaes bsicas de produo do capitalismo -aquelas relaes sociais quecaracterizam a especificidade do capitalismo como um modo de vida social -, bem como indicam que aproduo no capitalismo est baseada no valor. Em outras palavras, valor, na anlise de Marx,constitui o "fundamento da produo burguesa."

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    Uma peculiaridade da categoria valor que aparenta expressar tanto uma determinada forma derelaes sociais como uma forma particular de riqueza. Qualquer anlise do valor deve, portanto,esclarecer ambos os aspectos. Temos observado que o valor, enquanto uma categoria de riqueza,geralmente tem sido concebido como uma categoria do mercado. Contudo, quando Marx se refere "troca" no desenrolar da anlise, quando da considerao da "relao valor" nas passagens citadas, ofaz tendo em vista o processo capitalista de produo em si. A troca a qual se refere no prpria dacirculao, mas sim, troca que ocorre na produo -"a troca de trabalho vivo por trabalhoobjetivado". Isto implica que o valor no deveria ser entendido meramente como uma categoria domodo de distribuio de mercadorias, isto , como um argumento para fundamentar o automatismo domercado auto-regulvel. Ao contrrio, deveria ser entendido como uma categoria da produocapitalista em si. Parece, ento, que a noo marxiana da contradio entre as foras e as relaes deproduo deveria ser reinterpretada como se referindo a momentos distinguveis do processo deproduo. O fato da "produo baseada no valor" e "o modo de produo baseado no trabalhoassalariado" parecerem estar intimamente relacionados requer um exame mais aprofundado.

    Quando Marx discute a produo baseada no valor, ele a descreve como um modo de produo cujo"pressuposto - e permanece sendo - a quantidade de tempo de trabalho direto, a quantidade detrabalho empregado, como o fator determinante da produo de riqueza." (28) Segundo Marx, o valor,como uma forma de riqueza, caracterizado por ser constitudo a partir do dispndio de trabalhohumano direto no processo de sua produo - por permanecer preso a tal dispndio como o fatordeterminante na produo da riqueza e por ter uma dimenso temporal. O valor uma forma socialque expressa o, e est baseada no, dispndio de tempo de trabalho direto. Para Marx, esta forma estno corao da sociedade capitalista. Como uma categoria das relaes sociais fundamentais queconstituem o capitalismo, o valor expressa o que , e permanece sendo, o fundamento bsico daproduo capitalista. Todavia, surge uma crescente tenso entre este fundamento do modo capitalistade produo e os resultados de seu prprio desenvolvimento histrico:

    "Porm, medida que a grande indstria se desenvolve, a criao de riqueza real vai depender menosdo tempo de trabalho, e da quantidade de trabalho empregado, e passa a depender mais da foraprodutiva dos agentes [instrumentos] postos em movimento durante o tempo de trabalho, cuja"potncia efetiva" , em si mesma, ... desproporcional ao tempo de trabalho direto gasto em suaproduo; mas que depende, sobretudo, do estado geral da cincia e do progresso da tecnologia Ariqueza real manifesta-se, excepcionalmente, ...na fantstica desproporo entre o tempo de trabalhoaplicado e seu produto, bem como no desequilbrio qualitativo entre trabalho, reduzido a uma puraabstrao, e a capacidade produtiva do processo de produo que ele supervisiona" (29)

    O contraste entre valor e "riqueza real" - isto , o contraste entre a forma de riqueza que depende do"tempo de trabalho e do montante de trabalho empregado" e outra que no depende - crucial nestascitaes e para o entendimento da teoria do valor em Marx e sua concepo quanto contradiobsica da sociedade capitalista. O contraste sugere claramente que o valor no se refere riqueza emgeral, mas uma categoria historicamente especfica e transitria que pretende expressar ofundamento da sociedade capitalista. Alm do mais, o valor no somente uma categoria do mercado,uma categoria que capta um modo particular da distribuio social da riqueza. Tal interpretao,centrada no mercado - e que est prxima da posio de Mill de que o modo de distribuio mutvelhistoricamente, mas o modo de produo no o - implica a existncia de uma forma transhistrica deriqueza diferentemente distribuda nas distintas sociedades. Porm, de acordo com Marx, o valor uma forma historicamente especfica de riqueza social e est intrinsecamente relacionada a um modode produo historicamente especfico. Dizer que as formas de riqueza podem ser historicamenteespecficas significa, obviamente, que a riqueza social no a mesma em todas as sociedades. Adiscusso de Marx sobre estes aspectos do valor sugere, como veremos, que a natureza do trabalho e averdadeira tessitura das relaes sociais diferem em vrias formaes sociais.

