por onde andam as crianças: da estrutura sócio-espacial às práticas cotidianas em porto alegre

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE ARQUITETURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL Bianca Breyer Cardoso Por onde andam as crianças? Da estrutura sócio-espacial às práticas cotidianas em Porto Alegre PORTO ALEGRE 2012

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito para obtenção do título de mestre em Planejamento Urbano e Regional em 2012.Autora: Bianca Breyer Cardoso

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE ARQUITETURA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL

    Bianca Breyer Cardoso

    Por onde andam as crianas?

    Da estrutura scio-espacial s prticas cotidianas em Porto Alegre

    PORTO ALEGRE 2012

  • Bianca Breyer Cardoso

    Por onde andam as crianas?

    Da estrutura scio-espacial s prticas cotidianas em Porto Alegre

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Planejamento Urbano e Regional da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito para obteno do ttulo de mestre em Planejamento Urbano e Regional.

    Orientador: Prof. Dr. Eber Pires Marzulo Linha de Pesquisa: Cidade, Cultura e Poltica

    PORTO ALEGRE

    2012

  • Bianca Breyer Cardoso

    Por onde andam as crianas?

    Da estrutura scio-espacial s prticas cotidianas em Porto Alegre

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Planejamento Urbano e Regional da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito para obteno do ttulo de mestre em Planejamento Urbano e Regional.

    Aprovada em BANCA EXAMINADORA:

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Eber Pires Marzulo (orientador)

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Joo Farias Rovati

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Leandro Marino Vieira Andrade

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Ana Marta Goelzer Meira

  • Dedico este trabalho a duas eternas meninas: V Dorinha, exemplo de vida, por ter colorido minha infncia com suas histrias e delcias, e Serena, criana-inspirao, por me deixar colorir um pouquinho da infncia dela.

  • Agradecimentos

    Assim como a experincia urbana, esta pesquisa resultante de percursos e encontros. Fica o agradecimento a todos que contriburam nesta aventura, recheada de aprendizado, sobretudo, por ter fortalecido o entusiasmo em atuar como pensadora da vida nas cidades.

    Agradeo ao meu carssimo orientador, Eber Marzulo, que se tornou tambm um amigo, por ter me acolhido de forma to generosa, incentivando minha trajetria como pesquisadora atravs de um acompanhamento dedicado, criterioso e, ao mesmo tempo, irreverente.

    A todos os professores que, durante a vida, me mostraram que ensinar tambm ter vontade de aprender, em especial ao querido Joo Rovati, pela confiana e pelo exemplo.

    Aos professores examinadores, pela imensa disponibilidade. Em especial Ana Marta Meira, pela interlocuo de um olhar atento para a cidade das crianas. E ao mestre Leandro Andrade que, ainda durante a graduao, me mostrou o significado do processo e da poesia no fazer do arquiteto urbanista.

    A todos os colegas do PROPUR, especialmente esfuziante Thas Menna Barreto, pelo encorajamento e pela parceria. Aos colegas do Grupo de Pesquisa Identidade e Territrio e da Rede Imagem e Identidade e Territrio, pela disponibilidade em trocar ideias, sorrir e crescer junto. UFRGS, minha alma mater, Faculdade de Arquitetura e ao PROPUR, seus professores e funcionrios, pelo amparo institucional.

    CAPES e PROPESQ, pela concesso de auxlio financeiro. Ao Observapoa, por disponibilizar informaes essenciais realizao deste estudo.

    Ao Colgio de Aplicao, pela organizao do Colquio de Estudos Urbanos, que possibilitou o encontro com os informantes. Em especial, aos estudantes da Turma 81, que atravs de seus mapas preencheram um espao vital neste trabalho.

    A todos os meus familiares e aos amigos de longa data, pela convico com que sempre me apoiaram. Em especial Tia Jane, revisora das minhas palavras e grande incentivadora dos meus passos. E s grandes amigas, Michele e Lvia, pelo apoio incondicional.

    Ao meu pai, por todo o afeto, pelas histrias contadas e pela parceria nas andanas da minha infncia.

  • minha Me, pelo amor irrestrito e todo suporte material, pela intensidade com que deseja que seus desejos de me se tornem realidade, pelas horas de conversa ao telefone e por me inspirar a ser, como ela, uma educadora dedicada.

    E, finalmente, ao Enrico, meu grande companheiro, pela proteo e pelo cuidado, pelo amor sempre renovado e por me conferir poder simplesmente ao acreditar, toda minha gratido.

  • Resumo

    O tema deste estudo a relao da criana com a cidade na sociedade contempornea. O problema de pesquisa se constitui a partir dos indicativos de que a fruio do espao urbano, fundada na apropriao da rua como espao de lazer, sofreria importantes transformaes diante das inovaes produtivas, tecnolgicas e comunicacionais da sociedade. A hiptese que a alterao das prticas est associada s diferenas na estrutura scio-espacial, no sendo homognea. Assim, seu objetivo caracterizar a experincia urbana das crianas, identificando as prticas cotidianas e os espaos vividos; alm de evidenciar a relao entre as prticas e as caractersticas scio-espaciais; bem como avaliar a extenso do fenmeno de esvaziamento da rua como espao de lazer. A investigao toma Porto Alegre como lcus de pesquisa, por se tratar de metrpole inserida no contexto da globalizao. A empiria adota como recorte etrio a faixa de 7 a 14 anos, e se estrutura em duas etapas: a primeira consiste na anlise da estrutura scio-espacial do municpio, atravs de dados censitrios que articulam o espao social das famlias ao espao fsico dos bairros, da qual resulta a classificao dos bairros segundo Perfis do Espao Social. A segunda etapa a anlise da inter-relao entre a estrutura scio-espacial de Porto Alegre, em seus aspectos demogrficos, locacionais e morfolgicos, e as prticas cotidianas. Como fontes de pesquisa, alm dos dados censitrios espacializados, esto os prprios habitantes, incorporados atravs de estudo piloto, realizado com estudantes do 8 ano do Ensino Fundamental. A anlise da estrutura scio-espacial aponta que grande parte das crianas porto-alegrenses vive em bairros de baixa renda situados, predominantemente, na periferia da cidade. A investigao das prticas cotidianas indica que a rua continua sendo apropriada para o lazer, embora prevalea como espao de circulao. O recolhimento ao espao privado verificado em todos os estratos e est vinculado, em alguns casos, presena de condomnios fechados. Entre os estudantes, o envolvimento com o espao pblico se d em diferentes nveis, da utilizao mais intensa, passando pelo equilbrio na vivncia pblico-privado, at chegar experincia centrada no privado, que culmina na no-vivncia do espao pblico. A experincia urbana se constitui, portanto, atravs de mltiplas vias, marcadas pelas diferenas scio-espaciais que envolvem o cotidiano de cada habitante. Disto emerge a validade de tomar o recorte etrio como critrio de anlise e definio de polticas urbanas, uma vez que permite a incorporao da dimenso humana e da escala cotidiana prtica do planejamento urbano.

    Palavras-chave: Experincia urbana. Cotidiano. Criana. Estrutura scio-espacial. Bairro.

  • Abstract

    The subject of this study is the children's relationship with the city in contemporary society. The research issue is constituted from the indications that the enjoyment of urban space, based on appropriation of the street as a space for leisure, has undergone important changes in face of the productive, technological and communicative innovations of society. The hypothesis is that the changing of the practices is associated with socio-spatial differences and is not homogeneous. So, the research objective is to characterize the urban experience of children, identifying the everyday practices and lived spaces; show the relationship between the practices and socio-spatial characteristics, and to assess the extent of the phenomenon of deflation of the street as a space for leisure. The investigation takes Porto Alegre, Brazil, as locus of research, because of its condition of metropolis into the context of globalization. The empirical study adopts as age cut the range from 7 to 14 years, and is divided into two stages: the first is the analysis of socio-spatial structure of the city, through census data that articulate the social space of the families with the physical space of the districts, which results in the districts classification according the social-space profiles. The second step is the analysis of the inter-relationship between the socio-spatial structure of Porto Alegre, in their demographic, locational and morphological features, and everyday practices. As research sources, in addition to spatialized census data, are the inhabitants, incorporated through a pilot study with 8th grade students of elementary school. The analysis of socio-spatial structure shows that most children at Porto Alegre live in low-income neighborhoods, mostly located on the suburbs of the city. The investigation about everyday life indicates that street is still appropriate for leisure, although prevails as circulation space. The retreat into private space is found in all strata, and it is linked, in some cases, with the presence of gated communities. Among students, engagement with public space is established at different levels, from more intensive use, through the balance in public-private experience, to the experience focused on private, culminating in the non-experience of public space. The urban experience is constituted, therefore, through multiple ways, marked by socio-spatial differences surrounding the daily life of each inhabitant. Hence the validity to consider the age cut as an analysis and defining criterion of urban policies, especially because it allows the incorporation of the human dimension and of the everyday life scale into the urban planning practice.

    Keywords: Urban experience. Everyday life. Children. Socio-spatial structure. Neighborhood.

  • Lista de Ilustraes

    Ilustrao 1 Estrutura da dissertao ................................................................................................. 19

    Ilustrao 2 O aprofundamento da experincia espacial ................................................................... 27

    Ilustrao 3 Diferenas nos limites da atuao urbana de meninos e meninas ................................ 30

    Ilustrao 4, Ilustrao 5 e Ilustrao 6 A essncia da cidade da infncia consagrada pela arte .... 32

    Ilustrao 7 Prticas cotidianas que delimitam lugares da infncia ................................................... 33

    Ilustrao 8 Padres de utilizao do espao urbano em diferentes tempos ................................... 36

    Ilustrao 9 Cruzamento entre prticas espaciais das crianas e caractersticas da famlia ............ 41

    Ilustrao 10 e Ilustrao 11 Padres de sociabilidade marcados pela diferenciao de classe ..... 43

    Ilustrao 12 e Ilustrao 13 Oposio entre espao privado e espao pblico ............................... 43

    Ilustrao 14 Elementos que compem o sistema urbano ................................................................ 48

    Ilustrao 15 Faixas de envolvimento: as diferentes escalas urbanas .............................................. 48

    Ilustraes 16, 17 e 18 O paradigma da liberdade nas ruas de Nova York ...................................... 50

    Ilustraes 19, 20 e 21 O paradigma da proteo nas New Towns americanas .............................. 52

    Ilustraes 22, 23, 24 e 25 O contraponto entre liberdade e proteo nos diferentes tecidos ......... 52

    Ilustraes 26 e 27 A atualizao dos paradigmas............................................................................ 53

    Ilustrao 28 Diagrama conceitual do estudo .................................................................................... 57

    Ilustrao 29 Porto Alegre como lcus de pesquisa .......................................................................... 59

    Ilustrao 30 Mapa dos bairros de Porto Alegre ................................................................................ 61

