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POR UMA PÓETICA NO CAMPO: OS DESAFIOS DA ARTE- EDUCAÇÃO NO MEIO RURAL DO ALTO VALE PIRANGA/MG MACEDO, Juliana de Conti 1 - UFOP Grupo de trabalho - Educação, Arte e Movimento Agência Financiadora: não contou com financiamento. Resumo O presente texto faz uma análise das políticas públicas de implementação do ensino de arte no Brasil e contextualiza sua prática nas comunidades rurais do Alto Vale Piranga, região da Zona da Mata, no interior do estado de Minas Gerais. A pesquisa emergiu da monografia de conclusão do curso de graduação em Pedagogia, defendida pela autora em 2012. Nela, procurou-se compreender a importância da inserção das artes na agenda política da educação do campo como modalidade sensibilizadora da cultura local. Compreendendo o conceito novo, educação no campo, como uma procura de uma nova ordem social (CADART,2004), criado a partir da articulação dos movimentos sociais do campo, pesquisadores e o Ministério da Educação. A pesquisa observou a relevância do ensino de arte na construção de uma educação diferenciada para as populações do campo que não querem perder sua identidade, cultura e modo de vida. Constatou-se, entretanto, haver um grande despreparo docente, do Estado e da escola o que acarreta num equivocado e inexpressivo ensino de arte. Como contraponto, destaca-se a grande tradição cultural local, manifestada pelos Congados, pela Folia de Reis ou pela a experiência realizada pela Associação Cultural Pequeno Príncipe em que os professores utilizaram-se de técnicas associadas à etnografia na construção de textos dramatúrgicos. O referencial teórico do trabalho foi a tese do pedagogo João Francisco Duarte (1999), cuja ideia principal consiste na defesa da “educação através da arte”.Trata-se de uma pesquisa qualitativa, os dados foram coletados com base na observação participante, análise de documentos e entrevistas de cunho biográfico.Os procedimentos metodológicos, acompanhados aos referências teóricos desta pesquisa, viabilizaram uma reflexão acerca da complexidade do ensino da arte no meio rural. Palavras-chave: Política-Pública. Ensino de Arte. Educação do Campo. Alto Vale Piranga. 1 Graduada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto, especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Vale Piranga, MG. Professora de Arte efetiva na rede municipal de Ouro Preto. Graduanda em Pedagogia pela UFOP e mestranda do programa de pós-graduação em Educação- UFOP,. Participa do Grupo de Pesquisa Formação e Profissão Docente da UFOP.

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POR UMA PÓETICA NO CAMPO: OS DESAFIOS DA ARTE-

EDUCAÇÃO NO MEIO RURAL DO ALTO VALE PIRANGA/MG

MACEDO, Juliana de Conti1- UFOP

Grupo de trabalho - Educação, Arte e Movimento Agência Financiadora: não contou com financiamento.

Resumo O presente texto faz uma análise das políticas públicas de implementação do ensino de arte no Brasil e contextualiza sua prática nas comunidades rurais do Alto Vale Piranga, região da Zona da Mata, no interior do estado de Minas Gerais. A pesquisa emergiu da monografia de conclusão do curso de graduação em Pedagogia, defendida pela autora em 2012. Nela, procurou-se compreender a importância da inserção das artes na agenda política da educação do campo como modalidade sensibilizadora da cultura local. Compreendendo o conceito novo, educação no campo, como uma procura de uma nova ordem social (CADART,2004), criado a partir da articulação dos movimentos sociais do campo, pesquisadores e o Ministério da Educação. A pesquisa observou a relevância do ensino de arte na construção de uma educação diferenciada para as populações do campo que não querem perder sua identidade, cultura e modo de vida. Constatou-se, entretanto, haver um grande despreparo docente, do Estado e da escola o que acarreta num equivocado e inexpressivo ensino de arte. Como contraponto, destaca-se a grande tradição cultural local, manifestada pelos Congados, pela Folia de Reis ou pela a experiência realizada pela Associação Cultural Pequeno Príncipe em que os professores utilizaram-se de técnicas associadas à etnografia na construção de textos dramatúrgicos. O referencial teórico do trabalho foi a tese do pedagogo João Francisco Duarte (1999), cuja ideia principal consiste na defesa da “educação através da arte”.Trata-se de uma pesquisa qualitativa, os dados foram coletados com base na observação participante, análise de documentos e entrevistas de cunho biográfico.Os procedimentos metodológicos, acompanhados aos referências teóricos desta pesquisa, viabilizaram uma reflexão acerca da complexidade do ensino da arte no meio rural. Palavras-chave: Política-Pública. Ensino de Arte. Educação do Campo. Alto Vale Piranga.

