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POR UMA PÓETICA NO CAMPO: OS DESAFIOS DA ARTE-
EDUCAÇÃO NO MEIO RURAL DO ALTO VALE PIRANGA/MG
MACEDO, Juliana de Conti1- UFOP
Grupo de trabalho - Educação, Arte e Movimento Agência Financiadora: não contou com financiamento.
Resumo O presente texto faz uma análise das políticas públicas de implementação do ensino de arte no Brasil e contextualiza sua prática nas comunidades rurais do Alto Vale Piranga, região da Zona da Mata, no interior do estado de Minas Gerais. A pesquisa emergiu da monografia de conclusão do curso de graduação em Pedagogia, defendida pela autora em 2012. Nela, procurou-se compreender a importância da inserção das artes na agenda política da educação do campo como modalidade sensibilizadora da cultura local. Compreendendo o conceito novo, educação no campo, como uma procura de uma nova ordem social (CADART,2004), criado a partir da articulação dos movimentos sociais do campo, pesquisadores e o Ministério da Educação. A pesquisa observou a relevância do ensino de arte na construção de uma educação diferenciada para as populações do campo que não querem perder sua identidade, cultura e modo de vida. Constatou-se, entretanto, haver um grande despreparo docente, do Estado e da escola o que acarreta num equivocado e inexpressivo ensino de arte. Como contraponto, destaca-se a grande tradição cultural local, manifestada pelos Congados, pela Folia de Reis ou pela a experiência realizada pela Associação Cultural Pequeno Príncipe em que os professores utilizaram-se de técnicas associadas à etnografia na construção de textos dramatúrgicos. O referencial teórico do trabalho foi a tese do pedagogo João Francisco Duarte (1999), cuja ideia principal consiste na defesa da “educação através da arte”.Trata-se de uma pesquisa qualitativa, os dados foram coletados com base na observação participante, análise de documentos e entrevistas de cunho biográfico.Os procedimentos metodológicos, acompanhados aos referências teóricos desta pesquisa, viabilizaram uma reflexão acerca da complexidade do ensino da arte no meio rural. Palavras-chave: Política-Pública. Ensino de Arte. Educação do Campo. Alto Vale Piranga.
1 Graduada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto, especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Vale Piranga, MG. Professora de Arte efetiva na rede municipal de Ouro Preto. Graduanda em Pedagogia pela UFOP e mestranda do programa de pós-graduação em Educação- UFOP,. Participa do Grupo de Pesquisa Formação e Profissão Docente da UFOP.
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Introdução
Num primeiro momento faremos uma síntese histórica da política educacional,
observando a trajetória do ensino da arte no âmbito das legislações brasileiras e a sua
contraditória ideologia: associar sensibilidade criativa aos interesses utilitaristas que
permeiam o ensino brasileiro.
Num segundo momento, avaliaremos o ensino de arte nas escolas dos municípios do
Alto Vale Piranga2, Zona da Mata Mineira.
Finalmente, o texto relata experiências em que o docente investiga e insere na sua
prática as culturas de resistência encontradas na região estudada que funcionam como linhas
de fuga da expressão de seu povo frente a massacrante cultura globalizante.
Propormos uma educação significativa voltada para os valores da terra vinculada à
necessidade de olhar a educação através de uma perspectiva artística que possa desenvolver a
sensibilidade das pessoas que vivem no campo e, consequentemente, torná-las mais
conscientes de si e de sua realidade.
Duarte esclarece que o significado da existência humana está atrelado ao jogo de
sentir, no caso vivenciar, e de simbolizar, para dessa forma ordenar a linguagem. Sendo a
linguagem um fenômeno puramente social.
Para Duarte “Aprendemos a ser humanos: a perceber e a vivenciar o mundo como
homens, através da comunidade. Fora de um contexto social não há seres humanos.”
(1991,p.21). Quando a criança aprende uma linguagem simultaneamente incorpora os valores
culturais da comunidade em que está inserida. É relevante considerar que as primeiras
linguagens que o ser humano adquire são as linguagens artísticas: sons melódicos, desenhos,
encenações dramáticas e a expressão corporal. O fato é que Duarte esclarece a importância de
educar através das artes e, principalmente, através da arte local.
