por uma música que não faz falta - sílvio f

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Música Contemporânea ::

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m úsica c ontemporânea- 2

organizadora Vera Lúcia Donadio

São Paulo, 2008

Coleção Cadernos de Pesquisa

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

M987 Música Contemporânea Brasileira: Silvio Ferraz, Mário Ficarellie Marcos Câmara [recurso eletrônico] / organizadora Vera Lucia

Donadio - São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 200773 p. em PDF - (Cadernos de pesquisa: v. 3)

ISBN 978-85-86196-17-1Material disponível na Divisão de Acervos: Documentação eConservação do Centro Cultural São Paulo.

1. Música - Brasil - Século 20. I. Ferraz, Silvio. II. Ficarelli, M.(Mario), 1937 - III. Câmara, Marcos. IV. Donadio, Vera Lúcia, org. V.Série.

CDD 780.981

copyright ccsp @ 2008Fotogra a de Capa / João MussolinCentro Cultural São Paulo - Rua Vergueiro, 1.00001504-000 - Paraíso - São Paulo - SPTel: 11 33833438http://www.centrocultural.sp.gov.brTodos os direitos reservados. É proibido qualquer reprodução para ns comerciaiobrigatório a citação dos créditos no uso para ns culturais.

Pre eitura do Município de São PauloGilberto KassabSecretaria Municipal de Cultura Carlos Augusto CalilCentro Cultural São Paulo Martin GrossmannDivisão de In ormação e ComunicaçãoDurval LaraGerência de Projetos Alessandra Meleiro

Idealização Divisão de Pesquisas/IDART Revisão Luzia Boni ácioDiagramação Lica KeuneckeCapa Solange AzevedoPublicação site Marcia Marani Entrevistadora Silvio Ferraz eMarcos Câmara Maria Aline Noronha

Entrevistadores Mário Ficarelli Ana Carla Vannucchi, Francisco CarlosCoelho, Evaldo Piccino e Marcos Câmara.

Colaboração Leda Timóteo, Pergy Grassi RamoskaOrganizadora Vera Lucia Donadio

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Música Contemporânea ::

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:: AGRADECIMENTOS

Agnes ZulianiLúcia Maciel Barbosa de Oliveira

Marcos Câmara

Vera Achatkin

Walter Tadeu Hardt de Siqueira

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

:: PREFÁCIO

A “Coleção cadernos de pesquisa” é composta por ascícul

produzidos pelos pesquisadores da Divisão de Pesquisas do CentCultural São Paulo, que sucedeu o Centro de Pesquisas sobre ArBrasileira Contemporânea do antigo Idart (Departamento de In ormaçãDocumentação Artística). Como parte das comemorações dos 30 anos Idart, as Equipes Técnicas de Pesquisa e o Arquivo Multimeios elaboravinte ascículos, que agora são publicados no site do CCSP. A Coleapresenta uma rica diversidade temática, de acordo com a especi cidad

de cada Equipe em sua área de pesquisa – cinema, desenho industrialartes grá cas, teatro, televisão, otogra a, música – e acaba por refetia heterogeneidade das ontes documentais armazenadas no ArquivMultimeios do Idart.

É importante destacar que a atual gestão prioriza a manutençãoda tradição de pesquisa que caracteriza o Centro Cultural desde sucriação, ao estimular o espírito de pesquisa nas atividades de todas as

divisões. Programação, ação, mediação e acesso cultural, conservaçãodocumentação, tornam-se, assim, vetores indissociáveis.Alguns ascículos trazem depoimentos de pro ssionais re erenc

nas áreas em que estão inseridos, seguindo um roteiro em que a trajetóripessoal insere-se no contexto histórico. Outros ascículos são estruturada partir da transcrição de debates que ocorreram no CCSP. Esta ormaregistro - que cria uma memória documental a partir de depoimento

pessoais - compunha uma prática do antigo Idart.Os pesquisadores tiveram a preocupação de registrar e refetir

sobre certas vertentes da produção artística brasileira. Tomemos algunexemplos: o pesquisador André Gatti mapeia e identi ca as principatendências que caracterizaram o desenvolvimento da exibição comercna cidade de São Paulo em “A exibição cinematográ ca: ontem, hojeamanhã”. Mostra o novo painel da exibição brasileira contemporâne

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Música Contemporânea ::

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en ocando o surgimento de alguns novos circuitos e as perspectivauturas das salas de exibição.

Já “A criação grá ca 70/90: um olhar sobre três décadas”, deMárcia Denser e Márcia Marani traz ên ase na criação grá ca como o sque realiza a identidade corporativa e o projeto editorial. Há transcriçãde depoimentos de 10 signi cativos designers brasileiros, em que experiência pessoal é inserida no universo da criação grá ca.

“A evolução do design de mobília no Brasil (mobília brasileicontemporânea)”, de Cláudia Bianchi, Marcos Cartum e Maria LyFiammingui trata da trajetória do desenho industrial brasileiro a partir d

década de 1950, en ocando as particularidades da evolução do design móvel no Brasil.A evolução de novos materiais, linguagens e tecnologias também

encontra-se em “Novas linguagens, novas tecnologias”, organizado pAndréa Andira Leite, que traça um panorama das tendências do desigbrasileiro das últimas duas décadas.

“Caderno Seminário Dramaturgia”, de Ana Rebouças traz

transcrição do “Seminário interações, inter erências e trans ormaçõesprática da dramaturgia” realizado no CCSP, en ocando questões relacionaao desenvolvimento da dramaturgia brasileira contemporânea. Procuransuprir a carência de divulgação do trabalho de grupos de teatro in ante jovem da década de 80, “Um pouquinho do teatro in antil”, organizapor Maria José de Almeida Battaglia, traz o resultado de uma pesquidocumental realizada no Arquivo Multimeios.

A documentação otográ ca, que constituiu uma prática sistemáticdas equipes de pesquisa do Idart durante os anos de sua existência,é evidenciada no ascículo organizado por Marta Regina Paolicc“Fotogra a: Fredi Kleemann”, que registrou importantes momentos cena teatral brasileira.

Na área de música, um panorama da composição contemporânee da música nova brasileira é revelado em “Música Contemporânea I

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

“Música Contemporânea II” – que traz depoimentos dos compositores Menezes, Edson Zampronha, Sílvio Ferrraz, Mário Ficarelli e Marcos CâJá “Tributos Música Brasileira” presta homenagem a personalidades qcontribuíram para a música paulistana, trazendo transcrições de entrevistacom a olclorista Oneyda Alvarenga, com o compositor Camargo Guare com a compositora Lina Pires de Campos.

Esperamos com a publicação dos e-books “Coleção cadernos pesquisa”, no site do CCSP, democratizar o acesso a parte de seu ricacervo, utilizando a mídia digital como um poderoso canal de extroversãe caminhando no sentido de estruturar um centro virtual de re erênci

cultural e artística. Dessa orma, a iniciativa está em consonância comatual concepção do CCSP, que prioriza a interdisciplinaridade, a comunicaentre as divisões e equipes, a integração de pesquisa na es era do trabalhcuratorial e a di usão de nosso acervo de orma ampla.

Martin Grossmann

Diretor

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:: ÍNDICE:

Introdução................................................................ 08Silvio Ferraz.............................................................. 09Mário Ficarelli............................................................ 39Marcos Câmara .......................................................... 59

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

:: INTRODuçãO

O Centro Cultural São Paulo está lançando a coleçãoCadernos de

Depoimentos, em comemoração aos 30 anos do IDART, destacando criadornas mais diversas áreas da cultura, objeto de sua investigação e estudo.Em 2004 e 2005 oi realizada uma série de depoimentos na Sala d

Debates do Centro Cultural São Paulo. A Equipe Técnica de PesquisaMúsica desenvolveu o projetoUma conversa com o compositor , no qual os compositores contemporâneos eruditos brasileiros atuantes na cidade dSão Paulo transcorreram sobre suas trajetórias na área musical.

Para estas publicaçõesMúsica Contemporânea, em dois cadernos,oram editados os depoimentos dos compositores Flo Menezes, EdZampronha -Música Contemporânea- Caderno 1e Silvio Ferraz, MárioFicarelli e Marcos Câmara –Música Contemporânea- Caderno 2.

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Silvio Ferraz em depoimento na Sala Adoniran Barbosa no Centro Cultural São Paulo em11/08/2005. Fotógra o: Carlos Rennó

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

:: SIlvIO FERRAzSilvio Ferraz é compositor, nasceu em 1959 na cidade de Sã

Paulo. Foi aluno de Willy Correa de Oliveira, Gilberto Mendes e GeOlivier Toni na Universidade de São Paulo. Sua produção composicioé marcada por intenso ecletismo, evoluindo de uma postura pós-serianos anos 80, passando por um “minimalismo” cuja base teórica remeao compositor Olivier Messian, proposições que ainda guram em strabalho porém mescladas à idéias provenientes da New-Complexitendência composicional conduzida por Brian Ferneyhough, a qual de cemodo, o recolocam em ligação com Willy Correa em seu período anteri1980. Desde 1985, participa dos principais estivais brasileiros de múscontemporânea, sobretudo do Festival Música Nova e da Bienal de MúsBrasileira Contemporânea; no exterior participou do Festival d’AutomnParis 1994, Sonidos de las Américas, Carnegie Hall, Nova York, em 1e do Encuentro Internacional de Musica Contemporanea, Chile, 200Doutorou-se em semiótica na PUC-SP. Sua obra tem sido interpretada pconjuntos instrumentais especi camente dedicados à música nova, como Grupo Novo Horizonte e o Duo Diálogos do Brasil, The Nash EnsemThe Smith Quartet da Inglaterra, o Ensemble Contrechamps da Suíça, TIctus Ensemble e Het Spectra Ensemble da Bélgica e o Ensemble NordDinamarca. Dedica-se à música nova e principalmente aos modos de joinstrumentais, à música eletroacústica. É autor de Música e Repetiçãaspectos da questão da di erença na música contemporânea (São PaulEduc/ Fapesp, 1997) e Livro das Sonoridades (Rio: 7 letras, 2005) e ddiversos artigos no campo da análise musical de obras do pós-guerrFoi Bolsista da Fundação Vitae em 2003, pesquisador associado à Fapedesde 1997 e pesquisador do CNPQ, desenvolvendo projetos com princ

en oque na criação de aplicativos para trans ormação de audio e automade processos criativos. Recebeu os seguintes prêmios: VI Concurso Rite Som, UNESP, 1º prêmio: Na Seqüência In nita das Figuras, 1990; Concurso Nacional de Composições para Contrabaixo, 1º prêmio: Estde Cores para uma Cena de Erosão, 1991; Concurso Firestone de MúCriativa, prêmio para a composição instrumental Várzea dos Pássaros Pó, 1992.

Desde 2003 é pro essor de composição e harmonia no curso de mús

da Universidade Estadual de Campinas.

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Música Contemporânea ::

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:: uMA CONvERSA COM O COMPOSITORSa a Adoniran Barbosa - Centro C t ra S o Pa o - 11/08/20

:: POR uMA MúSICA quE NãO FAz FAlTANão sei muito bem o que alar num depoimento em relação ao mtrabalho. É di ícil, primeiro porque nem sei muito bem o que é isto qu

chamo de o meu trabalho, isto que venho tentando azer; não sei qual sureal importância. Só sei que é importante para mim; mesmo quando nãquero, eu escrevo música. Não escrevo porque alguém encomenda, aliisso ocorre raramente. Escrevo música quase que só para mim.

De tempos em tempos, sou acordado por uma idéia, um gesto sonorqualquer; uma rase melódica, um som qualquer que ca ali meio qvoltando o tempo todo. Estou tranqüilo em casa, e lá volta aquela rasaquela sonoridade, aquela estrutura rítmica.

Às vezes, esse tipo de assalto acontece por eu ter ouvido uma músicapor ter assistido a algum espetáculo, por ter visto alguma esta populaAinda outro dia, oi o dobrar de um sino em Tiradentes, Minas Gerais, puma cerimônia únebre que disparou esta coisa de car sendo perseguipor uma música que não sei onde está nem como é, tomado por essimagem sonora. Sou constantemente atormentado por isso. Ela volta volta e não pára de voltar enquanto não or colocada no papel, enquantnão virar partitura. Deve haver algum prazer nessa sensação porque edemoro muito para tomar coragem e passar para a partitura, por issoproduzo muito pouco.

Há muito tempo, escrever música para mim deixou de ser uma atividapública; alguma coisa que aço para músicos, que aço para um públque aço para um evento qualquer. Tive de azer isso recentemente

um concurso para pro essor; nos obrigaram a escrever uma peça de utrês minutos em mais ou menos seis horas. Seis horas em um casulotrancados, com um vigia na porta e autorização para ir ao banheiro apenaacompanhado por ele. Foi grati cante ter provado para mim mesmo que ecapaz de escrever uma música em algumas horas. Mas não é essa a mindinâmica. A razão é simples. A música que escrevemos, contemporânraramente é tocada. Ninguém pede por ela. Ela não diz respeito ao lugaem que vivo, neste país cheio de sol e estardalhaços. Se, como pro ess

de composição na UNICAMP eu passar dez anos sem escrever mús

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

ninguém vai reparar. A imagem que me vem é de uma música pequena, upequeno mundo cheio de detalhes, e o que o mundo de hoje menos queé detalhe. Uma música cheia de detalhes que pede atenção às sutilezasMe parece que o mundo de hoje é o do borrão de uma dimensão só, qusutileza é aquilo que é proibido. Essa música di cilmente se ará públivisto que o público hoje em dia é ligado aos entretenimentos. Será aindmais di ícil ela se azer pública; eu diria que ela está no avesso da cultue que ninguém se dá conta de que ela existe. Quando digo que ela não

az alta, é para o público em geral. Aliás, o que é um público hoje edia? Mas essa música, estranhamente, me az alta, e tenho colegas qcompartilham desse mesmo sentimento.

Muitas das músicas que preciso escrever, eu gostaria que alguém já ativesse escrito. Vocês já pensaram entrar em uma loja e encontrar diversapeças de Silvio Ferraz que ele mesmo não se lembra de ter escrito, qu

oram escritas por outro compositor? É por isso que muitas vezes procgravações para ver se alguns dos compositores que mapeei como aquelaos quais eu me aproximo mais escreveram nalmente a música que precisava ter escrito, aquela música que estava me incomodando e macordando nas madrugadas. E com isso me livrar de pequenos pesos e mdar o prazer de ouvir aquilo que me perseguia. Mas isso tudo é paradoxanão unciona bem assim.

Um exemplo: eu estava escrevendo uma música, aliás uma série dpeças para orquestra, tendo por re erência o som da roda dos carrode boi. Fui a um espetáculo de teatro com trilha sonora assinada pelocantor Fernando Carvalhaes1. Logo no início, um coro cantava como se

osse um carro de boi. A música para orquestra que eu estava escrevencou largada, não precisava mais dela, já estava eita e me satis az

o su ciente para que a idéia de carro de boi saísse de minha cabeça eparasse de me perseguir. Mas o e eito oi inverso, me satis ez a tal poque cheguei em casa e trabalhei um bom tempo na partitura.

Então, é um pouco por isso que não sei o que dizer em um depoimentporque aço uma música que aparentemente não az alta aos outrFaço algumas perguntas o tempo todo, sobretudo quando adveio estconvite. O que é essa música que escrevo no mundo em que vivo? 1 Fernando José Carvalhaes Duarte, compositor e pro essor-doutor ( aleceu em 2006)

pro essor de canto e técnica vocal no IA-UNESP, doutorou-se com tese sobre Roman de Fauveimportante do cancioneiro medieval.

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Música Contemporânea ::

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uma música que está ora do mundo dos comuns. Claro, gostaria que pertencesse também à cultura dessa gente que nos rodeia, que está maisperto de nós. Mas o que é a cultura de uma gente? É tudo aquilo queleva a dançar, cantar, chorar, rezar, cozinhar, se acasalar. Sutilezas. E seexiste a cultura de uma gente, existe sempre a cultura daquele que nãoquer que essa cultura vingue: a trilha sonora dos momentos especiais, música de passatempo para o chato quotidiano (aquilo que chamamos dentretenimento e que diz respeito diretamente ao trabalho capitalista:uma hora você trabalha, outra você vive o tédio de não estar trabalhandoe aí você se entretém com alguma coisa até chegar a hora de ir trabalhade novo).

Não sei se ca claro que dançar e cantar não são entretenimento, sãosim, mani estações de um povo, exigem uma técnica, um envolvimenum azer, uma orma de viver juntos. Já o entretenimento não pede nadnem atenção ele pede. Você pode levantar, interromper quando quercomer enquanto se entretém, alar de outra coisa. Não impede nem quvocê descanse. Bem, toda música corre riscos. Pode ser que não seja paentretenimento, mas não sendo da cultura de uma gente, ela corre o riscode ser en eite de esnobes. Coisa para políticas interpessoais das mabaratas.

No undo, essa música contemporânea até ca bem mantendo-sausente; quase sem gravações, com ralas apresentações em concertosA resposta não está em modi cá-la. Algumas pessoas pensam assim: tum público. Não é o meu caso; escrevo para me livrar de idéias que mincomodam.

Então me pergunto: Para que um depoimento de alguém que az umcoisa que mal existe? Que estranho culto é esse? Sobretudo neste paípobre em que os a etos são tão elementares. Qual é o lugar de a etotristes, lamentos, réquiens, sussurros, jogos de timbres? Qual é o lugapara essas pequenas coisas que nos arrancam de nossos apegos cotidianoquando o que se quer é justamente que não se saia do cotidiano? Olugar talvez seja o de resistir solitário ao que chamamos de um povo secultura, um povo que não consegue sequer chorar sem que seu choro vientretenimento de alguém.

Dia a dia, é a espessura daquilo que chamávamos de cultura qu

se perde. Torna-se dia a dia mais rala e, se resiste, é em pequenas

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

comunidades. E a cultura tornando-se rala, que espaço tem a música snão é para se car eliz nem para se curtir ossa nem para passar o temnem para tornar o ambiente mais agradavelmentecult ? Que lugar temhoje em dia uma música que ala da morte e da dor e que não az parda cultura de uma gente?Volto para o meu mote inicial: Para que um depoimento de alguémque az uma música que não existe, de um compositor que não exista não ser para ele mesmo e para um pequeno ciclo de amigos que cercam? Digo isso porque sei que alguns dos meus colegas compositortambém vivem coisas parecidas, e por isso mesmo passo a alar disso qnão tem nada de pessoal, e ala menos de uma pessoa especí ca do qude uma orma de vida que acabou, de uma coisa que acabou no jogo dachatamento, de decomposição das dimensões do que se chamava pocultura.

:: DE ÍDOlOS E REFERêNCIASQuando era estudante, tinha um ou outro compositor por ídolo. Com

isso, minhas primeiras músicas, coisas escritas no primeiro e segundano de aculdade, eram bricolagens, cada trecho era moldado por uídolo. Depois, veio a ase de me livrar dos ídolos, que começou logo. terceiro ano da aculdade, já me sentia atraído por essas sonoridades qume perseguem até hoje, mas não signi ca que tenha deixado os ídolode lado. Aconteceu quase sem eu perceber, os tiques sonoros dos ídolo

oram virando arinha e se misturando sem que as coisas deixassem cde onde tinham vindo. Berio2, Villa-Lobos3, Bela Bartok4, Vivaldi5, música

2 Luciano Berio (1925-2003), compositor italiano ligado à Escola de Darmstadt. Detacou-se sua série de composições intituladas Sequenzas, obras para instrumentos solistas que exploram ndimensões de virtuosismo, e por sua Sin onia.3 Heitor Villa-Lobos (1887-1959), compositor brasileiro, participou dos principais movimentrenovação da música brasileira e européia. De sua obra destacam-se suas Bachianas Brasileiras, obramesclam elementos da música de J.S.Bach e a tradição musical popular brasileira.4 Béla Bartók (1881-1945), compositor húngaro É conhecido por suas pesquisas etnomusicolónas quais estudou a música popular da Europa Central e de Leste, material este que retomou em divede suas composições como sua série para piano Microcosmos.5 Antonio Vivaldi (1678-1741), compositor italiano, um dos expoentes da música barroca, poimensa produção musical em di erentes ormações. Destacam-se os concertos, cujo ormato oi adooutros compositores.