1 Graduada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto, especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Vale Piranga, MG. Professora de Arte efetiva na rede municipal de Ouro Preto. Graduanda em Pedagogia pela UFOP e mestranda do programa de pós-graduação em Educação- UFOP,. Participa do Grupo de Pesquisa Formação e Profissão Docente da UFOP.

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Introdução

Num primeiro momento faremos uma síntese histórica da política educacional,

observando a trajetória do ensino da arte no âmbito das legislações brasileiras e a sua

contraditória ideologia: associar sensibilidade criativa aos interesses utilitaristas que

permeiam o ensino brasileiro.

Num segundo momento, avaliaremos o ensino de arte nas escolas dos municípios do

Alto Vale Piranga2, Zona da Mata Mineira.

Finalmente, o texto relata experiências em que o docente investiga e insere na sua

prática as culturas de resistência encontradas na região estudada que funcionam como linhas

de fuga da expressão de seu povo frente a massacrante cultura globalizante.

Propormos uma educação significativa voltada para os valores da terra vinculada à

necessidade de olhar a educação através de uma perspectiva artística que possa desenvolver a

sensibilidade das pessoas que vivem no campo e, consequentemente, torná-las mais

conscientes de si e de sua realidade.

Duarte esclarece que o significado da existência humana está atrelado ao jogo de

sentir, no caso vivenciar, e de simbolizar, para dessa forma ordenar a linguagem. Sendo a

linguagem um fenômeno puramente social.

Para Duarte “Aprendemos a ser humanos: a perceber e a vivenciar o mundo como

homens, através da comunidade. Fora de um contexto social não há seres humanos.”

(1991,p.21). Quando a criança aprende uma linguagem simultaneamente incorpora os valores

culturais da comunidade em que está inserida. É relevante considerar que as primeiras

linguagens que o ser humano adquire são as linguagens artísticas: sons melódicos, desenhos,

encenações dramáticas e a expressão corporal. O fato é que Duarte esclarece a importância de

educar através das artes e, principalmente, através da arte local.

2 O Vale do Piranga tem início na serra da Mantiqueira onde nasce seu rio principal, o Piranga. Utilizamos a denominação Alto Vale Piranga para a microrregião que engloba as seis cidades pesquisadas (especificamente das cidades rurais de :Itaverava, Catas Altas da Noruega, Lamim, Rio Espera, Senhora de Oliveira e Cipotânea) e, também, pela similaridade cultural e habitacional entre essas cidades rurais. São vilas centenárias que conseguiram emancipação política no curto espaço de 100 anos. Seus habitantes não ultrapassam a média de dez mil e se caracterizam por se radicarem, em sua maioria, no campo. Os primeiros habitantes que ocuparam a região eram os índios das etnias Carijó, Cataguá e Botocudo. O confronto entre índios e colonizadores ocorreu como consequência das várias expedições bandeirantes que passaram na região estudada, beirando o Rio Piranga no final do Século XVII à procura de Ouro.)

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Embasados nos conceitos de capital cultural, cultura legítima, habitus e reprodução de

Pierre Bourdieu, nos perguntamos se há um processo de exclusão social reforçado pela Arte .

Levando em conta a grande influência do ambiente cultural no processo de ensino e

aprendizagem, a pesquisa analisou a constituição dos sentidos, valores, perspectivas, sonhos e

significados dos alunos da cidade de Rio Espera. Destacamos as manifestações expressivas da

arte local como o congado, a folia de reis, mas, especialmente o teatro e o trabalho

desenvolvido pela Associação Cultural Pequeno Príncipe (ACPP) que atua na região desde

2002.

Coletamos dados através de entrevistas e registros em cartórios, artigos de jornais,

fotos, manuscritos, livros e revistas, além da observação participante das aulas em escolas

formais e informais. Os sujeitos da pesquisa são jovens, adultos e crianças, observando-se o

processo educativo através da arte, especificamente, do teatro. Essa pesquisa qualitativa

caracteriza-se pela análise crítica acerca da arte-educação e das políticas educacionais e

legislações que implementam o ensino de arte na educação básica.

Educar através da Arte

Segundo Duarte, a criação, em 1816, da academia de Belas-Artes por artistas franceses

marcou a constituição da educação artística no Brasil. Porém considera que este ensino,

composto pela tendência neoclássica tenha se revelado uma “imposição de valores”, ao passo

que a arte barroca havia sido o estilo de grandes revelações e expressões artísticas no Brasil.

O neoclassicismo não combinava com a cultura sofrida de país explorado.

Outro fator que contribuiu na implantação estritamente pragmática das artes nas

escolas foi o positivismo de Auguste Comte, teoria filosófica que exerce influência até hoje

nos métodos de ensino brasileiro. As artes, para os positivistas, não são um fim em si mesmas,

mas um meio. A contribuição das artes para se atingir a verdade científica apagou as

atribuições expressivas da arte.