2 O Vale do Piranga tem início na serra da Mantiqueira onde nasce seu rio principal, o Piranga. Utilizamos a denominação Alto Vale Piranga para a microrregião que engloba as seis cidades pesquisadas (especificamente das cidades rurais de :Itaverava, Catas Altas da Noruega, Lamim, Rio Espera, Senhora de Oliveira e Cipotânea) e, também, pela similaridade cultural e habitacional entre essas cidades rurais. São vilas centenárias que conseguiram emancipação política no curto espaço de 100 anos. Seus habitantes não ultrapassam a média de dez mil e se caracterizam por se radicarem, em sua maioria, no campo. Os primeiros habitantes que ocuparam a região eram os índios das etnias Carijó, Cataguá e Botocudo. O confronto entre índios e colonizadores ocorreu como consequência das várias expedições bandeirantes que passaram na região estudada, beirando o Rio Piranga no final do Século XVII à procura de Ouro.)
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Embasados nos conceitos de capital cultural, cultura legítima, habitus e reprodução de
Pierre Bourdieu, nos perguntamos se há um processo de exclusão social reforçado pela Arte .
Levando em conta a grande influência do ambiente cultural no processo de ensino e
aprendizagem, a pesquisa analisou a constituição dos sentidos, valores, perspectivas, sonhos e
significados dos alunos da cidade de Rio Espera. Destacamos as manifestações expressivas da
arte local como o congado, a folia de reis, mas, especialmente o teatro e o trabalho
desenvolvido pela Associação Cultural Pequeno Príncipe (ACPP) que atua na região desde
2002.
Coletamos dados através de entrevistas e registros em cartórios, artigos de jornais,
fotos, manuscritos, livros e revistas, além da observação participante das aulas em escolas
formais e informais. Os sujeitos da pesquisa são jovens, adultos e crianças, observando-se o
processo educativo através da arte, especificamente, do teatro. Essa pesquisa qualitativa
caracteriza-se pela análise crítica acerca da arte-educação e das políticas educacionais e
legislações que implementam o ensino de arte na educação básica.
Educar através da Arte
Segundo Duarte, a criação, em 1816, da academia de Belas-Artes por artistas franceses
marcou a constituição da educação artística no Brasil. Porém considera que este ensino,
composto pela tendência neoclássica tenha se revelado uma “imposição de valores”, ao passo
que a arte barroca havia sido o estilo de grandes revelações e expressões artísticas no Brasil.
O neoclassicismo não combinava com a cultura sofrida de país explorado.
Outro fator que contribuiu na implantação estritamente pragmática das artes nas
escolas foi o positivismo de Auguste Comte, teoria filosófica que exerce influência até hoje
nos métodos de ensino brasileiro. As artes, para os positivistas, não são um fim em si mesmas,
mas um meio. A contribuição das artes para se atingir a verdade científica apagou as
atribuições expressivas da arte.
A Arte era encarada como um poderoso veículo para o desenvolvimento do raciocínio desde que, ensinada através do método positivo, subordinasse a imaginação à observação, identificando as leis que regem a forma (DUARTE, 1999, p.122).
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Assim, a implantação dos desenhos geométricos ocupou substancialmente o ensino
das artes. Outras formas de expressão artísticas foram ignoradas e as possibilidades de se
expressar através do desenho se restringiram a linguagens puramente técnicas.
Mesmo depois das propostas renovadoras da Semana da Arte Moderna de 1922, pouca
coisa mudou. Porém, pela primeira vez no Brasil, abriu-se a discussão em torno da arte como
processo de espontaneidade, principalmente através da arte infantil. O movimento das
Escolinhas de Arte reuniu psicólogos, artistas e pedagogos para o debate em torno da Arte–
Educação. Interessados pela liberação das experiências e sentimentos, os intelectuais
brasileiros, reconhecem a importância das artes como elemento estético, sem finalidades
práticas.
Mas nas escolas as alunas aprendiam as artes domésticas, envolvendo técnicas da
culinária, da costura e do bordado. As artes industriais eram aplicadas para os alunos que
aprendiam a técnica de confeccionar móveis e outros objetos. Essa atitude de sujeitar o ensino
das artes às categorias puramente utilitárias revela a preocupação da época em podar qualquer
iniciativa criativa e formadora de opinião.
Através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (5.692-71) o governo
militar promulgou a profissionalização da educação e, contraditoriamente, decretou a
obrigatoriedade das artes no currículo de ensino fundamental e médio.
Mesmo depois da reforma de 1971, o ensino das artes continuou fadado às exigências
utilitárias, subordinado ao sistema econômico capitalista.