    Ilustrao 31 Nveis de escolaridade por bairro ................................................................................. 68

    Ilustrao 32 Nveis de renda por bairro ............................................................................................ 68

    Ilustrao 33 Classificao dos bairros segundo os Perfis do Espao Social ................................... 69

    Ilustrao 34 Bairros do Perfil 1: escolaridade e renda altas ............................................................. 70

    Ilustrao 35 Bairros do Perfil 2: escolaridade alta e renda mdia .................................................... 71

    Ilustrao 36 Bairros do Perfil 3: escolaridade e renda mdias ......................................................... 72

    Ilustrao 37 Bairros do Perfil 4: escolaridade mdia e renda baixa ................................................. 73

    Ilustrao 38 Bairros do Perfil 5: escolaridade e renda baixas .......................................................... 74

    Ilustrao 39 e Ilustrao 40 Perfis do Espao Social e Tipologia Scio-ocupacional...................... 75

  • Ilustrao 41 Diagrama das camadas: Estrutura e Prticas .............................................................. 78

    Ilustrao 42 Perfil etrio da populao de Porto Alegre nos ltimos 40 anos ................................. 81

    Ilustrao 43 Comparativo entre as faixas etrias da populao de Porto Alegre ............................ 81

    Ilustrao 44 Distribuio por faixa etria da populao de Porto Alegre em 2000 .......................... 82

    Ilustrao 45 Perfis de bairro e percentuais de crianas de 7 a 14 anos .......................................... 84

    Ilustrao 46 Representatividade dos Perfis segundo nmero de residentes de 7 a 14 anos .......... 85

    Ilustrao 47 Perfis de bairro e aspectos locacionais ........................................................................ 86

    Ilustrao 48 Perfis de bairro e Vilas Irregulares ............................................................................... 88

    Ilustrao 49 Perfis de bairro e Tipologia Habitacional Predominante .............................................. 91

    Ilustrao 50 Perfis de bairro e Condomnios Fechados ................................................................... 93

    Ilustrao 51 Perfis de bairro, Shoppings, Escolas, Praas e Parques ............................................. 94

    Ilustrao 52 Espacializao dos tipos de tecido urbano, segundo classificao prpria ................ 97

    Ilustrao 53 Referncia para o mapeamento de espaos vividos ................................................. 102

    Ilustrao 54 Exemplo do mapa dos espaos vividos apresentado aos estudantes....................... 103

    Ilustrao 55 Perfis de bairro e localizao da moradia dos respondentes .................................... 104

    Ilustrao 56 Distribuio dos estudantes nos Perfis de bairro ....................................................... 105

    Ilustrao 57 Resultados: Mapeamento Grupo 1/2.......................................................................... 108

    Ilustrao 58 Resultados: Mapeamento Grupo 3............................................................................. 109

    Ilustrao 59 Resultados: Mapeamento Grupo 4............................................................................ 111

    Ilustrao 60 Resultados: Mapeamento Grupo 5............................................................................ 112

    Ilustrao 61 Resultados: Mapeamento Grupo 6............................................................................ 114

    Ilustrao 62 Categorias da relao dos estudantes com a rua ...................................................... 115

    Ilustrao 63 N de estudantes de cada categoria por Perfil de bairro ............................................ 119

    Ilustrao 64 Perfis de bairro e categorias de utilizao da rua ...................................................... 120

    Ilustrao 65 N de estudantes de cada categoria em funo da localizao................................. 123

    Ilustrao 66 N de estudantes de cada categoria em funo da tipologia habitacional ................. 124

    Ilustrao 67 N de estudantes de cada categoria em funo do tipo de tecido urbano ................. 125

    Ilustrao 68 Tecido urbano e categorias de utilizao da rua ....................................................... 126

    Ilustrao 69 Mosaico da experincia urbana dos estudantes ....................................................... 131

  • Lista de Tabelas

    Tabela 1 Esquema com critrios de classificao dos dados censitrios ......................................... 63

    Tabela 2 N de bairros segundo relao escolaridade-renda ............................................................ 65

    Tabela 3 N de bairros segundo relao escolaridade-renda e populao de 7 a 14 anos .............. 65

    Tabela 4 N de bairros segundo relao escolaridade-renda e tipologia habitacional ...................... 66

    Tabela 5 N de bairros segundo relao renda e densidade demogrfica ........................................ 66

    Tabela 6 N de bairros segundo relao renda e condies de infraestrutura .................................. 66

    Tabela 7 Classificao dos Perfis do Espao Social dos bairros de Porto Alegre ............................ 68

    Tabela 8 N de bairros segundo relao entre Perfis de bairro e tipo de desenho etrio ................. 83

    Tabela 9 N de bairros segundo relao entre Perfis de bairro e populao de 7 a 14 anos ........... 83

    Tabela 10 Combinao de tipos de tecido urbano em Porto Alegre ................................................. 96

  • Sumrio

    Introduo Investigando a experincia urbana atravs do recorte etrio 14

    Captulo 1 As dimenses da experincia 25

    1.1. O cotidiano: uma dimenso espao-temporal 25

    1.2. A criana: as especificidades de uma faixa etria 28

    1.3. Do passado ao presente: a diversificao da geografia das crianas 32

    1.4. Pblico e privado: a funo mediadora da famlia 37

    1.5. Espao social: a insero na classe e sua materializao no vivido 42

    1.6. Espao fsico: do bairro tradicional ao condomnio fechado 47

    Captulo 2 Porto Alegre como lcus de pesquisa 55

    2.1. Da ruptura artesania: a construo do mtodo 55

    2.2. Famlia e bairro: uma anlise a partir de dados censitrios 58

    2.3. Perfis de bairro: a hierarquia social materializada no espao fsico 67

    Captulo 3 O espao urbano e as crianas 77

    3.1. Da estrutura s prticas: explorando a experincia em camadas 77

    3.2. Aspectos demogrficos: a distribuio da populao infantil 81

    3.3. Aspectos locacionais: as relaes entre centro e periferia 86

    3.4. Aspectos morfolgico-espaciais: diferentes tipos de tecido urbano 90

    3.5. Aspectos cotidianos: o mapeamento dos espaos vividos 101

    Captulo 4 Afinal, por onde andam as crianas? 118

    4.1. As prticas cotidianas e a estrutura scio-espacial 118

    4.2. Um mosaico da experincia urbana na cidade contempornea 129

    4.3. O recorte etrio e os desafios ao Planejamento Urbano 145 Referncias Bibliogrficas 149

  • Anexos

    Anexo A Opinies do senso comum acerca do problema de pesquisa

    Anexo B Tabela de apresentao dos dados por bairro

    Anexo C Tabela de apresentao dos dados por bairro aps classificao

    Anexo D Tabela dos aspectos demogrficos dos bairros

    Anexo E Tabela de classificao do tecido urbano dos bairros

    Anexo F Modelo de questionrio

    Anexo G Quadro sntese dos respondentes

    Anexo H Descrio das prticas cotidianas e dos espaos vividos dos respondentes

  • 14

    Introduo Investigando a experincia urbana atravs do recorte etrio

    No contexto contemporneo, de mudanas estruturais da sociedade, que abrangem novas formas de produo e acumulao de bens e capitais, inovaes tecnolgicas e comunicacionais, principalmente pelo advento da comunicao virtual, a apropriao social do espao se desenha a partir de novas dinmicas. Diante destas transformaes, que se processam de forma ainda mais intensa no interior das grandes cidades, fundamental compreender o impacto das mudanas sobre o cotidiano dos habitantes, buscando entender de que forma os cmbios sociais interferem na dimenso espacial e como tais mudanas resultam em novas formas de experincia urbana.

    O presente estudo toma um grupo social etariamente definido, as crianas, sobre o qual o impacto destas transformaes vem sendo discutido, principalmente ao nvel do senso comum1, para investigar a experincia urbana na contemporaneidade. Partindo dos indicativos de que a fruio do espao urbano pelas crianas, fundada na apropriao da rua como espao de lazer e recreao, sofreria importantes transformaes, busca-se caracterizar a relao da criana com a cidade na sociedade contempornea.

    Em face das mudanas demogrficas em curso, que apontam o redesenho etrio da populao brasileira, com consequente diminuio da populao infantil, tal recorte justifica-se, paradoxalmente, pela maior ateno exigida pelas camadas jovens, pelo papel central que tendem a assumir na sociedade num futuro prximo (LIVI-BACCI, 2001; CARVALHO, RODRGUEZ-WONG, 2008). Especialmente para o campo do planejamento urbano, entende-se como vlida a discusso em torno da considerao dos recortes etrios como critrio para o estabelecimento de polticas e projetos. Sobretudo pela grande lacuna verificada em nosso pas, que restringe a utilizao de tais critrios a equipamentos especficos, quase em nvel arquitetnico, ignorando-os na escala urbana. Por fim, considera-se que o mergulho na microescala, atravs da observao do cotidiano, possibilita aos planejadores urbanos uma compreenso do espao da cidade a partir da apropriao social de seus habitantes.

    1 O Anexo A contm uma coletnea de textos referentes problemtica de pesquisa, publicados na imprensa,

    que expressam algumas opinies do senso comum acerca das transformaes na relao da criana com a cidade na sociedade contempornea.

  • 15

    Sob o paradigma da modernidade, procuramos compreender como as alteraes na relao da criana com a cidade esto relacionadas a um processo mais amplo, que abrange a sociedade como um todo. Tomamos a modernidade, nos termos de Berman (2007), como um tipo de experincia vital, ou, como uma maneira de experienciar o espao e o tempo (HARVEY, 2009). E, como experincia espao-temporal, consideramos que afetada pelas transformaes nos processos produtivos e econmicos e tambm nas relaes entre Estado e sociedade, que lhe impem novas caractersticas e contedos, ao alterarem o mundo do vivido (MARZULO, 2005).

    Em seu estgio presente, a modernidade marcada pela compresso tempo-espao, que promove, segundo Harvey (2009), uma acelerao do ritmo da vida por meio de processos que revolucionam as qualidades objetivas do espao e do tempo. Para os adultos a compresso tempo-espao encolhe o espao numa aldeia global e reduz os horizontes temporais ao presente, forando-os a alterar, s vezes, radicalmente, o modo como representam o mundo para si mesmos, ao passo que para as crianas no existe necessidade de alterao, pois elas j constroem sua percepo nesta nova realidade. As crianas j possuem, nos termos do autor, um equipamento perceptivo que permite que percebam esse novo tipo de hiperespao. Possivelmente, a que se instala uma lacuna que diferencia as experincias espaciais que tomam lugar em tempos e espaos distintos, ao mesmo tempo em que impede que os adultos captem as sutilezas que as distinguem.