A Arte era encarada como um poderoso veículo para o desenvolvimento do raciocínio desde que, ensinada através do método positivo, subordinasse a imaginação à observação, identificando as leis que regem a forma (DUARTE, 1999, p.122).

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Assim, a implantação dos desenhos geométricos ocupou substancialmente o ensino

das artes. Outras formas de expressão artísticas foram ignoradas e as possibilidades de se

expressar através do desenho se restringiram a linguagens puramente técnicas.

Mesmo depois das propostas renovadoras da Semana da Arte Moderna de 1922, pouca

coisa mudou. Porém, pela primeira vez no Brasil, abriu-se a discussão em torno da arte como

processo de espontaneidade, principalmente através da arte infantil. O movimento das

Escolinhas de Arte reuniu psicólogos, artistas e pedagogos para o debate em torno da Arte–

Educação. Interessados pela liberação das experiências e sentimentos, os intelectuais

brasileiros, reconhecem a importância das artes como elemento estético, sem finalidades

práticas.

Mas nas escolas as alunas aprendiam as artes domésticas, envolvendo técnicas da

culinária, da costura e do bordado. As artes industriais eram aplicadas para os alunos que

aprendiam a técnica de confeccionar móveis e outros objetos. Essa atitude de sujeitar o ensino

das artes às categorias puramente utilitárias revela a preocupação da época em podar qualquer

iniciativa criativa e formadora de opinião.

Através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (5.692-71) o governo

militar promulgou a profissionalização da educação e, contraditoriamente, decretou a

obrigatoriedade das artes no currículo de ensino fundamental e médio.

Mesmo depois da reforma de 1971, o ensino das artes continuou fadado às exigências

utilitárias, subordinado ao sistema econômico capitalista.

Sendo a tendência oficial de nosso ensino eminentemente pragmática desde os seus primórdios, arte nunca teve nele um papel que não fosse o de mera apêndice ou de preparação para atividades superiores (DUARTE, 1999, p.125).

A educação artística implantada pela lei de 1971 não previu a ausência total de

professores habilitados na área. A criação de cursos de nível técnico e superior em Educação

Artística tentou cobrir está carência. Porém, demonstrou-se completamente ineficaz na

medida em que procurava formar o professor em diversas modalidades artísticas, no curto

prazo de três anos.

As consequências dessas medidas tornaram desastrosas para o ensino da arte nas

escolas. A arte transformou-se em confecção de artesanatos, desenhos mimeografados para

serem coloridos ressaltando datas comemorativas como se o professor houvesse transformado

em um mero decorador de eventos comemorativos.

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A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da

Educação, dispõe da obrigatoriedade do ensino da arte nos diversos níveis da educação básica.

Na prática, há um retrocesso do ensino das artes na escola. Devido muitas escolas estaduais e

municipais, após o entendimento da lei, reduzirem o número de aula de arte ao mínimo

exigido, isto é, uma aula no ensino fundamental e no médio.

O parágrafo dois do art. 26 ainda ressalta que o objetivo das aulas de arte está em

promover o desenvolvimento cultural dos alunos.

Segundo o conceito de “capital cultural” de Bourdeou, a cultura legitima, inculcação

de valores culturais de uma pequena elite dominante, se desenvolve como ação pedagógica

primeiro no âmbito familiar, e a escola de forma secundária tende reproduzir a exclusão,

mesmo de modo implícito, daquele que não possui um certo capital cultural.

O trabalho pedagógico primário, caracterizado pela formação do habitus na família,

determina o resultado escolar, sendo que as classes mais baixas tornam-se vítimas do fracasso

escolar, já que sua cultura é considerada ilegítima dentro do sistema.

Como um professor de arte, que muitas vezes também foi desprovido de capital

cultural, pode reverter o quadro de exclusão cultural e, consequentemente, social, com apenas

uma aula no ensino fundamental e médio? Além do mais, o professor de arte, ao reproduzir os

valores da cultura dominante, automaticamente, não reproduz as relações de poder de um

grupo social? Enfim, como romper com a violência simbólica dissimulada como ação

pedagógica, na inculcação de valores culturais de uma pequena elite dominante que, de forma

arbitrária, legitima seus valores como superiores?

O fato é que em 2010, houve uma alteração significativa no paragrafo: “O ensino da

arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular

obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento

cultural dos alunos”(Redação dada pela Lei nº 12.287, de 2010).