Sendo a tendência oficial de nosso ensino eminentemente pragmática desde os seus primórdios, arte nunca teve nele um papel que não fosse o de mera apêndice ou de preparação para atividades superiores (DUARTE, 1999, p.125).
A educação artística implantada pela lei de 1971 não previu a ausência total de
professores habilitados na área. A criação de cursos de nível técnico e superior em Educação
Artística tentou cobrir está carência. Porém, demonstrou-se completamente ineficaz na
medida em que procurava formar o professor em diversas modalidades artísticas, no curto
prazo de três anos.
As consequências dessas medidas tornaram desastrosas para o ensino da arte nas
escolas. A arte transformou-se em confecção de artesanatos, desenhos mimeografados para
serem coloridos ressaltando datas comemorativas como se o professor houvesse transformado
em um mero decorador de eventos comemorativos.
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A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
Educação, dispõe da obrigatoriedade do ensino da arte nos diversos níveis da educação básica.
Na prática, há um retrocesso do ensino das artes na escola. Devido muitas escolas estaduais e
municipais, após o entendimento da lei, reduzirem o número de aula de arte ao mínimo
exigido, isto é, uma aula no ensino fundamental e no médio.
O parágrafo dois do art. 26 ainda ressalta que o objetivo das aulas de arte está em
promover o desenvolvimento cultural dos alunos.
Segundo o conceito de “capital cultural” de Bourdeou, a cultura legitima, inculcação
de valores culturais de uma pequena elite dominante, se desenvolve como ação pedagógica
primeiro no âmbito familiar, e a escola de forma secundária tende reproduzir a exclusão,
mesmo de modo implícito, daquele que não possui um certo capital cultural.
O trabalho pedagógico primário, caracterizado pela formação do habitus na família,
determina o resultado escolar, sendo que as classes mais baixas tornam-se vítimas do fracasso
escolar, já que sua cultura é considerada ilegítima dentro do sistema.
Como um professor de arte, que muitas vezes também foi desprovido de capital
cultural, pode reverter o quadro de exclusão cultural e, consequentemente, social, com apenas
uma aula no ensino fundamental e médio? Além do mais, o professor de arte, ao reproduzir os
valores da cultura dominante, automaticamente, não reproduz as relações de poder de um
grupo social? Enfim, como romper com a violência simbólica dissimulada como ação
pedagógica, na inculcação de valores culturais de uma pequena elite dominante que, de forma
arbitrária, legitima seus valores como superiores?
O fato é que em 2010, houve uma alteração significativa no paragrafo: “O ensino da
arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular
obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento
cultural dos alunos”(Redação dada pela Lei nº 12.287, de 2010).
A arte trabalhada nas escolas da região do Alto Vale Piranga
Cada uma das cidades do Alto Vale Piranga dispõe de uma ou duas escolas primárias
municipais situadas no centro urbano e várias outras espalhadas pelas localidades rurais dos
municípios. Sendo que essas funcionam, em muitos casos, com a composição de duas séries
na mesma sala, devido ao pequeno número de alunos. As cidades pesquisadas mantêm uma
ou duas escolas estaduais.
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O trabalho dos professores das séries iniciais na região do Alto Vale Piranga, sendo de
responsabilidade municipal, a contratação ocorre na maioria dos casos através de critérios
políticos. Quando o professor de oposição já está efetivado no cargo, procuram pelos mais
diversos métodos, fazê-lo desistir de sua função. Na maioria das vezes são transferidos para
os locais mais distantes e de difícil acesso.
Em geral, os professores moram longe das escolas rurais em que lecionam, e as faltas
dos professores se tornam mais frequentes nas épocas de chuvas, quando as estradas de terra
ficam intransitáveis, prejudicam a frequência dos alunos do ensino fundamental e médio das
escolas estaduais. No início e no final do ano letivo a maior parte dos alunos costuma se
ausentar por dias e até semanas. Além disso, é comum as aulas serem interrompidas e os
alunos dispensados diante de uma simples ameaça de tempestade.
Desse modo, a condição de trabalho dos professores da região reflete drasticamente no
resultado da educação. Além de outros fatores como: a ausência de professores com
habilitação específica, de cursos periódicos de capacitação e reciclagem, de um projeto
pedagógico próprio para atender a região, o descaso com a educação infantil e o não
funcionamento de pré-escolas rurais. Tudo isso revela o descaso e o despreparo dos
municípios na elaboração de suas políticas educacionais.