    No decorrer deste trabalho, investigarei o carter histrico do valor e tentarei esclarecer a relao queMarx apresenta entre valor e tempo de trabalho. Antecipando alguma coisa, muitos argumentos comrespeito anlise de Marx acerca da exclusividade do trabalho como a fonte de valor no reconhecemsua distino entre "riqueza real' (ou "riqueza material") e valor. A "teoria do valor trabalho" de Marx,no obstante, no uma teoria das propriedades imanentes ao trabalho em geral, mas uma anliseda especificidade histrica do valor como uma forma de riqueza e do trabalho que, supostamente, aconstitui. Consequentemente, irrelevante para as pretenses de Marx argumentar a favor ou contrasua teoria do valor, como se esta significasse uma teoria do trabalho-riqueza (transhistrica) - isto ,

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    sua teoria do valor, como se esta significasse uma teoria do trabalho-riqueza (transhistrica) - isto ,como se Marx tivesse escrito uma economia poltica em vez de uma crtica economia poltica. (30)Obviamente, isto no quer dizer que a interpretao da categoria valor desenvolvida por Marx, comouma categoria historicamente especfica, comprove que sua anlise da sociedade moderna estejacorreta. Porm, requer que a anlise de Marx seja considerada em seus prprios termos,historicamente determinados, e no como se fosse uma teoria transhistrica de economia poltica, dotipo que ele criticou severamente.

    O valor, no contexto da estrutura analtica de Marx, uma categoria crtica que revela a especificidadehistrica da forma de riqueza e da maneira de produzir caractersticas do capitalismo. O pargrafoanteriormente citado mostra que, de acordo com Marx, o modo de produo baseado no valordesenvolve-se de uma maneira tal que aponta para a possvel negao histrica do prprio valor. Marxargumenta que, no curso do desenvolvimento da produo industrial capitalista, o valor torna-semenos e menos adequado como uma medida da "riqueza real" produzida. Ele compara o valor, umaforma de riqueza circunscrita ao dispndio de tempo de trabalho humano, ao gigantesco potencial deproduo de riqueza associado cincia e tecnologia modernas. O valor torna-se anacrnico, tendoem vista o potencial criado pelo sistema de produo ao qual d sustentao. A realizao destepotencial acarreta a abolio do valor.

    Esta possibilidade histrica, no entanto, no significa meramente que quantidades cada vez maioresde mercadorias poderiam ser produzidas com base no modo de industrial produo existente edistribudas mais equitativamente. A lgica da crescente contradio entre "riqueza real" e valor, queaponta para a possibilidade de que a primeira supere a segunda, como a forma determinante deriqueza social, tambm implica na possibilidade de um processo de produo diferente, um processobaseado numa mais nova e adequada estrutura emancipatria do trabalho social:

    "O trabalhador no mais se apresenta to importante quanto antes, para ser includo no processo deproduo; ao contrrio, o ser humano tende a se transformar muito mais num supervisor e reguladordo processo de produo em si ... Ele se coloca ao lado do processo de produo em vez de seuprincipal ator. Com esta transformao, o que ele conclui no nem trabalho humano direto e nem otempo durante o qual ele trabalha. Ao contrrio, em virtude da incluso enquanto um corpo socialocorre a apropriao de sua capacidade produtiva geral, de sua compreenso da natureza e domniosobre o trabalho - em uma palavra, ocorre o desenvolvimento do indivduo social que surge como agrande pedra fundamental da produo e da riqueza. O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre oqual a riqueza presente est baseada, aparece como uma desprezvel pilastra frente a esta novapotncia criada pela prpria indstria de larga escala." (31)

    A seo dos Grundrisse que estamos considerando deixa extremamente claro que, para Marx, asuperao do capitalismo envolve a abolio do valor como a forma social de riqueza, a qual, por suavez, exige a superao do modo determinado de produzir desenvolvido sob o capitalismo.Explicitamente afirma que a abolio do valor significa que o tempo de trabalho no mais serviriacomo medida de riqueza, e que a produo de riqueza no mais seria efetuada primordialmente pelotrabalho humano direto aplicado ao processo de produo: "To logo o trabalho na sua forma diretatenha cessado de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser suamedida e, por conseguinte, o valor de troca (deve deixar de ser a medida) do valor de uso." (32)