A arte trabalhada nas escolas da região do Alto Vale Piranga

Cada uma das cidades do Alto Vale Piranga dispõe de uma ou duas escolas primárias

municipais situadas no centro urbano e várias outras espalhadas pelas localidades rurais dos

municípios. Sendo que essas funcionam, em muitos casos, com a composição de duas séries

na mesma sala, devido ao pequeno número de alunos. As cidades pesquisadas mantêm uma

ou duas escolas estaduais.

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O trabalho dos professores das séries iniciais na região do Alto Vale Piranga, sendo de

responsabilidade municipal, a contratação ocorre na maioria dos casos através de critérios

políticos. Quando o professor de oposição já está efetivado no cargo, procuram pelos mais

diversos métodos, fazê-lo desistir de sua função. Na maioria das vezes são transferidos para

os locais mais distantes e de difícil acesso.

Em geral, os professores moram longe das escolas rurais em que lecionam, e as faltas

dos professores se tornam mais frequentes nas épocas de chuvas, quando as estradas de terra

ficam intransitáveis, prejudicam a frequência dos alunos do ensino fundamental e médio das

escolas estaduais. No início e no final do ano letivo a maior parte dos alunos costuma se

ausentar por dias e até semanas. Além disso, é comum as aulas serem interrompidas e os

alunos dispensados diante de uma simples ameaça de tempestade.

Desse modo, a condição de trabalho dos professores da região reflete drasticamente no

resultado da educação. Além de outros fatores como: a ausência de professores com

habilitação específica, de cursos periódicos de capacitação e reciclagem, de um projeto

pedagógico próprio para atender a região, o descaso com a educação infantil e o não

funcionamento de pré-escolas rurais. Tudo isso revela o descaso e o despreparo dos

municípios na elaboração de suas políticas educacionais.

Porém nada é mais grave do que o fato de os alunos não encontrarem no conteúdo

ensinado na escola atual algum sentido para transformarem suas vidas efetivamente. Concluir

o ensino fundamental e o médio tornou-se uma obrigação meramente burocrática e enfadonha,

com poucas perspectivas de continuidade e transformação social. Os alunos voltam para a

roça com a mesma consciência devastadora, sem ideias novas, criativas e sem outras

possibilidades de trabalho.

Na região encontramos apenas dois professores com habilitação adequada para

lecionar a disciplina de Arte no ensino fundamental e médio, e mesmo assim, encontra

grandes dificuldades de compreensão de sua prática dentro das administrações escolares. A

predominância de uma mentalidade leiga e utilitária de considerar a prática artística

unicamente como construção de objetos úteis, entre colagens e adereços, é o maior desafio do

educador da Arte. A prática de uma construção espontânea da criatividade desenvolvida

principalmente nas áreas mais abstratas da arte, como dança, música e o teatro, são relegadas

a um plano secundário.

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No entanto, as escolas da região constantemente desejam danças, corais e teatros

prontos em curto prazo de tempo para suas festas comemorativas. O fato das escolas

desprezarem o despertar artístico de seus alunos resulta no predomínio de um determinado

grupo de alunos e, consequentemente, na discriminação da maior parte dos alunos.

Naturalmente, os alunos que moram na zona rural, são os primeiros a serem descartados pela

própria dificuldade de ensaiar em horários fora de seu período. Temos então, um grupo

“dominante”, restrito a apresentações repetitivas e supérfluas, impregnada de discriminações

raciais e sociais, reféns da arte midiática.

Por um lado, o difícil acesso a obras de arte, museus, espetáculos teatrais e musicais

impossibilitam a formação do habitus da cultura dita legítima e, por outro, desprezam a

cultura local classificando como cultura subalterna. (como as diversas expressões culturais da

região: congado, folia de reis, cavalhada) Como pensar a disciplina de arte sem localizar os

conflitos e paradoxos entre política-pública e carga horária, cultura legítima, mídia e cultura

local, utilitarismo e experiências sensíveis? Na abrangência do conteúdo de arte o PCN

propõe que:

O conhecimento da arte abre perspectivas para que o aluno tenha uma compreensão do mundo na qual a dimensão poética esteja presente: a arte ensina que é possível transformar continuamente a existência, que é preciso mudar referencias a cada momento, ser flexível. Isso quer dizer que criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental para aprender (PCN, 1998, p.20).

A arte é a ferramenta poética com a qual contemplamos o mundo e construímos nossa

cultura. Na cultura encontramos o sentido de viver. Nesse processo dialético o homem

constrói a cultura e é por ela constituído. O olhar artístico vê o mundo como totalidade. O

olhar artístico capta o universal, aquilo que pode ser deixado como legado às gerações

seguintes. A força transformadora de uma obra de arte impede a rigidez da forma e o

envelhecimento do saber. Imaginar significa alterar as bases estabelecidas, as verdades

absolutas e o lucro dos que dominam.