    H no momento presente, ainda segundo Harvey, uma tendncia de efemeridade, que domina a sociedade como um todo. Essa busca pelo impacto instantneo, caracterstica da compresso tempo-espao, acaba gerando uma perda paralela da profundidade. Comparando o modo de produo anterior, do modelo fordista, ao atual, da acumulao flexvel, o autor afirma que o movimento mais flexvel do capital acentua o novo e o efmero da vida moderna, ao invs dos valores mais slidos, vigentes no fordismo.

    Em paralelo, a globalizao altera, segundo Milton Santos (2006), nossa relao com o mundo, ao incorporar a dimenso global. De uma relao antes vivenciada apenas na dimenso local, passamos a uma relao local-global. Por outro lado, esta incorporao institui uma nova realidade do lugar. Na perspectiva de Hall (2005), o efeito pluralizante e contraditrio da globalizao institui uma homogeneizao cultural atravs da insero da escala global, ao passo que valoriza a diferenciao local, sem ser capaz, contudo, de vincular as identidades ao lugar. A criao de espaos padronizados, como aeroportos ou shoppings centers, um dos exemplos de como a escala global se insere no local e cria experincias globalmente homogneas apesar de pontualmente localizadas.

  • 16

    A sociedade globalizada se torna, paradoxalmente, cada vez mais intimista e, de acordo com Sennett (1988), mais destacada da esfera pblica. Ao processo de esvaziamento do espao pblico corresponde, ento, um recolhimento ao espao privado, muitas vezes motivado pela institucionalizao dos medos urbanos, que desestimula a vivncia do espao pblico, em favor de uma vida segura e protegida em espaos privados (BAUMAN, 2001).

    Em face do redesenho entre domnios, o mergulho no processo coletivo, caracterizado pelo contato com o desconhecido e pela inaugurao de uma vida pblica, constitutivo da experincia urbana das crianas, estaria comprometido pelo fortalecimento da esfera privada. As ruas da cidade, tidas, at ento, como espao de lazer e liberdade, do jogo e da diverso, deixariam de ser espao de sociabilidade e estariam reduzidas a local de passagem.

    Diante deste contexto, algumas questes emergem como problema de pesquisa: o estgio presente da modernidade impe o esvaziamento da relao da criana com a cidade, ou a transforma, atualizando-a aos novos contedos da vida moderna? A rua realmente se esvazia como espao de lazer e recreao? Onde, afinal, as crianas brincam nos dias de hoje? Por onde andam as crianas na cidade contempornea?

    Tendo tais questes como motivao inicial, esta investigao busca caracterizar, de forma mais precisa, a experincia urbana das crianas na contemporaneidade, identificando suas prticas cotidianas e a rede de espaos vividos em seu dia-a-dia. Procuramos, tambm, evidenciar a relao entre as prticas espaciais, as caractersticas scio-espaciais da criana e a natureza dos espaos urbanos. Por fim, pretendemos avaliar qual a extenso do fenmeno de esvaziamento da rua como espao de lazer, se ele se manifesta de forma generalizada e irreversvel ou se sua incidncia possui carter pontual.

    Examinando como a relao da criana com a cidade vem sendo analisada, observamos que se constitui como temtica multidisciplinar, que se consolida a partir da segunda metade do sculo XX, com o reconhecimento das singularidades da criana. Com esta legitimao, surge a necessidade de compreender de que forma a criana se relaciona com o espao, a fim de assegurar seus direitos e qualificar esta interao.

    Dentre os diferentes campos do conhecimento que tratam da relao criana-espao, destacam-se a Psicologia, a Educao, a Pedagogia, a Geografia, as Cincias Sociais, a Antropologia, a Histria e o prprio campo da Arquitetura e do Urbanismo. Cada campo possui abordagens caractersticas, que levam em conta suas especificidades tericas e resultam em pontos de vista diferenciados.

  • 17

    Alm das abordagens disciplinares, o estudo da relao da criana com o espao pode abarcar diferentes campos, de forma interdisciplinar. Contemporaneamente, existem muitas iniciativas que no se limitam ao mbito acadmico e envolvem o poder pblico e a sociedade civil como um todo. Os exemplos mais expressivos so os projetos Ciudad Educadora2, La citt dei bambini3 e Child Friendly Cities4. Em linhas gerais, tais iniciativas abordam a participao e a promoo da cidadania de crianas e jovens; o direito ao divertimento, ao jogo e brincadeira; a pobreza infantil e as polticas de erradicao; bem como os instrumentos de avaliao das qualidades do ambiente amigvel criana.

    No campo da Arquitetura e do Urbanismo, a relao da criana com o espao abordada, primeiramente, em termos ergonmicos, do ponto de vista da adequao dos espaos ao corpo e s necessidades da criana, e tambm em funo de equipamentos com programas especficos, como escolas, creches, parques, etc. (LIMA, 1989). Alm disso, h uma linha de estudos denominada Percepo Ambiental, ligada de forma interdisciplinar Psicologia, que analisa a percepo dos usurios em relao aos espaos, avaliando basicamente a satisfao relativa ao espao construdo (GORLITZ, 1998). H, ainda, outra perspectiva de abordagem que analisa a contribuio que o espao urbano oferece criana. Esta contribuio pode ser relativa aos aspectos fsicos e aos recursos ambientais, que permitem o acesso ao jogo e ao divertimento e asseguram condies adequadas de circulao e mobilidade (KYTT, 2004), ou pode ser relativa construo da cidadania e da civilidade, potencializadas pelo convvio social no espao da cidade (SANTOS et. al., 1985).

    No Brasil, a obra de Oliveira (2004), O ambiente urbano e a formao da criana, aborda o compromisso dos arquitetos e urbanistas com a formao das futuras geraes, trazendo como ponto central a tica das crianas para o seu prprio lazer, nos espaos pblicos que a cidade lhes pe disposio. Sua pesquisa emprica elege a rua como espao pblico analisado, ao verificar sua interferncia sobre a formao da criana. A autora analisa quatro grupos distintos (crianas em situao de risco, de escolas pblicas e de escolas particulares e adultos pertencentes a diversos grupos sociais) e oferece um contraponto entre a viso de crianas e adultos, que insinua um panorama de transformao intergeracional das prticas de apropriao do espao urbano. A tese de Oliveira traz um estudo terico muito abrangente, que apresenta as principais questes concernentes relao da criana com o espao pblico, e oferece um panorama geral da situao atual.

    2 Movimento originado em 1990, na Espanha: http://www.bcn.es/edcities/aice/estatiques/espanyol/sec_iaec.html.

    3 Projeto internacional do Istituto di Scienze e Tecnologie della Cognizione. Foi criado em 1991, pelo pedagogo e

    cartunista italiano Francesco Tonucci, na cidade de Fano. O site do projeto : http://www.lacittadeibambini.org. 4 Projeto da UNICEF criado como sistema de governana local comprometido com os direitos das crianas.

    Maiores informaes no site: http://www.childfriendlycities.org/.

  • 18

    Sua obra pode ser considerada como estudo inaugural desta reflexo no mbito do planejamento urbano brasileiro, e o trabalho nacional consultado que mais se aproxima da presente investigao. Entretanto, apesar de muito significativos, seus resultados ainda so insuficientes para delinear um quadro mais abrangente da situao brasileira, principalmente por no identificarem os fatores interferentes da relao da criana com a cidade e, em que medida, o prprio desenho urbano afeta esta relao. Por este motivo, o assunto deve ser, cada vez mais, colocado na pauta das discusses de arquitetos e urbanistas.

    A formao em Arquitetura e Urbanismo, que envolve o saber e a tcnica da organizao dos assentamentos humanos, estimula o interesse pelo urbanismo enquanto modo de vida, a partir da preocupao com a qualidade que o ambiente oferece aos habitantes da urbe. Assim, o fazer do pesquisador oriundo deste campo est, mesmo que indiretamente, associado ao ato de planejar ou normatizar o espao urbano a fim de qualific-lo. Contudo, esta mesma formao tende a se centrar, muitas vezes, na qualidade material do ambiente urbano, relegando a um segundo plano o elemento humano.

    Tal dificuldade ocorre, possivelmente, em funo da oposio formulada por Certeau (2009, p.157) entre voyeurs ou caminhantes, separados pela distncia com que veem a cidade, um de fora, outro de dentro, um do alto, outro do cho. Os arquitetos e urbanistas so tidos por Certeau como voyeurs que, desenlaados da vida convulsiva das cidades, buscam apreend-la como um todo, perdendo a capacidade de compreenso das partes. No entanto, ao urbanista caminhante, a cidade inquieta, por se mostrar menos apreensvel e, portanto, menos totalizvel. Ao pensador da vida urbana, que caminha pela cidade e a v tambm do cho, se coloca o desafio de apreend-la em fragmentos, invent-la em pedaos. O urbanista caminhante v assim a cidade como um mosaico da experincia urbana que nela se d. Do alto e do cho, sua busca est em conciliar estes olhares, assumindo sua dupla condio.

    Este o ponto de onde parte esta fala, motivo pelo qual a pretenso deste estudo contribuir para o campo do Planejamento Urbano e, especialmente, do Urbanismo, atravs da explorao da vida na cidade, a partir de diferentes ngulos. Neste sentido, a filiao ao Grupo de Pesquisa Identidade e Territrio (GPIT/UFRGS), pertencente Rede Imagem e Identidade e Territrio (RIIT), promotora da busca por um novo olhar sobre o urbano, especialmente pelas discusses acerca dos mtodos e das maneiras de fazer pesquisa, e da disposio em acionar fontes alternativas, como o cinema, para pensar a cidade.

    Cabe salientar que, em paralelo realizao deste estudo, vem sendo conduzida uma anlise de produes audiovisuais, de diferentes momentos histricos, com temticas

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    relacionadas infncia urbana, com o objetivo de examinar a transformao da sociabilidade das crianas e compreender como a apropriao do espao se desenha a partir das diferenas scio-espaciais. Tal anlise deu origem a algumas publicaes (CARDOSO; MARZULO, 2010 e 2011) e, apesar de no ter sido incorporada integralmente a este estudo, forneceu muitos subsdios a sua realizao. Inclumos apenas uma produo audiovisual como fonte bibliogrfica, o filme Meu Tio, de Jacques Tati (1958), pela vinculao consagrada com o campo do Urbanismo, em funo da crtica cidade modernista, alm de uma aluso obra Na Idade da Inocncia, de Franois Truffaut (1976)5.

    Aps situar o problema de pesquisa e fazer as consideraes iniciais acerca desta investigao, procedemos agora apresentao de sua estrutura (Ilustrao 1), evidenciando as escolhas que foram feitas ao longo do processo. Buscamos, com isso, cumprir tambm a funo de acolher o leitor e faz-lo penetrar no emaranhado desta pesquisa, oferecendo-lhe uma viso do caminho percorrido.