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Música Contemporânea ::

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ricana, Bach6, Pixinguinha, Stravinsky7, Debussy8, Luca Marenzio9, JimiHendrix10. A lista aumentou com o passar do tempo: Mozart11, Messiaen12,Strauss13, Brian Ferneyhough14, Giacinto Scelsi15, Sciarrino16, Georges

6 Johann Sebastian Bach (1685-1750), músico e compositor alemão do período barroco música erudita. Sua produção é talvez a mais vasta da música européia e é re erência obrigatória de a música que lhe oi posterior.7 Igor Stravinsky (1882-1971), compositor russo, um dos mais destacados e in uentes

século XX, revolucionou de orma decisiva a linguagem musical com o balé A Sagração da Pr(1913). Posteriormente, se destacou em di erentes linguagens musicais, incluindo o neoclassicism

serialismo.8 Claude Debussy (1862-1918), compositor rancês, símbolo do impressionismo musicaltransição da música do século XIX ao XX. Levou a linguagem musical a universos antes não imagatravés de novas escalas, novo uso da harmonia, da orma e da orquestração.9 Luca Marenzio (1553-1599), compositor italiano, reconhecido pela composição de sMadrigais em que se valia de excelentes cantores e virtuosismos vocais. Apesar de utilizar cromate acidentes, sua música era praticamente diatônica, com melodias sensuais. Publicou diversos livroMadrigais, tornando-se bastante amoso na época10 Jimi Hendrix (1942-1970), guitarrista norte-americano. Deixou um legado de mais de 8horas de gravações que talvez nunca sejam divulgadas. Mudou completamente o conceito de como uma guitarra. Foi também o pioneiro na utilização de e eitos como distorção.11 Wol gang Amadeus Mozart (1756-1791), compositor, um dos mais populares dentraudiências modernas. Considerado gênio por compor desde ainda criança, revolucionou defnitivameconcepção da ópera com sua Flauta Mágica.12 Olivier Messiaen (1908-1992), organista e compositor rancês, sua obra é até hoje re erê

para as novas gerações de compositores. Em sua música unde elementos do canto gregoriana, à sistrítmicos indianos.13 Richard Strauss (1864-1949), compositor alemão. O mais importante nome da música aledos primeiros anos do século 20. Sua educação musical oi clássica, a princípio adepto de Bra

posteriormente converteu-se, tornando-se discípulo e herdeiro de Wagner.14 Brian Ferneyhough (1943), compositor inglês. É undador da Nova-Complexidade, ede composição inglesa de presença marcante a partir da década de 1970. Sua música é extremameelaborada exigindo situações de per ormance de altíssimo nível.15 Giacinto Scelsi (1905-1988), compositor italiano. Destaca-se sobretudo por suas composirealizadas com uma ou duas notas apenas. In uenciou defnitivamente a nova geração de composito

ranceses sendo o precursor da chamada Música Espectral.16 Salvatore Sciarrino (1947), compositor italiano. É e etivamente um autodidata, sendo qu

seu conhecimento musical advém diretamente do estudo sobre os compositores modernos e clássicomúsica é importante pela revolução no modo de escrita instrumental.

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Aperghis17, Marisa Rezende18, Rodol o Caesar19, Roberto Victorio20, Ste anoGervasoni21, Gesualdo22, Luigi Nono23, Franco Donatoni24, Gérard Grisey25,Beethoven26. Mesmo virando arinha, eu ainda consigo saber de onde veicada coisa que usei em cada peça daquele período de ormação. Às vezuma mesma coisa vem de mais de um desses ídolos.Hoje em dia, quando ouço o que aço, não sei mais do que se trataNão sei se é ou não é contemporâneo, se é ou não interessante. Não sese vale a pena continuar azendo daquele jeito, o que, às vezes, me trazidéia de mudar de rumo, de azer de outro jeito. Mas não sai, não sei ade outro jeito. E os ídolos sumiram.

É claro que, se existiam os ídolos, existiam também aqueles que não minteressavam muito. E também é verdade que ídolos viraram insigni cant17 Georges Aperghis (1945), compositor grego. Com ormação autodidata, mudou-se para em 1963. Suas primeiras obras são marcadas tanto pelo serialismo quanto pelas investigações de PSchae er, Pierre Henry e Iannis Xenakis. A partir de 1976, passa a compartilhar o seu trabalho e

grandes domínios: o teatro musical, música de câmara e para orquestra, vocal ou instrumental e óper18 Marisa Rezende (1944), pianista e compositora carioca., undou a Associação NacionaPesquisa e Pós-Graduação em Música. Sua música é considerada re erência entre a nova geraçcompositores brasileiros.19 Rodol o Caesar (1950), músico eletroacústico e compositor carioca. Estudou no Conservde Paris, com Pierre Schae er, e mais tarde na University o East Anglia, Inglaterra, onde comdoutoramento em Composição Eletroacústica. Suas obras têm recebido distinções diversas e apresentadas em concertos e eventos importantes no Brasil e no exterior, como em Viena, Estocolmo,outros.20 Roberto Victorio (1959), tenor, regente e compositor carioca. Tem em seu catálogo mde uma centena de obras para as mais diversas ormações, executadas nos principais estivaimúsica contemporânea no Brasil e no exterior. Divulga, com o Grupo Sextante de Mato Grosso,contemporâneas, en ocando os novíssimos compositores brasileiros.21 Ste ano Gervasoni (1962), compositor italiano. Estudou no conservatório Giuseppe VerdMilão, posteriormente teve contato com Luigi Nono e Brian Ferneyhough. Atualmente é pro esConservatório de Paris.22 Gesualdo da Venosa (1560-1613), compositor italiano que inovou a linguagem harmônicamúsica renascentista, incorporando à escrita vocal o uso do cromatismo.23 Luigi Nono (1924-1990), compositor italiano. Seu trabalho se destacou por sua atuação juna grupos operários. Em suas composições, de undamentação serial , elabora um interessante sistemintegração texto-música.24 Franco Donatoni (1927-2000), compositor italiano. Além da sua carreira de composiDonatoni manteve uma intensa atividade como pro essor de composição A sua música e o seu pensamusical in uenciaram várias gerações de compositores.25 Gérard Grisey (1946-1998), compositor rancês. Estudou no Conservatório de Paris, onde composição de Olivier Messiaen. É um dos undadores da música espectral, escola que toma a estrut

som como temática composicional.26 Ludwig van Beethoven (1770-1827), compositor alemão do período de transição entrclassicismo e o período romântico, revolucionou vários aspectos da linguagem musical no início do

XIX.

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e insigni cantes viraram ídolos. Beethoven oi um desses nomes. Maspre eria mesmo era ouvir a música dos burúndis, a música dos vendas,cantos de pássaros, música dos kaapor, tucanos e yaualapitis. Ouvir anteElomar27 a ouvir a dura música de Beethoven. Coisas que me levavampara bem longe das relações de poder que permeiam nossa sociedade. Á rica, a Ásia, os índios, as pequenas comunidades do interior do Brasilpássaros, essas coisas todas tinham o poder de me azer sentir ora des

jogo de mesquinharias. E Beethoven era o compositor dos pro essoresexigido. Assim como o ídolo das vanguardas, Stockhausen28 parecia mesmouma música insossa e pretensiosa.

Claro, como pro essor de música, sempre alei desses compositopara os alunos, e sempre azendo deles grandes gênios. Stockhausen juncom Beethoven, mas sem a orça que depois eu descobriria na música Beethoven.

Ainda como antiídolos, no Brasil, nunca me desceu essa música pavoz de cunho nacional. Talvez pelo cheiro de ascismo getulista. Essa oempolada de cantar sempre oi um contraponto grotesco à maravilhomúsica popular brasileira de Noel, João Pernambuco, João Pací co, ChBuarque, Tom, Milton, os arranjos de Vadico. Localizando melhor, acque o que me incomoda nessa música brasileira de cunho nacional – nesse pacote não alo de Villa-Lobos nem da primeira ase de Gallet29 oude alguns momentos de Lorenzo Fernandez30 – é o peso dela e sua sempreinadequada orma de escrita. Grandes orquestras bombásticas quandeveria ser um solo. Solos quando deveria ser uma grande orquestrMúsicas que sempre lembram a música de alguém e sempre sem a aleg27 Elomar Figueira Mello (1937), compositor baiano. Depois de ter selado o caderno do canciontem dedicado-se mais intensamente à execução de suas antí onas (cantos de louvor à Deus), galoestradeiros (sin onias compactas) e óperas. É através do dialeto sertanez e da fgura do catingueiro ele canta as vicissitudes humanas.28 Karlheinz Stockhausen (1928), compositor alemão. Um dos principais representates da EscoDarmstadt, juntamente a Luciano Berio e Györgÿ Ligeti pode ser considerado uma das principais re eda música contemporânea.29 Luciano Gallet (1893-1931), compositor, pianista, regente, musicólogo e olclorista cariFoi diretor do Instituto Nacional de Música, undador da Associação Brasileira de Música e re ormensino da música, dando-lhe o estatuto de curso universitário, em 1930. Sua principal ase composicespelha orte presença da música impressionista rancesa de Debussy, universo harmônico que abaao aderir ao nacionalismo musical.30 Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948), compositor, regente e pro essor carioca. Participo

undação do Conservatório Brasileiro de Música, em 1936 e da Sociedade de Cultura Musical, da ABrasileira de Música e do Conservatório de Canto Or eônico.

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das descobertas – cópias e cópias e mais cópias que pretendem semprultrapassar Villa-Lobos.

A moda de azer esse tipo de música voltou. Agora ouvimos coisque cariam maravilhosas na voz de uma cantora popular, nas linhas dum violão ou de um clarinete, ou ainda na batida de um baixo elétricose empetecarem todas em arranjos mal-ajambrados de uma música qunão é nem popular nem de experimentação – música para outra orma esnobe, aquele que quer dizer que “gosta do que é do povo”.

Já a ingenuidade me atrai. Me diverte ouvir algumas coisas de CamarGuarnieri31 eitas para o cinema, ou de Guerra-Peixe32, ingênuas, caipirasno sentido bom que o termo tem.

É gozado: existe música antiga e música velha. Música velha podnascer a qualquer época, ela é ora do tempo. E se existe música velhexiste música nova e ela também é nova em todos os tempos: uma músique revela sempre algo que não estava ali antes.

Falo assim meio debochado e sem restrições da música de outrocompositores que não me descem goela abaixo porque não tenho o menconstrangimento de alar as mesmas coisas da música que escrevo. Alinão suporto muito ouvir as músicas que escrevi. Logo depois da estréiouço e reouço até que cada detalhe começa a me incomodar, e a vontadera de ter eito outra coisa. Pego para azer outra coisa e, surpresa! Escrea mesma coisa.Talvez alta de capacidade mesmo.

Mas, como não permanecemos parados…, hoje, adoro BeethoveStockhausen continua no mesmo lugar, é uma música que não me interesouvir.

Nem só de música a gente se alimenta, mesmo sendo compositorNão são poucos os nomes de poetas, de pintores, de cineastas, de coisaseventos, atos e lugares que de uma maneira ou de outra entram na músique aço. Não sei bem como entram, mas sei que estão ali em cada noescrita: os sinos de Minas Gerais, os moçambiques do interior de S31 Camargo Guarnieri (1907-1993), compositor paulista. Manteve um curso de Composição, cintuito de ormar artistas conscientes da problemática da música no Brasil quanto à estética, às ormlinguagem e aos meios de realização. Foi criador e diretor do Coral Paulistano, regente ofcial da OrquSin ônica Municipal, membro undador da Academia Brasileira de Música, que presidiu.32 César Guerra-Peixe (1914-1993), compositor paulista. In uenciado por Hans JoachKoellreutter, passou a utilizar técnicas dodeca ônicas em suas obras, conquistando reconheciminternacional. Foi um dos undadores do Grupo Música Viva, que abandonou no fm da década dquando voltou-se para o nacionalismo musical.

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Paulo, o som do carro de boi, a loso a de Gilles Deleuze33, os pequenospoemas de Beckett34, Fernando Pessoa35, o alaranjado do pôr-do-sol emPrados-MG, a Capela do Rosário de Prados, a voz do velho AdhemaCampos36.

Fui aluno de Willy Corrêa de Oliveira37 e de Gilberto Mendes38, maspoderia dizer que o que permeia mesmo a música que escrevo são as ados velhos, Adhemar de Campos e Olivier Toni39. As dicas de maestro debanda dadas pelo Adhemar e as opiniões talvez mais cheias de detalhedadas pelo Toni sempre orientaram o que eu tinha de estudar. Claro, tudisso oi meio que posto de lado no momento de crescer, e rememoro hocomo coisas bastante distantes e que dizem respeito a uma pessoa de outrépoca, de uma época em que acreditava que com a música eu aria algumcoisas se movimentarem, que aquilo teria alguma orça revolucionárHoje, não acredito mais nessas coisas, e as pessoas importantes caramcomo boas recordações. Dos nomes todos de que me lembro, caria coquatro: Toni, Adhemar, Paul Klee40 e Gilles Deleuze.

De Paul Klee sempre me impressionou a simplicidade. E simplicidadeé azer uma coisa simplória que todo mundo vai entender. Simplicidade qdizer se livrar de ornamentos inúteis, deixar de lado tudo aquilo que pedexplicação e que não acontece no plano concreto de quem ouve a músic33 Gilles Deleuze (1925-1995), flóso o rancês. Cursou flosofa na universidade de Sorbonneobra traz pro undas marcas da flosofa de Nietzsche, Spinoza e Bergson.34 Samuel Beckett (1906-1989), escritor, poeta e dramaturgo irlandês. É considerado um d

principais autores do fnal do século XX com importante revolução no uso da linguagem escrita e a35 Fernando Pessoa (1888-1935), poeta português. É considerado um dos maiores poetas língua portuguesa.36 Adhemar de Campos Filho (1926-1997), instrumentista, regente e compositor mineiro. Ca Casa da Música Lira Ceciliana, em Prados, onde organizou estivais de música e dirigiu a OrquesCeciliana. Pesquisou e compôs várias músicas contemporânea de vanguarda, muitas ainda inéditas.37 Willy Corrêa de Oliveira (1938), pro essor e compositor brasileiro nascido em Pernambuc

juntamente com Gilberto Mendes, o grande responsável pela propagação das idéias musicais da EscDarmstadt (Boulez, Pousseur, Berio, Stockhausen) no Brasil.38 Gilberto Mendes (1922), compositor paulista, natural de Santos, é participante ativo vanguarda musical brasileira, um dos undadores do Grupo Música Nova e criador do Festival Múside grande impacto na cena musical contemporânea.39 Olivier Toni (1926), compositor paulista. Participou da undação da Orquestra de Câmara dPaulo, da Sin ônica Jovem Municipal, da Escola Municipal de Música e da criação do Depto de MúEscola de Comunicações e Artes da USP (ECA). Foi, ainda, um dos articuladores da Sin ônica da U1972, e da Orquestra de Câmara da USP, ormada por músicos da ECA em 1995.40 Paul Klee (1879-1940), pintor alemão nascido na Suíça. Foi in uenciado por vários di ereestilos, incluindo expressionismo, cubismo e surrealismo. Em suas obras experimentou a mistura de artísticos, usando aquarela e pintura a óleo ou tinta, cola e verniz

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Simplicidade tem a ver com usar elementos que estão à altura da mãoem se valer de coisas sem ter nenhum subter úgio teórico, revolucionár

losó co, semiótico ou seja lá o que or. Simplicidade aqui vem no sentde bastar-se com o terreno em que se está: se alguém vai ouvir aquiloótimo. Se ninguém vai ouvir, pouco interessa. Mas é importante que quequer que seja que ouça, consiga ouvir. Que aquilo que está ali sendo tocadseja o su ciente para que alguém escute e sinta que ali tem alguma coisaque ali existe uma casa. Gosto bastante dessa imagem da casa: compor

azer uma casa. E a casa simples é aquela em que a gente pode sentar equalquer lugar, se deitar em qualquer canto, aquela casa sem protocoloExistem músicas sem protocolo e músicas cheias de protocolo, para esnobesnobes da orma, da coisa antiga, das tecnologias, e assim vai. Entãolendo Paul Klee é que me dei conta dessa orça do simples.Já o maestro Adhemar, maestro da banda da pequena cidade mineirde Prados, me mostrou outro tipo de simplicidade, a simplicidadcomunitária. Viver com os outros sem a necessidade de ser sempre regipor protocolos morais. Simplesmente convivendo com respeito necessápara não diminuir nada que esteja à sua volta. Se bem que, muitas vezenão consigo me manter nesse mundo que ele imaginava. Me vejo nesnosso mundo em que as pessoas nos orçam a tomar atitudes que nãtomaria, reação às ormas medíocres de convívio (talvez a lista de nomseja maior do que a de compositores que citei acima).

Depois tem o Toni. Toquei com o Toni muito tempo. Ele sempressaltou a importância de se ser um músico em todas as dimensõescompor, tocar e conhecer os undamentos daquilo que se toca; me mostrmuita música, coisas que eu nunca tinha ouvido e até mesmo não gostavaAtualmente, cada vez que corrijo exercício de algum aluno de harmonum baixo ci rado, uma sonata, me lembro do Toni e imagino o que epensaria se visse aquilo que oi possível ser ensinado.

Por m, o lóso o rancês Gilles Deleuze. O pensamento de Delmudou a minha orma de conceber muitas das coisas que eu pensava sobo mundo, sobre existir. Escrevi muito a respeito e creio que muito do qu

alo vem atravessado da orma de pensar que ele inaugura no século Pensar sem as bengalas da moral, sem as bengalas transcendentes domodos de julgamento. É di ícil, mas interessante.

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:: SOBRE A MúSICA quE FAçO

Não tenho uma linha xa que me caracterize como compositoacústico, eletroacústico, in ormático. Cada hora é uma coisa. Ora acoisas eletrônicas, ora acústicas, ora realizo o trabalho de “poemas-emmúsica”41. Depende do momento, daquilo que aparece para azer. Temdias inclusive que ao invés de escrever música co desenhando, pintanda nal de contas, quando tinha meus quatorze anos, imaginava um dia sepintor, nunca músico. Só não pedem um depoimento de minha atividadde pintor porque não atuo no meio da pintura, mas acreditem, minhapintura é tão desinteressante e ora do mundo quanto minha música.

Sou constantemente capturado por coisas e pessoas, e é dessa captura qunascem as músicas, desenhos ou pinturas. Minha atividade de criar depende que eu seja capturado. No caso da música, capturado por um som, ummelodia, uma seqüência rítmica, um poema, uma orma, uma dança, uma vmas essa música deve bastar-se em si; ela deve ser ressonante, um pedaçligado no outro por a nidade sonora ou melódica ou rítmica. Sempre pa nidades concretas, nada de estrutural, de ormal, de abstrato.

Como disse antes, a simplicidade me atrai, e não há nada menos aptoà simplicidade do que a propensão à explicação. Tem música que chee de cara já ala que sabe mais do que o público; música que existe paexibir: Veja como este compositor é o máximo, ele usa computador, u

so twares ranceses. Blablablá.E a simplicidade volta aqui naquilo que é oconcreto, que está na partitura e no que se ouve da partitura.

:: MATEMÁTICASSou adepto de um monte de matemáticas para compor. Aprendi a cultu

isso com outro dos meus pro essores, com o inglês Brian Ferneyhougtalvez com o colega Fernando Iazzetta42 ou até mesmo do contato comalunos em aulas de análise. São matemáticas que me ajudam a processacoisas que eu geralmente aço improvisando. Muitas de minhas músinascem quando improviso a partir daqueles motes que me perseguem.

A peça sempre passa por uma etapa de improvisação, de se 41 “Poemas-em-música” – trabalho que envolve a leitura de poemas e o tratamento da voz leitora em tempo real. O trabalho é realizado com a poeta Annita Costa Malu e.42 Fernando Iazzetta (1960), percussionista e compositor paulista. É pro essor da UniversidadSão Paulo e um dos principais pesquisadores e representantes da música e tecnologia no Brasil.

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experimentada. Improviso primeiro e descubro a lógica depois, e é esslógica que me ajuda a prosseguir, a dar continuidade e consistênciaconcreta à peça.

Como disse, elas são como casas: têm cômodos, têm corredores, janelaáreas mais ventiladas, outras escuras e úmidas, outras com paredes altasoutras estreitas e baixas, armários cheios de coisas, armários vazios. Nea gente passeia, vai de um lado para o outro, e tudo é concreto. E tudonasce de ir experimentando essa casa, improvisando, cantando, imaginandblocos sonoros. E as matemáticas servem muito para automatizar ugesto, uma improvisação. É um exercício interessante ouvir o que se es

azendo e logo imaginar aquilo numa maquininha que desenhe a músisem a necessidade de car escolhendo notas ao piano.