    Em outras palavras, com sua teoria do valor, Marx analisa as relaes sociais bsicas do capitalismo,sua forma de riqueza e sua forma material de produo, como estando inter-relacionadas. De acordocom a anlise de Marx, como a produo se apoia no valor, o modo de produo fundado no trabalhoassalariado e a produo industrial baseada no trabalho proletrio esto intrinsecamente relacionados.Sua concepo do carter crescentemente anacrnico do valor tambm se estende ao cartercrescentemente anacrnico do processo industrial de produo desenvolvido sob o capitalismo. Asuperao do capitalismo, de acordo com Marx, acarreta uma transformao fundamental da formamaterial de produo, no modo como as pessoas trabalham.

    Esta posio difere fundamentalmente do marxismo tradicional que, conforme j foi observado,concentra sua crtica apenas na transformao do modo de distribuio e trata o modo industrial deproduo como uma evoluo tcnica que se torna incompatvel com o capitalismo. No que foiapresentado at aqui fica bvio que Marx no tratou a contradio do capitalismo como sendo umacontradio entre a produo industrial e o valor, isto , entre a produo industrial e as relaessociais capitalistas. Ao contrrio, considerou a primeira moldada pela segunda: a produo industrial

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    sociais capitalistas. Ao contrrio, considerou a primeira moldada pela segunda: a produo industrial o "modo de produo baseado no valor". neste sentido que, em seus ltimos escritos, Marx refere-se,explicitamente, ao modo industrial de produo como uma "forma de produo especificamentecapitalista ...(tambm ao nvel tecnolgico)" (33) e, em assim fazendo, d a entender que deve sertransformado com a superao do capitalismo.

    Obviamente, o significado das categorias bsicas de Marx no pode ser resumido em poucas palavras.A segunda metade deste livro ser dedicada elaborao de sua anlise do valor e do papel destacategoria na conformao do processo de produo. Neste momento, simplesmente observaria que ateoria crtica de Marx, como est expressa nessas passagens dos Grundrisse, no uma forma dedeterminismo tecnolgico, pois trata a tecnologia e o processo de produo como socialmenteconstitudos, no sentido de que so amoldados pelo valor. Portanto, no deveriam ser absolutamenteidentificados com a noo de Marx de "foras produtivas", as quais entram em contradio com asrelaes sociais capitalistas. Apesar disso, incorporam uma contradio: a anlise de Marx estabeleceuma distino entre a realidade da forma de produo constituda pelo valor e seu potencial - umpotencial que fundamenta a possibilidade de um novo modo de produo.

    Est claro, a partir das citadas passagens dos Grundrisse que, quando Marx descreve a superao dacontradio do capitalismo e afirma que a "massa de trabalhadores deve, por ela mesma, se apropriarde seu prprio trabalho excedente", (34) ele est se referindo no apenas expropriao dapropriedade privada e ao uso do produto excedente de uma maneira mais racional, humana eeficiente. A apropriao qual se refere vai muito alm disso, pois tambm envolve a aplicaoreflexiva das foras produtivas desenvolvidas sob o capitalismo, ao prprio processo de produo. Isto, ele vislumbra que o potencial embutido na produo capitalista avanada poderia tornar-se o meiopelo qual o prprio processo de produo industrial poderia ser transformado; o meio pelo qual osistema de produo social, no qual a riqueza criada atravs da apropriao do tempo de trabalhodireto e do trabalho dos operrios, como dentes de engrenagem de um aparato produtivo, poderia serabolido. De acordo com Marx, estes dois aspectos do modo de produo industrial capitalista estorelacionados. Por conseguinte, a superao do capitalismo, conforme apresentada nos Grundrisse,implicitamente envolve a superao tanto dos aspectos formais, quanto dos aspectos materiais domodo de produo fundado no trabalho assalariado. Ela acarreta a abolio de um sistema dedistribuio baseado na troca de fora-de-trabalho, enquanto uma mercadoria, por um salrio com oqual os meios de consumo so adquiridos; tambm acarreta a abolio de um sistema de produobaseado no trabalho proletrio, isto , baseado no tipo de trabalho unilateral e fragmentado,caracterstico da produo capitalista industrial. A superao do capitalismo, em outras palavras,tambm envolve a superao do trabalho concreto realizado pelo proletariado.