    Ilustrao 1 Estrutura da dissertao

    Fonte: elaborado pela Autora

    5 Alm das produes francesas, j foram analisadas duas produes brasileiras recentes: Cidade dos Homens: Ulace e Joo Victor, dirigida por Fernando Meirelles em 2002, e No Meio da Rua, dirigida por Antonio Carlos Fontoura, em 2006.

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    Esta dissertao se estrutura em quatro captulos, no includa a Introduo. O primeiro captulo apresenta o quadro terico-conceitual do estudo e, enquanto os captulos 2 e 3 do conta de sua empiria, o captulo 4 rene as consideraes finais da investigao.

    A reviso bibliogrfica que origina o quadro terico-conceitual desta dissertao no se ateve aos estudos urbanos. Foi realizado um vasto percurso investigativo em busca de contribuies e referncias. Este escrutnio para alm do campo propiciou, acima de tudo, que o estudo se situasse dentro dele, pois ao observar como as outras reas abordam a relao da criana com a cidade, foi possvel delimitar a anlise, ajustando seu foco e seus objetivos ao campo do Planejamento Urbano.

    O exame da literatura considerou seis eixos, que constituem as dimenses da experincia urbana e do origem subdiviso do quadro terico: Cotidiano, Criana, Passado e Presente; Pblico e Privado; Espao Social; e Espao Fsico. No primeiro item do Captulo 1, o cotidiano analisado como dimenso espao-temporal da experincia urbana. Nele buscamos compreender como se d o processo de envolvimento do indivduo com o espao urbano, explicitando os conceitos tericos relacionados.

    O segundo item analisa, mais detidamente, como se d o envolvimento da criana com o espao, examinando as especificidades desta faixa etria, que vai do nascimento aos 12 anos. Nele, destacamos o carter instaurador deste envolvimento, associado ao desenvolvimento da criana, e tambm seu carter gradativo, que parte do reconhecimento do prprio corpo como ente distinto dos outros, avanando para o espao circundante, desde a esfera privada at a esfera pblica.

    Aps analisar a experincia cotidiana que constitui os lugares da infncia, no item 1.3 discutimos a constituio dos lugares da infncia em diferentes tempos histricos. Estabelecendo um paralelo entre um passado recente, de meados do sculo XX, e a atualidade, examinamos o processo de transformao das prticas espaciais da infncia, a partir do enfraquecimento da rua como espao das crianas. Neste item evidenciada a constatao de um processo recente de diversificao da geografia das crianas, a partir da emergncia de novos padres de utilizao do espao. Esta diversificao est associada ao entendimento da existncia de mltiplas infncias e tambm a um redesenho contemporneo entre os domnios pblico e privado.

    Por este motivo, no quarto item abordamos o redesenho pblico-privado, analisando, primeiro, o surgimento da distino segundo a qual o privado por excelncia o lcus da famlia e sua associao reorganizao fsica do espao. Em seguida, examinamos a emergncia da famlia como mediadora entre o ntimo e o social e a suposta intensificao

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    deste papel, mediante o processo contemporneo de crescente recolhimento ao espao privado, em contraponto ao desestmulo vivncia do espao pblico. Por fim, neste item discorremos sobre os indicativos de que a utilizao do espao pelas crianas varia de acordo com as caractersticas da famlia.

    Na sequncia, analisamos de que forma o espao social da famlia e sua insero na classe se materializa no vivido, examinando alguns exemplos do ponto de vista terico. Ainda no item 1.5, abordamos como se d a materializao da hierarquia social no espao fsico e como esta pode implicar em experincias urbanas distintas. Aps constatar que as dimenses social e fsica atuam de forma interdependente sobre o cotidiano, somos conduzidos para a anlise do espao fsico.

    Assim, no ltimo item do quadro terico, examinamos como a forma urbana, em suas variadas escalas e nas diversas combinaes entre seus elementos, pode implicar na variedade das experincias espaciais. Neste item, destacamos a importncia que o bairro assume como principal escala urbana vivenciada pela criana. Na sequncia, discutimos os paradigmas da liberdade e da proteo, que emergem dos discursos urbansticos que privilegiam as crianas em suas proposies, examinando como se associam aos diferentes tipos de tecido urbano. Finalizamos o quadro terico discutindo a manuteno destes paradigmas na cidade contempornea, discorrendo sobre a presena dos condomnios fechados.

    O Captulo 2 consiste na primeira etapa emprica do estudo e, em seu primeiro item, abordamos, inicialmente, os preceitos epistmicos que emergem da construo do objeto de pesquisa, identificando os elementos da ruptura com o senso comum. Em paralelo, descrevemos o tipo de abordagem utilizada e os conceitos que permitem a operacionalizao da investigao. Apresentamos, ainda, a cidade de Porto Alegre como lcus de pesquisa, explicitando que a definio do recorte espacial considera um contexto urbano condizente com o quadro das grandes cidades contemporneas. Explicamos que a cidade se enquadra nas exigncias terico-conceituais do estudo por se tratar de uma metrpole com quase 1,5 milho de habitantes, inserida no contexto da globalizao. Por fim, delineamos o primeiro estgio de constituio do objeto emprico, que busca compreender a estrutura scio-espacial do municpio a partir da materializao da hierarquia social no espao fsico, apresentando os subsdios terico-metodolgicos utilizados.

    No item 2.2, apresentamos a primeira etapa emprica, que consiste na anlise dos bairros de Porto Alegre por meio de dados censitrios. A fim de compreender a estrutura scio-espacial do municpio, busca-se uma articulao entre as caractersticas do espao

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    social das famlias residentes e as caractersticas do espao fsico dos bairros. Ao evidenciar a correlao entre os aspectos analisados, bem como a possibilidade de agrupar os bairros de acordo com as caractersticas semelhantes, seus resultados servem de elemento para estruturao do estgio seguinte.

    Cabe ressaltar que, a partir deste item, o estudo passa a dar nfase faixa etria de 7 a 14 anos, em funo da subdiviso dos dados censitrios analisados. Acredita-se que, pela baixa autonomia das crianas de 0 a 6 anos, o intervalo de 7 a 14 anos agregue crianas com distintos nveis de envolvimento com o espao urbano, constituindo um perodo de maior autonomizao da criana em relao aos pais e, portanto, capaz de oferecer informaes mais relevantes aos propsitos desta pesquisa.

    No ltimo item do Captulo 2, aprofundamos a anlise da estrutura scio-espacial do municpio, a partir dos agrupamentos de bairros com caractersticas semelhantes. Atravs da incorporao de ferramentas de geoprocessamento, procedemos espacializao dos dados, ampliando o espectro da anlise a partir de novas formas de visualizao das informaes. Apresentamos, tambm, a classificao dos bairros segundo Perfis do Espao Social, categorias criadas pelo prprio estudo, que servem como referncia para estruturao da etapa seguinte.

    O Captulo 3 prope uma anlise articulada entre a estrutura scio-espacial do municpio e as prticas cotidianas das crianas porto-alegrenses, a partir dos Perfis de bairro. No primeiro item do captulo, so descritos os estgios da segunda etapa de anlise, subdivididos em demografia, localizao, morfologia e cotidiano, e seu tratamento atravs da sobreposio de camadas. Deixamos claro que a sequncia de anlise procura explorar a tenso entre estruturas e prticas, a fim de superar o antagonismo entre voyeurs e caminhantes, ou entre urbanista e criana. Evidenciamos, tambm, a disposio em reputar as crianas como fonte obrigatria, incorporando seus relatos como peas de um mosaico, que somadas s camadas, do profundidade ao estudo. Alm disso, explicitamos a inteno de articular dados quantitativos e qualitativos, a fim de explorar a dimenso humana dos dados censitrios, bem como sistematizar as informaes qualitativas. Por fim, identificamos o bairro como principal escala de anlise desta segunda etapa emprica, por se tratar de unidade morfolgica dotada de significado, vivenciada com mais frequncia pela criana, que articula, portanto, a estrutura scio-espacial s prticas cotidianas.

    A primeira camada desta etapa de anlise apresentada no item 3.2 e versa sobre os aspectos demogrficos que envolvem as crianas. Neste item, buscamos compreender o perfil etrio da populao de Porto Alegre e de que forma a populao de 7 a 14 anos est

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    distribuda. Destacamos quais os bairros que concentram maior nmero de crianas e, consequentemente, como a populao infantil se distribui nos Perfis do Espao Social.

    O item 3.3 apresenta a segunda camada da anlise, sobre os aspectos locacionais da estrutura scio-espacial. Aps verificar a correlao entre a distribuio das crianas e os Perfis do Espao Social dos bairros, neste item, analisamos como se d a distribuio geogrfica dos perfis, observando quais as relaes que estabelecem entre si. Destacamos as relaes de distncia e proximidade entre perfis e a formao de ncleos socialmente identificados.

    A terceira camada da anlise apresentada no item 3.4, no qual examinamos as caractersticas do espao fsico dos bairros de cada perfil, buscando identificar as diferentes combinaes entre os tipos de tecido urbano existentes em Porto Alegre. Para este exame, utilizamos elementos como tipologia habitacional, presena de condomnios fechados, equipamentos coletivos e espaos abertos, procurando, ainda, relacion-los aos Perfis do Espao Social.

    Enquanto as trs primeiras camadas constituem a anlise acerca da estrutura scio-espacial do municpio, a quarta est relacionada, diretamente, ao cotidiano. No item 3.5, articulamos todas as dimenses da experincia urbana, investigando como se estabelece a experincia das crianas de cada Perfil de bairro. Tal exame se d atravs do mapeamento dos espaos vividos e das prticas cotidianas, realizado atravs de estudo piloto.

    importante mencionar que o ponto de partida da anlise dos aspectos cotidianos surgiu de forma imprevista, atravs de um convite para participar do IV Colquio de Estudos Urbanos da Regio Metropolitana de Porto Alegre (IV CEU RMPA), organizado pelo Departamento de Humanidades do Colgio de Aplicao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAp/UFRGS). O colquio teve por objetivo divulgar, aos estudantes do CAp, a produo recente sobre a metrpole, atravs da apresentao de trabalhos gerados em nvel de graduao e ps-graduao.

    Diante do convite, elaboramos uma oficina de mapeamento dos espaos vividos e, como os resultados foram satisfatrios, acabamos convertendo-a em estudo piloto, atravs do acrscimo de uma etapa de aplicao de questionrios. A oficina impactou, dessa forma, na mudana dos rumos da investigao dos aspectos cotidianos, que vinha sendo pensada para se estruturar atravs de um estudo de caso, que tomasse um bairro de Porto Alegre como lcus e as crianas residentes como fonte. Mesmo imprevista, a oficina veio resolver um impasse, pelas dificuldades em delimitar qual o tipo de bairro seria privilegiado e em ajustar os prazos a um estudo mais aprofundado, sem contar o pesar pela possibilidade de

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    perder de vista o espectro geral das prticas e possveis nuances advindas da mescla entre diferentes condies scio-espaciais, pela adoo de um nico bairro. Nesse sentido, a oficina representou um grande ganho, no s em termos logsticos, mas, sobretudo pela diversidade de condies que reuniu.