Porém nada é mais grave do que o fato de os alunos não encontrarem no conteúdo
ensinado na escola atual algum sentido para transformarem suas vidas efetivamente. Concluir
o ensino fundamental e o médio tornou-se uma obrigação meramente burocrática e enfadonha,
com poucas perspectivas de continuidade e transformação social. Os alunos voltam para a
roça com a mesma consciência devastadora, sem ideias novas, criativas e sem outras
possibilidades de trabalho.
Na região encontramos apenas dois professores com habilitação adequada para
lecionar a disciplina de Arte no ensino fundamental e médio, e mesmo assim, encontra
grandes dificuldades de compreensão de sua prática dentro das administrações escolares. A
predominância de uma mentalidade leiga e utilitária de considerar a prática artística
unicamente como construção de objetos úteis, entre colagens e adereços, é o maior desafio do
educador da Arte. A prática de uma construção espontânea da criatividade desenvolvida
principalmente nas áreas mais abstratas da arte, como dança, música e o teatro, são relegadas
a um plano secundário.
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No entanto, as escolas da região constantemente desejam danças, corais e teatros
prontos em curto prazo de tempo para suas festas comemorativas. O fato das escolas
desprezarem o despertar artístico de seus alunos resulta no predomínio de um determinado
grupo de alunos e, consequentemente, na discriminação da maior parte dos alunos.
Naturalmente, os alunos que moram na zona rural, são os primeiros a serem descartados pela
própria dificuldade de ensaiar em horários fora de seu período. Temos então, um grupo
“dominante”, restrito a apresentações repetitivas e supérfluas, impregnada de discriminações
raciais e sociais, reféns da arte midiática.
Por um lado, o difícil acesso a obras de arte, museus, espetáculos teatrais e musicais
impossibilitam a formação do habitus da cultura dita legítima e, por outro, desprezam a
cultura local classificando como cultura subalterna. (como as diversas expressões culturais da
região: congado, folia de reis, cavalhada) Como pensar a disciplina de arte sem localizar os
conflitos e paradoxos entre política-pública e carga horária, cultura legítima, mídia e cultura
local, utilitarismo e experiências sensíveis? Na abrangência do conteúdo de arte o PCN
propõe que:
O conhecimento da arte abre perspectivas para que o aluno tenha uma compreensão do mundo na qual a dimensão poética esteja presente: a arte ensina que é possível transformar continuamente a existência, que é preciso mudar referencias a cada momento, ser flexível. Isso quer dizer que criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental para aprender (PCN, 1998, p.20).
A arte é a ferramenta poética com a qual contemplamos o mundo e construímos nossa
cultura. Na cultura encontramos o sentido de viver. Nesse processo dialético o homem
constrói a cultura e é por ela constituído. O olhar artístico vê o mundo como totalidade. O
olhar artístico capta o universal, aquilo que pode ser deixado como legado às gerações
seguintes. A força transformadora de uma obra de arte impede a rigidez da forma e o
envelhecimento do saber. Imaginar significa alterar as bases estabelecidas, as verdades
absolutas e o lucro dos que dominam.
A educação do campo, posto em circulação por diferentes movimentos sociais,
principalmente a partir dos anos de 1990, surge como prática alternativa contra-hegemônica,
abrindo espaço a educação que humaniza a partir do saber comunitário, ou seja, em busca da
emancipação da educação capitalista prioritariamente urbana. A arte, enfim, teria espaço para
resgatar a poética da vida? E mais, seria a educação do campo este espaço?
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A cultura local
Na região prevaleceu os valores e costumes da religião católica, herdada dos
colonizadores portugueses que, quase integralmente, carregaram as crenças e costumes de sua
terra natal para o Brasil. A religião católica, pedra angular da civilização portuguesa¸ não
apenas faz evidenciar logo a sua hegemonia espiritual com a edificação de templos e a
instituição de irmandades, mas irradia também seu poder e prestígio por todas as atividades¸
notadamente aquelas ligadas ao embelezamento de matrizes e capelas ou à pompa litúrgica,
como as artes plásticas e a música. (ÁVILA, 1978, p.2)
Os negros também tiveram papel decisivo na formação cultural da região. Segundo
Waldemar de Almeida Barbosa (1956), estudioso do Folclore Brasileiro, a quase totalidade
dos negros chegados da África no século XVIII vinha quase diretamente para Minas, sendo
que muitos negros se converteram ao cristianismo, adaptando suas crenças e cultos à religião
católica dos portugueses. A fusão do culto católico com os costumes africanos resultou nas
mais belas manifestações culturais cultivadas até hoje.
