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    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

    Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

    Fernando de Azevedo Lopes

    O “CONSERVADORISMO PROGRESSISTA” DE SÍLVIO ROMERO 

     Naturalismo e política na Primeira República brasileira

    Rio de Janeiro

    2015

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    Fernando de Azevedo Lopes

    O “CONSERVADORISMO PROGRESSISTA” DE SÍLVIO ROMERO 

     Naturalismo e política na Primeira República brasileira

    Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa dePós-Graduação em Sociologia e Antropologia, doInstituto de Filosofia e Ciências Sociais, UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitosnecessários à obtenção do título de Mestre emSociologia (com concentração em Antropologia).

    Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho 

    Rio de Janeiro

    2015

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    O “CONSERVADORISMO PROGRESSISTA” DE SÍLVIO ROMERO 

     Naturalismo e política na Primeira República brasileira

    Fernando de Azevedo Lopes

    Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia eAntropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Riode Janeiro –  UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestreem Sociologia (com concentração em Antropologia).

    Aprovada por:

    Titulares:

     _____________________________________________________

    Prof.Dr. André Pereira Botelho (PPGSA / IFCS / UFRJ)

     _____________________________________________________

    Profª Drª Gabriela Nunes Ferreira (PPGCS / UNIFESP)

     _____________________________________________________

    Profª Drª Aline Marinho Lopes (UFF)

    Suplentes:

     _____________________________________________________

    Profª. Drª. Helga da Cunha Gahyva (PPGSA / IFCS / UFRJ)

     _____________________________________________________

    Profª. Drª. Tamara Rangel (PPGHCS / COC / FIOCRUZ)

    Rio de Janeiro

    2015

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    RESUMO

    A presente dissertação objetiva reconstruir o movimento intelectual de SílvioRomero (1851-1914) nos anos nascentes da Primeira República, onde o autor mobilizou

    uma gama de teorias cientificistas para dar conta dos dilemas da formação nacional

     brasileira e também para pensar os desafios e possibilidades abertos a partir do golpe

    republicano. Esse movimento analítico intenta a abertura de um outro caminho

    interpretativo sobre a obra do autor que permita perceber sua adoção dos repertórios

    europeus, principalmente do liberalismo conceituado por Herbert Spencer, de forma

    original e reflexiva em relação a conjuntura política dos primeiros anos do regimerepublicano e também de forma complementar a de sua proposta de crítica literária

    científica.

    PALAVRAS-CHAVE: Sílvio Romero; Primeira República; Liberalismo; Pensamento

    Social Brasileiro; Crítica Literária

    Rio de Janeiro

    2015

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    ABSTRACT

    The present thesis aims to reconstruct the intellectual movement of Sílvio Romero

    (1851-1914) in the early years of the First Brazilian Republic, where the latter has

    mobilized a range of scientistic theories in order to deal with Brazilian national

    development dilemmas and also pondering over open challenges and possibilities as from

    Republican coup. This analytic movement intents to open for another interpretative path

    about the author’s work which allows to perceive his adoption of European repertories,

    mostly from Herbert Spencer’s reputable liberalism, in a singular and reflexive way

    related to a political conjuncture of early years of the First Brazilian Republic and also in

    a complementary aspect of his approach for scientific literary criticism.

    KEY WORDS: Sílvio Romero; First Brazilian Republic; Liberalism; Social Brazilian

    Thought; literary criticism. 

    Rio de Janeiro

    2015

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    AGRADECIMENTOS

    Este trabalho contou com o auxílio de diversas pessoas e instituições que

    viabilizaram a sua realização.

    Em primeiro lugar, agradeço ao meu orientador, Professor André Pereira Botelho.

    Sua ajuda e orientação foram imprescindíveis para a concretização dessa dissertação e se

    não tivesse contado com seu rigor, erudição e pluralismo, esse trabalho não teria sido

    concluído. Sou muito grato pela paciência com um neófito e pelos ensinamentos nesses

    mais de dois anos de pesquisa. Seus escritos e sua forma de pensar a sociologia me

    abriram um caminho que reavivou e possibilitou uma leitura muito mais sofisticada da

    que pensava anteriormente para meu antigo tema de pesquisa. Cabe mencionar quequaisquer falhas que por ventura esse trabalho apresente são de total responsabilidade

    minha.

    Dos tempos de Gragoatá e de UFF, devo muito ao Professor Marcos Alvito. Seu

    curso sobre Machado de Assis nos tempos de graduação em História mudou minha

    concepção sobre o ofício de historiador e me apresentou, de forma indireta, o objeto que

     pesquisei nesta dissertação. Além disso –  como se fosse pouco –  sua postura docente e

    intelectual são exemplares e inspiradoras.

    Aos professores Beatriz Heredia e Marco Aurélio Santana agradeço o excelente

    curso de metodologia de pesquisa ministrado durante o curso de mestrado. Suas leituras,

    comentários e “implicâncias” foram fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho.

    Também agradeço a professora Eloísa Martin pelas leituras que em parte informaram a

    construção dessa dissertação e o excelente curso sobre escrita acadêmica que auxiliou

    muito na minha formação acadêmica.

    Às professoras Gabriela Nunes Ferreira e Aline Marinho Lopes agradeço os

    valiosos comentários no momento da qualificação. Gostaria de agradecer também a

     professora Maria Fernanda Lombardi que comentou parte deste trabalho quando ainda

    estava em seu início.

    Aos colegas de pesquisa Alessando Garcia, Alice Ewbank, André Bittencourt,

    Karim Helayel, Lucas Carvalho, Luna Ribeiro e Maurício Hoelz agradeço o

    agradabilíssimo convívio que me propiciaram nesses últimos anos. O ambiente de

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    camaradagem, generosidade e alegria são coisa rara no meio acadêmico. Devo

    agradecimentos especiais a Karim e Alessandro, pelas conversas na volta do metrô, que

    iam de Star Wars a Althusser, e pela ajuda na “correria” da vida acadêmica. Agradeço

    também a Alice por ouvir sobre os percalços pessoais e profissionais que acompanharam

    essa jornada desde 2013. E pela cervejinha também pois não somos de ferro, afinal!

    Aos meus colegas de mestrado, que sempre mantiveram um ambiente amistoso e

    generoso de convivência. Agradeço especialmente a Samantha Gifalli e Gustavo

    Fernandes pela ajuda e pelas trocas intelectuais e afetivas desse período.

    Aos amigos e amigas devo muito do suporte emocional que foi imprescindível

     para a realização da tarefa árdua e quase sempre solitária que é a escrita e a pesquisa.Impossível citar nominalmente todos, mas sintam-se abraçados por mais essa etapa

    concluída. O Ferreira Vianna, mais do que um curso técnico em telecomunicações, me

    forneceu amizades que constituem hoje parte inseparável da minha vida. Klaus,

    Carlinhos, Moura, Helliton, Mari, Ganso, muito obrigado pelo apoio de sempre. Hermio,

    agradeço pela amizade, pelas cervejas e também por ter me ajudado na formatação final

    desta dissertação.

    Dos tempos de Niterói, por sorte carrego excelentes amigos e excelentescompanheiros de diálogo intelectual. Agradeço a Gabriel Neiva pelas conversas sobre

    música, futebol, vida, pensamento social e pela amizade fraternal. Gondim, Bela, Lari,

    Carol, Fê, Alanzinho, Bia, muito obrigado pelas “fugas” nesse período tenso de escrita.

    Filipe Senos, grande companheiro de Penha e de “passeio”, prometo retornar a vida após

    a defesa e marcar aquela cerva há tempos prometida. À Larissa Costard agradeço por

    sempre me alertar sobre as minhas “pós-modernices”, além de toda a amizade e carinho

    que nossa convivência proporciona.

    À Bárbara agradeço pela amizade ímpar e sua generosidade sempre em alta.

    À Marina Ayres agradeço por me ouvir tantas e tantas vezes nesses últimos

    tempos e por levar o conceito de amizade até as últimas consequências.

    Aos amigos da melhor mesa redonda do planeta, meu agradecimento de coração.

    Os nossos debates multifacetados, hilários e controversos me ajudaram muito nesse

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     período de claustro. Bel, Nelo, Rayol presidente, Leléo, Cookie, Yure, Vovô, Careca,

    Pasca, Sasssone e Raphael, agora leiam minha “tese”.

    Aos amigos Adriana Xerez, Maria, Dirceu e Pedro, agradeço muito pelo

    acolhimento nos momentos difíceis desses tempos e os ouvidos sempre disponíveis para

    as lamúrias da vida e da carreira docente. E também agradeço pela rede mais

    aconchegante da Grande Tijuca! Agradeço também ao Pedro pela leitura do primeiro

    capítulo dessa dissertação e pelos sempre instigantes diálogos que travamos. Agradeço

    especialmente também a Maria que leu o esboço do que viria a se tornar o segundo

    capítulo da dissertação.

    À Mônica Mourão, agradeço as trocas intelectuais que tivemos durante esses doisanos e a amizade nova e especial com que Fortaleza me presenteou. Sua generosidade é

    coisa rara no “mundo cão” de hoje em dia.

    Aos alunos e alunas da Escola Municipal Bernardo de Vasconcelos, da Escola

    Municipal F.J. Oliveira Vianna e da Escola Estadual São Bento, meus mais sinceros

    agradecimentos. A experiência na docência foi fundamental para a abertura de novos

    horizontes na minha vida, inclusive acadêmica, e o aprendizado que tive com a gana de

    viver e aprender de jovens tão maltratados pelo poder público foi um divisor de águas emminha trajetória. A barbárie nunca vencerá e a alegria sustentada por eles e elas me

    comprova isso diariamente.

    Aos meus pais, Noêmia e Euclides, pela ajuda importantíssima em toda minha

    formação e por acreditarem nas escolhas que fiz, além de todo suporte afetivo e material.