    No entanto, a mudana de rumos representou tambm uma alterao no recorte etrio, pois a oficina foi realizada com estudantes do 8 ano do Ensino Fundamental, em tese na faixa dos 13 e 14 anos, mas que, na prtica, abarca estudantes com idade superior. Como j havamos ampliado o recorte etrio na etapa de anlise da estrutura scio-espacial, em funo da disponibilidade de dados na faixa de 7 a 14 anos, a alterao representava uma concentrao analtica na idade limite, porm fora do perodo compreendido como infncia. Novamente, foram os resultados da atividade exploratria que afastaram o temor de inadequao, uma vez que permitiram um exame muito alinhado com os objetivos iniciais do estudo. Dessa forma, a camada do cotidiano se constituiu como um dos pontos mais ricos da investigao. Primeiro, por reunir o imprevisto, e estimular a criao de solues ad hoc. Em segundo, pelo inesperado que envolvia a adeso dos estudantes atividade. Finalmente, pelo desafio em tirar proveito desta situao, potencializando a artesania do mtodo, ao mesmo tempo em que exigia o fortalecimento dos elementos de sustentao do estudo.

    O captulo 4 rene as consideraes finais da investigao, e explicita o quo exitoso foi o percurso, graas diversidade de situaes encontradas na oficina. No item 4.1, tomamos os resultados da oficina como referncia para a anlise convergente de todas as camadas elencadas no Captulo 3. Com objetivo de compreender como a materializao do espao social no espao fsico atua sobre o cotidiano, examinamos de que forma os Perfis de bairro, os aspectos demogrficos, locacionais, morfolgico-espaciais e cotidianos se inter-relacionam, verificando a associao entre as prticas e a estruturao do espao urbano. Ainda neste item, avaliamos a pertinncia do estudo piloto realizado com os estudantes. No item 4.2, exploramos a riqueza da atividade realizada com os estudantes ao elaborar um mosaico da experincia urbana e, a partir deste conjunto, desenvolver uma reflexo articulada entre os resultados da empiria, expostos no item 4.1, e a teoria, reunida no quadro construdo no Captulo 1. Finalmente, no item 4.3, a multiplicidade das vivncias, em seu enlace com a teoria, forneceu subsdios para definio dos encaminhamentos futuros que emergem desta investigao. Na concluso final, apresentamos os principais desafios que se colocam ao Planejamento Urbano, diante da considerao do recorte etrio e da experincia urbana das crianas na sociedade contempornea.

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    Captulo 1 As dimenses da experincia

    1.1. O cotidiano: uma dimenso espao-temporal

    A relao do indivduo com a cidade se constitui a partir do tipo de envolvimento que estabelece com o espao urbano. Aquele que perambula demoradamente pelas ruas, observando os detalhes do conjunto arquitetnico, ou se senta no banco da praa para contemplar o movimento dos pedestres, constri certamente um envolvimento diferente do outro que se desloca de automvel, seguindo a velocidade das vias expressas, mais atento ao ponto de chegada do que ao caminho percorrido. Assim como aquele que se desloca durante o dia, e v o azul do cu refletido nos edifcios, e o outro que percorre suas ruas noite, e admira as luzes da cidade. Ou ainda, um mesmo indivduo, que alterne sua rotina entre caminhante e condutor, diurno e noturno, cada um estabelecer um tipo de relao com a cidade. Neste item, buscamos compreender como se d o processo de envolvimento do indivduo com o espao urbano, explicitando os conceitos tericos relacionados.

    Envolver significa conquistar, atrair, encantar. A cidade envolve, conquista a ateno, a admirao do indivduo. Por outro lado, envolver significa tomar parte em, expor-se a, enredar-se, meter-se, misturar-se (HOUAISS, 2001). O indivduo se envolve com a cidade, se expe a ela e nela se enreda. Ao misturar-se cidade, o indivduo a experimenta. A experincia abrange, segundo Tuan (1983, p.9), as diferentes maneiras atravs das quais uma pessoa conhece e constri a realidade e implica na capacidade de aprender a partir da prpria vivncia.

    O sentido de experincia em Tuan anlogo ao de prtica em Certeau (1990/2009, p.175). Segundo ele, para conhecer e lembrar de um lugar preciso pratic-lo. As prticas do espao, atravs das aes espacializantes que se desenrolam no dia-a-dia do indivduo, tecem as condies determinantes da vida social. So estas aes, que abrangem o ver, o caminhar e o falar, que constroem a familiaridade com o espao.

    Espao e lugar so conceitos diretamente implicados no processo de envolvimento atravs da experincia, motivo pelo qual fundamental acion-los. Segundo Tuan, na experincia, o significado de ambos se funde:

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    Espao mais abstrato do que lugar. O que comea como espao indiferenciado transforma-se em lugar medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. [...] As ideias de espao e lugar no podem ser definidas uma sem a outra. [...] A partir da segurana e estabilidade do lugar estamos cientes da amplido, da liberdade e da ameaa do espao, e vice-versa. Alm disso, se pensamos no espao como algo que permite movimento, ento lugar pausa; cada pausa no movimento torna possvel que a localizao se transforme em lugar. (TUAN, 1983, p.6)

    Na literatura acionada, entretanto, a relao estabelecida entre espao e lugar recebe interpretaes distintas. Ao passo que para Tuan o espao transforma-se em lugar, para Certeau (1990/2009, p.202) esta relao ocorre em sentido inverso. Para ele, o espao um lugar praticado, assim, a rua geometricamente definida um lugar transformado em espao medida que praticado pelos pedestres.

    No entanto, ambos deixam clara a ideia de um abstrato que se particulariza atravs da prtica. Enquanto discordam em relao ordem de particularizao, que para Tuan vai do espao para o lugar e, para Certeau, do lugar para o espao, concordam ao atribuir ao espao o carter de movimento e ao lugar o carter de estabilidade.

    Um lugar uma configurao instantnea de posies. Implica uma indicao de estabilidade. [...] Existe espao sempre que se tomam em conta vetores de direo, quantidades de velocidade e a varivel tempo. O espao um cruzamento de mveis. (CERTEAU, 1990/2009, p.201- 202)

    O que os distingue, portanto, que a experincia em Tuan estabiliza, enquanto para Certeau, movimenta. A interpretao de Aug (1994, p.85-87) parece conciliadora, ao caracterizar o lugar como lugar antropolgico, que no ope a figura geomtrica ao movimento, mas representa o lugar do sentido inscrito e simbolizado.

    Em termos semnticos, os conceitos se aproximam do entendimento de Aug e Tuan, uma vez que o vocbulo espao a extenso limitada em uma, duas ou trs dimenses, ou seja, o espao definido geometricamente, enquanto lugar parte do espao, uma rea para ser ocupada por pessoa ou coisa, uma posio (HOUAISS, 2001), ou, uma poro do espao particularizada pelo indivduo. Para a presente anlise, adota-se esta relao, consagrada tambm entre arquitetos e urbanistas, que considera o espao como ente mais abstrato, que se transforma em lugar medida que praticado cotidianamente, adquirindo definio e significado. Logo, temos que lugar o espao vivido, nos termos de Milton Santos (2002).

    O no-lugar, por sua vez, na expresso cunhada por Aug (1994, p.73), o espao praticado que no adquire significado. Segundo o autor, se um lugar pode se definir como identitrio, relacional e histrico, um espao sem nenhuma destas caractersticas definir

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    um no-lugar. O no-lugar pode tanto designar um espao constitudo com a inteno de no propiciar o envolvimento do indivduo, a exemplo dos aeroportos, como pode designar a relao que os indivduos estabelecem com este espao, marcada pela superficialidade ou pela transitoriedade. Para Aug (p. 88, 98), os no-lugares so aqueles que tomamos emprestados quando rodamos na autoestrada, fazemos compras no supermercado ou esperamos pelo prximo voo. Contudo, os no-lugares no se opem, simplesmente, aos lugares, eles tambm os atraem, uma vez que, para Aug, a volta ao lugar o recurso de quem frequenta os no-lugares. Lugares e no-lugares se interpenetram, portanto, da mesma forma que os lugares e os espaos. Assim, h na experincia uma tenso que cria pares opostos, porm complementares.

    A tenso entre movimento e estabilidade, entre deslocamento e permanncia, tambm constante, pois ao mesmo tempo em que estabiliza, a experincia cria movimento. Ou, no h continuidade de experincia sem movimento. O movimento pode ser tomado como ao desencadeadora e/ou continuadora do ato de experienciar. Para Moore e Young (1980), conforme Ilustrao 2, o movimento se expressa atravs do elemento caminho, que atua como elemento aprofundador da experincia espacial ao estabelecer uma rede conectora entre o espao e o lugar.

    Ilustrao 2 O aprofundamento da experincia espacial

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    Fonte: elaborado pela Autora, a partir de Moore e Young (1980, p. 91)

    O movimento incorpora, dessa forma, o tempo como dimenso da experincia. O transcorrer das aes cotidianas se d em funo do tempo, o espao vivido em funo do tempo, assim como a afeio pelo lugar se estabelece em funo do tempo. O tempo entendido, assim, como movimento, mas tambm como durao (TUAN, 1983).

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    O tempo da prtica o dia-a-dia, sucessivo e contnuo, o tempo do cotidiano. Na experincia, o espao deixa de ser, de acordo com Santos (1996), simples materialidade e o cotidiano deixa de ser mera dimenso temporal, convertendo-se em dimenso espacial:

    O espao ganhou uma nova dimenso: a espessura, a profundidade do acontecer, graas ao nmero e diversidade enormes dos objetos, [fixos], de que, hoje, formado e ao nmero exponencial de aes, [fluxos], que o atravessam. [O cotidiano] uma nova dimenso do espao, uma verdadeira quinta dimenso. (SANTOS, 1996, p.17)

    Em sntese, o cotidiano , assim, entendido como um conjunto de aes, as ditas aes espacializantes, atravs das quais o indivduo constri a familiaridade com o espao. A experincia transforma o espao em lugar, o espao de ente abstrato se particulariza e ganha significado. Os espaos so vividos no cotidiano, entendido, finalmente, como dimenso espao-temporal da experincia.

    As aes cotidianas se constituem a partir da rotina dos indivduos e dos movimentos que efetuam pela cidade. O dia-a-dia se estrutura, em linhas gerais, de acordo com a faixa etria de cada um. Enquanto os adultos, por exemplo, tm sua rotina estruturada, na maioria das vezes, pelo trabalho, os idosos, ao encerrarem sua vida profissional, acabam destinando mais tempo ao prprio bem-estar. Os jovens e as crianas, por sua vez, tm seu cotidiano organizado, predominantemente, em funo das atividades escolares. Alm disso, h uma sazonalidade nas atividades cotidianas que distingue, por exemplo, a rotina do final de semana ou das frias daquela do perodo de trabalho ou estudos.