O Congado é uma dessas manifestações. Marco de resistência aos tempos da
escravidão, o Congado se caracteriza pelo ritmo cadenciado e pela dança para louvar,
principalmente, Nossa Senhora do Rosário, protetora dos congadeiros. Além da devoção à
Santa Efigênia, considerada a rainha negra, e São Benedito, o rei coroado pelos congadeiros.
Essas danças, diferentes para cada ‘terno’ eram, sem dúvida, a sobrevivência de suas festas de
coroação de rei; as reverências ao rei e à rainha, aos príncipes e às princesas, que a Irmandade
escolhia cada ano, não deixam sombra de dúvida. (BARBOSA,1965, p.9)
A coroação de reis e rainhas de congo mais antiga é datada em 1674 em Recife . Em
Minas os registros mais antigos de congados datam em 1704 e 1715 nas cidades de Serro e de
Ouro Preto respectivamente. O historiador Augusto Lima Junior data como sendo a primeira
festa do Congado em 1711 na antiga capital de Minas. Porém no livro de Antônio Emílio
Lana, Itaverava: o núcleo de Bandeirantes faz referência às festas de Congado em 1700.
Outro fato que nos leva a acreditar que Itaverava carrega o mais antigo Congado de Minas
Gerais é que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário já era bem consolidada desde a
construção da primeira igreja e promovia grandes festas e reinados. Segundo Lana, “tais festas
eram bisseculares em Itaverava, criadas pela irmandade dos escravos, por volta de 1700,
conforme consta no livro de compromisso da Irmandade em seus estatutos e capítulos”(1978).
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De qualquer forma, a Banda de Congado Santa Efigênia e Nossa Senhora da
Conceição de Itaverava comemorou 300 anos no Festival de Congado de 2004, hoje
completando 309 anos de banda.
Cabe ainda acrescentar que Itaverava (Pedra Brilhante) foi povoada antes mesmo de
Vila Rica. Era o ponto de encontro dos bandeirantes e ali os portugueses cultivavam uma
intensa vida cultural ao lado também das influências africanas ali presentes em seu maior
vigor.
Acredita-se que a Banda de Congado de Lamim registrada em cartório em 1977, tem
hoje 35 anos de existência. Seu terno se caracteriza pela camisa branca e calça azul.
Atualmente Lamim e Rio Espera fundiram o seu grupo de dançantes e a Banda de Congado
do Divino Espírito Santo de Lamim dançam mutuamente com a Banda de Congado Nossa
Senhora do Rosário de Rio Espera. As duas preservam suas próprias bandeiras nas festas
religiosas.
Durante todo o ano, os grupos de congado realizam diversas festas como no dia de São
Sebastião (janeiro), festa do Divino em Lamim(junho), Festa de Nossa Senhora do Rosário
(outubro), Folia de Reis (dezembro e janeiro). Contudo na quaresma os bumbos se calam e
nem o ensaio é permitido.
O Congado, carregado de elementos teatrais¸ representa a necessidade dos
descendentes de negros de expressar e cultivar seus valores, reencontrar suas histórias e
manter viva e atual a comunicação com seus ascendentes. Os quepes ornamentados com fitas
coloridas, espelhos e miçangas fazem parte de uma performance que leva o dançante ao
encontro de seus reis e rainhas, princesas e príncipes africanos. A música em tom monótono e
versos repetidos leva os dançantes a um transe religioso de profunda devoção e gratidão a
Deus e aos Santos.
Atualmente, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
defende as reivindicações dos movimentos culturais populares, discutindo a importância do
tombamento do bem Imaterial, sendo o congado uma manifestação de grande valor enquanto
forma de expressão própria da cultura brasileira e de matriz africana. Contudo, depoimentos
dos participantes das guardas ressaltam um momento em que eles sofrem discriminações e
são taxados de macumbeiros e alcoólatras e, durante os cortejos enfrentam a desvalorização
de sua arte por uma parcela considerável da população local. As Igrejas protestantes proíbem
seus fiéis de participarem da dança, argumentando que o congado seja uma idolatria aos
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espíritos maus, desse modo, muitos congadeiros, convertidos à religião protestante,
abandonam sua cultura e rejeitam aqueles que permanecem na dança.