A educação do campo, posto em circulação por diferentes movimentos sociais,

principalmente a partir dos anos de 1990, surge como prática alternativa contra-hegemônica,

abrindo espaço a educação que humaniza a partir do saber comunitário, ou seja, em busca da

emancipação da educação capitalista prioritariamente urbana. A arte, enfim, teria espaço para

resgatar a poética da vida? E mais, seria a educação do campo este espaço?

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A cultura local

Na região prevaleceu os valores e costumes da religião católica, herdada dos

colonizadores portugueses que, quase integralmente, carregaram as crenças e costumes de sua

terra natal para o Brasil. A religião católica, pedra angular da civilização portuguesa¸ não

apenas faz evidenciar logo a sua hegemonia espiritual com a edificação de templos e a

instituição de irmandades, mas irradia também seu poder e prestígio por todas as atividades¸

notadamente aquelas ligadas ao embelezamento de matrizes e capelas ou à pompa litúrgica,

como as artes plásticas e a música. (ÁVILA, 1978, p.2)

Os negros também tiveram papel decisivo na formação cultural da região. Segundo

Waldemar de Almeida Barbosa (1956), estudioso do Folclore Brasileiro, a quase totalidade

dos negros chegados da África no século XVIII vinha quase diretamente para Minas, sendo

que muitos negros se converteram ao cristianismo, adaptando suas crenças e cultos à religião

católica dos portugueses. A fusão do culto católico com os costumes africanos resultou nas

mais belas manifestações culturais cultivadas até hoje.

O Congado é uma dessas manifestações. Marco de resistência aos tempos da

escravidão, o Congado se caracteriza pelo ritmo cadenciado e pela dança para louvar,

principalmente, Nossa Senhora do Rosário, protetora dos congadeiros. Além da devoção à

Santa Efigênia, considerada a rainha negra, e São Benedito, o rei coroado pelos congadeiros.

Essas danças, diferentes para cada ‘terno’ eram, sem dúvida, a sobrevivência de suas festas de

coroação de rei; as reverências ao rei e à rainha, aos príncipes e às princesas, que a Irmandade

escolhia cada ano, não deixam sombra de dúvida. (BARBOSA,1965, p.9)

A coroação de reis e rainhas de congo mais antiga é datada em 1674 em Recife . Em

Minas os registros mais antigos de congados datam em 1704 e 1715 nas cidades de Serro e de

Ouro Preto respectivamente. O historiador Augusto Lima Junior data como sendo a primeira

festa do Congado em 1711 na antiga capital de Minas. Porém no livro de Antônio Emílio

Lana, Itaverava: o núcleo de Bandeirantes faz referência às festas de Congado em 1700.

Outro fato que nos leva a acreditar que Itaverava carrega o mais antigo Congado de Minas

Gerais é que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário já era bem consolidada desde a

construção da primeira igreja e promovia grandes festas e reinados. Segundo Lana, “tais festas

eram bisseculares em Itaverava, criadas pela irmandade dos escravos, por volta de 1700,

conforme consta no livro de compromisso da Irmandade em seus estatutos e capítulos”(1978).

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De qualquer forma, a Banda de Congado Santa Efigênia e Nossa Senhora da

Conceição de Itaverava comemorou 300 anos no Festival de Congado de 2004, hoje

completando 309 anos de banda.

Cabe ainda acrescentar que Itaverava (Pedra Brilhante) foi povoada antes mesmo de

Vila Rica. Era o ponto de encontro dos bandeirantes e ali os portugueses cultivavam uma

intensa vida cultural ao lado também das influências africanas ali presentes em seu maior

vigor.

Acredita-se que a Banda de Congado de Lamim registrada em cartório em 1977, tem

hoje 35 anos de existência. Seu terno se caracteriza pela camisa branca e calça azul.

Atualmente Lamim e Rio Espera fundiram o seu grupo de dançantes e a Banda de Congado

do Divino Espírito Santo de Lamim dançam mutuamente com a Banda de Congado Nossa

Senhora do Rosário de Rio Espera. As duas preservam suas próprias bandeiras nas festas

religiosas.

Durante todo o ano, os grupos de congado realizam diversas festas como no dia de São

Sebastião (janeiro), festa do Divino em Lamim(junho), Festa de Nossa Senhora do Rosário

(outubro), Folia de Reis (dezembro e janeiro). Contudo na quaresma os bumbos se calam e

nem o ensaio é permitido.

O Congado, carregado de elementos teatrais¸ representa a necessidade dos

descendentes de negros de expressar e cultivar seus valores, reencontrar suas histórias e

manter viva e atual a comunicação com seus ascendentes. Os quepes ornamentados com fitas

coloridas, espelhos e miçangas fazem parte de uma performance que leva o dançante ao

encontro de seus reis e rainhas, princesas e príncipes africanos. A música em tom monótono e

versos repetidos leva os dançantes a um transe religioso de profunda devoção e gratidão a

Deus e aos Santos.