    Esta interpretao, na medida em que fornece a base para uma crtica histrica da forma concreta deproduo no capitalismo, lana luz sobre a bem conhecida afirmao de Marx de que a formao socialcapitalista sinaliza o fim da pr-histria da sociedade humana. (35) A idia da superao do trabalhoproletrio implica que a "pr-histria" deveria ser entendida como se referindo quelas formaessociais nas quais a produo de excedente continua a existir e est baseada primordialmente notrabalho humano direto. Esta caracterstica compartilhada por sociedades nas quais o excedente criado pelo escravo, pelo servo ou pelo trabalhador assalariado. Todavia, de acordo com Marx, aformao baseada no trabalho assalariado caracteriza-se por possuir uma dinmica que lhe exclusiva, a partir da qual emerge a possibilidade histrica de que a produo excedente baseada notrabalho humano como um elemento imanente ao processo de produo, possa ser superada. Umanova formao social pode ser criada na qual o "trabalho excedente da massa tenha cessado de ser acondio para o desenvolvimento da riqueza geral, da mesma forma que o no-trabalho de poucos,tenha deixado de ser a condio para o desenvolvimento das potencialidades gerais do crebrohumano." (36)

    Para Marx, ento, o fim da pr-histria significa a superao da separao e oposio entre trabalhomanual e intelectual. No entanto, dentro do quadro de sua crtica histrica, esta oposio no pode sersuperada simplesmente com a juno do trabalho manual e do trabalho intelectual, como praticadosna atualidade (por exemplo, como enaltecido na Repblica Popular da China nos anos de 1960). NosGrundrisse, o tratamento dado por Marx produo demonstra que no apenas a separao destasmodalidades de trabalho, mas tambm as caractersticas determinantes de cada uma delas, estoenraizadas na forma de produo dominante. A separao somente poderia ser superada mediante atransformao das modalidades de trabalho manual e intelectual existentes, isto , pela constituiohistrica de uma nova estrutura e organizao social do trabalho. Tal nova estrutura toma-se possvel,

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    histrica de uma nova estrutura e organizao social do trabalho. Tal nova estrutura toma-se possvel,de acordo com a anlise de Marx, quando a produo excedente no mais estiver necessria eprimordialmente baseada no trabalho humano direto.

    CAPITALISMO, TRABALHO E DOMINAO

    A teoria social de Marx - em oposio posio marxista tradicional - conduz, dessa maneira, a umaanlise crtica do modo de produzir desenvolvido sob o capitalismo e possibilidade de suatransformao radical. Claramente, isso no significa a glorificao produtivista desse modo deproduzir. Marx, ao tratar o valor como uma categoria historicamente determinada de um modo deproduo especfico, e no apenas como um modo de distribuio, sugere - e isto crucial - que otrabalho que produz valor no deveria ser identificado com trabalho como se este existissetranshistoricamente. Ao contrrio, trata-se de uma forma historicamente especfica que seria abolida,no realizada, com a superao do capitalismo. A concepo de Marx acerca da especificidade histricado trabalho no capitalismo requer uma reinterpretao fundamental de sua compreenso das relaessociais que caracterizam esta sociedade. Estas relaes so, segundo Marx, constitudas pelo prpriotrabalho e, consequentemente, tm um carter peculiar, quase-objetivo; e no podem sercompletamente apreendidas em termos de relaes de classe.

    No que diz respeito s relaes sociais fundamentais do capitalismo, as diferenas entre ainterpretao "categorial" e aquelas "centradas em classes" so considerveis. A primeira refere-se auma crtica do trabalho no capitalismo; a segunda, uma crtica do capitalismo do ponto de vista dotrabalho. Essas interpretaes embutem concepes bastante diferentes acerca do modo de dominaodeterminante no capitalismo e, por conseguinte, quanto natureza de sua superao. Asconsequncias dessas diferenas tornar-se-o mais claras medida que analiso mais de perto adiscusso de Marx sobre como o carter especfico do trabalho no capitalismo constitui suas relaessociais bsicas e como ele imanente, tanto especificidade do valor, enquanto uma forma de riqueza,quanto a natureza do modo industrial de produzir. O carter especfico do trabalho - dando umpequeno salto adiante neste momento - tambm constitui a base para uma forma de dominao socialhistoricamente especfica, abstrata e impessoal.