O público que assiste a essa performance se autodenomina como "acompanhantes" que
andam atrás dos ternos, normalmente são pessoas que possuem alguma relação com os
dançantes, ou de vizinhança, parentescos, ou pessoas da ligados às festas de Igreja. Por outro
lado, surge um novo grupo apreciador do congado e de outras manifestações culturais, estes
se encontram nos Festivais de Congado, organizados por prefeituras, secretarias de culturas
ou associações culturais. Segundo Schechner (1985) a "restauração" de eventos
performáticos, está motivado por interesses ligados à indústria do turismo. Assim, o "resgate"
de práticas rituais desaparecidas, passa a ser reivindicadas também por interesse de
empreendedores culturais.
De qualquer forma, a manifestação cultural do congado não compõe o perfil do
espectador midiático, que se acomoda na apreciação do entretenimento artístico, e sim, torna-
se o ator de uma arte. A poética é vivenciada e expressa na dança, nos instrumentos, no canto
e no ritual. Assim, participamos de um espetáculo totalmente fundido numa espiritualidade
performática afro-brasileira.(Silva, 1999).
O congado propicia aos dançantes a experiência artística de fazer parte de papéis que
correspondem a uma posição simbólica invertida em relação ao “status” ou condição que
possuem no quadro hierárquico da “estrutura social” das cidades estudadas. Os reis e rainhas,
capitães e presidente são representações significativas atribuídas a indivíduos marginalizados
no cotidiano e que, dentro do ritual, ganham poderes extraordinários.
A passagem do bastão de uma geração a outra, simboliza uma hierarquia dentro do
Congado que, de certa forma, contribui na permanência da tradição nas novas gerações. O
fato é que, quando morre um capitão de uma Banda de Congado, o grupo fica abalado até o
segundo capitão assumir com determinação sua nova liderança.
Outra festividade popular carregada de elementos performáticos, e que hoje
infelizmente quase desapareceu da região, é a Cavalhada. De origem romana e portuguesa o
desfile da cavalhada era considerado o “auto de cristãos e mouros”, classificada atualmente
como teatro folclórico. Seu caráter espetacular atraía multidões, que acompanhavam os três
dias de dramatização, podendo os atores estar de cavalo ou mesmo a pé. O conflito é a
reconquista da Península Ibérica pelos cristãos, na representação participavam o rei cristão e o
rei mouro chamado de Rei de Castela, a princesa e o palhaço, que morre no final.
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Segundo Jacyntho Lins Brandão (2001), a cavalhada de Rio Espera se caracterizava
pelo “floreado”, o momento do espetáculo em que os cavalos e cavaleiros exibiam sua
destreza, exibindo uma verdadeira coreografia equestre. Pela tradição a organização desta
festa dispendiosa ficava sob responsabilidade da família Pereira Neves, de Rio Espera, que, há
mais de cem anos, arcava com todos os gastos da festa. A cavalhada era habitualmente
realizada durante a celebração da padroeira da cidade.
Foto 1 - Cavalhada realizada em 1953, organizada pela família Pereira Neves.
Fonte: Acervo da Família Pereira Neves.
Segundo Eugênio Luiz, descendente da família Pereira Neves e colecionador de fotos
antigas, a última cavalhada em Rio Espera ocorreu em 1953. Seu fim seria provocado pela
falta de vontade dos mais novos. “antigamente os jovens aspiravam adquirir um belo animal
(cavalo), para cuidar e adestrar. Hoje o interesse se voltou para as motocicletas e as corridas
de motocross e carros, são muito mais práticas apesar de sem vida”, afirma em depoimento
pessoal à autora.
Em 2004, a família Pereira Neves, atualmente morando em Capela Nova, cidade
vizinha a Rio Espera, organizou junto com a prefeitura da cidade uma cavalhada como nos
velhos tempos. Pela falta de montadores e cavalos adestrados convidaram moradores de
Senhora de Oliveira e Rio Espera para completar os componentes do grande espetáculo. Luís
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Reis, morador de Rio Espera, conhecido como Chapolin, participou do espetáculo montado
num cavalo mouro e relata: “Aonde me chamarem eu vou, não perco uma cavalhada”
(Depoimento pessoal).