Atualmente, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),

defende as reivindicações dos movimentos culturais populares, discutindo a importância do

tombamento do bem Imaterial, sendo o congado uma manifestação de grande valor enquanto

forma de expressão própria da cultura brasileira e de matriz africana. Contudo, depoimentos

dos participantes das guardas ressaltam um momento em que eles sofrem discriminações e

são taxados de macumbeiros e alcoólatras e, durante os cortejos enfrentam a desvalorização

de sua arte por uma parcela considerável da população local. As Igrejas protestantes proíbem

seus fiéis de participarem da dança, argumentando que o congado seja uma idolatria aos

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espíritos maus, desse modo, muitos congadeiros, convertidos à religião protestante,

abandonam sua cultura e rejeitam aqueles que permanecem na dança.

O público que assiste a essa performance se autodenomina como "acompanhantes" que

andam atrás dos ternos, normalmente são pessoas que possuem alguma relação com os

dançantes, ou de vizinhança, parentescos, ou pessoas da ligados às festas de Igreja. Por outro

lado, surge um novo grupo apreciador do congado e de outras manifestações culturais, estes

se encontram nos Festivais de Congado, organizados por prefeituras, secretarias de culturas

ou associações culturais. Segundo Schechner (1985) a "restauração" de eventos

performáticos, está motivado por interesses ligados à indústria do turismo. Assim, o "resgate"

de práticas rituais desaparecidas, passa a ser reivindicadas também por interesse de

empreendedores culturais.

De qualquer forma, a manifestação cultural do congado não compõe o perfil do

espectador midiático, que se acomoda na apreciação do entretenimento artístico, e sim, torna-

se o ator de uma arte. A poética é vivenciada e expressa na dança, nos instrumentos, no canto

e no ritual. Assim, participamos de um espetáculo totalmente fundido numa espiritualidade

performática afro-brasileira.(Silva, 1999).

O congado propicia aos dançantes a experiência artística de fazer parte de papéis que

correspondem a uma posição simbólica invertida em relação ao “status” ou condição que

possuem no quadro hierárquico da “estrutura social” das cidades estudadas. Os reis e rainhas,

capitães e presidente são representações significativas atribuídas a indivíduos marginalizados

no cotidiano e que, dentro do ritual, ganham poderes extraordinários.

A passagem do bastão de uma geração a outra, simboliza uma hierarquia dentro do

Congado que, de certa forma, contribui na permanência da tradição nas novas gerações. O

fato é que, quando morre um capitão de uma Banda de Congado, o grupo fica abalado até o

segundo capitão assumir com determinação sua nova liderança.

Outra festividade popular carregada de elementos performáticos, e que hoje

infelizmente quase desapareceu da região, é a Cavalhada. De origem romana e portuguesa o

desfile da cavalhada era considerado o “auto de cristãos e mouros”, classificada atualmente

como teatro folclórico. Seu caráter espetacular atraía multidões, que acompanhavam os três

dias de dramatização, podendo os atores estar de cavalo ou mesmo a pé. O conflito é a

reconquista da Península Ibérica pelos cristãos, na representação participavam o rei cristão e o

rei mouro chamado de Rei de Castela, a princesa e o palhaço, que morre no final.

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Segundo Jacyntho Lins Brandão (2001), a cavalhada de Rio Espera se caracterizava

pelo “floreado”, o momento do espetáculo em que os cavalos e cavaleiros exibiam sua

destreza, exibindo uma verdadeira coreografia equestre. Pela tradição a organização desta

festa dispendiosa ficava sob responsabilidade da família Pereira Neves, de Rio Espera, que, há

mais de cem anos, arcava com todos os gastos da festa. A cavalhada era habitualmente

realizada durante a celebração da padroeira da cidade.

Foto 1 - Cavalhada realizada em 1953, organizada pela família Pereira Neves.

Fonte: Acervo da Família Pereira Neves.

Segundo Eugênio Luiz, descendente da família Pereira Neves e colecionador de fotos

antigas, a última cavalhada em Rio Espera ocorreu em 1953. Seu fim seria provocado pela

falta de vontade dos mais novos. “antigamente os jovens aspiravam adquirir um belo animal

(cavalo), para cuidar e adestrar. Hoje o interesse se voltou para as motocicletas e as corridas

de motocross e carros, são muito mais práticas apesar de sem vida”, afirma em depoimento

pessoal à autora.