    Estas diferenas implicam, provavelmente, em experincias espaciais etariamente distintas, sobretudo, pelos diferentes graus de autonomia das diversas idades em relao ao espao urbano. Por este motivo, cabe analisar, mais detidamente, as especificidades que envolvem o cotidiano das crianas e de que forma se d seu envolvimento com o espao, conforme faremos no prximo item.

    1.2. A criana: as especificidades de uma faixa etria

    De um lado, a cidade se apresenta como um imenso laboratrio, que possibilita muitas descobertas, permite aprender a ser e impulsiona a apreend-la. De outro, a criana, dona de um olhar atento, se mostra aberta, por curiosa ou ingnua, a observar e absorv-la. H nesta relao um componente especfico: a disponibilidade. A cidade envolve a criana, a criana se deixa envolver por ela.

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    O cotidiano das crianas na cidade marcado pelas especificidades de uma faixa etria. As crianas so definidas como seres humanos que se encontram na infncia, legalmente reconhecida como o perodo que vai do nascimento at os 12 anos, quando se inicia a adolescncia (BRASIL, 1990). A infncia uma etapa peculiar na vida dos indivduos, pois assinala o incio do envolvimento com a sociedade.

    A experincia espacial da infncia possui, portanto, um carter instaurador. Para um recm-nascido no existe, segundo Piaget (1983, p.18), um espao como continente, pois no existe objeto. A noo de um espao geral, no qual o prprio corpo mais um objeto, diferente dos outros, s adquirida, segundo o autor, ao final da primeira etapa de desenvolvimento da criana, a etapa da inteligncia sensrio-motora, que dura aproximadamente 18 meses. Aps o reconhecimento inicial, a criana vai se envolvendo, gradativamente, com o espao circundante. Este envolvimento acompanha, por um lado, o desenvolvimento intelectual da criana, pois medida que adquire novas noes, em estgios sucessivos marcados, de acordo com Piaget, pela aquisio das noes simblicas, lgicas e combinatrias, pode aprofundar o contato com o mundo que a cerca.

    Por outro lado, o prprio envolvimento com o espao age sobre o desenvolvimento da criana. A vivncia espacial contribui de forma integral na estruturao do indivduo, atuando, especialmente, nos aspectos fsicos, motores, emocionais e cognitivos, ao permitir que a criana enriquea o seu mundo mental (KYTT, 2004; OLIVEIRA, 2004). Motivada pelo interesse e pela necessidade, a criana estrutura e organiza sua interface com a realidade, ao selecionar, armazenar e conferir significado s informaes. De acordo com Oliveira, atravs do movimento e do deslocamento no espao que a criana percebe, representa e constri uma imagem do mundo exterior.

    A gradao da experincia espacial se d a partir do domnio privado em direo ao domnio pblico, atravs de estgios sucessivos. Estes estgios compem, de acordo com Harloff, Lehnert e Eybisch (1998), quatro faixas no sistema de espaos da vida urbana da criana, que avanam da habitao, passando pelo espao imediatamente exterior casa, em seguida pelo bairro, at chegar cidade como um todo. Esta gradao marcada pelo aumento da autonomia, caracterizado pela ampliao da liberdade de movimentos que expande os limites de atuao da criana no espao urbano.

    A autonomia das crianas est relacionada s escalas de permisso concedidas (ou no) pelos pais. O controle parental define condies restritivas que determinam intervalos de alcance, diferenciados pela possibilidade de circular sozinha com ou sem permisso prvia (MOORE; YOUNG, 1980). Dentre as caractersticas da criana, a idade a mais

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    determinante para o estabelecimento dos limites, pois medida que cresce seus nveis de permisso aumentam progressivamente. Outro aspecto apontado como fator de diferenciao da autonomia o gnero, pois h indicativos de que meninos so mais autnomos do que meninas (MOORE; YOUNG, 1980), conforme exemplifica a Ilustrao 3. Neste mapa, os meninos, cujo smbolo o quadrado, possuem limites de atuao expandidos em relao aos limites das meninas, cujo smbolo o crculo. Todavia, na atualidade, parece haver uma diluio desta distino, ainda que o privilgio dos meninos seja mantido (TONUCCI et.al., 2002).

    Ilustrao 3 Diferenas nos limites da atuao urbana de meninos e meninas

    Fonte: Moore e Young (1980)

    O domnio privado, a partir do qual se inicia o envolvimento da criana com espao, constitudo, segundo Moore e Young (1980) como fonte de abrigo fsico, segurana social e apoio psquico. Em contraponto, ao expandir seus limites de atuao, a criana se depara com o domnio pblico, que proporciona o envolvimento com os sistemas vivos e com a cultura prevalente e constitui-se como domnio explorvel.

    no domnio pblico que a criana entra em contato com os estranhos e inaugura uma vida pblica. E a partir dos processos de encontro com o desconhecido que, segundo Sennett (1988), a criana se familiariza com os riscos, enriquece suas percepes e sua experincia. , ainda, atravs da experincia da vida pblica que a criana desenvolve, de forma mais intensa, suas noes de cidadania e civilidade, pois de acordo com Santos et. al.

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    (1985), o ato de caminhar pelas ruas da cidade contm uma dimenso ritual, ao permitir o contato com o universo social mais imediato.

    O caminhar com tempo, algo que o homem sempre realizou, uma forma agradvel de vivenciar o espao. A criana tambm gosta de fazer este caminhar, porque pode brincar com o piso das caladas, pular com um p s, perceber e gostar de observar ou escutar tudo que est ao seu redor, aprender e viver a vida da cidade. (OLIVEIRA, 2004, p.152)

    Os caminhos assumem, assim, um significado ainda mais peculiar para as crianas. Enquanto para os adultos podem significar, muitas vezes, meros canais de circulao, constituem-se como sequncias de explorao para as crianas (MOORE; YOUNG, 1980, p.121). As ruas e caladas consolidam-se como verdadeiros lugares lineares, medida que, alm de espaos de circulao, se tornam lugares de lazer, recreao, jogo, entretenimento e brincadeira.

    O mergulho no processo coletivo, atravs do qual a criana explora a dialtica do pblico-privado, torna-se, assim, constitutivo do que Borja (1990, p.51) denomina de cidade da infncia. Caracterizada pela aventura, pelo enfrentamento dos riscos e pela descoberta dos outros, a cidade da infncia , para Borja, resultante dos percursos cotidianos, a partir dos quais a criana se depara com a diversidade de atividades e pessoas reunidas na cidade. Evocar a cidade da infncia , portanto, falar de um conjunto de experincias que colocam em contato criana e cidade. Experincias de espao, experincias de si e dos outros, que alternam conhecido e desconhecido e permitem a constante ampliao dos limites de atuao no espao urbano.

    A cidade da infncia, entendida como aventura inicitica nos termos de Borja, que faz da criana um caminhante, equivale-se, assim, a experincia cotidiana que constitui os lugares da infncia. Os lugares da infncia guardam em si o universal e o particular, pois, ao mesmo tempo em que constituem a experincia singular de toda e qualquer criana, se constituiro de forma peculiar para cada criana, em cada contexto histrico, urbano e cultural. No prximo item, discutiremos a constituio dos lugares da infncia em diferentes tempos histricos, estabelecendo um paralelo entre um passado recente, de meados do sculo XX, e a atualidade.

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    1.3. Do passado ao presente: a diversificao da geografia das crianas

    Lugar de criana na rua. Este aforismo repercute de diferentes formas com o passar dos anos. Da conformidade inadequao, da tranquilidade insegurana, seu (des)prestgio reflete as transformaes pelas quais passa a sociedade contempornea. Mas indica, sobretudo, a (re)constituio dos lugares da infncia diante da urbanizao acelerada, da difuso do automvel e da expanso da escolarizao, entre outros elementos que reconfiguram a relao da criana com a cidade.

    Originada num tempo em que a experincia cotidiana das crianas era diretamente associada ao espao pblico e que as ruas eram tidas como espao de lazer, liberdade, jogo e diverso (OLIVEIRA, 2004), a expresso popular mencionada no estava apenas na boca do povo. A imagem da rua como tpico lugar da infncia se consolida atravs das narrativas literrias e das expresses artsticas em geral. Nas telas do pintor Cndido Portinari (Ilustrao 4), os jogos infantis tomam lugar, preferencialmente, no meio da rua. Nas pelculas de Tati (1958 Ilustrao 5) e de Truffaut (1976 Ilustrao 6), fica ntida a sociabilidade infantil fundada na apropriao da rua como espao de lazer e recreao.

    Ilustrao 4, Ilustrao 5 e Ilustrao 6 A essncia da cidade da infncia consagrada pela arte

    Fonte: Ronda Infantil (PORTINARI, 1932/2011)

    Fonte: Na Idade da Inocncia (TRUFFAUT, 1976) Fonte: Meu Tio (TATI, 1958)

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    A prpria obra Quando a rua vira casa, de Carlos Nelson dos Santos et. al. (1985), seminal para o urbanismo brasileiro, descreve fartamente a presena das crianas no espao pblico. Os autores nomeiam uma srie de lugares da infncia por meio das prticas que os delimitam, conforme revela o mapa das referncias que ilustra ricamente o cotidiano de liberdade nas ruas do bairro analisado (Ilustrao 7).

    Ilustrao 7 Prticas cotidianas que delimitam lugares da infncia

    Fonte: Quando a rua vira casa (SANTOS et. al., 1985, p.18,19)

    Contudo, na atualidade, o espao pblico est cada vez mais dissociado da vivncia infantil. A rua no mais tida como lugar das crianas e tende a ser resumida via de

    Legenda:

    2. Garotos soltando pipa 3. Brincadeira na rvore 17. Meninos jogando bola 39. Skate na rua 43. Garotos soltando pipa

    OBS.: Listamos apenas as prticas que dizem respeito s crianas.

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    passagem, alm de ser vista como espao violento e ameaador. Ou seja, absolutamente repelente s prticas cotidianas de outrora. Seu esvaziamento como lugar da infncia apontado, intensamente, pelo senso comum. A reduo da liberdade e o sentimento de privao das crianas de hoje em relao s do passado, justificados, na maioria das vezes, pelo aumento da insegurana urbana, ficam explcitos em recente matria de jornal, na qual pais e filhos comparam suas experincias infantis:

    Mundo pela janela: Depois de um dia de trabalho, [o pai] percorria um quilmetro a p para chegar escola, noite. Hoje, [o filho] vai de carona com os pais e, s vezes, volta de lotao. Como qualquer pai, ele se preocupa com a segurana e o conforto dos filhos. Mas acredita que algo se perdeu com o passar do tempo: Uma grande diferena o fato de hoje os adolescentes conhecerem a cidade pela janela do carro. A gente ia a p, cumprimentando todo mundo, mas nossos filhos perderam a possibilidade de andar sozinhos.

