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46 fevereiro /2011 Portugal ( fotos Milton Carello (queijos pág. 44) e divulgação Joana Garcia, que criou o queijo de pasta amanteigada em 2004 QUEIJEIRA por Flávia Pinho, de Évora, Portugal Todo santo dia, antes das 7 horas, cerca de 2.000 litros de leite de ovelha são despejados nos tanques da pequena queijaria Monte da Vinha, na minúscula Vimieiro, a 40 quilômetros de Évora, no Alentejo. Ao longo da manhã, dez funcionárias impecavelmente trajadas de bran- co coagulam o leite usando apenas uma infusão a frio de cardo seco (Cynara cardunculus), pequena flor de colora- ção lilás que cresce espontaneamente nos campos portu- gueses, usada também como coagulante do famoso queijo da Serra da Estrela. Depois, as funcionárias colocam o coa- lho já salgado nas formas plásticas e as levam, sobre enor- mes grades de inox cobertas com tela, para duas câmaras de cura, onde temperatura e umidade são rigorosamente controladas. Esse ritual, que se repete diariamente no inverno e três vezes por semana nas demais estações do ano, dá origem a uma verdadeira iguaria portuguesa que vem cruzando as fronteiras da terrinha. Criado em 2004 por Joana Garcia, 39 anos, o queijo de pasta amanteigada Monte da Vinha já é exportado para Espanha, Alemanha, Bélgica, Estados Unidos e França. E, em maio de 2011, deve chegar ao Brasil, importado pela Adega Alentejana. A razão de tamanho sucesso está na textura ímpar – basta cortar a superfí- cie, como se fosse uma tampa, para encontrar o miolo quase líquido, uma explosão de sabor e aroma à qual não se pode ficar indiferente. O mais incrível é que esse resultado foi obra do acaso. “Criou-se uma microflora ambiental nas câmaras, de forma aleatória, que gera essa cremosidade.” Até hoje, ninguém sabe explicar a causa exata desta flora e a Universidade de Évora até pretende estudar o fenômeno. Sete anos após a inauguração, a produção anual da Monte da Vinha supera as 300.000 unidades. A linha se divide em três tipos – além da versão amanteigada, saem das câmaras os queijos meia-cura e de pasta dura. E não faltam clientes célebres, entre eles o restaurante Fialho, uma referência gastronômica em Évora, a Tasca da Esquina, do chef Vitor Sobral, em Lisboa, e a seção gour- met da elegante loja de departamentos El Corte Inglés, também na capital portuguesa. Muitos deles recebem as entregas semanais das mãos da própria Joana, que três vezes por semana percorre os cerca de 130 quilômetros entre a fábrica e a cidade grande, com o porta-malas abarrotado de queijos. “Meus filhos vivem reclamando do cheiro”, diverte-se a falante ex-advogada, divorciada e mãe de dois garotos, de 10 e 5 anos. DE ESTRELAS Em um vilarejo de 1.600 habitantes no coração do Alentejo, Joana Garcia produz os queijos artesanais de leite de ovelha que estão ganhando o mundo

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Joana Garcia, que criou o queijo de pasta amanteigada em 2004

QUEIJEIRA

por Flávia Pinho, de Évora, Portugal

Todo santo dia, antes das 7 horas, cerca de 2.000 litros de leite de ovelha são despejados nos tanques da pequena queijaria Monte da Vinha, na minúscula Vimieiro, a 40 quilômetros de Évora, no Alentejo. Ao longo da manhã, dez funcionárias impecavelmente trajadas de bran-co coagulam o leite usando apenas uma infusão a frio de cardo seco (Cynara cardunculus), pequena flor de colora-ção lilás que cresce espontaneamente nos campos portu-gueses, usada também como coagulante do famoso queijo da Serra da Estrela. Depois, as funcionárias colocam o coa-lho já salgado nas formas plásticas e as levam, sobre enor-mes grades de inox cobertas com tela, para duas câmaras de cura, onde temperatura e umidade são rigorosamente controladas. Esse ritual, que se repete diariamente no inverno e três vezes por semana nas demais estações do ano, dá origem a uma verdadeira iguaria portuguesa que vem cruzando as fronteiras da terrinha.

Criado em 2004 por Joana Garcia, 39 anos, o queijo de pasta amanteigada Monte da Vinha já é exportado para Espanha, Alemanha, Bélgica, Estados Unidos e França. E, em maio de 2011, deve chegar ao Brasil, importado pela Adega Alentejana. A razão de tamanho sucesso está na textura ímpar – basta cortar a superfí-cie, como se fosse uma tampa, para encontrar o miolo quase líquido, uma explosão de sabor e aroma à qual não se pode ficar indiferente. O mais incrível é que esse resultado foi obra do acaso. “Criou-se uma microflora ambiental nas câmaras, de forma aleatória, que gera essa cremosidade.” Até hoje, ninguém sabe explicar a causa exata desta flora e a Universidade de Évora até pretende estudar o fenômeno.