Naquele ano, Rio Espera contratou a apresentação de uma Cavalhada, contudo
nenhum morador participou da performance, somente atuaram como espectador do evento, os
três dias de cavalhada foi resumido em duas horas, se afastando da prática ritual e
aproximando-se mais a um modelo da indústria cultural.
De qualquer modo a religião e o teatro sempre foram grandes aliadas na construção
simbólica da cultura dessas comunidades rurais, criando e reforçando os nossos sentidos e
valores, e permanecendo como cultura de resistência.
Destacamos o Congado, as Folias e as Cavalhadas como manifestações populares
locais e de tradição que, pelo seu caráter expressivo, possuem elementos do teatro, como
instrumento de participação típico das pequenas cidades mineiras no curso da história da
cultura. “Toda festa mineira da época é sempre um espetáculo total” afirmou Affonso Ávila
(1978). Mas além dessas, podemos encontrar nas festas dos padroeiros, nas Coroações de
Maria (durante todo o mês de maio) e na Semana Santa um encontro bem sucedido entre
teatro e a religião.
Estas expressões populares podem enfatizar um caráter poético presente no mundo
rural, mas que pouco é explorado na escola que vive de um pragmatismo, desumanizante e
que desvaloriza a cultura do mundo do campo. Através do ensino das artes, que vinculado às
expressões e manifestações culturais locais, poderia-se estabelecer elos de maior conexão e
valorização dos rituais próprios dos moradores das cidades estudadas. Mostrando aos mesmos
o valor de sua cultura e retirando-o de um processo cultural, muitas vezes alienante, urbano e
massificante.
Experiência teatrais na educação informal
Descreveremos agora uma iniciativa própria que se desenvolveu na perspectiva da
expressão artística regional: a realização de um projeto cultural na região que desencadeou na
constituição da Associação Cultural Pequeno Príncipe (ACPP). Primeiramente, formou-se um
grupo de pessoas interessadas na preservação e resgate da cultura de pequenas cidades rurais,
excluídas do circuitos intelectuais e artísticos.
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Assim, a ACPP surge em 2002, como uma forma de educação informal, quebrando o
vínculo estigmatizado da escola como espaço de imposições. O objetivo é o resgate do
encantamento do mundo, da aprendizagem livre e responsável, do lazer comunitário e da
maturidade social. Ao olhar de modo diferenciado a sua cultura, o aluno-ator identifica o
imaginário cultural no qual está imerso e se localiza no mundo real, imediato. O projeto se
estende às cidades de Itaverava, Catas Altas da Noruega, Rio Espera, Senhora de Oliveira e
Cipotânea.
A ACPP completou dez anos de existência em 2012. Foram anos de intenso trabalho
de promoção cultural em que se formaram diretores e grupos de teatro, promoveram-se
festivais de teatro, publicações de informativos culturais, livros de poesias, noites dos
contadores de história, música, recital de poesia, capoeira, congado, folia de reis, em tudo a
ACPP esteve presente, contribuindo e catalisando os esforços individuais para um fim único:
resgatar a arte e a poesia na vida dos moradores das cidades rurais do Alto Vale Piranga.
Foto 2- Companhias teatrais das cidades rurais de Lamim, Rio Espera e Rio Melo (distrito de Rio Espera) formados na região do Alto vale Piranga pela ACPP, participam com quatro espetáculos no XI FACE (Festival de Artes Cênicas de Conselheiro Lafaiete) em 2010.
Entre as diversas montagens realizadas com textos escritos por três docentes que
compunham a ACPP, em forma de criações coletivas ou pesquisa etnográfica, destacaremos a
montagem de dois espetáculos em especial que nasceram dentro de uma perspectiva
antropológica, embasados na realidade histórica e cultural da região. Todos os textos são
flexíveis e permitem adaptações de acordo com a realidade de cada cidade. A trilha sonora
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escolhida buscou na música do Congado, da Folia e das liturgias da tradição local a
sensibilização do espírito humano universal. É como diz Maia “se queres ser universal canta
tua aldeia.”
“Os Clãs” foi escrito através das observações coletadas pelos atores da ACPP. O
primeiro roteiro de “os Clãs” foi construído em 2006 e apresentado em algumas cidades do
Alto Vale Piranga em meados de 2007. Em 2009, o texto foi reorganizado com novos
elementos cênicos e uma maior inserção da plateia, apresentando no Festival de Senhora de
Oliveira e Governador Valadares (META).