Em 2004, a família Pereira Neves, atualmente morando em Capela Nova, cidade

vizinha a Rio Espera, organizou junto com a prefeitura da cidade uma cavalhada como nos

velhos tempos. Pela falta de montadores e cavalos adestrados convidaram moradores de

Senhora de Oliveira e Rio Espera para completar os componentes do grande espetáculo. Luís

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Reis, morador de Rio Espera, conhecido como Chapolin, participou do espetáculo montado

num cavalo mouro e relata: “Aonde me chamarem eu vou, não perco uma cavalhada”

(Depoimento pessoal).

Naquele ano, Rio Espera contratou a apresentação de uma Cavalhada, contudo

nenhum morador participou da performance, somente atuaram como espectador do evento, os

três dias de cavalhada foi resumido em duas horas, se afastando da prática ritual e

aproximando-se mais a um modelo da indústria cultural.

De qualquer modo a religião e o teatro sempre foram grandes aliadas na construção

simbólica da cultura dessas comunidades rurais, criando e reforçando os nossos sentidos e

valores, e permanecendo como cultura de resistência.

Destacamos o Congado, as Folias e as Cavalhadas como manifestações populares

locais e de tradição que, pelo seu caráter expressivo, possuem elementos do teatro, como

instrumento de participação típico das pequenas cidades mineiras no curso da história da

cultura. “Toda festa mineira da época é sempre um espetáculo total” afirmou Affonso Ávila

(1978). Mas além dessas, podemos encontrar nas festas dos padroeiros, nas Coroações de

Maria (durante todo o mês de maio) e na Semana Santa um encontro bem sucedido entre

teatro e a religião.

Estas expressões populares podem enfatizar um caráter poético presente no mundo

rural, mas que pouco é explorado na escola que vive de um pragmatismo, desumanizante e

que desvaloriza a cultura do mundo do campo. Através do ensino das artes, que vinculado às

expressões e manifestações culturais locais, poderia-se estabelecer elos de maior conexão e

valorização dos rituais próprios dos moradores das cidades estudadas. Mostrando aos mesmos

o valor de sua cultura e retirando-o de um processo cultural, muitas vezes alienante, urbano e

massificante.

Experiência teatrais na educação informal

Descreveremos agora uma iniciativa própria que se desenvolveu na perspectiva da

expressão artística regional: a realização de um projeto cultural na região que desencadeou na

constituição da Associação Cultural Pequeno Príncipe (ACPP). Primeiramente, formou-se um

grupo de pessoas interessadas na preservação e resgate da cultura de pequenas cidades rurais,

excluídas do circuitos intelectuais e artísticos.

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Assim, a ACPP surge em 2002, como uma forma de educação informal, quebrando o

vínculo estigmatizado da escola como espaço de imposições. O objetivo é o resgate do

encantamento do mundo, da aprendizagem livre e responsável, do lazer comunitário e da

maturidade social. Ao olhar de modo diferenciado a sua cultura, o aluno-ator identifica o

imaginário cultural no qual está imerso e se localiza no mundo real, imediato. O projeto se

estende às cidades de Itaverava, Catas Altas da Noruega, Rio Espera, Senhora de Oliveira e

Cipotânea.

A ACPP completou dez anos de existência em 2012. Foram anos de intenso trabalho

de promoção cultural em que se formaram diretores e grupos de teatro, promoveram-se

festivais de teatro, publicações de informativos culturais, livros de poesias, noites dos

contadores de história, música, recital de poesia, capoeira, congado, folia de reis, em tudo a

ACPP esteve presente, contribuindo e catalisando os esforços individuais para um fim único:

resgatar a arte e a poesia na vida dos moradores das cidades rurais do Alto Vale Piranga.

Foto 2- Companhias teatrais das cidades rurais de Lamim, Rio Espera e Rio Melo (distrito de Rio Espera) formados na região do Alto vale Piranga pela ACPP, participam com quatro espetáculos no XI FACE (Festival de Artes Cênicas de Conselheiro Lafaiete) em 2010.

Entre as diversas montagens realizadas com textos escritos por três docentes que

compunham a ACPP, em forma de criações coletivas ou pesquisa etnográfica, destacaremos a

montagem de dois espetáculos em especial que nasceram dentro de uma perspectiva

antropológica, embasados na realidade histórica e cultural da região. Todos os textos são

flexíveis e permitem adaptações de acordo com a realidade de cada cidade. A trilha sonora

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escolhida buscou na música do Congado, da Folia e das liturgias da tradição local a

sensibilização do espírito humano universal. É como diz Maia “se queres ser universal canta

tua aldeia.”