Sete anos após a inauguração, a produção anual da Monte da Vinha supera as 300.000 unidades. A linha se divide em três tipos – além da versão amanteigada, saem das câmaras os queijos meia-cura e de pasta dura. E não faltam clientes célebres, entre eles o restaurante Fialho, uma referência gastronômica em Évora, a Tasca da Esquina, do chef Vitor Sobral, em Lisboa, e a seção gour-met da elegante loja de departamentos El Corte Inglés, também na capital portuguesa. Muitos deles recebem as entregas semanais das mãos da própria Joana, que três vezes por semana percorre os cerca de 130 quilômetros entre a fábrica e a cidade grande, com o porta-malas abarrotado de queijos. “Meus filhos vivem reclamando do cheiro”, diverte-se a falante ex-advogada, divorciada e mãe de dois garotos, de 10 e 5 anos.

DE ESTRELASEm um vilarejo de 1.600 habitantes no coração do Alentejo, Joana Garcia produz os queijos artesanais de leite de ovelha que estão ganhando o mundo

Portugal(

Difícil imaginar que há oito anos ela não fazia ideia de como se fabrica um queijo. “Meu irmão tinha uma cria-ção de ovelhas e nosso pai sugeriu montar a fábrica. Só que ninguém na família dominava o assunto na época”, confessa. Foram 300 mil euros de investimento e um ano de estudos e tentativas, muitas delas frustradas. “Não temos cursos nessa área em Portugal. O jeito foi ler muito, visitar queijarias tradicionais e desenvolver uma receita própria. Até a combinação perfeita entre ventila-ção, umidade e temperatura das câmaras de cura, tive de encontrar na prática”, lembra a empresária.

Joana perdeu a conta de quantas madrugadas passou em claro, diante das tinas de coalho ou dentro das câma-ras frias. E de quantas vezes visitou a criação de ovelhas para conferir de perto a produção de leite. “Quando não cheirava a queijo, cheirava a esterco”, ela ri. Ficou para a história uma certa noite, em dezembro de 2004, quando um grande lote de queijos estava prestes a ser embalado. Seria o primeiro Natal da Monte da Vinha, faturamento gordo à vista. Na maternidade, onde acabara de dar à luz o segundo filho, Joana ficou sabendo que um pico de energia havia provocado o superaquecimento da câmara de cura. Não sobrou nada. “Assinei um termo de res-ponsabilidade para receber alta do hospital e fui para a fábrica com o meu filho nos braços”, lembra.

A criação de ovelhas da família deu origem a queijaria de Joana, que começa a exportar para o Brasil neste ano

Hoje, a agenda da empresária não envolve tanto traba-lho braçal – ela até mantém as unhas impecavelmente pintadas de vermelho, um luxo impensável na época em que vivia com as mãos na produção. Agora, as demandas são outras. Enquanto duas engenheiras de alimentos supervisionam a lida diária, Joana se encarrega das feiras internacionais, entre elas a Alimentaria, de Barcelona, maior evento do setor na Espanha, e dos contatos com virtuais importadores. Em junho do ano passado, ela veio ao Brasil e mostrou seu queijo no Gastro-pop, even-to gastronômico que a chef Carla Pernambuco promove periodicamente em seu Studio 768, em São Paulo. Aproveitou para sedimentar o contrato com a importa-dora Adega Alentejana, que tenta há quatro anos desem-baraçar a complicada burocracia para trazer os queijos Monte da Vinha para cá. “Agora só falta a aprovação do rótulo pelo Ministério da Agricultura”, anuncia o pro-prietário, o alentejano Manuel Chicau. O primeiro lote, com 2.000 queijos de pasta amanteigada de 110 gramas, deve chegar ao preço de R$ 12 a unidade.

É o próprio Chicau que dá a dica de como saborear a iguaria portuguesa: “Basta um bom pedaço de pão ita-liano, o mais parecido que temos aqui com o pão alen-tejano, um belo vinho, e temos uma grande entrada. Ou uma sobremesa, adoro das duas maneiras.” Agora é esperar até maio, para desgustar este queijo único.

Monte da Vinha QueijariaEstrada Nacional 4, Arraiolos Vimieirotel.: 00351 266 467-565www.queijariamontedavinha.com

O cardo seco, usado como coagulante de queijos, e, abaixo,a produção da queijaria

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