    Agradeço também a minha irmã Nathália pela alegria e pelo carinho.

    Às funcionárias do PPGSA, agradeço a solicitude e o profissionalismo.

    Agradeço também à CAPES pelo auxílio financeiro que viabilizou este trabalho.

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    Dedico esta dissertação aos meusalunos e alunas

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    O r espeito das convicções alheias não

    consiste em julgá-las boas e

    verdadeiras, mas só em tê-l as por

    íntimas e sinceras

    Tobias Barreto, O atraso da filosofiaentre nós, 1872

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO______________________________________________________ 12

    1 - A CRÍTICA DA CRÍTICA SOBRE SÍLVIO ROMERO __________________25

    1.1 - A morte da polidez ..................................................................................................25

    1.2 - Horror à realidade?................................................................................................33

    2 –  SPENCERIANISMO HETERODOXO.................................................................49

    2.1 -  Positivismo e o “ spencerianismo crítico” romeriano..............................................49

    2.2 - Parlamentarismo como “conservadorismo progressista”.......................................61

    2.3 - Crítica ao hiperfederalismo e a questão da interferência estatal...........................69

    3 –  MESTIÇAGEM CONCEITUAL_____________________________________ 78

    3.1 - Meios e fins, logos e práxis......................................................................................78

    3.2 - Sílvio Romero, Herbert Spencer e a geração de 1870.............................................86

    3.3 –  Mestiçagem conceitual........................................................................................... 95

    CONSIDERAÇÕES FINAIS___________________________________________108

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS___________________________________117

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    INTRODUÇÃO

    A presente dissertação objetiva reconstruir o movimento intelectual de SílvioRomero nos anos nascentes da Primeira República, onde o autor mobilizou uma gama de

    teorias “cientificistas” para dar conta dos dilemas da formação nacional brasileira e

    também para pensar os desafios e possibilidades abertos a partir do golpe republicano 1.

    Minha proposta de análise da obra romeriana realiza dois movimentos específicos: o

     primeiro é perceber sua produção intelectual sem cair na armadilha de pensar em termos

    disjuntivos teoria e intervenção política, evitando tomar por certo a própria mitologia

    criada pelo autor, tomando sua “narrativa de si” como algo reificado (Bourdieu, 2005;Skinner, 2005) e também transcender interpretações ossificadas pela fortuna crítica e

     pensar em possibilidades alternativas de interpretação de seu legado. O segundo aspecto,

    consequência do primeiro movimento, consiste também em considerar sua mobilização

    criativa das teorias europeias como um esforço de pensamento teórico periférico.

    Com isso, busco a abertura de um outro caminho analítico sobre a obra do autor

    sergipano que permita perceber sua adoção dos repertórios europeus de forma original.

    Assim, sugiro que a forma como o liberalismo foi lido por Sílvio Romero foi debitaria datensão frente a tarefa de construção de uma perspectiva interpretativa que advogasse a

    adaptabilidade de doutrinas sociais e políticas frente a realidade e a história brasileira,

    mediante o cenário de impossibilidade de negação da mestiçagem e da necessidade de

    afirmação do país nos rumos da modernização ocidental. Para dar conta desse movimento,

    tento demonstrar e desestabilizar algumas continuidades acerca da recepção crítica do

    intelectual sergipano e descortinar outras possibilidades interpretativas sobre o autor, que

    destaque sua elaboração ativa e criativa dos repertórios “importados”. 

    A motivação primeira da pesquisa que originou a dissertação partiu de um

    incômodo: a percepção de que as interpretações sobre a obra de Sílvio Romero

    ressaltariam o caráter contraditório das suas formulações intelectuais. O crítico literário

    sergipano é destacado por muitos analistas como um dos grandes intelectuais brasileiros

    1 A dissertação não pretende dar conta de forma sistemática e linear da trajetória de Sílvio Romero. Existeminúmeros trabalhos que tentam escrutinar o percurso biográfico do autor, relacionando seu percurso às

    ideias que defendeu. Cf Sussekind, 1938; Rabello, 1967; Mota, 2000. Para uma abordagem sistemáticasobre a “Escola do Recife” e o papel de Sílvio Romero neste cenário ver Paim, 1966; Chacon, 1969.

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    e sua obra foi objeto de muitas análises, indo da História e Literatura até a Filosofia. Além

    disso, o autor é comumente associado ao movimento renovador de ideias políticas e

    filosóficas no Brasil, a chamada “geração de 1870”, formada por intelectuais que se

    caracterizavam pela oposição à “ordem saquarema” que vigorou quase ininterruptamente

    entre 1848 e 1878 e também pela tentativa de superação dos três pilares da ordem imperial

    conservadora: o catolicismo hierárquico, o indianismo romântico e a escravidão, com

    todas suas limitações à ampliação da participação política. Apesar das contribuições do

    crítico sergipano terem sido mobilizadas em trabalhos muito diversos, onde sua

    contribuição foi esmiuçada em áreas diferentes de conhecimento, esse é um traço

    característico da bibliografia crítica sobre Sílvio Romero. O juízo que o autor teria

    lançado mão de formulações conflitantes entre si, ora motivado por leituras poucosofisticadas das teorias formuladas na Europa, ora pelo seu temperamento fluído,

    agressivo e pouco dado a sistematização, percorre quase toda a fortuna crítica sobre o

    autor.

    Em trabalho relativamente recente e de muito fôlego Angela Alonso (2002)

     procura enquadrar a “Geração de 1870” dentro de um movimento intelectual de

    intervenção política strictu sensu, indo além das interpretações sobre as produções desse

    grupo sob as lentes da História das Ideias (uma discussão sobre “escolas de pensamento”

     baseada numa maior ou menor fidelidade com as matrizes teóricas de origem) e de

    supostas ideologias de classe. Segundo a autora, a primeira vertente acaba por cair na

    questão da cópia/desvio, pois a referência sempre é exterior ao ambiente analisado; na

    segunda vertente a impossibilidade de ganhos heurísticos em interpretar a produção

    desses novos grupos que supostamente expressariam anseios de grupos sociais novos,

    surgidos com o processo de modernização econômica do país (Idem: 28) se torna inócua

     pois essa crise estrutural nos últimos vinte anos do Império não produziu, na cena política brasileira, novos grupos emergentes e nem promoveu sua homogeneidade, mas sim

    favoreceu uma reconfiguração de forças dentro da elite política-intelectual do período.

    Como saída para essas questões a autora busca - sem separar a geração entre “intelectuais

    e políticos”2 - encarar as manifestações intelectuais do período como primordialmente

    2  Nas palavras da socióloga “embora se tenha tornado uma convenção, a divisão da geração de 1870 emum grupo de cientificistas pouco atentos às questões nacionais e outro de pensadores politicamente

    empenhados é um anacronismo. É resultado do arbítrio dos intérpretes, que selecionaram característicasintelectuais em detrimento das políticas.” (Idem: 38)  

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    eventos políticos. Para a tarefa de interpretar o movimento como uma resposta coletiva

    ao fechamento das oportunidades políticas no outono do Império, a autora mobiliza a

    literatura sociológica que trata dos “repertórios contenciosos” (Tilly, 1978, 1993)

    operando com base na ideia de “tool kit”, onde as ideias seriam como ferramentas a

    serviço de um uso pragmático de intervenção política em determinado contexto

    (Swindler, 1986; Tilly, 1993).

    Sem dúvida não é o caso de ignorar as contribuições e pistas levantadas para a

    compreensão da atuação intelectual e política de Romero3, porém, o movimento de

    Alonso parece desconsiderar, em parte, a presença, na obra desses agentes, de

    formulações para além do pragmatismo de servirem como ferramentas de contestação e

    debate político discursivo (cf. nota 18: 38). Movimento que deve-se a escolhas teóricas

    da autora que, para uma melhor compreensão do meu próprio movimento analítico aqui

    exposto, necessita-se matizar. Como Alonso afirma, “a apreensão do movimento

    intelectual impõe ir além da reconstrução da lógica interna dos textos e inscrever sua

     produção doutrinária no processo sociopolítico em que surge” (Ibidem) e reforçando o

    argumento, critica os autores da História das ideias que ao atribuir aos agentes o propósito

    de produzir conhecimento de valor universal teve o efeito de elevá-los à categoria de

    “filósofos”. O método heurístico, assim, acabou suprimindo a conjuntura e toda conexão

    com a problemática social contemporânea desaparece nessas análises (Idem: 24).

    Comungo do diagnóstico em relação a produção específica a que a autora se refere, mas

    desconfio da separação brusca entre teorização ou produção de conhecimento

    generalizante e intervenção no debate público e acredito que a raiz do antagonismo reside

    na questão do f also paradoxo entre leituras “textualistas” e “contextualistas”. Como

    salienta Botelho, os ensaios, como outras formas de conhecimento social, não são meras

    descrições externas da sociedade, mas também operam reflexivamente, desde dentro,como um tipo de metalinguagem da própria sociedade (Botelho, 2010: 61) e não se trata

    de revalorizar ideias e valores como variáveis independentes da realidade social, mas

    entendê-los como relativamente independentes sem relegar a segundo plano por isso, ou

    3 O corte cronológico da presente pesquisa é a Primeira República, período posterior ao delimitado porAngela Alonso em seu livro, que se dedica ao estudo da geração reformista na crise do Império. Entretanto,a análise e mobilização crítica que realizo das problematizações da autora para a geração que Sílvio Romerofoi formado, a meu ver, não se impossibilitam por esse fato pois a abordagem teórico-metodológica

    empreendida pela autora se torna uma agenda generalizável na abordagem da intelectualidade num quadrode não-autonomização do “campo” intelectual, quadro que permanece inalterado na Primeira República.