O texto foi construído numa pesquisa no modo de se viver das cidades rurais e
situações reais se misturam com poesias de Carlos Nejar e Fernando Pessoa. Personagens
simbólicos retratavam diversos momentos da história local. Padre Eugênio, personagem
fictício, é uma fusão de diversos párocos que passaram na região, que representavam
verdadeiras autoridades do povo. Cenas e fatos foram construídos através das narrações de
moradores de situações hilárias ou de grande simbologia na formação cultural das cidades. O
alto-falante da Igreja era usado por alguns párocos para chamar a atenção dos pais que
deixavam os filhos namorarem na praça. Tudo era controlado. A peça começa com uma
mulher negra atravessando o palco (ou rua), acorrentada por um homem. Explorando a
ambiguidade, não se sabe se ele é seu senhor, marido, pai ou patrão. Esta mulher, Aurora, é a
protagonista do espetáculo, que dentro da hierarquia social representa o fracasso: mulher,
negra e pobre. Mas Aurora rompe o estigma de sua cultura na busca de algo a mais. Coligada
com Dr. Ricardo, figura enigmática e de ares filosófico que questiona os padrões
estabelecidos em sua comunidade parte para a cidade grande na esperança de libertação, em
referência ao êxodo rural, problema comum a todo Vale Piranga. Contudo, se depara com a
burocracia e a lei fria da cidade, abandonada e desiludida se refugia na memória da essência
de sua cultura local. O Congado aparece no seu imaginário, refortalecendo sua identidade e o
sentido de sua existência. Resolve voltar para sua origem. Encontra uma cidade destroçada
pelo interesse dos seus líderes. As matas queimadas para vender carvão, os jovens sem
perspectivas, e a política direcionando quem serão beneficiados ou não. Porém, ela não é mais
uma vítima da situação e se coloca como pessoa livre e com poder de transformação social.
“Uai Zé”, escrito especificamente para um grupo de onze atores e uma atriz oriundos
da zona rural. O elenco era composto por capoeiristas, congadeiros e produtores rurais. Desse
modo, procurou-se aproveitar todos os talentos para descrever, de forma crítica, a cultura da
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comunidade. O congado marcava os momentos dramáticos da peça, como a morte de
Zezinho, homossexual assassinado por um matuto. A capoeira era dançada e cantada por
todos no ritmo do trabalho no canavial, que marcava a passagem de tempo da história.
Corrupção, jogos de interesse, alcoolismo, preconceito, alienação, fé e solidariedade se
misturam num espetáculo interativo no qual a plateia é colocada para decidir o destino da
comunidade através de eleições. A peça se passa numa encruzilhada e a plateia delimita o
contorno da estrada e as casas de cada Zé, cujo nome revela sua personalidade: Zé Boaça,
negro alcoólatra e fanfarrão; Zé Bento, homem conservador e de grande fé, Zé Fortuna,
corrupto e mulherengo, Zé Holístico, exótico e revolucionário. Cada um representa dilemas e
dramas sociais diferentes, que são enfrentados e solucionados em conjunto. Todos os
espetáculos tiveram mais do que uma única montagem e elenco.
A aprendizagem, vivenciada por cada novo ator refletia no seu modo de agir e pensar
sua cultura. O que se pode observar é que tanto a plateia como os elencos das peças se
envolviam com mais intensidade nos espetáculos montados numa ênfase antropológica
efetuando a aprendizagem em todos os envolvidos. Os docentes envolvidos no processo de
montagem dos espetáculos relataram um intenso desenvolvimento de seus alunos-atores, tanto
com relação ao processo cognitivo e afetivo, como na compreensão e valorização de sua
cultura local.
Considerações finais
Esta pesquisa buscou mostrar como se deu a legitimação do ensino de Artes num
paralelo com o contexto histórico. Analisando a região do Alto Vale Piranga, pudemos notar
que não há espaço para o conhecimento artístico e que, apesar de ser reconhecido como área
de conhecimento tão necessário como o conhecimento científico, continua ocupando espaço
irrelevante nas instituições escolares. As políticas públicas até agora foram insignificantes
para resolver o problema da falta de habilitados. O conjunto escolar demonstra-se
despreparado para assumir uma visão poética na educação. Visão essa que valorize sua
própria cultura e um conhecimento que tenha como finalidade a si mesmo e a vida. Em razão
destes e de outros diversos desafios da educação, propusemos um olhar especial para a
educação do campo e propomos uma alternativa a partir da arte.
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