Uma vez, vi o Chiquinho de Moraes43 escrevendo um arranjo numshow da Simone em que eu estava substituindo alguém como segundtrompa. Ele escrevia aquele monte de acordes, uma matemática. Ele sabexatamente que seqüência de acordes usar, não por sol ejo, mas poconhecer a matemática da coisa, a seqüência das coisas. Dou um exemplEm uma de minhas peças,Casa Tomada, a coisa unciona assim: umaseqüência de notas cromaticamente próximas segue um pulso constanteé por vezes interrompida por uma guração mais rápida que pode crescna orma de um acorde ou na orma de apojaturas. Noutra peça, peguum trecho de Vivaldi e vi uma seqüência de intervalos (meio tom, utom, meio tom, um tom e por vezes uma terça menor). Imaginei entãoum acorde a x vozes em que cada uma desceria nessa ordem de intervaloalternadamente: se uma voz desce um tom, a outra descerá meio tom, assim vai. Escrevi uma série de peças usando esse algoritmo.

O algoritmo transpor tom, semitom, descer naturalmente é justamentpara ngir que você está numa escala. Aquela coisa de você estar indpara um lugar, az a curva, e a pessoa acha que você vai, mas você vai pao outro lado. Justamente você vai retorcendo, você vai distorcendo, vocvai trans ormando essa escala em outra. Na música do século XX, nãousam quase escalas. Alguns caras tentam usar escalas estranhas, com uquarto de tom, escalas esquisitas, que não acabam nunca. Tem de tudoNo caso, o que ca na memória, talvez para mim, é que um moviment

43 Chiquinho de Moraes, maestro e arranjador. Seu nome está ligado aos mais importantrabalhos e intérpretes brasileiros.

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os pequenos movimentos de tom e meio tom – pa-ró ou pi-rá – cam ncabeça de quem está ouvindo, todo mundo ouve porque está acostumada ouvir o tempo todo. E não uma escala completa.

Uma vez, eu ouvi um dos primeiros quartetos de cordas do GiacinScelsi, compositor italiano que ressurgiu na década de 70. O Quartetde Cordas dele era justamente só movimento de meio tom. E cava isso, as coisas descendo assim. Muito bonito. O segundo movimento e

justamente rápido, tudo subindo, subia meio tom. Só que ele tinha umsérie de notas, ele atacava. Ele não segue, como eu estou seguindo otempo todo, uma regra um pouco mais restrita. A dele era um poucmenos restrita, em compensação a textura era sempre igual. Para mimé assim, o algoritmo pode ser mais restrito, mas a textura não pode sersempre igual, ela tem de ter uma coisa que a trans orme rapidamentporque eu não tenho paciência.

Como eu sou ouvinte da minha música, como disse desde o começestou escrevendo para mim. Então, ela tem que satis azer a minha paciêncOu eu tenho paciência de escutá-la ou não. É um pouco por aí.

:: SONORIDADES E CONCRETuDESou também adepto de sons não muito corriqueiros nos instrumentos

Gosto muito de música a ricana, de música indígena, música de congomoçambiques. Gosto nessa música da sua riqueza timbrística. Para obtuma riqueza semelhante, tenho de usar o que algumas pessoas chamamerroneamente de e eitos – não são e eitos, mas sim, uma outra orma tocar os instrumentos que exige uma técnica especial. Algumas coisas saedos automatismos dos instrumentistas e se constituem em verdadeirodesa os no mundo da música contemporânea. Em países em que esmúsica é parte de sua cultura, essa orma de tocar é chamada deextended technique. A busca timbrística é um pouco mais di ícil quando escrevpara piano. São bastante conhecidos os resultados do piano preparado dJohn Cage44.

É possível também utilizar a eletrônica para o enriquecimentotimbrístico. Fiz isso em algumas peças para piano e numa peça parclarinete solo; usei diversos aplicativos que elaborei num program

44 John Cage (1912-1992), escritor norte-americano, compositor musical experimentalista música fcou conhecida pelo uso quase irrestrito do acaso como princípio composicional.

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chamado MAX/MSP e que servem para trans ormar em tempo real umsonoro qualquer. Fiz diversos desses aplicativos, e continuo azendo.

Mas do que eu mais gosto, o resultado que mais me deixou contenteoram as tentativas de des azer o som do piano. Passei a pesquisar algu

acordes estranhos que meio que de ormam o som do piano e, por maa nado que o piano esteja, ca parecendo sempre um pouco desa nadO desa o é criar esses acordes e não car parecendo música atonal dcomeço do século XX. Não sei por quê, mas evito tais amiliaridades.

Essa concretude para as peças diz respeito também a ormas tradicionde se tocar um instrumento: os arpejos no piano, os movimentos de arctrocando de cordas nos violoncelos, o uso de cordas presas nas rabecaessas estruturas azem parte de um sol ejo instrumental que vem semquando se está escrevendo música, esse gestual instrumental; acho que música está ligada a isso. A gente, de certo modo, ouve o movimentar-sdo instrumentista, e isso ajuda a ligar as partes. Coisas que soam de moddistinto acabam muitas vezes se amalgamando só porque aquilo nascdentro de um mesmo gesto. E se uma coisa nasce para viola é porque nãé para orquestra. Para ela virar algo para orquestra, muita coisa tem dacontecer, não basta uma mera reorquestração. Ela tem de pedir outrosom, outro equilíbrio no peso das sonoridades, outras velocidades, outrogestos, e assim vai. Acontece porque esse tipo de música não se resumna melodia, na estrutura rítmica ou no plano harmônico; nela, o timbré importante, e as texturas são relevantes. Mas vira e mexe eu me traio

aço uma transcrição quase que desatenta.Ainda sobre a relação com a improvisação e com os gestos que nasce

dela, diria que minha estratégia é sempre ir repetindo e de ormando atque esse movimento meio centrí ugo e meio centrípeto me lance num ougesto. Daí a música que aço ter uma certa continuidade, uncionar sempasso a passo e não por grandes saltos. Gosto da idéia de de ormação ainvés de desenvolvimento.

:: TEMPONa verdade, compor é uma orma de inventar estratégias para resolv

alguns problemas que aquelas sonoridades que me perseguem acabacolocando.

Tenho muito pouca paciência para ouvir música em concertos. Aqui

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de ouvir obras longas me irrita pro undamente. Pre ro coisas mais rápidHá compositores, como Stravinsky, que azem coisas longas, mas deixa impressão de leveza, de que aquilo tudo durou não mais do que 3 ou minutos. Me interessa esse tipo de solução em que a música é como s

osse tempo. A orma musical para mim é isso e não um aparato teórque vai me garantir êxito. Acho ingênuo demais.Pensar a orma musical é pensar como azer com que o tempo pa

sem ter passado ou não passe passando.Pensando a partir de Stravinsky, de todo esse novo tempo que nasceu

na música moderna nas décadas de 1910 e 1920, tempo de peças rápidacurtas, é que acabo criando também trabalhos geralmente curtos ouencadeados por pequenos momentos. Uma peça longa é eita de diversmicropeças, mas micropeças que não se echam. Daí uma coisa continna outra e parecer que é uma peça só. Me preocupo muito com o tempoNão roubar o tempo dos outros e também querer que aquela pessoa quveio ao concerto que ali sentada e capturada por um tempo que no naela não vai saber mais quanto oi.

:: AFETOSEu devia ter uns dezesseis anos quando ouvi pela primeira ve

alguma música do Willy Corrêa de Oliveira. Acho que era Willy menão tenho certeza. Foi num estival Música Nova talvez, em 1976. O me impressionou oi o uso de um ragmento de música tonal sobrepoa uma textura serial (não sei se pontilhista ou textural). O ato é que oa eto da música tonal (no caso, creio que era Mozart) ampliou-se coaquele distanciamento do undo sobre o qual estava colado. Isso mimpressionou de tal maneira que na primeira peça que escrevi em 197 sem me lembrar diretamente do ato, usei uma citação de Mozart. Depotodos diziam que parecia Willy, e eu não conseguia associar uma coisaoutra. Hoje, associo, e, é claro, associo também a Berio, a Zimmermann45,a uma pá de gente, mas o que me marcou oi a questão de poder trabalhcom a etos em uma música não tonal.

45 Bernd Alois Zimmermann (1918-1970), compositor alemão. Partipante ativo da vangüardDarmstadt, sua obra O Soldado é conhecida por sobrepor trechos diversos de músicas do passado, cruma nova idéia de tempo na música.

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Anos depois, em 1985, quei impressionado com um texto dcompositor B. Ferneyhough e uma entrevista com York Höller46. A músicadeles trazia, ao menos nos textos que escreviam, de novo a questão doa eto. No caso de Ferneyhough, era o a eto do nervoso, do afito, dangustiado, trazido pelo modo com que pedia para que os instrumentistase voltassem à sua música, virtuosismo que deixava o instrumentistsempre sob certa tensão.

Minhas músicas, desde 1978, sempre traziam duas coisas: tenso olontano, ora um ora outro. Dois a etos bastante importantes para o queeu escrevia: de um lado, aquilo que Ferneyhough chamou de tatilidade dtempo (como se o tempo osse palpável e perceptível pelo tato); de outro som do deserto, os longos pedais e o som ao longe (com re erências mais diversas: de Jimi Hendrix ao cinema de Werner Herzog47). Essa é minhaamarra com o passado, com aquilo que me atrai no passado, a capacidadde uma certa música mover as paixões da alma sem o dirigismo pretendipor alguns estudiosos semióticos (geralmente primários e tacanhos).

Hoje, diria que tenho um pacote maior de elementos a etivos: ogritos, os sussurros, as cavernas (sons ressonantes de tam-tam, grandeacordes), os sinos, os cortes abruptos, a guração rítmica, os cantos depássaros e o movimento melódico descendente somando-se aos velhotenso e lontano. Diria também que esses a etos estão diretamente ligadoà mobilidade dos objetos sonoros que escolho. Ou seja, cada objeto temuma espécie de índice de atividade. Uns mais texturizados, mais táteisoutros mais lisos. Uns direcionais, outros mais estáticos, mas todos comum certo potencial de movimento. Daí que às vezes o resultado são músicmuito agitadas. O interessante disso para compor é que vira e mexe preciso interromper a agitação; além do mais, a música não ca paradestá sempre em movimento. A questão da mobilidade tem a ver com tempo e também com a concretude do material que uso para comporcruzando um pouco os itens que escrevi acima.

46 York Höller (1944), compositor alemão. Explora a usão dos sons vivos e eletrônicos, sua mcombina técnicas modernistas com re erências a Romanticismo, oi convidado por Boulez para com

IRCAM e por Stockhausen para WDR em Colônia, onde é diretor do estúdio eletrônico.47 Werner Herzog (1942), escritor e cineasta alemão. É um dos maiores representantes do ncinema alemão, movimento que surgiu nos anos 70. Embora seja mais conhecido por seus flme

fcção, ele é tido como um excelente documentarista e, ao longo de sua carreira, dividiu-se entre os d gêneros.

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:: PERCuRSO PESSOAlNesses depoimentos, sempre se ala um pouco do percurso. O meu

comum a muitos da minha geração. Comecei a estudar música com oianos, num curso de piano no interior de São Paulo, em São José doCampos. Desse percurso todo, pouca coisa é importante para a música qvenho escrevendo.

Citaria dois momentos: primeiro, minha passagem pelo Partido doTrabalhadores na sua undação, em 1980, época em que, para um grude colegas, não adiantava mais car atuando intelectualmente; era horade arregaçar as mangas e partir para um engajamento mais concreto. Esnecessidade do “mais concreto” sempre oi muito importante para miNa época, atuei bastante como pro essor sempre trabalhando com criançou diretamente em questões de ordem política em pequenas comunidadeem Taboão da Serra, Prados, Pouso Alegre, Diadema, Jardim Miriam, FaNicodemus e Favela JK, chegando mesmo a parar de compor e apentrabalhar como instrumentista.

Foi a época em que me livrei de meus ídolos compositores. Aquelnomes todos não ajudavam muito a entender o mundo em que eu viviaConstruí outros ídolos; talvez o povo e a simplicidade do povo brasileiroimpressão toda de uma simplicidade e de um excesso de cultura derrotadpelos padrões neoliberais tenham cado marcados e estejam na músicque escrevo hoje e no que conduz meu pensamento.

Fez um pouco parte dessa ação concreta o ato de ter casado e tetido três lhas. Mas as lhas trouxeram uma outra linha de orça prazões diversas e adversas; me a astei do mundo, da política, da vidcoletiva, de tudo, porque estava quase sem emprego. Foi então que voltepara a universidade, onde ui novamente capturado pela composição. N

como pro essor, mas como aluno-bolsista. A universidade é talvez um únicos lugares em que é possível, para quem não tem grandes herançananceiras, ser compositor dessa música que renuncia ao mercado, qu

questiona o entretenimento capitalista, que procura um canto um poucomais escondido do mundo. É claro que existem os chatos relatórios

ormulários, mas é coisa rápida de se aprender. É preencher uma coiaqui outra ali, acertar no mais das vezes, errar de vez em quando. Nãse precisa ser pro essor logo de cara, o caminho pode ser trilhado pel

modalidades de bolsas de estudos. Tive bolsa de todo tipo: iniciação

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

cientí ca, aper eiçoamento (modalidade que nem existe mais), mestraddoutorado, pesquisador em centro emergente, e agora sou bolsista doCNPq, a ora uma série de projetos que sempre tiveram por objetivo abespaço para que eu continuasse a compor. Fui também bolsista da Vitao que possibilitou acompanhar o crescimento das lhas e ainda estudar escrever música.

Hoje, passados dez anos dentro da universidade, as coisas estãodi erentes, e tenho de assumir compromissos que me a astam um poucocomposição. Na universidade, divido meu tempo em dar aulas, coordene orientar projetos. Um colega outro dia observou que tudo isso é coma parede dura, necessária para que o terreno móvel e instável da músicse aça presente como uma orça que nos atire para ora do excessocivilização.Revendo o que disse até agora, parece que a vontade nunca é minhaque sou capturado e que de endo isso, arrastado pelas lhas, capturado pmelodias, atraído pelas necessidades políticas do país. Não é bem assimo sentido dessa captura não é passivo. O que sinto é que minha vontadnão está totalmente sob meu controle e que tenho de criar estratégiaspara en rentá-la. É claro que a visão que tenho de meu trabalho e dmim mesmo de certa orma está ligada a meu envolvimento crescencom o campo da loso a, sobretudo a loso a de Spinosa48, Nietzsche49,Bergson50, Deleuze, Foucault51, os escritos de Fernando Pessoa e Cortazar52.Essas leituras me trouxeram uma visão um pouco outra do que vem a scompor, do que vem a ser ter ou não ter técnica de composição, e muitavezes evito debates justamente por notar que eu não conseguiria me azentender em pouco tempo. Então, escrevo.

48 Benedictus Spinosa (1632-1677), flóso o holandês, também conhecido por Bento de Espin oi um dos grandes racionalistas da flosofa moderna. Considerado o undador do criticismo bmoderno.49 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), flóso o alemão. Crítico da cultura ocidental ereligiões e, conseqüentemente, da moral judaico-cristã.50 Henri Bergson (1859-1941), flóso o e escritor rancês. In uente na primeira metade do sé

XX. Em 1927 obteve o Prêmio Nobel de Literatura51 Michel Foucault (1926-1984), flóso o rancês. Suas obras situam-se dentro de uma flosdo conhecimento. Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções moddestes termos.52 Julio Florencio Cortázar (1914-1984), escritor argentino nascido em Bruxelas. Um dos mado século XX, considerado um mestre do conto e criador de importantes novelas que inauguraramnova orma de azer literatura na América Latina, rompendo os moldes clássicos.

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Escrevi dois livros. O primeiro, algumas pessoas leram, mas nem todnotaram o que eu queria dizer ali. Do segundo, não espero mais do quo mesmo resultado. Algumas pessoas vão lê-lo e entrar no mundo qupropus, outras vão ler e tomar aquilo por norma moral. Daí, vão me xingou elogiar ou citar incorretamente.Para que não pareça um lamento este depoimento, diria que souatravessado por uma grande preguiça e que nela escondo um ozinho qudiz: se você se mexesse mais no marketing pessoal, talvez conseguisse qsua música osse mais tocada, que seus trabalhos ossem mais lidos, seja, você receberia mais estímulo para continuar trabalhando. A preguitem o poder de iludir, e por isso permaneço com ela, embora trabalhandmais do que o dia permite para me livrar dessas pequenas idéias qu

cam me perseguindo e que ora se chamam músicas, ora textos, livroou depoimentos como este. Por m, sempre altam algumas palavras. alguém cha urdar nos meus rascunhos, vai encontrar uma anotação outra, coisas de cunho pessoal, coisas mais técnicas, anotações casuaisSão anotações importantes para uma análise da partitura, mas elas nãodizem nada de como se deve ouvir uma música porque acredito que música deva se bastar no palco, no CD ou ao instrumento.

Não é necessário um pro essor para se ouvir o que componho. É precisim, paciência, sutileza de escuta, e isso só se az com repertório, comhábito de detalhar as coisas, de se dar conta das nuances do mundo. Aomesmo tempo em que escrevo música, posso estar desenhando, e essacoisas se relacionam estranhamente.

Minha música é cheia de re erências, mas essas re erências são apecuriosidades. Conhecer as re erências não ajuda em nada a ouvir a músisimplesmente porque não escrevo música para dar aulas, mas para souvida. Não tem nada para ser compreendido, aprendido, analisadauditivamente. Essa música, tento eu que seja um fuxo, uma onda deum certo a eto: triste, alegre, tenso, rápido, movido, denso, escuroclaro, amargo, doce, doloso, rio. Acontece que pessoas unidimensionnão conseguirão viver tais a etos. Quem vive um a eto só, quem vivausência de detalhes não poderá ouvir uma coisa que pede tanto, mas seconseguir, acredito eu, será capturada e quererá ouvir de novo.

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:: ANÁlISE quE “FAçA ESCuTA”No Livro das Sonoridades proponho a idéia de uma análise que “ a

escuta”. Tem um monte de idéias nesse livro. Na verdade, eu até escrevi idéias em a orismo, e elas nem se ligam tanto assim, essa coisa da análique “ aça escuta”. Vamos pensar a questão da análise: uma espécie denergia que está no som e que vai ser trans ormada em outra espécide energia. Existem diversas ormas de análise. Quando escrevi o mmestrado, imaginei a análise como o que chamei decontraponto analítico:o cara está dançando uma música, é uma espécie de análise, ele está

azendo uma análise com o corpo dele, ele está analisando a melodia.claro, ele está pegando as coisas como ritmo. Como é que eu posso mapropriar daquilo que estou ouvindo? Quando você vai analisar no papa análise escrita também é uma orma de apropriação. Do mesmo jeique a gente tem o corpo que é com o que a gente se mexe, a gente temas técnicas de análise que é com o que a gente se mexe também. Cadtécnica de análise tem sua época. Uma música da Bach, por exemploanalisada com instrumento atual, pode dizer que Bach é medíocre. Já paruma música atual analisada com instrumento analítico da época de Bachquando não existia ainda análise, não existia sequer o conceito “ ormmusical”, também pode se dizer que esse conceito não é adequado.

O primeiro passo é aquele da estratégia da erramenta correta para coisa correta. O segundo passo é a erramenta incorreta para aquilo que a erramenta não se adapta porque você tem certeza de que aquel

erramenta vai lhe mostrar um negócio que as outras erramentas não vSó que essa análise sempre az um outro tipo de escuta. O algoritmo é uoutro tipo de escuta, não tem som em escuta. Escuta não é necessariamentum negócio que vem pelo ouvido, é um negócio que ala de música.

Uma coisa importante nessa visão de análise é o seguinte: vocêsó senta para analisar aquilo que realmente lhe interessa muito e quechamou sua atenção: deixe-me usar todos os instrumentos analíticos queu tenho, desde instrumentos de música tonal que a gente aprendeu,desde instrumento de contraponto até a questão das texturas, etc.

É criticável, por exemplo, na posição de pro essor universitário: ucolega meu, que trabalha na mesma universidade, recebe o mesmo salári

e a análise dele é eita com bisturi em cima de um ser humano vivo. S

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ele errar, aquele ser morre. Uma amília inteira chora, tem uneral. Ono mínimo eu tenho de ter a mesma responsabilidade que ele. Assimcomo ele conhece a última erramenta para abrir o paciente e tirar lde dentro um tumor ou consertar algo qualquer, ele está desenvolvend

erramentas. Como compositor e como analista, eu tenho que conhecerúltimas erramentas para trabalhar. É uma questão de responsabilidadEu até arrisco dizer que uma grande maioria de pro essores da área artes no Brasil ou até da área de humanas às vezes é irresponsável. Nãconhece a última erramenta ou não conhece as erramentas ou se opõealguma erramenta, o que é uma besteira.