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    simplificar, ordeiramente, sua intricada interdependência com o processo social.

    (Botelho, 2005: 77).

    Como forma de enfrentar o paradoxo discutido entendo que uma saída possível

    seja realizar uma análise que leve em conta que a teoria se constitui em movimento,

    reflexivamente em relação a “matéria social”, onde a conjuntura não funciona apenas

    como determinante exterior, mecanicamente, mas sendo incorporada internamente ao

    texto.  Assim, dialeticamente, imbricam-se mudanças na  forma sociológica das

    interpelações e o movimento político e social mais amplo a qual as formulações de Sílvio

    Romero dialogam de forma analítica, mas também normativa. Entretanto, o contexto,

    entendido como exterioridade, não é descartável na minha análise, mas o propósito

    também é entender como ele dialoga e se integra (e se transforma) internamente na obra

    romeriana. Inspiro-me aqui nas proposições de Schwarz(1999) e de Candido (2000)4,

    segundo as quais a matéria social funciona como elemento interno ativo na constituição

    da forma. No caso dos dois autores, se referindo à literatura de ficção e no caso aqui

     proposto como “modulador” das construções e deslocamentos de temas, abordagens e

    referenciais teóricos. Além de romper com a disjunção entre “texto” e “contexto”, essa

     perspectiva pode ser útil por revelar como a migração e adaptação das ideias em contextos

     periféricos pode trazer úteis mecanismos para desvelar não somente a sua forma,

    deslocamentos e aplicabilidade (ou não) fora do centro, mas também para desvelar as

    contradições no funcionamento das teorias no centro (Ricupero, 2008: 68).5 

    A percepção do descompasso entre as ideias europeias, que serviam as

    elucubrações da elite intelectual brasileira do século XIX, e o processo social brasileiro,

    marcado pela escravidão e pela influência negativa do latifúndio e de atrofia do aspecto

     público, que agiriam como entraves à formação de uma sociedade civil ativa, era uma

     percepção corrente entre os autores/atores brasileiros do período. Esse “sentimento de

    despropósito”6  (Schwarz, 1999: 82), traço característico do pensamento conservador,

    4  Brasil Jr (2013), inspirando-se nos mesmos autores, demonstra como a aclimatação realizada porFernandes e Germani não foi simples reprodução acrítica da sociologia da modernização, em especial a deinspiração parsoniana, mas sim foi uma síntese teórica original que deslocou os pressupostos dessa matrizoriginal em função da interpelação de conjunturas específicas em que as pesquisas de cada autor estavaminseridas.5 A interpretação de Bernardo Ricupero refere-se diretamente ao ensaio “As ideias fora do lugar” deRoberto Schwarz (2012).6

     A citação completa, em resposta a Bosi, salienta a pertença do liberalismo à ordem global capitalista. Nas palavras de Roberto Schwarz: “Assim, ao mostrar que o liberalismo foi coado pelo filtro de um interesse

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    acredito, pode ser compreendido de forma mais ampla por meio do cotejamento com

    outras abordagens sobre a suposta inadequação entre ambiente social e ideias, também

     partindo de sentimentos de “estranhamento” fr ente a necessidade de releituras a partir de

    realidades muito diferentes dos países centrais e suas narrativas acerca do mundo social.

    Surgidas dentro do movimento de crítica e tentativa de superação do

    eurocentrismo das narrativas sociológicas “clássicas” e da consequente dependência

    epistemológica e acadêmica das ciências sociais do sul em relação às do “Norte

    atlântico” (Keim, 2008), esses “discursos alternativos” (Alatas, 2010) sinalizam para a

    necessidade de se construir alternativas em relação à aplicação acrítica do repertório

    intelectual europeu na análise das realidades dos países do sul global. Essa aplicação

    “servil” do repertório teórico europeu, além de representar uma dependência acadêmicae intelectual que reflete uma conjuntura de subordinação econômica mais ampla, não

    auxiliariam para a compreensão dos contextos específicos das sociedades do sul.

    Produções que nasceram em realidades histórico-sociais específicas são universalizadas,

    sendo utilizadas em contextos bastante diferentes daqueles do seu surgimento,

    não possibilitando assim uma análise mais abrangente das realidades dos países

     periféricos.

    Essas tentativas de construção de novas possibilidades de construção do

    conhecimento sociológico em contextos periféricos tem buscado uma saída frente à

    universalização de corte eurocêntrico mas, contudo, sem aderir necessariamente às

     premissas pós-modernas que fragmentam as perspectivas nacionais em narrativas

    fechadas em si, impossibilitando uma conexão entre os discursos sociológicos produzidos

    em diferentes partes do mundo. Margareth Archer (1991), em artigo que serve de

    introdução ao Congresso Mundial da ISA, entidade que presidia à época, advoga em favor

    de uma sociologia unitária baseada na unicidade da razão humana e alerta para a falsa

    de classe execrável, ao qual serviu bem - o que é verdade -, Bosi julga haver dissipado a ilusão, ou melhor,a ideologia de desconcerto e nonsense que acompanhou a sua associação com a escravatura. A meu ver estesegundo passo joga a criança com a água do banho. A começar pelo propósito mesmo do raciocínio. Amencionada convicção da excentricidade e do deslocamento local das idéias modernas não é uma invençãodos historiadores do século XX, cuja supressão nos pudesse devolver uma visão mais exata das coisas. Pelocontrário, sem prejuízo do caráter ideológico, aquele sentimento de despropósito é justamente o fenômenoque se deveria explicar em sua necessidade histórica, pois foi uma presença notória no Brasil oitocentista,e estava por assim dizer inscrito nas coisas, tanto que a maioria dos exemplos lembrados por Bosi para

     provar a funcionalidade escravista do liberalismo serve igualmente para abonar a feição desconjuntada damesma combinação.” (Schwarz, 1999: 82; grifos nossos)

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    dicotomia entre unidade e diversidade. Para a autora, a saída para tal situação seria

    escapar dos caminhos propostos pelo positivismo e também pelo relativismo pós-

    moderno e pensar a sociologia com base no realismo crítico, como uma unidade entre

    diferentes formas e métodos de análise, mas com possibilidade de se conseguir alcançar

    um norte comum e garantir as potencialidades da disciplina enquanto forma de

    conhecimento. Analogamente ao que propõe Berthelot (2000), esse movimento analítico

     pode ser entendido como uma conjugação entre pluralismo (de formas, de objetos de

    análises e de fontes de construção teórica) e racionalismo (Idem:111). Convém salientar

    que, para o autor, pluralismo não seria sinônimo de relativismo mas sim uma concepção

    ainda nos marcos do pensamento racional, como fica claro no trecho citado a seguir:

    O termo pluralismo é por vezes associado ao de relativismo. Pode efetivamente serassim quando o pluralismo exprime uma reivindicação defendendo a relatividade dos pontos de vista para justificar a pluralidade destes. Em contrapartida, o termo podedesignar igualmente o reconhecimento - a um nível de elaboração intermédio, o dasteorias e dos programas - de uma pluralidade de construções, diferentes na suaorientação específica, mas reclamando-se de uma referência comum aos princípiosracionais que regem a atividade de conhecimento (Idem: 119).

    Hussein Alatas foi um dos primeiros intelectuais que lançaram as bases da, assim

    chamada, “autonomização” da Sociologia. Sua proposta consiste no desenvolvimento de

    métodos e teorias capazes de incorporar dados e de pensar a prática analítica com

     pressupostos que partam “de dentro” das sociedades estudadas “para fora” (Alatas, 2006).

    Segundo o autor, os conceitos clássicos das ciências sociais europeias, como classe,

    estratificação social, mobilidade social, cultura etc. teriam uma validade universal no

    nível abstrato, mas suas manifestações históricas e concretas seriam condicionadas pela

    conjuntura que foram desenvolvidas (Idem: 07). O movimento que as sociedades e os

    intelectuais não ocidentais deveriam tomar, no intuito de promover uma ciência social

    com maiores ganhos heurísticos, seria o de construir uma tradição de conhecimento

    autônoma, que levasse em conta os aspectos locais, “aplicando um conceito independente

    de relevância na coleta e na acumulação dos dados de pesquisa”  (Ibidem). Isso

     possibilitaria uma contribuição genuína e verdadeiramente local a uma sociologia

    supostamente universal, livre da imitação e da cópia de referências alienígenas àquelas

    sociedades.

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    Outra proposta de movimento análogo seria a da indigenização da Sociologia,

     prática essa desenvolvida em contextos sociais e geográficos específicos, com suas

    nuances particulares. Calcado na reformulação das premissas ontológicas,

    epistemológicas, empíricas e axiológicas mobilizadas nas pesquisas, tal rompimento

     permitiria, segundo este movimento, em (re)construir conceitos sociológicos com base

    nas tradições locais e populares das respectivas sociedades não-ocidentais (Kim apud

    Alatas 2010: 229). Com isso, se abriria a possibilidade de lançar um projeto sociológico

    em outras bases7, desenvolvendo conceitos analíticos calcados no conhecimento social

    contido, por exemplo, nos registros da poesia oral Iorubá que assim serviriam para o uso

    sociológico futuro tanto na análise nativa como também em outros contextos geográficos

    e sociais (Akiwowo, 1986: 343). Sem perder de vista a generalização de suas proposições,Akiwowo afirma:

    the principal aim of this paper is to contribute to a general body of explanatory principles by demonstrating how some ideas and notions contained in a type of African oral poetrycan be extrapolated in the form of propositions for testing in future sociological studiesin Africa or other world societies (Idem : 343).