    Na anlise de Marx, a dominao social no capitalismo, em seu nvel mais fundamental, no consistena dominao das pessoas por outras pessoas, mas na dominao de pessoas por estruturas sociaisabstratas constitudas pelas prprias pessoas. Marx procurou desvendar esta forma de dominaoabstrata, estrutural - que envolve e se estende para alm da dominao de classe - com suas categorias,a mercadoria e o capital. Esta dominao abstrata no somente determina a finalidade da produo nocapitalismo, segundo Marx, como tambm sua forma material. Dentro do contexto do quadro deanlise de Marx, a forma de dominao social que caracteriza o capitalismo no , em ltima instncia,uma decorrncia da propriedade privada, da propriedade dos meios de produo e da apropriao doproduto excedente pelos capitalistas. Ao contrrio, [a dominao] est fundamentada na forma valorda prpria riqueza, uma forma de riqueza social que contrape o trabalho vivo (os trabalhadores) auma fora estruturalmente alheia e dominante. (37) Tentarei mostrar como, para Marx, esta oposioentre a riqueza social e as pessoas est baseada no carter especfico do trabalho na sociedadecapitalista.

    De acordo com Marx, o processo pelo qual o trabalho no capitalismo molda estruturas sociaisabstratas que dominam as pessoas o mesmo que impulsiona um rpido desenvolvimento histriconas foras produtivas e no conhecimento da humanidade. Todavia, isso assim ocorre mediante afragmentao do trabalho social - isto , s expensas da limitao e da reduo da importncia doindivduo em particular. (38) Marx argumenta que a produo baseada no valor cria enormespossibilidades de riqueza, mas somente "estabelecendo ...a totalidade do tempo de um indivduoenquanto tempo de trabalho, [o que resulta em] sua degradao, por conseguinte, condio de merotrabalhador." (39) Sob o capitalismo a capacidade e o conhecimento da humanidade so acrescidosenormemente, mas de uma forma alienada que oprime as pessoas e tende a destruir a natureza. (40)

    Desse modo, uma marca central do capitalismo que as pessoas realmente no controlam sua prpriaatividade produtiva ou o que elas produzem, mas so, em ltima instncia, dominadas pelosresultados desta atividade. Esta forma de dominao expressa como uma contradio entreindivduos e sociedade e constituda como uma estrutura abstrata. A anlise de Marx sobre esta formade dominao uma tentativa de fundamentar e explicar o que ele tratou como sendo alienao emseus primeiros escritos. Sem entrar numa discusso extensiva da relao entre os escritos iniciais de

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    seus primeiros escritos. Sem entrar numa discusso extensiva da relao entre os escritos iniciais deMarx e sua anlise crtica mais recente, tentarei mostrar que no foram abandonados os temascentrais contidos nos trabalhos iniciais, mas sim que alguns - por exemplo, a alienao - permanecemcentrais em sua teoria. Na verdade, somente nos trabalhos mais recentes que Marx fundamentarigorosamente a posio que ele apresenta nos Economic and Philosophic Manuscripts of 1844especialmente, que a propriedade privada no a causa social, mas a consequncia do trabalhoalienado e que, portanto, a superao do capitalismo no deveria ser concebida somente em termos daabolio da propriedade privada, mas deve acarretar a superao de tal trabalho. (41) Ele fundamentaesta posio em suas ltimas contribuies com a anlise do carter especfico do trabalho nocapitalismo. Todavia, esta anlise tambm exige uma modificao na sua noo inicial da alienao. Ateoria da alienao implcita na teoria crtica madura de Marx no se refere alienao daquilo quepreviamente existia como propriedade dos trabalhadores (e que, portanto, deveria ser exigida poreles). Ao contrrio, refere-se ao processo de constituio histrica de capacidades e de conhecimentossociais que no pode ser compreendido com referncia s imediatas habilidades e destrezas doproletariado. Com sua categoria o capital, Marx analisou como essas capacidades e conhecimentosociais so moldadas em formas