Eu me lembro de um caso engraçado em Londrina. Uma senhora teuma ruptura no coração no meio de uma operação. Qual a saída? O médiestava pesquisando um sistema de colar tecido com um tipo de SupeBonder. Ele catou a sua Super Bonder, usou o método que estava estudancom rato e colou o coração. Ou ele azia ou a mulher morria. Se ele ntivesse essa pesquisa de ponta, ele tentaria costurar e não daria certo.Ele iria dar óbito: “não deu, estourou o coração”. Ele colou, a mulheestá viva e super eliz. Se esse pro essor tem que ter responsabilidadeu, como pro essor universitário de composição, tenho de ter tambémMesmo que eu opte por azer maracatu, eu tenho que saber analisar BriFerneyhough, eu tenho que saber analisar Stockhausen. Não dá. Eu pos

azer o que eu quero, mas como pro essor universitário, eu tenho que uma certa responsabilidade. No caso do “ azer escuta”, é claro, quanmais técnica você tiver, mais sutileza você vai ouvir. O tempo todo e

alei aqui da sutileza, acho que tem um pouco a ver com isso.

:: CAPTAR FORçASO que me atrai muito em música é o movimento, a mobilidade. Cad

objeto que eu vou usar em música tem uma certa mobilidade. Ou ele vpara cima ou ele vai para baixo. Ou ele tem algo que vai aumentandde número ou algo que vai diminuindo de número, isso que o FlorivalMenezes53 trata no seu artigo sobre macro e microdirecionalidades emWebern54, aquela coisa muito do Willy Corrêa de Oliveira, a direcionalidad53 Flo Menezes (1962), compositor paulista. Pro essor de composição na Universidade EstPaulista, diretor do Studio PANaroma de Música Eletroacústica da Unesp e pro essor visitante da Univde Colônia, Alemanha. É um dos principais representantes da música eletroacústica brasileira.54 Anton Webern (1883-1945), compositor austríaco pertencente à chamada Segunda Escola

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O Willy alava o dia inteiro, a gente cava mareado de direcionalidaacabava cando. Tem sempre essa coisa de o objeto se movimentar, ir dum ponto a outro, ele vai de um lugar a outro. É isso que eu vou de certmaneira azer. É uma idéia bem antiga, e eu vou mantê-la.

Existe também a questão:A música diz alguma coisa ou representaalgum treco?Sou totalmente avesso a isso; no máximo, serve para alguémescrever um paper e publicar. Você ouve, mas não rola aquilo. Rolamsempre uns a etos muito básicos. O Deleuze tem uma proposta: A arte nsigni ca nada!? Não representa nada? Ela não quer dizer alguma coisEla é muito mais interessante do que isso, ela quer azer aparecer umcoisa que não aparecia antes. Que coisa é essa? Por exemplo, o Messiaquer azer aparecer o tempo. Ninguém vê o tempo, a gente não pega tempo com a mão. Tem até um lóso o, pro essor Luis Orlandi55, comseus 60 anos, que diz:Tempo! Quem é o tempo, esse senhor que não meconhece?A gente dizia: -Oh, Orlandi, o senhor está jovial!- Como jovialQue história é essa? Quem é o tempo, esse senhor que não me conhece,não sabe nada de mim. Eu sou extremamente jovem, ele é que não sacontar. Eu, mesmo eu contando, ainda não se passou nada, ele respondi

O tempo é esse negócio que não tem como pegar, e o Messiaen vatentar azer o tempo aparecer na música. Quer dizer, uma orça queo tempo, essa orça que az a gente envelhecer, estragar, crescer. Evai azer aparecer num lugar que não tem nada a ver com isso, que émúsica. O escultor vai lá, esculpe o pedregulho, e a gente olha e vê ocorpo de Cristo futuando no colo de Nossa Senhora, com o vestido deali, parecendo que vai balançar com o vento. E aquilo é de pedra. O ca

ez aparecer a leveza, o vento, tudo num pedaço de pedra. Então, aorças são essas: a orça da gravidade, do tempo, orça de crescimenorça de germinação.

O Almeida Prado56 az aparecer num piano as constelações que estãoViena, liderada por Arnold Schoenberg. Aderindo ao sistema dodeca ônica desenvolvida por Schotrouxe à música do século XX aquela que seria sua textura caraterística: o pontilhismo.55 Luis Orlandi, flóso o, pesquisador, pro essor da UNICAMP e da PUC-SP cuja obra é marc

flosofa da di erença de Gilles Deleuze, da qual é um dos maiores especialistas e tradutores em li portuguesa.56 José Antonio de Almeida Prado (1943), pianista, pro essor e compositor paulista. Possuicatálogo com aproximadamente 250 obras. Seu estilo é múltiplo, vindo do nacionalismo de Villa-LoGuarnieri, passando por ase pós-serial atonal, o transtonalismo de Cartas Celestes, o misticismo dade São Nicolau e ao pós-moderno dos Poesilúdios e Prelúdios para piano. Vem seguindo a linha livre.

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desenhadas na carta celeste. Ele não é astrônomo. Ele vai azer aquenegócio virar uma outra coisa. Villa-Lobos vai azer aparecer um trem não é um trem qualquer, é um trem do caipira numa música. Tem umespécie de trem esquisito ali em baixo, parece mais uma batucada compiano, uma longa “melodia” que desce o tempo todo. É uma melodia quele colocou ali por acaso porque sem a melodia a música já caria epé sozinha. Realçar um trem ou azer Debussy, azer aparecer um maVivaldi. Até no livro eu dou esse exemplo, a orça da gravidade, orçavento, orça de crescimento, orça de germinação. Esse tipo de orça.

:: PRECONCEITO CONTRA MúSICA CONTEMPORâNa universidade onde trabalho não existe preconceito, é exatamente

oposto. Uma aluna de composição não quis entregar o trabalho e no últimdia ela chorava porque o trabalho dela era de cunho mais tradicional, alguns alunos vigiavam o que ela estava azendo. Digo como ormadopro ssionais, como ormador de pessoas. Existe uma história de dede territórios, de de esa de lugares. É a primeira coisa, a necessidade dde ender o lugar em que você está, do mesmo jeito que passarinho mude pena na hora de demarcar território e acasalar, gato solta pêlo, cheiroetc. Pro essor também solta arpa, e essa de esa acontece por muitrazões. Às vezes, o próprio pro essor tem um problema de ormaçãisso é normal. Ele vai se de ender a partir de qualquer pequena ameaçA outra coisa é que ele não tinha outro instrumento para dizer uma coisóbvia que era o seguinte:Olha, isso que você está azendo requer um outrmecanismo de leitura e análise. E eu não tenho esse mecanismo.Ondeé que aparecem os preconceitos? O que é preconceito? O preconceié algo que você coloca, a priori, antes do que está chegando e, contrao que, mais ou menos, você não quer reagir. Você de ende o seu luga

Aqui ninguém vai entrar porque se entrar pode ser que eu me desmante Digo isso de endendo um pouco o lugar dos pro essores. Agora, alade uma maneira um pouco mais geral, eu diria que a gente tem históriade preconceitos, de territórios no Brasil: Os nacionalistas versus ovanguardistas ou experimentalistas. Na década de 40, Koellreutter57 versus Camargo Guarnieri. Os nacionalistas versus os românticos, clássi57 Hans Joachim Koellreutter (1915-2005), compositor alemão radicado em São Paulo. Mudo

para o Brasil em 1937 e tornou-se um dos nomes mais in uentes na vida musical no País. Foi adeptmúsica dodeca ônica. Fundou em 1939 o grupo Música Viva.

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e conservadores. O próprio Camargo Guarnieri e Villa-Lobos contrapro essores deles. Os românticos reagindo contra a música que existia Brasil quando alguns deles chegaram.

A gente tem histórias interessantes no Brasil. Um compositor como padre José Maurício Nunes Garcia58, o compositor mais atuante na corte,de repente vê chegar um sujeito que tinha uma música en adonha, Sigismond Neukomm, o músico da corte. Logo de cara, já tem o primeembate: o cara que vem da Europa com a música recente e o compositque está aqui com a música que ele vinha trazendo desde o nal do sécuXVIII, que ele aprendeu com seus pro essores. Outro embate: ChiquiGonzaga59, Calado60 e companhia limitada, também no Rio de Janeiro,tentando de ender uma espécie de música que a gente pode chamar hojem dia de “origem da música instrumental brasileira”, música instrumende cunho popular.

O Paulo Castagna61 ez uma pesquisa bem interessante sobre asproibições de música, de prática musical popular na passagem do sécuXVIII para o XIX. Há textos absurdos:É proibido juntamento de mais dequatro pessoas para cantar nas ruas porque incomodam... É proibidomaxixe….Proibido mesmo, a polícia entrava, batia e prendia todo mundoporque estavam dançando maxixe. Do mesmo jeito que teve isso, as coisvão mudando. Depende de quem está no poder e de quem não está no podnum determinado momento. A música experimental é que passou a sermúsica do mal: É proibido música experimental. A música instrumenque tinha nascido lá com a Chiquinha Gonzaga é que era música do bePassa depois a ter todo o apoio de Getúlio Vargas. Num dado momento,música experimental passa a ser também policialesca:Não pode popular,não pode isso aqui.Você está azendo que nem Beethoven! Isso nãopode. São pequenos mecanismos, digamos, extremamente mesquinhos controle.58 Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), compositor carioca. Em 1808 com a cheda amília real, O Príncipe-Regente D. João VI, grande admirador de música, o nomeia mestre da CReal É considerado um dos maiores compositores das Américas de seu tempo. 59 Chiquinha Gonzaga (1847-1935), compositora carioca. Pioneira maestrina brasileira, na ado Choro; autora de um dos maiores clássicos do carnaval: a marcha Ô Abre Alas. Compôs músicas p

peças teatrais, é responsável por cerca de 2.000 composições60 Joaquim Antônio da Silva Calado (1848-1880), músico e compositor carioca. Os historiadoconsideram como um dos criadores do choro ou como o pai dos chorões.61 Paulo Castagna, musicólogo, pesquisador da música brasileira e pro essor do Instituto de Ada Universidade Estadual Paulista.

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O pro essor tem de estar atualizado. A última erramenta é que vai a ele a música mais experimental. Óbvio. Mas ele tem que estar tambéantenado em outras coisas. Uma vez, eu e o Rodol o Caesar demos seminário de música eletroacústica para DJs no circo do Realengo. Caum com o seu laptop, um monte de crianças de escolas da peri eria dRio de Janeiro querendo dançar. A gente tocava Pierre Scha er62, e elas

cavam dançando street danceno chão. Dançavam, e a gente tocava PierreScha er, improvisando, colocando unsbeats de bateria que não tinhaem Scha er, azendo o papel de Xuxa contemporâneo. São tentatiA posição de preconceito é extremamente mesquinha, esconde por tráalgumas altas de conhecimento, alta de abertura, medo. Num país desemprego, medo é a primeira coisa.

Para o pro essor de composição é muito complicado. Como é que vavalia o trabalho composicional de alguém? Não existe avaliação de utrabalho composicional pronto, nalizado. Você só pode acompanhar utrabalho que está em processo. A primeira coisa que você deve entende“qual é o problema que enche a paciência do aluno que está escrevendmúsica”. Este aluno tem um problema que o persegue. Ele está escrevendresolvendo o problema, e eu tenho que ter aptidão su ciente para bater oolho e dizer que ele está com problema, suponhamos, de tempo: se ele largisto aqui, cará melhor; isto aqui está sem movimento, etc. O pro essor po

azer se estiver acompanhando um processo. Do contrário, não tem comoEu entendo bem a questão do preconceito no Brasil, sobretudo no

popular erudito. Exagerando, o Hermeto Pascoal 63 e o Arrigo Barnabé64 têm tanto público quanto eu. A única di erença é que a publicidade para música deles é mais orte e vai mais gente. Para o lançamento do livreu tinha 90 pessoas e só mandeie-mails. Se tivesse eito publicidade,talvez tivesse mais. O concerto que a gente ez no SESI tinha por vode 100 pessoas, também só pore-mails. Quem tem público não é a músicapopular nem a música erudita, é o entretenimento, aquilo que vai divertiEu acho genial isso, eu não sou contra ir a um show, tomar cervejaconversar com os amigos. A gente precisa disso de vez em quando pa62 Pierre Schae er (1910-1995), compositor, radialista e músico rancês, criou a música conatravés de experimentos com sons pré-gravados e trans ormados em estúdio.63 Hermeto Pascoal (1936), multiinstrumentista e compositor alagoano. Considerado por b

parte dos músicos como um dos maiores gênios em atividade na música mundial.64 Arrigo Barnabé (1951), instrumentista e compositor paranaense. Com trabalho singularmúsica brasileira, tem composições de características que vão do dodeca onismo a atonalidade.

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poder voltar a trabalhar no dia seguinte.O entretenimento tem essa característica. E a gente nem pode julga

se é pela música. Não sei se é pelas músicas que as pessoas vão a umshow. Acho que os rapazes vão pelas meninas, e as meninas vão pelorapazes. A única di erença é que a música que os caras estão tocando ana rente nos az pular. E nos azendo pular, chegamos mais perto uns outros.

Já a música erudita, não. Eu vou car sentado, vou car prestandoatenção. Ou mesmo o jazz, música instrumental popular, que a gentchama de popular. A música instrumental popular brasileira, por exempé muito mais, ela é o projeto nacionalista do nal do século XIX. Vevindo, é tomado pelo Mário de Andrade, depois tem uma vertente ma

ascista com Getúlio Vargas, uma vertente comunista com a Internacionde Praga. Hermeto, Egberto Gismonti65 e Grupo Pau Brasil estão resolvendoo problema daquilo que seria a música instrumental brasileira com bana melodia nacional e nos ritmos brasileiros, o projeto de identidadenacional do Mário de Andrade. Aí entra outro problema da músicpopular: isso é nacional, isso não é nacional? Essas divisões as pessoaprecisam rever rapidamente. A música instrumental brasileira é um projenacionalista, uma linha que vem de Alberto Nepomuceno66, Villa-Lobos,Lorenzo Fernandez67, Camargo Guarnieri, Guerra-Peixe, Cláudio Santoro68,aí já com um projeto comunista, não só um projeto nacional, mas tinhum comunismo por trás. As pessoas que vão ver concertos de músicontemporânea no Festival Música Nova são as mesmas pessoas que vver show de jazz ou que vão ver música instrumental.

Tem uma coisa que está ora disso, e a gente não devia mais con undque é a canção. A canção popular brasileira é uma outra coisa, com bon65 Egberto Gismonti (1947), multiinstrumentista, arranjador e compositor brasileiro. Fundmúsica erudita e a música popular, com in uências do olclore nordestino e do centro-oeste brasilemúsica indígena e a música indiana.66 Alberto Nepomuceno (1864-1920), compositor cearence. Ocupou lugar de destaque tantouma produção romântica considerada de ótima qualidade quanto por sua criação de cunho nacionaliPioneiro ao compor e cantar em português, criou o lema “não tem pátria um povo que não canta em língua”.67 Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948), compositor carioca. Utilizou temas ameríndios autênretirados dos onogramas gravados por Roquete Pinto no Mato Grosso, obteve ótima repercussão nomusicais. Foi bom poeta e escreveu textos para muitas de suas obras para voz solista ou para coro.68 Cláudio Santoro (1919-1989), compositor amazonense. Iniciou-se como compositor em 19dois anos mais tarde escreveu sua primeira sin onia. Foi um dos undadores do Grupo Música Viv

por Koellreutter com quem teve aulas de Composição e Análise Musical.

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trabalhos do Luiz Tatit69. Um dos aspectos muito importantes na cançãobrasileira é o texto. Tem o poema e o poeta. Chico Buarque é poetaCaetano é poeta, Gilberto Gil é poeta. Por mais estranho que pareçaDjavan também é poeta. São poetas e estão azendo canção. FernandBrant é poeta trabalhando junto com Milton Nascimento, e o que eleestão azendo é canção, uma música cuja orma de apropriação não

az dançando nem de olhos echados viajando num lugar que não exisA orma de apropriação da canção é cantar junto. Para cantar junto etenho que ter os meus instrumentos.

Depois de um vale pro undo pelo qual o país passou, a gente poddizer que algumas gerações oram sacri cadas. Digamos que algumgerações oram perdidas. Eu tenho certeza de que os alunos desta geraçtêm uma ormação muito mais detalhada do que a minha. Eu comparocoisas que escrevo sobre música e as coisas, às vezes, do meu aluno PauVon Zuben70. Ao ler o texto dele, eu pergunto de onde o cara tirou aquilo.Por exemplo, eu exijo que meus alunos escrevam primeiros movimentossonatas no curso de harmonia. Você tem que resolver aquela matemáticali. O curso se chamaharmonia do classicismo. Harmonia do Classicismoésonata, e você tem que resolver aquilo. É o trabalho, eles escrevem e mapresentam. A sorte é que nenhum deles pediu para eu mostrar a sonatque z quando estava na aculdade porque era “auê”. Todo mundo eaprovado. Não tinha aula de harmonia, o pro essor de harmonia alavaidéias, o outro alava de idéias, o outro também alava de idéias. A gennão aprendia nada. Tecnicamente, oi uma geração quase perdida.

Da geração imediatamente anterior à minha, são raras as pessoasque se salvaram. As que caram no Brasil não conseguiram se ormarse ormou quem oi estudar na Europa ou nos Estados Unidos. É terríAlguns deles são atualmente pro essores universitários. Um aluno teaula comigo e tem aula com outro sujeito e tem aula com outro sujeito tem aula com outro. Se eu or capenga no que eu estou ensinando, tem outro pro essor que não é, que sabe exatamente o que está ensinando69 Luiz Tatit (1951), cantor e compositor paulistano. É também pro essor do DepartamentoLingüística da Facudade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da USP. Iniciou-se musicalmente Grupo Rumo em 1974 e obteve destaque na época da Vanguarda Paulista com um novo modo de canchamado “canto alado”.70 Paulo Von Zuben (1969), pro essor e compositor. Atuou como compositor no PANaroma Sorientado pelo Pro . Dr. Flo Menezes. Teve obras executadas em estivais no Brasil e no exterior, cColônia, Alemanha e em Havana, Cuba.

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Então, quando o aluno entra na minha sala, já aprendeu na outra sala. Sena minha aula eu começo a dizer:Vamos lá para o deixa disso; música é oque vocês fzerem; açam o que vocês quiserem que é legal; vamos disaqui a questão das abelhas, o aluno vai virar e dizer: Pro essor, esta aunão é de harmonia? Não estava escrito que o senhor tinha que ensinharmonia do barroco? Eu quero saber escrever, eu quero escrever coBach. Ensina agora.Então, você tem que ter essa técnica.

Outra questão é que nós vivemos um período gigantesco de retraçãcultural nos anos 70 e 80. Claro, oi um momento em que cresceu mucoisa, música popular, etc, mas no campo da música a gente não podiaestudar ora, a gente não tinha como comprar partitura, não tinha isso dentrar na Internet, pagar oito dólares e receber em casa as partituras damúsica que você queria. Era preciso ir para o exterior e trazer na mala. Ucolega meu ia ao exterior e trazia discos escondidos no meio das roupaporque não podiam entrar no Brasil. Hoje em dia, você baixa as músicno eMule, no LimeWire, você pega na Internet em MP3. Tem um site daUFRJ, sussurro.musica.u rj , no qual diversos compositores, e eu estou láno meio, disponibilizaram partituras e gravações MP3 das músicas. Etudo lá. É só entrar e baixar.

Paro por aqui com a esperança de que algumas coisas que eu tenhdito possam ressoar em outras histórias particulares. A nal de contasprecisamos dessas ressonâncias para ter certeza de não estarmos loucos

alando sozinhos de um mundo totalmente inventado.

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Mário Ficarelli sendo entrevistado por pesquisadores da Divisão de Artes Cênicas e Música e DiOneyda Alvarenga na residência do compositor em 01/07/2005. Fotógra a: Sônia Parma.