    Essas duas perspectivas podem abrir possibilidades interessantes para pensar as

    formulações intelectuais com fins a intervenção na realidade e também com intuitos de

    fomentar uma produção teórica generalizante sem cair numa divisão estéril entre “Teoria”

    e “prática” ou intervenção política. Entretanto, deve-se tomar cuidado para não considerar

    ao extremo essas duas propostas intelectuais e, consequentemente, incorporar uma visão

    essencialista sobre conceitos como “identidade”, “nacional”, “autóctone” etc.  Nota-se,

     porém, tanto no projeto de autonomização da sociologia quanto no de indigenização, uma

    forte tentativa de balizar localmente as premissas analíticas de seus trabalhos, de forma a

    7 Após esse movimento inicial surgiram desenvolvimentos críticos a esse projeto, como os estudos deMakinde (1988) e Lawuyi & Taiwo (1990), e também contraposições às premissas básicas de Akiwowo eà maneira como seu desenvolvimento conceitual ainda mantinha relações espelhadas e estruturais comconceitos europeus e com a vertente do funcionalismo estrutural (Adesina, 2002). Por outro lado, Archer(Ibid.) retoma o projeto intelectual de Akiwowo e afirma que, ao contrário de leituras equivocadas que viamna análise do autor nigeriano um exemplo do relativismo cultural, esse estudo possibilita o entendimentode que “humankind universally thinks and talks about sociality –   about creation, social origins,consanguinity and cohabitation. In Isichei´s terms this leads to an anti-relativistic quest for basic conceptualcategories whose empirical referents exist whenever human beings are found “ (Ibid. : 143) . Assim, aautora defende que uma das saídas para a falsa dicotomia entre unidade e diversidade, criando-se umconhecimento universal longe das armadilhas do positivismo e do pós-modernismo seria o recurso a

    universalidade da razão humana, apesar dela se revelar, dependendo do contexto, em manifestações práticase cotidianas diferentes (Ibid. : 140).

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    se contrapor ao projeto original universalizante da sociologia8. Relacionar essa “ proposta

     periférica” com a proposta de Roberto Schwarz primeiramente esposada no ca pítulo

    inaugural de Ao Vencedor as Batatas (2002) permite, assim, elucidar minha proposta de

    abordagem da obra de Sílvio Romero.

    Roberto Schwarz, em crítica à análise de Alfredo Bosi da suposta “triagem” que

    o liberalismo teria sido submetido pelas classes dirigentes, afirma a necessidade de pensar

    a questão da adequação/inadequação do liberalismo tendo em vista o caráter global do

    capitalismo, como fica claro no trecho abaixo:

    O mal-estar brasileiro em relação às idéias modernas, de que o sentimentode inadequação do liberalismo é uma instância, pertence a essa esfera dos

    efeitos globais, de incompatibilidade e co-presença de pontos de vistaengendrados no interior e em diferentes lugares de um sistematransnacional, que a noção de filtragem, com o seu viés localista, tende adesconhecer. O próprio Bosi encontrou o problema ao lembrar a explicaçãode Marx sobre a plantation norte-americana, cujos proprietários são ditoscapitalistas a despeito do trabalho escravo, pois se trata de "anomalias nointerior de um mercado mundial assentado sobre o trabalho livre"(Schwarz, 1999: 84)

    Segundo Schwarz, a funcionalidade das ideias liberais e o “disparate” frente à estranheza

    mediante a condição sui generis do Brasil perante a modernidade, devido a escravidão,

    não seriam pólos apartados mas sim se conjugariam na conformação da problemática

    tratada (Idem: 83). O “mal-estar” que o autor indica nas linhas reproduzidas acima,

    derivado do aspecto global que o capitalismo já assumia desde o século XVI e a

    consequente posição “desigual e combinada” da periferia frente ao centro da modernidade

    internacional seria condição incontornável posto que calcado em condições objetivas e

    estruturais que não se modificariam apenas com o uso mecanicista do liberalismo.

    Concordando com o autor, podemos afirmar que a tensão presente na obra de Sílvio

    Romero permite perceber esse delicado quadro de tentativas de leituras afinadas ao

    grandes centros como um exercício ativo de manejo intelectual. Por outro lado, as

    “condições objetivas” que a realidade brasileira impunha a Sílvio Romero deram limites

     bem delimitados ao alcance de suas formulações.

    8 Em relação à análise do processo de formação das teorias sociológicas clássicas, essas duas correntes

    sociológicas, além de “provincializar a Europa” –  transcendendo o chamado de Chakrabarty (2000) – ,indigenizaram-na (cf Alatas, 2001: 01)

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    A conjugação das duas propostas, entretanto, necessita de uma mediação

    específica, principalmente em relação a questão local-global. O contexto, nas duas

     perspectivas, desempenha papel analítico central na construção do conhecimento –  no

    caso da proposta de Alatas –  e como proposta teórica-metodológica de estudo das nossas

    formulações ideológicas  –   no caso de Schwarz. Torna-se possível aproximar as duas

     propostas por meio da mobilização do conceito de relevância, defendido por Alatas

    (2001). Esse conceito ancora-se na ideia de que nas ciências sociais uma visão crítica em

    relação aos modelos analíticos “importados” e a tentativa de buscar soluções originais e

    locais para pensar os problemas teórico-metolológicos nos contextos nacionais

     propiciariam saídas heurísticas eficazes e realizariam, de fato, uma generalização afastada

    do signo da dominação colonial e em bases científicas mais acuradas.

    Os dois discursos alternativos em tela e a síntese, via Farid Alatas, levando-se em

    conta suas diferenças não desprezíveis, buscam saídas para o universalismo

    hierarquizante, escapando das armadilhas do discurso pós-moderno, o qual sinaliza para

    a pulverização da razão em “razões” conjecturais (Lyotard apud Archer, 1991: 140); ou

    seja, esses discursos constituem uma saída racional e realista para a questão da

    globalização e de sua respectiva geopolítica do conhecimento. A questão da relevância

    aponta também para a necessidade de se buscar, historicamente, as bases de construção

    da sociologia, entendendo que a produção de conhecimento, como em outras esferas da

    vida humana, é fruto de processos históricos específicos.

    Em artigo recente, João Marcelo Maia (2015) aplica essa concepção de Alatas ao

    estudo do pensamento de Guerreiro Ramos. A aproximação propõe uma abordagem

    transnacional do estudo do autor de  Redução Sociológica  e, com isso, inserir seu

     pensamento na dinâmica mais ampla, global, das formulações sociológicas do pós-guerra.

    A partir desse estudo de caso, Maia propõe algumas possibilidades de pesquisa dentro do

    campo de pensamento social que tentem dar conta da mobilização dos produtos

    intelectuais periféricos dentro de uma lógica relacionada ao movimento mais amplo das

    formulações teóricas ocidentais, como fica explicitado no trecho que reproduzo em

    seguida:

    Tal perspectiva implica desfazer as barreiras e separações entre a históriado pensamento social brasileiro e a história das ciências sociais globais,

    fato que se reflete na própria estrutura de ensino de graduação em nosso

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     país, em que, usualmente, o pensamento social é ensinado fora das cadeirasde Sociologia, permanecendo à parte e sem ser necessariamente vinculadocom o estudo das ideias modernas sobre o social. De certa maneira, essaseparação reflete a polêmica em torno do estatuto científico dos textosagrupados na rubrica do “pensamento social” (Maia, 2015: 54)

    O conceito de relevância, como mobilizado por Maia, também permite fugir do

    essencialismo que perspectivas calcadas na ideia de originalidade das experiências

    nacionais ocasionaram. Pensado como mediação entre as propostas de indigenização e

    autonomização da sociologia, ambas essencialistas, o conceito de relevância permite

    escapar do que o autor caracteriza como um “orientalismo”9 às avessas, pois a aceitação

    da peculiariedade das experiências nacionais não necessariamente deve negar a relação

    das experiências intelectuais da periferia com o movimento global mais amplo (Alatas,

    2001: 60-61). Nesse sentido, a perspectiva levantada por Alatas, na busca dos nexos locais

     para a reflexão sociológica, possibilita compreender a aclimatação de Sílvio Romero

    dentro de um movimento mais amplo da expansão do pensamento liberal e dos ajustes

    que o liberalismo sofreu, também, nas experiências centrais10. Mais do que uma questão

    de acuidade ao “reproduzir” tal ou qual modelo intelectual ou político, as tensões das

    leituras do liberalismo presentes na obra de Sílvio Romero podem ser percebidas como

    embebidas em dilemas que suas versões mais “fidedignas” também enfrentaram, mas

    dilemas de outra ordem. Esse descompasso entre “ordens” diferentes, mais do que fruto

    de leituras menos sofisticadas dos intelectuais fora do centro, podem, talvez, serem

    entendidas na truncada (e reflexiva) relação entre ideias e contextos na qual procuram se

    fazer valer.

    Visto isso, construí a dissertação em três capítulos: no primeiro deles procuro

    sugerir a presença de uma cristalização de determinado enviesamento da recepção do

    trabalho de Sílvio Romero que parte de problemáticas surgidas no próprio cenário

    intelectual fluminense do último quartel do século XIX. Tento demonstrar como

    determinada sensibilidade crítica, naturalista, defendida por Sílvio Romero causou

    9 A referência aqui é ao trabalho clássico do teórico da literatura Edward Said e sua obra fundadora doschamados Estudos pós-coloniais. Cf. Said, 2011.10 Convém relembrar o papel que o liberalismo pensando por Stuart Mill teve na “domesticação” das

     perspectivas liberais no contexto inglês, esvaziando a perspectiva de uma ação do mercado livre decontingenciamentos outros, como aquela ligada à uma concepção liberal atreladas às máximas

    evolucionistas que enfatizavam o papel positivo da “competição” livre das intervenções do aparelhoestatal. Sobre o tema, conferir Bellamy, 1994.