“Os Clãs” foi escrito através das observações coletadas pelos atores da ACPP. O

primeiro roteiro de “os Clãs” foi construído em 2006 e apresentado em algumas cidades do

Alto Vale Piranga em meados de 2007. Em 2009, o texto foi reorganizado com novos

elementos cênicos e uma maior inserção da plateia, apresentando no Festival de Senhora de

Oliveira e Governador Valadares (META).

O texto foi construído numa pesquisa no modo de se viver das cidades rurais e

situações reais se misturam com poesias de Carlos Nejar e Fernando Pessoa. Personagens

simbólicos retratavam diversos momentos da história local. Padre Eugênio, personagem

fictício, é uma fusão de diversos párocos que passaram na região, que representavam

verdadeiras autoridades do povo. Cenas e fatos foram construídos através das narrações de

moradores de situações hilárias ou de grande simbologia na formação cultural das cidades. O

alto-falante da Igreja era usado por alguns párocos para chamar a atenção dos pais que

deixavam os filhos namorarem na praça. Tudo era controlado. A peça começa com uma

mulher negra atravessando o palco (ou rua), acorrentada por um homem. Explorando a

ambiguidade, não se sabe se ele é seu senhor, marido, pai ou patrão. Esta mulher, Aurora, é a

protagonista do espetáculo, que dentro da hierarquia social representa o fracasso: mulher,

negra e pobre. Mas Aurora rompe o estigma de sua cultura na busca de algo a mais. Coligada

com Dr. Ricardo, figura enigmática e de ares filosófico que questiona os padrões

estabelecidos em sua comunidade parte para a cidade grande na esperança de libertação, em

referência ao êxodo rural, problema comum a todo Vale Piranga. Contudo, se depara com a

burocracia e a lei fria da cidade, abandonada e desiludida se refugia na memória da essência

de sua cultura local. O Congado aparece no seu imaginário, refortalecendo sua identidade e o

sentido de sua existência. Resolve voltar para sua origem. Encontra uma cidade destroçada

pelo interesse dos seus líderes. As matas queimadas para vender carvão, os jovens sem

perspectivas, e a política direcionando quem serão beneficiados ou não. Porém, ela não é mais

uma vítima da situação e se coloca como pessoa livre e com poder de transformação social.

“Uai Zé”, escrito especificamente para um grupo de onze atores e uma atriz oriundos

da zona rural. O elenco era composto por capoeiristas, congadeiros e produtores rurais. Desse

modo, procurou-se aproveitar todos os talentos para descrever, de forma crítica, a cultura da

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comunidade. O congado marcava os momentos dramáticos da peça, como a morte de

Zezinho, homossexual assassinado por um matuto. A capoeira era dançada e cantada por

todos no ritmo do trabalho no canavial, que marcava a passagem de tempo da história.

Corrupção, jogos de interesse, alcoolismo, preconceito, alienação, fé e solidariedade se

misturam num espetáculo interativo no qual a plateia é colocada para decidir o destino da

comunidade através de eleições. A peça se passa numa encruzilhada e a plateia delimita o

contorno da estrada e as casas de cada Zé, cujo nome revela sua personalidade: Zé Boaça,

negro alcoólatra e fanfarrão; Zé Bento, homem conservador e de grande fé, Zé Fortuna,

corrupto e mulherengo, Zé Holístico, exótico e revolucionário. Cada um representa dilemas e

dramas sociais diferentes, que são enfrentados e solucionados em conjunto. Todos os

espetáculos tiveram mais do que uma única montagem e elenco.

A aprendizagem, vivenciada por cada novo ator refletia no seu modo de agir e pensar

sua cultura. O que se pode observar é que tanto a plateia como os elencos das peças se

envolviam com mais intensidade nos espetáculos montados numa ênfase antropológica

efetuando a aprendizagem em todos os envolvidos. Os docentes envolvidos no processo de

montagem dos espetáculos relataram um intenso desenvolvimento de seus alunos-atores, tanto

com relação ao processo cognitivo e afetivo, como na compreensão e valorização de sua

cultura local.

Considerações finais

Esta pesquisa buscou mostrar como se deu a legitimação do ensino de Artes num

paralelo com o contexto histórico. Analisando a região do Alto Vale Piranga, pudemos notar

que não há espaço para o conhecimento artístico e que, apesar de ser reconhecido como área

de conhecimento tão necessário como o conhecimento científico, continua ocupando espaço

irrelevante nas instituições escolares. As políticas públicas até agora foram insignificantes

para resolver o problema da falta de habilitados. O conjunto escolar demonstra-se

despreparado para assumir uma visão poética na educação. Visão essa que valorize sua

própria cultura e um conhecimento que tenha como finalidade a si mesmo e a vida. Em razão

destes e de outros diversos desafios da educação, propusemos um olhar especial para a

educação do campo e propomos uma alternativa a partir da arte.

REFERÊNCIAS

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