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:: MARIO FICAREllI

Mário Ficarelli é pro essor e compositor, nasceu em 4 de julho de 1935. Iniciseus estudos de música com dezessete anos; estudou piano com Maria de Freitas More Alice Philips. De 1968 a 1970, aper eiçoou seus estudos de composição com OliToni. Conquistou a Bolsa Vitae em 1991 para escrever aSin onia nª 3, obra compostaem 1992-93, em Zurique, Suíça. Em 1997, ganhou novamente o concurso Bolsa Vde artes para a composição de três quintetos:Quinteto para Oboé e Quarteto de Cordas (1997);Quinteto para Trompa e Quarteto de Cordas(1998), eQuinteto para Dois Violinos,Duas Violas e Violoncelo(1998). De endeu tese de doutoradoSete sin onias de JeanSibelius (um estudo sobre as ormas e a raseologia); pela ECA/USP, São Paulo, 1995.No mesmo ano, de endeu tese para o concurso de livre- docente. Em 1994, oi elemembro da Academia Brasileira de Música, ocupando a cadeira 11. Atualmente, lecicomposição e outras disciplinas na Escola de Comunicações e Artes da UniversidadeSão Paulo. Foi eleito che e do Departamento de Música da ECA-USP em 1997. Seu né verbete em destacadas publicações estrangeiras, tais comoGrove Dictionary o Music e Who’s Who in the World . Recebeu os seguintes prêmios: em 1975, classi cado paraa Tribuna Internacional de Compositores, em Paris, com a obraEnsaio-72para mezzo soprano, contrabaixo e dois percussionistas, apresentada no Théâtre de la Ville; primeprêmio do Concurso do Instituto Goethe na Alemanha, com a obraNovelo– quintetopara fauta, oboé, clarinete, agote e trompa, em 1995; prêmio especial no mesmconcurso com turnê da obra por toda a América Latina com o Quinteto Baden-Badque integrou o júri; primeiro e segundo prêmios no Concurso do Madrigal Renascentde Belo Horizonte em 1995 com a obraSapo Jururupara coro acappellaSATB; APCA-Associação Paulista de Críticos de Arte, com a obraTransfgurationis, para orquestra,1981; e com a obraSin onia nª 2 Mhatuhabh, 1995. Possui diversas obras editadasno Brasil, Europa e Estados Unidos. Em 1992, estreou com sucesso suaSin onia nª 2

Mhatuhabh, em Zurique, sob a regência de Roberto Duarte rente à Orquestra Sin ônTonhalle, a qual lhe encomendou a obra. Em 1996, oi estreada na Hungria suaMissaSolene - para coro e solistas in antis, órgão e percussão, comemorando os 1000 anosda Abadia de Pannohalma para o que a obra lhe oi encomendada, tendo sido tambéparcialmente executada no Vaticano com a presença do papa João Paulo II. Em 200atuou como compositor visitante na Arizona State University (EUA) a convite da mesonde ministrou aulas de composição e apresentou concerto com obras de sua autoria.

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:: MARIO FICAREllI, uMA OBRA vulCâNICA E SEMINOvADORA

Apesar da inserção do meu nome no ascinante curriculum vitae de Mario Fica ruto de um reconhecimento que comprova a dimensão de sua competência, não enco palavras para comentar a relevância de tudo o que se evidencia por si só com o exade sua imensa obra. Preocupado em sempre alar a linguagem do mundo, Mario des

geometricamente as suas partituras, consciente das limitações do surrado temperameque tanto obstaculiza o destino da música contemporânea, evitando os costumeirempréstimos junto à in ormática ou lucubrações tímbricas – que nos azem recordantigas novidades dos anos sessenta – que em nenhuma hipótese conseguem alteraestrutura sintática do desgastado sistema tonal. Jamais contagiado pela banalidade movido por um ideal romântico modernizado, em sua música az contracenar de

sempre surpreendente a paixão e o ódio, a candura e a brutalidade ou mesmo a revoade pássaros e o bombardeio do Iraque. Tenho certeza de que a obra vulcânica e seminovadora de Mario Ficarelli tem lugar reservado no imenso espaço outrora ocu

somente por Villa-Lobos e Camargo Guarnieri.(ago 2005) por Olivier Toni.

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Entre ista rea i ada pe a Di is o de Artes C nicas e M sica e DiscoOneyda A arenga, na resid ncia do compositor em 01/07/2005

:: COMPOSITOR BRASIlEIRO AOS 70 ANOSPraticamente, todo compositor de música erudita é pro essor; pro ssão de compositor no Brasil não existe. O compositor precisa

encomendas para sobreviver, mas são raríssimas, no m ele acaba sendpro essor. Uma coisa curiosa: eu tinha 22 anos quando um tio que torcmuito por mim disse:Que bom que você está estudando porque daqui a

pouco poderá dar aulas! Nem me ale nisso! Não estou estudando tanto pdar aulas!respondi. Quatro anos depois, comecei a dar aulas e dou atéhoje, trinta e oito anos atuando como pro essor, como a coisa principacomo ganha-pão.

Toda a construção da minha vida oi bene ciada por esse trabalho.claro que, no m, por tabela, existe uma recompensa. Em 1975, ganhei doconcursos de composição em um intervalo de três meses mais ou menoum no Brasil, em Belo Horizonte, e outro na Alemanha; com a divulgaçveio um convite para lecionar no Conservatório de Tatuí. E uma coisa lea outra: convites para participar de estivais como conseqüência direda composição. Em 1980, o maestro Olivier Toni convidou-me para aulas na USP, mas àquela época o processo era muito complicado: votrabalhava sem receber nada, só receberia depois de um ano, um ano meio porque o trâmite era muito lento. Quando recebia o acumulado, odescontos eram muito altos. O prejuízo era grande, eu não podia esperaentão tive que abrir mão. Mais tarde, lecionando havia cinco anos nFMU/FAAM, ele me convidou outra vez. Aceitei; ainda assim, oi demora de seis meses. Hoje, em trinta dias está tudo resolvido.

:: DIFERENTES TRABAlhOSNo concurso de Belo Horizonte, o Madrigal Renascentista de B

executouSapo Jururu71 para coro; no da Alemanha, oQuinteto de Sopros72 oi executado pelo quinteto de Baden-Baden, que azia parte do jú

Nessa época, eu dava aulas particulares, e um amigo disse que tinha umbico para trabalhar no Banco Auxiliar, das seis à meia-noite como corret71 Sapo Jururu para SATB, 1975 – Nova York : Ed. Brazilian Music Enterprises.72 Novelo – Quinteto para auta, oboé, clarinete, agote e trompa, 1971 – São Paulo : Ed. NoMetas.

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da bolsa. Eu topei porque complementava. Na verdade, era extração dnotas scais do movimento do dia e tinha que ser echado corretamentàs vezes, estendia-se até uma e meia. Trabalhava-se num computador duvezes o tamanho desse piano aí, um negócio monstruoso que azia ubarulho in ernal. Foi em 1971-72, durante dois anos e meio. Eu chegaem casa, tomava um lanche e ia para mesinha compor. As crianças jestavam dormindo; eu já tinha três dos meus cinco lhos. Esse quintet

oi eito assim. Com os dois prêmios, eu comprei meu primeiro caEstava um pouco temeroso; já tinha quarenta anos, mas aprendi a dirigrapidamente. Convidaram-me para dar aulas para os lhos dos colonos Holambra, no vale do Paranapanema, numa azenda de cinco mil habitantprincipalmente holandeses e suíços. Dava aula para criancinhas e paradolescentes. Eu cava dois dias inteiros e azia tudo de ônibus. Realizum sonho que cou só naquele momento: morar ora de São Paulo, Piedade, depois de Ibiúna. Trabalhava em Paranapanema, em Tatuí e eSão Paulo, tudo eito de ônibus, uma luta danada, setecentos quilômetropor semana. Saía no domingo às duas horas da tarde de Piedade parir a Sorocaba tomar um ônibus que levava a Paranapanema, com chuvou não. Tudo isso é uma aventura da vida, tudo eito com muito amovontade, muita coragem e muita certeza do uturo. Nunca ui de me ligao passado: sempre para rente.

Como é estar com setenta? Sinceramente, não sei; sei que tenho que escrever muita música, sei que tenho que azer muita coisa. Se vou mordaqui a um ou daqui a vinte anos, não me interessa: tenho que viver hoje amanhã, sempre é assim. Principalmente incentivado por resultadopositivos porque o que mais importa é a honestidade pro ssional: escreva música que eu quero escrever; não sou liado a nenhuma corrente; sgostam ou não, paciência, mas é como eu aço e sei azer. Às vezes, ppara pensar como é estar com setenta. Puxa, eu me lembro quando tinhquinze, quatorze... Papai brincava com a gente – somos três irmãos, mais tarde teve um quarto – ele alava muito no ano 2000, e eu pensavcomo era longe! Estávamos por volta de 1950, e esse tempo chegou. tudo muito tranqüilo porque acho que vivi uma vida bem vivida, comuita experiência, trabalhei em inúmeras coisas; ui empregado em muiempresas; atuei como datilógra o, como correspondente; trabalhei com

pintor... Meu pai era pintor e às vezes me dizia:Eu preciso botar gente

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lá porque o proprietário quer ver movimento!A gente ia pintar rodapé, oserviço mais simples que tem para pintor. Já estava estudando músicae na hora do almoço, me diziam:Vai no bar comprar re rigerante. Comroupa de pintor, eu cava envergonhado vendo as pessoas arrumadaDepois, pensava: Isso não tem importância! Vou comprar tal livro com essdinheiro que eu ganhar!Eu já tinha em mente que livros iria comprar;tinha dezoito, dezenove anos, levava marmita. Isso tudo, mais tarde, ode extraordinária importância. Depois que z doutorado na USP, a livrdocência, acabei, por circunstâncias, me tornando che e do departament

ui eleito e cumpri três mandatos como che e e dois como vice-che e. Qdizer, nos últimos dez anos, estive na administração lidando com trinta cinco “ eras” além de dez uncionários e muita reunião. É di ícil potem as vaidades com que tenho que lidar, os gurões. En m, o trabalho dmarcar ponto, todas essas coisas me deram experiência para administro Departamento de Música da Universidade de São Paulo. Nunca preten

oi circunstancial, mas acho que deu para azer razoavelmente. E sparar de escrever.

:: APROxIMAçãO COM A MúSICAMeus primeiros estudos oram uma coisa muito mágica. Eu tin

dezesseis anos; minha mãe cava com meus irmãos, e eu não minteressava por nenhuma atividade. Isso porque tem todo um processocom um ano e meio de idade, tive uma moléstia meio séria numa pernaaos sete, so ri um acidente, um tombo muito complicado que atrasou upouco meus estudos; muito hospital e médico até meus quatorze anos. Nverdade, oram treze anos de moléstia, uma coisa terrível, muita cirurgAos quatorze, estava livre daquilo tudo, e a amília insistia no que epretendia azer como pro ssão; eu não me interessava por nada; eafitivo por causa das comparações: ulano ia ser médico, o outro ia seadvogado, e eu não resolvia nada. Um dia, minha mãe alou tanto que edisse que ia ser vagabundo porque não gostava de nada.Não, meu flho,

precisa escolher alguma coisa! Não tem nada que você ache interessan Mecânico. Já me arrumaram uma escola perto da Lopes de Oliveira, onmorei desde os três anos de idade até os trinta e seis. Na praça MarechaDeodoro tinha a Escola Técnica de São Paulo, onde hoje é a Funart

Era uma escola ederal, pro ssionalizante, com o cinas de cerâmi

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marcenaria, mecânica de ajuste, mecânica de máquinas e undiçãVocê ingressava e cava um mês em cada, uma espécie de rodízio, paperceber em que se interessaria. No m do semestre, azia a escolhacursava regularmente, das nove da manhã às cinco da tarde. Fui pensandem mecânica e passei por todas as o cinas. Cursei mecânica; trabalhcom resa, torno, lima. Eu tinha que desenhar primeiro um módulo metal, de aço, e depois trabalhá-lo na resa, no torno, uma experiência dtrabalho manual. Meu pai, que tinha eito o Liceu de Artes e O ícios juà Estação da Luz, insistia em me dar aulas de desenho. Eu comentava cominha mulher (Silvia de Lucca73) que isso tudo é hoje meu trabalho deescrita; minha caligra a é belíssima graças a esse trabalho. Uma peça dmetal, uma marreta, tem uma orma, tem oito aces, são quatro cortes,você tem o bloco de metal. Você pinta com cal especial e ali desenha coum ponteiro. Precisa muito cuidado porque, se esbarrar, apaga. Depoitrabalha em cima do desenho, que é uma escultura. À noite, eu não tinhanada para azer, cava no rádio procurando alguma coisa, salvo o prograPRK-30, o mais esperado. Certa vez, naquela procura, tinha uma música dorquestra74 soando. Eu parei na hora, como se osse um impacto. Comeca contar para minha irmã de doze anos uma história de acordo com que ia ouvindo, e a música dava certo. Uma história incidental! A coisacontecia simultaneamente. De alguma maneira, já era compositor. Ftão ascinante que, quando terminou, eu já estava com lápis e papel nmão para anotar. Minhas irmãs ouviam de manhã um programa chamaParada de Sucessos, que todo dia tocava as mesmas músicas, só mudava aposição que ocupavam. Eu achava que aquela música ia ser tocada no dseguinte e peguei o lápis para anotar. Quando acabou, o locutor disse

Acabamos de ouvir (grunhidos) orquestra (grunhidos). Só peguei a palavraorquestra. No dia seguinte, eu estava lá, e tocou outra, é claro, e nooutro dia, tocou outra, e eu com o lápis na mão querendo escrever e nãoconseguia porque era tudo muito estranho. Meus pais, principalmente mepai, cultivavam um pouco de música lírica, tinham alguns disquinhos, mnão me agradavam muito porque eram sempre trechos amosos de ópeMinha mãe curtia muito música argentina, tango e milonga.

Teve músicos na minha amília, mas eu não conheci, não tiv

73 Silvia de Lucca (1960), compositora, mestre em artes pela USP, psicóloga e pro essora paulist74 Suíte Grand Canyon, de Ferde Gro é (1892-1972), compositor norte-americano.

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convivência. O irmão do meu pai era violinista, provavelmentna Filarmônica de Nova York. Ele chegou a vir para cá mas cou tdesesperado com os maus alunos que tinha que se mandou para os EUAnunca mais voltou. Também um primo da minha mãe era violinista, mnão tive contato, morava em Buenos Aires, só conheci por oto.Eu tinha aquela busca de conhecer música. Ouvia um programa nRádio Cultura, no mesmo “dial” da Cultura AM de hoje, 1200, por vode 1951, que se chamava A Hora Doce, às dez da noite, patrocinado pelaAçúcar União. Tocava sin onia de Beethoven75, e eu pensava de onde viriamaqueles compositores, aquela música. Era a música de orquestra que mame ascinava. Uma noite, caminhando pela Barão de Itapetininga, vi nvitrine:Música para Apreciadores de Música. Abri o índice e identi queivárias descrições das músicas que eu conhecia com o nome atrapalhadCustava vinte cruzeiros, o único dinheiro que eu tinha. Comprei e ui pcasa, era só descer a São João e a Barão de Limeira. Aquele livrinho! Aestava o ponto de partida. Comecei a comprar livros para conhecer abiogra as, queria conhecer os camaradas que escreveram essas coisacomo oi a vida deles, de onde partiram. E em todas as biogra as: estudpiano, harmonia, contraponto, análise. Então, o meu instrumento tinhaque ser piano. Era o que eu queria azer. Um ano após eu ter conversacom minha mãe, eu disse a ela que queria ser músico, e ela achou ótimoque eu alasse com meu pai. Ela era lha de alemães, sobrenome Eberleque eu não cheguei a utilizar, e meu pai era lho de italianos. Éramoamigos, mas a situação, meio complicada. Ele estava lendo jornal, e edisse que queria conversar, pois havia escolhido minha carreira. Ele pare pôs a mão na cabeça quando me ouviu dizer que queria ser músicocompositor. Apesar de ser um homem de cultura escolar pequena, elia muito.É a coisa mais di ícil que existe! Vai ser assim e assim... elerespondeu. Já tinha lido nas biogra as que a vida era di ícil, era di íciconquista, e respondia sempre que já sabia. Minha mãe alou com a doNina76, nossa vizinha, cunhada do primeiro oboé da Sin ônica Municipo Bernabei – por coincidência, hoje, meu lho (Alexandre Ficarelli77) é75 Ludwig van Beethoven (1770-1827), compositor alemão radicado em Viena desde os 16 anos.76 Maria de Freitas Morais, pro essora de piano, estudou com Luigi Chia arelli no Conservatório De Musical de São Paulo.77 Alexandre Ficarelli (1967), oboísta paulista. É pro essor do oboé no Departamento de MúsiUniversidade de São Paulo e oboísta principal da Orquestra Sin ônica de São Paulo.

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primeiro oboé da Sin ônica Municipal – muito apreciado pelo RichStrauss78, que o visitava muito. Quando omos à sua casa, vi um quadrdo Richard Strauss com a dedicatória: “Ao amigo Bernabei” e outro Mascagni79. Ela, propriamente, não tinha essa relação, e sim, o cunhado.Comecei a estudar piano com dona Nina; estudava rigorosamente umhora por dia em sua casa, pois não tinha condição de adquirir um pianoDois anos depois, já estava tocando sonata de Mozart80 e começando aescrever. Tenho até hoje o manuscrito de um prelúdio que z com semeses de estudo. Por causa do meu conhecimento anterior, desenheum teclado nas medidas do teclado da pro essora para praticar em casEscrevi uma música que eu achava ser minha, uma coisa extraordinárSabe o que era? APáscoa Russa, do Korsakov81. Muito engraçado! Eracheio de acordes, e eu nem tinha técnica para tocar; escrevi para apro essora tocar. Aquilo era tão meu, mas não era meu, era do KorsakFoi esse o processo. Continuei estudando piano rigorosamente, chegua tocar várias sonatas de Beethoven, inclusive aop. 111, estudos deChopin; tinha uma técnica razoável e a consciência de estudar piano em

unção da composição. Comprava partituras; tenho partituras de 1954-compradas com muito custo. São o meu tesouro; oi só o que levei quanme descasei. Casei-me três vezes, e era sempre essa a minha bagagemEm 1992, azia sete anos que eu tinha conhecido a Silvia. Conversei ca segunda esposa, e caiu o mundo.

Foi muito grave, e eu tive que aba ar porque tinha um lho, agora co26 anos. Segurei sete anos, esperei; a Silvia esperou também; a vida ê-esperar. Um belo dia, ganhei a Bolsa Vitae de Artes para escrever aTerceiraSin onia. Tinha uma verba su ciente porque só o salário da universidadnão dava para eu me sustentar ora e sustentar aqui os demais. Em 199tive que ugir. Como eu podia escrever a sin onia onde quisesse, eSilvia já morava na Suíça havia três anos, embora não tivéssemos contatescolhi a Suíça porque já tinha lá uma obra executada antes82 com muito78 Richard Strauss (1864 -1949), compositor e regente alemão.79 Pietro Mascagni (1863-1945), compositor italiano.80 Wol gang Amadeus Mozart (1756-1791), compositor e músico erudito, um dos mais popudentre as audiências modernas. Gênio austríaco, oi um enômeno durante toda sua vida.81 Rimsky-Korsakov (1844-1908), compositor e pro essor russo.82 Transfgurationis (1981), encomendada por Eleazar de Carvalho e estreada pela OSESPmesmo ano sob a regência de Roberto Duarte, executada pela Orquestra Sin ônica Tonhalle de Zem 1988.

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sucesso, depois teve outra, aSegunda Sin onia83, encomendada. As coisasaconteceram de tal maneira a avorecer aquele momento. Um belo dpeguei uma mala que já estava preparada com as partituras das minhamúsicas, um lenço, um par de meias, uma cueca, a passagem, e uembora.Depois de um ano voltei, deixei tudo arrumado com advogadodeixei casa, deixei carro, deixei tudo. O advogado estava orientado parpegar toda essa estante aqui que era o que me pertencia, eu mesmo quemontei.

O estudo de composição, na verdade, oi autodidático. Estudeharmonia uncional com o Cyro Brisolla84, cujo livroHarmonia Funcional,revisto por mim, deve sair daqui a um mês pela Annablume. Pelo estudo partituras, eu azia exercícios de composição, mas não tinha pro essorcomposição, ninguém que me orientasse. O Sérgio Vasconcelos-Corrê85,por exemplo, me ajudava, rabiscando aqui e ali, para depois eu passar limpo. Não havia outro pro essor de composição na época. Eu tinha muamizade com os alunos do Camargo Guarnieri86, que me contavam coisasdas aulas, mas eu achava muito complicado; com o Lacerda87; cheguei a

azer aulas de teoria com ele na Academia Brasileira de Música, do BernFederowsky88; o Yves Rudner Schmidt89, com quem tive aproximaçãotambém; com o Eduardo Escalante90, um bocado de gente. O AlmeidaPrado91 estudou um bom tempo com o Guarnieri. Conversando com elanos depois, em 1972, me disse que, estudando com o Messiaen92 aindavia-se preso às aulas do Guarnieri, tão rigoroso ele era. O Marlos Nobr93 disse que logo rompeu porque era obrigado a azer daquela maneire era complicado, não aceitava. Mais tarde, ez um curso na Academ83 Sin onia n.2 Mhatuhabh (1990), encomendada pela Orquestra Sin ônica Tonhalle e estr

pela mesma em 1992.84 Cyro Brisolla, pro essor de harmonia, che e da Seção de Música da Secretaria de EstaCultura de São Paulo.85 Sérgio Vasconcelos Corrêa (1934), compositor, pianista, regente e pro essor paulistano.86 Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), pianista, regente e compositor paulista.87 Osvaldo Lacerda (1927), pro essor, pianista e compositor paulista.88 Bernardo Federowsky (1930-1987), regente, violinista e pro essor brasileiro.89 Yves Rudner Schmidt (1933), pianista, olclorista e compositor paulista nascido em Taubat90 Eduardo Escalante (1937), pro essor, olclorista, compositor e regente argentino naturalibrasileiro radicado em São Paulo.91 José Antônio de Almeida Prado (1943), pianista, pro essor e compositor paulista.92 Olivier Messiaen (1908-1992), organista e ornitologista rancês.93 Marlos Nobre (1939), pianista, regente e compositor pernambucano.