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    reações contrárias no grupo de letrados da capital federal que acarretaram interpretações

    que permaneceram, em menor ou maior grau, na bibliografia posterior que se debruçou

    sobre seu legado crítico e interpretativo, principalmente as que localizaram sua trajetória

    intelectual como essencialmente marcadas pela pecha de autor rebelde, contraditório,

    assistemático e atravessado por impulsos psicológicos incontornáveis. Vale mencionar

    que não procuro, ao contrário, uma estabilização das tensões em sua trajetória, visto que

    o próprio autor percebeu essa marca que recebeu de seus adversários e tentou ele mesmo

    construir sua justificativa retrospectiva (cf. Romero, 1913) mas tento compreender os

    tensionamentos de seus esforços intelectuais em relação com o momento político-social

    do país.

    Já no segundo capítulo, procuro analisar a “aclimatação” do liberalismo

    spenceriano no Brasil feita por Sílvio Romero, baseando-me principalmente em seus dois

    livros de debate doutrinário mais contundentes nos anos iniciais da República: Doutrina

    contra Doutrina (1893) e  Parlamentarismo e Presidencialismo no Brasil  (1894)11. No

     primeiro, Romero realiza um embate com o positivismo, criticando a forma com que a

    doutrina teria se desenvolvido no Brasil, defendendo, em contrapartida, uma interpretação

    do país baseada no evolucionismo de Herbert Spencer. Já o segundo é uma compilação

    de sua correspondência ativa com Rui Barbosa concebida por Romero como obra

    independente em que se esforça em empreender defesa sistemática do modelo

     parlamentarista em detrimento do presidencialismo baseado numa metodologia calcada

    novamente em Spencer, mas não de forma ortodoxa. A análise dos dois livros se faz

    conjuntamente com a reflexão sobre sua curta atuação parlamentar e seu papel de relator

    do projeto de revisão do Código Civil. Para tal reflexão, mobilizo na discussão do capítulo

    uma série de intervenções parlamentares, correspondências e outras fontes primárias que

     permitem ver os movimentos do autor na dinâmica política “prática” do período. Osdiscursos de sua atuação como deputado federal entre 1900 e 1902 que utilizo aqui foram

    compilados em forma de livro e editados pela Livraria Chardron e lançados em Portugal,

    em 1904. Parte da sua correspondência do período que viveu no Rio de Janeiro se

    encontra nos arquivos da Fundação Casa de Rui Barbosa e disponíveis em versão

    digitalizada. Outra gama de correspondência foi anexada a biografia de Sílvio Romero,

    11

     Utilizei os textos em suas edições primeiras. Quando alguma edição posterior for mobilizada faço asindicações necessárias.

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     Itinerário de Sílvio Romero, assinada por Sylvio Rabelo (1967). Acredito que o esforço

    de unir o debate doutrinário feito pelo crítico sergipano conjuntamente com suas

    intervenções públicas  permitam perceber as tensões que a conjuntura de organização do

    modelo republicano e federalista gerava nos esforços intelectuais do autor e como uma

    série de impasses a serem resolvidos pela classe política do período, como a questão da

    representação política e papel do Estado, acabaram por influenciar uma recepção

    específica do liberalismo de corte spenceriano.

    O terceiro capítulo intenta um movimento analítico complementar com o do

    segundo capítulo da dissertação, tentando localizar uma ligação da proposta estética

    concebida para a análise da literatura por Sílvio Romero com um método específico de

    interpretação social do país e que também embasou suas concepções sobre o momento

     político dos anos iniciais da república. Em outras palavras, tento um breve

    acompanhamento da proposta de "aclimatação" do cientificismo feita pelo crítico

    sergipano, que tanto na questão da crítica literária em si quanto nas análises sobre a

    Constituição de 1891 e a República se conformaram como um suposto método científico

     balizado pela fidelidade ao “caráter nacional” e a adaptabilidade não-servil ao fluxo de

    concepções e teorias vindas da Europa.

    Antonio Candido foi o primeiro autor que tentou entender, em estudo sistemático,

    as tensões da proposta crítica romeriana12. Como salienta no prefácio a segunda edição

    de O Método Crítico de Sílvio Romero  (2006), uma das conclusões que alcançou ao

    analisar a obra crítica do autor sergipano foi a relativa fidelidade de sua proposta teórica

    desde seus estudos iniciais sobre a literatura até a consolidação de seu projeto de crítica

    literária que se concretizou em História da Literatura Brasileira (Candido, 2006: 15)13.

    Entretanto, Candido salienta que, apesar desta fidelidade na proposta de crítica, a ideia de

    uma coerência do autor seria exagero e não deveria ser levada em absoluto (Idem: 14).

    Em parte o trabalho que apresento aqui é tributário dessa percepção de Antonio Candido,

    12 Sobre a influência do método de Sílvio Romero para o próprio Antonio Candido, ver Prado, 2009. Sobrea perspectiva crítica de Antonio Candido, salientando seu método comparativo, ver Ewbank, 2014.13 Ao analisar a relação da proposta crítica de Antonio Candido e de Sílvio Romero, Arnoni Prado afirmaque “por mais inadequada que se configure a Antonio Candido a fisionomia literária do crítico projetado

     por Sílvio Romero, é  –   digamos  –   no preenchimento de seus intervalos, na iluminação gradual dosconteúdos implícitos no que Sílvio sugeriu, mas não fez avançar, esboçou, mas não soube exprimir,

     pressentiu, mas não conseguiu formular; é na discussão integradora desses intervalos que as análises de

    Antonio Candido redimensionam a contribuição positiva de seus desequilíbrios” (Prado, 2009: 107) 

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    inclusive sobre a necessidade de entender a ideia de crítica em Sílvio Romero “mediante

    interpretação que complete a investigação nos textos pela demonstração dos vínculos com

    o momento, em cuja dinâmica ele quis inserir o seu imenso esforço” (Idem: 15). Caso

    tenha alcançado minimamente êxito na tarefa que assumi nesta dissertação, pretendo

    demonstrar como certas características de sua percepção crítica informaram também suas

    análises sociopolíticas e sofreram influência da conjuntura que tentava estabilizar numa

    interpretação e também num prognóstico de ação para o futuro. 

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    CAPÍTULO 1 –  A CRÍTICA DA CRÍTICA SOBRE SÍLVIO ROMERO

    “A luta pela existência na literatura e naarte tem dois momentos capitais: um que

    é feito pelo próprio escritor em sua vida, eoutro que é feito pela consciência públicae pela história depois de sua morte.” SílvioRomero,  História da Literatura Brasileira. 

    O presente capítulo objetiva uma análise da recepção da obra de Sílvio Romero

    na fortuna crítica, perseguindo algumas permanências interpretativas em torno da

    mediação realizada pelo autor frente as teorias cientificistas europeias. A hipótese que

    guia esse movimento analítico é de que certa percepção sobre a atuação intelectual do

    crítico sergipano surge no momento de institucionalização do ofício letrado no país, em

    torno da tentativa de constituição de uma abordagem da vida literária para além dos

     parâmetros do nativismo romântico. O embate pela afirmação do modelo crítico objetivo-

    naturalista, por conseguinte, precipitou o embate entre sociabilidades intelectuais

    distintas. A postura naturalista de Romero, eivada da ideia de combate e evolução

    doutrinária, acabou conformando também um ethos que causou desconforto no ambiente

    intelectual fluminense do final do século XIX. A raiz do desconforto se localiza no

    encontro tensionado entre uma sociabilidade cortesã anterior, já estabelecida na cena

    intelectual brasileira do oitocentos, norteadas pela ideia de “bom gosto”, “dom” e

    “capacidade individual” frente a uma “ética intelectual” informada pela necessidade de

    superação e de escrutínio das contribuições dos autores brasileiros  –  vivos ou mortos.

    Desse desconforto e estranhamento derivaram algumas críticas sobre a atuação de

    Romero que informaram às interpretações sobre o legado do autor. Partindo da recepção

    da crítica romeriana à obra de Machado de Assis, por seus adversários intelectuais, tento

    descortinar algumas continuidades nas interpretações sobre sua obra já no século XX e,

    com isso, abrir outras possibilidades de leitura de suas contribuições.

    1.1 –  A morte da polidez

    O ambiente intelectual fluminense em que viveram, conviveram e combateram

    Sílvio Romero, José Veríssimo, Machado de Assis entre outros exibia uma característica

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    muito marcante: a sua sociabilidade, que se regia por um modo cortês de interação

    (Aguiar, 2012). Praticamente a concretização em termos de conduta pública e intelectual

    do “tédio à controvérsia” de Conselheiro Ayres, notória peça da ficção machadiana.

    Assim, todas as disputas deveriam manter a boa convivência e a harmonia entre os

     participantes, ensejando um ambiente agradável e longe da imagem de campo de batalha

    intelectual que tanto agradava a Sílvio Romero. A criação da Academia Brasileira de

    Letras (1897), tentativa de especialização do ofício literário14, e a partir de seu surgimento

    também ambiente preferencial da elite intelectual no Rio de Janeiro, pode nos trazer

    informações importantes sobre a sociabilidade nesse contexto. Machado de Assis, ao

    contrário de Romero, pregava o distanciamento e a independência do literato frente às

    questões políticas do seu tempo. Em um trecho de seu discurso de inauguração daAcademia, ele diz:

     Nascida entre graves cuidados de ordem pública, a Academia Brasileira deLetras tem que ser o que são as instituições análogas: uma torre de marfimonde se acolhem espíritos literários, com a única preocupação literária, ede onde estendendo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto.Homens daqui podem escrever páginas de história, mas a história se faz láfora (Assis apud Sevcenko, 1983: 83).