    Do lado de c das grades: Assim que voltou de Nova York, para onde foi em maro deste ano, [a filha] contou para o pai, entusiasmada: Precisa ver que legal, a gente andava 1h da manh na rua! Novidade para quem tem como regra esperar pela Kombi do colgio do lado de dentro das grades do prdio onde mora. Ao contrrio do pai, que, apesar de ter assistido multiplicao das grades [na cidade] onde cresceu, ainda se aventurava a p noite e ganhava as ruas em sua bicicleta para [a filha], pedalar um programa entre outros, no um gesto automtico ao sair de casa como era para o pai. Meu pai era mais rebelde do que eu aos 15, sou mais certinha. Acho que ele era mais livre tambm.

    Bicicleta sem funo: [O filho] no lembra ao certo da ltima vez em que andou de bicicleta. [...] Ao contrrio do pai que, na sua idade, tinha a bicicleta como uma extenso do corpo, [e que] todas tardes, depois da aula, ganhava as ruas de [sua cidade] para pedalar com os amigos. A grande diferena agora que tem perigo de assalto diz [o filho]. Ao ouvir isso, [o pai] se inclina na direo do filho e faz a pergunta que jamais ocorreria a seu pai: Tu te sentes preso em casa, filho? No. Mas sinto falta de ter amigos com quem passar o tempo. O desejo [do filho] que a famlia se mude para um condomnio, onde ele poderia se soltar ao ar livre. Exatamente como o pai fazia. (ZERO HORA, 2010, grifo nosso)

    Os relatos explicitam uma alterao nas prticas das crianas e apontam elementos importantes para a anlise deste processo. As formas de deslocamento, tipicamente associadas aos percursos a p e de bicicleta, se alteram pela difuso do automvel e dos meios motorizados em geral. Consequentemente, o envolvimento com a cidade afetado pela mudana no ponto de vista, que vai da calada para a janela do carro, por exemplo. O prprio espao urbano se modifica pela profuso de vias expressas, grades e condomnios. Contudo, os relatos no permitem aferir, primeiro, se a rua realmente se esvazia como lugar da infncia ou se este esvaziamento atinge apenas uma parcela das crianas. Em segundo,

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    pelo vis saudosista que possuem os relatos no deixam ver se a experincia singular da criana na cidade se extingue, contemporaneamente, ou se ressignificada.

    Acionando a literatura para analisar como se d o processo de transformao das prticas, verificamos, num primeiro momento, certa contradio no prprio senso comum erudito. Pois ao passo que tende a generalizar o impacto das mudanas, indicando o fim da vivncia cotidiana que coloca a criana em contato com a cidade, aponta que tais alteraes no so generalizveis. Tomemos o caso de Oliveira (2004) como exemplo. Inicialmente, a autora afirma:

    Atualmente, as crianas no caminham pela rua, no tm tempo de observar o espao, os objetos, os seres vivos e tudo o que existe ao seu redor; andam apenas dentro dos carros e dos nibus, sempre correndo e com o tempo restrito. (em, p.49)

    Em seguida, a partir dos resultados do prprio estudo sobre a relao das crianas com a rua na cidade de So Paulo, Oliveira demonstra a coexistncia de trs categorias de crianas, cujas prticas de deslocamento se diferenciam: as crianas que caminham pela rua; as crianas para as quais a rua apenas circulao; e as crianas em situao de risco. Abaixo, destacamos a descrio que a autora faz de cada uma destas categorias:

    [Algumas] crianas caminham pelas ruas e vielas de seus bairros, indo de casa para a escola, para as casas de seus amigos ou para a padaria. Andam, enfim, por todo o bairro, conhecendo-o e elaborando seus mapas mentais do espao onde vivem. A maioria sabe se conduzir sozinha, pois se vale de inmeros referenciais. (Ibid, p.101)

    "Uma parte das crianas, [para as quais a rua apenas circulao], vive num mundo do qual so isoladas por meio do vidro dos automveis e das janelas de suas casas, dos muros dos condomnios, das paredes do shopping, das grades dos clubes e das escolas. um mundo ilusrio, cheio de estigmas, um espao composto por ilhas, como a ilha da casa, a ilha da escola. (Ibid, p.102)

    As crianas em situao de risco social e pessoal so aquelas que, no seu dia-a-dia, apresentam situao de vulnerabilidade e de perigo de vida em sua forma de utilizar a rua, abrangendo uma ampla gama de circunstncias e experincias individuais. Essa situao de risco apresenta-se aos que habitam a rua e tambm queles que a usam como espao de sobrevivncia. (Ibid, p.106)

    A incoerncia inicial, verificada no estudo apresentado, revela que o decreto do fim da cidade da infncia institui-se como discurso hegemnico, capaz de turvar o prprio fazer cientfico. Contudo, aps se desvencilhar das pr-noes, a prpria autora contrape o vis homogeneizante, que desconsidera nuances que podem resultar em experincias urbanas distintas. Ao explicitar que a transformao das prticas, que culmina na impossibilidade de

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    aprofundamento da experincia espacial, atinge apenas uma parcela da populao infantil, Oliveira (2004) indica a no-homogeneidade do fenmeno.

    Segundo Karsten (2005), h muita especulao sobre a mudana no comportamento espao-temporal das crianas, mas, efetivamente, se sabe pouco a respeito. Buscando combater o discurso de que tudo costumava ser melhor, a gegrafa realizou um estudo sobre mudanas intergeracionais na utilizao do espao urbano pelas crianas holandesas. Neste estudo, Karsten constata que o espao pblico da rua, considerado nas dcadas de 1950-60 um lugar das crianas, havia se convertido em lugar dos adultos, ocorrendo o inverso com o espao privado, antes domnio dos adultos. A autora verifica, ainda, que em adio ao uso do espao aberto possvel distinguir, hoje, outros padres de utilizao do espao pelas crianas, que se caracterizam pela diminuio das brincadeiras ao ar livre e pelo aumento da superviso dos adultos (Ilustrao 8).

    Ilustrao 8 Padres de utilizao do espao urbano em diferentes tempos

    Fonte: elaborado pela Autora, a partir da obra de Karsten (2005)

    Ao todo, Karsten identifica quatro grupos: alm das crianas do espao aberto do padro tradicional, que mantm a relao entre domnios inalterada, h uma atualizao deste padro, que se constitui pelo equilbrio no uso do espao pblico e do privado. Em paralelo, h as crianas do espao fechado, cuja nica opo a atuao na esfera privada, principalmente pela insegurana em relao ao espao pblico; e, por fim, h as crianas da gerao banco de trs (backseat generation), cuja experincia do espao pblico dosada e mediada pelos adultos.

    Comparando os estudos de Oliveira (2004) e Karsten (2005), possvel constatar resultados anlogos no que se refere manuteno de um padro tradicional, das crianas que caminham pela rua e a utilizam como espao de lazer, alm da emergncia de um novo padro de utilizao mediada ou no-utilizao do espao pblico. O aspecto singular da

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    realidade brasileira a presena das crianas em situao de risco, que vivem a experincia do espao pblico de forma distorcida, pela ausncia de contraponto no domnio privado.

    Para Karsten (2005), a emergncia dos novos padres resulta na diversificao da geografia das crianas, convergente ao entendimento expresso por Meira (2004, p. 120) de que as crianas no so um grupo homogneo, o que indica a existncia de mltiplas infncias. Deste ponto de vista, a experincia urbana das crianas se desenharia atravs de mltiplas vias, nos termos de Meira, dentre as quais uma delas poderia ser a da no-vivncia do espao pblico.

    A aceitao desta multiplicidade emerge, conforme verificado atravs da anlise flmica realizada em paralelo ao presente estudo, aps um perodo marcado pelo empenho em delimitar a infncia como faixa etria especfica e homognea, diferenciada do mundo adulto (CARDOSO; MARZULO, 2010). Este perodo coincide, inclusive, com o esforo em elaborar uma histria social da criana, inaugurada por Philippe Aris com a publicao LEnfant et La Vie familiale sous lAncien Rgime, em 1960. Assim, quando as singularidades da criana frente ao adulto so reconhecidas, plausvel reconhecer a pluralidade de condies que a infncia abarca.

    De forma concomitante, a diversificao das prticas cotidianas se delineia a partir de um redesenho contemporneo entre os domnios pblico e privado. medida que o espao privado ressignificado como lugar das crianas, se altera a relao que estabelecem com o espao pblico. As causas desta reconfigurao no so unilaterais, nem oriundas apenas de um suposto perecimento do espao pblico, e remontam, inclusive, s origens da distino entre pblico e privado, tambm abordada por Aris, motivo pelo qual merecem ser melhor investigadas, como faremos a seguir.

    1.4. Pblico e privado: a funo mediadora da famlia

    A casa e a rua. O dentro e o fora. Um contraponto intrnseco experincia urbana das crianas. Quando no est na rua, a criana est em casa. Se a rua no lugar de criana, a escola o . Esta polaridade incontornvel obriga que a discusso sobre o esvaziamento do espao pblico como lugar da infncia considere, necessariamente, a atuao da criana nos espaos privados.

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    A distino entre pblico e privado, segundo a qual o domnio privado por excelncia o lcus da famlia, to difundida ocidentalmente, no se trata de uma constante histrica. Segundo Aris (1960/2006), esta distino surge apenas modernamente, acompanhando o surgimento do sentimento da infncia e do sentimento de famlia. De acordo com o autor, o sentimento da infncia, inexistente na sociedade medieval, comea a tomar forma a partir do sculo XIV, e s no sculo XVIII a criana assume um lugar central dentro da famlia.

    tambm neste perodo que se torna visvel, segundo Aris (Ibid, p. xix), o recolhimento da famlia longe da rua, da praa, da vida coletiva, e sua retrao dentro de uma casa mais bem defendida contra os intrusos. Este recolhimento ocorre mediante uma reorganizao fsica do espao privado, que at ento funcionava como extenso do espao pblico, atravs da especializao dos cmodos:

    Essa especializao dos cmodos da habitao, surgida inicialmente entre a burguesia e a nobreza, foi certamente uma das maiores mudanas da vida quotidiana. Correspondeu a uma necessidade nova de isolamento. [...] Outrora, vivia-se em pblico e em representao, e tudo era feito oralmente, atravs da conversao. Agora, separava-se melhor a vida mundana, a vida profissional e a vida privada: a cada uma era determinado um local apropriado como o quarto, o gabinete ou o salo. (Ibid, p.184)

    A reorganizao da casa concomitante, segundo Aris (Ibid, p.186), a uma reforma dos costumes, em favor da intimidade de uma famlia reduzida aos pais e seus filhos, sem a presena de agregados. O convvio entre os pais e as crianas se intensifica e o desenvolvimento deste sentido de famlia estabelece a necessidade de proteo do corpo da criana. A famlia emerge, assim, de acordo com Marzulo (2005, p.39, 50), como instituio ou dispositivo de construo e afirmao da vida ntima. Em paralelo, assume um papel de mediao para fora de sua interioridade, articulando-se com a escola. A famlia constitui-se, ento, como organizao social caracterizada por uma dupla funo mediadora, articulada entre o ntimo e o social.