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Paulista de Música cujo diretor era o Eleazar de Carvalho94, e o vice era oFederowsky. O Eleazar ia pouco lá. Fiz um ano; era muito cara. Uma bcasa atrás do MASP. Eu gostava tanto daquela escola! Tinha tanta gentboa, e eu cava tão envolvido com aquilo tudo que depois do expedienteu continuava por lá. Às vezes, pessoas vinham pedir in ormações e dava de maneira muito entusiasmada. O Federowsky chegava às seismeia e atendia às pessoas. Quando ele ia explicar sobre a escola, diziamque eu já tinha eito. Ele percebeu que eu antecipava tudo e um diame perguntou se não queria azer parte de tesouraria. Como não! Enunca tinha tido um emprego assim. Comecei no dia seguinte, sem pagnada pelas aulas dali em diante. Foi maravilhoso; os pro essores eramnata da época, em 1957: o Kliass95, o Fritz Jank96, Menininha Lobo97, oJaime Ingram98; de composição era o Guerra-Peixe99. Eu estudava comuma pro essora de piano ex-aluna de um aluno de Liszt100, Alice Philips101,que trabalhava no Brasil havia muito tempo. Ela impulsionava muibem, deixava a coisa fuir. No estúdio, havia dois pianos de cauda, e,em determinados horários, eu podia estudar à vontade. Um belo dia, secretária pediu demissão. Ela azia das nove às cinco, com duas horas almoço. O Federowsky perguntou se eu aceitaria a unção e disse quepoderia morar no casarão, na parte baixa da casa. Eu tinha das cinco ata hora que eu quisesse para estudar: vários pianos de cauda, belíssimose uma ótima biblioteca. Tudo “meu”! Eu topei! Ganhava dez mil, era ubom dinheiro. Com o primeiro salário, comprei muitos discos na BruBlois102, uma maravilha, e mais livros. Fiquei nesse trabalho dois anos meio, de 1958 a 1961. Em rente à secretaria, tinha uma sala de ondeu podia assistir às aulas do Ingram, do Fritz Jank, do Kliass para alunocomo João Carlos Martins103, do José Eduardo Martins104. Eu controlava

94 Eleazar de Carvalho (1912-1996), regente brasileiro, esteve à rente das maiores orquestramundo.95 José Kliass, pianista e pro essor russo. Faleceu em 1970.96 Fritz Jank (1910-1970), pianista alemão.97 Menininha Lobo (Guilhermina de Freitas Lobo) (1904), pianista paulista.98 Jaime Ingram, pianista panamenho e adido cultural do Panamá no Brasil.99 César Guerra-Peixe (1914-1993), compositor uminense.100 Franz Liszt (1811-1886), pianista e compositor húngaro.101 Alice Philips (1883-1969), pianista inglesa.102 Bruno Blois Discos, loja especializada em clássicos, situada à rua 24 de Maio.103 João Carlos Martins (1940), pianista e regente paulistano.104 José Eduardo Martins (1938), pianista paulistano.

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as mensalidades dos alunos, pagava os pro essores, azia os relatóritinha um trânsito danado com esse povo todo, era muito interessante,e o tratamento era muito próximo, conversava-se muito. O pro essor

agote era o Olivier Toni105, e eu tinha ouvido alar que o Toni tinha muitoconhecimento em composição, não era exatamente um compositor, matinha uma ormação muito grande. Um belo dia, eu conversei com elecontato inicial oi muito simpático, ele precisava azer um documeneu datilogra ei para ele e dei umas arrumadinhas na redação. Perguntose eu era advogado. Aquilo nos aproximou. Doze anos depois, ui estucom ele, o único pro essor de composição que eu tive durante quatormeses. Era azer um repasse na harmonia, no contraponto, na análisordenar o contraponto, e a composição eu escrevia toda semana, eu mpropunha a apresentar toda segunda- eira à tarde, quando tínhamos aulque durava três ou quatro horas. Eu chegava com o material e ele diziaPense este material aqui ; me deixava muito à vontade. Eu retrabalhavaaquilo e já preparava outra coisa. Dessa época, tem osTrês Cantos, OPoço e o Pêndulo, Dois Estudos para Contrabaixo, um bocado de obras.No início de dezembro, ele me disse que ia ter um concurso no Rio dJaneiro e se não era interessante eu participar. Era o segundo Festivada Guanabara, em ns de 1969. O primeiro tinha sido nacional, quando Almeida Prado apareceu; o segundo seria interamericano. Havia ducategorias, sin ônica e música de câmara; eu escolhi orquestra de câmaclaro, não ia me meter com orquestra sin ônica. EscreviCinco Retratosde um Tema. Foi interessante, mas um trabalho di ícil de escrever! Eutinha uma idéia: o tema era o Bach, a Invenção n9, uma progressão denotas que dá uma série de notas di erentes. Organizar a coisa toda eruma responsabilidade que eu tinha assumido perante o Toni, escreveuma peça para um concurso. No undo, não era o concurso, era o Tongrande júri para mim. Até hoje, a gente tem uma grande amizade, tenhum grande respeito e uma grande admiração por ele.

Escrevi a peça que tinha que entregar em 24 de abril de 1970. Comas di culdades, havia três meses para amarrar tudo. Quando terminei, Toni só deu uns palpites aqui e ali. Na época, não havia papel de tamanhgrande; só aqueles que, se você escreve uma nota no meio, junta tudoEm papel vegetal, desenhei as pautas do tamanho que eu queria, e tenho

105 Olivier Toni (1926), compositor paulista.

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até hoje, depois passei para o computador. Virei muitas madrugadas; davaulas de dia e à noite tinha que escrever; era uma pressão muito grandeeu dormia uma hora e meia, duas horas; oi assim uns dez dias. Comnão se podia con ar em correio, tomei um ônibus e ui ao Rio de Janeientregar a partitura. Fiz as três cópias heliográ cas exigidas, sentei noônibus, na rodoviária da Duque de Caxias e só acordei lá. O organizadera o Edino Krieger106; oi o momento em que ele mostrou uma qualidadeextraordinária de administrador, de organizador, tanto que hoje ele épresidente da Academia Brasileira de Música. O pre eito Negrão de Ldeu todo o apoio. Recebi um telegrama dizendo que a obra tinha sidoclassi cada. Foi uma coisa excepcional! Não tinha prêmio em dinheiJá reservamos passagem, a primeira vez em que viajei de avião, oi tuprimeira vez, tudo muito tarde.

:: SONhANDO COM O FuTuROCuriosamente, teve um ato extraordinário: dias antes de eu recebe

o telegrama – é uma coisa que me emociona muito – sonhei que tentavabrir a cortina de um teatro e não conseguia. Quando entrei, no escurotinha uma mureta, uns degraus, eu entrava no palco, não tinha público,a orquestra tocava minha música, um momento doCinco Retratos. Quecoisa extraordinária! Uma semana depois, veio o telegrama. Cheguei Rio e hospedei-me no mesmo hotel em que os compositores do Urugudo Chile, dos EUA, da Argentina e do Brasil estavam. Era legal porqna hora dorelax , às cinco da tarde, acabados os ensaios, cava o povotodo reunido no salão, batendo papo, tomando ca é e trocando idéiasEu conheci o pessoal da Bahia, o Widmer107, o Lindembergue108; oi ummomento muito eliz de composição, eram uns quarenta compositorFoi maravilhoso. Avisaram-me que às sete horas da manhã seria o ensada minha peça com a Orquestra de Câmara do MEC, então, ui parsala Cecília Meireles. Quando cheguei, a cortina, o sonho! Era igual! Mtão igual! Procurei a abertura da cortina; me veio na mente o sonhoentrei, e a música estava tocando no mesmo momento do sonho. Fouma premonição absoluta! Me deu uma coisa! Na sala, estava o Aylt106 Edino Krieger (1928), violinista, regente e compositor brasileiro.107 Ernst Widmer (1927-1990), compositor e pro essor suíço, veio para o Brasil a convite do

Joachim Koellreutter em 1956.108 Lindembergue Cardoso (1939-1989), compositor, regente e pro essor baiano.

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Escobar109; oi quando o conheci; e tinha outros assistindo. A obra omuito bem recebida, bastante aplaudida. O Khatchaturian110 era do júri,

júri muito bom, eu tenho tudo bem documentado. Esse oi meu lançamencomo compositor. A partir dali, as pessoas começaram a me conhecer. Nano seguinte, teve o I Encontro Nacional de Compositores na Rádio Mcom sessenta compositores brasileiros. Nesse tempo, oi criada a Funar

oi criado o Instituto Nacional de Música, em 1971; surgiu a SociedaBrasileira de Música Contemporânea, lamentavelmente tão des aleciEra uma época di ícil, tempo da ditadura, o pessoal estava voltado paoutras questões.

Esse encontro não tinha nada a ver com o concurso; oi umdecorrência natural. O concurso criou uma unidade, os compositorecomeçaram a se conhecer. Em São Paulo, conhecia-se aquele grupinhdos alunos do Camargo; sabia-se que tinha algum compositor no Rio, e sOs dois concursos mostraram que tinha uma produção musical brasilede altíssimo nível e em grande quantidade.

Houve um outro concurso em 1975. No primeiro concurso, muitcompositores participaram por conta própria. Reuniram-se cerca dsessenta compositores brasileiros no grande salão da Rádio MEC, onhouve também uma exposição dos di erentes compositores que quisesspropor uma obra para ser tocada na Tribuna Internacional, a ser realizaddali a um ano. O compositor ia lá na rente, punha para tocar uma gravaçãe todos elegeriam, entre as que oram ouvidas, as que representariamo Brasil na Tribuna Internacional de Compositores. Segundo me lembteve uma obra do Widmer e uma do Marlos Nobre111; das outras não merecordo.

O Brasil estava tomando conhecimento de que havia uma produçãmusical do Rio Grande do Sul até o Amazonas, e também se percebia ucoisa muito clara: havia a chamada vanguarda e os nacionalistas. Era umbriga violenta! No I Encontro, começou uma aproximação; no Enconde Brasília, ela cresceu muito, quando oi desmontada a rivalidade. Onacionalistas errenhos continuaram no seu trabalho, mas muitos delviraram vanguarda.

Eu já entrei num outro momento, com aquele a ã de conhecer d109 Aylton Escobar (1943), compositor e regente paulista.110 Aran Khatchaturian (1903-1978), compositor armênio.111 Marlos Nobre (1939), compositor pernambucano.

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tudo. No segundo Festival da Guanabara, conheci muitas partituras cográ cos, com escrita di erente. Curiosamente, quando voltei, escreuma peça inteira assim e, todo entusiasmado, levei para o Toni ver. Enão estudava mais com ele, mas durante alguns anos levava para ele veminhas obras prontas. Ele olhou, virou e revirou as páginas e disse:O quevocê vai escrever depois?Achei a pergunta tão estranha! E ele:Você já pôstudo aqui . Aí me dei conta do abuso: eu z pintura a óleo, escultura embarro, em cerâmica, aplicações, trabalhei com tecido, z tudo num quadsó; não sobrava nada para depois! Foi uma grande aula essa observação

Os estivais da Guanabara de 1970 e 1971 mostraram a quantidae a qualidade das obras dos compositores brasileiros, uns escrevendregularmente, outros bissextos, mas muita gente de altíssimo nível. Eclaro, com a “abertura dos portos”, tornou-se mais ácil o intercâmbcom a Europa, viajar, estudar lá, conhecer seus compositores, partituracanções; esse grande acontecimento que oi o CD acilitou muitodivulgação. Deveria haver um universitário com tempo e paciência pa

azer um trabalho de história pro undo, sem compromisso com lanenhum, que documentasse a importância desse momento.

Acho que nesses trinta anos passou a existir um respeito mútuo entreos compositores sérios. Não os que escrevem amadoristicamente, mas de carreira começaram a respeitar a obra do outro e a compreender melhque cada um é uma personalidade distinta, e não se pode colocar todonum compartimento, no partido A ou no partido B, como se pretendina época. Nesse estival, eu vi gente sendo vaiada, músicas de pessoaque estavam presentes na Sala Cecília Meireles. De repente, quandosujeito apresentava sua música, selecionada, começava a vaia. Teve muimani estação contrária que eu vejo, hoje, como uma coisa ruim, qu

judiou demais, deixou muita gente abatida. É o problema de partir paro outro extremo: azer a música técnica, aplicar inovação pela inovaçãHá carência de conteúdo, de conhecimento. A técnica está muito elevadamas está altando conteúdo.

Há uma preocupação em promover a sua pessoa para ser alado, scomentado, ter o nome divulgado, ao invés de colocar-se na músicaabrir-se inteiro. Existe muito receio da sinceridade, medo da crítica, sejde colegas, seja de quem or, um ponto negativo dessa carência.

Não adianta orçar a barra; não adianta pagar para conseguir um

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espaço porque custa tão caro, que acaba destruindo tudo o que vocêrealizou até ali. É um sacerdócio: aça de modo o mais honesto possíve siga seu caminho; o tempo vai dizer. Quando eu estudava as biogra aeu via que eles se preocupavam em trabalhar cada dia.

Beethoven não estava nem um pouco preocupado em ser amoso, mem produzir e dizer o que ele carregava dentro de si. Bach cou quase ceanos completamente desaparecido; depois, sua música surgiu e dominotudo. Imagine o Bach gastar um tempo enorme azendo publicidade:Eu

sou o melhor! Não é produto, é arte!O sujeito é um operário da arte e azo seu trabalho.

Há quem coloque na música e eitos só para depois ouvir um “nossaQue mensagem tem isso? Quando ouço um ragmento de Tchaikovski112 ouPenderecki113 ou Stravinsky114 ou Bach115, aquilo me envolve, me arrastapara um outro mundo. Eu levanto os braços aos céus! É isso que tem quacontecer com quem az arte, com quem az seja lá o que or. Tem quebem- eito.

Ser compositor no Brasil é também depender de quem o toque. Oreconhecimento vem com o tempo se vivêssemos num país com mamúsica e onde essa música osse mais tocada.

Se osse de nível mais elevado, a educação do povo o aproximardas coisas saudáveis. O intérprete brasileiro já descobriu e continudescobrindo que tem música brasileira de muito boa qualidade. Quandele toca, se envolve, vai buscar outras músicas daquele autor. Teve umtempo em que era muito “bumba-meu-boi-bumbá”, e cava nisso. Euma música chata porque pegava a mocinha de uma avela, botava ngrande salão, toda en eitada, toda maquiada, mas que alava “nóis vanóis pega”. Era muito chocante. Fundir, sim, não simplesmente antasiaTanta coisa se tinha na década de sessenta, de cinqüenta, baião levadopara uma orquestra sin ônica. Não tenho nada contra, adoro baião, mvamos lá no Nordeste para ter o baião mesmo; aquele é ascinante. Estivem janeiro, em Natal. Você pega um cara que é do lugar, é autênticoenvolve. Mas, com a minha técnica, pegar aquilo e transcrever para um112 Piotr Ilytch Tchaikovski (1840-1893), compositor russo.113 Krzyszto Penderecki (1933), compositor polonês.114 Igor Stravinsky (1882-1971), compositor russo.115 Johann Sebastian Bach (1685-1750), músico e compositor alemão do período barroco música erudita.

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orquestra sin ônica, não unciona, ca des gurado, also, não é própPosso ter, captar a essência daquela cultura, ltrá-la e jogar na minhamúsica não intencionalmente. Seria como Tchaikovsky, quando o Grudos Cinco116 insistia para que ele escrevesse música russa com todas ascaracterísticas. Ele cava incomodado.Quando Mário de Andrade dizia aos compositores não para copiar, mtrans ormar, muitos entenderam mal. Ele não quis dizer que colocasso boi-bumbá numa orquestra sin ônica. É muito mais:Procure vivenciar a

sociedade e ponha na sua música.

:: REvISãO DE OBRASMinha mulher está reorganizando minhas coisas. Eu tinha me

memorial, duas ou três caixas de programas e tudo na USP, mas trouxpara cá porque me desliguei, estou aposentado. Ficou muito tempo nessespaço aqui. Ela disse que precisaria pôr tudo em pastas. Precisa mesmmas não quero saber. Nas conversas em que a gente rememora atosempre é só a parte bonita da coisa. Agora, quando vou catalogar, estouindo para o passado, e me incomoda muito. Sempre procuro viver para

rente. Uma música que z há dez anos refete como eu sentia e vivia hdez anos. Ora, não posso “reamar” uma mulher que amei há 20 anos; nãposso reviver alguma coisa que já oi. É como ter vivido quando garonuma casa. Se você tem notícia de que ela está exatamente igual, talvezvocê a visite, senão, você se decepciona porque as coisas mudaram. Sãruas, lugares que você viveu num tempo e de uma maneira, aí você vole não é bem aquilo. O momento está guardado na minha memória, entãdeixa lá. Estou repassando algumas peças, coisas que z em 1968, comNove Peças Breves para Piano. Mudei o nome, vou mudar outra vez porqueo título é muito importante: pode destruir a peça ou levá-la muito longeIsso me disse o Penderecki, certa vez. Contou que escreveu uma peçpara cordas e chamou-aEstudo para Cordas, e oi um desastre. Um amigo,ouvindo a peça, comentou:Parece uma bomba atômica, o desastre deHiroshima. Ele resolveu: Vou mudar para Às Vítimas de Hiroshima. A peçaestourou, oi um grande sucesso.

116 Grupo dos Cinco: compositores românticos russos mais que retomaram a tradição dei por Glinka, criando uma música especifcamente russa e inspirada no olclore do país. Eram: AlexSergeievitch Dargomyjski, Aleksander Borodin, César Cui, Modest Mussorgsky e Nikolai Rimsky-K

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São peças que eu azia para o Toni ver como eu estava e me aceitcomo aluno; estou repassando no computador. A Silvia me disse que serinteressante mudar alguns títulos:Prelúdio e Ária; Prelúdio e Dança; essestítulos não servem, não atraem. Quando eu passei, vi notas que podiamser melhoradas porque o tempo passou. Um acorde, altou um acidenaqui, coisinha de nada. Não é alterar, re azer a peça. Remexer acho qunão é legal.

:: PROjETOS DE COMPOSIçãOMeu projeto maior, que tem recebido bastante pressão por parte de

várias pessoas, é escrever aQuarta Sin onia. Tenho muitas idéias, masalta a “grande idéia”, isto é, eu ouvir a peça pronta. Escrevo muit

rápido. Às vezes, uma obra de dez minutos para orquestra posso escrevem dez dias, mas o tempo de maturação prévia é muito demorado. Nãprecisa ter nota nenhuma, apenas que a concepção geral me envolva.

Se vou pintar, tenho que ver o quadro pronto ou pelo menos quesensação ele me produz. No teatro, procuro me pôr sempre na melhoposição da platéia. A orquestra soa, e tenho que me envolver. Quandconsigo, escrevo. Se não agradar, não serve. Quando aço a marca coa cal, já estou vendo a obra pronta. EmTransfgurationis, por exemplo,escrevi o primeiro movimento em vinte dias na cozinha de minha casa; lecionava trinta horas por semana na FMU, uma pancada. O primeiro aquele tumulto do desencontro da sociedade atual, aqueles confitos; eupercebia muito claramente aquilo. O segundo movimento oi mais di

Pode parecer pretensão: primeiro, a música está na imaginaçãoquando vai ao vivo, me surpreende em muita coisa. É curioso, mas msurpreende positivamente. Dá mais do que eu esperava. Pelo menos núltimos vinte anos tem sido assim: o resultado é maior do que espero, acho muito positivo. O papel é muito árido, a música não existe enquantnão é executada. A arte temporal é assim.

Quando tenho oportunidade, acompanho todos os ensaios; nãointer ro, só depois que termina. Foi assim com aSegunda Sin onia, estreadano Tonhalle de Zurique, quando o som enchia aquela sala maravilhosa, utemplo da música! Que grati cante! Como consegui azer isso?! Apreque é o inconsciente que tem que trabalhar porque o consciente a

essas bobagens de pôr um e eito só para chamar a atenção. Por isso

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é preciso maturar antes. Eu sempre digo para os alunos: é o mesmo questar apaixonado. Você está trabalhando, dirigindo, está num estádio,assistindo a um negócio qualquer, mas sempre se lembrando da gurAssim tem que ser com a idéia, tem que estar namorando, ela deve estasempre presente. Quando acontece, ela está na sua mão, e tem que deixafuir na hora de escrever. Não importa se o acorde tem que ser dó-mi-soldó-mi-sol sustenido, não importa! Escreve, vai adiante! Depois, você reaqui e ali. É a lapidação.