    Romero, ao contrário, defendia que o homem de letras deveria ser atuante, quase

    um “militante” em torno das questões caras à realidade social e cultural do país, tendo ele

    mesmo defendido esse tipo de fazer literário na sua pequena mas nada discreta atuação

    dentro da Academia. Ao comentar sobre a postura do homem de letras frente às “pugnas

    e dores da pátria”, delineia assim a postura intelectual que considera adequada:

    E' prova de desamor deixal-a gemer ao peso das facções e não ter para ellasiquer uma palavra de consolação. Entrar no meio dos que pelejam, travar

    das armas da batalha, quo para muitos de nós é apenas a palavra falada ouescripta, não é acto de heroísmo, chama-se apenas o cumprimento estrictode um dever. Por nossa parte temol-o cumprido sem pretenções e semalardo, discutindo, repetidas vezes, os homens o os factos brasileiros nosúltimos oito annos. Não nos glorificamos disto, que se nos afigurava, eafigura ainda hoje, mera obrigação. Erramos, por certo, em muitasoccasiões, mas erramos de boa fé, pelo muito que amamos este formoso paiz, onde nascemos, d'onde nunca sahimos um momento, d'onde não

    14

     Sobre a Academia Brasileira de Letras e a tentativa de Machado de Assis de criação de um ambientemais livre e autônomo para os homens de letras no Brasil, ver Miskolci, 2006.

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    desejáramos jamais sahir, e que nunca trocaríamos por outro, se nos foradada a liberdade da escolha. (Romero, 1897: XI-XII)

    O processo de diferenciação em relação à intelectualidade da capital é muito

     presente na trajetória de Romero, desde seus primeiros escritos, para o qual o ambiente

    intelectual fluminense do período e sua homogeneização representavam um fato

    desestimulante para a individualidade e a crítica renovadora (Romero, 1897)15. Essa

     busca pela novidade é justificada com base na necessidade de se criar um sistema de

     pensamento organizado, lógico e unitário que possa dar conta das realidades do Brasil em

    todos os seus primas. Em seu livro de crítica a Machado de Assis, Sílvio Romero salienta

    as reticências da crítica literária do período em enfrentar de forma objetiva as letrasnacionais. Nas palavras do crítico sergipano, a recepção a obra de Machado de Assis não

     pretendeu um exame detido de sua importância para a cultura nacional. Em suas palavras:

    Tem recebido muitos elogios, quantos delles perfeitamente banaes; masnão tem tido analyses ; tem sido encomiado, porém não tem sido estudado.E de tanto é que um homem de seu merecimento ha mister. Quem já oestudou á luz de seu meio social, da influencia de sua educação, de sua psychologia, de sua hereditariedade physiologica e ethnica, mostrando aformação, a orientação normal de seu talento? (Idem: 06)

    Maurício Aguiar (2012) indica que o naturalismo que informou a geração de 1870,

    e Sílvio Romero em particular, no que tange ao combate intelectual à polidez e ao tato,

    funcionou como forma de afirmação de um modelo intelectual-crítico que possuía a

    competição como característica desejável (Idem: 75). Logo, a sociabilidade cortesã se

    transformava em alvo privilegiado do autor sergipano. Fato esse que pode ficar mais

    enfaticamente demonstrado ao se lançar luz a certos títulos de obras do autor, como por

    exemplo Doutrina contra Doutrina e a sua adesão ao evolucionismo de Spencer e suas

     propostas de ampliação de influência da ideia de Struggle for life para além do mundo

     biológico. Em trecho emblemático dessa posição, o autor sergipano afirma

    categoricamente, com sua famosa agressividade, o seu modelo intelectual privilegiado:

    não importa isto uma aprovação a certos absenteísmos muito do gosto dosânimos fracos, que entendem de salvaguardar a própria pureza, fugindosistematicamente das tentações. É proceder que nunca aplaudiremos. A

    15 Roberto Ventura indica que os ataques de Sílvio Romero a Machado de Assis e a intelectualidade da

    capital se inserem no escopo maior de combate a qualquer tipo de oligarquia, incluindo as “panelinhas”literárias. Cf, Ventura, 1991.

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    virtude prova-se no meio da luta. A sociedade não é um convento demonjas. Que grande mérito advém em não se cobrir do pó a quem não saià liça do combate e deixa-se tranquilamente ficar em doce e sossegadoaposento? Devemos todos, homens de letras ou não, interessar-nos pelas pugnas e pelas dores da pátria. (Romero, 1897: XI)

    Apesar de Aguiar desconsiderar o uso das categorias simmelianas de reserva e as

    explanações sobre o caráter “blasé” próprios da modernidade16  nas grandes cidades

    (Simmel, 2005) devido as diferenças entre a Berlim do início do século, locus  da

    construção de seu ensaio, e o Rio de Janeiro dos últimos anos do século XIX, acredito

    que as categorias podem funcionar para se entender a sociabilidade intelectual do período.

    A Berlim da recém-unificada Alemanha e o Rio de Janeiro da belle époque guardam

    diferenças enormes em demasiados aspectos. Porém, os dois contextos se apresentam

    como enclaves urbanos em vias de modernização dentro de uma configuração nacional

    que guarda pouca correspondência com os modelos de revolução burguesa tidos como

     paradigmáticos para se pensar as experiências ocidentais. O Rio de Janeiro da virada do

    século XIX, nas palavras de Nicolau Sevcenko, se mostrava da seguinte maneira:

    compasso frenético com que se definiam as mudanças sociais, políticas eeconômicas” concorrendo para a “aceleração em escala sem precedentes

    do ritmo de vida da sociedade carioca. A penetração intensiva do capitalestrangeiro[...] vem corroborar e precipitar esse ritmo, alastrando-o numaamplitude que arrebata todos os setores da sociedade (Sevcenko, 1983: 26-27)

    O diagnóstico esposado acima apresenta paralelos com o cenário descrito por Simmel em

    seu ensaio que tenta dar conta das mudanças que a monetarização trouxe a vida urbana

     berlinense. Como indica o autor alemão, lá, como aqui, pode se notar a tensão

    modernidade/tradição, como fica claro no trecho abaixo:

    o tipo do habitante da cidade grande  —  que naturalmente é envolto emmilhares de modificações individuais  —  cria um órgão protetor contra odesenraizamento com o qual as correntes e discrepâncias de seu meioexterior o ameaçam: ele reage não com o ânimo, mas sobretudo com oentendimento, para o que a intensificação da consciência, criada pelamesma causa, propicia a prerrogativa anímica. (Simmel, 2005: 580)

    16

      Aguiar mobiliza principalmente dois momentos da obra simmeliana para construir sua pesquisa: osensaios sobre a sociabilidade (2006) e o estudo sobre Schopenhauer e Nietzsche (2011).

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    Assim, continua Simmel, para encontrar refúgio mediante o aumento intenso do

    ritmo e dos estímulos próprios do processo de modernização e monetarização os

    indivíduos tendem a se acomodar aos conteúdos e à forma da vida na cidade grande

    renunciando a reagir a ela  —   a autoconservação de certas naturezas, sob o preço de

    desvalorizar todo o mundo objetivo, o que, no final das contas, degrada

    irremediavelmente a própria personalidade em um sentimento de igual depreciação.

    (Ibidem: 582) Com isso, Machado de Assis, Veríssimo e seus “aliados” demonstram esse

    esforço de lançar as bases de um ambiente intelectual livre do peso da atuação polemista

    e incisiva que Sílvio Romero representava.

    A primeira reação a crítica de Sílvio Romero ao escritor fluminense se encontra

    na obra Vindiciae: o Sr. Sílvio Romero crítico e philosopho (1899) de Lafayette Rodrigues

    Pereira. Nesta obra, o Conselheiro Lafayette pretende rebater as críticas de Romero a

    Machado e define assim a diferença entre os dois homens de letras:

    Conhecemos a victima. tem espirito elegante com as delicadezas de umfilho da cidade de Minerva, fino observador das fraquezas e ridiculos doseu tempo, engenhoso e habil em urdir contos e historias que encantam e

     prendem pelo interesse e yivacidade do entrecho e pelo desenho firme elimpido das figuras. Conhecemos tambem o sacrificador: barbaro que veiolá das regiões Cymmerias. Estudou rhetorica em alguma escola de provincia; fez um grosso peculio de theorias, de formulas, de canones, pilhados aqui, alli, que, -embora elle os diga novos, têm, pelo tom e geitocom que são expostos, uns resaibos, uns olores de Quinliano, de Vida, deSoares Barbosa. Sem embargo de longa residencia na cidade, conservaainda muito da primitiva vegetação; falla uma lingua dura, de umagrammatica impossivel, contaminada da ferrugem de aldeia. (Pereira,1899: 05)

    Lafayette Rodrigues Pereira, que assina o livro sob a alcunha de “Labieno”, tem

    nesse opúsculo sua única produção literária. Apesar deste livro não ter tido repercussão

    grande dentro do círculo literário fluminense do período, posto que não era figura literária

    de peso, apesar de político com longa e prestigiosa carreira que remonta ao Império, seus

    argumentos teriam reverberação para além de seus esforços17. “A urbanidade é também

    17

     Lafayette Rodrigues Pereira viria a entrar na ABL, por exemplo, em 1909, sucedendo o próprio Machadode Assis, recém-falecido em momento já de início da crise da instituição (crise essa que atingiria seu clímax

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    uma qualidade literária!”. José Veríssimo condensa, assim, o argumento em torno do qual

    constrói sua crítica em torno da obra de Sílvio Romero (Veríssimo, 2001: 273). Ele

    “acusou o golpe”, respondendo e construindo boa parte de sua crítica de forma reativa,

    num movimento de acusação e defesa de argumento. Pode-se notar, nesta conjuntura, o

    nascimento da representação de Sílvio Romero como uma personagem difícil no

    ambiente intelectual do Rio de Janeiro, aparecendo como polemista fervoroso e dono de

    uma retórica agressiva, com uma personalidade egocêntrica dada com muita frequência

    as autocitações (Idem: 241) sem pouco apreço e respeito, portanto, à reserva, rotinização

     básica derivada do caráter blasé (Simmel, 2005) que caracterizou os esforços do

    mainstream intelectual fluminense do período. Convém lembrar que a polêmica que deu

    origem às críticas de Veríssimo a Romero tinha como cenário os primeiros anos deformação da ABL e a recepção crítica em torno do romance machadiano. Nesta

    conjuntura, antigas questões referentes à crítica literária e ao caráter nacional tomaram o

    centro dos debates e propiciaram grandes polêmicas. Como exemplo, podemos citar o

    seguinte ataque de Veríssimo a Romero:

    Eis a que chegou nas mãos incapazes do Sr. Sílvio Romero a “críticacientificista” como ele próprio chama a sua: à rebusca de coincidências deopiniões, de plágios e reminiscências com cujo achado impavam de gozo

    críticos das velhas escolas que o Sr. Sílvio Romero veio justamentesuplantar e destruir. Não pode haver mais estupenda revelação deincapacidade critica. Igual só aquela de confrontar os versos patuscos equejandas chulices de Tobias Barreto com o fino e percuciente humorismode Machado de Assis (Veríssimo, 2001: 267).