    Contemporaneamente, o redesenho entre os domnios pblico e privado, em favor da esfera privada, descrito por inmeros autores como caracterstico da sociedade atual, guarda semelhanas com o processo descrito por Aris. Sobretudo, quando o recolhimento ao espao privado est associado a uma maior necessidade de proteo da criana, segundo Karsten (2008), marcada pelo entendimento de que o espao externo oferece riscos integridade fsica e moral da criana, entendida como ente altamente vulnervel.

    A disseminao de uma poltica do medo associada, de acordo com Bauman (2001, p.49, 110) institucionalizao dos medos urbanos, acaba desestimulando a

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    vivncia do espao pblico pelas crianas, restringindo sua atuao pblica a espaos protegidos e controlados. Cria-se, segundo Sennett (1988), uma sociedade intimista, que induz ao declnio da vida pblica. O controle excessivo desqualifica a experincia urbana ao impedir o contato da criana com a diversidade que a cidade oferece, empobrecendo sua percepo espacial e tambm sua experincia cvica e social.

    Ademais, a progressiva reduo dos espaos pblicos afeta os mbitos de sociabilidade informal urbana, principalmente entre classes (KAZTMAN, 2001). Ao estimular o convvio entre iguais, o recolhimento ao privado uniformiza a experincia, e no encoraja o enfrentamento da ambivalncia dos seres humanos. Na perspectiva sennettiana, mencionada por Bauman (2001), deixa de haver a capacidade de conviver com o estranho, o que subverte o entendimento da cidade como espao onde estranhos tm chance de se encontrar, mantendo tal condio.

    Na atualidade, tambm ocorre uma reorganizao do espao privado, de forma anloga ao perodo analisado por Aris (1960/2006), agora pela valorizao do lazer. A casa, que antes abrigava uma famlia mais numerosa, passa a oferecer mais espao criana, em parte pela ausncia das mes que ingressam no mercado de trabalho, mas, principalmente, por disponibilizar maiores opes de diverso. Essas novas possibilidades devem-se, em grande parte, s novas tecnologias, inicialmente da televiso e, posteriormente, do computador pessoal, da internet e da comunicao virtual. Alm disso, criam-se espaos exclusivos de recreao, que consolidam o dentro como lugar das crianas, assegurando que assumam, com desenvoltura, o domnio sobre o privado.

    Todas estas mudanas refletem, segundo Schapira (2002), o ritmo da globalizao, mas revelam, especialmente, as transformaes familiares que vm ocorrendo na sociedade contempornea, marcadas pela individualizao dos projetos. A partir disto, supomos que o crescente processo de recolhimento ao espao privado intensifica o papel da famlia como instituio mediadora entre o pblico e o privado e, consequentemente, da experincia urbana da criana.

    Estudos recentes ratificam tal suposio, ao constatarem, por exemplo, que o medo ambiental dos pais vem se colocando, cada vez mais, como importante barreira liberdade de movimento das crianas (VEITCH et. al., 1996; HARLOFF; LEHNERT; EYBISCH, 1998), mesmo que se configure como insegurana imaginria (TONUCCI et.al., 2002). Alm disso, verifica-se que a autonomia infantil est diretamente associada s caractersticas dos pais, dentre as quais se destaca a escolaridade, pois, segundo Tonucci et. al., pais mais escolarizados tendem a conceder menor liberdade aos filhos no espao urbano.

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    Corroborando este entendimento, estudos realizados ainda nas dcadas de 60 e 70 indicam que a utilizao do espao pelas crianas varia de acordo com as caractersticas da famlia.

    O socilogo americano Herbert Gans (1965), por exemplo, classificou os tipos de famlia encontrados na sociedade americana poca, enquanto analisava um bairro operrio talo-americano de Boston. Indicando as peculiaridades da relao entre pais e filhos, Gans observou que nas famlias centradas no adulto, as crianas deviam se comportar como adultos em miniatura e a relao delas com os pais era distante. Nas famlias centradas na criana e naquelas orientadas pelo adulto, os pais subordinavam suas vontades s necessidades dos filhos e possuam uma relao de dilogo e interao. Com a diferena de que, no ltimo tipo, havia um claro direcionamento para um estilo de vida desejvel.

    No bairro analisado por Gans, a famlia centrada no adulto era predominante e o espao privado era, nitidamente, domnio dos adultos, pois nele as crianas tinham suas atividades limitadas. No espao pblico, em contrapartida, elas podiam agir de acordo com sua faixa etria, com liberdade e em interao com seus pares. A vida urbana do bairro era movimentada e as crianas brincavam nas ruas, mantendo a tradio das geraes anteriores.

    O estudo realizado na Inglaterra por Elizabeth Bott (1976), sobre papis conjugais e rede social, tambm d pistas de como se estabelece a relao da famlia com o espao urbano. Segundo Bott, casais com papis segregados, ou distantes, tendem a ter uma malha estreita, com vnculos entre pares, estabelecidos por afinidade etria ou de gnero, mais fortes que os familiares. Isto fortalece os laos de vizinhana e a identificao da famlia com o lugar. Por outro lado, os casais com papis conjuntos, ou prximos, tendem a ter uma malha frouxa, na qual as relaes fora do ncleo familiar so esparsas. Neste caso, a baixa identificao com a vizinhana pode determinar menor vnculo com o lugar de moradia e uma maior coeso entre pais e filhos.

    Articulando os estudos de Gans e Bott aos resultados dos estudos recentes de Tonucci et.al. (2002), Oliveira (2004) e Karsten (2005), possvel estabelecer um cruzamento entre as prticas das crianas e as caractersticas da famlia, conforme o quadro sntese abaixo (Ilustrao 9, prxima pgina). Inicialmente, tomando Gans e Bott como referncia, a comparao aponta que a utilizao do espao pblico pelas crianas tende a ser mais intensa nas famlias centradas nos adultos, cujos laos internos so mais segregados e as relaes de vizinhana so mais fortes. Nesta situao, o domnio do adulto sobre o privado conduz, obrigatoriamente, as crianas para o espao externo. Por

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    outro lado, famlias mais coesas e, portanto, mais centradas nas crianas, onde o convvio entre pais e filhos mais harmnico, tendem a intensificar a vivncia do espao privado.

    Ilustrao 9 Cruzamento entre prticas espaciais das crianas e caractersticas da famlia

    Fonte: elaborado pela Autora

    Alm disso, fica clara a gradao na experincia pblico-privado, que vai da vivncia mais intensa at a no-vivncia. Articulando os estudos de Oliveira (2004) e Karsten (2005), observamos que, em um extremo, esto as crianas em situao de risco, que possuem uma pseudoliberdade pela experincia ilimitada do espao pblico, porm sem referncia na esfera privada. Em seguida, esto as crianas do padro tradicional, que experimentam intensamente o pblico pela pouca liberdade na esfera privada, caracterizada como domnio dos adultos. Numa posio intermediria, esto as crianas do padro recente do espao aberto, que caminham pelas ruas e possuem uma experincia equilibrada entre pblico-privado e uma boa interao com os pais. Em seguida, vm as crianas da gerao banco de trs, cuja experincia do espao pblico dosada e mediada pelos pais. Por fim, no outro extremo, esto as crianas do espao fechado, para as quais a rua apenas circulao e que possuem uma vivncia quase nula do espao pblico, pelo excesso de proteo ou insegurana dos pais.

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    Alguns destes estudos apontam, tambm, que h uma diferenciao de classe nos padres de utilizao do espao urbano. Por este motivo, no prximo item vamos retomar tais autores, examinando como a insero da famlia na classe pode afetar o cotidiano da criana, e se materializar no vivido.

    1.5. Espao social: a insero na classe e sua materializao no vivido

    Pobres e ricos. Centro e periferia. Estigma versus status. Diferenas que implicam em espacialidades distintas e do origem a formas particulares de apropriao. A vivncia do espao marcada pelas diferenas no espao de cada criana. No intuito de compreender que diferenas so estas e como afetam a experincia urbana das crianas, comeamos por analisar alguns exemplos da materializao dos aspectos sociais no vivido para, em seguida, examin-las do ponto de vista terico.

    Retomando os estudos anteriormente analisados, percebemos que, em Oliveira (2004), h uma ntida associao entre a populao de menor renda e as crianas que caminham pela rua. Segundo a autora, pelo fato das habitaes caractersticas deste estrato econmico, em sua maioria localizadas em favelas e cortios, apresentarem espaos internos exguos, as crianas so conduzidas, quase que naturalmente, ao espao externo. E, ainda que o espao pblico tambm apresente condies pouco favorveis, pelas vielas estreitas, a topografia ngreme, a falta de saneamento bsico ou a escassez de praas e parques, estas crianas fazem da rua um espao de lazer e brincadeiras. Em oposio, as crianas que no caminham pela rua possuem um espao privado mais atraente, marcado por apartamentos e condomnios, shoppings e clubes, e pelos deslocamentos de carro. Um universo distante da escassez descrita anteriormente, associado, consequentemente, populao de maior renda.

    O entendimento de Oliveira convergente diferenciao de classe na vivncia do espao urbano, apontada por Gans (1965) e Bott (1976). Estes autores indicam que, enquanto os estratos inferiores so inclinados a uma maior utilizao do espao pblico, os estratos superiores tendem a intensificar o convvio no espao privado.

    Tal diferenciao fica explcita em Meu Tio, pelcula de Tati (1958) anteriormente mencionada, a partir da emergncia, no seio de uma famlia de alta renda, de um padro de sociabilidade fundado no recolhimento ao privado (Ilustrao 10, prxima pgina), em oposio sociabilidade urbana tradicional, baseada na rua como espao de lazer (Ilustrao 11, prxima pgina). Ao narrar o cotidiano do casal Arpel e de seu nico filho

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    Grard, que vivem em uma tpica casa modernista, cercada de muros, o filme tambm apresenta o impacto do novo padro de sociabilidade sobre a criana. Enquanto os pais se deslumbram com o status garantido pela casa e suas inovaes tecnolgicas, o menino se entedia pelo isolamento em relao ao mundo exterior (Ilustrao 12). A alegria dele se expressa apenas quando ganha as ruas da cidade, especialmente na companhia do tio Hulot, admirado pelo