Eu sempre ouço com timbre. Há quem ouça no piano, escreve npiano, como Ravel, depois orquestra. Eu já ouço tudo timbrado.

:: O MuNDO DE hOjEO império do materialismo domina absoluto, mas é e êmero. Tenuma certeza muito íntima de que todos os povos habitantes da orbe

têm que progredir juntos. É uma lei universal: nada pode ser perdidotodas as mazelas, tiroteio no Rio de Janeiro, a exploração de criançaso dia da desgraça, 20-02-2002, a invasão do Iraque, que espero seja oúltimo absurdo deste milênio. Ali é o berço da civilização, tudo estavali, e aqueles soldados ignorantes chutando portas milenares, de tantaarte. São selvagens, sem comparar com o verdadeiro selvagem, misso não aconteceu de graça. Os milhares de homens que oram palá, completamente ignorantes, trancados na cultura norte-americanaacredito que viram muita coisa e caram pensando, teriam sido convidada repensar suas vidas. Se de mil dez tiverem esse resultado, já vale. Ndécada de cinqüenta, quando veio um monte de nordestino para cá, parconstruir todas essas coisas em São Paulo porque o paulista não querimais esse trabalho, vieram para aprender, e nós também aprendemos coeles. É essa interação. A União Européia dá uma amostra para o mundde que já caíram as ronteiras. Só Israel briga por ronteira, e agor

elizmente, a Faixa de Gaza... Deixa para lá. Isso vai punindo os povporque a humanidade é uma coisa única. O esquimó e o portenho, brasileiro e o irlandês são seres humanos que têm as mesmas necessidadedesejos, aspirações e precisam se conhecer para progredirem juntos. Acque o destino está justamente na evolução e, nessa conjuntura toda, aevolução espiritual, porque começa a perder sentido – acredito que par

todos que estão nesta sala – o cidadão amealhar milhões e milhões. Qual

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

é o sentido disso? Para que ter tanto, tanto? Ele torna a própria vida umin erno porque tem que cuidar daquilo. A sociedade do planeta está nuprocesso de aproximação e de respeito. A televisão, bem ou mal, traz upouco de in ormação de povos e de costumes di erentes. Acredito qainda vou ver esse movimento de aproximação de povos. Tudo o queciência está trazendo não é de graça. Creio que sabemos apenas vinte pocento do que é a realidade. Quando as coisas surgem, já existem há umcerto tempo. Estamos aqui para colaborar para a evolução geral.

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Marcos Câmara em depoimento na Sala de Debates do Centro Cultural São Paulo. Dia26/10/2005 Fotógra o: Carlos Rennó.

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:: MARCOS CâMARA

Marcos Câmara é compositor e regente, graduado e com mestrad

pela ECA-USP. Como bolsista do CNPq, estudou no Conservatório de com Michel Philippot. Atualmente, é doutorando em musicologia sorientação de Mario Ficarelli. SeusTrês Sonetos, para coro misto acapella,sobre poemas de Vinicius de Moraes, oram premiados pelo Florilège Vde Tours, França; seu ciclo de cançõesO Rei menos o Reino, para barítonoe piano,com texto de Augusto de Campos, recebeu oPrêmio APCA/ 86. Suatese de mestradoFructuoso Vianna orquestrador do pianovenceu o I Prêmio

de Monografa da Academia Brasileira de Música,em 2001 e publicadaem livro pela ABM Editorial, em 2003. Suas obras têm sido tocadas pimportantes intérpretes e grupos de câmara e orquestras. Atua tambémcomo pianista-intérprete de suas composições e, como crítico musical ensaísta, vem publicando artigos, ensaios e notas de programa em jornae revistas especializadas. É pro essor de canto coral na FITO (Osasc

oi pro essor convidado do Departamento de Música da USP de Rib

Preto, rente ao Madrigal ADEMUS; regente do Coral ASDEC-FDE e CCSP, da O cina de Cordas CCSP, além de curador de música eruditinstituição.

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:: Uma Conversa Com o CompositorSa a de Debates - Centro C t ra S o Pa o - 26/10/2005

:: INÍCIO DA CARREIRA – CORAl INFANTIl GIRASSEu trouxe algumas imagens que narram a minha experiência comcompositor, independente de outras atividades que eu já realizei. Ess

primeiro slideé do Festival de Música de Prados, em 1979 – minha estréiacomo compositor-regente - regendo uma composição para coral in anchamadaGirassolinspirada no livro A Arca de Noéde Vinícius de Moraes , que eu conheci em 1979-80. O estival é promovido pela ECA-USP117 e pelapre eitura de Prados; acontece até hoje e se realiza a 16 quilômetros dSão João del Rey e mobiliza toda a cidade. Existe uma tradição musicmuito grande em Prados por conta de heranças do ciclo da mineração de compositores como Manoel Dias de Oliveira118 que oram descobertos látambém. Esse oi o programa do 30 Festival de Prados do dia 4 de agostode 1979, uma apresentação que reuniu vários intérpretes, entre eles o corain antil do estival. Fizemos peças de Bela Bartok119, canções que constamno Microcosmos, algumas peças doMicrocosmosdos volumes II, III e V ,Canções para Canto e Pianosobre o olclore húngaro e traduções eitas pornós na época, muito bem-humoradas, do húngaro para o português de peçapara coro in antil em uníssono. Paulo Sérgio Álvares120 tocou no órgão daigreja matriz de Prados quatro canções de Bartok.Na Mão Direita Tem umaRoseira, olclore brasileiro para o qual Silvio Ferraz121, meu colega de turmada ECA, ez um arranjo. Tive oportunidade de reger o meu “grande” c117 ECA-USP – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.118 Manoel Dias de Oliveira (1735-1813), compositor mineiro de São José del Rey. Foi compdos mais importantes da chamada música colonial mineira. Deixou-nos um repertório bastante gra

sendo que algumas peças são usadas até hoje nas cerimônias litúrgicas.119 Béla Bartók (1881-1945), compositor húngaro. É conhecido por suas pesquisas etnomusicolónas quais estudou a música popular da Europa Central e de Leste, material este que retomou em divede suas composições como sua série para piano Microcosmos.120 Paulo Sérgio Álvares (1960), pianista e compositor mineiro. Mestre em Piano e MúsicCâmara nos Estados Unidos, pela Texas Christian University em Fort Worth, onde estudou com Caioe Steve de Groote. Estudou Piano com Aloys Kopntarsky e Composição, com Hans Ulrich HumMusikhochschule de Colonia, Alemanha. Vem dedicando-se à música nova, à música de improvimúsica clássica do século XX.121 Silvio Ferraz (1959), pesquisador, pro essor, regente e compositor paulistano. Dedica-música nova e principalmente aos modos de jogo instrumentais, à música eletroacústica. PesquisadoCNPQ, desenvolve projetos centrados no estudo da criação e realização musical com auxílio de compcom principal en oque na criação de aplicativos para trans ormação de áudio e automação de proccriativos.

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Girassol,primeira experiência como compositor-regente, uma atividade qua partir daí nunca mais abandonei. Foram executadas peças do compositManoel Dias de Oliveira, Josquin Després122 e a Missa em á nº 2,de Lobode Mesquita123, com regência do maestro Olivier Toni124.

No início de 1980, nós, da ECA, organizamos oPrimeiro Encontrode Jovens Compositores, com patrocínio da ECA e da pre eitura de SãoPaulo. Maria Graça Lopes, jornalista doEstadão, entrevistou-nos, todos

jovens compositores, idealistas, pensando em compor e viver disso: eSilvio Ferraz, Rogério Costa125, Eduardo Seincman126 e Fábio Cintra127. Foiuma elicidade esse primeiro artigo de jornal, domingo, noEstadão, e elaescreveu com muita competência: Já o compositor Marcos Câmara, 21 anos,quarto ano de composição, dirige seu trabalho para a área de educaçãin antil. Compõe corais baseados em poemas de Vinícius de Moraes. Queoi Girassol, eito em 1979. O artigo oi importante na minha carreirde compositor porque documentou o que a gente estava azendo; oi e

evereiro de 1980. Eu tinha preocupação com a necessidade de azer trabalho antes de tudo didático-musical no Brasil.

Em 1981, z uma composição e a inscrevi num concurso na Bahia. PiBastianelli128era o regente do Conjunto Música Nova, da Universidade Fededa Bahia. Durante um tempo, a Bahia recebeu o pro essor Koellreutter129,122 Josquin Desprès (1440-1521), compositor rancês. Foi reconhecido por seus contemporâcomo o compositor mais realizado de seu tempo. Era ligado às várias igrejas da Itália e do norte da Fra

A maioria de suas composições são de músicas sacras.123 José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805), compositor mineiro. Atuou c

pro essor de música e como al eres do Terço da In antaria dos Pardos. Considerado o mais expcompositor setecentista de Minas Gerais.124 Olivier Messiaen (1908-1992), organista e ornitologista rancês, grande compositor de eextremamente individual. Ficou conhecido pela originalidade de suas idéias e concepções musicaismúsica in uenciou as mais diversas correntes estéticas da música do pós-guerra.125 Rogério Costa, saxo onista, produtor musical, compositor e pro essor do DepartamenMúsica da ECA-USP.126 Eduardo Seincman (1955), compositor paulista. Sua produção artística compreende composque abrangem desde a musica solista até obras de porte sin ônico e operístico. Suas obras têm

gravadas e executadas em concertos de diversos grupos de música contemporânea, tanto no Brasil quno exterior.127 Fábio Cintra, regente, cantor, compositor, arranjador, preparador vocal e diretor musicaBacharel em Composição e doutorando em Artes pela USP, onde ministra as disciplinas Coro Cênico

para o Ator, Música e Ritmo e Sonoplastia.128 Piero Bastianelli, maestro, pro essor, violoncelista italiano radicado na Bahia. Em 2002homenageado pela Câmara Municipal de Salvador pelos seus cinqüenta anos de serviços ao Brasil,músico, regente e pro essor.129 Hans Joachim Koellreutter (1915-2005), compositor alemão radicado em São Paulo. Mudo

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alemão que veio morar no Brasil, um omentador da música em diversos lodo país. Recebi a carta no dia 25 de junho de 1981:Tenho o prazer decomunicar que a sua músicaPoema de Câmaraoi selecionada entre as doze

fnalistas do concurso. Eu tinha 22 anos; oi um marco e um incentivo tambémpara que eu continuasse compondo, para que eu continuasse escrevendo. peça não oi a vencedora, quem ganhou em primeiro lugar oi LindembeCardoso130.

Coincidentemente, nesse ano, eu ui para Diamantina participar dum estival promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais duro todo mês de julho e encontrei Lindembergue Cardoso, hoje já alecidEle era um dos pro essores do estival, e eu, o monitor do meu pro ena USP, Willy Corrêa de Oliveira131. Trocamos umas idéias, e ele comentousobre a obra. Ele saiu, voltou para a Bahia só para ouvir a música dele; mcontou as di culdades que estava havendo nos ensaios, e disse: Aquelenegócio que você escreveu para vibra one está meio complicado. Eu, jovemcom 22 anos, respondi: Não! Não é nada disso, é assim mesmo que euquero. No undo, ele tinha razão, mas eu não quis admitir na época.

:: TRêS SONETOSEm 1985, eu tive uma relação muito rutí era, muito produtiva com

Celso Antunes132, hoje regente do Coral Nacional da Irlanda. Em 1986, eleganhou duas bolsas: uma para os Estados Unidos e outra para a Alemanhele pre eriu ir para a Alemanha onde morou um tempo. A Cultura Inglestava comemorando cinco anos de existência do seu coral, que na épocestava na mão do Celso Antunes. Tive o prazer de ver o meu nome a

para o Brasil em 1937 e tornou-se um dos nomes mais in uentes na vida musical no País. Foi adeptmúsica dodeca ônica. Fundou em 1939 o grupo Música Viva.130 Lindembergue Cardoso (1939-1989), compositor, regente e pro essor baiano. Sua composde músicas, consideradas eruditas pela elaboração da composição e da execução, oram de 110 o

Incluindo arranjos olclóricos e arranjos de músicas populares.131 Willy Corrêa de Oliveira (1938), pro essor e compositor brasileiro nascido em Pernambuc

juntamente com Gilberto Mendes, o grande responsável pela propagação das idéias musicais da EscDarmstadt (Boulez, Pousseur, Berio, Stockhausen) no Brasil.132 Celso Antunes, regente paulistano. Desde 1986 vem concentrando sua carreira na Eurresidindo em Colônia, na Alemanha. Sua carreira vem consolidando o seu nome como um dos expoda música contemporânea européia: oi regente titular do conjunto belga Champ d´Action, assim comNeues Rheinisches Kammerorchester entre outros importantes coros e orquestras estrangeiras.

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lado de Orlando di Lasso133, William Byrd134, Claudio Monteverdi135 e OlivierMessiaen136. Foram estreados os meusTrês Sonetosque z sobre os poemasde Vinícius de Moraes por encomenda do Celso. Éramos muito amignunca mais nos vimos. A gente já jogou utebol, já omos até assistir a u

nal do campeonato paulista entre São Paulo e Portuguesa no Morumbconvivíamos muito. Ele me convidou:Vamos gravar um disco para comemoraros cinco anos do Coral da Cultura Inglesa, então escreve uma peça para coUm dia, ele oi à minha casa e viu no piano o que eu tinha pensado, umprimeira peça para coro sobre um soneto de Vinicius de Moraes, oSoneto daHora Final.Eu tenho um carinho muito especial por esses sonetos por causade toda essa experiência. Ele cou deslumbrado, apaixonado:Vamos azer isso!Foi gravado e cou muito lindo em disco: os ingleses Henry Purcell 137,Michael Tippett138, Maxwell Davis139 e os brasileiros José Maurício NunesGarcia140, Villa-Lobos141 e Marcos Câmara; eu me senti importantíssimo! OLauro Machado Coelho142, crítico conhecido, escreveu na época um textomuito bacana sobre osTrês Sonetos.133 Orlando di Lasso (1532-1594), compositor belga, também chamado de Orlandus Lassus, OrlaLassus, Roland de Lassus ou Roland. Atuou no último período musical renascentista. Foi um dos mais e in uentes músicos europeus em fns do século XVI. Escreveu mais de 2000 trabalhos, todos em latim, italiano e alemão em todos os gêneros conhecidos em sua época.134 William Byrd (1543-1623), compositor inglês. Foi um dos compositores ingleses mimportantes do renascimento. Embora osse um compositor anglicano, escreveu muita música sacacordo com o ritos católicos. Não obteve reconhecimento merecido durante sua vida.135 Claudio Monteverdi (1567-1643), compositor italiano, de Veneza. Foi o responsável transição entre a tradição poli ônica do século XVI para o nascimento da ópera, do século XVI.136 Olivier Messiaen (1908-1992), organista e ornitologista rancês, grande compositor de eextremamente individual. Ficou conhecido pela originalidade de suas idéias e concepções musicais.137 Henry Purcell (1659-1695), compositor inglês. Compôs as óperas Dido e Eneias e A tempeSão amosas suas Lições para cravo, suas Odes, Hinos, composições religiosas e bem assim, son

antasias para viola.138 Sir Michael Tippett (1905-1998), compositor inglês. Começou a compor bastante tarde, semuito crítico com suas primeiras obras. Aos trinta anos destruiu a totalidade de suas composiciçõcomeçou a estudiar contrapunto e uga con Reginald Owen Morris, que ocasionou uma pro unda inem suas obras mais maduras.139 Sir Peter Maxwell Davis (1934), compositor inglês. Compositor prolífco, escreve sua música em vde estilos e de idiomas sobre sua carreira, combinando di erentes estilos. Foi presidente da The National Feo Music Societies desde 1989. É também pro essor de composição na Royal Academy o Music.140 Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), compositor carioca. Em 1808 com a cheda amília real, O Príncipe-Regente D. João VI, grande admirador de música, o nomeia Mestre da CReal É considerado um dos maiores compositores das Américas de seu tempo.141 Heitor Villa-Lobos (1887-1959), compositor brasileiro, participou dos principais movimenrenovação da música brasileira e européia. De sua obra destacam-se suas Bachianas Brasileiras, obramesclam elementos da música de J.S.Bach e a tradição musical popular brasileira.142 Lauro Machado Coelho, jornalista e crítico musical

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Na mesma época em que houve esse relacionamento com a CultuInglesa, entre o Celso me encomendar osSonetose a gente gravar odisco, eu recebi uma carta da França. Essa peça oi inscrita num concuro Florilège Vocal de Tours,uma das grandes entidades de canto coral naEuropa. Os alemães são os mais conhecidos por isso, mas na França,Florilège Vocal de Toursé um dos principais. OsTrês Sonetosganharamum prêmio lá; mandei as partituras e eles me enviaram um cheque. Foi ubom ano. Tem oito minutos de música:Soneto da Quarta- eira de Cinzas, sobre um pai alando para a lha o quanto ela é importante para ele. segundo é um poema que o Lauro Machado Coelho chamou de hedonisimpenitente, em que o cara diz:Eu não comerei . Naquela época, tinhauma propaganda de casa de churrasco do tipo Baby Bee , em que um cvegetariano dizia:Não sinto a menor alta da carne.Aparecia depois umacena superglamourosa num restaurante de churrasco:Baby Bee , um lugar cheio de gente baixo astral!Uma propaganda a avor da carne, que botavaum vegetariano para comentar. E esseNão Comerei da Al ace a Verde Pétala é um soneto do Vinícius de Moraes todo rimadinho, todo lindo, dizendque não vai ser vegetariano:Me dá uma carne, me dá uma pinga, me dánão sei o que lá , que eu morrerei eliz do coração por ter vivido sem coem vãoé a idéia do segundo soneto. O terceiro é oSoneto da Hora Final, em que ele e a mulher vão juntos para a eternidade.

Eu tenho uma paixão muito particular pela renascença musical, períoddos séculos XV e XVI. Pensei em vozes que se superpõem, como na polirenascentista. Só que nesse caso, o contraponto, a outra voz que apareceripara dividir com aquela, é o silêncio. Nesse primeiro, o contraponto é o silêncVozes que azem uma rase, e outra az outra, e outra vem e az outra; nunca estão juntas, só num momento no nal que eu considero talvez umclímax possível desse soneto primeiro, eles entram e azem homo onia. A uma

ala de amor talvez perjura... , aí entra todo mundo junto. É essa a idéia desseprimeiro soneto, musicalmente alando. No segundo soneto, construí uma rasebaseada em experiências musicais do século XX: construir séries musicamelodias que você inverte:Não Comerei da Al ace a Verde Pétala, nem daCenoura Hóstias Desbotadas: o tema da cenoura é a inversão da primeira rasenuma sétima lá em baixo. Peguei um tema, inverti e quei trabalhando o temptodo com as suas inversões, retrogradações etc. O terceiro soneto é oSoneto

a Hora Final, em que a mulher e o homem caminham juntos para a eternidade

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Na verdade, oi o primeiro que eu z desses três e que cou por último no ciPensei muito na bossa nova e em azer uma relação harmônica de notas semmuito próximas. Vocês vão reparar um ruído no meio de dissonâncias mupróximas.

Audição dosTrês Sonetoscom o Coral da Cultura Inglesa, sob a regênciade Celso Antunes.

O Antonio Eduardo Santos143 me encomendou uma peça em 2003: elequeria gravar um CD só de obras inspiradas na bossa nova. Me lembdesse soneto e o transcrevi para piano solo, e o Antonio Eduardo gravouo Soneto da Hora Final, com o títuloMr. Joe Bean, numa homenagem aTom Jobim.