    Sua suposta incoerência e o ardor e ferocidade para com as querelas em que esteve

    envolvido marcaram uma tradição de análise que por muito tempo balizou o debate sobre

    sua contribuição para o pensamento social brasileiro. José Veríssimo, mediante essequadro, parece inaugurar uma vertente interpretativa sobre a obra do autor ao se

     posicionar antagonicamente em relação à crítica literária romeriana, do que o trecho

    abaixo citado constitui exemplo emblemático:

    [...] ele não é uma natureza complicada e difícil, antes clara, espontânea eaberta. Mas também incoerente, impulsiva, sem medida nemcomedimento. Isso explica as suas incoerências, a sua inconstância de

    em 1914) marcada pela descaracterização dos membros ingressantes, muitos deles pouco ou nada ligadosa vida literária brasileira. Sobre o tema, ver Rodrigues, 2003.

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    caráter e de espírito [...] se não se emenda, é um candidato ao delírio de perseguição (Veríssimo, 2001: 244)

     Nota-se claramente no trecho a desqualificação de Romero transcendendo ao arcabouço

    teórico e crítico utilizado por ele e fixando-se nas suas características pessoais e

     psicológicas. Artifício comum no mis-en-scéne intelectual da época, essa característica

    tão enfatizada pela crítica ao autor sergipano parece se enquadrar em uma salva guarda

    de determinada forma específica de fazer crítico18.

    Araripe Junior, outro expoente da crítica literária naturalista do século XIX,

    também se esforçou em emitir juízos críticos sobre a postura de Sílvio Romero no

    ambiente intelectual fluminense do período, realizando uma série de escritos publicados

    na Revista Brasileira entre agosto e novembro de 1899 intitulados de Sylvio Romero –  

     Polemista. Tentando debater o juízo pessimista que Romero atribuía ao futuro do povo

    18 Rocha (2004), em ensaio que aborda as possiblidades de releitura das proposições de Sílvio Romeroacerca da obra machadiana classifica o embate dele com Machado como um ataque, pelo primeiro, de uma

     postura típica de “homem de letras cordial” (Rocha, 2004: 261). A interpretação do ensaio e do livro a que pertence gira em torno de problemáticas da vida intelectual e crítica brasileira sendo vistas sob o prisma da

    cordialidade, aos moldes codificados por Sérgio Buarque. Segundo o autor a condição do homem de letrasno Brasil seria marcada pela cordialidade, sob o risco de, caso contrário, ser excluído dos “círculos deamizade que costumam assegurar visibilidade no sistema intelectual"(Ibidem: 37). Avançando noargumento, Rocha sinaliza para a similaridade na questão da relação intelectuais e o Estado nos casos

     brasileiros e francês mas salienta que, aqui, seguindo a fórmula contida em  Raízes do Brasil,  oembaralhamento entre público e privado criaria intelectuais dependentes do Estado, assumindo cargos defuncionários públicos (como o caso de Machado) mas que não saberiam compreender a função impessoalque o ofício demandaria, ocorrendo consequentemente na capitalização privada dos recursos simbólicos docargo público. Contra essa situação, segundo Rocha, Sílvio Romero se levantaria e basearia sua acirrada econhecida polêmica, pois segundo ele, a característica de mecenato, própria do romantismo sob a égide efinanciamento do Império, seriam características que afetariam a independência do escritor (Idem: 261).Acredito que, por um lado, a tese mereça atenção pois a validade da hipótese da cordialidade e da ideologiado favor na interpretação da sociedade brasileira em geral e na sociabilidade específica em particular possa

    ser frutífera para a montagem de um quadro mais completo da nossa vida intelectual do oitocentos.Entretanto, torna-se necessário matizar que para Sérgio Buarque de Holanda, cordialidade não é sinônimode “civilidade”. Como o autor indica, a polidez significa um mecanismo de defesa perante a sociedade ondeo ritualístico só é mantido ao nível das aparências, na “epiderme” do indivíduo (Holanda, 2013: 147).  Portanto, a tese de que Sílvio Romero combatia Machado porque ele simbolizava a ligação condenável dohomem de letras com o status quo não se sustenta. Além do fato de que Sílvio Romero não era um outsiderem relação a esfera do poder, tendo sido deputado federal com apoio explícito do Barão do Rio Branco (Cf.Silva, 2008), fundador da Academia Brasileira de Letras e relacionado com círculos políticos de prestígiodo Brasil da Primeira República, a hipótese me parece descabida pois mesmo que funcionasse como retóricaapenas e que não se realizasse e aplicasse nem mesmo para seu caso - se especularmos que ela seja correta- as mobilizações contra Machado de Assis não podem ser lidas dessa forma pois outro escritor “funcionário

     público”, Euclides da Cunha, teve grande simpatia e apoio do crítico sergipano, tendo até proferido seudiscurso de introdução à ABL(1896), por mais que esse discurso tenha sido utilizado mais para um ataque

    à Afonso Pena, presidente à época, do que elogio ao autor d´Os Sertões...

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     brasileiro, Araripe Junior ao comentar as análises de Romero sobre a obra machadiana,

    apresenta o seguinte veredito:

    Um phenomeno curioso é o que se nota nesse estudo. Sylvio Romero acada instante declara que mudou de temperamento, amainou as velas eacha-se predisposto a uma grande complacência. Machado de Assis nãolhe parece ser o homem impossível que elle atacava em 1872 e 1880. Temqualidades e representa um bom esforço literário. Todas estas declarações, porém, são illusorias; e o critico que, segundo me parece, não quizconcentrar o seu espirito na obra, já bastante extensa, do autor de BrásCubas, faz resurgir suas antigas antipathias, recorrendo ao seu processo predilecto de esbordoar os outros com essa clava de Hercules chamadaTobias Barreto (Araripe Junior, 1899: 308)

    Localizando o movimento crítico a uma postura de defender sua precedência intelectuale a de seu mestre –  Tobias Barreto –  Araripe Junior cristaliza a predisposição a conjugar

    o temperamento de Romero a seus errôneos juízos críticos. Prosseguindo e encerrando

    seu esforço de compreensão da postura de Romero no ambiente intelectual, Araripe Junior

    condensa de forma irônica sua avaliação do autor:

    Aqui termino esse estudo sobre a personalidade de Sylvio Romero, polemista. Escolhi o traço aggressivo de preferencia aos outros, porque ê asua característica. Deixei um pouco dè lado o philosopho, o homem das

    grandes generalizações sôbre a historia do paiz, porque este não meinteressava tanto; além de que seguindo as suas próprias opiniões, em philosophia os brazileiros por ora pouco valem, por serem talvez um povode mestiços incapazes de produzir um Spinoza ou ainda um Stuart Mill.(Idem: 370)

    O traço agressivo, a suposta falta de compostura e as análises incongruentes são

    traços generalizados nas impressões dos contemporâneos do crítico sergipano. Como

    indica Maia (2012), a sociabilidade cortesã pressupunha a formação de um núcleo

    discursivo que primava por um código que ia além da análise das obras literárias per se,

    sendo mais do que um ambiente de discussão intelectual mas também conformando-se

    como um espaço de trocas simbólicas e convivência que transcendia o fazer específico de

    crítica e atingia outras esferas da vida, como a vida política. Visto isso, considero que a

    dinâmica própria da sociabilidade intelectual do período, as querelas em torno da obra de

    Machado de Assis e as saídas retóricas nascidas nestes debates acabaram por estigmatizar

    Sílvio Romero impedindo uma leitura de sua atuação intelectual como dotada de sentido

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    original e próprio, propiciando assim um bloqueio a percepção do manejo do repertório

    científico do período pelo autor e como esse movimento segue um plano estratégico e

    uma agenda específica de interferência na realidade nacional. Entretanto, sem

    desconsiderar esse aspecto importantíssimo, o movimento de agência política não

    impossibilita a leitura da aclimatação dos referências teóricos como também uma

    tentativa de generalização por meio dos substratos colhidos no contexto específico.

    1.2 –  Horror à realidade?