:: ChOROS 12Minha mãe se chama Isis. Na época, ela escreveu para o Eleazar d

Carvalho144 dizendo que eu era “talentosíssimo”, o “substituto dele nouturo”. Ele respondeu no dia 29 de janeiro de 1987, com papel timbra

da Secretaria de Cultura; ele era maestro da OSESP: Senhora Isis MedeCâmara de Castro. Recebi e agradeço a sua carta de 14 de janeiro. Já qua senhora acredita tanto, o que é normal, nas qualidades do seu lho, oconcerto será dia tal, tal hora com o seguinte programa... Ele disse quea obra do Villa-Lobos era obrigatória porque era comemoração do scentenário. Assinada por Eleazar de Carvalho. Essa tem a assinatura de

Esse Choros 12 é uma encrenca, uma encrenca absoluta, uma coisabsurda, é dos piores, ninguém toca. Eu consegui na época uma gravaçãde uma orquestra belga. Nem a OSESP gravou, acho que vai gravar ago

Fui atrás da partitura, o Museu Villa-Lobos me mandou uma cópia. Acea proposta. Eu mal sabia o que estava azendo. Fui alar com ele, upessoa muito engraçada. Acho que depois de Villa-Lobos, a pessoa ma“coronel” na música erudita brasileira oi o Eleazar. Ele tinha situaçõengraçadíssimas. Eu disse: Mandei uma carta para a Max Eschig, a edito cial do Villa-Lobos na França e praticamente no mundo inteiro, q143 Antonio Eduardo Santos, pianista santista, doutor pela PUC-SP em comunicação e semiótica.144 Eleazar de Carvalho (1912-1996), regente e compositor cearense. Esteve à rente das maorquestras do mundo. Foi diretor artístico e regente titular da OSB, OSMSP, OSESP, entre outras. Fuda cadeira 32 da Academia Brasileira de Música

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detém os direitos da maior parte da obra dele. Eles disseram: É o seguintnós temos o material, e o aluguel é tanto. Mostrei a ele a carta em rancêe ui traduzindo. Ele tirava sarro, ngindo que não sabia rancês. Nuoutra peça, a gente teve que pedir uns tímpanos emprestados na SalaSérgio Cardoso, que a orquestra ensaiava lá. O John Boudler145, timpanistada OSESP, americano que mora aqui há muitos anos, disse: Vamos a gente pega os tímpanos, leva para o Brooklin e traz de volta no diaseguinte, mas tem que pedir para o maestro antes. No intervalo do ensaida Sérgio Cardoso, eles estavam saindo do elevador para tomar um ca éandar de cima. Coloquei o pé no trilho do elevador: Maestro, posso entraEle apontou para o meu pé: Já está entrando, já está entrando!

Noutra ocasião, ui reger a OSESP, que tocou uma peça minha no Memda América Latina. A Sônia Muniz146era minha diretora na Escola Municipal deMúsica. Cheguei ao Memorial e alei com ele: Maestro, mande um abraçoa pro essora Sônia Muniz. Não, eu mando homenagens, ele respondeu.

Na época, eu era colaborador da Folha de S. Paulo na área de críticmusical, eu escrevi artigos de endendo-o, por acaso. Aconteceu por acamesmo, eu juro. Nunca ui muito político a ponto de azer as coispensando lá na rente. Aconteceu esse vaivém, o material do Choros não chegava. O concerto oi na Sala Copan, sede da orquestra enquano teatro estava sendo re ormado, depois oi para o Teatro Sérgio CardoNo dia 14 de dezembro de 1987, regi a primeira parte de um programAllegro Místico (para cordas) e Misteriosa orma del tiempo e Dapopular da Lemúria (para orquestra).

:: DANçA POPulAR DA lEMúRIASempre ui muito chegado em leitura oriental do Tibet, do lamaísm

A Alexandra David Néel 147 tem um romance chamado O Lama das CincoSabedorias. São cinco sabedorias, tudo muito pro undo. Viajando nesidéia, eu z o Allegro todo em 5/8.

145 John Boudler (1954), timpanista norte-americano radicado em São Paulo. Pro essor Titular dUNESP iniciou o Grupo PIAP antes do curso de percussão se tornar ofcial na Universidade.146 Sônia Muniz de Carvalho – pianista paulista (1945). Presidente da Fundação Eleazar de Carvalho.147 Alexandra David-Néel (1868-1969), exploradora budista e escritora rancesa. Sua vidmuito devotada a exploração e ao estudo, as suas duas grandes paixões que, na sua pequena in ânc

fzeram dela uma criança terrível, uma adolescente contestadora, uma juvem anarquista, em sua velhicmais sábia dos “pensadores livres” século XX.

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Misteriosa Forma del Tiempo é de 1986, um verso do Borges148 emque ele diz que a música é uma misteriosa orma do tempo. Eu achlindo e z uma música inspirada nisso, só que eu compliquei bastanta contagem rítmica. A orquestra tocou muito bem na época. Saiu nprograma como Dança Popular da Lmúria. Não era bem isso, é DançaPopular da Lmúria. Nesse dia, na hora de apresentar a música, eu disseque queria só azer uma correção: Não é Lamúria, é Lemúria – o que azdi erença signi cativa. Alguém na platéia perguntou o que era. Expliqque Lemúria é um continente perdido do Pací co. A Cali órnia é uplaca continental que se grudou ao continente americano, deve ser poisso que ela é tão sujeita a terremotos e a qualquer hora pode se descolarDizem que a Cali órnia é a ponta de uma elevação de uma montanhaLemúria, continente anterior à Atlântida, inclusive. Os lemurianos eramaravilhosos, tinham uma vida per eita. Na época, eu tinha um livro Rosa-Cruz-AMORC que alava sobre a Lemúria; mais tarde, eu achInternet também muito mais in ormações. Após alguns anos, dividi espeça em partes. Ela é linda, tem uma grande primeira parte chamada Tempo Maravilhoso de Lemúria, depois tem O Jardim Sagrado, depoiAssembléia, como eles lidavam com a política na sociedade lemuriane o nal, A Transição, quando o cara vai para a eternidade também. Fcomposta em 1987. A gravação que eu vou mostrar para vocês é de 200com a Sin onia Cultura, quando eu trabalhei com o Lutero Rodrigues, amnosso do Centro Cultural, quando regi também meio programa de obrminhas com a extinta Sin onia Cultura no SESC Belenzinho, dividinprograma com o João Guilherme Ripper, do Rio de Janeiro.

Audição daDança Popular da Lemúriacom a Orquestra Sin onia Cultura,sob a regência do autor.

:: CONSERvATóRIO DE PARISEm 1988, ganhei uma bolsa do CNPq149 e ui estudar no Conservatório

de Paris com Michel Philippot150. Tenho algumas recordações de lá e do148 Jorge Luis Borges (1899-1986), poeta e ensaísta argentino mundialmente conhecido por seus coconsiderado o maior poeta argentino de todos os tempos. Sua obra se destaca por abordar temáticas como floso

seus desdobramentos matemáticos), meta ísica, mitologia e teologia, em narrativas antásticas.149 CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científco e Tecnológico150 Michel Philippot (1925-1996), compositor rancês, assistente de Olivier MessiaenConservatório de Paris. Compositor de grande reputação, ocupou importantes unções junto à Rádio-

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recital de piano solo que dei:Marcos Câmara, Oeuvre pour Piano Interpreté par le Compositeur . Foi muito legal! Isso não tinha nada a ver com ocurso em si. Eu estava azendo o curso com o Phillipot, e havia uma séchamada Concerts de Midi, Concertos do Meio-Dia, promovidos pelos aldo conservatório, cuja organizadora chamava-se Sophie Busnengo. Hojeconservatório está na Cidade da Música, em Paris. Naquela época, ainda na estação São Lázaro, rua de Madri, subindo a rua de Roma, à esquerdNo prédio grande e antigo, estudaram grandes compositores rancesehavia salas de estudos, mas eu não sabia que tinha horários, tinha quemarcar tudo. Eu achava um piano vazio, entrava na sala e começava a tocageralmente eram belos Kawais de meia-cauda que usávamos na sala de auDe vez em quando, aparecia a pro essora que iria usar a classe e dizia: Je

suis desolée!Quer dizer: sinto muito mas tem que sair. Estudava assim paro recital; eu estava preocupado em tocar muito bem. Até pouco tempatrás, eu tinha um problema no pulso esquerdo: me dava tendinite de tantoque eu orçava meu estudo de piano. Mas deu tudo certo, e eu achei legporque quando cheguei à Sala Berlioz, pouquinho antes da hora de começ

já tinha uns técnicos arrumando o piano:C’est pour Camara?Eles nem meconheciam, mas sabiam que existia um concerto doCamarrá;então elesestavam arrumando tudo: Ah! Sim, piano solo, não é?Uma organizaçãomaravilhosa, sempre oram muito... “europeus”.

Tenho outras lembranças. Nesse slide, o rapaz, chamado Bernard Deville, eraum estudante de engenharia. Veja esse piano, é um piano Brasil de cauda inteina Casa do Brasil na Cidade Internacional Universitária em Paris. Um piano bomuma sa ra ótima. A Casa do Brasil oi construída simplesmente pelo Le Corb151 e pelo Lúcio Costa152, parceiro de Niemeyer153 na construção de Brasília; então,ela é patrimônio histórico. Caravanas vão lá para visitar a Casa do Brasil. Cono Bernard por acaso. Ele era engenheiro aeronáutico especializado em turbine azia parte de um grupo de teatro, além de cantar. Ele topou cantar um cice ao l’Institut supérieur de l’audiovisuel.151 Charles-Edouard Jeanneret, conhecido por Le Corbusier (1887-1965), arquiteto suíço. Concom estilos diversos, de épocas diversas. De todas estas in uências, captou em suas viagens, aquiloconsiderava essencial e intemporal.152 Lúcio Costa (1902-1998), arquiteto e urbanista rancês, flho de brasileiros. Recebeu in uêdo arquiteto ranco-suíço Le Corbusier. Implantou o ensino da arquitetura moderna. Elaboração do Piloto de Brasília. Pro essor e parceiro de Oscar Niemeyer.153 Oscar Niemeyer (1907), arquiteto e urbanista carioca. Um dos nomes mais in uentes

Arquitetura Moderna internacional. Foi pioneiro na exploração das possibilidades construtivas e pládo concreto armado.

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de canções para barítono e piano sobre texto do Augusto de Campos154, e nosapresentamos. Eu já tinha eito isso aqui antes, quando ganhei o prêmio APC1986 com esse ciclo de canções chamadoO Rei menos o Reino.

Nesta oto, estou na casa do Ravel, no piano em que ele compôs o amoBolero. Ele morou em Mon ort de L’Amaury, peri eria de Paris, nos últimos 1de sua vida.

Conheci o Roberto Duarte155, regente importantíssimo no Rio deJaneiro, autor de revisões da obra de Villa-Lobos, em Paris no tempo eque eu estava lá. Ele pediu que eu lhe mandasse uma partitura. Ele semp

oi muito interessado pelos compositores novos. Houve a apresentação minha peçaE pur si Muove, eita em 1988, orquestrada. Em 1991, ele eza estréia dessa peça, a amosa rase do Galileu. Dizem que ele a rmque a terra girava em torno do sol, e a Igreja não gostou da brincadeiraDisse ele:Tá bom, nego tudo aquilo que eu disse, mas no entanto ela semove. É o que conta a lenda, não se sabe, não há documento. Essa versãoé para orquestra, o Roberto Duarte estreou em 1991, e a Beatriz Balzi156 gravou em CD a versão para piano solo. A Beatriz Balzi, pianista argenti

alecida, in elizmente, em 2001, sempre oi muito interessada em divunovos compositores e a música contemporânea latino-americana em geral.Eu me lembro de levar partituras para ela na UNESP, onde era pro esse ela sentar ao piano e sair tocando direto, como se já conhecesse, comum talento excepcional. Ela gostou da música e gravou.

Audição deE pur si Muovecom Beatriz Balzi

:: DE vOlTA PARA O BRASIlVoltando para o Brasil em 1991, organizei um recital com o Fernand

Carvalhaes157

, um cantor maravilhoso, desses que pegam a partitura e saem154 Augusto de Campos (1931), poeta, tradutor e ensaísta paulistano, um dos criadores da poeconcreta junto com seu irmão, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.155 Roberto Duarte (1941), pianista e regente carioca. Deu aulas em várias instituições de ensmusical no Brasil e no exterior. Regeu dezenas de orquestras brasileiras e estrangeiras, tendo com

gravado diversos programas para rádio e televisão, assim como diversos discos e CDs.156 Beatriz Balzi (1936-2001), pianista argentina, viveu no Brasil. Foi Membro undadora do NMúsica Nova de São Paulo. Foi convidada por vários compositores brasileiros para gravar suas obdisco e ftas independentes.157 Fernando José Carvalhaes Duarte, compositor e pro essor-doutor ( aleceu em 2006). Foi prode canto e técnica vocal no IA-UNESP, doutorou-se com tese sobre Roman de Fauvel, texto importacancioneiro medieval.

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cantando. Toquei a primeira parte de piano solo no MASP, na segundparte, o Fernando entrou, e zemos o mesmo ciclo que z com o BernaDeville em Paris. Eu já tinha ido ao Rio de Janeiro em 1987 na Bienal coo Fernando para azer o ciclo completo também. Curiosamente, a OrqueSin ônica do Estado me mandou um convite para azer de novo uma porquestral no I Festival Panamericano de Música Contemporânea, e entrei com essa peça,Lo stregatto. Me lembro de pessoas essenciais daorquestra, o Dante Perini, inspetor da orquestra, um pessoal maravilhosdo tempo do Eleazar. Isso oi no Memorial da América Latina em 19e eu quei muito lisonjeado pelo convite. Tinha o Al redo Rugeles158,o Ficarelli159. O Amaral Vieira160 tocou, ez o solo para piano da músicadele, e eu regi essa peça chamadaLo Stregatto, em três movimentos, paraorquestra sin ônica.

Audição deLo Stregatto, com a OSESP, sob a regência do autor.

Os anos de 1993 e 1994 oram anos em que me dediquei mais procurar trabalho e reger corais. Tenho uma carreira de regente de coramuito...promissora. Em 1995, recebi carta do Lorenzo Mammi161, da USP,dizendo que um grupo italiano oi consultar o arquivo da biblioteca dECA e escolheu uma peça minha para tocar em seus concertos. O gru

azia uma turnê pelo Brasil e, entre outros compositores, como VillLobos, escolheram a mim também. Era Mauricio Kagel 162, argentino amoso,vários italianos, Sciarrino163, Villa-Lobos e o Marcos Câmara. Tocaram o158 Al redo Rugeles (1949), compositor e maestro, cidadão venezuelano, nasceu em WashingtoÉ diretor do Fundación Circuito Sin ónico Latinoamericano Simón Bolívar. Ajudou à confguração umusical em seu país. Ganhou vários prêmios internacionais de composição.159 Mario Ficarelli (1937), pro essor, pianista e compositor paulistano. Membro da Sociedade BrasiMúsica, Academia Brasileira o Musica e SUISA (Swiss Copyrights Association). Seu nome é verbete em

publicações estrangeiras. Possui diversas obras editadas no Brasil, Europa e Estados Unidos.160 Amaral Vieira (1952), compositor, pianista, pedagogo e musicólogo paulistano. Foi presidda Sociedade Brasileira de Musicologia, da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea e da FuConservatório Dramático e Musical de São Paulo, membro da Academia Brasileira de Música.161 Lorenzo Mammi (1957) , pro essor, crítico de música e de arte italiano, nascido em Roreside no Brasil desde 1987. É ormado em Matérias Literárias pela Universidade dos Estudos de Fe doutor em Filosofa pela Universidade de São Paulo (USP). Leciona história da Filosofa MedievDepartamento de Música da ECA-USP.162 Mauricio Kagel (1931), compositor argentino, vive em Colônia, Alemanha, desde 1957. Sua mutiliza de instrumentos incomuns, visando e eitos não só musicais, mas visuais e dramáticos.163 Salvatore Sciarrino (1947), compositor italiano. Apesar de ter desenvolvido contacimportantes com Antonino Titone, Turi Belfore e Franco Evangelisti, oi e etivamente um autod,

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Trio para Clarinete, Violoncelo e Pianoque escrevi em 1985 para outro concursona Bahia. Eu estava superdesencanado com composição porque é coisa qnão grati ca ninguém. Estava meio parado, mais regendo corais, as mesmcoisas que eu aço até hoje com o maior prazer, realmente eu gosto de azReceber essa carta oi um prêmio, oi maravilhoso. De lá para cá, teve a estdoScherzo(para orquestra), pelo Luis Gustavo Petri164e a Sin ônica de Santos,no Festival Música Nova, em Santos, um agenciamento do Rubens Ricciardlevou e apresentou a partitura para ele. Participamos juntos desses ensaiosEu estava junto com o Ronaldo Miranda; também oi uma coisa legal. O Pagano165 tocou duas peças minhas no Festival Música Nova de 1999. Ele meu pro essor de piano na USP no tempo da graduação, e sempre tivemos urelação muito gostosa. Ele escolheu oScherzo,a versão para piano eE pur si Muove, tocando, obviamente, de maneira linda e magistral.

:: AvE-MARIAA Silvia Berg166 era uma amiga da graduação da USP. Antes de ir para a

Dinamarca e casar-se com um dinamarquês, se chamava Silvia Cabrera. Ela esna Dinamarca uma música que z no piano pensando num coral; cou um temengavetada, eu não sabia bem o que era, o que não era. A criação tem, muitavezes, esse tipo de coisa, você não tem claro o que está azendo. De repente, descobri que era uma Ave-Maria. Não! Eu jamais teria composto uma Ave-MMas eu achei que pelo repertório tradicional e histórico aquilo era uma Ave-MNão tive dúvidas: peguei o texto em latim e z uma Ave-Maria. Vou colocar vocês cantada por um coro dinamarquês em latim. Essa oi então a minha Ave-Mariaque eu, por acaso, compus. Foi uma coisa engraçada.

Audição de Ave Maria, com AmaCantus, sob regência de Silvia Berg

sendo que o seu conhecimento musical advém diretamente do estudo sobre os compositores moderclássicos.164 Luis Gustavo Petri (1961), pianista, regente e compositor paulista, nascido em Santos. Realiza um extrabalho como compositor em teatro, cinema e musicais com os quais recebeu diversos prêmios.165 Caio Pagano, pianista paulistano. É reconhecido por sua técnica e execuções brilhantes, teapresentado mais de 800 exibições como solista, camerista, ou acompanhado por orquestras no Brasilexterior. Leciona na Escola Superior de Artes do Instituto Politécnico de Castelo Branco - Portugal, amanter cursos na Arizona State University,166 Silvia Cabrera Berg (1958), pianista, regente e compositora paulista radicada na Dinamadesde 1985. Exerce intensa atividade musical como regente, tendo se especializado em música vocal ae música contemporânea.

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:: SETE ESTuDOS DE lINGuAGEMNo mestrado, eu z a matéria do pro essor José Eduardo Martins167.

Durante as aulas, ele comentou:Estou azendo um projeto de estudos para piano. Você não quer escrever alguma coisa para mim?Fiz a sérieSete Estudos,não exatamente estudos técnicos de piano, mas estudos em que cada umala de um aspecto da música, por isso nomeeiSete Estudos de Linguagem. Oprimeiro se chamaSchumann;o segundo, Intervalos e Quiálteras;o terceiro,Cluster;o outro,N’importe où hors du monde– um verso de Baudelaire que oDebussy usou para responder a uma pergunta de um jornalista, e assim pdiante. Eu z a série de estudos, e o José Eduardo estreou no Festival MúsiNova em Santos, no Teatro Brás Cubas, no dia 29 de agosto de 2000.

:: OS luGARES E AS CORES DO TEMPOEu sempre quis compor música para violão, meu primeiro instrumensempre toquei violão. Eu pegava oMicrocosmosdo Bartok, que eu costumavatocar no piano, e tocava no violão. E me vinham idéias, e eu escrevia coispara violão um pouco baseado nas peças do Bartok. Fiz o ciclo chamadoOsLugares e as Cores do Tempo,concluído em 1990, que pretende ser um sinônimode “música”Lugaresem termos de espaços, alturas de notas, eCores:timbres,instrumentos que tocam dentro do tempo.Os Lugares e as Cores do Tempoé uma vontade de de nir a música de maneira in antil. Cada uma tem upensamento; a primeira tem sempre cordas soltas, é um dedo só que vocaperta, as outras cordas estão soltas. O Flávio Apro168 ez uma interpretaçãobrilhante; na repetição, ele vai para cima e muda o timbre do som porque enão usa mais as cordas soltas, ele começa a tocar a partir da quinta casa. É uminterpretação muito boa. O terceiro é uma homenagem aosEstudos SimplesdoLeo Brower, e assim por diante: cada uma tem sua particularidade.

Audição deOs Lugares e as Cores do Tempo, com Flávio Apro (violão)

Tudo que eu trouxe eu mostrei para vocês. Agradeço a atenção. Muiobrigado.167 José Eduardo Martins ( 1938), pianista paulista, iniciou os seus estudos com o pro essor r

José Kliass. Mais tarde, trabalhou durante alguns anos em Paris com Marguerite Long e Jean D Apresentou mais de cem primeiras audições mundiais de autores de diversos países.168 Flávio Apro (1973), violonista paulista, bacharel em Violão pela USP e mestre em per orm

pelo Instituto de Artes da UNESP

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:: Depoimentos - IDART 30 Anos

Obs.:As notas de rodapés oram pesquisadas em arquivos da equipe e

Internet. O compositor Mário Ficarelli optou por notas resumidas.

São Paulo, 2008