    Sérgio Buarque de Holanda, em  Raízes do Brasil , seu clássico ensaio de

    interpretação do Brasil, ao discorrer sobre a produção intelectual do século XIX no país

    e em sua respectiva crença mágica no poder das ideias percebe nesse afã um “secreto

    horror à nossa realidade” (Holanda, 2013: 159). Horror combinado, por outro lado, a um

    amor pelas formas fixas e pelas leis genéricas que circunscrevem a realidade complexa e

    difícil dentro do âmbito dos nossos desejos (Idem: 157-158). Como que “dopados” por

    uma crença obstinada na verdade (Idem: 159), os intelectuais brasileiros do período

    esperavam o julgamento, obviamente redentor, da História, do futuro e do desenrolar

    natural dos fatos. Quase meio século após esse diagnóstico, Renato Ortiz salienta a

    aparente implausibilidade das ideias do cientificismo em terras brasileiras e destaca a

    tarefa desses intelectuais de compreender e dar conta da discrepância entre teoria e

    realidade para fornecer um substrato ao apoio cultural e simbólico do Estado em sua

    formação (Ortiz, 2012). Percepções, tanto de Holanda quanto de Ortiz, muito próximas a

    explicitada por Paulo Arantes, quando ao analisar as razões do sucesso do positivismo no

    Brasil, tece uma avaliação que contempla todo o ambiente intelectual da geração que

     presenciou a crise do escravismo e do Império e a consequente assunção do discurso

    modernizante no Brasil. Em seus próprios termos, o autor constrói o seguinte julgamento:

    Um dos grandes lugares-comuns de nossa crítica social consiste emmostrar de mil maneiras o modo pelo qual séculos de escravismo foramdesqualificando a ética burguesa do trabalho e quais as complicações quedaí resultaram para a vida intelectual. Espírito, imaginação e inteligência,quando afloram espontaneamente como um talento que se traz do berço,são virtudes senhoriais; em contrapartida, o esforço que todo conhecimento

    requer fere o decoro exigido de quem não pode ter parte com nada que se

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    assemelhe a trabalho, servil por definição. Assim sendo, é natural quefraseologia altissonante e economia primário exportadora andem juntas.Por outro lado, como a vida das idéias não podia ter entre nós nenhumfuturo cognitivo, resultava  —  como se observou naquele mesmo ensaiomencionado acima —  uma espécie de atonia do espírito, que não excluía, pelo contrário, a mais acelerada vivacidade. Fundidas, passavam pelaquintessência do savoir vivre intelectual. (Arantes, 1988: 190)

    Sob o mesmo prisma da relação “subdesenvolvimento”  –  mundo das letras, Luiz

    Costa Lima (1981), tenta historiar a gênese da crítica literária brasileira. Em chave

    analítica próxima a Sérgio Buarque de Holanda, Renato Ortiz e Paulo Arantes, tenta

    demonstrar como a falta de um público leitor que “consumisse” o que a elite letrada

     produzia acabou por cristalizar no ofício literário do oitocentos brasileiro uma cultura

    intelectual marcada pela instrumentalização do ofício de letras como sinal de distinção

    social (Idem: 09). Segundo o autor, esse fato acarretaria numa separação entre a realidade

    e o ofício desses homens de letras. A discrepância entre o que os intelectuais mobilizavam

    em seus textos, inclusive as teorias “importadas”, e a realidade nacional era o traço

    definidor da relação (ou ausência de relação) entre intelectuais e vida social. Em suas

     palavras a separação é posta nos seguintes termos:

    Em consequência do enlace estabelecido –  textos declamativos, “práticos”,zelosos das insígnias reservadas ao estilo culto, divulgadores de pensamentos muitas vezes mal assimilados  –  resulta quer o desinteresse pelo debate intelectual, quer, e principalmente, o dogmatismo.Desinteresse e dogmatismo são, no caso, verso e reverso da mesmarealidade. Com efeito, como poderíamos imaginar situação diferente se osdefensores de uma posição encontravam suas fontes em correntes de pensamento cujas matrizes se mantinham longe, impedindo o contatodireto dos “discípulos” e o seu acompanhamento das discrepâncias,alternativas e desenvolvimentos do modelo diretor? Além do mais, odesenraizamento do “discípulo” o impedia de tomar a realidade local como

    campo de prova e/ou de retificação das formulações originais. (Idem: 11)

    Prosseguindo em seu argumento, o autor salienta que o caráter pouco criativo de nossas

    formulações intelectuais seria fruto de uma característica “auditiva” da cultura letrada

     brasileira, em que a produção intelectual seria influenciada e teria como destino final a

    alegoria do discurso público (Idem: 08)19, visto que não existia público leitor que

    19

     A tese que Costa Lima sustenta neste capítulo de seu livro  Dispersa Demanda é de que o Brasil possuíuma sociedade baseada na tradição oral, portanto auditiva. Logo, a intelectualidade seria marcada por essa

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    recepcionasse de modo significativo suas obras. Tal fato, aliado ao autoritarismo de

    nossas formas políticas, teria ocasionado uma aversão à teorização em nosso meio

    intelectual. A conjuntura de cristalização do “pensamento impositivo” que marcava nossa

    vida intelectual é exposta em suas palavras dessa forma:

     No caso das nações econômicas e culturalmente periféricas, como a nossa,esta consequência ainda se torna mais intensa, porque o seu horror àteorização própria as deixa duramente sujeitas à teorização alheia. Ou seja,duramente dependentes de outras culturas. Pois, como não há práticaconsequente que não resulte de uma teorização prévia ou paralela, não sercapaz de teorizar significa, no melhor dos casos, adaptar, e, no caso normal,manter um estatuto colonial (Lima, 1981: 15) 

    Quatro visões sobre o mesmo cenário intelectual, o mesmo objeto e, levados em conta

    suas enormes diferenças analíticas, uma face interpretativa comum: a percepção de que

    no oitocentos brasileiro as ideias parecem um corpo estranho à realidade nacional. Essa

     perspectiva, nos termos da crítica literária proposta por Sílvio Romero, encontra em

    Antonio Candido uma importante inflexão conjuntamente com algumas permanências

    interpretativas. Vamos a elas.

    Sílvio Romero é considerado por Antonio Candido um dos principais nomes damoderna crítica literária brasileira, apesar do autor salientar discrepâncias nas suas

    análises e o excessivo enfoque nos fatores externos à literatura. Contudo, Candido, em

     Método Crítico de Sílvio Romero (2006) , enfatiza a relativa estabilidade com que seus

     pressupostos teóricos foram mobilizados na tentativa de proposição de uma crítica

    literária ancorada em pressupostos “objetivos”. Nas palavras de Candido, o projeto de

    uma nova crítica, formalizado na  História da Literatura Brasileira  de Romero, é

    caracterizado nos termos abaixo:

    Se houve, dentro do determinismo crítico oitocentista, uma aplicaçãocoerente de doutrina, esta é sem dúvida alguma a  História da literatura.  Não devemos, é certo, procurar nele um darwinismo, que não é de fato asua característica, mas uma direção evolucionista mais ampla, que envolviaa consideração do meio social. Ora, dentro dele, aplicou conscientementeos princípios que propunha [...] Nem sempre com tato e senso de medida,quase sempre perturbando a “seleção natural do talento” com as

    acomodação de uma tradição basicamente oral em um mundo de predomínio da escrita. Em suas palavras:“a dominância oral” significa que a escolha das palavras e a composição das frases visam a suscitar um

    efeito de impacto sobre o receptor, sem que este se confunda com uma recepção propriamente intelectual”(Lima, 1981: 16)

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    deformações da sua parcialidade; sempre, todavia, dentro do esquematraçado. Os autores são estudados à luz da formação racial, ou do meiosocial, ou da constituição psicofisiológica, ou dos três; o seu ambiente édeterminado, as escolas são estudadas dentro do princípio da evolução e àvista dos fatores sociais. Que mais poderemos exigir de uma hipótese detrabalho –  pois que não passam disso as aplicações dos princípios de outrasciências ao estudo da produção intelectual? (Candido, 2006: 131-132)

    Anos após a esse estudo de sua juventude, Candido salienta como a obra crítica de Sílvio

    Romero exprimiu de forma viva as contradições e impasses do Brasil do século XIX, por

    meio de seu projeto crítico (Candido, 2011: 10). Além disso, a contradição em sua obra é

    matizada e identificada por Antonio Candido como uma ‘dialética sem síntese”. O vaivém

    de seus posicionamentos, a tensão entre os paradoxos de seu pensamento, “visãosimultânea do verso e do reverso” comporiam o mecanismo de sua produção intelectual,

    o que, segundo Candido, poderia ferir a lógica mas enriqueceria o “senso de realidade”

    de sua obra (Idem: 123).

    Entretanto, as contradições de Sílvio Romero parecem ainda marcadas pela

    interpretação da geração coetânea ao crítico sergipano. Caracterizando-as como um

    “ardente e por vezes desordenado movimento entre ideias resultante de um humor

    instável”  (Candido, 2006:19), Candido ainda lança mão de certo psicologismo aoconsiderar as polêmicas em que Sílvio Romero fez parte no contexto de sua afirmação

    intelectual. Essa peculiaridade de sua atuação são transferidas, em certo sentido, para a

    análise da trajetória do mesmo, onde a questão da vaidade e da necessidade de

    autoafirmação intelectual parecem plasmar a análise que o crítico dialético realiza das

    intervenções políticas de Romero, onde seu posicionamento propriamente político nas

    suas obras após a década de 1890 são marcadas pela “coragem”, “destemor”, entre outros

    epítetos (Idem: 129-130).

     No contexto intelectual do ISEB, na década de 1950, Nelson Werneck Sodré, em

    seu livro  A Ideologia do colonialismo  (1984) , trabalha com a perspectiva de que o

     pensamento evolucionista brasileiro, especificamente o de Sílvio Romero, seria fruto de

    uma recepção acrítica e servil do ideário da “metrópole”, reflexo da dominação colonial,

    enfatizando que as teorias adotadas pelos intelectuais brasileiros do fim do século XIX

    seriam marcadas pela condição colonizada do mundo de letras na periferia, como pode

    ser notada no trecho abaixo reproduzido: