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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP André Anéas A racionalização da experiência de Deus no Calvinismo da Reta Doutrina Mestrado em Teologia SÃO PAULO 2018

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

André Anéas

A racionalização da experiência de Deus no Calvinismo da Reta Doutrina

Mestrado em Teologia

SÃO PAULO

2018

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Secretaria Acadêmica da Pós-Graduação

André Anéas

A racionalização da experiência de Deus no Calvinismo da Reta Doutrina

Mestrado em Teologia

SÃO PAULO

2018

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia, sob a orientação do Prof. Dr. Ney de Souza.

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Banca Examinadora

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao Pai de Jesus de Nazaré, que é Deus indomesticável

e, ao mesmo tempo, Deus que se revela de modo amoroso para gente tão limitada

como o presente autor.

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de

Financiamento 001.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, pois só ele sabe da noite escura em que me encontrei na

produção deste trabalho e somente Ele, com sua graça, para me sustentar na

imensidão do labirinto de mim mesmo.

Agradeço a minha família. Sem o apoio deles, dificilmente concluiria esta

etapa e colaboraria com a comunidade acadêmica.

Agradeço a minha esposa. Cada sorriso, cada palavra, o incentivo, a

paciência, o tom de voz, o perfume no lar, sua presença na minha solidão em meio

aos livros... Tudo isso e muito mais foi fundamental.

Agradeço a CAPES e ADVENIAT pelas bolsas que recebi nesta jornada.

Foram instrumentos de Deus em minha vida.

Agradeço a PUC-SP. Me sinto constrangido pela forma que fui recebido

nesta casa. Em especial, agradeço aos professores Ney de Souza, que

brilhantemente me orientou, Antônio Manzatto e Donizete, pelas importantíssimas

contribuições, Matthias Grenzer, por toda motivação e suporte, professores que tive

a honra de apreciar suas aulas (professores Gilvan e Edélcio e professora Maria

Freire), ao professor Boris, que acreditou em meu projeto de pesquisa, e ao

professor Alex Villa Boas, que foi muito generoso em me ajudar no início desta

caminhada acadêmica. Tenho muito gratidão por todos vocês.

Agradeço a Faculdade Teológica Batista de São Paulo (professor Lourenço,

professora Madalena, professor Lucas Merlo, demais docentes e toda a equipe

administrativa. Minha casa, que sempre me apoia e me incentiva.

Agradeço a Rubem Alves, que, através dos livros, se tornou meu amigo

nesta caminhada.

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RESUMO

O processo de racionalização da experiência de Deus é analisado no objeto desta

pesquisa: o Calvinismo da Reta Doutrina. O indivíduo que teve uma experiência

místico-religiosa é submetido à engrenagem de um tipo de comunidade religiosa que

privilegia a confissão da reta doutrina como elemento decisivo para se compreender

se o fiel é, de fato, um salvo. A experiência de fé é, portanto, desprivilegiada, em

relação à aspectos racionais e cognitivos devidamente sistematizados em

confissões doutrinárias. A investigação proposta analisa os sintomas e as causas do

processo de racionalização. A grande questão a ser respondida é se a teologia

“ortodoxa”, “tradicional”, “bíblica”, “evangélica” e “reformada” do Calvinismo da Reta

Doutrina é, na verdade, uma sombra que encobre racionalização da experiência de

Deus, fruto da influência de elementos da dinâmica da religião e da

descontextualização do papel apologético e contexto sócio-político da escolástica

protestante, provocando desequilíbrio entre fé proposicional e fé experiencial. A

resposta é positiva. Analisando o período da escolástica protestante, é possível

perceber elementos que desfavorecem qualquer tipo de experiência de Deus, pois a

razão é privilegiada em forma de sistematizações doutrinárias e confissões de fé,

cujo papel é eliminar qualquer dúvida que uma experiência subversiva do fiel possa

gerar no sistema rígido de pensamento deste protestantismo. A dúvida é inimiga

mortal da “verdade absoluta” que é sustentada e protegida por uma teoria de

conhecimento protestante, cuja origem se encontra no passado. Se trata de um tipo

de protestantismo que tem o presente cristalizado, um sentimento saudosista e que

tem em seus inimigos um agente constituinte de sua própria identidade. No

Calvinismo da Reta Doutrina experimentar o sagrado não domesticado é correr

riscos. Pensar diferente da ortodoxia estabelecida é passível do pior tipo de

acusação: heresia.

Palavras-chave: Experiência de Deus, Racionalização, Protestantismo, Calvinismo.

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ABSTRACT

The process of rationalizing the experience of God is analyzed in the object of this

research: Calvinism of the Right Doctrine. The individual who has had a mystical-

religious experience is subjected to the working of a type of religious community

which privileges the confession of right doctrine as a decisive element in

understanding whether the believer is, in fact, a saved person. The experience of

faith is therefore underprivileged, in relation to rational and cognitive aspects duly

systematized in doctrinal confessions. The proposed research analyzes the

symptoms and causes of the rationalization process. The great question to be

answered is whether the “orthodox”, “traditional”, “biblical”, “evangelical”, and

“reformed” theology of Calvinism of the Right Doctrine is in fact a shadow that hides

rationalization of the experience of God, fruit of the influence of elements of the

dynamics of religion and the decontextualization of the apologetic role and socio-

political context of Protestant scholasticism, provoking imbalance between

propositional faith and experiential faith. The answer is positive. Analyzing the period

of protestant scholasticism, it is possible to perceive elements that disfavor any kind

of experience of God, because reason is privileged in the form of doctrinal

systematizations and faith confessions, whose role is to eliminate any doubt that a

subversive experience of the faithful can generate in the rigid system of thought of

this protestantism. Doubt is a mortal enemy of the “absolute truth” that is sustained

and protected by a theory of protestant knowledge, whose origin is in the past. It is a

type of protestantism that has the present crystallized, a nostalgic feeling and that

has in its enemies an agent that constitutes its own identity. In Calvinism of the Right

Doctrine to experience the not tamed sacred is to take risks. To think differently from

established orthodoxy is liable to the worst kind of accusation: heresy.

Key-words: Experience of God, Rationalization, Protestantism, Calvinism.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 10 CAPÍTULO I – OS SINTOMAS DA RACIONALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA DE DEUS NO CALVINISMO DA RETA DOUTRINA ................................................................................................... 22 Introdução ............................................................................................................................................ 22 1. Presente, passado e futuro .......................................................................................................... 22 1.1. A autocrítica de José Comblin ................................................................................................. 25 1.2. Os sinais dos tempos na Bíblia e o comportamento farisaico ................................................. 30 1.3. O risco do comportamento farisaico ........................................................................................ 36 2. O Calvinismo da Reta Doutrina .................................................................................................... 38 2.1. A conversão do protestante ..................................................................................................... 39 2.2. A teoria do conhecimento protestante ..................................................................................... 49 2.3. O mundo dos protestantes ....................................................................................................... 64 Conclusão ............................................................................................................................................ 95 CAPÍTULO II – O “SAUDOSO” ESCOLASTICISMO PROTESTANTE .............................................. 97 Introdução ............................................................................................................................................ 97 1. A experiência de Deus como antecedente da Reforma Protestante ............................................ 99 2. A Reforma Protestante ............................................................................................................... 101 3. Contra-Reforma .......................................................................................................................... 104 3.1. Trento: doutrina das autoridades ........................................................................................... 106 3.2. Trento: doutrina da justificação pela fé .................................................................................. 108 3.3. Trento: doutrina dos sacramentos ......................................................................................... 110 4. A Escolástica Protestante ........................................................................................................... 111 4.1. Em direção ao século das Luzes (Aufklärung) ....................................................................... 113 4.2. Fetiche pela verdade absoluta ............................................................................................... 118 4.3. Princípio formal e material ..................................................................................................... 118 4.4. Teologia natural e teologia revelada ...................................................................................... 120 4.5. Sangue, política e ceticismos religioso .................................................................................. 121 4.6. Puritanismo ............................................................................................................................ 126 4.7. Sínodo de Dort ....................................................................................................................... 134 4.8. Assembleia de Westminster ................................................................................................... 141 5. Causas da racionalização da experiência de Deus na Escolástica Protestante ........................ 159 Conclusão .......................................................................................................................................... 161 CAPÍTULO III – A EXPERIÊNCIA DE DEUS EM CALVINO ............................................................. 163 Introdução .......................................................................................................................................... 163 1. Biografia de João Calvino ........................................................................................................... 163 1.1. Influências .............................................................................................................................. 164 1.2. Adesão (conversão) à Reforma ............................................................................................. 168 1.3. Genebra ................................................................................................................................. 172 1.4. Estrasburgo e o retorno à Genebra ....................................................................................... 174 1.5. Motivos do sucesso de Calvino .............................................................................................. 178 2. Estudo comparativo de reformadores ........................................................................................ 179 2.1. Lutero ..................................................................................................................................... 180 2.2. Calvino ................................................................................................................................... 183 3. As Institutas da Religião Cristã ................................................................................................... 186 3.1. Livro I ..................................................................................................................................... 189 3.2. Livro II .................................................................................................................................... 192 3.3. Livro III ................................................................................................................................... 195 3.4. Livro IV ................................................................................................................................... 198 4. Calvino era calvinista? ................................................................................................................ 200 5. Causas da racionalização da experiência de Deus em Calvino ................................................. 213 Conclusão .......................................................................................................................................... 214 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................ 216

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................. 222

LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Domesticação do sagrado e institucionalização da religião 36

LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Textos bíblicos sobre Sinais dos Tempos 31 Tabela 2 – Assuntos versus visão puritana 129

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INTRODUÇÃO

A possibilidade da experiência de Deus é real1 . Esta possibilidade se

aproxima, portanto, do conceito de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), que

compreende que a essência da religião “não é pensamento nem ação, senão

intuição e sentimento” 2 . Porém, o critério antropocêntrico no empreendimento

teológico de Schleiermacher, chamado de sentimento de dependência3, não significa

de forma profunda a experiência de Deus a que este trabalho se refere. Assim, a

voz de Rudolf Otto (1869-1937), que critica o sentimento de dependência de

Schleiermacher, afirmando que existe uma diferença qualitativa, além de absoluto e

relativo em relação a qualquer sentimento análogo, precisa se fazer ouvir. Otto

coloca o sujeito da experiência em um estado de nulidade perante o absolutamente

avassalador, o que ele chama de sentimento de criatura. Este sentimento religioso

no fenômeno da experiência de Deus não é fruto de auto percepção, mas sim um

“efeito colateral, subjetivo”. É “a sombra de outro elemento de sentimento, que sem

dúvida se deve em primeiro lugar e diretamente a um objeto fora de mim. Esse é

justamente o objeto numinoso”.4 5

Diante de tal fenômeno – a experiência de Deus –, considera-se a seguir

dados de uma pesquisa que atesta a relevância do tema: a experiência místico-

1 A terminologia “experiência de Deus” neste trabalho significa o mesmo que “experiência religiosa”. Tendo em vista que a experiência religiosa tem como marcas os pontos destacados na sequência, entende-se que “experiência de Deus” possui aqui o mesmo sentido de “experiência místico-religiosa”. Utilizando William James como referência para descrever o que é místico, se compreende que a experiência religiosa pessoal “tem sua raiz e seu centro em estados místicos de consciência”, uma vez que são: a. inefáveis, pois sua qualidade necessita ser experimentada diretamente, uma vez que estes estados são muito mais estados de sentimento do que estado de intelecto – Otto, em O Sagrado, reflete esta compreensão quando desafia o leitor que não pode experimentar um momento de excitação religiosa a não continuar lendo sua obra (OTTO, Rudolf. O sagrado. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2011, p. 40) –; b. possui qualidade noética, “conquanto muito semelhantes a estados de sentimento, os estados místicos parecem ser também, para os que experimentam, estados de conhecimento, estados de visão interior dirigida a profundezas da verdade não sondadas pelo intelecto discursivo”; c. de forma menos nítida, mas também encontradas, está a transitoriedade, pois estes estados não são sustentados por muito tempo; d. e a passividade, pois mesmo existindo atos voluntários em momento preliminar da experiência, o místico tem a impressão de que sua própria vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo conduzido por uma força superior (JAMES, William. Variedades da experiência religiosa. São Paulo: Editora Cultrix, 1995, p. 237-238). 2 SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião. São Paulo: Novo Século, 2000, p. 33. 3 DREHER, Luís H.. O método teológico de Friedrich Schleiermacher. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 50. 4 OTTO, Rudolf, 2011, p. 41-42. 5 As formulações teológicas e fenomenológicas de Otto e Schleiermacher não são objetos da análise deste trabalho.

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religiosa. Foi investigada uma igreja protestante histórica – uma importante igreja

presbiteriana do estado de São Paulo – com o objetivo principal de atestar a

conexão entre as características do escolasticismo protestante e a membresia da

comunidade religiosa, o que ficou evidente. Especificamente sobre experiência

religiosa, os fieis foram questionados se os mesmos já vivenciaram uma experiência

de Deus, a qual não conseguissem explicar de forma racional. Também foi

perguntado quais ações práticas estes fieis executavam em sua vida de forma

natural, e não pela a obrigatoriedade resultante do fato de estarem envolvidos com o

cristianismo em uma igreja local. Após o cruzamento das respostas das duas

perguntas foi possível averiguar que os cristãos que tiveram uma experiência de

Deus têm ações de forma natural relacionadas, por exemplo, à evangelização e

ajuda aos pobres consideravelmente superior aos que dizem não ter vivenciado tal

experiência. É importante destacar que os dados foram analisados dentro de três

categorias de entrevistados: membros da comunidade religiosa de origem

presbiteriana; membros da comunidade religiosa cuja origem é outra denominação;

e não membros. Desta forma, buscou-se evitar qualquer tipo de variante que

pudesse prejudicar a qualidade dos dados e, consequentemente, das informações

obtidas. Interessante notar que quanto mais distante do contexto histórico

protestante – categoria de membros originários presbiterianos – maior o grau de

influência da experiência religiosa sobre os cristãos e, consequentemente, maior a

incidência por uma prática natural em relação aos itens questionados. A pesquisa

revela que quanto mais próximo deste círculo protestante histórico, neste caso o

presbiterianismo, o pensamento da escolástica protestante exerce maior influência

nos fieis.6

Esta relação entre experiência de fé e obras fica bastante nítida nos escritos

de Martinho Lutero (1483-1546). Muito embora sua obra enfatize justificação

somente pela fé7, ele deixa muito claro em seu prefácio da carta aos Romanos que a

fé – experiência de Deus – possui como consequência na vida do fiel boas obras.

Assim, a ideia do reformador endossa a pesquisa citada anteriormente quando

discorre sobre a experiência da fé e sua consequência natural, as obras. Em 6 ANÉAS, André. Protestantismo e Mística – razão e experiência mística no protestantismo histórico. São Paulo: Fonte Editorial, 2016, p. 85-89. 7 Para mais informações sobre a justificação pela fé em Lutero se recomenda a leitura do artigo publicado no site da Convenção Batista Brasileira (CBESP) sobre o “sola Fide” (ANÉAS, André. Sola Fide – a salvação é concedida somente pela fé. Disponível em: <https://bit.ly/2MsNm92> Acesso em: 14 de set. 2018).

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primeiro lugar, Lutero argumenta sobre as pessoas que não compreendem a fé

como uma experiência de Deus. Por conta desta incompreensão, forçam para si

mesmas a ideia de que creem e acabam incorrendo no engano e no erro de

buscarem as “boas obras” para somarem à fé e se salvarem. Racionalizam a fé. Ele

diz: A fé não é uma ilusão ou um sonho humano, que alguns consideram que seja fé. E quando eles percebem que não há melhoria de vida e as boas obras não se seguem, e mesmo assim conseguem ouvir e falar muito de fé, eles caem no engano e no erro e dizem que a fé não é suficiente; é preciso fazer boas obras se é que se quer ser piedoso e obter a salvação. É isso que acontece quando ouvem o evangelho: pelas próprias forças criam uma ideia no coração que diz: ‘Eu creio’. E é isso então que consideram verdadeira fé. Mas por ser invenção e ideia humana, que a intenção profunda do coração nunca capta, ela acaba não produzindo nada e não se segue melhoria alguma.8

A seguir, o reformador enfatiza a experiência de Deus do fiel, esta

experiência de fé, como uma obra de Deus no crente. Esta experiência não é algo

que passa despercebido ou algum tipo de construção intelectual. Ao contrário, se

refere a um contato real entre Deus e o homem, como Otto defende. Mas a fé é uma obra de Deus em nós que nos transforma e nos faz nascer de novo (Jo 1.13). E ela mortifica o velho Adão, faz de nós uma pessoa totalmente diferente no coração, no espírito, na mente e em todas as nossas forças e traz consigo o Espírito Santo. Ó coisa viva, operosa, ativa, poderosa é essa fé, sendo impossível que não resulte em fazer o bem incessantemente.9

Por fim, destaca-se a relação que Lutero faz entre as boas obras e a

experiência de fé, sendo uma consequência natural da outra. A descrição do homem

pós experiência é belíssima e revela a dimensão e a profundidade da experiência de

Deus, em que o homem age no mundo sem necessidade de “coação”, mas sim de

forma espontânea e natural. Agora, possuidor de tal fé, o homem está tão confiante

e inabalável na graça de Deus que é capaz de morrer por ela. E ela [a fé] nem mesmo pergunta se há boas obras por fazer; antes de alguém perguntar, ela já as fez e está sempre a fazê-las. Mas quem não faz tais obras, este é um homem sem fé, tateando e procurando à sua volta a fé e as boas obras, e não sabe nem o que é fé nem o que são as boas obras, e mesmo assim papagueia palavras sem fim sobre a fé e as boas obras. A fé é a confiança viva e inabalável na graça de Deus, tão segura que estaria disposta a morrer mil vezes por isso. E tal confiança e reconhecimento da graça de Deus deixam o homem feliz, persistente e agradável para com Deus e todas as criaturas, e isso quem realiza, na fé, é o Espírito Santo. É por isso que todo homem se torna disposto e pronto, sem coação, a fazer o bem, a servir a todos, a tudo sofrer por amor e louvor a Deus que lhe

8 LUTERO, Martinho. Martinho Lutero: uma coletânea de escritos. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 193 – grifo meu. 9 Ibidem, p. 193-194.

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demonstrou tal graça. Portanto, é tão impossível separar da fé a obra quanto é impossível separar do fogo o queimar e o luzir. [...] Pede a Deus que opere a fé em ti, para não permaneceres eternamente sem fé, não importa o que inventares ou fizeres.10

Os benefícios da experiência religiosa são evidentes e, mais do que isto, ela

é a essência da religião. A experiência de Deus é o grande teosofema11. A religião

dá sentido para a vida e o sentido da vida é um sentimento, interior e subjetivo, que

dispensa justificativa ou explicação.12 Nas palavras de Rubem Alves (1933-2014),

que também enfatiza a possibilidade do homem se colocar pronto para morrer diante

de tal sentimento, a experiência que a religião proporciona não é algo que se construa, mas algo que nos ocorre de forma inesperada e não preparada, como uma brisa suave que nos atinge, sem que saibamos donde vem nem para onde vai, e que experimentamos como uma intensificação da vontade de viver a ponto de nos dar vontade de morrer, se necessário for (...).13

Salmos e poemas vem primeiro na religião, pertencem às origens,

preservando “aquele espanto primordial frente ao sagrado. Já os tratados de

teologia e as explicações doutrinárias são construções tardias, depois que passou o

amor e a dor se foi, depois que o espanto acabou e ficou o vazio.”14 Não é sem

razão que Rudolf Otto, em seu mais notado trabalho, O Sagrado, afirma que a

“ortodoxia não soube fazer justiça ao elemento irracional do seu objeto e mantê-lo

vivo na experiência religiosa”15.

Aqui se encontra o grande problema: quando a ortodoxia busca racionalizar

a experiência de Deus. Cabe aqui um esclarecimento acerca do problema, que não

é a racionalização em si, mas diz respeito ao desequilíbrio que uma ênfase

equivocada na razão pode causar. Quando Kant afirma que “todos os nossos

conhecimentos começam com a experiência”16, ele ressalta que há necessariamente

após a experiência um conhecimento cognitivo, uma racionalização. Assim como

Otto, neste trabalho se concorda com esta assertiva. Entretanto, quando a

racionalização da experiência de Deus move a religião a desprezar os elementos

irracionais e torna o conhecimento fruto da razão em algo absoluto, ela se torna

10 Ibidem, p. 194 – grifo meu. 11 Significa uma questão teológica fundamental, que influencia toda uma teologia. Esta afirmação se refere a opinião do autor do presente trabalho. 12 ALVES, Rubem. O que é religião?. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 120-121. 13 Ibidem, p. 120. 14 ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Edições Paulinas, 1982, p. 10. 15 OTTO, Rudolf, 2011, p. 35. 16 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Edição Kindle: Publicado em 28 de agosto de 2016, pos. 88.

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mero racionalismo, conforme o próprio Otto atesta, sempre destacando a

importância do equilíbrio entre irracional e racional como critérios indispensáveis

para a própria religião. 17 É exatamente esta audácia da razão em relação a

experiência religiosa que se pretende denunciar aqui.

Citando Max Weber, Rubem Alves nos diz que a difícil lição que se aprende

da ciência é que o “sentido da vida não pode ser encontrado ao fim da análise

científica, por mais completa que seja. E nos descobrimos expulsos do paraíso,

ainda que com os restos do fruto do conhecimento em nossas mãos.”18 Quando a

ortodoxia racionaliza a experiência, com o pretexto dela, uma vez racionalizada, dar

razão a tudo, assassina o aspecto subjetivo e emocional da religião, onde está o

sentido da vida. O religioso ortodoxo, por sua vez, é expulso do paraíso em que a

experiência fluía viva. Assim, a religião da ortodoxia se torna inventora de gaiolas e

aprisiona o “pássaro Sagrado” para “possuir aquilo que, de outra forma voaria livre,

para longe.”19

É este processo de racionalização da experiência de Deus – o diagnóstico –

que este trabalho investiga na ortodoxia protestante. Pode-se dividir este

empreendimento em duas grandes partes na linha investigativa proposta:

identificação dos sintomas e identificação das causas da racionalização da

experiência de Deus na ortodoxia protestante. A investigação não será iniciada pelas

causas que desencadeiam a racionalização da experiência religiosa até identificar os

sintomas. Será feito o caminho inverso. Uma vez identificado o objeto, serão

levantados os sintomas e se retornará ao passado para identificação das causas da

racionalização da experiência de Deus. Se entende que esta opção destaca as

consequências – sintomas – desta racionalização e dá ênfase no objeto já

submetido a este processo. Da mesma forma como uma doença em estágio

avançado e com os sintomas claros tem maior eficácia em conscientizar futuros

doentes à prevenção, observando o objeto sofrendo das consequências da

racionalização se tem maior chance de conscientização do leitor sobre os malefícios

deste processo.

A igreja protestante histórica é associada a um pensamento teológico

ortodoxo e também é tida por “tradicional”, “bíblica” e “evangelical”. Quando se fala 17 OTTO, Rudolf, 2011, p. 178. 18 ALVES, Rubem, 2013, p. 119. 19 ALVES, Rubem. Ostra feliz não faz pérola. Edição Kindle: Publicado em 1 de março de 2008, pos. 3234.

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de presbiterianismo existe ainda um outro termo bastante enfatizado para

caracterizar o pensamento teológico deste grupo, o qual tem relação com os já

citados acima: reformado. A teologia reformada20 é sempre referenciada quando se

pretende associar a teologia com um comprometimento bíblico, influenciada pelo

reformador João Calvino e com um elemento de sistematização teológica muito

presente, sistematização esta que será abordada na presente pesquisa com atenção

especial. Esta argumentação se destina, em especial, para este grupo. Importante

destacar que não se quer incorrer no erro de produzir um conhecimento que não se

articula com a linguagem do grupo estudado e que deixa de ser interlocutor com os

participantes deste contexto. Muito pelo contrário, existe um engajamento com

vínculo emocional que produz uma argumentação de falar interessado no objeto,

principalmente para aqueles que estão em algum grau identificado com ele.21

Outro erro que se pretende evitar é o da generalização. O objeto não é uma

denominação protestante, não é uma instituição religiosa específica e não é uma

igreja. Na realidade, se compreende que esta ortodoxia pode estar presente em

várias facetas do protestantismo. Portanto, o produto deste trabalho tem

abrangência que expande os limites denominacionais no protestantismo e, inclusive,

no cristianismo22. O oposto também é verdadeiro, pois dentro do contexto em que a

ortodoxia referida nesta pesquisa está predominantemente presente existe uma

série de atores que são um contraponto daquilo que é denunciado neste trabalho.23

Se entende que generalizar o objeto, o associando a um grupo socialmente

reconhecido, não é um caminho metodológico correto e, por isso, Rubem Alves

compreende que não existe como delimitar seu objeto sem a definição de um tipo

ideal24. Para delimitar o objeto, portanto, foi realizado o uso dos tipos ideais25 de

20 Roger Olson (OLSON, Roger. Teologia Arminiana – Mitos e Realidades. São Paulo: Editora Reflexão, 2013) defende a tese de que o arminianismo clássico (teologia que contrapõe a calvinista) é uma teologia que possui aproximações claras com a teologia reformada. Mesmo assim, nesta pesquisa quando referenciado o termo “reformado” trata-se da teologia calvinista, comumente associada ao termo. 21 A relação entre cientista e objeto deste trabalho é semelhante a relação que existe entre Rubem Alves e o Protestantismo (ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão. São Paulo: Edições Loyola, 1979, p. 16-18), naquilo que se refere ao interesse para com o objeto. 22 Rubem Alves publicou, 26 anos depois, uma nova edição de seu livro Protestantismo e Repressão. Porém, houve uma alteração no título para “Religião e Repressão” (ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Edições Loyola, 2005). Assim, a extensão do termo “Protestantismo” foi ampliada para “Religião”, uma palavra muito mais ampla, que mereceu na nova edição oito páginas sob o título “Trinta anos depois”. 23 Se destacam alguns nomes dentro do contexto presbiterianismo (Igreja Presbiteriana do Brasil) que são contraponto daquilo que é denunciado aqui: pastores Ricardo Agreste e Antônio Carlos Costa. 24 ALVES, Rubem, 1979, p. 34.

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protestantismo que Rubem Alves define em Protestantismo e Repressão26. Ele

estabelece três tipos ideais no Protestantismo: 1. O Protestantismo da Reta

Doutrina 27 , que privilegia a “concordância com uma série de formulações

doutrinárias, tidas como expressões da verdade, e que devem ser afirmadas sem

nenhuma sombra de dúvida, como condição para participação na comunidade

eclesial”; 2. O Protestantismo de sacramento, em que a confissão doutrinária tem

importância secundária em relação a participação emocional e mística na liturgia e

nos sacramentos28; 3. O Protestantismo do espírito, em que a participação eclesial

tem como marca distintiva a experiência subjetiva de êxtase religioso, deixando

tanto a confissão doutrinária como os sacramentos em caráter secundário.29 O

objeto de pesquisa deste trabalho é o Protestantismo da Reta Doutrina. Entretanto,

tendo em vista os propósitos metodológicos estabelecidos, que contemplarão

aprofundamento dentro do contexto calvinista, o objeto será descriminado como

Calvinismo da Reta Doutrina (será indicado, de forma abreviada, por CRD). A

pesquisa tem por objeto formal o Calvinismo da Reta Doutrina analisado sob o

enfoque da racionalização da experiência de Deus.30

25 Hock explica que os “tipos ideais” nos ajudam nos casos em que, ao delimitar um objeto, não encontramos “correspondência imediata em acontecimentos individuais ou em figuras da realidade histórica”. Por isso, eles servem para fornecer um “pano de fundo para algo mais ‘típico’ sobre o qual o individual pode ser enfocado de maneira tanto mais nítida” (HOCK, Klaus. Introdução à Ciência da Religião. Edições Loyola: São Paulo, 2017, p. 108). Se entende que na utilização desta metodologia neste trabalho torna-se possível a análise do objeto sem que, com isso, se caracterize ou se limite o tipo ideal a uma dada figura histórica. Além disto, por se tratar de um tipo ideal, outras pesquisas que atualizam os tipos ideais defendidos por Rubem Alves podem ser consideradas sem que, necessariamente, seja eliminado o tipo ideal elencado como objeto desta pesquisa. 26 Em relação as definições de protestantismo de Rubem Alves é digno de nota o artigo de Leonildo Campo, que discute se a identidade do Protestantismo da Reta Doutrina de Rubem Alves não foi modificada dos anos 1970, em que Alves fez sua análise, até os anos 2000 (CAMPOS, Leonildo Silveira. O discurso acadêmico de Rubem Alves sobre "protestantismo" e "repressão": algumas observações 30 anos depois. In. Religião & Sociedade, Vol. 28, No 2, 2008), e a dissertação de Rivanildo Guedes que, com aproximações ao artigo de Campos, defende a existência de mais um tipo ideal de protestantismo: Protestantismo de Experiência Racional (GUEDES, Rivanildo Segundo Pereira. Um novo jeito de ser Protestante no Brasil: Protestantismo de Experiência Racional. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo). Estas contribuições são extremamente válidas e o próprio Rubem Alves sinaliza uma “atualização” quando da nova edição. Isto, entretanto, não significa dizer que o Protestantismo da Reta Doutrina deixou de existir. Significa que o protestantismo se tornou mais complexo do que na década de 70 e que, talvez, este tipo ideal tenha ganhado uma nova roupagem. Porém, a identificação desta suposta nova roupagem careceria de uma nova pesquisa. 27 ALVES, Rubem, 1979, p. 35. 28 Ibidem, loc. cit. 29 Ibidem, p. 36. 30 Se ressalta o interesse na não generalização. Uma vez definido um tipo ideal não se quer dizer que todo calvinismo ou calvinista deva ser identificado com o Protestantismo da Reta Doutrina.

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A hipótese é que o CRD, que se coloca do lado mais pessimista em relação

a experiência místico-religiosa e tem alto grau de comprometimento com a teologia

“ortodoxa”, mais “tradicional”, mais “bíblica”, mais “evangelical” e “reformada”, estão,

na verdade, comprometidos com uma sistematização teológica, fruto de uma

racionalização da fé. Portanto, por detrás dos adjetivos relacionados a teologia do

CRD está o processo de racionalização da experiência de Deus. O teólogo

protestante ao considerar a razão em demasia, em desequilíbrio em relação a

relevância da experiência religiosa, impacta diretamente o aspecto experiencial e,

naturalmente, subjetivo da vivência da fé, que acontece na vida do fiel. Além disto, o

processo de racionalização é causado por fatores que carecem serem aprofundados

até se descortinar aquilo que é posto como a verdade. Verdade esta que acaba

tornando o lado experiencial da fé uma realidade secundária e de menor valor, pois

o que de fato importa é o que se compreende de forma racional, sistemática e

adequadamente registrado, seja em alguma confissão de fé ou documentos

redigidos por sistematizadores do passado.

Aprofundando a hipótese, o CRD, embora receba o rótulo de “ortodoxo”, é

influenciado por um processo de racionalização da experiência de Deus, processo

que é fruto de elementos da própria dinâmica da religião e de um deslocamento

indevido do contexto apologético e sócio-político da escolástica protestante para o

presente. Quando se diz “deslocamento indevido de contexto” se trata de herdar

características e ideias de movimentos do passado para o presente. Por exemplo, a

ênfase apologética do passado, que estava inserida dentro de um determinado

contexto sócio-político, ser herdada pelo presente do CRD sem a devida revisão

crítico-contextual tanto do passado como do presente. Este contexto apologético e

sócio-político precisa ser levado em consideração quando se faz uma leitura do

passado, local onde a ortodoxia protestante sistematizou sua teologia, e no

presente, para compreender a influência deste “espírito apologético” no CRD na

contemporaneidade. A grande questão a ser respondida é: a teologia mais

“ortodoxa”, mais “tradicional”, mais “bíblica”, mais “evangélica” e “reformada” do

CRD é, na verdade, uma sombra que encobre a racionalização da experiência de

Deus, fruto da influência de elementos da dinâmica da religião e da

descontextualização do papel apologético e contexto sócio-político da escolástica

protestante, provocando desequilíbrio entre fé proposicional e fé experiencial?

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Essas influências que desencadeiam o processo de racionalização da

experiência de Deus acabam colocando a experiência místico-religiosa em local de

menor relevância em relação a sistematização teológica do CRD, prejudicando a

visão do tempo presente e a compreensão do tempo futuro. Se tem um saudosismo

do passado e cria-se uma espécie de movimento “jesuânico” 31 , até mesmo

fundamentalista, o que impede o viver pleno no presente (local da experiência de

Deus) e o diálogo com a modernidade, pois ao não viver a experiência religiosa no

presente tempo os cristãos se tornam irrelevantes dentro de uma sociedade

secularizada. Aqui é importante definir este fundamentalismo, o qual se volta ao

passado32 e que se caracteriza pela busca da segurança existencial, ameaçada pelo relativismo crítico da modernidade. Trata-se da adesão firme e inquestionável às formulações da fé, como, por exemplo, a Bíblia ou o Alcorão, interpretados literalmente, e do apego a práticas religiosas tidas como tradicionais e fundamentais, muito embora sejam não raro secundárias e mais ou menos recentes.33

Em relação a tensão entre religião e modernidade, o rabino Abraham Joshua

Heschel (1907-1972) responsabiliza a religião por seus defeitos e não a ciência

secular ou a filosofia anti-religiosa pelo que ele chama de “eclipse da religião na

sociedade moderna”. Se referindo aos aspectos subjetivos e inerentes da

experiência religiosa, como fé, adoração e o amor, ele diz: É costume responsabilizar a ciência secular e a filosofia anti-religiosa pelo eclipse da religião na sociedade moderna. Seria mais honesto responsabilizar a religião por seus próprios defeitos. A religião entrou em declínio não porque foi refutada, mas porque tornou-se irrelevante, insensível, opressiva e insípida.34

A grande ênfase apologética, ainda enfatizada pelos teólogos

contemporâneos dos círculos tradicionais, contribui para este saudosismo do

passado, impedindo o teólogo do tempo presente de enfatizar a experiência de

Deus, que deveria acontecer hoje, e de dialogar com o que pensa diferente e com a

modernidade, pois “o outro” está na categoria de “inimigo” desta religião que é

belicosa e, como Heschel afirmou, trata-se de uma religião carente de sensibilidade.

Pontes deixam de ser construídas e em seus lugares sobem muros maciços que

31 BOFF, Clodovis. “Sinais dos tempos”. São Paulo: Edições Loyola, 1979, p. 32. 32 SJ, João A. Mac Dowell. Experiência religiosa e cultura moderna. In. INTERAÇÕES - Cultura e Comunidade, v. 3 n. 4, p. 17-36, 2008, p. 29. 33 Ibidem, p. 30. 34 HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. São Paulo: Edições Paulinas, 1975, p. 15.

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isolam e cegam, impedindo a visualização, reflexão e ação diante dos “sinais dos

tempos”35.

Existem argumentos e caminhos que possibilitam um equilíbrio entre fé

proposicional e fé experiencial, cujas origem se encontram no passado – teologia

escolástica – e no presente, com uma autoanálise sincera do CRD. A própria

compreensão de que a teologia calvinista do CRD é influenciada por um processo

de racionalização, com elementos da religião (a Ciência da Religião tem muito a

contribuir em relação ao descortinar sobre a mecânica da religião), deixando a

experiência de Deus em lugar de menor relevância, é um argumento por si só. A

lógica (mecanismo) para confecção e administração das doutrinas e o sitz im leben

do calvinismo do passado e do presente precisam ser compreendidos. Além disto,

entender que no próprio escolasticismo protestante existem elementos que

colaboram com a relevância da experiência de Deus é fundamental para quem

busca este equilíbrio. A espiritualidade em parte dos escritos de Calvino tem grande

contribuição neste ponto. Existem também outras teologias com novas chaves

hermenêuticas, que permitem uma melhor visualização do tempo presente. Estas

outras teologias se compreendidas menos com um “espírito apologético” e mais com

um espírito crítico-construtivo podem ter grande contribuição na elaboração de um

pensar teológico equilibrado entre fé proposicional e fé experiencial.

Portanto, o objetivo principal é analisar o processo de racionalização da fé

no CRD. Como já mencionado, o trabalho se inicia na busca dos sintomas da

racionalização e, em seguida, das causas da racionalização da experiência religiosa

no CRD. Entretanto, antes de investigar o objeto em si, voltando todos os olhares

para ele, visando possibilitar um diálogo efetivo com os leitores e buscando mitigar o

risco de que o diálogo não se inicie, serão pontuadas algumas questões teóricas que

introduzem o assunto sem abordar diretamente o protestantismo. Assim, busca-se

evitar o juízo de valor precipitado do leitor, que poderá ser parte intrínseca do objeto

analisado. De qualquer forma, a utilização de referenciais que provoquem e

desafiem o leitor, mesmo neste começo de exposição, não serão poupados.

No começo do primeiro capítulo a temática dos sinais dos tempos e como se

dá a relação da dinâmica da religião com o passado, o presente e o futuro, serão

abordadas. A dinâmica da religião será apresentada como causa da racionalização e

35 A temática dos “sinais dos tempos” será abordada no capítulo primeiro.

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seu principal sintoma será denunciado. Este início mais teórico vai ajudar o leitor a

compreender conceitos importantes para a análise do objeto que será feito no

decorrer da exposição. Ainda no capítulo primeiro, a análise se volta ao objeto e

serão verificados os sintomas da racionalização a que ele foi submetido. Três

aspectos do CRD serão observados: 1. A conversão do protestante, em que o

caminho do converso, entre sua experiência religiosa e sua entrada na religião

institucional, será analisado; 2. A teoria do conhecimento protestante, que ajuda na

compreensão da lógica que encadeia a linha de raciocínio neste protestantismo; 3. E

o mundo dos protestantes, em que sua cosmovisão relacionada ao processo de

distribuição de conhecimento, a organização do tempo e do espaço, a ênfase na

doutrina da Providência, a ética e os inimigos do CRD serão analisados. A partir da

investigação do objeto através destes aspectos, serão levantados os sintomas da

racionalização da experiência religiosa no objeto já sob efeito do processo em

questão.36

No capítulo segundo os olhares se voltam para o “saudoso” passado do

CRD, onde se localizam parte das causas da racionalização da experiência religiosa.

Se iniciará aqui uma desconstrução da teologia oriunda do escolasticismo

protestante com a finalidade de compreender suas influências e, consequentemente,

como se deu a racionalização da fé, desmistificando a “pureza teológica” daqueles

que defendem a teologia reformada. Serão utilizados como referenciais alguns

historiadores que colaboram na compressão do contexto em que esta teologia foi

produzida. Serão analisados também momentos históricos importantes para este

grupo, como o Sínodo de Dort e a Assembleia de Westminster, assim como os

documentos resultantes destas reuniões, como a Confissão de Fé de Westminster,

importantíssima ao CRD. Nestas análises os olhares estarão atentos aos processos

históricos e aos conteúdos produzidos nesta época, visando uma análise

investigativa das causas da racionalização da experiência de Deus deste período. O

estudo dos a prioris hermenêuticos utilizados para formulações teológicas e

confecções doutrinárias são importantíssimos para correta compreensão de como se

deu a racionalização da fé.

No terceiro e último capítulo, será realizado um ad fontes na obra do teólogo

que dá nome ao objeto: João Calvino. As Institutas da Religião Cristã, sua mais

36 Os sintomas irão nortear os recortes relacionados aos períodos analisados nos capítulos segundo e terceiro, identificando, assim, as causas que produziram os sintomas.

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notada obra, será analisada. A ênfase estará nos conteúdos relacionados à

experiência religiosa, na doutrina da Providência (e dupla predestinação), bem como

na história da confecção de sua obra (contexto religioso e sócio-político). O objetivo

é compreender sua perspetiva da mística cristã para se atestar se há argumento

favorável ao equilíbrio entre fé racional e fé experiencial nos seus escritos. Não

deixará de ser abordado os aspectos biográficos da vida deste reformador, visando

sempre investigar sua posição em relação a experiência de Deus, sua influência no

processo de racionalização da fé e também uma análise comparativa entre

reformadores deste período, com a finalidade de clarificar quem foi Calvino, suas

influências e se ele era “calvinista”.

Por fim, nas considerações finais, serão avaliados e sintetizados os

sintomas e as causas do processo de racionalização da experiência de Deus no

CRD, visando um equilíbrio dentro deste contexto religioso já desequilibrado no que

tange fé proposicional e fé experiencial. Também, de forma breve, serão propostos

outros caminhos teológicos, cujas chaves hermenêuticas podem contribuir com o

teólogo deste século, o ajudando na construção de pontes para uma realidade real

da experiência de Deus no presente, maior relevância do cristianismo na sociedade

e melhor percepção dos críticos modernos à fé cristã que o protestantismo histórico

contemporâneo professa.

Se propõe a construção de uma argumentação útil não só para teólogos

protestantes ortodoxos, mas para a atual geração não religiosa, cuja mentalidade

moderna pode utilizar do argumento da experiência de Deus de forma evasiva, se

abstendo de responder as perguntas que a fé cristã faz. Esta argumentação pode

trazer luz à sociedade secularizada do porquê da percepção negativa em relação a

fé cristã.

Importante ratificar mais uma vez que esta argumentação de forma alguma

diminui a necessidade de equilíbrio entre razão e fé, pois este equilíbrio é

fundamental para a construção de uma teologia saudável. Esta percepção

equivocada pode ocorrer se o leitor não compreender o local donde é realizada esta

argumentação: contexto eclesiástico racional, tradicional e ortodoxo.

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CAPÍTULO I – OS SINTOMAS DA RACIONALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA DE DEUS NO CALVINISMO DA RETA DOUTRINA

Introdução

A estratégia adotada para iniciar esta argumentação é, em primeiro lugar,

trabalhar a temática dos sinais dos tempos, observando a atitude teológica do

teólogo católico José Comblin (1923-2011). Esta temática está muito presente no

processo de racionalização da experiência de Deus que ocorre no tipo de

protestantismo pesquisado. Se espera aqui, mais uma vez, justificar a importância

desta pesquisa para contemporaneidade e exemplificar, com a atitude do teólogo

José Comblin, alguém de fora do contexto protestante, como trabalhar a teologia de

forma crítica e relevante no presente. Na sequência, tendo em vista a importância

que a exegese bíblica possui dentro do protestantismo, será apresentado um estudo

exegético dos sinais dos tempos na Bíblia conduzido por Clodovis Boff. Aqui serão

aprofundadas tanto a relação desta temática no texto bíblico como na mecânica da

religião e sua dinâmica com os tempos presente, passado e futuro. No final deste

tópico será feito um alerta acerca do risco de um comportamento farisaico, o que,

definitivamente, este trabalho visa combater e evitar. Ainda que de forma teórica e

desassociada do objeto desta pesquisa, já será possível observar os sintomas e

uma das causas da racionalização da experiência de Deus, além de obter

ferramentais conceituais e gerar conscientização da relevância do tema desta

pesquisa, o que ajuda na análise sobre o CRD neste capítulo e na investigação das

causas da racionalização nos capítulos posteriores.

Somente no tópico Calvinismo da Reta Doutrina os olhares se voltam para o

objeto desta pesquisa. O CRD será analisado no tempo presente, já como resultado

de séculos deste tipo de protestantismo, e será identificado, principalmente, os

sintomas deste processo de racionalização da experiência de Deus. Trata-se de um

momento fundamental, em que três aspectos do CRD serão abordados: a conversão

do protestante, a teoria do conhecimento protestante e o mundo dos protestantes

(cosmovisão).

1. Presente, passado e futuro

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“A compulsão à mentira – nisso percebo todo aquele predestinado a ser

teólogo”37. Nietzsche (1844-1900), um dos mais notáveis filósofos, em sua obra

intitulada O Anticristo, realiza duras críticas ao cristianismo. Os teólogos ortodoxos

contemporâneos, especialmente os protestantes, seriam tremendamente

irresponsáveis se não analisassem o porquê de tamanha agressividade a uma

religião cujo “Deus é amor” (1Jo 4:8), conforme o apóstolo João diz em sua primeira

epístola, e fizessem uma autocrítica, buscando uma compreensão profunda das

razões pelas quais o pensamento nietzschiano não encontra no cristianismo uma

relevância social e espiritual.

O que os teólogos protestantes de igrejas históricas estariam deixando

passar despercebido? O que seus olhares críticos não estão sabendo compreender

do mundo que os cerca? A que mentiras estão compulsivamente presos? Para

responder a estas indagações, a temática dos sinais dos tempos será abordada.

José Comblin, teólogo católico, afirma que o estudo dos sinais dos tempos,

matéria da teologia contemporânea, é o que nos ajuda a responder a indagação:

“Como interpretar o que está acontecendo no mundo atual?”38. No capítulo décimo

do seu livro Quais os desafios dos temas teológicos atuais? Comblin aborda a

temática sinais dos tempos e faz uma reflexão crítica sobre o catolicismo, a mesma

que este trabalho incentiva aos protestantes. Por essa razão, esta reflexão inicia

com Comblin e dialoga também com sua obra O Espírito Santo e a Tradição de

Jesus, publicada em 2012, em que este teólogo consegue ler a tradição da igreja de

forma a contribuir com a visão do presente.

Outro autor que aborda esta temática é Clodovis Boff. Em sua obra Sinais

dos Tempos, de 1979, na seção I, é proposto um estudo bíblico exaustivo de caráter

exegético desta temática. Por meio dessa análise exegética, o comportamento dos

interlocutores de Jesus pode ser comparável ao comportamento dos teólogos

protestantes contemporâneos de igrejas históricas. Existe hoje o risco de um

comportamento farisaico, que, por conta de sua relação com o passado, torna míope

a visão do tempo presente e compromete a forma de compreender o futuro.

A experiência de Deus, que é colocada em local de menor relevância para

mentalidades racionais, tem, do ponto de vista abordado nesta pesquisa, relação

com os “sinais dos tempos”. A desassociação da experiência de Deus no estudo dos

37 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 99. 38 COMBLIN, José. Qual os desafios dos temas teológicos atuais?. São Paulo: Paulus, 2005, p. 87.

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“sinais dos tempos” pode ter um efeito contrário àquilo que se espera do

cristianismo. Corre-se o risco de termos grandes revoluções em prol do “reino de

Deus” através de métodos contrários aos valores do reino, erro comum na história

do cristianismo.39 A experiência de Deus do cristão deste tempo não pode ser vivida

no passado e tão pouco no futuro. É no presente que ela acontece. É a experiência

de Deus vivida no presente que torna o cristão contemporâneo ativo, verdadeira

testemunha e capacitado ao diálogo com a modernidade. Em tempos em que o

cristianismo sofre duras críticas em que os próprios cristãos são obrigados a

reconhecê-las, não basta testemunhar acerca do Deus de Abraão, Isaque e Jacó. É

necessário um testemunhar acerca do Deus que age na vida do cristão do presente

tempo. Um Deus que impacta a sociedade contemporânea e que, através dos

cristãos do século XXI, transforma a realidade presente. A impossibilidade de uma

experiência de Deus no presente, ou a sua despotencialização, tem relação com a

teologia do teólogo. O esforço em encontrar princípios para interpretação dos “sinais

dos tempos” é um problema teórico, relativo à metodologia teológica.40 Dessa forma,

espera-se que a análise dos “sinais dos tempos” seja um argumento que colabore

com o equilíbrio entre fé proposicional e fé experiencial, minimizando o risco de um

comportamento farisaico, que será abordado mais à frente.

A influência religiosa, especificamente no que diz respeito a sua lógica

reflexivo-teológica, que será aqui tratada, colabora com a racionalização da fé.

Algumas teorias da Ciência da Religião serão citadas, pois tem grande contribuição

no entendimento da mecânica religiosa que influencia este processo de

racionalização. Esta influência da religião e seu comportamento está presente no

teólogo protestante contemporâneo, no teólogo do período da escolástica

protestante e no “teólogo” dos tempos de Jesus.

O que menos se espera com este trabalho é reforçar a perspectiva de que

os teólogos de igrejas protestantes históricas sejam, no presente tempo,

“compulsivos à mentira”. Ou seja, incapazes de fornecer respostas coerentes,

verdadeiras e relevantes à nossa era, que está repleta de sinais. Ao contrário, com

os argumentos fornecidos por esta pesquisa, espera-se criar alternativas para que

eles não caiam – ou saiam – da armadilha da irrelevância.

39 Exemplos: “guerras santas” – as cruzadas –, inquisições e associações de denominações cristãs com regimes totalitários e ditatoriais. 40 BOFF, Clodovis. “Sinais dos tempos”. São Paulo: Edições Loyola, 1979, p. 6.

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1.1. A autocrítica de José Comblin

José Comblin, ao refletir sobre os sinais dos tempos, utiliza-se de uma

análise crítica da história de acontecimentos recentes na Igreja Católica (será

indicado, de forma abreviada, por IC). Ele consegue ter uma visão real – de acordo

com sua perspectiva – das movimentações que a IC realizou e realiza através de

pessoas atuantes dentro do círculo católico. Sem apego em relação as personagens

da história, ninguém é preservado de sua crítica. Nem mesmo os papas deixam de

ter suas condutas avaliadas em sua reflexão. Sua análise crítica aborda questões de

ordem econômica, política, religiosa (concílios) e social (a questão dos pobres). Não

há apego ao passado tradicional da IC que permita um olhar parcial de Comblin.

Esta mecânica de reflexão teológica torna suas ideias pertinentes ao olhar do não

religioso, pois existem pontes com realidades econômicas, políticas e sociais que diz

respeito a todos, não se restringindo ao nicho religioso católico. Quem sabe, seu

olhar crítico para a própria IC seja em si uma ponte que comunique conteúdos da fé

ao pensador mais cético.

Após apresentar um conjunto de perguntas que julga relevante dentro desta

temática, Comblin propõe um grupo de questões que comunicam algo singular

dentro do que este trabalho se objetiva. Ele diz: [...] uma vez que a Igreja tiver acumulado um grande poder temporal, como vai fazer para conquistar as consciências? Como fará para obrigar as grandes massas a aceitar o sistema católico?41

Percebemos que na análise dos sinais dos tempos de Comblin existe uma

relação entre elementos da realidade, neste caso o acúmulo de poder temporal da

IC e elementos relacionados ao papel da igreja no mundo. Os valores cristãos

devem ser passados ao mundo através da igreja. Porém, ao realizar a leitura do

tempo presente, o teólogo Comblin questiona a efetividade desta comunicação, pois

ele atesta uma dificuldade entre a movimentação da igreja no sentido de acúmulo de

poder com a relevância da mensagem transmitida pela IC na consciência das

pessoas.

Outro ponto crítico de Comblin diz respeito ao espírito do concílio Vaticano

II. Ele tem sido destruído de forma sistemática pela cúria romana.42 As vertentes

principais produzidas neste relevante concílio católico, as quais dialogam com a

41 COMBLIN, José, 2005, p. 89. 42 Ibidem, p. 90.

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modernidade de forma singular, foram privadas de toda a expressividade. A

burocracia eclesiástica está, segundo Comblin, “indiferente ao que acontece no

mundo”43.

A evangelização do mundo, consequentemente, também é alvo de

indagação. O discurso da “burocracia” é que a “Igreja é missionária”. Entretanto, ela

“faz todo o possível para impedir a evangelização”44. Comblin afirma que, se a Igreja

se torna um “poder religioso” e “comercialmente rentável”, deixando de anunciar o

evangelho de Jesus, “estamos na noite escura”. É muito importante ressaltar que

Comblin, ao colocar o verbo na primeira pessoa do plural, se coloca como um crítico

dentro do contexto católico, com a finalidade de trazer à luz a situação que, no seu

ponto de vista, é gravíssima. Ao refletir sobre a evangelização dos muçulmanos

questiona como ela se dará se o cristianismo retornou à guerra de catorze séculos

entre cristianismo e o Islã.45 Comblin afirma que os muçulmanos sabem que é o

cristianismo que está em guerra com eles.

Outro ponto criticado por Comblin diz respeito a influência de um

pensamento individualista e que acaba por destruir os “laços da solidariedade”46. A busca do dinheiro de modo individualista é a lei social básica. Nesse sistema, a religião é também um bem de consumo e está submetida aos critérios da rentabilidade. Ela deve oferecer satisfações imediatas, de tal modo que o consumidor de bens religiosos sinta que o que recebe vale o dinheiro investido.47

“Claro que não há nada em comum entre o evangelho de Jesus Cristo e

esse consumismo individualista”48, denuncia novamente Comblin. O discurso acerca

da solidariedade é visto por ele como um discurso hipócrita, uma vez que a mesma

está sendo destruída por uma hipocrisia tecnológica e científica sistemática, por

meio da qual “se vive uma mentira cientificamente elaborada”49.

As críticas de Comblin se assemelham muito ao movimento profético no

antigo Israel. Hubbard, comentarista bíblico, retrata a mensagem profética de Amós

como uma mensagem crítica e de denúncia, em que “ninguém sairia ileso”. O

principal alvo do profeta recaia sobre os poderosos, “os que possuíam terras, os

43 Ibidem, loc. cit. 44 Ibidem, p. 91. 45 Ibidem, loc. cit. 46 Ibidem, p. 92. 47 Ibidem, loc. cit. 48 Ibidem, loc. cit. 49 Ibidem, p. 93.

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ricos e os influentes”50. A capacidade dos profetas de Israel em lerem os sinais

sociais e denunciá-los de forma imparcial e “independente, sem qualquer ligação

com os poderes políticos e religiosos”51 está muito presente na atitude teológica de

Comblin, que não se intimida diante da leitura dos sinais que faz e tão pouco em

expor suas críticas de forma a ser fazer ouvir em seu contexto religioso. Neste

sentido, Comblin cumpriu um papel profético em seu tempo.

Comblin também é capaz de analisar o passado de forma singular. A

percepção de sua tradição religiosa é submetida a uma análise crítica de forma a

contribuir com sua análise do presente. Vejamos a seguir sua compreensão sobre a

teologia cristã: A teologia cristã é a história das manifestações da vinda de Deus. São fatos reais, fatos vividos. Esses fatos falam mais do que qualquer filosofia ou sistema de conceitos. No passado, sobretudo desde o século XIII, deu-se muita importância a uma teologia escrita, pensada em forma de filosofia com os recursos da filosofia. Essa teologia pode ter o seu valor, mas não é o anúncio do evangelho, não é mostrar a vinda de Deus na realidade humana.52

A forma como Comblin entende a teologia cristã é determinante para a

compreensão de seu papel como teólogo. O teólogo que se limita à produção de

uma teologia escrita e sistemática, muito embora este tipo de teologia tenha seu

valor, inclusive para Comblin, tem uma visão distorcida sobre o que é a teologia

cristã, que é definida por ele como “a história das manifestações da vinda de Deus”.

E se a teologia cristã é “a história das manifestações da vinda de Deus”, uma

teologia escrita e sistematizada não é em si o anúncio do evangelho, pois não tem

poder para mostrar a vinda de Deus na realidade humana. Quem sabe a dura crítica

de Nietzsche tenha relação com esta perspectiva: um teólogo que comunica

verdades sistematizadas, mas verdades que são muito pouco vividas e

experimentadas na realidade. Se diz muito, mas se faz pouco. Não demoraria até

alguém chamar estas “verdades” de mentiras.

Atento aos sinais dos tempos, Comblin continua a visitar o passado

teológico para compreender o presente e pensar sua teologia de forma relevante.

Ele adiciona a questão do discipulado em sua reflexão: Houve e ainda há teologias que são sistemas de palavras que pretendem expressar com palavras a vida de Jesus. Mas as palavras são sempre parciais e são criações de alguns intelectuais. A vida do discípulo é uma

50 HUBBARD, David Allan. Joel e Amós: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1996, p. 99. 51 MERRILL, Eugene H.. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações, 2009, 474. 52 COMBLIN, José. O Espírito Santo e a tradição de Jesus. São Paulo: Handuti Editora, 2012, p. 43.

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criação de Deus na qual ele se revela. Sucede que a palavra é o meio de comunicação mais cômodo. Outro meio de comunicação é a imitação. Procurando seguir o caminho de outro, uma pessoa entende o que vive esse outro muito melhor do que por qualquer livro. Os Evangelhos referem testemunhos sobre a vida de Jesus, mas para compreender esses testemunhos é preciso ver como estão agindo os discípulos de Jesus hoje.53

Percebe-se o quanto a realidade de um cristianismo vivido por discípulos

tem maior eficácia na comunicação do evangelho em relação a uma teologia escrita.

Comblin ainda alerta para o perigo que a sistematização tem em si de esconder o

evangelho em lugar de facilitar sua compreensão. Ele, ao falar sobre a filosofia

grega da dedução, diz que “a sistematização teológica corre o risco de tornar a

Igreja prisioneira de um sistema que inevitavelmente é marcado por um tempo, um

contexto cultural, político e econômico”54. Ou seja, existe o perigo dos teólogos se

tornarem reféns de uma teologia sistemática presa ao passado, incompreensível e

obsoleta no presente.

O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), ao discorrer acerca

daquilo que ele chama de “distinção inadequada” entre textos “doutrinários” e textos

históricos, ressalta a importância da Bíblia como livro de testemunho e critica a ideia

de se obter na Bíblia uma “doutrina válida para todo o sempre”55. Para Bonhoeffer, a

revelação neo-testamentária não é “um livro cheio de verdades eternas, doutrinas,

normas ou mitos, antes deve ser visto como um único testemunho do Homem-Deus

Jesus Cristo”56. Vemos que tanto o teólogo católico como o protestante concordam

que quando nos aproximamos do passado através dos textos sagrados com

intenção sistematizadora, não só perdemos oportunidades de testemunhar acerca

do Cristo na escritura, mas deixamos de lado a essência da revelação, que é

testemunhar Jesus Cristo homem ao homem do presente.

Comblin, ao falar sobre a ênfase apologética na teologia moderna da IC

(heresias e perigos), relacionado ao combate do protestantismo, fala sobre a

alienação da IC em relação ao mundo. Ele novamente faz uma autocrítica em que

se percebe uma correta leitura dos sinais dos tempos e sua coragem em se

manifestar de forma imparcial: A evolução da teologia levava ao isolamento e à ignorância daquilo que estava acontecendo no mundo. Nunca a teologia tinha sido tão isolada do

53 Ibidem, p. 46. 54 Ibidem, p. 188. 55 BONHOEFFER, Dietrich. Reflexões sobre a Bíblia a resposta às nossas perguntas. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 79. 56 Ibidem, p. 78.

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mundo e refugiada numa atitude neurótica com todas as aparências da razão, sem perceber que eram neuróticos.57

Este teólogo possui uma capacidade de análise que retorna ao passado

para avaliar o presente. Não se vê em Comblin um pensador que carrega em si um

sentimento saudosista do passado da IC. Pelo contrário, o que existe nele é uma

capacidade de analisar o passado para transformar o presente através de um olhar

crítico que desperte aqueles menos atentos aos sinais dos tempos. O ressentimento

produz no homem uma incapacidade de “elaborar novos modos de valorização

comprometidos com a ampliação das suas forças criativas” e, ao contrário, acaba

por “focalizar seu olhar na obscuridade dos elementos mais sombrios da vida

psíquica, enfatizando [...] tudo aquilo que existe de passível de se vir a sofrer do

envenenamento afetivo do rancor”58. Comblin está distante de um labor teológico

cujo elemento central é o ressentimento histórico.

Fica clara a habilidade de Comblin em perceber os sinais dos tempos e

como esta sua leitura comunica de forma relevante, aos olhares religiosos e não

religiosos, temáticas que dizem respeito a todos, principalmente ao círculo católico,

onde se abre um espaço para reflexão do presente. Se trata de um teólogo

parresiasta, de “franco-falar”59. Teólogo com coragem de analisar os sinais dos

tempos e de se portar de forma relevante diante deles. Teólogo que olha para o

passado, mas que em momento algum se distancia do presente, perdendo sua

relevância em discussões que nada tem a comunicar a homens e mulheres de seu

tempo. Um teólogo que não mente, mas fala corajosamente sua verdade.

O teólogo protestante contemporâneo, mais atento aos sinais dos tempos e

menos aprisionado em tradições – ou ressentimentos – que o impeçam de refletir

com uma teologia produzida no círculo católico, conseguirá se inspirar com Comblin

para realizar sua autocrítica sóbria diante de críticas ao cristianismo como as de

Nietzsche. Se sabe, infelizmente, que esta tradição, refletida em confissões de fé e

um grande saudosismo do passado, pode impedir este diálogo e,

consequentemente, a possibilidade da experiência da reflexão no presente.

57 COMBLIN, José, 2012, p. 190. 58 BITTENCOURT, Renato Nunes. A tipologia do ressentimento em Dostoiévski e Nietzsche. In: Revista Húmus, No 2, p. Mai/Jun/Jul/Ago. 2011, p. 77. 59 OTTAVIANI, Edélcio. José Comblin: um teólogo contemporâneo e parresiasta. In: Estudos de Religião, v. 29, n. 1, 179-203, 2015, p. 201.

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1.2. Os sinais dos tempos na Bíblia e o comportamento farisaico

Neste momento será realizada uma análise bíblica acerca dos sinais dos

tempos. Como esta pesquisa não tem o objetivo de esgotar todos os pontos

exegéticos que Clodovis Boff levanta, serão destacados os pontos relevantes para

correta compreensão dos interlocutores de Jesus e necessários para atingir os

objetivos aqui propostos. O motivo da ênfase nos interlocutores se deve ao

comportamento dos religiosos nos dias de Jesus, os quais ficaram impossibilitados

de ter uma experiência de Deus junto ao Cristo encarnado.

Mesmo os religiosos ortodoxos do tempo de Jesus sendo os maiores

conhecedores da Lei e “sistematizadores” da “teologia”60 dentro do judaísmo de sua

época, foram incapazes de experimentar a maior manifestação e sinal de Deus:

Jesus. Eles seriam, teoricamente, os mais aptos a perceberem em Jesus o Cristo o

Messias. O que impossibilitou este religioso de desfrutar de tal experiência? Que tipo

de lógica religiosa o fez não enxergar o sinal do tempo no presente? Qual o tipo de

relação que este religioso tem com o seu passado, presente e futuro? A Ciência da

Religião contribui para compreensão do comportamento religioso, revelando uma

lógica que influencia a racionalização da experiência de Deus.

1.2.1. Exegese

O texto de Mateus 16:3 é a origem bíblica da temática “sinais dos tempos”. É

somente neste trecho que a expressão ocorre. Jesus alerta seus ouvintes que

embora saibam interpretar os sinais dos céus meteorologicamente, os sinais dos

tempos não o podem fazer. O método exegético escolhido por Boff é o método

semântico-sintático. Ele faz as seguintes considerações: que será privilegiado não a

palavra, mas a ideia e, por isso, do estudo dos textos paralelos mais próximos do

texto em questão; será analisado o campo semântico em que a expressão “sinais

dos tempos” (será indicado, de forma abreviada, por ST) se coloca; será realizada

uma interpretação mais conceitual do que lexical (não que a lexical seja

abandonada, mas deve ser tomada tão-somente como suporte material); e os

60 As aspas utilizadas para “sistematizadores” e “teologia” são para deixar claro que a utilização desta terminologia não são ideais para serem atribuídas aos judeus ortodoxos dos tempos de Jesus, sendo, portanto, apenas aproximações.

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autores utilizados por Boff na análise do termo ST vem marcados pelas limitações e

deficiências do método lexical.61

A Tabela 1 representa os textos abordados na análise de Clodovis Boff. Tabela1-TextosbíblicossobreSinaisdosTempos

Mc 8: 11-13 // Mt 16:2a-4

Lc 12: 54-56 // Mt 16:2b-3

Mt 12:38-40 // Lc 11:16; 29:30

Jo 2:18-19 e 6:30

Mt 16:2b-3 tem seu paralelo com Lc 12:54-56, porém devido as grandes

diferenças é improvável que Lc dependa de Mt. Talvez, deva-se admitir duas fontes:

Q – Mt 12:38-40 / Lc 11:16;29-30; B – Lc 12:54-56 / Mt 16:2b-3. Mt 16:2b-3, que

contém a referência a “ST”, está mais próxima da fonte B. João 2:18-19 e 6:30

refletiria uma versão literariamente independente feita em torno do tema “a procura

de sinais”. Boff alerta que a questão literária é secundária, pois pouco afeta a

questão semântica.62

1.2.1.1. Contexto

Em relação ao contexto, os interlocutores de Jesus lhe pedem um “sinal” e

Jesus não lhes atende. De acordo com o contexto histórico, o “sinal” seria um

milagre realizado por poucos antes. Mt 12:38-40 e Lc 11:29-30 (Q) dizem respeito a

cura do endemoninhado mudo (cego em Mt). Mc 8:11-12, Mt 16:1-4 (B) e Jo 6:30

tratavam do milagre da multiplicação dos pães. É provável que sejam estas as

circunstâncias que provocaram a disputa em torno do “sinal do céu”. Os “sinais” de

Jesus não são aprendidos na verdadeira “frequência”. São mal interpretados e não

“assinalam” suficientemente, pois a multidão tenta proclamá-lo rei ao realizar a

multiplicação dos pães (6:25). Os fariseus acham os sinais de Jesus com pouca

força de significação e pedem um “sinal do céu”, ou seja, um sinal “para valer”,

“irretorquível”, “irresistível”.63 Mulholland, comentarista do evangelho de Marcos,

destaca a cegueira destes líderes religiosos e concorda com Boff em relação a

61 BOFF, Clodovis, 1979, p. 9-12. 62 Ibidem, p. 16. 63 Ibidem, p. 16-17.

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insuficiência dos milagres de Jesus na ótica dos fariseus, os quais exigem um sinal

do céu.64

1.2.1.2. Interlocutores de Jesus

Neste ponto se analisa os interlocutores de Jesus. Mt 12:38-42 se refere a

“alguns Escribas e Fariseus” e Mt 16:1-4 “os Fariseus e Saduceus”. Em Mc somente

“os Fariseus”. Lc se refere as “multidões”. Jo aos “Judeus” (2:18) e “multidões”

(6:30). Devido a razões teológicas próprias, Lc e Jo ampliam os destinatários reais.

Porém, o afrontamento em questão só podia se dar com os dirigentes – os Escribas

e Fariseus (Mc e Mt) –, embora não se limite somente a eles devido a referência a

“geração má” (Lc e Jo).65

1.2.1.3. O espírito dos interlocutores

Boff destaca o espírito destes interlocutores. Existe uma má fé. O

documento B usa os termos “colocando-o à prova” e “tentando-o”. Existe uma

intenção determinada: desacreditar Jesus publicamente e suas pretensões.

Percebe-se isto em Mt 16:1 – os interlocutores “se aproximam” – e Mc 8:11 – os

interlocutores “vieram”. Em Q é mais frio, embora em Lc 11:16 é dito que “Outros,

para tentá-lo, reclamavam um sinal do céu”. A intimação é para Jesus apresentar os

títulos de sua pretensão divina. Satanás no deserto pede “sinais” (Mt 4:1-11 e

paralelo) e os judeus são ávidos de “sinais” – polemiza Paulo (1Co 1:22). Jesus

demonstra que este é, de fato, o espírito dos interlocutores: Ele “geme em seu

espírito” (Mc 8:12); chama-os de “hipócritas” (Lc 12:56); e responde veementemente

“Geração má (e adúltera)”. Jesus se recusa a toda resposta.66 Os evangelhos

relatam com clareza a intenção perversa dos líderes religiosos para com Jesus.

Mulholland, acerca do relato em Marcos, afirma que o “propósito deles é preparar

uma armadilha para apanhá-lo” 67 . Assim como neste trecho dos evangelhos,

podemos constatar esta intenção deliberada por flagrar Jesus em alguma palavra ou

ação incorreta na ótica dos religiosos em diversos relatos, como, por exemplo68: Mc

12:13; Mt 22:15; Lc 10:25. Se trata de um comportamento recorrente.

64 MULHOLLAND, Dewey M.. Marcos – Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 128. 65 BOFF, Clodovis, 1979, p. 17-18. 66 Ibidem, p. 18. 67 MULHOLLAND, Dewey M., 2011, p. 128. 68 Lista não exaustiva.

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1.2.1.4. A espera “do sinal”

Toda a discussão, segundo Boff, acontece em torno do “sinal” (doc. Q) e

“sinal do céu” (doc. B).69 Existem três contextos distintos: o apocalíptico e, inclusive,

messiânico; os prodígios celestes sucedidos a Elias; e o contexto dos “sinais” do

deserto (maná). Porém, o contexto apocalíptico-messiânico é evidente e, por isso,

será destacado a seguir.70

No contexto apocalíptico e messiânico “sinal” era algo conhecido pela

tradição judaica. Inclusive, era previsto que o Messias os realizasse (noção

apocalíptico-messiânica). A literatura apocalíptica – mentalidade reinante, embora

não única – era a idade de ouro no século anterior e posterior ao nascimento de

Jesus. Os “sinais” são muito importantes pois anunciam a chegada dos “tempos

escatológicos”. “Tal corrente estava muito preocupada com determinar as

circunstâncias do fim, da vinda do aion futuro, do ‘dia do Senhor’.”71 “Sinal do céu”,

na linguagem apocalíptica, se refere a um sinal provido do alto, algo espetacular,

retumbante, que não dá ocasião às dúvidas.

1.2.2. O comportamento farisaico

Portanto, os sinais que Jesus acabara de fazer (multiplicação dos pães e

cura do endemoninhado) não eram suficientes para provar a pretensão de “mestre”

de Jesus (Mt 12:38). Os fariseus estavam na ilusão de uma leitura anacrônica:

“menosprezavam o presente, seja em favor do passado (Elias e o deserto) ou do

futuro (sinais extraordinários dos tempos derradeiros)”72. Boff ainda faz questão de

destacar o tom de provocação e intimidação por parte dos interlocutores. Se tratava

de uma polêmica violenta, inclusive debaixo da cruz (Mc 15:29-32 e paralelo). A

intenção deliberada era acuar, exigindo uma prova irrefutável para desmoralizar

Jesus, pretenso profeta messiânico. Entende-se que a intenção dos interlocutores –

escribas e fariseus – nunca foi crer, mas refutar Jesus. Nestas condições, “sinais”

não bastam para convencer.

Enquanto os fariseus menosprezavam o presente, não levando em conta a

suficiência das obras de Jesus para “levar os homens ao arrependimento e a uma

69 BOFF, Clodovis, 1979, p. 18-20. 70 Ibidem, p. 21. 71 Ibidem, p. 20. 72 Ibidem, p. 21 – grifo meu.

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vida de fé”73, como afirma o comentarista Tasker, a igreja entendeu o evento-Jesus

como o evento messiânico-escatológico por excelência. Mc 1:15 e Gl 4:4 falam da

completude deste tempo. O “agora” é um tempo de graça, qualificado e definitivo,

anunciado pelos profetas (Rm 3:21). Jesus realizou somente a Epifânia, trazendo o

eschaton de modo antecipado, mas não ainda a parusia (2 Ts 2:2). O fim fica, de

alguma maneira, suspenso. “Mas até que o Fim se consuma, medeia o tempo da

tentação e da luta, da oração e da esperança, da vigilância e do serviço”74. O

presente tem maior relevância do que os fariseus pensavam.

O que, portanto, impossibilitou este religioso de desfrutar de tal experiência?

Que tipo de lógica religiosa o fez não enxergar o sinal do tempo no presente? E qual

o tipo de relação que este religioso tem com o seu passado, presente e futuro? É

correto afirmar que a forma dos interlocutores de Jesus analisarem os ST, com toda

sua mecânica hermenêutica de interpretação religiosa, não permitiu a realização da

experiência de Deus no seu presente. Sua “experiência” estava no saudoso passado

de suas pressuposições teológicas que os impulsionavam para um futuro

escatológico que a realidade do presente nunca iria suprir. O Messias aguardado

estava diante dos seus olhos, mas os olhos não estavam atentos às imagens do

agora. Boff questiona: “em que medida o culto da letra substitui a ausculta da

palavra viva, o escriba ao profeta, a história feita à história-se-fazendo?”75

É importante neste momento dialogar com a Ciência da Religião, que

enriquece a reflexão. Algumas teorias são ferramentas importantes na análise deste

tipo de comportamento. O “sagrado selvagem” de Roger Bastide, a “experiência

fundante” de Mircea Eliade e também a “teoria dos círculos concêntricos” de

Frederico Heiler tem muito a contribuir com a compreensão deste comportamento

religioso. A partir destas teorias se consegue verificar a existência de três papéis

sócio-religiosos importantes para este estudo e para a dinâmica da religião: o

profeta, o sacerdote e o místico. O profeta seria aquele que prega a volta às origens

da religião, desafiando a religião instituída. O sacerdote seria quem sistematiza e

administra uma religião institucionalizada. Por fim, o místico seria quem está em um

espaço em que o sagrado não está em forma “administrável” pela instituição.76

73 TASKER, R. V. G.. Mateus – Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 104. 74 BOFF, Clodovis, 1979, p. 27-28. 75 Ibidem, p. 38. 76 ANÉAS, André, 2016, p. 62.

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Unindo os conceitos do “sagrado selvagem” de Bastide77, a “experiência

fundante” de Eliade78 e os “círculos concêntricos” de Heiler79, pode-se compreender

o fenômeno religioso da seguinte forma: 1. Após uma experiência de Deus em dado

presente (experiência fundante de Eliade), surge uma religião, ainda não instituída.

O místico está aqui, pois não há vínculo que o impeça de atuar em seu papel entre

ele e uma religião institucionalizada; 2. Esta experiência é submetida a um processo

chamado de domesticação do sagrado (Bastide), rumo à institucionalização da

religião. Neste momento o sagrado fica sob o controle dos administradores da fé

(fundadores). À luz do seu saudoso e importantíssimo passado, administram a

religião instituída com seu sagrado já domesticado. Seria exatamente neste ponto

que os fariseus e líderes religiosos dos tempos de Jesus se encontravam. Este

comportamento está associado ao papel de sacerdotes, no sentido de

administradores da religião já instituída. Sua relação com o futuro está dentro de um

contexto escatológico que os impede de discernir o presente – os sinais dos tempos;

3. “Entretanto, Deus não cessa de ser ao longo da História: mistério, surpresa e

maravilha”80. Se dá o processo de retorno ao sagrado selvagem. Aqui se encontram

movimentos proféticos que proclamam retorno a um sagrado mais selvagem,

semelhante ao que existia na religião instituinte. Quem sabe a voz de teólogos que

alertam para os sinais dos tempos, como vimos em Comblin, seja a voz profética

que deseja um retorno para uma realidade do Deus professado, no presente, de tal

forma que os livros não dão conta de explicar.

77 BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem e outros ensaios. 1. ed. São Paulo: Companhia Das Letras, 2006, p. 250-275. 78 MENDONÇA, Antônio Gouvêa. A experiência religiosa e a institucionalização da religião. In: Revista de estudos avançados. pgs. 29-46, 2004, p. 35. 79 Ibidem, p. 43. 80 BOFF, Clodovis, 1979, p. 39.

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Figura1-Domesticaçãodosagradoeinstitucionalizaçãodareligião

1.3. O risco do comportamento farisaico

Este estudo ajuda a entender o porquê dos responsáveis religiosos do

tempo de Jesus não terem visto o Messias. No período pós-exílico o espírito

profético se extingue. O pensamento se volta ao saudoso passado, era dos copistas,

sistematizadores e comentadores. Saem os profetas carismáticos e entram os

escribas legalistas. O futuro humano está fechado: nasce a apocalíptica. “Entre a

saudade de um passado mitificado e a esperança de um futuro utópico, vive-se um

presente vazio”. Se enfatiza a literatura de grandes nomes do passado e a Torá é

absolutizada, tornando-se uma “camisa de força”.81 Rubem Alves descreve bem o

espírito do Novo Testamento quando contrapõe o ensino de Jesus, baseado em

uma lógica de liberdade e amor, em que o pecador é justificado de sua oração (Lc

18:10-14), enquanto o “ortodoxo” do fariseu é posto para fora junto com sua

“justificação pelas obras” e sua “moralidade jurídica”.82 Ou seja, a mentalidade

farisaica impede a experiência de Deus, pois, no seu legalismo, que diz respeito a

suas tradições do passado, não está, minimamente disponível, o vinho novo: Jesus.

A igreja pode ser tentada a reproduzir esta atitude, combatida pelos

profetas: se sentir proprietária dos instrumentos da salvação e segura das 81 Ibidem, loc. cit. 82 ALVES, Rubem, 1979, p. 215.

Institucionalização da Religião

Experiência Fundante Fundadores

Religião Instituída

Sacerdotes

Retorno à Religião Instituinte Profetas

Místicos

Domesticação do Sagrado

Retorno ao Sagrado Selvagem [Efervescência Social]

Sagrado DomesticadoSa

grad

o Se

lvag

em

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promessas de Deus.83 Esta tentação é intitulada aqui comportamento farisaico. É

completamente possível ter a atitude farisaica nos dias de hoje. O teólogo, em

especial o protestante, que se vê como o detentor da teologia “pura”, submetido a

este processo de racionalização da fé, em que o tempo presente tem menor

relevância do que o passado religioso de seus grandes heróis e, por sua vez, o

futuro, esperado, aguardado e ansiado, têm lentes que não são capazes de observar

o presente, corre este risco. Para o risco ser mitigado é preciso dar atenção ao

movimento profético e místico, pois é neles em que existe a ponte com a realidade,

seja na denúncia do perigo da situação farisaica ou na realidade da experiência de

Deus que só pode ocorrer no presente. A tensão entre experiência de Deus e

experiência religiosa institucional, a semelhança de Jesus com a religião instituída

de seu tempo, deve ser presente se se pretende mitigar o risco de um

comportamento farisaico.

A racionalização da experiência de Deus, processo analisado neste trabalho,

é influenciada por este comportamento religioso farisaico. Mais do que isto, é correto

afirmar que o processo de racionalização da experiência religiosa tem como uma de

suas causas esta mecânica que rege a religião institucional, a qual tem no seu

passado seus fundamentos, no futuro sua esperança e no seu presente o medo da

novidade, que luta para calar a voz profética e mística, como aconteceu na relação

entre Jesus e a classe religiosa. Neste sentido, a racionalização da experiência de

Deus é o grande mecanismo para prevenir qualquer ação de retorno a uma religião

menos institucionalizada e menos teologicamente sistematizada e dogmatizada.

Esta causa produz o sintoma denunciado: o comportamento farisaico.

A denúncia de Nietzsche acerca da compulsão à mentira dos teólogos,

infelizmente, tem seu espaço na reflexão daquele que analisa com seriedade e

sinceridade o teólogo racional das igrejas protestantes históricas. A religião, por

mais “pura” que pareça ou que alguém a compreenda, pode ser submetida a um

processo de racionalização da fé e muito influenciada por este comportamento

religioso que se aproxima muito com os fariseus dos dias de Jesus. Não se

consegue enxergar Deus, experimentá-lo e vivê-lo.

Comblin ensina a ter coragem para não somente olhar os sinais dos tempos,

mas para perceber as falhas, denunciá-las e analisar o modus operandi dos teólogos

83 BOFF, Clodovis, 1979, loc. cit.

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deste contexto. Sua forma de pensar teologia não o aprisiona na tradição do

passado e tão pouco o leva a uma expectativa de futuro paralisante em relação ao

presente. O risco do comportamento farisaico cresce conforme a visão do presente

se escurece. Passado, presente e futuro precisam ter, cada um, sua relevância na

interpretação religiosa. Clodovis Boff e as teorias da Ciência da Religião ajudam a

compreender a forma com que os fariseus, envoltos em seu sistema religioso

instituído, deixaram passar despercebido o Messias aguardado, sem ter uma

experiência de Deus no presente com o “sinal” encarnado. Da mesma forma, os

teólogos protestantes mais racionais, que desprezam a subjetividade da experiência

de Deus, correm o mesmo risco de desprezar o presente e tornar a religião sem

vida, como afirmou Heschel: Quando a fé é absolutamente substituída pela profissão de fé, a adoração pela disciplina, o amor pelo hábito; quando a crise de hoje é ignorada por causa do esplendor do passado; a fé se torna mais propriamente uma herança tradicional do que uma fonte de vida; quando a religião fala mais pela autoridade do que pela voz da compaixão sua mensagem torna-se sem significado.84

Como anunciar a graça, a misericórdia e o amor sem experimentar a

realidade deste Deus hoje? Seria esta a “noite escura”, como diz Comblin, que faz o

fiel experimentar um outro deus que não leva a uma práxis cristã? Quem permanece

nela, quão compulsivo será por falácias que entorpecem o processo de dar sentido

ao presente, o tornando ainda mais carente e doente? É exatamente pela resistência

à mentira que, no próximo tópico, “a noite escura” do protestantismo analisado aqui

receberá os primeiros feixes de luz. O que está oculto, começará a ser desvendado.

2. O Calvinismo da Reta Doutrina

Rubem Alves, que já colaborou na delimitação do objeto deste trabalho,

ajuda a perceber no CRD os sintomas do processo de racionalização da experiência

de Deus. Em Protestantismo e Repressão, obra de 1979, o espírito protestante

analisado e criticado neste trabalho se mostra muito atual. Obviamente as

manifestações deste “racionalismo” no protestantismo do séc. XXI são diferentes do

séc. XX. Entretanto, conforme verifica-se ao longo dos capítulos deste trabalho, o

passado é o presente para o Calvinismo da Reta Doutrina. É inevitável destacar a

84 HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. São Paulo: Edições Paulinas, 1975, p. 15 – grifo meu.

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riqueza dos dados colhidos por Rubem Alves – confissões doutrinárias, trechos de

publicações de jornais, sermões e manuais – e sua brilhante análise do material.

Para identificar os sintomas da racionalização da experiência de Deus no

CRD, serão analisados os seguintes aspectos do objeto: a conversão do

protestante, a teoria protestante do conhecimento e o mundo dos protestantes. A

conversão do protestante merece atenção especial do leitor, uma vez que os

elementos ali observados tratam da tensão entre a experiência de Deus e o início do

processo da racionalização da mesma experiência do indivíduo – momento

importantíssimo –, além de ser o ponto de partida no estabelecimento dos

fundamentos do universo protestante.

2.1. A conversão do protestante

A “conversão” ao CRD é o começo do fim da experiência religiosa do fiel. As

aspas se devem a forma da análise da conversão do protestante, pois existem duas

conversões. A primeira conversão se refere a experiência de Deus em si, fora do

contexto religioso-institucional. A segunda, inserida no contexto religioso-

institucional, é a conversão ao CRD.

2.1.1. Método investigativo de Rubem Alves

Neste primeiro momento, a articulação consciente daquilo que o CRD define

como conversão – religiosa-institucional – é deixada para um segundo momento,

pois é nesta articulação explícita, no discurso lógico e na racionalização da

experiência, que está o “ocultamento do crime”85. O método investigativo que Rubem

Alves utiliza para sua análise da conversão do protestante é fundamentado,

primeiramente, em Sigmund Freud (1856-1939), que, em Introdução Geral à

Psicanálise, esclarece que fenômenos frequentes e familiares, aparentemente sem

importância, são usados como ponto de partida em sua análise das profundezas da

alma humana.86 Ou seja, o fenômeno para ser devidamente investigado precisa ser

decifrado, pois se trata de um enigma. Aquilo que é evidente; é enganoso. “O

discurso articulado não revela; esconde. Não explica; dissimula. É necessário

85 ALVES, Rubem, 1979, p. 51. 86 FREUD, Sigmund. A General Introduction to Psychoanalysis. New York: Washington Square Press, Inc., 1967, p. 29-31.

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descobrir o trauma emocional original, trauma que o discurso consciente deseja

resolver através do esquecimento.”87

Rudolf Otto, também referenciado por Alves para fundamentar sua linha

investigativa, faz sugestão semelhante em seu livro O Sagrado, já citado neste

trabalho. Para se compreender o fenômeno religioso, ele diz que o “mito

sistematizado tanto quanto a escolástica elaborada são achatamentos do processo

religioso básico, que ao mesmo tempo em que o achatam acabam por expulsá-lo” 88,

se referindo ao aspecto misterioso da experiência religiosa. Otto, inclusive, ao

sinalizar o equívoco de partir das representações de espíritos e concepções

similares para compreensão das origens da religião, diz que estes tipos de

abordagens nada mais são do que “‘racionalizações’ posteriores, que tentam

interpretar de alguma maneira o mirum89, as quais então logo atenuam, amenizam a

respectiva experiência”90. Importante notar que a assertiva de Otto está muito

alinhada com o propósito deste trabalho, principalmente quando ele se refere ao

processo que se pretende decifrar na presente pesquisa: a racionalização da

experiência religiosa.

Em terceiro e último lugar, Rubem Alves fundamenta seu método

investigativo baseado em Paul Ricoeur (1913-2005). Ricoeur, em seu livro O

Simbolismo do Mal, ajuda a compreender a importância da atenção neste processo

investigativo para tudo aquilo que é expressão de espontaneidade. A pergunta que

Ricoeur faz diz respeito a uma linguagem que expresse “uma experiência cega,

ainda firmemente enraizada numa matriz de emoção, medo e angústia”91. Aqui

também está o ponto de partida para o processo investigativo da religião. Portanto,

ao analisar a conversão do protestante, o método investigativo aqui sugerido

impulsiona o pesquisador a não observar apenas as “cristalizações institucionais da

religião, doutrina, ritual ou organização, como se elas revelassem realmente os

fundamentos da religião”92.

2.1.2. Experiência de conversão

87 ALVES, Rubem, 1979, p. 51. 88 OTTO, Rudolf, 2011, p. 59. 89 Mirum se refere ao “mistério religioso” causado pelo “totalmente outro”, que “causa estranheza, que foge do usual, entendido e familiar” (OTTO, Rudolf, 2011, p. 58). 90 OTTO, Rudolf, 2011, p. 58 – grifo meu. 91 RICOEUR, Paul. The Symbolism of Evil. Boston: Beacon Press, 1967, p. 7. 92 ALVES, Rubem, 1979, p. 51.

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A linguagem protestante será abordada em um segundo momento. Uma vez

que a linguagem é a resposta, seguindo a sugestão de Ricoeur de proceder

regressivamente93, Rubem Alves prossegue em busca da pergunta que foi feita.

Para compreensão do objeto é necessária a observação em seu momento de

nascimento: a conversão. De acordo com a análise de Rudolf Otto citada por Rubem

Alves “a conversão está para a racionalidade da mesma forma como a experiência

religiosa está para as construções intelectuais que a seguem”94. A experiência de

conversão acontece na vida, no presente, como já mencionado no início deste

capítulo. Ela pode ser desencadeada por uma crise ou uma situação de dor.95 A

conversão religiosa implica em organizar a relação homem-mundo, pois o que está

em jogo é o sentido da vida ou a questão da fé. Segundo William James, citado por

Rubem Alves, a fé pode ser definida utilizando as palavras de Tolstoi como “aquilo

de que os homens vivem”, pois se trata de um “estímulo, uma excitação, uma fé,

uma força que reinfunde a vontade positiva de viver”96.

O resultado da conversão é a “indicação de que a personalidade passou por

uma metamorfose”, de que “emoções anteriores de confusão, culpa e ansiedade são

substituídas por um sentimento de paz, alegria e poder”. A vida é, agora, dividida em

“antes e depois”, o velho homem e o novo homem.97 Na literatura bíblica, quando

homens experimentam esta transformação radical, eles recebem novos nomes,

indicando o surgimento de uma nova identidade. O Novo Testamento faz menção a

um “novo nascimento”, simbolizado pelo batismo, em que a pessoa morre,

mergulhando nas águas, e ressurge, emergindo das águas. O converso está

envolvido em um êxtase emocional. É como um apaixonado: fala dia e noite sobre

seu amor, sem se sentir impelido a se justificar ou dar razão sobre o que sente. Não

tem o que temer e se percebe forte.98

Quando retornamos ao cristianismo primitivo não é difícil perceber a

presença deste tipo de experiência religiosa, a qual será decisiva em termos de

posicionamento do cristianismo dentro de um contexto estritamente pagão. Larry

Hurtado, historiador especialista em Novo Testamento, diz que na simplicidade e na

ausência de templos glamorosos, muito diferente da religião pagã romana, os 93 RICOEUR, Paul, 1967, p. 4. 94 ALVES, Rubem, 1979, p. 54. 95 Ibidem, p. 56. 96 JAMES, William. Variedades da experiência religiosa. São Paulo: Editora Cultrix, 1995, p. 125. 97 ALVES, Rubem, 1979, p. 59. 98 Ibidem, p. 60.

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primeiros cristãos desfrutavam dos dons de vários tipos, proclamação e instrução

cristã, o que resultou em grande fervor e adoração. Além disto, ele afirma que não

era rara a sensação de encontro com o divino e êxtase religioso, o que compensou a

ausência dos elementos e atividades marcantes nas festas pagãs, as quais muitos

dos então cristãos abriram mão, o que é sinal claro desta conversão sinalizada por

Rubem Alves.99 Ralph Martin, outro estudioso do Novo Testamento, faz questão de

afirmar que existia “uma explosão de fervor e poder espiritual”100. Não se tratava

simplesmente de construções teológicas frias, distantes e impessoais, mas, muito

pelo contrário, tratava-se de experiências que comoviam o coração daqueles que

recebiam as boas-novas. Eusébio de Cesaréia chega a relatar que os mártires dos

primeiros séculos tinham tamanho zelo e testemunhavam inúmeras vezes, sofrendo

em si as marcas da fé – queimaduras, feridas e ataques de feras –, e, mesmo assim,

se quer admitiam serem reconhecidos como mártires e repreendiam os que assim

os intitulavam.101 A experiência de conversão os movia de forma extraordinária,

inclusive em direção da morte, se preciso fosse.102

Dukheim, citado por Rubem Alves, diz: O fiel que se pôs em contato com seu deus não é apenas um homem que percebe verdades novas que o descrente ignora, é um homem que pode mais. Ele sente em si mais força, seja para suportar as dificuldades da existência, seja para vencê-las. Está como elevado acima das misérias humanas porque está elevado acima de sua condição de homem; acredita-se salvo do mal, seja qual for a forma, aliás, que conceba o mal.103

2.1.3. Pretextos para linguagem

Não é possível começar pelas cristalizações doutrinárias do objeto, pois elas

são respostas a uma pergunta existencial. Para correta compreensão da linguagem

institucionalizada do CRD acerca da conversão do protestante é necessário analisar

a experiência emocional que o converso vivenciou.104 A conversão do protestante a

partir deste momento deixará aos poucos de ser a experiência religiosa do converso

e passará a ser submetida à lógica da conversão dentro do CRD. Nesse momento

percebe-se o que justifica a linguagem, sintoma da racionalização da experiência de

99 HURTADO, Larry W.. As origens da adoração cristã. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 63 100 MARTIN, Ralph P. Adoração na igreja primitiva. São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 53. 101 EUSÉBIO, de Cesaréia. História Eclesiástica. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 161. 102 Lemos este aspecto da experiência religião em Lutero e Rubem Alves, já citados na introdução deste trabalho. 103 DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 459. 104 ALVES, Rubem, 1979, p. 61.

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Deus, para mentalidade protestante analisada. Já é sabido que uma crise emocional

pode criar a possibilidade e a necessidade da conversão. Uma vez que a linguagem

se mostra incapaz de nomear as coisas que envolvem este processo e o sistema de

significação entra em crise, Rubem Alves compreende que aqui surge a

ansiedade.105 A ansiedade que este homem experimenta não é uma dor precisa,

que pode ser nomeada e localizada. Muito pelo contrário, este homem não sabe o

que ela é e sua consciência não sabe o que fazer. Este é o primeiro passo para

conversão – religiosa-institucional – do converso.

A primeira tarefa do CRD é dar nome a ansiedade. “Ao se dar um nome à

emoção, ela se torna compreensível, manipulável, exorcizável.”106 Trata-se do primeiro passo no sentido de se construir uma racionalidade em torno do irracional. A conversão se inicia quando o homem, prisioneiro de suas emoções, aceita os nomes que lhe são dados pela comunidade religiosa que lhe dirige a palavra.107

Esta é a primeira etapa da racionalização da experiência de Deus. É

importante neste momento realizar uma ressalva. Muito embora se trate aqui de

conversão, o que pressupõe o início de caminhada espiritual do indivíduo, este tipo

de experiência religiosa submetida a este processo de conversão institucional pode

acontecer no caminhar da vida religiosa do crente. O fiel assíduo na igreja tem a

possibilidade de viver uma experiência de Deus e pode ser submetido a esta etapa

do processo de racionalização da experiência religiosa, em que sua ansiedade será

nomeada pela comunidade religiosa. Willian James, já citado neste trabalho, em sua

obra As Variedades da Experiência Religiosa aborda relatos de experiências

religiosas graduais e repentinas.108 A observação do objeto, especialmente dentro

do universo protestante, também atesta esta possibilidade. 109 Quem também

observa este fato é Antônio Gouvêa Mendonça, afirmando que existem “indicações

biográfica de conversões que se deram após muitos anos de aprendizado das

doutrinas protestantes”110.

Nesta primeira etapa, o CRD procura alterar o eixo temporal da experiência

religiosa do homem, experiência que tem relações inerentes ao tempo presente.

105 Ibidem, loc. cit. 106 Ibidem, loc. cit. 107 Ibidem, loc. cit. 108 JAMES, William, 1995, p. 126. 109 A teologia pentecostal clássica dá ênfase nessa experiência posterior a conversão inicial, chamando-a de “segunda benção” ou “batismo com o Espírito Santo”. 110 MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O celeste porvir – a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1995, p. 200.

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Para este tipo de protestantismo, o homem não é produto das relações sociais, tão

pouco resultado de traumas biográficos nas relações familiares, ou resultado de

contradições econômicas e da classe da sociedade onde vive. O homem não é

solidário ao tempo e espaço presente, embora habite nele. Na antropologia deste

protestantismo o fundamento é ontológico e os horizontes vão além do tempo e do

espaço, se abrindo para à eternidade. A eternidade é, portanto, a resposta acerca da

ansiedade que o converso sente, revelando “uma ruptura com os próprios

fundamentos da vida”. A resposta religiosa que este protestantismo fornece é um

diagnóstico, o porquê. Neste tipo de protestantismo a compreensão desta ruptura é

o problema a ser resolvido e o nome da ruptura é pecado. A ansiedade é causada

pelo pecado, que abalou o ser do homem perante a eternidade.111 Este é o eixo em torno do qual todo o universo de significação protestante irá se construir. Ponto originário absoluto, cordão umbilical do universo, do qual depende o sentido da vida, ponto de referência para todas as coordenadas do tempo e do espaço, início de todas as direções.112

O homem é pecador não no sentido moral, mas no sentido ontológico, uma

vez que a moralidade protestante é uma racionalização que se processa posterior a

conversão (a questão da moralidade será abordada no tópico acerca do universo

dos protestantes, especialmente dentro do campo ético). Inclusive, a excelência

moral do pecador não é exigida no momento da conversão. Na conversão se espera

uma mudança de orientação. Não se trata de um fazer, mas de uma entrega,

sintetizada na fórmula aceitar a Cristo como único e suficiente salvador.113

A análise do pecado precisar ser feita baseada na relação que este homem

possui com a morte e com Deus. A morte dentro deste contexto protestante não é

compreendida como o fim, mas como um momento de verdade e transparência.

Desta forma, estar diante da morte ou de Deus é exatamente a mesma coisa. Se a

morte fosse interpretada como fim da consciência a culpa deste pecador seria

eliminada após a morte. Não é o que acontece. Uma vez constituído o eixo “alma-

perante-a-eternidade”, a “morte passa a ser a impossibilidade de morrer”114. Logo, a

morte é a eternalização da culpa. “Ser homem é ser pecador. E ser pecador é estar

destinado à condenação eterna.”115

111 ALVES, Rubem, 1979, p. 62. 112 Ibidem, p. 63. 113 Ibidem, loc. cit. 114 Ibidem, p. 64. 115 Ibidem, p. 65.

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A pregação da salvação, em decorrência disto, pressupõe a interpretação da morte como o encontro com um destino eterno. Ela é a cristalização ontológica, uma solidificação do futuro. A vida é o tempo da oportunidade. Enquanto se vive é possível modificar a orientação existencial para com o divino. Na morte cessa a oportunidade. O que foi, será.116

Aquilo que marca a conversão do protestante é aceitar a Cristo como único

e suficiente salvador. Neste momento, em que o converso se entrega a Cristo, é o

momento de maior tensão entre a experiência de Deus e a racionalização da

mesma. Por isso, existem duas linguagens distintas: a do recém-convertido e da

comunidade religiosa a que ele se converteu.117 Não se está mais no campo de um

sagrado selvagem, usando a linguagem bastidiana, fora do controle da religião

instituída.118 Mas também não se trata da profundidade do universo racionalizado do

CRD. Este é o limite entre um e outro.

2.1.4. Linguagem

Dentro do discurso oficial do CRD, Rubem Alves destaca a presença de uma

linguagem já cristalizada por este protestantismo. Esta linguagem é apresentada

como doutrina, liturgia e conversação, sendo uma estrutura da realidade do CRD. A

linguagem faz um inventário do real, nos indica o nome das coisas e nos revela uma

articulação lógica e funcional. A linguagem é, segundo Rubem Alves, um “mapa da

realidade: ela reduz a imensa pluralidade da experiência a uma série limitada de

categorias e conceitos que tornam possível a sua manipulação teórica e prática”119. A vida e a morte, o passado, o presente e o futuro, o aqui e o além, o corpo e a alma, o tempo e a eternidade, o proibido e o permitido, os amigos e os inimigos, tudo é rigorosamente definido.120

Para o recém-convertido, que experimentou o totalmente outro121, conhecer

a Cristo significa conhecer os benefícios daquele que provocou a miraculosa

mudança subjetiva e que é o símbolo do poder transformador. Ele não possui

linguagem que constitua uma cosmovisão protestante, pois a linguagem é vazia de 116 Ibidem, p. 66. 117 Ibidem, p. 68. 118 BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem e outros ensaios. 1. ed. São Paulo: Companhia Das Letras, 2006, p. 263. – Para aprofundamento acerca da dinâmica entre experiência religiosa e institucionalização da religião, se recomenda a leitura do artigo A experiência religiosa e a institucionalização da religião, de Antônio Gouvêa Mendonça (MENDONÇA, Antônio Gouvêa. A experiência religiosa e a institucionalização da religião. In: Revista de estudos avançados. pgs. 29-46, 2004). 119 ALVES, Rubem, 1979, p. 52. 120 Ibidem, loc. cit. – grifo meu. 121 OTTO, Rudolf, 2011, p. 62. – Otto aborda este aspecto acerca do sagrado no capítulo quarto de sua obra.

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ideias sobre a realidade externa. Neste momento o recém-convertido canta sua nova

experiência, sua linguagem é confessional e emotiva, ele está sob o encanto mágico

do objeto que o fascina e que transformou suas emoções, está de frente com algo

misterioso e não enuncia pensamentos, canta sentimentos. A comunidade religiosa,

ao contrário, o trata como quem “ainda não sabe no que crê”. A linguagem da

comunidade revela articulação dos sentimentos com uma cosmovisão compreensiva

e contém elaboração teórica da experiência do recém-convertido. O objeto

misterioso e maravilhoso para o recém-convertido já foi submetido a um processo de

reflexão globalizante dentro da comunidade. O misterioso e maravilhoso já se tornou

conhecimento.122

“A mística antecede a moral” 123, afirma Rubem Alves. A conversão é uma

experiência com uma pessoa e não um processo didático em que se aprende um

novo conhecimento.124 Willian James diz que “existe pouca teologia doutrinária

numa experiência desta natureza, que começa com a necessidade absoluta de uma

ajuda do alto, e termina com a sensação de que ele nos ajudou.”125 Aliás, pouco

importa o conhecimento adquirido neste processo, mas sim o senso novo de poder,

conforme indicou Durkheim.126 Existe algo de muito semelhante com a experiência

de Paulo de Tarso: “Vivo, não eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2:20).127 Cristo

resolve o problema ontológico da culpa. O problema não é resolvido através da

pedagogia filosófica de Cristo ou da moral cristã, mas de uma cura que é resultado

de uma “participação mística, emocional, pessoal, no próprio ser do Salvador” 128.

Na tensão entre o converter-se a Cristo e o converter-se ao CRD, o

converso ainda não sabe que está aderindo a uma série de “acordos silenciosos”,

completamente assimilados pela consciência coletiva da igreja. Em sua conversão

inarticulada e emocional, o convertido está prestes a compreender as visões de

mundo que estes acordos revelam. A comunidade não se contenta com expressões

puramente emocionais. A comunidade precisa entender os sentimentos para evitar

que eles não passem de alucinações e fantasias, destituídas de fundamento.129 Na

intenção de evidenciar as visões de mundo que os “acordos silenciosos” revelam, 122 ALVES, Rubem, 1979, p. 68. 123 Ibidem, p. 69. 124 Ibidem, loc. cit. 125 JAMES, William, 1995, p. 134. 126 DURKHEIM, Émile, 1996, p. 459. 127 ALVES, Rubem, 1979, p. 69. 128 Ibidem, loc. cit. 129 Ibidem, p. 70.

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Rubem Alves faz uso de quatro grupos de vocabulários referentes a noção de

pecado. Estes quatro grupos são apenas ângulos diferentes acerca do mesmo tema

– a culpa – e são fundamentais para construção do universo protestante.

O primeiro vocabulário é de natureza jurídica-penal. Neste ângulo, pecado é

quebra da lei, ou seja, um crime. Ao crime se espera uma punição. O homem é réu.

Deus é lei e garante o seu cumprimento.130 No segundo grupo se adentra em um

mundo de impureza. Pecado é sujeira, imundície e lama. Uma vez manchado por

toda esta lama, o pecador está separado do puro. Deus é pureza. Portanto, o

homem está sem comunhão com Deus. Existe uma repulsão que afasta o puro do

impuro. O terceiro grupo diz respeito a um universo medicinal. Pecado é doença,

enfermidade e veneno. O pecador perdeu seu acesso a fonte da vida, logo, está

mortalmente doente. Por fim, o quarto grupo revela uma natureza político-comercial.

O pecador está escravizado e sem sua liberdade. Sua libertação exige um

pagamento, tem um preço de resgate.131

2.1.5. Fundamentos do mundo dos protestantes

Existem algumas observações de Rubem Alves bastante pertinentes na

investigação do objeto. Ele aponta que Deus, dentro destes grupos de vocabulários,

é sempre absoluto. Deus é “lei e garantia de punição; pureza e garantia de repulsão;

saúde e garantia de morte aos enfermos; e finalmente empresário que garante que

não existirá liberdade sem o pagamento do preço”132. O ponto de partida deste

universo protestante não é o paraíso. O abismo, com o caos e as trevas, vem antes

da graça, amor e perdão. Trata-se de uma realidade rígida, fruto de uma

causalidade inflexível, onde não há perdão gratuito.133 Dentro desta lógica, Cristo é

mediatorial, se colocando entre Deus e os homens. Para que se cumpra a Lei, Jesus

recebe de Deus aquilo que o homem deveria receber – punição –, e oferece ao

homem aquilo que Deus não poderia oferecer – graça, amor e perdão. Esta

mecânica não termina com este universo bem estruturado, regido em termos de

causa e efeito. “A Lei e a ordem permanecem como realidades fundamentais”, o que

se tornará evidente ao avançarmos na análise do CRD.134 Falta aqui a sensibilidade

130 Ibidem, p. 70-71. 131 Ibidem, p. 71. 132 Ibidem, loc. cit. 133 Ibidem, loc. cit. 134 Ibidem, p. 74.

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de Lutero, porém não sistematizada, e se sobressai a lógica e o sistema coerente de

Calvino135 – ou dos calvinistas?

Qual a resposta que o discurso oficial do CRD fornece para que o homem,

imerso no pecado, passe a participar misticamente de outra realidade? Neste

protestantismo a resposta é fé. “Fé é o ato emocional de aceitar a Cristo no

coração.”136 Nesta conversão institucional, em que o convertido aceitou Cristo no

coração e observando tudo o que foi relatado acerca da lógica teórica – ou “acordos

silenciosos” – Rubem Alves ressalta que a experiência é interpretada dentro de uma

perspectiva absoluta, além de toda dúvida. É obrigatório para o converso “ter certeza

de sua salvação”, pois duvidar é confessar que a crise que originou sua conversão

ainda não está resolvida. As bases emocionais, nas quais se fundamentarão os

dogmatismos construídos no CRD nascem desta ausência da possibilidade da

dúvida e da crítica, pois, na conversão deste protestante, um universo conhecido de

forma absoluta e final é pré-requisito.137

2.1.6. Sintomas da racionalização da experiência de Deus [I]

Uma vez finalizado este tópico, os sintomas da racionalização da

experiência de Deus aqui detectados serão sintetizados. Todos os demais tópicos

que seguirão a análise do objeto passarão pela mesma síntese dos sintomas, pois

tornará mais clara a linha metodológica. Em relação a conversão do protestante

percebe-se os seguintes sintomas: a. Diferenciação de linguagem entre o convertido

e a comunidade religiosa para descrever a experiência religiosa de conversão; b. No

CRD o tempo presente perde importância, se distanciando da realidade da vida no

agora, local da experiência de Deus; c. A comunidade religiosa é detentora de uma

interpretação da experiência de conversão pré-estabelecida, se colocando, neste

sentido, em posição superior ao próprio convertido e controlando as consequências

– positivas ou negativas – da experiência na vida do converso; d. A interpretação da

experiência de Deus é baseada em uma teoria – teologia – bem formulada, rígida e

sem espaço para a dúvida; e. O CRD espera de um verdadeiro convertido certeza

de sua salvação.

135 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, 1995, p. 40. 136 ALVES, Rubem, 1979, loc. cit. 137 Ibidem, p. 81.

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2.2. A teoria do conhecimento protestante

O empenho aqui desprendido é pela investigação da racionalização da

experiência de Deus – a experiência místico-religiosa. Nesta investigação existe

uma linha metodológica, a qual será relembrada. O diagnóstico está dado: o

processo de racionalização da experiência de Deus ocorre no objeto, o Calvinismo

da Reta Doutrina. Para melhor compreensão de como a teoria protestante do

conhecimento se constitui e para continuar atestando os sintomas que este processo

de racionalização produz, será aprofundado o diagnóstico que já está dado, pois

ajudará a compreender como esta teoria do conhecimento se apresenta no universo

protestante. Será abordado o processo de racionalização em si durante a exposição

de como se constrói a teoria do conhecimento protestante.

2.2.1. Dúvida: inimiga da racionalização da experiência de Deus

Na experiência de conversão foi dito que o converso está no momento de

maior tensão entre aquilo que ele experimentou e aquilo que a comunidade religiosa

conhece de sua experiência. As construções da realidade protestante ainda não

estão claras para o converso. Porém, as regras que estruturam o mundo em que ele

está entrando já estão definidas para o CRD.138

Emoção e razão. Experiência e explicação. Fé e inteligibilidade. Embora os

dois discursos sejam distintos e descontínuos, a relação entre os dois não pode ser

entendida em termos de oposição. Onde existe experiência emocional, encontramos

busca de inteligibilidade. Onde encontramos a razão, encontramos também uma

experiência emocional em que a racionalidade se fundamenta. Nesta tensão que se

estabelece entre racional e irracional, Otto deixa claro que, para religião não ser

religião racional139, embora os atributos racionais sejam essenciais, eles, no sentido

kantiano, são atributos a posteriori, uma vez que são fruto de uma experiência,

diferentemente do atributo analítico, “cujo conhecimento independe da

experiência”140, sendo, portanto, a priori. O grande problema ocorre quando o

aspecto racional prepondera sobre o irracional, o que é uma tendência, segundo

138 Ibidem, p. 82. 139 OTTO, Rudolf, 2011, p. 33. 140 Ibidem, p. 34.

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Otto.141 Esta tendência está inserida na teoria do conhecimento que é analisada

aqui.

Embora a racionalidade possua fundamentos em experiências pré-racionais

emotivas, a racionalidade está em busca de resolver um problema causado pela

experiência emocional. Ora, a experiência é detentora de um elemento ameaçador e

a racionalidade busca obscurecer a própria experiência, especialmente nos casos de

“religiões racionais”. Esta é uma característica da própria linguagem, conforme

Rubem Alves afirma. A linguagem permite ver, mas também cega. A racionalidade

tem sempre pretensões totalitárias, pois o que não pode ser assimilado por ela se

torna irrelevante e destituído de significação. Para a racionalidade, tudo aquilo que

não pode ser conhecido é perigoso, uma vez que coloca em risco a racionalidade

instaurada, a qual não pode ser subvertida.142 “Toda racionalidade, por isso mesmo,

exige a eliminação das informações inassimiláveis que tenderiam a romper o mundo

por ela construído”.143

Qual seria o aspecto da experiência, neste caso a de conversão, que a

racionalidade tenta eliminar – o grande inimigo? A dúvida. 144 Uma vez que a

experiência é de ordem subjetiva, em que há intensidade e paixão, existe a incerteza

permanente da experiência em sua objetividade. Neste sentido, a fé e a dúvida

pertencem uma à outra.145 Mesmo assim, a teoria do conhecimento protestante está

baseada na pretensão de um conhecimento absoluto que exorcize o terror que é a

dúvida, transformando a fé em dogma.146

A experiência de fé é contraria a toda tentativa da racionalidade de

transformar sua paixão em objeto de conhecimento, pois sua linguagem faz

referência apenas a objetos que participam da “incerteza objetiva, incomensurável

com a infinita paixão da subjetividade”147. Tersteegen observa um problema em

relação a este tipo de pensamento absolutista: “um Deus que se pode compreender

não é Deus algum.”148 Citando Kierkegaard, Alves esclarece que “sem risco não há

fé. Fé é precisamente a contradição entre paixão infinita da interioridade do indivíduo

141 Ibidem, p. 35. 142 ALVES, Rubem, 1979, p. 82-85. 143 Ibidem, p. 85. 144 Ibidem, loc. cit. 145 Ibidem, p. 87. 146 Ibidem, p. 85. 147 Ibidem, p. 89. 148 Citado por OTTO, Rudolf, 2011, p. 20.

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e a incerteza objetiva.”149 Citando agora Ricoeur, além de risco, a terminologia

mencionada é aposta, pois aquele que tem fé arrisca sua vida no improvável.150

Rubem Alves sintetiza o dilema da teoria do conhecimento protestante afirmando

que “a fé proíbe o dogma”151.

2.2.2. Origem e caráter divino das Sagradas Escrituras

A pergunta que surge, diante de uma teoria do conhecimento com pretensão

de saber absoluto e de uma fé que rejeita o dogma, é como esta teoria do

conhecimento protestante é fundamentada. O tipo de pensamento que se apresenta

é tal que “o converso ‘aprende’ que a sua experiência, longe de ser fundadora de um

conhecimento, é fundada sobre um conhecimento absoluto que a antecede.”152

Como existiria tal possibilidade? Como se assegura que a dúvida não corroa as

engrenagens deste sistema de pensamento? A resposta utilizada como

fundamentação desta linha de raciocínio protestante é a doutrina da origem e do

caráter divino das Sagradas Escrituras.153 Para formular esta teoria do conhecimento

protestante Rubem Alves analisa esta doutrina sobre algumas perspectivas que

serão destacadas na sequência.

2.2.2.1. A Bíblia como Palavra de Deus

A Bíblia e tudo o que nela contém são, para o CRD, as próprias palavras

de Deus. O cânon protestante não é lido para se compreender os testemunhos dos

homens acerca de suas experiências com o divino. Não se trata de um livro em que

as experiências relatadas são vivas e inefáveis ou que a intensidade da paixão do

amor, da esperança ou da culpa brotem das palavras. No CRD não se volta ao texto

porque as experiências ali relatas e as do leitor são irmãs, de forma que os

testemunhos dos homens do passado se tornam a própria voz daquele que lê. Nesta

forma de aproximação às Escrituras a existência é a nota de rodapé e o texto é a

“vida”.154 Heschel, nesta mesma linha de raciocínio, afirma que um dos grandes

erros da teologia conceitual é a “separação da existência dos atos religiosos das

149 KIERKEGAARD, Soren. Concluding Unscientific Postscript. Princeton: Princeton University Press, 1968, p. 182 – grifo meu. 150 RICOEUR, Paul, 1967, p. 355. 151 ALVES, Rubem, 1979, p. 90. 152 Ibidem, p. 94. 153 Ibidem, loc. cit. 154 Ibidem, p. 94-95.

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afirmações acerca da mesma” e critica o escolasticismo, que, em sua ótica, significa

“tratar o que é vago como se fosse preciso tentar adaptá-lo a uma categoria lógica

exata”155.

Para o CRD, o texto contém palavras que brotaram da eternidade e foram escritas no tempo. Deus falou de forma final e completa. Fala ele ainda hoje? Sim, mas o seu falar hoje nada acrescenta ou subtrai da palavra já falada no passado, de uma vez por todas. A palavra atual de Deus é como a repetição de uma gravação, feita milhares de anos atrás. Há um sem-número de recombinações possíveis. O que não é possível é que a sua fala de hoje acrescente, contradiga ou diminua o que ele já disse no passado.156

Uma vez aceita esta definição da Bíblia – Palavra de Deus –, a experiência

de Deus é deslocada de sua condição de origem e é subordinada à autoridade de

um discurso normativo e absoluto. A vida passa a ser controlada pelo texto fixo, que

se torna norma do pensar, do agir, do querer e do sentir. Aquilo que é exterior ao

coração força o leitor a descrer de si mesmo, pois primeiro vem o conhecimento

absoluto e, depois, a experiência.157 A afirmação de Boff acerca da Torá para os

fariseus e mestres da Lei dos tempos de Jesus se torna válida para o CRD: a Bíblia

se torna uma “camisa de força”158.

2.2.2.2. A Bíblia como autoridade absoluta

Duas perguntas surgem e carecem de respostas para que a teoria do

conhecimento protestante se torne mais robusta: 1. Se a Bíblia é um livro de

testemunhos de homens que relatam suas experiências, como é possível ter

certezas, uma vez que testemunhos podem estar equivocados? 2. Se a Bíblia é

parte da história, como se pode ter certeza de que ela – a Bíblia – é a experiência

fundadora e não a história? A doutrina da inspiração das Escrituras dá conta de

suprimir toda dúvida. Deus é quem fez com que tudo fosse escrito. No CRD todas as

vias que se iniciam com a experiência estão bloqueadas. Existe um a priori

dogmático que diz a Bíblia foi escrita por inspiração de Deus e, mais do que isto, que

o texto – antigo e novo testamento – foram preservados puros em todos os séculos.

A Bíblia é, então, um milagre. Não pode ser tratada como objeto de conhecimento,

155 HESCHEL, Abraham Joshua, 1975, p. 21. 156 ALVES, Rubem, 1979, p. 95. 157 Ibidem, loc. cit. 158 BOFF, Clodovis, 1979, p. 39.

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pois ela é em si o a priori de todo o conhecimento.159 Wayne Grudem160, teólogo

sistemático e tido como ortodoxo, ressalta esta linha de raciocínio quando considera

que a Bíblia deve ser a única referência para o estudo da teologia, pois qualquer

outra forma de “Palavra de Deus” seria “inadequada”, tendo em vista a completude

do cânon do Novo Testamento que define o momento histórico em que Deus não

fala mais através dos homens, mas se restringe a falar através do texto escrito.161

A teoria do conhecimento protestante está fundamentada em um texto de

autoridade absoluta. O texto sendo verdade absoluta torna todo esforço

hermenêutico supérfluo e impossível, pois não há conexão entre o texto e a vida

(tarefa que a hermenêutica se propõe).162 No texto se encontra o centro absoluto do

sagrado – o texto é dotado de inerrância163 – e não na experiência, nos sentimentos

e nas emoções.164 Se a experiência não é iluminada pela autoridade, esqueça-se da experiência. Se a vida não se torna mais inteligível pela leitura das Escrituras, abandone-se o ideal de inteligibilidade. Se os fatos resistem ao texto, que os fatos sejam abolidos.165

A teoria do conhecimento protestante tem na doutrina da inspiração das

Escrituras uma consequência complicada para aqueles que se debruçam seriamente

no texto bíblico. A sustentação de toda teoria do conhecimento depende da

inspiração do texto. Se houver apenas um erro no texto, a dúvida pode penetrar todo

o sistema, que acabaria ruindo. Grudem ao discorrer sobre a inerrância afirma que

se ela for rejeitada precisaríamos afirmar igualmente que “a Bíblia está errada não

apenas em detalhes secundários, mas também em algumas de suas doutrinas”166.

Exatamente por esta possibilidade, não existe espaço para este erro, que deve ser

evitado a todo o custo.167 Kierkegaard, portanto, está correto quando afirma que

“qualquer pessoa que afirme a inspiração, como o crente o faz, deve

159 ALVES, Rubem, 1979, p. 98-99. 160 É utilizado aqui como exemplo de teólogo ortodoxo. Não se pretende concordar ou discordar de suas assertivas, apenas evidenciar que o argumento de Rubem Alves está presente em sua teologia. 161 GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática – atual e exaustiva. São Paulo: Vida Novo, 1999, p. 26-27. 162 ALVES, Rubem, 1979, p. 99. 163 Ibidem, p. 102. 164 Ibidem, p. 100. 165 Ibidem, p. 101. 166 GRUDEM, Wayne, 1999, p. 67. 167 ALVES, Rubem, 1979, p. 103.

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consistentemente considerar qualquer deliberação crítica, seja a favor ou contra,

como uma direção falsa, uma tentação para o espírito.”168

2.2.2.3. O texto e a história

Uma vez estabelecida a doutrina da inspiração divina, o CRD se vê forçado

a tratar o texto como se ele não estivesse inserido na história. Embora seja evidente

que os textos humanos possuem seu lastro na terra, em um contexto histórico,

social, político e econômico específico, sendo eles solidários aos mundos de onde

vem, a Bíblia, ao contrário, tem sua origem na eternidade. A forma como o CRD se

aproxima do texto possui características muito específicas. A ordem em que os

capítulos são apresentados é meramente acidental, uma vez que Deus decidiu

gravar em um livro sua vontade eterna e absoluta. Tendo em vista esta aproximação

com o texto, não existe um antes e depois, um acontecer no tempo ou uma

priorização temporal, epistemológica e nem axiológica em relação aos versículos. Se

algo não está claro na leitura, busque outro texto que aborde aquele assunto,

independentemente de qual livro, de qual capítulo e do contexto, pois a elucidação

necessária virá.169

Grudem, por exemplo, ao introduzir sua teologia sistemática, faz questão de

destacar que a sua ênfase teológica não está baseada na teologia histórica e nem

mesmo filosófica, pois parte diretamente do texto bíblico para entender o que a

própria Bíblia diz a respeito de vários assuntos teológicos.170 Ele afirma que em sua

teologia sistemática as doutrinas serão apresentadas com base no que a Bíblia diz

como um todo acerca de algum tópico específico. Ou seja, versículos serão

utilizados dos vários livros que compõem o cânon para justificar determinada

doutrina.171

Neste tipo de protestantismo os signos, que são referências a conteúdos

empíricos, e os símbolos, cujas significações reais são distintas das significações

óbvias, estão no mesmo nível. Na verdade, todos os símbolos são reduzidos a

signos. Isto significa que o modo como o CRD significa um fato histórico é igual ao

modo como se significa o sagrado. Portanto, a linguagem das coisas espirituais é a

mesma das coisas materiais. É com este tipo de mentalidade que o CRD observa os 168 KIERKEGAARD, Soren, 1968, p. 27. 169 ALVES, Rubem, 1979, p. 105. 170 GRUDEM, Wayne, 1999, p. 1-2. 171 Ibidem, p. 4.

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textos bíblicos. Discutir o significado dos textos sem ser considerando a literalidade

como a verdade, um signo e não um símbolo, é um sério crime, passível da

acusação de heterodoxia e heresia.172

Assim se estabelece uma lógica que rejeitará toda e qualquer tradição

teológica distinta. Todo o trabalho de exegetas, que colaboraram para obtenção de

visões diferentes do texto sagrado, é considerado como desvio e, mais que isso,

como perigosas heresias. Isto tudo por conta da premissa que se estabelece nesta

lógica: se Deus ditou cada palavra do texto – inspiração verbal –, de forma que a

verdade absoluta se estabeleceu, como considerar tradições e teologias diferentes?

Assim, conseguimos compreender qual é o maior objetivo do exegeta ortodoxo

dentro do CRD: resolver todas as dificuldades aparentes do texto, com o objetivo de

revelar a unidade que nunca se rompe.173

A consequência deste conhecimento absoluto e final, em que o CRD

constrói sua teoria do conhecimento, é a impossibilidade de que a história se

apresente com os seus processos, novas sínteses e desconstrução de sínteses

antigas.174 Não há espaço para um tipo de pensar situacional, como Heschel sugere,

em que aquele que pensa está envolvido emocionalmente e nunca é um mero

espectador. Ao contrário, esta forma de lidar com a história reflete um pensar

conceitual, em que o pensador é tão somente imparcial, indiferente aos sentimentos

que acontecem no presente.175 Rubem Alves questiona o espírito reformista que

deveria existir dentro do Protestantismo. Percebe-se que, frente a esta realidade em

que o conhecimento é absoluto, o resultado será a presença de uma rigidez

institucional em que reforma é sempre inviável. Se a história não tem relevância

dentro deste contexto e se a verdade é imóvel, pois foi dada no passado em caráter

definitivo, não há espaço para o novo. Não existe o que descobrir ou o que

inventar.176 “Pesa sobre o presente e o futuro a interdição de não só modificar como

também acrescentar.”177 Diante desta incapacidade do CRD, fica nítida a dificuldade

em perceber os sinais dos tempos que foi tratado no primeiro tópico deste capítulo.

Além disto, a possibilidade da experiência de Deus não existe. Não há lugar para o

inesperado e para a surpresa. Conhecer para o CRD é ler, mas nunca escrever, 172 ALVES, Rubem, 1979, p. 103-105. 173 Ibidem, p. 105-106. 174 Ibidem, p. 107. 175 HESCHEL, Abraham Joshua, 1975, p. 18. 176 ALVES, Rubem, 1979, p. 109. 177 Ibidem, loc. cit.

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como diz Rubem Alves.178 Estamos diante de um “saudosismo do passado”, que não

deseja compreender a história e que acaba por transformar o presente em algo

vazio.

Utilizando as palavras de Heschel, esta forma de encarar o presente de

forma racional e rígida, reduzindo a complexidade e profundidade da vida humana,

pode ser retratada como a incapacidade de compreender a religião, pois Somente compreenderão a religião aqueles que podem sondar sua profundida, aqueles que podem combinar intuição e amor com o rigor do método, aqueles que estão aptos para encontrar categorias que amalgamam com o que é genuíno e levam o imponderável à expressão única. Não é suficiente descrever o conteúdo dado pela consciência religiosa.179

2.2.2.4. A impossibilidade da interpretação e o papel das confissões

Os protestantes se vangloriam por terem instaurado o direito ao “livre

exame” das Escrituras aos fiéis. Mas, será que dentro de um sistema como este, em

que o intelectualismo se revela um traço marcante do espírito protestante180, com

sua busca implacável da defesa da verdade absoluta, este “livre exame” não se

tornaria uma porta aberta para a dúvida, colocando todo o sistema em risco? A

resposta é sim. Estamos diante da questão hermenêutica. Nada garante ao CRD

que a proximidade entre o leitor e o texto produza a significação do texto esperada

por este protestantismo. O texto sempre responde as questões que o leitor faz.

Porém, as questões do leitor são condicionadas por inúmeros fatores relacionados

ao leitor: experiências biográficas, neuroses, cultura, condição social, situação

econômica, entre outros. 181 Trata-se de um ponto que coloca toda teoria do

conhecimento protestante em risco. Como se resolve no CRD o problema da

unidade da verdade que colide com a diversidade de interpretações?

Da mesma forma como o magisterium é a solução para Igreja Católica –

inaceitável para o protestantismo –, a solução do protestantismo foi a criação das

confissões. As confissões estabelecem para a teoria do conhecimento protestante a

leitura uniforme do texto. Nas confissões estão inseridas as doutrinas ensinadas nas

178 Ibidem, loc. cit. 179 HESCHEL, Abraham Joshua, 1975, p. 22. 180 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, 1995, p. 201. 181 ALVES, Rubem, 1979, p. 111.

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Sagradas Escrituras, garantindo que a dúvida não adentre o sistema e o

comprometa.182

O “livre exame” protestante é, na verdade, apenas o direito à proximidade

física que o indivíduo tem em relação ao texto. Não há aqui possibilidade para

interpretação diferente daquela já cristalizada na confissão. Rubem Alves questiona

sobre o que separa o católico e o protestantes neste sentido. A resposta que ele

fornece surpreende: nada. Embora o Protestantismo tenha rejeitado as instituições

controladoras do Catolicismo, sua paixão pelas certezas o levou para uma

“alternativa funcional”, que cumpre papel idêntico ao magisterium católico. 183

Veremos nos capítulos posteriores as causas deste processo, mas é importante

desde já antecipar que esta característica do CRD tem relação direta com a

pretensão da ortodoxia protestante em conceder valor absoluto às fórmulas dogmáticas, de considerar que a fé e o assentimento de um credo são uma e a mesma coisa, de insistir nos termos da confissão ou do catecismo, sem ir sempre, mais além do som das palavras, à verdade [...].184

Rubem Alves resume: o conhecimento, para o protestante, começa com o ato de submissão a um texto de proposições verdadeiras, absoluto, que contém a verdade do tempo e a verdade da eternidade. A fim de preservar o caráter absoluto do conhecimento, acima de toda a dúvida, interdita-se o exercício da consciência interpretativa e da razão crítica, por meio de uma confissão que se torna no critério final para a leitura do texto sagrado.185

2.2.3. Onde se localiza o esforço intelectual?

Até este momento, a teoria do conhecimento protestante revela que o lugar

do novo está no passado. O conhecimento absoluto já foi descoberto, submetido à

engrenagem na qual o sistema de pensamento protestante está baseado e, como

visto no tópico anterior, toda a verdade está devidamente documentada nas

confissões, em que tudo está devidamente organizado de forma coerente e

sistematizada. Importante notar a perspectiva em relação ao modo como este

protestantismo se relaciona com os tempos. A lógica é semelhante, senão idêntica,

ao tratado em Presente, passado e futuro, primeira parte deste capítulo.

182 Ibidem, loc. cit. 183 Ibidem, p. 112. 184 MACKINTOSH, Hugh R.. Teologia Moderna – de Schleiermacher a Bultmann. São Paulo: Novo Século, 2002, p. 19. 185 ALVES, Rubem, 1979, loc. cit – grifo meu.

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A verdade do presente e do futuro já foi revelada no passado. Assim, presente e futuro são destituídos de significação. Nada contém de novo. Nada existe neles que possa surpreender ou inovar.186

É um cenário em que o empreendimento intelectual está limitado a repetir e

deduzir. “Se o passado é a norma absoluta, podemos estar certos de que amanhã

será igual hoje, e qualquer tempo futuro será igual amanhã.”187 A situação em que

este tipo de protestantismo se coloca é enfadonha, pois que graça há em um mundo

sem novidades? Se trata de um mundo monótono. Como amenizar este estado

emocional de enfado, em que a expectativa é sempre da impossibilidade da

surpresa? Rubem Alves diz que a “função tranquilizante da repetição” compensa

este estado. Repetir para este protestante tem o sentido de afirmar que o

conhecimento construído no passado ainda é válido. A atitude de repetição aqui

implica na confirmação de que não há necessidade de se repensar. Sermões em

que o pregador deixa de fornecer respostas acarretam desconforto nos ouvintes. A

falta de um discurso dogmático significa a presença da dúvida e a dúvida é expelida

neste sistema construído, seja pelos teólogos do CRD ou pela própria comunidade

religiosa deste contexto do protestantismo. Portanto, o essencial nesta lógica é

apresentar o que já se está acostumado a ouvir.188 A “contemporaneidade e o franco

falar”189 de Comblin vão em completa oposição ao sistema do CRD e, certamente,

fariam o teólogo ser expelido deste contexto ou ser agente de inserção da dúvida no

âmago do sistema. Fato é que um teólogo parresiasta como Comblin sentiria o

enfado intelectual se tão somente fosse agente de repetição.

Existe uma zona de conforto que todo o sistema de pensamento protestante

está alojado, seja os pastores-teólogos ou os próprios fieis das comunidades

religiosas. A preservação deste conforto depende da repetição, que sustenta a

imutabilidade da verdade anunciada, produzindo a sensação de senhores da

verdade. Em um contexto assim, a tarefa do teólogo não consiste em criticar,

explorar e criar. Isto não é possível. O grande objetivo teológico é justificar o

conhecimento velho. O esforço deste teólogo é o de dedução. Ele se empenha na

tarefa de compreender os processos dedutivos pelos quais o texto foi submetido

para se tornar doutrina. A ortodoxia preza para que a doutrina não contenha nada de

186 Ibidem, loc. cit. 187 Ibidem, p. 113. 188 Ibidem, loc. cit. 189 OTTAVIANI, Edélcio, 2015, p. 182.

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novo.190 A doutrina deve colocar luz em verdades que já estão contidas no passado.

Mais uma vez Rubem Alves aproxima este protestantismo com o catolicismo. Ele

cita o Papa Paulo VI e diz que se trata de um discurso que poderia ser feito por

qualquer protestante ortodoxo: Como a árvore é o desenvolvimento da semente, a história da Igreja é o processo que aprofunda e alarga os elementos seminais de origem evangélica, sem alterá-los, sem corrompê-los, sem modifica-los, conduzindo-os, à perfeita realização.191

A crítica pessoal de Rubem Alves a todo este processo não é pelo fato de se

ter escolhido um ponto de partida no passado, mas de que a teologia e confissão

não são produto de uma hermenêutica particular e de caráter provisório. A falta de

uma hermenêutica como expressão de uma perspectiva relativa impossibilita que

existam novas interpretações do passado, o que não permite a abolição e nem a

instauração de chaves hermenêuticas.192 Esta lógica abriga dentro de si um perigo

que intitulamos em Presente, passado e futuro de comportamento farisaico. Rubem

Alves chama de orgulho intelectual. Esta teologia que não se “escreve a lápis”193,

mas com caneta indissolúvel, não faria os demônios que C. S. Lewis criou em sua

obra Cartas de um diabo ao seu aprendiz se preocuparem com a humildade de seu

“paciente” – este paciente é, na verdade, um ser humano que é acompanhado bem

de perto pelos demônios.194 Desse ponto de vista, pode-se afirmar que este orgulho

intelectual chega a ser demoníaco.

Este orgulho intelectual torna os ouvidos para escuta surdos. Ele, inclusive,

impossibilita qualquer diálogo ecumênico ou inter-religioso. Quando falamos de

escuta desejamos ir além da polidez de um falar entre pessoas educadas. Nos

referimos a uma atitude humilde, em que o meu falar não diz tudo. Em que a minha

verdade não é a completude e o ápice do conhecimento.195 Christine Lienemann-

Perrin, teóloga reformada e citada por Cláudio de Oliveira Ribeiro em seu livro

Pluralismo e libertação, ao falar sobre diálogo inter-religioso e missão, discorre sobre

a importância de praticarmos um cristianismo capaz de refletir e aprender com os

erros do passado, buscar compreender visões diferentes e submeter os conteúdos

190 ALVES, Rubem, 1979, p. 115. 191 Ibidem, loc. cit. 192 Ibidem, loc. cit. 193 A frase “teologia se escreve a lápis” é atribuída ao teólogo Russel Shedd. 194 LEWIS, C. S. Cartas de um diabo a seu aprendiz. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 67-72. 195 ALVES, Rubem, 1979, p. 116.

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da nossa fé a uma nova reflexão.196 Esta forma de dialogar implica em humildade.

Nesse protestantismo não há espaço para este tipo de atitude. Ele possui a verdade

e os outros estão nas “trevas”.197

Consequentemente, se percebe também o desprezo pela atividade

intelectual, que é, curiosamente, o oposto do orgulho intelectual do CRD. Esta

atitude de desprezo é resultado daquele que se percebe detentor do conhecimento

absoluto. Se o conhecimento já foi obtido, todos os passos na direção de conquistá-

lo não são necessários. O que resta é apenas a proclamação da verdade. Rubem

Alves faz referência a um trecho de um sermão citando Barth que está dentro do

contexto de comemoração do Centenário da Igreja Presbiteriana do Brasil, em 1959: Os pastores brasileiros não são como Karl Barth, que gasta o seu tempo fazendo teologia diante da lareira, em meio às nuvens de fumaça do seu cachimbo. Nossos pastores são homens de ação.198

É possível notar o desprezo pela atividade intelectual quando ela é

associada com a ociosidade. Afinal, se a atividade intelectual está encerrada, a

tarefa teológica é inútil, pois se busca apenas demonstrar de uma forma lúdica o que

já está consolidado.199

2.2.4. A vida se torna discurso

A conclusão que se chega até aqui é de que o protestante pesquisado

habita um discurso. Partindo da premissa de que este protestantismo é detentor da

verdade absoluta, pode-se afirma que qualquer dúvida em forma de crítica e

questionamento que a vida impor, inclusive as experiências religiosas, são, a priori,

falsas. Existe, portanto, uma desconexão entre a vida e o conhecimento absoluto

deste protestantismo. Mais do que isto, pode-se afirma que a vida é reprimida dentro

deste sistema.200

A questão que Rubem Alves levanta neste momento é: como se justifica

para os indivíduos e comunidades esta repressão da vida e submissão a um tipo de

conhecimento que é absoluto e que não permite que a vida se exprima? Ou então:

por que substituímos a vida por palavras? Ou ainda: por que experimentar o 196 LIENEMANN-PERRIN, Christine. Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo-RS: Sinodal, 2005, p. 11 apud RIBEIRO, Claudio de Oliveira. Pluralismo e libertação. Edição Kindle: Paulinas, Publicado em 16 de dezembro de 2015, pos. 1100. 197 ALVES, Rubem, 1979, p. 115. 198 Ibidem, p. 116. 199 Ibidem, p. 116-117. 200 Ibidem, p. 123.

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pensamento sobre a experiência e não a experiência em si, que somente a vida

pode proporcionar? A resposta que ele nos fornece é: o temor da vida.201

A vida é imprevisível, sempre mutante, não permite certezas, ela sempre

problematiza, destrói absolutos, força reorganizações, é complexa. 202 Nassim

Nicholas Taleb, em seu livro Antifrágil203, trabalha com este aspecto contingente da

vida. Ele afirma que “a vida é muito mais labiríntica do que lembramos em nossa

memória – nossa mente está ocupada em transformar a história em algo suave e

linear, o que nos faz subestimar a aleatoriedade”.204 A linguagem, ao contrário da

vida, torna possível definições estáveis, receitas prontas e um ambiente mais seguro

do que a vida. Este processo de absolutização da linguagem acaba por colocar as

emoções em um estado inconsciente, se transformando em racionalidade que se

afirma através da doutrina da inspiração.205

2.2.5. Conhecimento absoluto, sectarismo e poder

Antes de finalizar a explanação sobre a teoria do conhecimento protestante

e realizar um resumo dos sintomas que a racionalização da experiência de Deus

produz neste ponto, é importante abordar dois aspectos do conhecimento absoluto

do CRD. Em primeiro lugar o sectarismo e, em um segundo momento, o poder.

O Protestantismo é marcado por suas muitas denominações e seitas. O livre

exame e a liberdade, características tradicionalmente associadas a este movimento,

são tidas como responsáveis por estas divisões. A forma de interpretação deste

sectarismo que Rubem Alves propõe segue um outro caminho. No CRD, o critério

para participação na comunidade é a confissão da reta doutrina, como estabelecida

201 Ibidem, p. 123-124. 202 Ibidem, p. 124. 203 A tese que Taleb trabalhada neste livro, a questão da antifragilidade (que não significa robustez, mas a capacidade de se tornar mais forte em uma situação de fragilidade), tem muito a colaborar com a análise da teoria do conhecimento protestante. Os conceitos de antifragilidade abordados em sua obra são ferramental de análise crítica que aprofundam a compreensão do objeto estudado neste trabalho e serve de alerta para a grande possibilidade de colapso que o sistema de conhecimento protestante está sujeito, seja para o teólogo adepto deste saber absoluto, o fiel da instituição religiosa adepta ao CRD e as própria instituições religiosas adeptas do CRD. Uma hipótese que se levanta é que as doenças psíquicas que muitos líderes protestantes e fieis enfrentam dentro deste contexto (estas doenças podem estar relacionadas com a expressão popular “crise”) são fruto da falta de antifragilidade no sistema de pensamento protestante. Outra possibilidade é que a irrelevância dos discursos possa desencadear o colapso das instituições deste contexto, pois o discurso em si não é antifrágil. 204 TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil. Edição Kindle: Publicado em 14 de agosto de 2015, pos. 533. 205 ALVES, Rubem, 1979, p. 124.

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na confissão de fé. Desvios intelectuais desta ortodoxia provocam rupturas, uma vez

que se trata de algo definido rigorosamente.206

Desta forma, não podemos compreender que a tendência do Protestantismo

para cismas207, divisões e criações de novas denominações e seitas como fruto da

liberdade. Uma vez que o protestante habita o mundo de uma linguagem

rigorosamente definida, a crise se estabelece quando o discurso destoa do senso

comum. O “herege” não tem espaço neste tipo de comunidade.208 Rubem Alves

entende que é porque o universo protestante é intelectualmente compacto, sem espaços livres, sem indefinições, sem dúvidas, que qualquer leitura divergente dos evangelhos é sentida como um ato de rebelião que deve ser resolvido com a saída voluntária do dissidente ou a sua expulsão. Não é a liberdade intelectual que cria os cismas. O oposto é a verdade.209

Como garantir que a interpretação do texto é a correta? Como assegurar a

significação do texto, de cada palavra? Na forma de organização deste

protestantismo tudo é feito com a intenção de obscurecer que as significações e

interpretações são, na verdade, resultado da compreensão de um leitor. Este é um

ponto importantíssimo da compreensão desta teoria do conhecimento. O

conhecimento absoluto recebe o status de conhecimento divino, porém, se trata de

conhecimento humano. Homens precisaram declarar e afirmar as verdades divinas.

Esses homens não são homens comuns, mas fazem parte de uma ortodoxia que

detém poder para dizer a última palavra.210

Quem decide quem têm a última palavra? Somente quem possui poder

político para impor suas definições. Estes são os ortodoxos. Na ortodoxia estão

contidas as ideias dos mais fortes. Heresia, dessa forma, são ideias dos mais fracos.

Os mais fracos são destituídos de poder para impor suas definições para a

206 Ibidem, p. 124-125. 207 No livro Os Batistas – Controvérsias e Vocação para a Intolerância, com organização de Jorge Pinheiro e Marcelo Santos, existe um texto de Leandro Seawright Alonso com o título Subversão Religiosa, Poder e Experiência Pentecostal na Biblioteca do Seminário – a Formação das Redes de Poder (SANTOS, Marcelo & PINHEIRO, Jorge (org.). Os batistas – controvérsias e vocação para intolerância. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, p. 123-206). Nesse texto, o qual se recomenda a leitura, pode-se observar o processo histórico pelo qual se deu o grave cisma na década de 60 na Convenção Batista Brasileira. Ficam evidentes estes dois fatores – sectarismo e poder – como ingredientes fundamentais para a articulação da saída daqueles que não estavam alinhados com o discurso denominacional batista da época. 208 ALVES, Rubem, 1979, p. 125. 209 Ibidem, loc. cit. 210 Ibidem, p. 126.

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comunidade eclesiástica.211 Ou seja, a confissão é resultado de um ato de natureza

política, porque as leituras heréticas só eram heréticas do ponto de vista dos que tiveram poder para impor a sua interpretação. Do ponto de vista do herege, a sua leitura é a verdadeira – e, portanto, ortodoxa –, e a leitura ortodoxa é na verdade falsa, e, portanto, herética.212

Obviamente, a própria confissão está sujeita a interpretações. Mais um

dilema que a teoria do conhecimento protestante do CRD precisa resolver. A

solução passa por este último ponto que abordamos aqui: poder. É imprescindível

que se tenha uma autoridade para dizer a última palavra. Mais que isto, como disse

Foucault, se utilizando de Kant, é imprescindível que se tenham pessoas em um

estado de “menoridade”, sujeitas a um estado de vontade que as faça aceitar a

autoridade de algum outro para as conduzir nos domínios em que convém fazer uso

da razão.213

Assim, a ortodoxia protestante trabalha com uma lógica em que o

conhecimento se torna absoluto. A verdade não está baseada nas Sagradas

Escrituras, nem mesmo na Confissão e sequer baseado na própria voz verdade. “A

certeza da verdade é a face risonha da intolerância”214, que se manifesta no

ortodoxo que usa seu poder de imposição do absoluto de forma arbitrária e

autoritária.

2.2.6. Sintomas da racionalização da experiência de Deus [II]

Antes de apresentar os sintomas, uma nova causa é detectada e precisa ser

pontuada. A teoria do conhecimento protestante é elabora a priori, sendo, portanto,

uma causa, pois dispara o processo da racionalização e produz sintomas, como, por

exemplo, a aversão à dúvida. Os elementos que constituem esta teoria do

conhecimento foram, certamente, fruto de reflexões teológicas e processos

históricos da ortodoxia do passado, o que será investigado nos próximos capítulos.

Ela é também, ao mesmo tempo, sintoma da racionalização, pois sua presença já

consolidada é sinal de experiência racionalizada (o mesmo ocorrerá com a

cosmovisão protestante).

211 Ibidem, loc. cit. 212 Ibidem, loc. cit. 213 FOUCAULT, Michel, 1926-1984. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 337. 214 ALVES, Rubem, 1979, p. 127.

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Segue a síntese dos sintomas identificados na teoria do conhecimento

protestante, resultado da racionalização da experiência de Deus: a. A presença da

dúvida como inimiga do sistema de pensamento protestante, uma vez que a

experiência de Deus é de natureza subjetiva; b. Para poder exorcizar a dúvida outro

sintoma se apresenta: a presença de uma teoria do conhecimento consolidado, que

protegerá todo o sistema da grande inimiga – um sistema de defesa; c. Este sistema

de pensamento é detentor de um saber absoluto; d. Consequentemente, este saber

absoluto produz sectarismo; e. O mesmo conhecimento absoluto necessita de uma

ortodoxia poderosa para se sustentar; f. É possível perceber orgulho intelectual por

conta do conhecimento absoluto adquirido no passado; g. Também se nota uma

ausência de intelectualismo criativo e transformador; h. Por fim, se destaca a

prioridade do discurso em relação a vida como mais um sintoma da racionalização

da experiência de Deus.

2.3. O mundo dos protestantes

Uma vez estabelecida a teoria do conhecimento do CRD, será analisado o

mundo dos protestantes. A cosmovisão deste tipo de protestantismo será elucidada

e novamente os sintomas da racionalização da experiência de Deus serão coletados

ao final deste tópico.

2.3.1. Mestres e aprendizes

Primeiramente, se compreende que o converso ao adentrar o círculo do

CRD será submetido ao conhecimento já adquirido pela comunidade. A relação que

existe neste momento é de mestre e aprendiz, em que o aprendiz nada sabe acerca

de sua própria crença e o mestre é o detentor do monopólio do estoque de

conhecimento. Nessa relação de subordinação, o caminho do saber não é caminho

de espontaneidade, mas caminho de poder, no sentido que o processo de

aprendizagem acontece com o mestre impondo suas definições de mundo. Aqui,

não se espera que o converso construa o seu universo de dentro para fora,

construção que seria uma elucidação espontânea da experiência. “A conversão vale”

apenas “como experiência emocional” e “como mudança de orientação

existencial”215, pois o converso nada sabe.216

215 Ibidem, p. 128. 216 Ibidem, p. 128-129.

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O conhecimento do CRD é um conhecimento a priori na construção do

mundo do converso, como já afirmado. Aquilo que o converso já possui de

conhecimento não tem importância, pois diz respeito a um conhecimento adquirido

em seu tempo de trevas e perdição. Ele não tem o que dizer, apenas escutar, ou

então, como Foucault diz, se referenciando a Kant novamente, “obedeçam, não

raciocinem”217. Não é sem razão que os catecismos são as cartilhas dos aprendizes.

Os catecismos são organizados em forma de perguntas e respostas. O aprendiz não

precisa perguntar e sequer elabora a pergunta. Tudo está pronto. Basta decorar e

repetir.218 Se verifica que aqui “a consciência coletiva se impõe como a verdade da

consciência individual”219. Exatamente por isso, no momento de iniciação ao mundo

protestante, quando o converso deve realizar sua “pública confissão de fé”, nunca é

perguntado ao aprendiz sua opinião acerca de algo relacionado a fé. A pergunta é

feita se iniciando com a formulação: “Crede que...”220, seguido da fórmula ortodoxa

afirmada pela comunidade. A resposta para a questão deverá ser “sim”. Aqui se

exemplifica a resistência em relação a dúvida dentro deste sistema de pensamento.

Se ela aparecesse neste momento, certamente o converso estaria desqualificado.

Interessante também perceber que, para a comunidade, a evidência da salvação do

aprendiz é a afirmação do conhecimento sustentado pela comunidade. Desta forma,

salvação está diretamente associada a distribuição social do conhecimento, que

acontece entre mestres – comunidade – e aprendizes – conversos.221

Mendonça deixa claro esta ênfase, especialmente dentro do

presbiterianismo: A experiência de muitos protestantes mostra mesmo que a aprendizagem anterior torna a conversão mais confiável para a liderança. Nas igrejas presbiterianas, por exemplo, o rito de ingresso de um candidato na comunhão da igreja é precedido de um exame de conhecimentos bíblicos e doutrinários. Há mesmo aulas de preparação prévia em classes especiais. Creio que pelo menos entre os presbiterianos, o aspecto epistemológico é mais importante do que a experiência emocional da conversão.222

2.3.2. A organização do tempo e do espaço

217 FOUCAULT, Michel, 2008, p. 338. 218 ALVES, Rubem, 1979, p. 129. 219 Ibidem, loc. cit. 220 Este tipo de abordagem pode ter variações, especialmente com as mudanças ocorridas dentro do Protestantismo da Reta Doutrina desde a década de 70 até o presente. 221 ALVES, Rubem, 1979, p. 129-130. 222 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, 1995, p. 200.

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A forma como o aprendiz aprende acerca do mundo protestante passa,

obrigatoriamente, pela forma de organização do tempo e do espaço em que o fiel

está inserido. Esta cosmovisão do CRD parte da compreensão fundamental da

existência de uma dualidade de caminhos possíveis para o homem: o caminho largo

e o caminho estreito. O caminho largo leva o homem para a perdição, o abismo ou o

inferno. O caminho estreito para a salvação, o céu. Para aquele que não observa

com os olhos da fé não existem apenas dois caminhos, pois as alternativas são

múltiplas. Entretanto, para o CRD tudo é resumido a esta dualidade básica.223 “Todo

o tempo e todo o espaço estão subordinados a esta divisão original”224. A forma de

ver o mundo não está separada entre sagrado e profano para este protestante, pois

todo o mundo foi transformado em templo sagrado e todo homem em sacerdote. Ou

seja, a vida toda está sob o manto do divino. Importante notar que mesmo o

caminho largo é construído a partir de uma definição religiosa. Assim, quem está no

caminho largo, os homens que não estão no caminho estreito, se apresentam como

quem se rebela contra o sagrado.225

Quem seria o homem nesta caminhada? Um peregrino226, um caminhante

perdido, um forasteiro. Uma vez que o homem está no caminho, existe uma recusa a

aceitar o espaço-presente como destino. Novamente se percebe a dificuldade que o

CRD tem com o tempo presente, lugar da experiência religiosa. Se caminho é o

espaço-tempo onde o homem se encontra e que deve sair em direção a outro

espaço e outro tempo, logo, caminho é o espaço e tempo que são negados e

rejeitados como lar. Pode-se concluir que o mundo é, portanto, um local em que não

há solidariedade da parte do peregrino. O mundo para o crente não é um fim, mas

um meio.227 “Estar a caminho é viver sob o signo do ainda-não. É experimentar o

aqui e o agora como manifestações da pobreza, privação, incompletude.”228 Aqui se

estabelece uma nova dualidade: provisório e definitivo. Ser peregrino é estar em um

processo de saída do provisório, do tempo presente, da vida terrena, e entrar no

definitivo, na eternidade, na vida eterna.229

223 ALVES, Rubem, 1979, p. 131-134. 224 Ibidem, p. 135. 225 Ibidem, p. 135-136. 226 É digno de nota a influência da obra de João Bunyan, O Peregrino (BUNYAN, João. O Peregrino. São Paulo: Mundo Cristão, 1971), na constituição do mundo dos protestantes. 227 ALVES, Rubem, 1979, p. 136. 228 Ibidem, loc. cit. 229 Ibidem, p. 136-137.

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Seguindo a ótica deste protestantismo, a única escolha que o homem tem é

a opção pelo caminho largo ou estreito. Não existe opção em relação a sua

essência, que é a de um peregrino neste mundo. A vida é, na verdade, apenas uma

preparação para a morte, que é o momento decisivo para este forasteiro. O sentido

da vida se dá quando se compreende o sentido da morte, pois é o fim que significa

os meios. “Saber viver é saber morrer”, pois a morte não é o fim, mas “o nascimento

da eternidade e a cristalização do caminho trilhado no tempo”, em outras palavras, é

o “momento da verdade”.230 A vida, com esta visão de mundo do CRD, é o engano,

o obstáculo, local de provações e tentações. O visível é falso e somente a morte

destrói o engano e somente o invisível é verdadeiro.231 A morte é bem vista somente

para o crente, pois ele sabe que será a transição entre a provação para o galardão,

em que se inaugura para o homem aquilo que é real, o momento de libertação e

plenificação. Para quem está no caminho largo, ao contrário, é o momento do

castigo eterno. Importante destacar mais uma dualidade que surge: crente e ímpio.

Crente é o protestante. Ímpio são todos os que não pertencem a essa classe.232

Católicos carecem de conversão dentro desta perspectiva do CRD.233

O crente dentro desta visão de mundo compreende que o tempo antes da

morte é o tempo da decisão, tempo da opção. Após a morte, a eternidade, é o

momento em que o tempo se cristaliza, pois a eternidade solidifica o tempo,

petrificando o caminho em destino.234 A estruturação do espaço e do tempo, assim, não é o resultado, seja da atividade teórica, seja da atividade prática, dos homens. O universo protestante tem a solidez das coisas, a imutabilidade da natureza. Ele é tão inevitável (na realidade mais) quanto montanhas e mares, sóis e galáxias. Universo fixo, rigidamente estruturado por uma necessidade divina. Não é possível transformá-lo. É bem verdade que as aparências podem ser modificadas. Mas isto em nada altera a fixidez da essência que lhes subjaz.235

Neste protestantismo o modo indicativo, que descreve como as coisas são,

é privilegiado em relação ao imperativo, que não descreve fatos, mas enunciam

imperativos morais. Existe um privilégio do conhecimento sobre a moralidade, do

saber sobre a bondade, da doutrina sobre a vida.236 Diante de tal realidade definida,

230 Ibidem, p. 137. 231 Ibidem, loc. cit. 232 Ibidem, p. 138. 233 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, 1995, p. 198. 234 ALVES, Rubem, 1979, p. 142. 235 Ibidem, loc. cit. 236 Ibidem, p. 118.

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resta apenas compreender o universo, que não pode ser transformado. Salvação é,

portanto, uma questão de compreensão e sua marca é o conhecimento absoluto.237

Assim, com base no conhecimento adquirido no passado, o futuro é o lugar da

plenitude, o destino. O aqui e agora é somente o meio para o fim.

2.3.3. Providência divina

De certa forma, na análise que está sendo realizada sobre a cosmovisão do

CRD, as intersecções entre elementos que são causas e sintomas da racionalização

da experiência de Deus são inevitáveis, como o caso da teoria do conhecimento

protestante. A própria visão de mundo dos protestantes e sua constituição é outro

exemplo de dispositivo que dispara a racionalização da experiência do converso,

sendo causa (a priori), e que é sintoma, pois uma vez consolidada sinaliza a

presença da racionalização. Essa intersecção entre causa e sintoma é inevitável

para análise profunda do objeto. Porém, esta causa – a cosmovisão protestante –

por já constituir um pensamento elaborado, somente quando se retorna ao passado,

no período escolástico, local das formulações doutrinárias, é possível compreender

adequadamente sua origem.

Uma vez que a compreensão do objeto passa pelo estudo da doutrina da

providência divina, é importante esta ressalva, porque aqui o foco é o da análise do

comportamento do protestante do CRD em relação a doutrina, ou seja, como ela

afeta sua visão de mundo já constituída. Embora ela também possa ser causa da

racionalização da experiência e fator constituinte na visão de mundo protestante,

esta causa será descortinada, em termos essenciais, apenas no momento em que a

doutrina for estudada dentro do período escolástico, em que a ela estará em um

estado mais bruto e não consistirá, necessariamente, uma visão de mundo já

configurada. Neste sentido, o que importa aqui é a interferência da doutrina na visão

de mundo do CRD, cosmovisão que gera sintomas da racionalização que precisam

ser ressaltados.

No mundo protestante não existe espaço para a pergunta “por quê?”. Nesta

visão de mundo que torna o presente lugar estagnado, fixo, sólido e imutável, a

doutrina da providência divina é invocada quando questionamentos da realidade

surgem e sempre está pronta com a resposta: “É a vontade de Deus”. Em Calvino,

diferente de Lutero, esta doutrina é defendida com a intenção primária de expressar 237 Ibidem, p. 142.

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o caráter soberano e absoluto de Deus e não a graça salvadora de Deus238. Em um

mundo dualista em que existe caminho largo e estreito, ímpios e crentes, perdição e

salvação, esta doutrina revela uma visão de mundo monista. Como estas duas

visões podem ser harmonizadas?239 Através da doutrina da dupla predestinação, em

que Deus, de forma sábia, bondosa e eficaz, predestinou alguns homens para a salvação e outros para a perdição, de sorte que ninguém que tenha sido predestinado para a salvação se perde, e ninguém que tenha sido predestinado para perdição se salva. Assim, caminho largo e caminho estreito e todas as dualidades que se seguem, são efeitos de uma causa única: o decreto de Deus.240

Rubem Alves compreende que a doutrina da providência é a mais alta

categoria explicativa de que se vale a racionalidade protestante241 e, exatamente por

isso, existe uma intersecção da visão de mundo protestante com causas da

racionalização da experiência de Deus. Para mentalidade protestante, qualquer que

seja o acontecimento, alegre ou trágico, esta doutrina é invocada. 242 Todas

explicações analíticas para os acontecimentos da vida são reduzidas a “causas

secundárias” e consideradas inúteis, uma vez que a causa primária e real é obtida

com base na providência divina, que é “invisível, irresistível, misteriosa, não-

analisável”243. Max Weber (1864-1920), no clássico A Ética Protestante e o Espírito

Capitalista, faz uma descrição acerca do espírito da doutrina calvinista da

Providência: O Pai no céu do Novo Testamento, tão humano e compreensível, que se alegra tanto ao ver o arrependimento de um pecador como quando uma mulher encontra uma peça de prata que havia perdido, vai-se embora. Seu lugar fora tomado por um ser transcendental, para além de onde se pode chegar o entendimento humano, que, com Seus decretos completamente incompreensíveis, decidiu o destino de cada indivíduo e regulou os mínimos detalhes do cosmos da eternidade. A graça de Deus é, uma vez que Seus decretos não a podem mudar, tão impossível de perder para aqueles a quem Ele as concedeu quanto irrealizáveis àqueles a quem Ele a negou.244

Existe, entretanto, um problema a ser resolvido dentro da lógica deste

protestante. Como é relacionada esta causalidade divina com os fenômenos da vida

cruéis e desumanos, como por exemplo a fome, a pobreza, a dor, a injustiça, as 238 TROELTSCH, Ernst, 1865-1923. The Social Teaching of the Christian Churches – Volume 2. London: The University of Chicago Press, 1981, p. 582. 239 ALVES, Rubem, 1979, p. 143. 240 Ibidem, loc. cit. 241 Ibidem, loc. cit. 242 Ibidem, p. 144. 243 Ibidem, p. 145. 244 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2013, p. 134.

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guerras, os genocídios, a crueldade, etc.? Como relacionar esta causalidade divina

com mortes estúpida, como, por exemplo, um pai que assassina a própria filha? Os

padrões éticos válidos para os homens não seriam válidos para Deus? Rubem Alves

ajuda a iluminar o paradoxo em que o CRD se coloca: ou Deus não é a causa do mal, não sendo, portanto, onipotente, ou ele é a causa do mal, não sendo, portanto, amor. Os crentes não levantam tais questões críticas, mas “se humilham perante a potente mão de Deus”. Há, evidentemente, uma suspensão do ético. A ética vale para os homens, mas não vale para Deus. A expressão “os mistérios da Providência” enunciam exatamente a perplexidade e o espanto ante o absurdo que, pela doutrina da Providência, é afirmado como “bom e justo”.245

A experiência não possui nenhuma função cognitiva dentro deste

protestantismo, pois, como já foi anunciado, a experiência é submetida ao processo

de racionalização do CRD. O aprendiz nada sabe. Com a doutrina da providência, a

racionalização da experiência atinge seu momento mais profundo, em que nem

mesmo o senso moral é capaz de produzir crítica em relação a fórmula doutrinária.

Todo fenômeno, seja ele uma experiência religiosa ou qualquer experiência da vida,

que ocorrem no tempo presente, são “cobertas pela sombra misteriosa e bondosa

da Providência”.246 A experiência é posta em lugar de “aparências” e habita o nível

da “falsidade”, pois o que é vivido e sentido não possui significação. Assim, o

trágico, que é categoria da experiência, é sacralizado, se transformando em

teofania. Esta doutrina garante o final feliz, justo e bom, e dispensa a invocação

ética, que fica suspensa em nome de uma eternidade de felicidade.247 Diante da

visão de mundo construída, Rubem Alves cita a irônica fala de Hegel em que diz que

os cristãos “amontoaram tantas razões para confortá-los na desgraça... que nós

poderíamos ficar tristes, afinal, porque não podemos perder um pai ou uma mãe

uma vez por semana.”248

É possível perceber um aspecto já citado, quando foi analisada a teoria do

conhecimento deste protestante: a aversão à dúvida. Quando, diante de um fato

trágico, a visão de mundo deste protestantismo responde com “é a vontade de

Deus”, o CRD revela sua impotência diante do irreparável e a esperança de que haja

um sentido diante da tragédia na vida. Se trata de um “protesto contra o irracional”.

Porém, quando não é a dor que protesta contra o irracional, mas sim aquele que não

245 ALVES, Rubem, 1979, p. 145. 246 Ibidem, loc. cit. 247 Ibidem, p. 145-146. 248 KAUFMANN, Walter. Hegel: a reinterpretation. New York: Garden City, Doubleday, 1966, p. 32.

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sofre, “a linguagem sobre a Providência deixa de ser confissão de uma esperança e

se transforma numa justificação lógica do absurdo”. Quem não sofre, pode, de

maneira racional e fria, oferecer aos desgraçados os argumentos para explicar a

desgraça. Dentro desta racionalidade protestante, se justifica a realidade como

fatalidade, absolutizando as coisas como elas são e impedindo o “dizer ético que

afirma que o que é não deveria ser”. Assim, se mantém fora do olhar de mundo

protestante a desorganização e o caos, já que a dúvida não pode se estabelecer.249

Se apresenta no mundo protestante uma doutrina que não é condicionada

pela história, mas é conhecimento absoluto. “O que foi dito no passado é a voz da

eternidade. Vale para sempre.”250 A consciência do homem diante dos fatos pode se

recusar a aceita-los, revelando que, emocionalmente, os fatos não são dotados de

estatutos morais. Este tipo de consciência produz uma força de transformação da

realidade, motivada por questões emocionais, “valores brotados de desejos”. A

doutrina da Providência, ao contrário desta lógica, transforma os fatos em valores,

impedindo que a consciência do crente se rebele contra os fatos, logo, não

transformando a realidade, mas a aceitando como decreto divino. “Isto é, ela

interdita o exercício crítico das emoções”. 251 A experiência religiosa, se não

devidamente racionalizada dentro da lógica do CRD, pode se apresentar como um

grande perigo e desconstruir toda a visão de mundo deste tipo de protestantismo,

introduzindo incerteza e dúvida. Esta era a vocação do profeta hebreu, “que se

dedicava, com paixão sem paralelo, a ver, compreender, anunciar e denunciar o que

ocorria no presente”, gerando dúvida e acabando com as certezas de quem oprimia

o pobre, o órfão e a viúva.252

Rubem Alves amplia ainda mais as consequências da doutrina da

Providência, evidenciando seu dano quando combinada com a presunção do

conhecimento absoluto. A aplicação desta doutrina de forma consistente à política

resulta em uma teocracia teórica, que, na prática, leva ao absolutismo político. Alves

esclarece esta assertiva: Quem está absolutamente certo da verdade, por uma razão de coerência, não deve suprimir o erro, ainda que pela força? Calvino foi consistente. Bruxas continuaram a ser queimadas em Genebra. Em 1545, “Calvino lidera uma campanha contra a feitiçaria em Genebra, 31 pessoas foram executadas”. Em 1553, “Miguel Serveto, médico espanhol e descobridor da

249 ALVES, Rubem, 1979, p. 148. 250 Ibidem, p. 151. 251 Ibidem, p. 153. 252 Idem, 2013, p. 101.

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circulação pulmonar, é queimado vivo como herege em Genebra”253. A tolerância só é possível quando, por um lado, se aceita que o que é não é, necessariamente, o que deveria ser; e por outro, quando se aceita que ninguém detém o monopólio da verdade. É impossível que uma comunidade qualquer, religiosa ou política, e que pretenda ser detentora do conhecimento absoluto acerca da necessidade do que é, assuma, ao mesmo tempo, uma atitude de tolerância para com o erro e para com aqueles que desejam transformar o real. Creio, portanto, que Troeltsch está correto ao afirmar que “a Democracia, no seu sentido estrito, é em toda parte estranha ao espírito do Calvinismo”. “A ideia aristocrática da Predestinação” tende a pensar o estado como uma “forma modificada de aristocracia”254.255

O que se apresenta como visão de mundo, tendo em vista a doutrina da

Providência, é a perspectiva de que tudo o que ocorre são “flechas de Deus” dentro

da realidade. Em todos os acontecimentos na história existe sempre uma intenção.

Existe aqui uma combinação de fatalismo e otimismo, pois o crente do CRD sabe

que a vida é um problema que não depende dele para ser resolvido, pois, na

verdade, já está resolvido, uma vez que causas eficientes, em que está o poder da

intenção, se combinam com a causa final, que possui a intenção do poder. Nesta

teoria do universo, que não deixa de ser a doutrina da Providência, toda causa

eficiente se subordina a causa final. Rubem Alves concluir que problemas que

demandam esforço e a aflição por parte dos homens não existem nesta cosmovisão.

A única coisa que cabe à raça humana é compreender. E nesta dificuldade de

compreensão reside o problema, não em como transformar a realidade.256

Logicamente, se torna muito complicado conciliar a responsabilidade do

homem com a Providência. Se estabelece aqui um paradoxo em que este

protestantismo eleva a condição de mistério. “Ora como se tudo dependesse de

Deus”; “Age como se tudo dependesse de ti”. A contradição é evidente e o “como

se” revela a ficção da fórmula, em que a inteligibilidade não se encontra. 257

Interessante que teólogos calvinistas famosos compreendem este fato e agem

intelectualmente exatamente como Rubem Alves descreve. Por exemplo R. C.

253 SZASZ, Thomas S. A fabricação da loucura. Rio de Janeiro: ZAHAR EDITORES, 1976, p. 335. 254 TROELTSCH, Ernst. Protestantism and Progress. New York: G. P. Putnam`s Sons, 1912, p. 116, 113. 255 ALVES, Rubem, 1979, p. 154-155. É importante cautela em relação aos acontecimentos na Genebra em que Calvino viveu. McGrath afirma em seu livro sobre Calvino que existe um mito de que ele seria o “grande ditador de Genebra”. Entretanto, McGrath ressalta a existência de grande aversão em relação a figura de Calvino nos séculos XIX e XX, o que influencia negativamente a imagem descrita do Calvino desse tempo. Ele também ressalta uma grande ausência de evidências empíricas para atestar tal tese, principalmente nos detalhados arquivos de Genebra. (MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 127-128) 256 Ibidem, p. 155-156. 257 Ibidem, p. 157-159.

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Sproul, que, em seu famoso livro Eleitos de Deus, realiza uma argumentação pró

doutrina da Providência e responde a pergunta “por que Deus salva somente

alguns?” da seguinte maneira: “[...] não sei. Não tenho ideia por que Deus salva

alguns e não todos. Não duvido por um momento que Deus tenha o poder de salvar

todos, mas eu sei que ele não escolhe salvar todos. Realmente não sei por quê.”258

Embora existam variações nas aparências do mundo dos protestantes, a

Providência estabelece um mundo fixo e acabado, em que uma realidade processual

não é possível. As aparências são até desenvolvidas processualmente, mas a

realidade não está sendo formada. Rubem Alves ressalta um ponto recorrente nesta

pesquisa, a relação do CRD com os tempos, pois o real se constituiu num só momento cosmogônico originário, antes do tempo histórico. O futuro é apenas a revelação do que já estava presente, no passado. No presente, o que já existia de forma seminal no passado, se torna atual. Não existe lugar para o novo, o novo como uma síntese inesperada. O futuro não pode surpreender o passado. Admitir o inesperado é duvidar da Providência, é fazer lugar para o fortuito e para o acaso. Mas, ao fazer assim lugar para a operação da liberdade, como criação do novo, destrói-se a certeza do “happy end”. O preço da liberdade é o fim das certezas. E isto é terrível.259

Liberdade e conhecimento absoluto são opostos, não podem se harmonizar.

É importante perceber a influência do pensamento grego, na contramão do

pensamento hebraico do Antigo Testamento. O profeta israelita observa o passado

sem a intenção de encontrar ali um plano definido para o futuro inevitável.260 Martin

Buber destaca que o Deus de Israel não colocava suas mãos em um livro que

continha todo o futuro escrito e determinado, convidando a todos para ouvirem seu

conteúdo. Esse tipo de prática era a dos falsos profetas, que tinham sua falsidade

exatamente no fato de que sua profecia não dependia de um questionamento e de

uma alternativa. 261 A intenção divina para mentalidade hebreia é revelada na

história, transformando as relações dos homens. Dentro desta perspectiva, Rubem

Alves relaciona intenção divina sob a forma de uma utopia, em que a uma nova

ordem histórico-social implica na abolição da ordem presente.262

O pensamento grego, ao contrário, elimina os elementos utópicos em seu

conceito de tempo, pois o tempo é circular, com o fim desembocando no princípio. O

258 Sproul, R. C.. Eleitos de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 27. 259 ALVES, Rubem, 1979, p. 159. 260 Ibidem, p. 161 261 BUBER, Martin. The Prophetic Faith. New York: Harper & Row, 1960, p. 103 apud ALVES, Rubem, 1979, p. 161. 262 ALVES, Rubem, 1979, p. 161.

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problema nessa lógica é transcender o tempo, se salvando dele na eternidade.

Dessa forma, o propósito do tempo é a abolição do tempo. Uma vez que este arranjo

prevaleceu em relação a vertente hebraica do pensamento cristão, em que o tempo

tem um início e um fim, se tornou impossível o aparecimento de uma mentalidade

utópica. Como consequência, a função profética da religião também se dissolveu.

Não existe espaço para criação do novo, pois tudo é resultado da causalidade divina

e não das escolhas dos homens. “A questão não é criar o que não está pronto, mas

simplesmente ver o que já está pronto.”263

Outro elemento contraditório em relação a esta visão de mundo influenciada

pela Providência é a oração. A linguagem da oração exprime um desejo daquele que

ora. Diante de Deus é derramado as angústias, tristezas e sentimentos mais

profundos da alma humana. Seria uma grande destituição do sentido da oração que

a pessoa que ora não cresse que o seu desejo é capaz de modificar o curso dos

eventos. Existem argumentos que buscam harmonia entre a doutrina aqui destacada

e a oração, como por exemplo a subordinação àquilo que se deseja com a vontade

de Deus. Mas, nesse caso, não bastaria o crente apenas pedir pela vontade

soberana de Deus, sem referência aquilo que se deseja? A oração não se tornaria

supérflua e desnecessária? Poderiam argumentar também que oração é

essencialmente comunhão com Deus e não um esforço para mover Deus.

Entretanto, estes argumentos não esgotam a oração, que é petição, súplica, luta

com Deus.264

Dentro do universo fixo e determinado, o mesmo homem que crê nesta visão

de mundo coloca entre parêntesis a linguagem indicativa da Providência. A esposa,

devido a doutrina da dupla predestinação, ora para que Deus converta seu marido

incrédulo, a mãe ora que seu filho retorne para a Igreja e deixe os caminhos do

mundo, o pai ora para que a filha seja curada e o empresário para que os negócios

sejam bem-sucedidos. Existe, claramente, uma expectativa de que,

misteriosamente, os desejos de quem ora possam mover a vontade suprema, que

permaneceria inalterada caso a oração não fosse anunciada.265 A oração, portanto, revela algo surpreendente: um crente que não crê na Providência como causalidade de ferro, e um outro Deus que acolhe os desejos humanos e altera o curso dos eventos. Num

263 Ibidem, p. 162. 264 Ibidem, p. 163. 265 Ibidem, p. 164.

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universo rigorosamente determinista, em que as emoções são impotentes frente ao real, a oração é uma impossibilidade.266

Como se explica essa contradição? Se crê na Providência e se pratica a

oração? Para Rubem Alves é na psicanálise que se encontra uma resposta factível.

Diante do “princípio da realidade” deste universo protestante, universo rígido e

definido pela Providência, existe um outro princípio que milita contra: “princípio do

prazer”. Segundo Freud, existe semelhança entre a vida psíquica dos homens que

lançam mão da magia para alcançar seus objetivos e a vida psíquica dos neuróticos.

São os desejos dos homens que os motivam a fazer uso da magia.267 Existe nesses

homens uma recusa do seu ego em relação ao veredito final dos fatos. No caso dos

neuróticos existe a “crença de que seus desejos são capazes de abolir o mundo real

e poderoso para criar os desejos a que eles aspiram”. Neste sentido, a oração para

este protestante é um protesto, uma evidência de que o “rebelde ainda não morreu”,

de que a “consciência ainda não se curvou, de forma total, à Providência”, de que a

“alma ainda é capaz de dizer os seus desejos, em oposição à fatalidade”.268

Uma vez que não existe uma síntese entre razão e sentimento, a

racionalidade desse Protestantismo permanece fria e o seu calor permanece

amorfo.269 Nesse contexto, orar é sintoma de uma neurose.

2.3.4. A ética protestante

No mundo dos protestantes, outro aspecto a ser analisado é a dimensão

ética. Após os “mestres”, que já habitam o mundo dos protestantes, terem

introduzido para o “aprendiz” de forma mais precisa o universo em que habitam e

todo o sentimento ter se tornado em conhecimento, a salvação precisa se

materializar visível e objetivamente na vida do converso. Isto só acontece quando a

salvação é assumida em forma de comportamento.270 Outra diferença de Lutero

para Calvino está nesta questão. Enquanto na eclesiologia luterana está envolta na

questão da Igreja e da Graça, no calvinismo a igreja não é um mero órgão de

salvação em que tudo se desenvolve como um resultado lógico da graça. No

calvinismo todos os aspectos da vida de quem está na comunidade está submetida

266 Ibidem, loc. cit. 267 FREUD, Sigmund. Totem e Taboo e outros trabalhos (1913~1914). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996, p. 97. 268 ALVES, Rubem, 1979, p. 165. 269 Ibidem, p. 165-166. 270 Ibidem, p. 168.

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a uma determinada regulamentação cristã. 271 Este item será aprofundado nos

próximos capítulos, especialmente no terceiro, quando serão investigadas as

causas.

Não existe espaço para equívocos em relação a fisionomia do Espírito que

age no salvo. Uma vez que existe uma fisionomia da salvação, em que “desenha-se

[...]” um “[...] ‘novo ser’”, a igreja já sabe quais são as marcas que distinguem, de

forma clara e precisa, os verdadeiros dos falsos crentes, o “joio” do “trigo”. Por isso,

é necessária a racionalização da experiência de Deus, pois ela em si é permeada de

fatores inerentes a subjetividade que impedem uma análise assertiva de quem é ou

não é crente. O conhecimento absoluto, embora necessário, também não é

suficiente, uma vez que nem todo aquele que confessa é aquilo que confessou. Para

estabelecer um verdadeiro crente é necessária a confissão da reta doutrina e um

comportamento conforme as normas estabelecidas pela Igreja. Aqui entra a

moralidade como condição de pertencimento na comunidade, a qual é estabelecida

pela própria igreja, que é detentora do monopólio do conhecimento ético.272 Como o

pensamento calvinista tornou-se apto a identificar a verdadeira fé? Weber responde:

“por um tipo de conduta do cristão que servisse para aumentar a glória de Deus”273.

A racionalização da experiência de fé é tamanha que não somente a

consciência epistemológica individual é negada para que a da igreja seja imposta,

mas até a consciência moral do indivíduo é igualmente negada, sendo substituída

pela consciência coletiva, que tem cristalizado o conhecimento prévio do bem e do

mal.274 A racionalidade da moral protestante se revela na disciplina eclesiástica275,

que se define como um conjunto de mecanismos, regulamentados por um texto universalmente aceito dentro dos limites da Igreja, que cataloga as faltas passíveis de punição, recebe queixas e denúncias contra os transgressores, julga-os e pune-os com penas que podem ser admoestações, afastamento da participação dos sacramentos e exclusões, pela qual o faltoso é eliminado da comunhão da Igreja.276

271 TROELTSCH, Ernst, 1981, p. 591. 272 ALVES, Rubem, 1979, p. 169. 273 WEBER, Max, 2013, p. 143. 274 ALVES, Rubem, 1979, p. 170. 275 A aplicação desta prática pode variar dentro das denominações e comunidades religiosas em que o Protestantismos da Reta Doutrina está inserido. 276 ALVES, Rubem, 1979, p. 172.

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Por definição teológica todos os homens são pecadores. Logo, como a

instituição religiosa, que se transforma em um tribunal eclesiástico277, que julga a

condição ética dos membros da comunidade por um viés jurídico, conseguem julgar

todos os pecados com a autoridade necessária? Não são todos os pecados que são

julgados. Somente os pecados que tem condições de distorcer a fisionomia da

salvação. Se não fosse assim, todos aqueles que ocupam cadeira de juízes nesses

tribunais estariam desqualificados, pois também possuem pecados. (...) os pecados passíveis de punição demarcam uma zona de culpa, revelam uma existência separada de Deus e indicam que o destino eterno da alma está em jogo. Já me preparava para dizer que a disciplina eclesiástica estabelece os limites entre o humano e o desumano. Mas contive-me a tempo. Esta ética protestante ignora estas categorias. O correto é dizer-se que ela marca os limites entre a graça e a desgraça.278

Existe uma observação de Rubem Alves bastante pertinente, que diz

respeito a impossibilidade de punição dos pecados do espírito. Uma vez que o

essencial é o que é visto pelos olhos, ironicamente, se adota uma lógica de

justificação pelas obras, já que o crente é julgado pelo que ele faz e não pelo que ele

é. Lutero percebeu que a busca pela perfeição moral gera a angústia no homem. É a

partir daí que ele afirma que os homens são justificados pela graça, produto do amor

de Deus, e não por “superávits morais” humanos. Assim, dentro dessa lógica da

ética protestante, o que se tem não é a graça libertando o homem da lei, como na

teologia luterana e paulina, mas a graça como poder para cumprimento da mesma.

“O que significa que a quebra da lei é a evidência de que o crente se afastou da

graça. Logicamente, quem quebra a lei deve ser afastado da participação dos

sacramentos”, ou seja, punido. 279 Ressaltando o argumento de Rubem Alves,

Troeltsch diz que em Calvino, diferente de Lutero, a lei – Decálogo – é vista de uma

forma positiva, como padrão pessoal e para a disciplina congregacional280 e ainda

como parte inerente de seu sistema281, o que ficará evidente na investigação acerca

das causas.

277 Recomenda-se a consulta ao Manual Presbiteriano, documento que torna evidente o caráter jurídico de como a disciplina é tratada na Igreja Presbiteriana do Brasil (1999). As termologias presentes, especialmente no “Código de Disciplina”, são exemplos claros de que a igreja se torna um verdadeiro tribunal quando da necessidade de julgamento disciplinatório. (IGREJA PRESBITENIANA DO BRASIL. Manual Presbiteriano. 15. ed. Editora Cultura Cristã: São Paulo, 1999) 278 ALVES, Rubem, 1979, p. 173. 279 Ibidem, p. 200. 280 TROELTSCH, Ernst, 1981, p. 594. 281 Ibidem, p. 603.

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Rubem Alves destaca as contradições desta ética protestante quando diz

não ter encontrado um só caso de um tribunal que tenha-se constituído para julgar a hipocrisia, o egoísmo, a falta de amor, a intolerância, o orgulho. O que significa que eles podem, sem maiores problemas, frequentar o mundo dos protestantes, sem que quaisquer medidas disciplinares sejam tomadas. Ou seja: de um ponto de vista estritamente jurídico, eles não são incompatíveis com o universo protestante. A mulher que comete adultério é punida. O marido que se recusa a perdoá-la não é. O homem que comete um furto é punido. Mas o negociante que, por ganância, se recusa a vender a sua mercadoria, à espera de preços mais altos, não é. Quem dança é punido. Mas quem se deleita com fantasias sexuais não é. Que os pecados da carne sejam considerados mais graves que os pecados do espírito é que se torna claro por meio de uma simples situação hipotética. Dois homens se levantam para orar, e um deles diz: “Ó Deus, perdoa o meu orgulho, a minha hipocrisia”. Toda a congregação dirá amém, e muitos pensarão: “como é humilde e espiritual este nosso irmão”. O outro, entretanto, ora assim: “Ó Deus, perdoa-me porque cometi adultério na semana passada, fui a um baile e cometi um furto”. Esta oração será um escândalo. Os tribunais se constituirão imediatamente para as medidas disciplinares, mas nada se fará em relação ao primeiro.282

Na sequência, será descrito de forma breve os tipos de pecados passíveis

de penalidade. Importante lembrar que é o CRD quem possui o monopólio deste

conhecimento ético. Os pecados tratados dentro da disciplina eclesiástica estão

categorizados como: pecados sexuais, transgressão do domingo, vícios,

honestidade e crime de pensamento.

2.3.4.1. Pecados sexuais

A moralidade que é definida pela disciplina eclesiástica só tem interesse em

saber duas coisas. A primeira é a norma a que quaisquer atitudes dos membros da

comunidade estão passíveis de julgamento e, em segundo lugar, se o ato em

questão transgredi ou não a norma estabelecida. O princípio que rege as ilicitudes

sexuais é: o sexo é permitido se, e somente se, ele ocorrer dentro do casamento.

Desta forma, independentemente de cada contexto em que um ato ilícito ocorrer,

infringindo a norma estabelecida, a pessoa será passível de punição. Importante ser

salientado que a lei civil é de extrema importância dentro desse processo jurídico

cujo infrator é submetido, pois ela é parâmetro para julgar se a norma foi ou não

transgredida.283

Dentro do processo de julgamento a legalidade é privilegiada em relação ao

amor e a forma em relação à vida. “O amor, a fidelidade, a responsabilidade, como

282 ALVES, Rubem, 1979, p. 201. 283 Ibidem, p. 174-176.

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determinações existenciais da situação moral são colocados entre parêntesis como

irrelevantes”, pois o que importa é o parecer técnico entre o ato julgado e a lei

estabelecida.284

Em especial nesse caso, existe o agravante de que toda referência ao sexo

é sempre vista de um ponto negativo: é perigo e tentação. Rubem Alves destaca que

não se encontra uma doutrina positiva sobre a sexualidade, mas apenas um silêncio

acerca do assunto. O motivo do silêncio, justifica Rubem Alves, é que no mundo

protestante o prazer sexual não é visto como graça, mas como algo transitório e

acidental, com destaque para a função reprodutiva. Neste sentido, a ética

protestante entende que sexo tem lugar apenas como concessão e como permissão.

É por esta razão que o silêncio se faz presente.285 Para Leland Ryken, autor de

Santos no Mundo, em que trabalha como realmente eram os puritanos286, embora

claramente tenha uma posição favorável ao movimento, ele destina um capítulo para

tratar das questões negativas, que serão abordadas no segundo capítulo. Fica

evidente que o tipo ideal analisado aqui está presente no puritanismo. Em um dos

exemplos que abordam a questão da sexualidade ele descreve que existiam

puritanos que cogitavam considerar o sexo como “uma cobiça ilegítima” ou até

mesmo como passível de adultério com o próprio cônjuge, tamanho o legalismo que

existia.287

É importante notar a influência do pensamento grego, por intermédio de

Agostinho de Hipona. No pensamento de Agostinho sexo não é um fim, mas apenas

um meio, e seu objetivo é de apenas complementar o número de predestinados para

a salvação e para a perdição. Nesta antropologia de influência grega existe uma

predominância das funções intelectuais da alma em detrimento dos impulsos vitais

do corpo e a repressão destes impulsos do corpo é tida como “cura” da “desordem

antropológica” do homem.288 A proximidade desta ética com o catolicismo medieval

também é notada por Rubem Alves: Trata-se de um silêncio que fala. Fala o neoplatonismo. Fala Santo Agostinho. Fala toda a espiritualidade católica, com toda sua exaltação da

284 Ibidem, p. 176. 285 Ibidem, p. 178-179. 286 Movimento de origem inglesa que se colocaram radicalmente contra a Igreja Anglicana do séc. XVII, exigindo um retorno à pureza da religião bíblica. Eram calvinistas. (GONZÁLEZ, Justo L. História ilustrada do cristianismo: a era dos reformadores até a era inconclusa. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2011, 277-279). Será abordado no próximo capítulo. 287 RYKEN, Lelan. Santos no Mundo: Os puritanos como realmente eram. Edição Kindle: Editora Fiel, Publicado em 16 de maio de 2016, pos. 6264. 288 ALVES, Rubem, 1979, p. 179.

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castidade, e a imposição da abstinência sexual a todos aqueles que desejam atingir a espiritualidade mais alta da vida religiosa.289

As afinidades desta moralidade protestante com a ética kantiana também

são evidentes. “Para Kant a vontade só é moral quando ela se determina

exclusivamente pelo dever, sem nenhuma consideração ao projeto de felicidade e

prazer que o corpo estabelece para si mesmo.” Max Weber também é utilizado por

Rubem Alves como ferramental de análise deste assunto. Weber notou que a ética

calvinista é definida pela combinação entre disciplina e asceticismo.290 “A disciplina

subordina o corpo a determinados fins, transformando-o em um meio. E o

asceticismo proíbe que se tome o corpo como o seu próprio fim.” Assim, o corpo é

submetido a um regime sistemático de abstenção, sendo reprimido. “Quanto maior

repressão, maior a proximidade de Deus.”291

Rubem Alves conclui que na moralidade sexual e na ética do corpo, encontramos, a meu ver, a forma concreta daquilo que já indicamos quando discutimos a teoria protestante do conhecimento: o Protestantismo substitui a vida pela linguagem, o corpo pela palavra, a experiência por um dizer que a ignora. E se a essência da neurose é a repressão do corpo por uma racionalidade que lhe é estranha, temos de chegar à conclusão, de que a ética protestante tende, inevitavelmente, a produzir a neurose. Mas o Protestantismo é apenas uma espécie de um grande gênero que inclui o Catolicismo. Poderíamos generalizar as conclusões: toda a religião que, em nome de uma ordem espiritual, impõe sobre o corpo um regime de sistemática repressão, tende a produzir personalidades neuróticas.292

Caldos Caldas, no livro Escritas do Crer no Corpo, escreve um capítulo dedicado

ao tema “Diálogo entre o corpo e o sagrado em Rubem Alves”. Analisando outras duas

obras de Rubem Alves – “Creio na ressurreição do corpo” e “Variações sobre o prazer” – ele

concluir que a teologia alvesiana é uma proposta alternativa à “forma tradicional de

inspiração platônica”, às “formas teológicas do modelo escolástico e iluminista” e a “forma

teológica de modelo fundamentalista”. A denúncia de Rubem Alves acerca do

Protestantismo da Reta Doutrina tem uma solução, que Caldas chama de “metafísica da

vida”, pois a proposta de Alves é experimentar o transcendente no imanente.293 Afirmando

que a teologia de Rubem Alves é cristológica, Carlos Caldas defende que Alves tem como

grande critério e referência “Cristo Jesus, homem” e como ponto de partida o corpo na sua

construção teológica.294 Afinal, “Deus se revela de maneira definitiva, não em um texto, mas

289 Ibidem, p. 180. 290 WEBER, Max, 2013, passim. 291 ALVES, Rubem, 1979, p. 183. 292 Ibidem, p. 184. 293 MORI, Geraldo De; BUARQUE, Virgínia (org). Escritas do crer no corpo: em obras de língua portuguesa. São Paulo: Edições Loyola; Belo Horizonte, MG: FAJE, 2018, p. 82. 294 Ibidem, p. 70.

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em uma pessoa. No caso, na pessoa do homem Jesus de Nazaré. [...] Daí, conclui-se que,

pelo menos em tese, o corpo deveria ser importante na teologia cristã.”295 Não é o caso do

CRD, principalmente em se tratando da maneira como sua ética é desenvolvida.

2.3.4.2. Transgressão do domingo

Como foi afirmado anteriormente, todos os dias fazem parte da peregrinação

do crente para se alcançar a eternidade, de forma que não existe separação entre

sagrado e profano dentro da visão de mundo protestante. Neste sentido, “o domingo

é o oásis” para o crente, um dia em que se exige a paralisação das atividades de

produção, consumo e de prazer. Se trata do dia da Palavra, tempo de estudo e de

ouvir o sermão, em que todas as ideias sobre a realidade são ratificadas. Domingo é

tempo de meditação, comunhão e de renovação espiritual para os demais dias da

semana.296

No Breve Catecismo, se encontra a norma: Deve-se santificar o Domingo com um santo repouso por todo esse dia, mesmo das ocupações e recreações temporais que são permitidas nos outros dias, empregando todo o tempo em exercícios públicos e particulares de adoração a Deus, exceto o tempo suficiente para as obras de pura necessidade e misericórdia.297

O imperativo de descanso que existe aqui nada tem a ver com o descanso

do corpo, mas ao principal dos dias da semana em que, mais do que nos outros

dias, o corpo será reprimido do seu desejo por se exprimir e será levado mais uma

vez a se reprimir, para que a alma do fiel se exprima.298 Portanto, o domingo não se

refere a uma ética natural e humanista, que interrompe a semana de trabalho

cansativa. O que permanece no domingo é a repressão, com determinações do que

é lícito ou proibido neste dia santo, com a invocação do mandamento em que “Deus

disse”. Desta forma, cessam as tentativas de justificar o descanso com base nas

necessidades humanas e prevalece a legalidade e possibilidade de julgamento dos

infratores que violarem o dia santo.299

Mais uma vez é importante recorrer a Leland Ryken, que afirma que os

puritanos eram “frequentemente tão rígidos quanto as leis de Moisés haviam

295 Ibidem, p. 66 296 ALVES, Rubem, 1979, p. 188. 297 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER. Símbolos de fé: contendo a Confissão de Fé, Catecismo Maior e Breve. São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 244. 298 ALVES, Rubem, 1979, p. 188-189. 299 Ibidem, p. 189.

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sido”300. Em relação ao Dia do Senhor – domingo – os exemplos de “transgreções”

citados chegam a ser hilários. Jovens namorados julgados por sentarem sob uma

macieira em um pomar; alguém publicamente reprovado por escrever uma nota

sobre negócios comuns um pouco cedo na noite301; uma mulher multada por torcer e

estender roupas302; e um soldado multado por umedecer um pedaço de chapéu

velho para colocar em seu sapato, com a intenção de proteger o pé.303 Como disse

Haschel, em sua obra O Shabat, “lei e amor, disciplina e prazer, nem sempre se

fundem”, ao se referenciar a guarda do sábado pelos antigos rabis, que exageravam

na observância à lei, tornando-a inacessível ao homem comum.304 No CRD, o

exagero e as exigências ao homem comum são a regra.

2.3.4.3. Vícios

Outro aspecto em que a ética protestante pode levar o acusado ao tribunal

diz respeito aos vícios. As razões para os vícios serem passíveis de punição não

tem origem em questões médicas. Quando se justifica a oposição ao vício por

razões relacionada a saúde se trata apenas de mais um argumento, acrescido da

“razão religiosa fundamental: meu corpo não me pertence. Ele pertence a Deus”.305

Da mesma forma como a moralidade sexual e a guarda do domingo,

estamos diante de um quadro em que: o corpo é um meio para determinados fins; a

corrupção do corpo implica na inversão desta ordem – o corpo se transformando em

fim; e a restauração da ordem divina se expressa nos imperativos da moralidade,

exigindo sempre que o corpo seja subjugado pela disciplina, deixando de ser

instrumento de si mesmo e passando a ser instrumento de Deus.306

Portanto, o vício, que é “uma relação entre corpo e um objeto qualquer, na

qual o corpo é escravo do objeto”, revela um corpo impotente face ao impulso,

embora o sujeito saiba que o vício é irracional. Aqui o homem se mostra impotente

para se submeter ao controle da racionalidade divina, o que significa que a graça

não está operando de forma plena nesse sujeito. Se a função da graça é curar e

restaurar a ordem da relação corpo-alma, submetendo a vitalidade do homem à

300 RYKEN, Leland, Publicado em 16 de maio de 2016, pos. 6245. 301 Ibidem, pos. 6247. 302 Ibidem, pos. 6245, 6249. 303 Ibidem, pos. 6249. 304 HESCHEL, Abraham Joshua. O Shabat. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 27. 305 ALVES, Rubem, 1979, p. 192-193. 306 Ibidem, p. 190.

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racionalidade e, entretanto, o corpo está sendo controlado de forma irracional,

estamos diante de um quadro grave do sujeito e passível de condenação, pois o

corpo ainda não se submeteu totalmente ao poder de Deus.307

2.3.4.4. Honestidade

“O crente deve ser um espelho dos fatos”, pois honestidade é dizer a

verdade sempre. Tudo o que tange o comportamento do crente, verbal ou não, deve

exibir uma perfeita conformidade com aquilo que é, sem dissimular, esconder ou

enganar.308 Rubem Alves faz uma análise deste protestante afirmando que não é

difícil que ele seja um bom cientista. Entretanto, a pobreza literária desse

protestantismo se explica por esta forma de ser, que subordina a imaginação à

observação, uma vez que a consciência não transcende o dado.309

Outro ponto importante destacado por Rubem Alves acerca da honestidade

diz respeito a conexão dos fatos com a providência divina. Quando se mente, se

nega ao outro o acesso aos fatos. E os fatos pertencem ao outro não por direito

natural, mas por serem produto da providência de Deus. Assim, ao mentir, não

somente se nega ao próximo o que lhe pertence, mas se nega a Deus o que lhe

pertence. Negar a Deus o que foi por ele criado é mascarar o que Deus produziu e

aí se encontra a gravidade deste aspecto da moral nesse protestantismo.310

2.3.4.5. Crime de pensamento

“A pretensão de posse da verdade torna impossível a tolerância, sem a qual

a liberdade e o livre-exame não podem sobreviver”311. Portanto, na classe de

pecados que constituem crime de pensamento se encontram os atos mais graves. O

crime do herege não é sucumbir a alguma fraqueza da carne, mas rejeitar o

conhecimento absoluto. Se este conhecimento absoluto for colocado em situação de

risco, significa que todo o sistema de conhecimento está em risco, pois uma nova

verdade está sendo proposta. Se todo o sistema está em risco, se cria a

possibilidade de surgimento de um novo sistema. O crime de pensamento ultrapassa

307 Ibidem, p. 192. 308 Ibidem, p. 193. 309 Ibidem, p. 198. 310 Ibidem, p. 198-199. 311 Idem, 1982, p. 112.

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a questão ética, pois tem relação com a verdade e a liberdade para desestruturação

de um sistema cognitivo e criação de um outro.312

“O centro do espírito protestante é a sua obsessão pela verdade.” O CRD

entende que a salvação é uma “função do conhecimento da verdade”. Como

consequência, esse protestantismo deve afirma seu conhecimento absoluto, pois a

dúvida, conforme já destacado anteriormente, é o “sintoma da perdição”. “Quem não

afirma a verdade está separado da graça” e quem é salvo tem a verdade. O salvo,

que tem a verdade, se comporta conforme a moralidade protestante. Existe a

seguinte ordem que não pode ser desrespeitada: “conhecimento à salvação à

moralidade.” A racionalização da experiência de Deus, portanto, faz do converso,

que é a matéria-prima, “maleável, dócil, receptiva”, algo a ser processado, “a fim de

que o correto pensar possa se estabelecer”.313 É notável o quão danoso é inferir no

crime de pensamento. Infringindo este campo, se infringe no cerne do CRD.

Mendonça recorre a Bastide e fala sobre o poder limitado que a voz profética

possui, inclusive no ambiente religioso: Como porém não é possível absoluta liberdade, mesmo em movimentos revolucionários dentro de instituições, no caso as religiosas, os profetas das mudanças mantinham para si um grau mínimo de poder de controle. Eu mesmo ouvi diversas vezes e em vários lugares os profetas dizerem: “O Espírito é livre, mas está sujeito ao profeta”. Isso significa que a liberdade do sagrado é sempre limitada.314

Profetas não são bem-vindos no CRD. O CRD está imerso a um pensar

intolerante, pois somente aquele que duvida é que pode tolerar, pois não se

pretende ser detentor do monopólio da verdade. “O amor à verdade, afirmada como

posse, é o lado risonho do seu aposto: a intolerância para com aqueles que

sustentam um pensamento divergente”. O herege, dentro desse contexto, é aquele

que contesta as “regras do jogo”, que denuncia, que proclama, que não se sente

envergonhado, que não esconde suas ideias. 315 “Na heresia, revela-se um

deslocamento no centro do sagrado: não mais o consenso político-social, mas uma

experiência, no momento solitária, talvez individual, talvez compartilhada por

poucos.”316 Não é a toa que pessoas tiveram de ser queimadas, tanto por católicos

como por protestantes. A heresia tenta subverter uma visão de mundo estabelecida

312 Idem, 1979, p. 199. 313 Ibidem, p. 270. 314 MENDONÇA, Antônio Gouvêa. De novo o sagrado selvagem: variações. In: Estudos de Religião, Ano XXI, pgs. 22-33, 2007, p. 32. 315 ALVES, Rubem, 1979, p. 271. 316 Ibidem, p. 272 – grifo meu.

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e criar uma nova. Quando a instituição eleva a verdade absoluta e faz a salvação

depender de tal conhecimento, a mensagem do herege coloca a instituição do lado

da perdição e, consequentemente, força a instituição ao ataque furioso para

defender “A Verdade”.317

O CRD se constitui não somente em um sistema que racionaliza a

experiência, mas que precisa se defender dela. Rubem Alves afirma que trata-se de um sistema global, fechado: conhecimento que não pode ser contraditado por experiência alguma. O discurso passa a ser o seu próprio ponto de referência. Nenhuma experiência que lhe é exterior pode ser invocada para criticá-lo.318

Nesse sentido, o livre exame protestante é uma permissão para heresia.

Conforme dito anteriormente, a possibilidade de uma liberdade de consciência

individual para ler e interpretar o texto sagrado não existe. Aqui é travada uma

guerra entre fracos e forte, entre a minoria e a maioria ortodoxa. A maioria é fiel a

confissão da reta doutrina, cuja aceitação é critério para participação na

comunidade. Aquele que leva a sério o livre exame, que não se esqueceu de sua

intuição inicial no momento de conversão, que se recusa a repetição e se atreve ao

novo, “pressupõe que a verdade não se esgotou no passado” e acredita em mundos

novos, anunciando novas visões, este é o herege.319

O pensamento de Nietzsche é lembrado por Rubem Alves em duas

passagens que elucidam muito bem a análise do CRD feita até aqui: “Ó futuros irmãos, quem representa o maior perigo para todo o futuro do homem? Não são os bons e os justos? Pois eles dizem e sentem nos seus corações: ‘Nós já sabemos o que é bom e justo, e nós já o possuímos, ai daqueles que buscam aqui”.320

“Ó, meus irmãos, um homem, certa vez, viu os corações dos bons e dos justos e disse: ‘Eles são fariseus’. Mas ele não foi entendido. Os bons e os justos não podiam compreendê-lo. O seu espírito estava prisioneiro de sua boa consciência. A estupidez dos bons é imensamente sagaz. Esta, entretanto, é a verdade: os bons têm de ser fariseus – eles não têm nenhuma opção. Os bons têm de crucificar aquele que inventa a sua própria virtude”.321

Aquele que pronuncia as palavras na fala de Nietzsche e sequer é

compreendido é, sem dúvida, o herege a que se refere Rubem Alves. O fariseu, cujo

317 Ibidem, p. 273. 318 Ibidem, loc. cit. 319 Ibidem, p. 273-274. 320 KAUFMANN, Walter. The Portable Nietzsche. New York: The Viking Press, 1965, p. 324 apud ALVES, Rubem, 1979, p. 274. 321 Ibidem, p. 324 apud ALVES, Rubem, 1979, p. 274-275.

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comportamento foi criticado no primeiro tópico deste capítulo, se enquadra, portanto,

perfeitamente na atitude do ortodoxo do protestantismo do CRD.

Um ponto recorrente em toda a análise feita até aqui vem à tona novamente:

a relação do CRD com o passado, o presente e o futuro. O ortodoxo é aquele que

busca a preservação do velho, do passado. O medo do novo, do inesperado e da

surpresa o apavora, pois coloca em risco a sua salvação. Nesta ortodoxia o mundo

está completo, acabado, fixo e imutável. A eternidade que a ortodoxia anuncia diz

respeito a um mundo morto, que um dia fora criado por homens vivos, que morreram

e deixaram de herança “monumentos de um momento vivo que agora não mais

existe”. O mundo morto da ortodoxia é uma “jaula onde a vida deve ser

encerrada”. 322 Leszek Kolakowski dá o nome de sacerdócio a esta atitude da

ortodoxia e afirma: O sacerdócio não é simplesmente o culto do passado visto através de olhos contemporâneos, mas uma sobrevivência do passado intacto no presente... Não se trata simplesmente de uma certa atitude intelectual frente ao mundo, mas de uma forma de existência no mundo – uma continuação factual daquilo que não mais existe.323

O herege, entretanto, busca a destruição do velho para que nasça o novo. O

velho, na ótica do herege, é caminho na direção do novo, pois nada é definitivo, mas

provisório. O mundo do herege se move, está incompleto, aberto e inacabado.

Nesse mundo a busca é necessária. O passado é uma herança em forma de

ferramenta a ser empunhada pela vida na construção do novo mundo. O passado

adquire vida, sem se tornar prisão. 324 Estamos diante de duas determinações

temporais de espírito, em que os ortodoxos estão voltados para o passado e os

hereges desejam criar o futuro.325

Nesse aspecto da ética protestante, em que o crime de pensamento é

passível de julgamento, a questão é menos inerente a verdade ou falsidade e mais

sobre perdedores e ganhadores. “Heresia e ortodoxia são palavras inventadas pelos

ortodoxos.” E, como já foi anunciado, os ortodoxos são aqueles que tiveram poder

para impor suas ideias.326 Citando Calvino, tendo em vista a doutrina da Providência,

“nenhuma tirania, portanto, pode existir sem, de certa forma, contribuir para a

322 ALVES, Rubem, 1979, p. 275. 323 KOLAKOWSKI, Leszek. Toward a Marxist Humanism. New York: Grove Press, 1968, p. 36 apud ALVES, Rubem, 1979, p. 275. 324 ALVES, Rubem, 1979, p. 275. 325 Ibidem, p. 276. 326 Ibidem, loc. cit.

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proteção da sociedade”327. Esta tirania pode, assim, se apresentar como ortodoxia e

estaria mais do que justificada, dentro dessa lógica, sua intolerância ao “herege”.

2.3.5. Os inimigos do protestante

A vocação para intolerância no CRD já deve ter ficado evidente até aqui.

Não é de se surpreender que nesse protestantismo sua visão de mundo pressupõe

a presença de inimigos. A visão dos inimigos é muito clara para os participantes da

comunidade religiosa e a definição de quem é inimigo faz parte da maneira que o

CRD tem de compreender a si mesmo.328 A construção dessa identidade ficará

evidente nos capítulos posteriores.

Inimigo é aquele com quem não se tem a possibilidade do diálogo e da

cooperação. Do contrário, seria um amigo, em busca do bem comum. Se conclui

aqui que inimigo é aquele que se deve temer, fugir, pois ele deseja a minha perdição

e não existe possibilidade de aproximação. A identidade da comunidade também é

impactada por quem ela define como inimigo, uma vez que a identidade da

comunidade está definida em termos de dar combate a certo inimigo. O que ocorre

quando o inimigo se torna amigo? “A comunidade em questão perde a sua razão de

ser, sua função, sua identidade e está condenada a desaparecer.” A tentativa de

transformar inimigos em amigos é, dessa forma, equivalente à traição e à subversão.

“Esta é a razão por que a Inquisição sempre afirmou que só negam a existência das

bruxas aqueles que, secretamente, estão ligados à bruxaria. É bruxaria negar a

bruxaria. É heresia negar a heresia.”329

Quem são os inimigos desse protestantismo analisado? São aqueles que

negam ou relativizam os absolutos definidos pela visão de mundo protestante. Sua

razão de ser, sua missão, sua identidade e sua essência são construídas em

oposição a esses inimigos.330 O primeiro inimigo é a Igreja Católica, pois nega a

fórmula protestante de salvação, a teoria protestante do conhecimento e a ética

protestante. O segundo inimigo é personificado no Liberalismo (teológico), pois nega

a possibilidade de um conhecimento absoluto. O terceiro é o Mundanismo, que

propõe uma moralidade diferente da moralidade da disciplina e repressão. Por fim, o

327 Citado por LEHMANN, Paul. The Transfiguration of Politics. New York: Harper & Row, 1975, p. 42 apud ALVES, Rubem, 1979, p. 282. 328 ALVES, Rubem, 1979, p. 240. 329 Ibidem, p. 241. 330 Ibidem, loc. cit.

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quarto inimigo é o Evangelho Social, que retira a ênfase da dimensão eterna do

Evangelho para um programa de transformação social do mundo. Importante

ressaltar que esses não são os únicos inimigos331, mas os que ameaçam este

protestantismo de forma direta.332

2.3.5.1. Igreja Católica

O que o Protestantismo tem de polêmico o tem em grande parte ante a sua

essência de contrapor o catolicismo.333 Essa essência, sem dúvida, já revela esse

inimigo como uma causa da racionalização 334 , pois remete ao passado de

constituição da ortodoxia protestante, que será aprofundado nos capítulos

posteriores. Nesse inimigo é também revelado não somente um embate relacionado

a função histórica do Protestantismo e do Catolicismo. O grande ponto levantado por

Rubem Alves diz respeito a guerra metafísica que é enfatizada pelo CRD quando o

assunto é o catolicismo romano. A questão não é propriamente indicar que nos

países em que o catolicismo prevaleceu houve um atraso e nos países de

predominância protestante houve prosperidade econômica. O ponto é a associação

dessa prosperidade com uma fidelidade à verdade divina e o atraso a uma maldição

por corromper a verdade. Existe aqui um conflito entre luz e trevas, entre salvação e

perdição, entre verdade e falsidade.335

A origem desse conflito, conforme analisa Rubem Alves, diz respeito a um

erro fundamental.336 Tudo está relacionado a teoria do conhecimento protestante.

Para o Protestantismo a verdade se tornou objetiva e documentada num documento

escrito – confissão da reta doutrina. Nada aqui pode ser alterado e os protestantes

negam que os concílios que preparam tais textos foram influenciados pelo seu

contexto histórico-social. Assim, o documento passa a ter caráter praticamente

divino e absoluto. A Igreja Católica, ao contrário, “afirma que o mesmo Espírito que

inspirou as Escrituras continua vivo em si mesmo. Não lhe é possível, portanto,

separar a sabedoria do texto da sabedoria da instituição.” Ou seja, a leitura que a IC

331 O Espiritismo é um exemplo de inimigo que não constitui ataque direto ao CRD. 332 ALVES, Rubem, 1979, p. 242. 333 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, 1995, p. 198. 334 Será apresentada nos capítulos que se seguem a causa primária da racionalização, que contempla esta ênfase da IC como inimiga do CRD. 335 ALVES, Rubem, 1979, p. 243. 336 Ibidem, loc. cit.

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faz do texto através do magistério “é o próprio Espírito Santo se interpretando a si

mesmo”.337

Embora as confissões do Protestantismo tenham sua equivalência ao

magistério da IC, conforme foi indicado no tópico acerca da teoria do conhecimento

protestante, qual seria a razão para os protestantes não perceberem que a

identidade de sua leitura do texto sagrado não é “pura”, mas está condicionada a

todo um processo que produziu uma leitura uniforme da “verdade”, da forma como a

IC percebe? Em primeiro lugar, os mecanismos de interpretação na IC estão

institucionalizados de forma clara, “enquanto que no Protestantismo eles são

mascarados pela ilusão do livre exame”. Uma segunda razão é de natureza

psicossocial, pois, para o Protestantismo preservar sua identidade é necessário que

ele se defina em relação a IC em termos de inimizade radical. “Tal necessidade não

pode permitir a tomada de consciência de uma identidade fundamental que os

caracteriza a ambos, na sua atitude para com os textos sagrados.”338

Aos olhos do CRD, que se compreende como fiel às Escrituras, o erro

fundamental da IC é o deslocamento da autoridade do texto para a instituição, em

que as Escrituras se subordinam às mediações da tradição e do magistério. O

grande símbolo deste erro é o dogma da infalibilidade papal, que caracteriza, na

ótica protestante, à voz dos homens em oposição à voz de Deus. Nesse sentido,

todos os demais erros – mediação de Maria, mediação dos santos, uso de imagens

idólatras, etc. – são secundários, resultados de um passo falso: a rejeição do sola

Scriptura. Com as aberturas ecumênicas da IC, que se seguiram no Concílio

Vaticano II, os católicos deixaram de chamar os protestantes de inimigos e

passaram a chama-los de irmãos, reconhecendo sua culpa no cisma que rachou a

Cristandade. Seria motivo de grande alegria para os protestantes este fato. A alegria

não ocorreu. Por quê? Porque o CRD necessita do Catolicismo como inimigo.

Transformar o inimigo em amigo implica no surgimento de uma nova forma de ver o

mundo e quem se atreve a isso no CRD é traidor.339 A Inquisição se criou para, entre outras coisas, acabar com as bruxas. Mas, se não existissem bruxas? E se tais estranhas mulheres nada mais fossem que parteiras, práticas na manipulação de ervas ou, quem sabe, pessoas com desarranjos mentais? Não haveria razões para a Inquisição. Por isto, as instituições cuidam que o problema que elas pretendem resolver seja real. A Inquisição definiu e encontrou as bruxas. O Protestantismo

337 Ibidem, p. 244. 338 Ibidem, p. 244-245. 339 Ibidem, p. 245-246.

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necessita, para justificar-se, de um Catolicismo apóstata e inimigo. E ele o encontra.340

2.3.5.2. Liberalismo

O segundo inimigo que se apresenta diante do CRD é o Liberalismo341, que

se revela mais complicado que a IC, uma vez que não se trata de um inimigo visível.

Esse inimigo é doméstico, pois se constituiu na Alemanha protestante. A grande

questão em relação a ele é sua atitude frente aos textos bíblicos, pois ele tem a

cosmovisão científica moderna como ponto de partida e instrumento metodológico

para interpretação dos textos sagrados. Não se pretende analisar a história desse

movimento, mas tão somente compreender como na visão de mundo protestante

este liberalismo é definido. Karl Barth, por exemplo, seria considerado conservador e

ortodoxo na Europa, entretanto, aqui no Brasil, foi classificado pelo CRD como

liberal.342

Já foi verificado que na teoria do conhecimento protestante a doutrina da

inspiração das Escrituras tem papel decisivo na construção do conhecimento

absoluto que este protestantismo alega para si. É graças a essa doutrina que se

garante a fidedignidade do discurso indicativo, no qual se entende que os textos

sagrados estão descrevendo o que aconteceu de fato. Ou seja, o que está afirmado,

ocorreu. Não existe espaço para a dúvida ou para o erro humano nesse processo,

pois no texto sempre fala o Sujeito Absoluto. Ao se aplicar instrumentos críticos ao

texto, mesmos instrumentos utilizados para análise de outros textos – não sagrados

– as Escrituras se tornam documentos entre outros documentos. Uma vez que a

análise do texto sagrado passa a estar condicionada pela história, pela cultura, pela

sociedade, pela psicologia dos seus autores, instaura-se o relativismo. A instauração

desse elemento relativista é danosa para todo o sistema que defende a verdade

absoluta. “Arruína-se a certeza ao se roubarem dela seus fundamentos objetivos.”343

Portanto, o que este inimigo propõe é que a autoridade final em relação ao

texto seria o próprio espírito humano e não o Espírito Divino. Rubem Alves

questiona: “Não seria esta, entretanto, a consequência inevitável do livre exame?”

Ele ainda diz que o Liberalismo é quem levou o livre exame até suas últimas 340 Ibidem, p. 254-255. 341 No capítulo primeiro de Protestantismo e Mística – razão e experiência mística no protestantismo histórico (ANÉAS, André, 2016) a teologia liberal é trabalhada como reação da ortodoxia protestante do séc. XVII. 342 ALVES, Rubem, 1979, p. 255. 343 Ibidem, p. 257.

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consequências. O Protestantismo recua diante de tal afirmação, uma vez que se

trata de uma ameaça que impede a distinção entre ortodoxia e heresia. No

liberalismo não há espaço para uma exegese objetiva. Todos os textos são

submetidos a uma dupla mediação. Eles são, em primeiro lugar, produtos do

observador que escreveu uma interpretação dos fatos. E, em segundo lugar, o leitor

de hoje examina o texto e sua leitura é uma interpretação da interpretação. O que

resta é o absoluto do próprio espírito humano, pois o absoluto do texto, da tradição

ou do magistério foram eliminados. O absoluto do espírito humano, na verdade, não

se constitui absoluto, mas um risco, “uma aposta, um salto de fé”.344

A fé, na teologia liberal, não é cosmovisão. Ela não é substituta pela ciência.

“A fé tem a ver com a estrutura do espírito”, pois “a mensagem do Evangelho se

dirige à subjetividade”. 345 A mensagem do texto não tem como intenção a

constituição de um novo conhecimento, mas de arrependimento, “metanoia”,

mudança das estruturas do espírito, e “se constrói em torno do dever ser da

subjetividade”.346 Interessantemente, Mendonça relaciona o Liberalismo à mística,

quando fala da questão do Jesus histórico. O liberalismo, abandonando todo o sobrenatural, milagres e feitos extraordinários registrados na revelação, elementos em grande parte sustentadores da fé religiosa, deu uma volta e firmou-se na pessoa histórica de Jesus de Nazaré como modelo ético e moral para toda a humanidade. A racionalidade do Jesus histórico transformou-se em uma quase não religião e se aproximou bastante, paradoxalmente, da mística não racional que, por sua vez, não se submete aos cânones institucionais. [...] O sagrado livre e acessível da mística se aproxima da expressão fenomênica do sagrado em Jesus de Nazaré.347

No embate com esse inimigo, o Protestantismo analisado tenta se defender,

se protegendo com uma ortodoxia que exige um texto como ponto de partida,

amparada na doutrina da inspiração verbal das Escrituras, para construção de um

conhecimento absoluto e de uma certeza absoluta. “Fé deixa de ser confissão sobre

uma Pessoa e passa a ser conhecimento abrangente, totalitário, cosmovisão.”348

2.3.5.3. Mundanismo

344 Ibidem, p. 259. 345 Ibidem, p. 258. 346 Ibidem, p. 259. 347 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, 2007, p. 29. 348 ALVES, Rubem, 1979, p. 264.

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Este próximo inimigo não atua no campo das ideias. Ele não tem uma teoria

e nem deseja ter.349 O Mundanismo, terceiro inimigo a ser analisado, é aquele que

abala a ética protestante. Enquanto a ética protestante exige a repressão ao corpo,

o mundanismo “é um estilo de vida em que a carne é mais poderosa que o

mandamento divino”.350 Esse inimigo coloca em risco a fisionomia da salvação dos

crentes.

Diante deste inimigo, este protestantismo busca manter afastado do “mundo”

todo fiel, pois o inimigo não pode ser vencido por ideias. O “mundo” para a visão

protestante é tudo que está fora do círculo da Igreja, local onde o comportamento é

controlado, o espaço de repressão ao corpo está delimitado e a disciplina

eclesiástica possui voz ativa. “Mundo” é, portanto, o espaço que não se submeteu a

moral protestante. Em quanto o Catolicismo e o Liberalismo atacam a visão de

mundo do protestante, o Mundanismo “subverte a construção protestante de

comportamento”.351

2.3.5.4. Evangelho Social

O último inimigo a ser analisado é o Evangelho Social, que abala a

compreensão acerca dos tempos desse protestantismo. Embora Rubem Alves não

faça esta associação, pode-se entender que o Evangelho Social tem aproximações

com a Teologia Latino-Americana – Teologia da Libertação, cujo teórico inicial fora o

próprio Rubem Alves352 – e até mesmo com a Teologia da Missão Integral353. A

leitura que essas teologias realizam acerca do Evangelho privilegiam o imperativo

em detrimento do indicativo. Neste sentido, os ensinos morais do Evangelho

ganham ênfase. Fundamentada nos ensinos de Jesus, o Evangelho Social busca

estabelecer no presente princípios básicos para uma ordem justa e fraterna. Assim,

o Evangelho, que para o ortodoxo se refere a salvação da alma do indivíduo para

depois da morte, para o Evangelho Social se trata de “uma utopia político-social que 349 Ibidem, p. 265. 350 Ibidem, p. 264. 351 Ibidem, p. 266. 352 SILVA, Anaxsuell Fernando. Da teologia protestante à libertação da teologia: a biografia de um intelectual protestante. In: Revista Brasileira de História das Religiões, v. 09, n. 27, p. 35-65, 2017, p. 58-59. – Esse artigo faz uma reconstrução biográfica de Rubem Alves e revela que sua tese Towards a Theology of Liberation se tornou A Theology of Human Hope por uma decisão editorial na publicação. 353 CAVALCANTI, Robinson. O congresso de Lausanne e a Missão Integral da igreja. 2010. Disponível em: <https://bit.ly/2MpFMzZ> Acesso em: 12 de abr. 2018, passim. – Nesse artigo, dentre outras coisas, Cavalcanti afirma que a Fraternidade Teológica Latino-americana foi quem “gestou” a Teologia da Missão Integral.

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deveria se realizar num futuro histórico.”354 Mendonça, se referindo novamente a

Bastide, retrata com maestria este aspecto quando compara a religião (aqui

semelhante ao CRD) com a política. É possível perceber de forma bastante evidente

o quanto seu argumento corrobora para a assertiva acerca de como o CRD

interpreta os tempos, discutida no primeiro tópico do presente capítulo, e o quanto o

Evangelho Social se caracteriza um inimigo. Tanto em religião quanto em política há, como diz Bastide, um vivido congelado que é a palavra – o discurso. Na religião, o vivido congelado são as doutrinas, os dogmas, as confissões de fé que surgiram como resposta da fé a situações histórico-sociais bem definidas que, superadas pela dinâmica da história, permanecem latentes e inoperantes em situações novas; na política, são discursos operantes no passado, mas que, repetidos no presente, não têm sentido algum. Assim, a esperança retroage ao passado e deixa sempre em aberto o futuro. Na religião, abandona o presente em favor de um apocalipse renovador e, na política, acontece o mesmo quando os políticos prometem um futuro próximo transformado, mas com conceitos antigos. Prometem o que já deviam ter feito.355

Enquanto que para o protestantismo tradicional o presente está interditado,

sem possibilidade de mudança, o Evangelho Social faz uma leitura da Bíblia que

exige uma “transformação das estruturas da sociedade”, para que ela se transfigure

numa ordem justa e fraterna”.356 O Protestantismo analisado nunca deu ênfase em

uma ética social. Na verdade, todo seu esforço está direcionado para a alma de

indivíduos. O CRD pode dizer tudo o que precisa ser dito sem mencionar a

necessidade de transformar o mundo. 357 Quando esse protestantismo se viu

pressionado a falar acerca das questões sociais358, falou com o propósito de

desqualificar suas pretensões, mantendo sua posição fatalista acerca do presente,

impedindo a articulação entre a vida e a economia.359 Max Weber, ainda relaciona a

visão deste protestantismo acerca da pobreza com sua visão de mundo baseada na

doutrina da Providência. A conclusão a que ele chega sobre a distribuição desigual

de bens no mundo diz respeito a uma “especial distribuição da Divina Providência,

que, nessas diferenças, assim como na graça particular, perseguia fins secretos,

não conhecidos pelo homem”, o que, para mentalidade do CRD, é uma “confortante

segurança”360 – ou certeza.

354 ALVES, Rubem, 1979, p. 266-267. 355 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, 2007, p. 24. 356 ALVES, Rubem, 1979, p. 268. 357 Ibidem, p. 216, 358 A Teologia da Crise, a Teologia Bíblica e o Movimento Ecumênico foram quem forçaram esse protestantismo a se pronunciar (ALVES, Rubem, 1979, p. 217). 359 ALVES, Rubem, 1979, p. 220. 360 WEBER, Max, 2013, p. 177.

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Em suma, o Evangelho Social transforma a fé, de um conhecimento metafísico absoluto, em um programa de ação política. Perde-se, assim, o que é mais central para a cosmovisão protestante: a mensagem da salvação eterna da alma depois da morte. O Evangelho Social nega o problema central em torno do qual se estrutura o universo protestante. Nega seu equacionamento da questão do conhecimento, ao privilegiar o imperativo sobre o indicativo. Nega a sua estruturação de mundo. E finalmente nega a centralidade da ética de perfeição individual, tornando-a totalmente secundária em relação à ética de transformação da sociedade.361

Aceitar essa proposta é traição.

2.3.6. Sintomas da racionalização da experiência de Deus [III]

Uma visão de mundo consolidada é, ao mesmo tempo, causa da

racionalização, pois sua elaboração é a priori, e sintoma, uma vez que a cosmovisão

já estabelecida, ocorrida no passado, sinaliza a racionalização (o mesmo ocorre com

a teoria do conhecimento protestante).

Diante da visão de mundo deste protestantismo, serão sintetizados os

sintomas da racionalização da experiência de Deus no CRD: a. Existe um processo

de distribuição social do conhecimento, em que “aprendizes” são submetidos a um

conhecimento de mundo já estabelecido por parte dos seus “mestres”; b. A presença

de uma visão de mundo consolidada é sintoma, uma vez que a cosmovisão já

estabelecida é sinal de uma racionalização da experiência; c. Novamente se

apresentam dificuldades em relação ao tempo presente, que é interditado como local

de responsabilidade humana e espírito profético da parte do religioso; d. Se percebe

contradição na prática da oração diante de uma ótica determinista, que pode ser

explicada, à luz da psicanálise, como neurose; e. Passa a existir uma fisionomia do

salvo, baseada em uma ética que determina quem está salvo e quem está perdido; f.

Se instaura mecanismos de controle da moralidade: disciplina eclesiástica; g. A

visão de mundo protestante é privilegiada em relação a vida (presente interditado);

h. Diante do saber absoluto, inimigos são definidos e definem a essência desse

protestantismo especialmente o embate com a IC (aqui está uma causa a ser

investigada adiante); i. O crime de pensamento é considerado alta traição e heresia

que contradiz o discurso ortodoxo.

Destaca-se a doutrina da Providência como uma causa do processo de

racionalização. Nos capítulos seguintes, essa doutrina será explorada em seu lugar 361 ALVES, Rubem, 1979, p. 268.

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de formulação, que constituirá peça fundamental da construção da visão de mundo

dos protestantes que foi analisada.

Conclusão

Finalizado o primeiro capítulo deste trabalho, o CRD foi descrito pelos três

aspectos propostos: a conversão, a teoria do conhecimento e sua cosmovisão. Foi

possível perceber o processo de racionalização da experiência de Deus em ação,

com todas as peculiaridades que agem na vida daquele que teve a experiência

religiosa, produzindo a metamorfose da vida, que se relaciona com um sagrado

selvagem, para a experiência de um sagrado domesticado no CRD, em que tudo é

previsível. Os sintomas da racionalização da experiência foram devidamente

levantados, conscientizando o leitor dos problemas que eles acompanham. Além

disso, foi possível observar elementos de causas da racionalização, como a doutrina

da Providência e a cosmovisão do CRD, que tem relação entre si.

Algo que foi recorrente no caminho percorrido até aqui é a impossibilidade

da existência de teólogos parresiatas dentro desse CRD, como é o caso de José

Comblin. Teólogos de franco falar, com a capacidade de ler e perceber os sinais dos

tempos e atuar na contemporaneidade de forma criativa e relevante, tendem a ser

expelidos do sistema do CRD. Em contrapartida, teólogos que possuem o

comportamento farisaico, encontram no CRD um ambiente confortável. Quem está

dentro do círculo do CRD tem como exigência uma relação com os tempos distinta,

em que o presente está interditado para o novo, em que o passado é tido por

saudoso e o futuro está determinado de forma que a responsabilidade do homem

escapa das consciências. O filósofo Giorgio Agamben, tem uma definição do que é

ser contemporâneo que elucida muito a relação homem-tempo, altamente afetada

no CRD: (...) contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de coloca-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora.362

362 AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros sinais. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 72.

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Se percebe que, de fato, o teólogo de dentro deste Protestantismo está

refém em sua cosmovisão. Como refém, não fala, não responde, não transforma,

não lê o tempo de modo inédito, não questiona. Somente se sujeita à “sombra do

passado”, tonando o presente ainda mais “escuro”. E submetido a uma forma de

visão de mundo, torna-se incapaz de perceber beleza na experiência de Deus em

seu estado bruto, originário, subjetivo. Insiste na racionalização que tem como

parâmetros aqueles que sua visão de mundo definiu, desenvolvidos no passado,

séculos atrás. E é no passado que luzes serão projetadas nos próximos dois

capítulos.

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CAPÍTULO II – O “SAUDOSO” ESCOLASTICISMO PROTESTANTE

Introdução

O capítulo primeiro foi dedicado à análise dos sintomas da racionalização da

experiência de Deus no Calvinismo da Reta Doutrina. Foi possível perceber a

racionalização da experiência como processo consolidado, agindo na vida do

converso e se articulando dentro do círculo religioso instituído. Três aspectos foram

analisados: a conversão do protestante, a teoria do conhecimento protestante e, por

fim, o mundo dos protestantes, sua cosmovisão. Após essa análise, diversos

sintomas do processo de racionalização foram levantados e sintetizados ao final do

capítulo. Alguns desses sintomas estão muito alinhados com o primeiro tópico do

capítulo primeiro, em que foi discutido a questão de presente, passado e futuro. A

forma como o CRD lida com o tempo presente, elemento que constitui sua visão de

mundo, tem paralelos com a forma com que os interlocutores do tempo de Jesus –

principais lideranças religiosas, como os fariseus –, lidavam: um saudosismo do

passado que os impedia de viver a experiência de Deus no presente e uma redução

de significado do tempo futuro. Esse tipo de visão de mundo impede o crente do

CRD de viver a experiência do presente tanto quanto impediu os religiosos do tempo

de Jesus de experimentarem o Deus encarnado. Além disso, o teólogo do CRD

perde em relação ao potencial que a experiência do presente tem em movê-lo à um

falar franco, que analisa e atua no tempo presente de forma transformadora, criativa

e inovadora. Ao contrário, o teólogo do CRD vive em seu orgulho intelectual e se

entende possuidor da verdade absoluta. Por isso não cria, não transforma e não

inova, apenas proclama.

Uma das causas que produz este tipo de racionalização, conforme já

mencionado em presente, passado e futuro, diz respeito a mecânica da religião em

si. Os homens são capazes de “domesticar o sagrado” – não significa que Deus

seja, de fato, domesticado – por meio de “sacerdotes” que suportam a religião

instituída. Pode-se afirmar, desde já, que os homens são os causadores da

racionalização da experiência religiosa, com destaque aos religiosos que atuam

nesse papel sociológico do “sacerdote”, cuja função principal é preservar a religião

instituída. Neste sentido, o processo de institucionalização de uma religião contém

em si o processo de racionalização da experiência religiosa. Neste capítulo, será

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possível atestar a hipótese levantada na introdução, acerca do contexto apologético-

religioso e sócio-político em que a ortodoxia protestante está inserida (séc. XVII), de

constante embate com o catolicismo. Trata-se de um período de consolidação do

protestantismo, o que não deixa de ser uma institucionalização e, conforme

sinalizado, racionalização da experiência religiosa protestante. Não se pode deixar

de lado um elemento envolvido em todo o processo de estabelecimento ou

sustentação de uma ortodoxia: poder.

Duas outras causas levantadas no decorrer da análise dos sintomas da

racionalização da experiência de Deus no CRD funcionam como gatilho que dispara

o processo da racionalização da experiência religiosa, produzindo todos os sintomas

analisados: a teoria de conhecimento protestante e a visão de mundo do

protestante. Não existe dúvida que a relação com o tempo presente, em decorrência

da mecânica da religião, que acabou de ser posta como uma das causas da

racionalização, é elemento fundamental dessas causas, que busca sempre manter a

verdade absoluta adquirida no passado, a qual diz possuir, preservada no presente,

sem alterações que abalem a teoria de conhecimento produzida e tão pouco o futuro

já pré-determinado, a cosmovisão. As constituições da teoria do conhecimento e da

visão de mundo, que possuem intersecções entre si, serão trabalhadas também

nesse capítulo e tem relação direta com a hipótese que está posta.

Um terceiro elemento indicado como causa da racionalização da experiência

diz respeito a Doutrina da Providência. Essa doutrina está diretamente vinculada

com as causas até aqui citadas, pois ela é fator determinante de influência na forma

com que o CRD constrói sua teoria do conhecimento e compreende e desenvolve

sua organização do tempo e, consequentemente, sua visão de mundo. A doutrina da

providência, especialmente o que diz respeito a dupla predestinação, será analisada

com especial atenção no capítulo que se inicia: o “saudoso” escolasticismo

protestante.

As aspas em saudoso dizem respeito a maneira com que grupos ortodoxos

do presente olham para o período em que sua ortodoxia foi construída. Ou melhor,

diz respeito ao sentimento romântico que existe em relação ao “saudoso” passado.

Neste capítulo a investigação segue em busca de mais causas e de

aprofundamento e fundamento das causas destacadas acima. Neste momento os

olhares se voltam à ortodoxia protestante (ou escolasticismo protestante). Esse

grupo é quem produziu os elementos que constituem o CRD que foi analisado. De

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forma semelhante ao primeiro capítulo, após a análise desta ortodoxia, serão

sintetizadas as causas encontradas referentes a tudo o que culmina no

estabelecimento da racionalização da experiência religiosa no CRD. Para uma

correta análise da ortodoxia protestante é imprescindível compreender os

antecedentes da Reforma Protestante do séc. XVI, a Reforma Protestante em si, o

contexto de surgimento da ortodoxia protestante e a própria ortodoxia ou

escolasticismo protestante. Por fim, será estabelecido um recorte no calvinismo e

documentos importantes desse grupo produzidos em momentos históricos chave,

como a Assembleia de Westminster e o Sínodo de Dort, serão analisados levando

em conta seus respectivos contextos.

1. A experiência de Deus como antecedente da Reforma Protestante

O papa Leão X, considerado um dos piores de uma época de papas

insolentes, avarentos e corrompidos, autoriza a comercialização de indulgências363

com o objetivo de concluir as obras da Basílica de São Pedro. Na Alemanha, o

encarregado da venda das indulgências é João Tetzel que, sem nenhum escrúpulo,

afirmava que as indulgências que vendiam deixavam o pecador “mais limpo do que

saíra do batismo”, “mais limpo do que Adão antes de cair”, que “a cruz do vendedor

de indulgências tinha tanto poder como a cruz de Cristo” e que, nas compras em

favor de um parente já falecido, “tão pronto a moeda caísse no cofre, a alma saía do

purgatório”.364 Se trata do início do séc. XVI, um contexto em que a religião instituída

explorava a fé e a ignorância do povo. Porém, as vítimas deste sistema,

completamente influenciado por interesses econômicos e políticos, não se limitou

somente a leigos.

O monge agostiniano Martinho Lutero, cuja alma suspirava por Deus mais

do que qualquer outra coisa365, estava em crise. Aquele que sem ele “não teria sido

possível a Reforma na Alemanha”, conforme afirmou o teólogo suíço e católico Huns

Küng366, tinha muita dificuldade em relação a sua salvação. Todos os meios que a

igreja lhe oferecia para alcança-la eram utilizados: confissão, boas obras e

363 “Em outras palavras, indulgências significa ‘perdão’. Portanto, a venda de indulgência é a venda de um perdão que a igreja medieval concedia àqueles que o compravam.” (LUTERO, Martinho, 2017, p. 15). 364 GONZÁLEZ, Justo L. E até os confins da terra: uma história ilustrada do cristianismo. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 52-53. 365 BOYER, Orlando. Heróis da fé. Rio de Janeiro: CPAD, 2002, p. 16. 366 KÜNG, Hans. Os grandes pensadores do cristianismo. Lisboa: Editorial Presença, 1999, p. 126.

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penitências.367 Entretanto, por maior que fosse seu esforço em ser um monge

perfeito, mais sua pecaminosidade se impunha e maior era sua crise. A imagem que

tinha de Deus era de um juiz severo e, por isso, quando lia o capítulo primeiro da

carta de Paulo aos Romanos, especialmente os versos dezesseis e dezessete,

relacionava a “justiça de Deus” – frase que odiava – ao fato de que Deus castiga

pecadores. Ironicamente, foi neste mesmo capítulo que Lutero encontrou a cura

para sua alma e o que seria um dos grandes fundamentos da Reforma Protestante:

sola fide. Em Romanos capítulo primeiro, versículo dezessete, Lutero encontrou o

evangelho, pois compreendeu que a justiça de Deus não se referia ao castigo dos

pecadores, mas a justiça de Deus imputada no pecador que vive pela fé. Disse

Lutero: “senti que havia nascido de novo e que as portas do paraíso me haviam sido

abertas”.368

A fé em Lutero é, portanto, o único caminho pelo qual se recebe a

justificação dos pecados pela graça de Deus. Ela é o caminho pelo qual a justiça de

Deus é colocada na conta do pecador.369 Na 87a tese acerca das indulgências,

Lutero questiona: “o que de fato o papa perdoa e concede àqueles que, pela

contrição perfeita, [já] têm direito à completa remissão e participação?”370 O papa, na

ótica do monge agostiniano, nada tinha a conceder, pois é somente pela fé que a

graça salvadora atinge o fiel e o justifica. Nem instituição religiosa ou líder religioso,

nem mesmo o mais sábio homem, nem o maior dos gurus espirituais, nem o estado,

nem ninguém poderia reivindicar o caminho para a justificação dos pecados

humanos, pois a graça é dom de Deus recebida somente pela fé, não por obras,

para que ninguém se glorie (Ef 2:8-9). A paz que Lutero buscava foi alcançada

somente pela fé em Jesus Cristo (Rm 5:1).

O aspecto que move Lutero em sua reflexão não é, a princípio, doutrinário,

mas tem relação com a sua própria experiência, a qual é uma experiência de fé,

experiência religiosa, experiência de Deus, uma verdadeira peregrinação espiritual.

Paul Tillich (1886-1965) afirma em relação a Lutero que “o caráter explosivo de seu

ensino que transformou a face da terra foi produzido por sua experiência de

367 GONZÁLEZ, Justo, 1995, p. 47. 368 Ibidem, p. 50. 369 FERREIRA, Franklin, 2017, p. 140. 370 LUTERO, Martinho, 2017, p. 49.

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Deus”371, pois em relação aos seus ensinos e críticas ao dogma romano já tinham se

feito ouvir através dos pré-reformadores. Justo González, historiador e teólogo

metodista, pontua que embora Lutero tenha chegado a ensinar sua nova

compreensão do evangelho, não protestou de imediato. González afirma que Lutero,

ao menos a princípio, “não tinha percebido que sua grande descoberta se opunha a

todo o sistema de penitências e, consequentemente, à teologia e às doutrinas

comuns na sua época”372. Pode-se afirmar, portanto, que a experiência religiosa de

Lutero foi o combustível para que o monge agostiniano trilhasse seu caminho, que,

mais tarde, teria implicações drásticas para a história da igreja cristã. Paul Tillich, em

seu livro História do Pensamento Cristão, corrobora com a proposição defendida: “o

ponto decisivo da Reforma, e da história da igreja em geral, foi a experiência de um

monge agostiniano em sua cela monástica”373.

2. A Reforma Protestante374

Segundo Popkin, Lutero foi responsável por abrir a “caixa de Pandora” do

rompimento acerca do critério de verdade até então estabelecido pela tradição da

Igreja Católica, o que trouxe consequências para a teologia e todos os domínios

intelectuais do ser humano.375 O deslocamento se dá quando, com o advento da

Reforma Protestante, a tradição da igreja instituída representada pela autoridade da

Igreja, dos papas e decisões conciliares, perde autoridade para a compreensão das

escrituras e a consciência individual ganha autoridade interpretativa dos textos

sagrados sem nenhum tipo de mediação. Neste novo paradigma o sujeito passa a

ter uma posição de destaque, o que possibilita um vínculo importante entre a

Reforma Protestante e a Modernidade.376 É fundamental destacar que Lutero não

fez uma teologia antropocêntrica e que este deslocamento da tradição para o

indivíduo em relação a compreensão dos textos é realizado em caráter

371 TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE., 2010, p. 48 – grifo meu. 372 GONZÁLEZ, Justo, 1995, p. 51. 373 TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. 5. ed. São Paulo: ASTES, 2015, p. 227. 374 Não serão abordados todos os detalhes da história da Reforma Protestante, mas apenas questões fundamentais para a compreensão da Escolástica Protestante. 375 POPKIN, Richard Henry. História do Ceticismo, de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000, p. 28-29. 376 Em Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, Paul Tillich discute a conexão entre o movimento petista, com elementos da mística, e a razão moderna, defendendo uma aproximação das duas correntes em razão do elemento em comum: o subjetivismo.

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embrionário 377 , uma vez que Lutero se utiliza de argumentos teológicos que

relacionam as capacidades humanas com a graça divina.378

Mesmo em caráter embrionário, esta troca de paradigma é importante ser

compreendida, pois a mudança de autoridade interpretativa do texto – da tradição

para o indivíduo – demandará, inclusive de Lutero, uma que vez que surgem

momentos decisivos que o obrigam a dar a razão de suas ideias – por exemplo a

Dieta de Worms, em 1521 –, recorrer a certeza, o que implicará, principalmente na

ortodoxia protestante, na mudança do dogma católico para o novo dogma

protestante. Muito embora Lutero fosse firme em suas convicções, é importante

salientar que não se pode afirmar que Lutero fixou doutrinas no sentido ortodoxo e

sistemático da escolástica protestante.379 Mais adiante, no capítulo terceiro, será

realizado um comparativo das diferentes ênfases entre Lutero e outros

reformadores, o que tornará esta assertiva evidente e demonstrará que o

desenvolvimento do dogma protestante se deu progressivamente e por razões

específicas, até chegarmos ao Protestantismo da Reta Doutrina.

Uma vez aberta a “caixa de Pandora” por Lutero, é necessário um

aprofundamento teológico em que este “profeta da igreja cristã”380 produz a ruptura

com o sistema romano. Este aprofundamento evidenciará as razões, com

proporções políticas, que levaram Lutero a ganhar inimigos poderosos. Todos estes

desdobramentos da história constituirá o ambiente em que a Escolástica Protestante

é estabelecida e quais fatores a influenciam.

Existem alguns pontos teológicos difundidos a partir de Lutero que criam

uma significativa tensão entre o catolicismo romano do séc. XVI e o que viria a se

tornar o grande inimigo de Roma: o Protestantismo. Serão pontuados apenas os

elementos que contribuirão para o entendimento do processo histórico que culminou

na Escolástica Protestante.

Até então, no catolicismo, o relacionamento entre Deus e o homem era

baseado em um relacionamento objetivo (não pessoal), quantitativo (não qualitativo)

e relativo (não absoluto). Além disto, este relacionamento divino-humano envolvia 377 Justo González (1995, p. 70) faz questão de pontuar que, para Lutero, existe uma “responsabilidade orgânica” do crente para com a comunidade religiosa – a igreja. O que passa a ser dispensável é um sacerdócio hierárquico como único meio para se chegar até Deus. 378 MACHADO, Beatriz Piffer. A ruptura da doutrina do direito natural: do fundamento teológico à passagem para o jusnaturalismo moderno. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Rio de Janeiro, 2013, p. 46-48. 379 TILLICH, Paul, 2015, p. 274. 380 Ibidem, p. 227.

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certo gerenciamento, que era representado pela igreja instituída. A relação Deus-

homem era objetiva por envolver práticas que pretendiam atender ao propósito de

conceder ao homem a “bem-aventurança eterna, salvando-o da punição eterna”.

Neste caso, os sacramentos funcionavam como “graça mágica”, agindo junto da

liberdade moral ativa do fiel.381 Em relação ao aspecto quantitativo existiam certos

graus de separação ou não-separação entre Deus e o homem que dependiam do

tipo de papel que a pessoa possuía dentro do âmbito religioso. Paul Tillich comenta

que este caráter quantitativo transparecia em relação aos mandamentos éticos: São de dois tipos: mandamentos e conselhos – mandamentos para todos os cristãos, e conselhos, com o pleno jugo de Cristo, apenas para os monges e, parcialmente, para sacerdotes. Por exemplo, o amor aos inimigos é conselho de perfeição, e não mandamento para todos. A ascese é conselho de perfeição, só para alguns. As punições divinas são também quantitativas. A punição eterna é para pecados mortais, a do purgatório para os pecados leves, e a recompensa do céu para pessoas que já estão no purgatório e, às vezes, para os santos ainda na terra.382

O final da Idade-Média era caracterizado por muita ansiedade, uma vez que

não era possível saber acerca da própria salvação. Não era possível receber doses

suficientes do tipo mágico da graça e tão pouco realizar obras o suficiente para

adquirir mérito. Foi exatamente desta ansiedade que Lutero foi vítima, conforme

narrado no início deste capítulo. Assim, Lutero estabelece que a relação Deus-

homem era pessoal, sem qualquer tipo de mediação de pessoas ou coisas. Paul

Tillich aprofunda a mudança de paradigma que existe em Lutero: Não se trata de determinado estado objetivo no qual se está; trata-se de uma relação pessoal que Lutero chamava de ‘fé’, não fé sujeita à crença em alguma coisa ou doutrina, mas aceitação do fato de sermos aceitos. Qualitativa, não quantitativa. Ou a pessoa se separa de Deus ou não. Não há graus quantitativos de separação ou de não-separação. No relacionamento entre pessoas pode-se dizer que há conflitos e tensões, mas à medida que a relação é de confiança e amor, é qualitativa. Não é quantitativa. Da mesma forma, é incondicionada e não condicionada, como no sistema romano. Não se chega mais perto de Deus trabalhando-se mais pela igreja, ou mortificando-se o próprio corpo, mas apenas e unicamente ao se unir com ele. E se alguém não se une a Deus permanece separado dele. Um dos casos é incondicionalmente positivo; o outro incondicionalmente negativo. A Reforma redescobriu as categorias incondicionais da Bíblia.383

Na prática, Lutero rompe com o sacramento da penitência, que envolvia

contrição, confissão, absolvição e satisfação. O respaldo bíblico de Lutero foi

encontrado nos textos de Paulo, em que o apóstolo se defende do legalismo e fala

381 Ibidem, p. 228. 382 Ibidem, p. 228. 383 Ibidem, p. 229.

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da doutrina da justificação pela fé, doutrina que é de extrema relevância para a

Reforma Protestante e para o Protestantismo em si. 384 As consequências das

críticas de Lutero eram tais que acabavam por dissolver o sacramento da penitência,

transformando e simplificando o sistema mediador, que servia de obtenção da

salvação dos homens, na relação pessoal entre Deus e o homem385, o que viria a se

chamar de sacerdócio universal dos crentes. Segundo Adolph von Harnack,

historiador do dogma e citado por Tillich, Lutero é considerado o gênio da

simplificação.386

O problema de Lutero com o papado foi desencadeado com esta definição

de relacionamento absoluto entre Deus e o homem, sem necessidade de

intermediação da igreja instituída. Tillich, entretanto, não deixa de pontuar uma

informação importante: Lutero não tinha a intenção de estabelecer uma cisão com a

igreja, mas de reformá-la.387 O problema era que nem o Papa e nem os sacerdotes

queriam ser reformados. A última bula papal, que definia o poder do papa, afirmava

que “é universalmente necessário para a salvação de todas as criaturas humanas a

sujeição ao sumo sacerdote romano” 388 , dando poder ilimitado e absoluto ao

papado.

Colidindo frontalmente com a questão da infalibilidade papal está a forma de

compreensão do cristianismo para Lutero, que era fundamentado na mensagem do

Evangelho. As críticas de Lutero foram duras e embasadas teologicamente, não de

caráter pessoal ao Papa. Mas, uma vez que suas críticas feriam o caráter absoluto

da função do Papa, “Leão X declarou que um javali selvagem havia penetrado na

vinha do Senhor e ordenava que os livros de Martinho Lutero fossem queimados”389.

A questão na atitude papal é menos teológica e mais relacionada aos problemas

relacionados ao dinheiro fruto das indulgências, alvo do reformador alemão, e pela

“caixa de pandora” aberta, que tocou em um elemento importante para qualquer

ortodoxia: perda de poder.

3. Contra-Reforma

384 Ibidem, p. 230. 385 Ibidem, p. 233. 386 Ibidem, p. 230. 387 Ibidem, p. 233. 388 Ibidem, p. 233. 389 GONZÁLEZ, Justo, 1995, p. 61.

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Algo já ressaltado, mas que merece novo destaque, deve-se ao fato de

Lutero não ter surgido dentro de um contexto em que reformar a igreja instituída era

uma novidade. Muito pelo contrário, houveram movimentações neste sentido

reformador com personagens importantes como João Wycliffe e João Huss, que

buscaram corrigir doutrinas da igreja retornando à mensagem bíblica.390 Ou seja,

Lutero é resultado de “’sonhos frustrados’ de gerações anteriores”391. Importante

salientar que o desejo reformador existia, inclusive, dentro da coroa católica. Isto fica

muito evidente quando é analisada a Espanha dos tempos de Isabel, a católica, e no

início do reinado de Carlos V, em que a movimentação para ações reformistas são

claras, com tentativas de reformas em um clero que por diversas vezes era movido

por ambições egoístas relacionadas a política e a economia.392

Portanto, aquilo que chamaremos aqui de “Contra-Reforma”, por ser, em

certa medida, uma resposta a Reforma Protestante, é parte de uma reforma católica

que já se desenrolava na Espanha, muito embora a reforma espanhola não tenha se

afastado da ortodoxia católica e tinha um viés de pureza e devoção católica e

intolerância.393 Entretanto, até mesmo Justo González, que prefere a terminologia de

“reforma católica” a “Contra-Reforma”, compreende que a Reforma Protestante deu

um “novo tom” para esta reforma católica. Embora a reforma católica mantivesse a

ideia de reformar a igreja por questões internas, sua dedicação foi em refutar as

doutrinas protestantes.394 Carlos Caldas, no livro Trento em Movimento, escreve um

capítulo em que afirma que “se não tivesse havido Reforma, Trento não teria

acontecido” e que a grande motivação para este concílio foi a “necessidade de

resposta da Igreja Católica ao movimento iniciado por Lutero”.395

A terminologia “Contra-Reforma” parece mais adequada. Segundo Paul

Tillich, o impacto da Contra-Reforma foi grande dentro do catolicismo. A Contra-Reforma não foi apenas uma reação, mas verdadeira reforma. A Igreja Romana, depois dela, já não era a mesma. Estava determinada a se firmar contra o grande ataque da Reforma. Quando alguma coisa é atacada e se defende, já não é mais a mesma coisa. Um dos resultados característicos desse fato foi o estreitamento da igreja. A igreja medieval

390 GONZÁLEZ, Justo L. História ilustrada do cristianismo: a era dos mártires até a era dos sonhos frustrados. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2011a, p. 487. 391 GONZÁLEZ, Justo, 1995, p. 19. 392 Ibidem, p. 20-21. 393 Ibidem, p. 183. 394 Ibidem, p. 185. 395 GOMES, Edgar da Silva; SOUZA, Ney de (Orgs). Trento em movimento: contexto e permanências. São Paulo: Paco, 2018, p. 75.

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não deve ser vista à luz desse catolicismo pós-tridentino. A igreja medieval sempre esteve aberta a todas as influências, assimilando tremendos contrastes, como por exemplo, franciscanos e dominicanos (agostinistas e aristotélicos), realistas e nominalistas, e biblistas e místicos. Esse espírito desapareceu na Contra-Reforma. A Igreja Romana tendeu a se tornar “contra” – o “contrário” da Reforma – assim como a igreja protestante, com o seu princípio profético, tornou-se princípio de protesto contra Roma.396

O impacto da Contra-Reforma foi alto para a igreja instituída – catolicismo –

e para a própria Reforma Protestante, pois, enquanto grupo protestador, ao invés de

reformar a igreja como um todo, viu-se obrigado a fechar-se em virtude do contra-

ataque católico. Este fator é elemento fundamental daquilo que será chamado de

ortodoxia protestante ou escolasticismo protestante, que será abordado com maior

profundida a seguir.397 Desde já, é possível destacar um elemento que constitui

causa da racionalização da experiência de Deus no tom do Calvinismo da Reta

Doutrina: ter Roma como inimiga. Uma vez estabelecida a necessidade de se

defender da Contra-Reforma, o protestantismo ganha seu tom apologético e perde

sua ênfase profética. Além disto, é importante ressaltar a fala de Tillich que, da

mesma forma como o catolicismo teve sua identidade alterada após a Contra-

Reforma, o protestantismo tem como ingrediente constitutivo de sua identidade sua

posição de inimizade e manutenção de suas posições frente aos contra-ataques

romanos. Ou seja, aquilo que se vê como constituição de mundo protestante, em

que a Igreja Católica é vista como inimiga, tem seu surgimento neste período

histórico, que determinará o sentimento da ortodoxia do CRD: sempre apologético.

O Concílio de Trento, que durou de 1545 até 1563 (boa parte deste tempo

ele esteve em recesso), foi o lugar em que a Igreja Católica pode se posicionar em

relação as reformas internas, relacionadas a exigências aos seus bispos, proibição

do pluralismo, regulação das obrigações do clero e estabelecimento de seminários

para melhor preparação do ministério. Por outro lado, foi o local em que as doutrinas

da Reforma puderam ser refutadas.398

Neste momento será feito um resumo das decisões conciliares que são

elementos que colaboram para a formação da ortodoxia protestante.

3.1. Trento: doutrina das autoridades

396 TILLICH, Paul, 2015, p. 212. 397 Ibidem, p. 213. 398 GONZÁLEZ, Justo, 1995, p. 199.

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Em primeiro lugar, serão destacadas as decisões que envolvem a doutrina

das autoridades. Tanto a Escritura como a Tradição estão em pé de igualdade. Está

escrito no primeiro Tomo do Concílio de Trento que [...] seguindo o exemplo dos Padres Ortodoxos, com igual afeto de piedade venera, e recebe todos os Livros tanto do antigo, como do novo Testamento, tendo Deus o único Autor de ambos os Testamentos; e também as Tradições, que pertencem a Fé, como aos costumes; como ditadas pela boca de Cristo, ou pelo Espírito Santo, [...] conservadas na Igreja Católica, as recebe, e venera com igual piedade, afeto, e reverência.399

Negando o princípio das Escrituras e não definindo o que era “tradição”, o

Concílio de Trento dotou o papado de mais poder, pois era o Papa quem definia o

que era “tradição”.400 Além disto, a tradução bíblica que passou a ser a única

autorizada foi a Vulgata401. Desta forma, se rejeitava o texto do Novo Testamento de

Erasmo, utilizado pelos reformadores e que levava em consideração a alta crítica.

Assim, o Papa cumpria seus propósitos dogmáticos.402 Segue trecho do concílio em

que esta definição está explícita: [...] o mesmo sacro-santo Concílio, considerando poder resultar não pequena utilizada à Igreja de Deus, de se manifestar qual entre todas as edições, que ocorrem os livros sagrados, se deve por autêntica, determina e declara que esta mesma antiga e vulgata edição, que pelo uso de tantos séculos foi aprovada na Igreja, nas lições públicas disputas, pregações, e exposições, seja aceita por autêntica [...] que ninguém com pretexto algum se atreva ou intente em rejeitá-la.403

Por fim, “quando prevalece o princípio bíblico, pergunta-se: quem interpreta

a Bíblia? A resposta, sem ambiguidades, de Trento era esta: a Santa Mãe Igreja

interpreta a Bíblia”404. A seguir trecho do Tomo I do Concílio de Trento acerca deste

assunto: [...] compete a Santa Mãe Igreja, a quem pertence julgar o verdadeiro sentido e interpretação das Escrituras; nem se atreva a interpretar a mesma Escritura contra o unânime consentimento dos Padres; [...] Os que a isso contrariarem, serão [...] declarados, e castigados com as penas estabelecidas em direito.405

O Papa tinha em suas mãos a decisão final. Não havia caminho para

ataques críticos ao papado, não podia ser deposto e se colocava em posição acima

399 CONCÍLIO DE TRENTO. O SACROSANTO E ECUMENICO CONCILIO DE TRENTO: EM LATIM, E PORTUGUEZ, TOMO I. Lisboa, M. DCC. LXXXI, p. 55. 400 TILLICH, Paul, 2015, p. 213. 401 CONCÍLIO DE TRENTO, TOMO I, p. 57. 402 TILLICH, Paul, 2015, p. 213. 403 CONCÍLIO DE TRENTO, TOMO I, p. 59. 404 TILLICH, Paul, 2015, p. 213-214. 405 CONCÍLIO DE TRENTO, TOMO I, p. 59;61.

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de qualquer tipo de censura, mesmo que a Bíblia. “Só ele possuía o poder da

decisão final na interpretação do texto sagrado.”406

3.2. Trento: doutrina da justificação pela fé

A segunda decisão que será destacada está relacionada a doutrina da

justificação pela fé. Se trata de um tema pelo qual a igreja permanece ou cai. Ficou

estabelecido que para o perdão dos pecados existe a necessidade de outros

elementos que não somente a graça de Deus. O concílio destacou que o homem,

por conta de uma graça prévia (graça preveniente407), tem a possibilidade de

cooperar com Deus. Após a recepção humana da graça preveniente, o homem pode

aceitar ou não receber a justificação graciosa de Deus, sendo necessária, portanto,

a cooperação humana para com Deus. Assim, fé somente não é suficiente e existe a

possibilidade de perder a justificação por conta de algum pecado mortal. Fé para

igreja romana era compreendida de acordo com sua antiga tradição, que a definia

como ato intelectual. Para os reformadores fé era apenas o ato de aceitação da

justificação, que não poderia ser perdida se houver de fato a justificação.408 A seguir

o trecho do documento de Trento: [...] o princípio da justificação nos adultos se deduz da graça de Deus por Jesus Cristo, preveniente; a saber, da sua vocação, pela qual, não havendo neles merecimento algum são chamados: para aqueles que pelos pecados estavam apartados de Deus, pelo sua graça excitante e ajudante se disponham para se converter para sua própria justificação, assentindo e cooperando (1) livremente com [...] esta graça.409

Paul Tillich denuncia aqui um mal-entendido em relação ao sola fide. Tanto

protestantes como católicos compreenderam que a fé significa um ato intelectual.

“Mas sola fide significa que no momento do perdão de nossos pecados não

podemos fazer outra coisa a não ser receber o perdão. Qualquer outra coisa

destruiria a atividade de Deus com sua graça exclusiva.”410 Uma vez que a posição

dos reformadores não foi entendida, de que a graça só poderia ser recebida pela fé,

a divisão da igreja foi inevitável. De um lado estava a doutrina da Reforma, em que o

ato de se voltar para Deus e receber sua graça implica apenas em Deus dar e o

406 TILLICH, Paul, 2015, p. 214. 407 A doutrina da graça preveniente será motivo de disputa entre os próprios protestantes e será abordada neste mesmo capítulo. 408 TILLICH, Paul, 2015, p. 215-216. 409 CONCÍLIO DE TRENTO, TOMO I, p. 101-103 – grifo meu. 410 TILLICH, Paul, 2015, p. 216.

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homem não fazer coisa alguma. Do outro lado a doutrina católica, em que o homem

deve fazer algo para cooperar com a graça divina, pois a fé é reconhecimento

intelectual que pode existir ou não.411 O que Tillich destaca é de muita relevância

para esta pesquisa, pois a falta de compreensão e de lugar para a experiência de

Deus, resultando na exclusividade de uma compreensão de fé como assentimento

intelectual, produz a incapacidade dialogal entre grupos distintos no cristianismo,

como o exemplo aqui citado. Sobram mal-entendidos e permanece, portanto,

divergências irreconciliáveis. Neste mesmo espírito que a escolástica protestante

será constituída.

Existe uma parte do documento de Trento que demonstra de forma clara o

ambiente apologético e bélico entre o catolicismo e o protestantismo da época. Na

Sessão VI é tratado exclusivamente o tema da justificação. São feitas várias

afirmações ressaltando a doutrina católica em oposição as ideias protestantes,

sendo que cada sentença se inicia com “se alguém disser...” e termina com “... seja

anátema” (ou “excomungado”). “Estes cânones católicos nunca foram revogados

pela Igreja católica.”412 Abaixo seguem alguns exemplos destas sentenças presentes

no documento de Trento: Se alguém disser, que o ímpio se justifica somente com [...] a Fé; entendendo, que nada mais se requer que coopere para conseguir a graça da justificação; e que não é necessário por parte alguma, que ele se disponha, e prepare com o movimento da sua vontade: seja excomungado.413

Se alguém disser: que [...] a Fé justificante não é outra coisa, senão uma confiança na Divina Misericórdia, que perdoa os pecados por amor de Cristo; ou que só esta confiança nos justifica: seja excomungado.414

Ainda sobre a doutrina da justificação, Caldas faz um destaque importante e que

colabora com alguns sintomas do CRD. Na ótica católica, dentro do contexto tridentino, a

visão protestante que dava ênfase à certeza da salvação não era bem vista, “a tal ponto que

o capítulo 9 do Decreto da Justificação tem o título ‘Contra a vã confiança dos hereges’”415.

Caldas cita Alister McGrath para elucidar este ponto: A tese do Concílio de Trento parece ser a de que os reformadores davam a impressão de estar fazendo da confiança ou da ousadia humanas o fundamento da justificação, de forma que a justificação baseava-se na falível convicção humana, e não na graça de Deus. Entretanto, a percepção que os reformadores tinham de si mesmos era a de alguém que ressaltava o fato de que a justificação fundamentava-se nas promessas de Deus;

411 Ibidem, loc. cit. 412 VANCE, Laurence M.. O Outro Lado do Calvinismo. São Paulo: Editora Reflexão, 2017, p. 81. 413 CONCÍLIO DE TRENTO, TOMO I, p. 143. 414 Ibidem, p. 145. 415 GOMES, Edgar da Silva; SOUZA, Ney de (Orgs), 2018, p. 83.

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deixar de confiar com ousadia nessas promessas era o mesmo que questionar o caráter de Deus.416

Importante se atentar ao fato de que, embora os reformadores tivessem a intenção

apenas de enfatizar a as “promessas de Deus”, como McGrath destaca, após Trento é

construído um tipo de pensamento que resultará nos sintomas do CRD. A saber, a

necessidade da certeza da salvação e o orgulho intelectual. Desde já é preciso ter claro que

as ênfases mudam no protestantismo dependendo do período analisado. O contexto do séc.

XVI é diferente do séc. XVII, como veremos mais adiante.

3.3. Trento: doutrina dos sacramentos

Em terceiro lugar, este importante concílio deliberou acerca da questão dos

sacramentos e não teve nenhuma atitude conciliadora, uma vez que dizia respeito a

essência da igreja romana. “Assim declara o Concílio de Trento: ‘Pelos sacramentos

começa toda a verdadeira justiça, e se já começou, é aumentada, e se foi perdida é

restituída’.” 417 Não importa o estado subjetivo de dentro do religioso, pois os

sacramentos são eficazes em sua operação para aqueles que não colocam

resistência à sua eficácia.418 A questão acerca do relacionamento pessoal com Deus

que Lutero proclamava está colidindo diretamente com esta decisão conciliar, pois

para os reformadores não se trata apenas de resistir ou não a eficácia dos

sacramentos, mas de um retorno a Deus.419 Para a Igreja Católica não há salvação

sem os sacramentos, pois neles existem poderes salvadores e não só fortalecedores

como no protestantismo.420 Abaixo seguem alguns trechos do texto de Trento sobre

este assunto, utilizando a mesma fórmula dos trechos sobre a justificação pela fé: Se alguém, disse, [...] que os Sacramentos da Lei nova não foram todos instituídos por nosso Senhor Jesus Cristo, ou que não mais, ou menos do que sete: a saber, Batismo, Confirmação, Eucaristia, Penitência, Extrema-Unção, Ordem e Matrimônio; ou que algum destes sete Sacramentos não é verdadeiro, e propriamente Sacramento; seja excomungado.421

Se alguém disser, que os Sacramentos da nova Lei não são necessários para a salvação, mas supérfluos; e que sem eles, nem o desejo deles, só pela Fé alcançarão os homens de Deus [...] a graça da Justificação [...]: seja excomungado.422

416 MCGRATH, Alister. Teologia sistemática, histórica e filosófica – uma introdução à teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p. 527-528. 417 TILLICH, Paul, 2015, p. 217. 418 Ibidem, loc. cit. 419 Ibidem, loc. cit. 420 Ibidem, loc. cit. 421 CONCÍLIO DE TRENTO, TOMO I, p. 173. 422 Ibidem, p. 175.

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Se alguém disser, que pelos mesmos Sacramentos da nova Lei se não confere graça ex opere operato; mas que a Fé da divina promessa somente basta para conferir graça: seja excomungado.423

Muitas outras decisões e detalhes no Concílio de Trento poderiam ser

destacadas aqui neste tópico. Porém, o objetivo fora atendido: atestar o ambiente

apologético e bélico entre catolicismo e o protestantismo que está se

desenvolvimento no séc. XVI e atestar que a identidade de cada grupo está sendo

modificada por todo este processo histórico. Comblin contribui quando afirma que “o

tempo do Concílio de Trento”, tanto no catolicismo como no protestantismo, “foi o da

ascensão social e cultural do clero: no fim do século XIX o clero é tudo na Igreja e o

leigo nada”424. Neste sentido de construção de uma identidade protestante – ou

ressignificação identitária pós Trento –, o caminho que se abre é de um “retorno à

palavra” que é “discursiva, lógica, professoral, letrada, de cultura escrita”425, o que

veremos de forma evidente na ortodoxia que está se formando.

Dentro do catolicismo, Justo González faz uma observação que merece

destaque. Ele afirmar que a Igreja Católica pós Trento não era mais como a igreja

medieval, mas um novo fenômeno, produto da reação contra o protestantismo.

Durante os próximos quatro séculos ela estaria impossibilitada de reconhecer que

existiam muitos elementos da reforma protestante cujas raízes estavam na tradição

cristã. Somente no século XX esta descoberta se dará no catolicismo, fato que este

historiador pontua como a mais importante.426 Caldas faz menção ao Vaticano II

como o concílio que recupera algumas ênfases de Lutero.427 Seria este um motivo

de alegria para o protestantismo? Sim e não. Depende de qual protestantismo. No

Calvinismo da Reta Doutrina, como atestado no capítulo primeiro, católicos

permanecem como inimigos.

4. A Escolástica Protestante

As buscas de causas para a racionalização da experiência de Deus chegam

neste momento na ortodoxia protestante, com especial atenção à ortodoxia

calvinista. As considerações que serão feitas sobre este período têm sua relevância

atestada até mesmo por teólogos ortodoxos como Martyn Lloyd-Jones, de tradição

423 Ibidem, p. 177. 424 COMBLIN, José. A Força da Palavra. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 192. 425 Ibidem, p. 196. 426 GONZÁLEZ, Justo, 1995, p. 200. 427 GOMES, Edgar da Silva; SOUZA, Ney de (Orgs), 2018, p. 86.

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calvinista. Ele, em seu livro sobre avivamento, dedica um capítulo inteiro para falar

sobre ortodoxia morta. Ele afirma que o maior obstáculo para um avivamento é uma

ortodoxia morta. Interessante notar que em sua fala ele se percebe surpreso por ter

de tratar deste obstáculo. Ele se diz “obrigado” a considerar a ortodoxia morta como

obstáculo ao avivamento e se percebe “apavorado” por pensar que possa existir

ortodoxia morta, mas sabe que se trata de uma verdade. Ele crê que “a história da

Igreja através dos séculos indica claramente que isso [ortodoxia morta], de todos os

perigos, é talvez o maior”.428

Esta pesquisa não tem o propósito de desconsiderar os aspectos positivos

da escolástica protestante, que tem grande valor para teologia protestante e cristã

como um todo. Neste sentido se concorda com Paul Tillich, que afirma que “a

ortodoxia protestante era construtiva”, que estes “teólogos ortodoxos trabalharam

objetiva e construtivamente, procurando apresentar a doutrina pura e completa de

Deus, do homem e do mundo”, e que eles não estavam influenciados pelo

fundamentalismo dos Estados Unidos. 429 Quando Tillich afirma que eles não

estavam influenciados pelo fundamentalismo norte americano, ele coloca a ortodoxia

protestante em seu devido contexto e localidade histórica. Dentro do seu contexto

ela será analisada aqui. Porém, é importante salientar que a preocupação e o

sentimento de Lloyd-Jones têm sua pertinência e ficará claro o quanto sua

preocupação como teólogo calvinista remonta, de fato, à história da Igreja,

especialmente neste período conturbado e bélico, em vários sentidos, em que a

ortodoxia protestante se forma.

Inicialmente, são necessárias algumas considerações gerais sobre a

ortodoxia protestante. Ela é fruto da geração seguinte aos reformadores, que não

levaram suas ideias com a mesma profundidade de sentido. Segundo Mackintosh: O impulso original delimita-se ao ser entendido; a paixão viva petrifica-se em códigos e credos; a revelação torna-se um lugar comum; e assim, a religião que se inicia com uma visão, termina, por fim, em ortodoxia.430

Muito embora os teólogos do século XVII tivessem a intenção de influenciar

o pensamento de sua época e proteger a verdade que entendiam como correta, a

real constatação é que após um momento de grande poder criador, como no caso

428 LLOYD-JONES, Martyn. Avivamento. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1993, p. 72. 429 TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE., 2010, p. 43-44. 430 MACKINTOSH, Hugh R., 2002, p. 18.

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da Reforma, existe um período de maior ênfase reflexiva.431 Em outras palavras,

após a efervescência religiosa inicial – reformadores – existe a queda do fervor

sociológico, e é aqui o local da gestão da experiência com o sagrado, da elaboração

da tradição e da burocratização432. Pode-se afirmar que existe em execução um

processo, de certa forma, natural.

4.1. Em direção ao século das Luzes (Aufklärung)

Entretanto, além deste aspecto natural mencionado acima, existe a

influência relacionada às correntes de pensamento do período em que o pós-

reforma está inserida. O mundo está caminanhando em direção ao século das Luzes

– Iluminismo –, século em que a ideia de Aufklärung (“esclarecimento”) estará

presente e se confrontará diretamente contra a fé (séc. XVIII). Sesboüé diz que este

período preconiza “o poder esclarecedor da razão humana, para encontrar as

verdades últimas sobre Deus, o mundo e o próprio ser humano.”433 McGrath, na

mesma linha de Sesboüé, acrescenta a perda da exclusividade dos teólogos,

afirmando que, no Iluminismo, existe uma “ênfase sobre a capacidade da razão

humana de compreender, por si só, o mundo a sua volta - inclusive quanto aos

aspectos deste mundo que seriam tradicionalmente reservados aos teólogos.”434

O que é decisivo na compreensão da ortodoxia protestante não é o

Iluminismo do séc. XVIII, mas o caminho percorrido até ele, o que direciona o

enfoque ao séc. XVII, conforme McGrath ratifica: Se a Reforma do século XVI havia desafiado a igreja a repensar suas práticas e a forma de expressão de suas crenças, o Iluminismo viu as próprias credenciais intelectuais do cristianismo em si (e não alguma de suas formas específicas) enfrentar uma grande ameaça, em várias frentes. As origens dessa oposição remontam ao século XVII, com o surgimento do cartesianismo no continente europeu e a progressiva influência do deísmo na Inglaterra. A crescente ênfase sobre a necessidade de revelar as raízes racionais da religião teve consequências bastante negativas para o cristianismo, conforme provarão os acontecimentos futuros.435

431 Ibidem, loc. cit. 432 MENDONÇA, Antônio Gouvêa. A experiência religiosa e a institucionalização da religião. In: Revista de estudos avançados. pgs. 29-46, 2004, p. 31. 433 SESBOÜÉ, Bernard. Tomo 4 - A palavra da salvação. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 165. 434 MCGRATH, Alister. Teologia sistemática, histórica e filosófica. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p. 124. 435 Ibidem, p. 126 – grifo meu.

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Pensando neste caminho, não é possível deixar de lado alguns aspectos da

ortodoxia protestante que encontrarão no Iluminismo seu “calcanhar de Aquiles”.

Estes aspectos ressaltam a ênfase na razão da ortodoxia protestante, especialmente

na ortodoxia reformada, calvinista, conforme destaca McGrath.436

4.1.1. Aristotelismo

Em decorrência da grande ênfase nas doutrinas e, principalmente, na tarefa

de se posicionar defendendo suas doutrinas diante outros grupos religiosos

(luteranos e católicos), os teólogos reformados passaram a enfatizar a questão do

método para produção de uma teologia ordenada, sistemática e com dedução

coerente de ideias. O grande aliado desta ortodoxia era o aristotelismo, muito

criticado por Lutero. Abaixo, seguem citações de algumas das 97 teses sobre a

teologia escolástica de Lutero, em que o reformador explicitamente se mostra

contrário a Aristóteles e critica uma teologia “silogista”: 41. Praticamente toda a ética de Aristóteles é péssima e inimiga da graça. Em oposição aos escolásticos.

42. É um erro sustentar que a afirmação de Aristóteles em relação à felicidade não contradiga a doutrina católica. Em oposição aos éticos.

43. É um erro afirmar que sem Aristóteles ninguém se torna teólogo. Em oposição à opinião popular.

[...]

49. Se a forma de raciocinar das conclusões lógicas [silogismos] pode ser sustentada em questões divinas, então o artigo da Trindade é provado e não crido.

50. Em suma: Aristóteles em seu todo está para a teologia assim como a escuridão está para luz. Em oposição aos escolásticos.437

McGrath destaca a preocupação dos calvinistas deste período e a motivação

de recorrer a Aristóteles: A demonstração de coerência e de consistência internas do calvinismo havia se tornado cada vez mais importante. Em consequência disso, muitos escritores calvinistas recorreram a Aristóteles, na esperança de que os estudos sobre método desenvolvidos por esse filósofo lhes oferecessem ideias para apoiar sua teologia sobre um alicerce racional mais sólido.438

Algumas características desta nova abordagem teológica merecem ser

destacadas. Em primeiro lugar, a razão assume papel central no estudo e na

436 Ibidem, p. 112. 437 LUTERO, Martinho, 2017, p. 33-34. 438 MCGRATH, Alister, 2010, p. 112-113.

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apologética da teologia cristã. Em segundo lugar, se trata de uma teologia que é

resultado de um “sistema logicamente coerente e racionalmente sustentável,

derivado de deduções silogísticas, que por sua vez baseavam-se em axiomas

determinados”. Terceiro, método aristotélico, em que os teólogos podiam muito bem

serem enquadrados como “voltados ao estudo da filosofia do que da Bíblia”. Por fim,

a quarta característica se refere a ênfase em questões teológicas metafísicas e

especulativas, sobretudo a doutrina da predestinação.439

Em relação a última característica, cabe um questionamento já abordado

neste trabalho: esta ênfase às questões metafísicas, como a predestinação, somado

ao fato do grande acento racional e pretensão de convencimento da verdade

absoluta, não seria um fator decisivo para o grande questionamento dos pensadores

seculares? Outra questão: este tipo de ênfase não distancia o cristão do presente,

local da experiência de Deus, local de voz profética, local de manifestação do Reino

de Deus? Certamente estamos diante de uma causa, neste caso teológica, da

racionalização da experiência de Deus.

4.1.2. Racionalismo

Na introdução do famoso livro de René Descartes (1596-1650) Discurso do

método, Denis Lerrer Rosenfield escreve acerca das pretensões de Descartes,

especificamente na obra Filosofia Primeira, de aprofundar suas provas sobre a

existência de Deus, de forma que a ideia do ser divino possa ser explorada

racionalmente. 440 Ele ainda diz que “Aquilo que consideramos ‘racionalismo’

encontra neste filósofo uma de suas grandes expressões.”441 Autor da célebre frase

“penso, logo existo”442, Descartes tem seu pensamento associado ao que se chama

racionalismo.

Embora não seja explicita uma conexão entre a ortodoxia protestante e o

pensamento racionalista, parece existirem aproximações pertinentes e que precisam

ser descritas. O próprio Descartes viveu em um período em que a ortodoxia

protestante se localiza e se desenvolve. É provável que o pensamento racionalista

tenha sido fonte de influência desta forma de fazer teologia na ortodoxia.

439 Ibidem, p. 113. 440 DESCARTES, René. O discurso do método. Edição Kindle: Publicado em 20 de junho de 2011, pos. 98. 441 DESCARTES, René, 2011, pos. 131. 442 DESCARTES, René, 2011, pos. 674.

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Cabe inicialmente a realização de algumas considerações acerca do terno

“racionalismo”. McGrath, buscando cautela na definição, evita a confusa aplicação

indiscriminada e imprecisa desta terminologia ao que ele chama de “atmosfera geral

de otimismo fundada na crença do progresso científico e social”. Abaixo, McGrath

traz o que considera a descrição correta do pensamento racionalista: O racionalismo, em seu sentido apropriado, talvez seja mais bem definido como a doutrina segundo a qual o mundo exterior pode ser conhecido exclusivamente por meio da razão. Essa doutrina, típica de escritores anteriores como Descartes, Leibniz, Espinosa e Wolff, foi submetida à intensa crítica, no final do século XVIII, à medida que se alastrava a influência da epistemologia empiricista de John Locke.443

Acerca de Descartes, McGrath pontua o argumento acerca da existência de

Deus e é possível perceber a pretensão de se provar a existência de Deus com

esforços puramente racionais: O argumento utilizado por Descartes em defesa da existência de Deus, datado de 1642, é construído da seguinte forma: Deus é um “ser extraordinariamente perfeito”. Como a existência é um aperfeiçoamento, conclui-se que Deus deve possuir a perfeição da existência, pois, do contrário, não seria perfeito. Descartes encerra seu argumento com dois exemplos (triângulos e montanhas). Pensar em Deus é pensar sobre a existência de Deus, da mesma forma que pensar em um triângulo é pensar no fato de que seus três ângulos são equivalentes a dois ângulos retos, ou ainda pensar em uma montanha é pensar em um vale.444

Duas características do pensamento de Descartes se sobressaem na

construção de seu argumento. A primeira é a ausência da experiência dos sentidos

humanos. A segunda é a ausência à alusão de que a verdade se origine de uma

revelação sobrenatural. Estas características produzem impacto na religião, que,

tradicionalmente, se utilizam de uma revelação especial. Ou seja, a pretensão de

Descartes de, somente a partir de processos estritamente racionais, deduzir uma

série de “conceitos racionais universais”, capazes de, inclusive, defender a

existência de Deus, parece ter aproximações com a forma da ortodoxia protestante

enfatizar a razão em seu processo de elaboração teológica.445 Parece razoável

afirmar que, ao fazer uso deste “espírito racionalista”, a ortodoxia acabou inserindo

dentro de sua forma de labor teológico um “cavalo de Tróia” que iria lhe prejudicar

futuramente, uma vez que o Iluminismo do séc. XVIII atacaria diretamente a religião.

McGrath escreve exatamente sobre este “cavalo de Tróia”: Portanto, o racionalismo iluminista sustentava a soberania da razão, defendendo que a razão humana era capaz de demonstrar tudo o que fosse

443 MCGRATH, Alister, 2010, p. 125 – grifo meu. 444 Ibidem, p. 274. 445 Ibidem, p. 275.

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necessário saber sobre a religião, sem que se precisasse recorrer à ideia de “revelação”. Além disso, a razão possuía uma capacidade de avaliar as verdades religiosas, como as do cristianismo, e de descartar vastos trechos de suas ideias como algo “irracional”. Não importa o quão influentes essas ideias tivessem sido anteriormente, nos séculos XVIII e XIX, elas agora eram encaradas com desconfiança.446

Em outras palavras, a ortodoxia se apropriou do racionalismo iluminista e o

racionalismo iluminista acusou a ortodoxia de produzir ideias irracionais. Cabe

ressaltar a diferença entre “razão” e “racionalismo”. Percebe-se no texto de McGrath

que a atitude da ortodoxia em enfatizar demasiadamente a razão e não deixar claro

seus pressupostos relacionados a revelação divina é o ponto central do argumento

que faz com que a ortodoxia perca a credibilidade de sua teologia. Neste ponto, precisamos enfatizar a diferença que existe entre “razão” e “racionalismo”, pois é possível que, para alguns leitores, pareçam conceitos idênticos. A razão é a capacidade humana básica de pensar, baseando-se em argumentos e evidências. E um conceito teologicamente neutro que não representa ameaça alguma à fé – a menos que seja considerado como a única fonte de conhecimento sobre Deus. Nesse caso, portanto, a razão se transforma em racionalismo, que representa a dependência exclusiva e única da razão humana e a recusa em aceitar que se atribua algum crédito à revelação divina.447

Finalizando este tópico, é de considerável valor destacar os principais

fatores que explicam a aproximação dos pensamentos iluministas encontrarem

reciprocidade na teologia protestante, muito mais que na católica. Um primeiro fator

diz respeito as fragilidades das instituições eclesiástica protestantes. Devido a não

centralização do ensino teológico no movimento protestante, houve espaço para

uma liberdade acadêmica que estimulou a liberdade criativa na teologia e uma

originalidade.448

A natureza do próprio protestantismo é o segundo fator. A predisposição protestante de se opor à autoridade religiosa, assim como o compromisso com o princípio ecclesia reformata, ecclesia semper reformanda ("a igreja reformada deve ser sempre a igreja que está constantemente se reformando") encorajaram um espírito de questionamento crítico em relação ao dogma cristão. Essa atitude repercutiu nos ideais do Iluminismo, levando muitos escritores protestantes a se alinhar com esse movimento e a demonstrar sua disposição em acolher seus métodos e perspectivas.449

Por fim, se destaca a relação entre protestantismo e as universidades. Este

local de labor teológico acabou por dar proeminência para a expressão teológica no

âmbito das ideais. O intelectualismo, que é um evidente traço do Calvinismo da Reta 446 Ibidem, p. 224. 447 Ibidem, p. 223. 448 Ibidem, p. 126. 449 Ibidem, p. 126-127.

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Doutrina, se vê presente nas universidades protestantes, e havia uma tendência dos

estudantes se alinharem com o Iluminismo.450

4.2. Fetiche pela verdade absoluta

A ortodoxia tinha pretensões que iam além do processo reflexivo pós

Reforma. Ela tinha a pretensão de conceder valor absoluto às fórmulas dogmáticas, de considerar que a fé e o assentimento de um credo são uma e a mesma coisa, de insistir nos termos da confissão ou do catecismo, sem ir sempre, mais além do som das palavras, à verdade [...].451

O ambiente da escolástica se assemelha a pesquisa realizada em uma

igreja presbiteriana histórica, em que grande parte dos fieis ao serem questionados

sobre o quanto conheciam acerca de Deus afirmaram “quase tudo”452. Trata-se de

um conhecimento tal que desvenda o mistério sobre o qual o sagrado deve se

encontrar para ser Deus. No caso da escolástica, aquele “encanto” ou sensibilidade

por parte dos teólogos tinha terminado em atribuir a si mesmos um conhecimento

próximo ao da onisciência. 453 Não existiam questões sem resposta, não havia

espaço para dúvida. Se trata de um período marcado pela polêmica doutrinal, pelo

estancamento teológico e por uma atividade apologética com consequências

péssimas para o sentido da verdade. Como se não bastasse o nível que o

cristianismo chegara (aprofundaremos a situação do cristianismo nos próximos

tópicos), a influência da filosofia aristotélica, já citada e rejeitada como heresia por

Lutero, encontrou lugar para ditar conclusões contrárias as verdades bíblicas,

tornando cada vez mais os homens cegos ao “espírito do Evangelho”454. A certeza

da fé apostólica tornara-se o espírito da lei. Não havia mistério. O cristianismo

tornara-se a confirmação de certas verdades. Ou seja, “o que às vezes se havia

pensado, mas nunca havia sido expresso tão bem”455.

4.3. Princípio formal e material

450 Ibidem, p. 127. 451 MACKINTOSH, 2002, p. 19. 452 ANÉAS, André, 2016, p. 70. 453 MACKINTOSH, 2002, p. 19. 454 Ibidem, p. 20. 455 Ibidem, p. 21.

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Além desta pretensão pela verdade absoluta, expressa de forma objetiva e

clara, Tillich destaca que existem dois princípios teológicos que estão presentes na

ortodoxia protestante e que contribuem para esta pretensão de saber absoluto:

princípio formal e material. O princípio formal é a Bíblia e o material a doutrina da

justificação. Segundo este teólogo, Lutero compreendia que estes dois princípios

eram interdependentes, de forma que As passagens que tratam de Cristo, na Bíblia, são as que apresentam a mensagem da justificação, e é isso que é autêntico. Por outro lado, essa doutrina é tomada da Bíblia e, portanto, dela depende. Lutero preservava essa interdependência entre Bíblia e justificação, de modo livre, criativo e vivo.456

No caso da ortodoxia protestante, estes dois princípios não se misturam, o

que fez da Bíblia o verdadeiro princípio no domínio da autoridade. O Espírito Santo

passou a testemunhar não que “somos filhos de Deus”, no sentido paulino (Rm

8:16), mas que “as doutrinas das Santas Escrituras são verdadeiras e inspiradas por

ele”457. Tillich conclui seu raciocínio, enfatizando a questão da experiência de Deus

como elemento que perde valor substancial na atitude ortodoxa: Em lugar da imediatez do Espírito nas relações entre Deus e seres humanos, o Espírito dá testemunho da autenticidade da Bíblia enquanto documento do Espírito divino. A diferença, entre as duas atitudes, é que se o Espírito nos diz que somos filhos de Deus, temos uma experiência imediata, e não há lei nesta experiência. Mas se o Espírito dá testemunho de que a Bíblia contém doutrinas verdadeiras, a coisa toda deixa de fazer parte dessa relação entre pessoas e se transforma num relacionamento objetivo e legalista. Foi exatamente o que fez a ortodoxia.458

Alister McGrath, o já citado professor de Teologia Histórica na Universidade

de Oxford, autor do livro A Revolução Protestante, contribui com o argumento de

Tillich, afirmando as dificuldades que o protestantismo tem devido a sua relação com

o texto sagrado. Ele pontua, por exemplo, a diversidade de interpretações,

especialmente entre luteranos e calvinistas, e explica como, ironicamente, a Bíblia

deixa de ser uma influência devido as rígidas confissões doutrinárias criadas no

período que ele chama de “segunda reforma”. Ele afirma: Talvez mais importante, em vista do papel central da Bíblia para o protestantismo, essa nova tendência representava que a Bíblia tendia a ser lida através do prisma da “confissão” – declarações de fé que, com frequência, influenciam, e às vezes determinam, como certas passagens da Bíblia têm de ser interpretadas. Essa mudança foi um fator que contribuiu para o aparecimento da “prova texto”: citação isolada e fora de contexto de versículos bíblicos para corroborar posições de confissão, com frequência,

456 TILLICH, Paul, 2015, p. 275. 457 Ibidem, p. 275-276. 458 Ibidem, p. 276 – grifo meu.

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controversas. Paradoxalmente, esse desenvolvimento, na verdade, diminuiu a influência da Bíblia no protestantismo pelo fato de que as declarações bíblicas eram acomodadas a estruturas doutrinais existentes, em vez de determina-las e até mesmo refutá-las.459

Portanto, o princípio formal, a Bíblia, é o alicerce em que se constrói o

sistema ortodoxo, que é fixo e rígido.460 Todos os problemas de interpretação bíblica

são submetidos aos instrumentos de autoridade, a saber, as confissões.461

4.4. Teologia natural e teologia revelada

Outro elemento que necessita ser destacado na ortodoxia protestante é a

imagem de seu universo de dois andares, em que no andar de baixo está a “teologia

natural” e no de cima a “teologia revelada”. Segundo Tillich, sempre houve

dificuldade para os teólogos definirem o que deveria ficar no andar de baixo e no de

cima.462 Conforme mencionado, o mundo está indo em direção ao Iluminismo, local

em que a razão iria imperar. A razão predomina no andar de baixo desta equação,

enquanto doutrinas como a trindade e encarnação no andar de cima, local da

“graça”.

Pode-se afirmar que o equilíbrio entre “graça” e “natureza”, equação que

Francis Schaeffer (1912-1984), teólogo calvinista, trabalha em sua famosa obra A

Morte da Razão, e cujo equilíbrio ele atribui à Reforma Protestante, tem relação com

o equilíbrio de Lutero, que harmoniza fé e a razão, compreendendo a situação

natural do homem (andar de baixo) e a necessidade da graça (andar de cima), da

revelação de Deus.463 Lutero, sendo sempre um contraponto com as correntes

filosóficas de sua época e bastante influenciado pelos místicos alemães, conforme

Otto expõe no capítulo sobre O Numinoso em Lutero464, tem a intenção de que o

elemento racional da dogmática cristã seja construída na base dos elementos

irracionais do seu objeto, Deus, sustentando uma das marcas da Reforma: maior

valor em relação ao elemento espiritual do que em doutrinas fixas. Deve-se destacar

que ao discorrer sobre as causas do desequilíbrio entre “graça” e “natureza”

459 MCGRATH, Alister. A Revolução Protestante – Uma provocante história do protestantismo contada desde o século 16 até os dias de hoje. Brasília: Editora Palavra, 2012, p. 106. 460 TILLICH, Paul, 2010, p. 47. 461 MCGRATH, Alister, 2012, p. 233. 462 TILLICH, Paul, 2010, p. 48. 463 SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão. São Paulo: ABU Editora; Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014, passim. 464 OTTO, Rudolf, 2011, passim.

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Schaeffer, estranhamente, não denuncia a ortodoxia protestante como agente que

produziu o desequilíbrio na equação, produzindo vários movimentos dentro do

protestantismo que buscaram corrigir esta deficiência, como o pietismo 465 e o

liberalismo466. Conforme explicado neste capítulo, a escolástica protestante é um

agente de desequilíbrio entre fé e razão, pois não leva em consideração a

profundidade relacionada aos aspectos irracionais do sagrado.

Tillich conclui que “havia algo na própria estrutura da ortodoxia que

possibilitava a revolução do racionalismo”, ou seja, o andar de baixo se revoltou

contra o andar de cima. Se trata do “cavalo de Tróia” mencionado no tópico sobre

“racionalismo”. Como afirmou Comblin: Nesse sentido [em que o clero se viu tão identificado com sua própria “ciência”, que se tratava de conhecimento burocrático, e tendo perdido a audiência do povo, conforme Spener irá denunciar no clássico pietista Pia Desideria467] a evolução do tempo da Reforma já preparou o que devia suceder na modernidade. Durante o tempo da Reforma o clero pensou poder guardar o controle do racionalismo e do discurso intelectual. Foi justamente o que a modernidade lhe tirou. Então uma vez que perdeu o que fazia o seu atributo nos séculos anteriores, o controle da intelectualidade, o clero sentiu-se perdido.468

A caixa de pandora da modernidade fora aberta por Lutero. Mas a ortodoxia

protestante não deu conta de administrá-la. Por quê? Certamente os motivos acima

apresentados colaboram para uma justificativa. Entretanto, existem outros

elementos que precisam ser aprofundados, como se vê a seguir.

4.5. Sangue, política e ceticismo religioso

Compreender o contexto em que a ortodoxia se forma é decisivo para se ter

a leitura correta de quem era esta ortodoxia e quais são as forças que a movem e

que, em certa medida, justificam seus passos. A história não é romântica. Ela está

imersa em sangue humano e em jogos políticos de poder. A Contra-Reforma 465 TILLICH, Paul, 2010, p. 48-50. 466 ANÉAS, André, 2016, passim. 467 Conforme relatado no capítulo de apresentação de Pia Desideria, maior obra do Pietismo Protestante, a situação do protestantismo pós Guerra dos Trinta Anos era muito confusa. Os protestantes estavam imersos em imensos e eternos debates doutrinários tanto com católicos como entre si – luteranos e calvinistas. A polêmica em torno dessas questões ocupava lugar central na educação religiosa (SPENER, Philipp Jacob, Pia desideria. São Bernardo: Impressão Metodista, 1985, p. 8). Pinheiro e Santos comentam que a fé em determinados círculos se tornara uma questão de “assentimento intelectual” (2013, p. 278). O povo frequentava os cultos com regularidade. Entretanto, existia a obrigação da lei e a ideia de que o ato de ir aos cultos dava ao cristão crédito com Deus por tratar-se de uma boa obra. Além disto, o ato da ceia era realizado como um ato mecânico e os incompreensíveis sermões careciam da atenção dos fiéis que se distraiam e até dormiam (SPENER, Philipp Jacob, 1985, p. 8). 468 COMBLIN, José, 1986, p. 197.

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católica já tinha sinalizado que a multiplicidade de interpretações bíblica permitiria a

multiplicidade de posições, o que inviabilizaria qualquer ortodoxia de se impor (algo

evidente, diante da proliferação de igrejas reformadas na Europa).469 Entretanto, o

que estava em jogo não era simplesmente a preocupação com a verdade teológica

“pura” ou com o destino da Igreja de Cristo na terra. A tensão entre catolicismo e

protestantismo da metade do séc. XVI tem como pano de fundo uma Europa dividida

entre países apoiadores de Roma e países apoiadores da Reforma. Conforme

afirmar Robinson Cavalcanti, em Cristianismo e Política, “o “século anterior a

Reforma havia presenciado um aumento contínuo da consciência de nacionalidade e

fortalecimento da autoridade real”470. Portanto, o poder do papado já estava sendo

questionado e o poder dos reis, ao contrário, crescia, caracterizando uma mudança

da antiga ordem medieval.

Neste contexto político delicado, a Igreja Romana assume uma postura

polêmica para com os protestantes, que se tornam “o outro”, pois se trata de um

grupo “não igreja” homogêneo que é uma ameaça para a verdadeira igreja. Do outro

lado, alimentado de um sentimento de injustiça, sofrimento e ódio e dentro deste

contexto de tensão internacional, criou-se um “senso de identidade comum”, uma

vez que o protestantismo tinha também um inimigo em comum: Igreja Romana. A

utilização da força neste processo pela Igreja Católica, como no massacre de 30 mil

protestantes franceses em 1572, celebrada por Gregório VIII, e a perseguição

violenta de Maria Tudor, na Basileia, culminando na morte bárbara de três bispos

protestantes, produziram “uma reação de total repugnância e desgosto”, sendo que

antipapismo se espalhou por todas as regiões protestantes da Europa.471

A questão se estendia para além da tensão entre católicos e protestantes.

Entre os protestantes existiam tensões também. Os anabatistas, movimento radical

protestante, também se tornaram ameaças para luteranos e reformados, que se

viram obrigados a se definirem “segundo diversos ‘outros’ ou contra eles”472. Fato é

que dentro do círculo protestante existia uma necessidade de busca por identidade.

McGrath chega a firmar sobre o protestantismo: “era difícil acreditar que alguma

469 NETO, José R. Maia. Resenha do Livro de Richard H. Popkin, História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza. In: Manuscrito XXIII, No 1, 219-230, 2000, p. 221. 470 CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e Política. Viçosa: Ultimato: 2002, p. 125. 471 MCGRATH, Alister, 2012, p. 129-133. 472 MCGRATH, Alister, 2012, p. 133.

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ideologia em comum unia as facções” 473 . Pode-se afirmar que a identidade

protestante é formada baseada em seus inimigos, entre os quais o principal era a

Igreja Romana.

Alguns pontos merecem ser destacados, pois não se deseja aqui recontar

toda a história, apenas ressaltar os elementos de contexto histórico em que a

ortodoxia se desenvolve. Além do ambiente religioso bélico, é preciso ficar claro que

muitos dos líderes políticos que surgiram nesta Europa envolta a controvérsias

religiosas, no que se refere a fé, “não participavam do entusiasmo – tão pouco das

convicções – das gerações anteriores”474. Justo González cita um exemplo que

evidencia bem este tipo de atitude: Henrique IV (1589-1610), da França. Ele trocou

por diversas vezes de filiação religiosa, pois o que lhe interessava era reinar, se

mostrando flexível, de acordo com a conveniência, em matéria de religião. Na

Alemanha, que fora o principal palco da Guerra dos Trinta anos, príncipes e muitos

de seus conselheiros “utilizaram as diferenças religiosas como desculpa para

conseguir seus próprios propósitos políticos”475. Ou seja, definir claramente a religião

de cada local geográfico governado por algum rei ou imperador é algo

importantíssimo, pois tem relação direta com questões sócio-políticas.

Outro aspecto significativo é o papel das confissões doutrinárias neste

período. Elas assumem papel central em objetivo para além das questões religiosas,

sendo de grande utilidade em questões de Estado. Após o Concílio de Trento e a

expansão geográfica do calvinismo na Europa, existe um processo que entra em

ação chamado de “confessionalização” ou “segunda Reforma”, em que a Confissão

Doutrinária será utilizada como “critério de demarcação” entre as igrejas

protestantes (luteranas e calvinistas). Estas “igrejas estatais” são tidas por muitos

como o surgimento do primeiro Estado moderno absoluto, conforme explica

McGrath. 476 Neste mesmo tema, ele acrescenta algo acerca das diferenças

doutrinárias, que, até então, eram “matérias de indiferença”: A necessidade de distinguir a confissão das duas igrejas da época – luterana e calvinista – levou a busca por diferenças; essas diferenças, uma vez identificadas, recebiam ênfase que refletia a necessidade de demarcação social. O resultado disso, foi que diferenças em teologia, liturgia ou governo da igreja se tornaram explicitamente politizadas enquanto o novo Estado moderno tentava impor maior controle social em

473 MCGRATH, Alister, 2012, p. 134. 474 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 257. 475 Ibidem, loc. cit. 476 MCGRATH, Alister, 2012, p. 104-105.

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sua esfera de influência.477

Robinson Cavalcanti resume bem a relação da Reforma com a Europa deste

período: Não houve intenção política na ação dos reformadores. Sua motivação era basicamente espiritual e o seu propósito, uma alteração profunda na vida da Igreja e um retorno à pureza do cristianismo bíblico. Para o bem ou para o mal, há que se reconhecer, porém, que a expansão ou não-expansão do protestantismo nos diversos países europeus no século 16, deveu-se menos à ação evangelizadora do que à correlação de forças políticas e militares, que, inegavelmente, há uma forte correlação enorme entre as diversas esferas da vida social (no caso da religião e da política, muito mais ainda naquela época) e que as ideias e os fatos se dão concretamente em determinado momento histórico. Por este prisma, a Reforma foi a faceta religiosa de todo um processo sócio-econômico-político-cultural que resultou na superação da Idade-Média e no emergir da modernidade.478

A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) merece ser destacada. Ela é

resultado da Contra-Reforma, na qual estados católicos e estados protestantes

lutaram por questões políticas e religiosas.479 O que está em jogo nesta guerra era a

tradição religiosa de cada território. Milhões de pessoas são mortas e a Alemanha

teve sua população reduzida a um terço.480 A experiência de Deus está esquecida

para aqueles que lutam por poder. A presença da religião como pano de fundo

destes conflitos é o combustível de toda a argumentação no Iluminismo. Após e

durante todo este processo histórico a religião passará a ser questionada. No caso

da Guerra dos Trinta Anos (1618-48) temos o seguinte resultado: [...] conflito religioso internacional e uma Guerra Civil alemã, envolvendo regiões e nações luteranas, reformadas e católicas. A população de muitas regiões foi dizimada por essa guerra de atrito, e a economia delas levadas à beira do colapso total. Os resultados desse conflito inútil e inconclusivo foram escassos para todos os interessados nele.481

A Guerra dos Trinta Anos chega ao fim por meio da Paz de Westfália (1648),

muito embora, mesmo o protestantismo tendo alcançado o seu espaço político,

geográfico e religioso, as divergências internas, que estavam em estado de latência

devido a guerra, acharam espaço para suas manifestações.482 O povo, que já tinha

tido o suficiente, passou a ansiar por paz. Houve uma crescente ênfase na

tolerância, impaciência com disputas religiosas e o cenário estava preparado para a 477 MCGRATH, Alister, 2012, p. 105. 478 CAVALCANTI, Robinson, 2002, p. 127. 479 HURLBUT, Jesse Lyman. História da igreja cristã. 2. ed. São Paulo: Vida, 2007, p. 195-196. 480 CAIRNS, E. E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1990 apud SANTOS, Marcelo; PINHEIRO, Jorge. Manual de história da igreja e do pensamento cristão. 2. ed. São Paulo: Sinodal, 2013, p. 278. 481 MCGRATH, Alister, 2012, p. 145. 482 BOISSET, Jean. História do protestantismo. 6. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971, p. 76.

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fé se tornar algo privado, ao invés de política de Estado. McGrath conclui que nos

círculos intelectuais e políticos a religião passou a ser vista como “fonte de conflito

internacional e nacional, como um fardo, em vez de uma benção. A emergente

antipatia com o fanatismo religioso logo transmutou em antipatia pela própria

religião”.483

John Locke (1632-1704), filósofo inglês, transparece em sua Carta acerca

da Tolerância, escrita entre 1689 e 1692, a transição que a Europa estava vivendo e

o ambiente que as ortodoxias religiosas deixaram no velho continente no final do

séc. XVII. Ele diz: Entretanto, desde que os homens estão tão apreensivos acerca da verdadeira Igreja, eu apenas lhes perguntaria aqui, de passagem, se não seria mais conveniente à Igreja de Cristo fazer consistir as condições de sua comunidade naquilo, e unicamente naquilo, que o Espírito Santo declarou na Sagrada Escritura, em termos explícitos, ser necessário para a salvação; pergunto se isso não seria mais conveniente do que os homens imporem as suas próprias invenções e interpretações aos outros como se fossem de autoridade divina, estabelecendo por leis eclesiásticas como absolutamente necessário à confissão da cristandade o que nem a palavra de Deus menciona, ou, pelo menos, não ordena expressamente. Quem quer que exija para a comunidade eclesiástica o que Cristo não exige para a vida eterna deve, talvez, constituir sociedade que se adapte à sua própria opinião e vantagem; mas como se poderá denominar Igreja de Cristo a que se estabelece baseada em condições que não as d’Ele, excluindo-lhe da comunhão pessoas que Cristo um dia receberá no Reino dos Céus? Mas como não é este o lugar adequado para investigar os sinais da verdadeira Igreja, apenas lembrarei aos que pugnam com tanta seriedade a favor dos decretos de sua própria sociedade, gritando constantemente: “A Igreja! A Igreja!” com tanto barulho e, talvez, baseados no mesmo impulso como faziam os ourives de Éfeso por Diana (Atos, 19); repito, apenas os lembrarei que o Evangelho declara com frequência que o verdadeiros discípulos de Cristo devem esperar e sofrer perseguição; mas que a verdadeira igreja de Cristo deve perseguir e censurar a outrem, ou obrigá-lo através da força, da espada e do fogo a abraçar sua fé e doutrinas, não me recordo de ter lido isso em nenhuma parte do Novo Testamento.484

O conteúdo deste trecho fala por si só, mas serão ressaltados alguns pontos

essenciais da fala de Locke. Em primeiro lugar o fato de que existia um esgotamento

dos debates e discussões de uma série de questões teológicas secundárias no final

do séc. XVII. O que o filósofo levanta é relevante. Ora, por que não dar ênfase nos

elementos essenciais e “explícitos” da mensagem evangélica? Parece ser, de fato,

algo mais “conveniente” e benéfico para Igreja de Cristo – ou para aqueles que

testemunham e sinalizam a Igreja de Cristo na terra. Em segundo lugar, somado ao

destaque anterior, é realmente factível o ponto de Locke ao indagar uma Igreja de

483 MCGRATH, Alister, 2012, p. 145. 484 LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Disponível em: <https://bit.ly/2mfH2Vm> Acessado em: 29 de mai. 2018, p. 5-6 – grifo meu.

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Cristo que exclui de suas comunidades pessoas através de critérios humanos e

secundários. Por fim, é destacado o final deste trecho, em que Locke critica a

atuação dos “discípulos” da Igreja na Europa de sua época. No sermão do monte

Jesus enfatiza que “bem-aventurados os perseguidos” (Mt 5:10). Discípulo da Igreja

de Jesus que persegue parece contradizer o Novo Testamento na ótica de Locke.

Aqui se concorda com Locke. É evidente no Novo Testamento que cristão ou é

perseguido ou sabe dialogar com o próximo de opinião contrária – mantendo suas

próprias convicções. Cristão que persegue é uma aberração e desvirtuamento da

essência da mensagem do evangelho de Jesus Cristo revelado no Novo

Testamento. Jesus irá afirmar que seu reino não é deste mundo. Ele está certo. Seu

reino – o de Jesus – não colabora com derramamento de sangue, politicagem e com

ceticismo, que, dentro do contexto de Locke, parece ser mais do que justificado.

A teologia ortodoxa protestante, cuja ênfase estava na razão, despriorizou o

lado sobrenatural da fé, conforme McGrath afirma: Até a metade do século XVII, especialmente na Inglaterra e na Alemanha, cada vez mais defendia se a possibilidade de que a fé pudesse ser inteiramente deduzida por meio da razão. Era necessário demonstrar que cada aspecto da fé, cada ponto do cristianismo derivava da razão humana, sem que houvesse a menor dependência de uma revelação sobrenatural. As origens desse apelo exclusivo à razão podem ser encontradas no desejo de libertar-se de qualquer tipo de dependência de uma revelação sobrenatural, a fim de chegar ao conhecimento humano e preciso da verdade.485

Quem sabe, se a revelação sobrenatural tivesse seu local de importância,

bem como a experiência de Deus, o espírito do Novo Testamente estivesse mais

presente. Certamente, a história teria mais tolerância.

4.6. Puritanismo

Um movimento muito importante dentro da ortodoxia, que se desenvolveu na

Inglaterra e que tem conexão com a tradição calvinista, portanto próxima ao

Calvinismo da Reta Doutrina, é o Puritanismo. Na análise deste grupo, que

participou ativamente de momentos chave para compreensão da ortodoxia

protestante, especialmente a de linha reformada – calvinista –, a saber o Sínodo de

Dort e a Assembleia de Westminster, serão destacados seus pontos negativos, que

demonstram que o tipo ideal do CRD tem seu correspondente histórico. Obviamente,

485 MCGRATH, Alister, 2010, p. 274.

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deve ficar ratificada que a intenção não é a generalização e desconsideração dos

pontos positivos e das contribuições teológicas, as quais são notórias. Entretanto,

alguns aspectos que caracterizam o espírito deste movimento ficam bastante

evidentes quando as questões negativas são analisadas. Vale ressaltar que o

referencial teórico aqui utilizado é um autor de linha conservadora e, mesmo ele,

destaca o que será aqui pontuado.

Antes de analisar as questões específicas que se manifestaram dentro do

puritanismo, é importante entendermos quem são eles. Justo González faz uma

descrição: Esses protestantes não estavam organizados em um só grupo, o que torna difícil, portanto, descrevê-los com exatidão. O nome que se lhes deu foi o de “puritanos”, porque insistiam na necessidade de regressar à pura religião bíblica. Ainda que nem todos concordassem em alguns detalhes, no geral os puritanos punham-se a muitos elementos do culto tradicional que a Igreja Anglicana conservava. Entre esses elementos estavam o uso da cruz no culto, certas vestimentas sacerdotais e a questão da comunhão ser celebrada em uma mesa ou em um altar (a qual indicava diversas interpretações do sentido da comunhão e levava a longas discussões acerca de onde deveria ser colocada essa mesa ou altar).486

González complementa: Os puritanos também insistiam na necessidade de levar uma vida sóbria, segundo os mandamentos bíblicos. Sua posição a boa parte do culto a boa parte do culto oficial relacionava-se com a pompa que fazia parte dele, pois, para eles, todo luxo ou ostentação devia ser evitado. Muitos insistiam na necessidade de guardar o Dia do Senhor, dedicando-se exclusivamente aos exercícios religiosos e a à prática da caridade. (Uns poucos eram “sabatistas”, isto é, guardavam o sábado, ao passo que a imensa maioria guardava o domingo). Sem se oporem absolutamente ao uso do álcool, pois muitos deles bebiam com moderação, criticava-se a embriaguez de alguns ministros. O teatro, onde frequentemente havia piadas de duplo sentido, os esportes que se celebravam no Dia do Senhor e os costumes licenciosos em geral eram objeto especial de ataques.487

“Ainda que todos esses grupos não concordassem entre si, no geral

inspiravam-se em ideias de Calvino, Zwínglio e dos demais reformadores suíços.”488

Eles foram personagem fundamental na Guerra Civil inglesa, que retrata um conflito

importante dentro do próprio protestantismo em uma mesma nação – puritanos e

Igreja Anglicana.489 Da mesma forma que em outros países, como a França e a

Alemanha, as lutas produzidas sob pretextos confessionais levaram muitos a uma

conclusão: “as questões doutrinárias não mereciam tanto sangue nem tanta

486 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 277-278. 487 Ibidem, p. 278. 488 Ibidem, p. 278. 489 MCGRATH, Alister, 2012, p. 134.

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contenda”490. Por fim, a Comunidade Puritana, embora venha influenciar muitos com

autores proeminentes como João Bunyan, com a famosa obra O Peregrino491, já

citada em nota como elemento de constituição de visão de mundo do CRD, “morreu

graças à exaustão, à rivalidade interna, à desilusão e à falta de visão”. Eles

perderam toda a “simpatia popular por causa de sua rigidez religiosa, mais

notavelmente expressa na ordem que bania a ingestão de pudim de ameixa no dia

de Natal [!]”492.

Importante pontuar que este grupo se desenvolveu posteriormente na Nova

Inglaterra. Embora este desenvolvimento na América do Norte não seja objeto desta

pesquisa, vale, contudo, trazer luz a um fato. Da mesma forma que o pietismo foi

uma resposta a ortodoxia que se tornara “nominalista”, “árido racionalismo”, “estéril

formalismo”, redução da fé “à concordância com os credos”, conforme pensamento

de Zinzendorf, dando ênfase para um “encontro pessoal e transformador com Deus”,

encontrando aceitação na Inglaterra junto de John Wesley (1703-91), fundador do

movimento metodista na Igreja inglesa, o “Grande Despertar” na Nova Inglaterra fez

um movimento parecido. 493 “De 1735 a 1745, boa parte da Nova Inglaterra

mergulhou na renovação religiosa”, cujo principal nome foi Jonathan Edwards.494 Ele

era calvinista convicto495 e autor do livro A Genuína Experiência Espiritual, em que

busca dar respostas aos fenômenos religiosos que aconteceram em seu tempo,

respondendo a seguinte questão: “qual a natureza da verdadeira religião?” 496 .

McGrath atribui este movimento de avivamento e esta mudança de ênfase para a

experiência pessoal do indivíduo, à “capacidade do puritanismo contemporâneo de

forjar ligações entre teologia e experiência”497. Justo González, entretanto, destaca o

cisma entre o “grupo antigo”, que exigia uma adesão radical a confissão de

Westminster, e o “grupo novo”, em que a experiência da graça redentora era tida

como primordial.498 Independente desta discussão sobre o que favoreceu o Grande

Despertar – discussão pertinente –, certo é que, como será descrito em seguida, a

religiosidade puritana, que está imersa, ao menos em parte, na ortodoxia

490 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 293. 491 Ibidem, p. 293 492 MCGRATH, Alister, 2012, p. 144. 493 Ibidem, p. 148-149. 494 Ibidem, p. 158. 495 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 364. 496 EDWARDS, Jonathan. A Genuína Experiência Espiritual. São Paulo: PES, 1993, p. 13. 497 MCGRATH, Alister, 2012, p. 160. 498 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 363-364.

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protestante, cria ambiente e carência de uma reforma espiritual semelhante ao início

do séc. XVI com Lutero (posteriormente transformada no que foi apresentado até

aqui). Este tipo de movimento histórico no protestantismo se repete posteriormente,

por exemplo, no Segundo Grande Despertar, no séc. XIX499, e no Pentecostalismo,

no séc. XX (pouco destacado pelos autores aqui utilizados).

Os aspectos negativos do puritanismo serão destacados na sequência. Os

detalhes que Lelan Ryken fornece em seu livro sobre os puritanos serão pontuados

abaixo em uma tabela, em que, para cada assunto, será explicada a forma negativa

como o puritanismo, ou parte dele, se caracterizava. É importante ressaltar

novamente que o referencial teórico utilizado aqui é Leland Ryken, autor de Santos

no Mundo, que pretende expor em sua obra como realmente eram os puritanos.

Embora Ryken claramente tenha uma posição favorável ao movimento, ele destina

um capítulo para tratar das questões negativas. É evidente que o tipo ideal que é

analisado nesta pesquisa está presente no puritanismo.

Tabela2–Assuntosversusvisãopuritana

Assunto Visão Puritana

Recreação

Não valorizavam a recreação em si mesma, mas apenas

como uma forma de renovo para o corpo com o objetivo de

retorno ao trabalho. Ou seja, visão utilitária da recreação, o

que resultou na “ênfase exagerada no trabalho” 500 . Este

assunto estava em volto em um legalismo bem desenvolvido,

com todo um endosso teórico da recreação. Richard Baxter

chega a afirmar a existência de “dezoito regras para

determinar se uma dada recreação era ou não ‘lícita’”501 e

também igualou “passatempo” com “perda de tempo”,

rejeitando a palavra como “infame”502.

Muitas regras

Devido ao estilo de vida rígido e gosto para que tudo fosse

muito bem definido, quando levadas estas características ao

extremo, se manifestava um legalismo sufocante, sendo que,

499 MCGRATH, Alister, 2012, p, 165. 500 RYKEN, Lelan, 2016, pos. 6214. 501 Ibidem, pos. 6220. 502 Ibidem, pos. 6227.

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“no pior dos casos, os puritanos praticaram este vício com

entusiasmo”503. Na prática, “eles eram frequentemente tão

rígidos quanto as leis de Moisés haviam sido” (como citado

no capítulo primeiro), produzindo falsa culpa e banalização

acerca do pecado, uma vez que não se sabia mais o que

seria algo sério.504 As possibilidades, por exemplo, quando

era abordado os perigos de se cometer adultério com o

próprio cônjuge, e a teoria que endossava estas muitas

regras, faz o próprio Ryken reconhecer que se trata de

“estorvar o endosso puritano do sexo conjugal”505. Ele afirma:

“O puritano parecia nunca se cansar de criar listas de regras

às quais uma dada atividade deveria atender. Eles faziam

para o trabalho, para escolher um cônjuge, e para muitas

outras atividades.”506 É necessário citar novamente (já citado

no capítulo primeiro) os exemplos passíveis de condenação

acerca da violação do Dia do Senhor – domingo –, que

chegam a ser hilários: jovens namorados julgados por

sentarem sob uma macieira em um pomar; alguém

publicamente reprovado por escrever uma nota sobre

negócios comuns um pouco cedo na noite507; uma mulher

multada por torcer e estender roupas 508 ; e um soldado

multado por umedecer um pedaço de chapéu velho para

colocar em seu sapato, com a intenção de proteger o pé.509

Palavras demais

“Prolixidade, o vício de serem cansativos e verbosos, era

uma das características mais salientes dos puritanos” 510 .

Havia reclamações no Parlamento em Inglês em 1643 devido

aos longos discursos de puritanos, a necessidade de se

503 Ibidem, pos. 6241. 504 Ibidem, pos. 6245, 6253. 505 Ibidem, pos. 6269. 506 Ibidem, pos. 6269. 507 Ibidem, pos. 6247. 508 Ibidem, pos. 6245, 6249. 509 Ibidem, pos. 6249. 510 Ibidem, pos. 6274.

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debater tudo e em relação a infeliz prolixidade incorrigível

deste grupo.511

Demasiada

moralização

piedosa

Colocavam tudo na mira da teologia, em todo o tempo.512 Em

tudo que estava em pauta, pregadores e escritores puritanos,

mostram uma tendência em moralizar o assunto, sempre

acrescentando um lembrete “de que deve ser feito para a

glória de Deus e que deve ser ‘lícito’”513. No caso de trato

com os filhos existe exemplo de pai que raramente deixava

os filhos se aproximarem com exceção de existir algum

esforço e plano explícito de trazer alguma instrução útil.514 No

trato com a esposa existe exemplo de marido que não se

sentia confortável em expressar seu amor sem que fizesse as

devidas ressalvas sobre os limites, pois tudo “deve ser

subordinado à glória de Deus”515.

Machismo

Richard Baxter chegou a enumerar vinte desvantagens de

casamentos para ministros, sendo que uma delas estava

centralizada na “imbecilidade inata do sexo feminino”,

querendo se referir a “fraqueza”516. Ryken cita a carta de

Thomas Parker à sua irmã em que ele afirma que o fato dela

“imprimir um livro, contrariando o costume de seu sexo,

certamente cheira mal” 517 . Fato é que, para os padrões

modernos, “há demasiado chauvinismo masculino nos

escritos puritanos sobre estes assuntos”518.

Partidarismo

Embora saibamos que o partidarismo era característica de

todos os grupos da época, os puritanos são o marco da

polêmica. Eles tinham uma reação exagerada ao rejeitarem

aspectos que eram indiferentes, como associação do uso do

órgão com o ritual e doutrina católica, levando-os a

511 Ibidem, pos. 6290. 512 Ibidem, pos. 6370, 6216. 513 Ibidem, pos. 6328. 514 Ibidem, pos. 6316, 6322. 515 Ibidem, pos. 6310. 516 Ibidem, pos. 6344. 517 Ibidem, pos. 6351. 518 Ibidem, pos. 6369.

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abandonarem o uso do instrumento, e na Nova Inglaterra

deixaram de construir igrejas com torres de sino pelo suposto

vínculo “papista”519 . Para eles não havia meio termo: ou

aceitação total ou rejeição total. O partidarismo é a qualidade

menos atraente no puritanismo segundo o próprio Ryken,

pois os puritanos nunca fizeram pouca questão de tratar

pontos de vista religiosos diferentes com o devido respeito.

Existem exemplos de manifestações em que chamaram

ministro religioso de “tolo caduco” por fazer sinal da cruz e

utilizaram chapeis em culto na igreja para mostrar o seu

desrespeito pela igreja anglicana.520

Insensibilidade aos

sentimentos de

outros grupos

religiosos

Ryken afirma: “Esperamos que, uma vez que os grupos

puritanos era pessoas profundamente religiosas, teriam

respeitado os sentimentos de outros grupos e suas práticas

religiosas. Mas procuro em vão por muita evidência de que

isso tenha acontecido.”521 Para citarmos alguns exemplos do

desrespeito que tinham com os sentimentos dos outros

grupos religiosos, existem relatos de que em Westminster

Abbey soldados chegaram a vestir as sobrelizes dos coristas,

desdenhando do hábito canônico, correndo para cima e para

baixo na igreja e, além disto, relatos de soldados que

quebravam órgãos e submetiam coristas da igreja a trabalhos

servis ordinários, escarnecendo deles.522

Extremismo

Suas convicções doutrinárias chegavam a tal ponto que eram

tomados por uma falta completa de proporção das coisas.

Exemplo disto é a convicção puritana de que as crianças são

criaturas decaídas e que se acham carente da graça de Deus

para serem salvas. Existem escritos puritanos que

recomendam que os pais não sorriem para seus filhos,

evitando a “tristeza para com ele” e “para que não venha a

519 Ibidem, pos. 6369, 6275, 6380 520 Ibidem, pos. 6389, 6395, 6400. 521 Ibidem, pos. 6427, 6431. 522 Ibidem, pos. 6431, 6435, 6441.

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ranger os dentes no fim”, incentivando que os pais batessem

nos “lugares adequados enquanto criança”, pois o

“açoitamento” promoveria a restrição e reprimenda das

vontades dos filhos.523 Em relação a doutrina da Providência,

eles iam muito longe, chegando a relacionar dor no dente

com causas morais, como ter comido de forma desgraciosa e

excessiva ou por conta de discursos pecaminosos.524 Em

relação a doutrina de que todas as criaturas são decaídas

com inclinação para o mal, existe um exemplo de um homem

que, ao ver um cachorro urinar ao mesmo tempo em que ele

estava urinando, conclui que: “Que ínfimas e vis coisas são

os filhos dos homens neste estado mortal! Quanto nossas

necessidades naturais nos rebaixam e nos colocam em certo

sentido no mesmo nível dos cães!”525.

Fica evidente que as características negativas do puritanismo estão

diretamente conectadas com os sintomas do CRD, o que, muito provavelmente,

constitui o cerne daquilo que será o Protestantismo da Reta Doutrina. Entre estas

características destacam-se: sectarismo, extremismo, insensibilidade, ênfase em

regras e moralismo (fundamentalismo). Se o CRD tem um espírito “saudosista” do

seu passado, certamente estas características puritanas negativas estão presentes

no objeto produzindo os sintomas do capítulo primeiro.

Será durante o séc. XVII que a tradição reformada estabelece o que será

sua ortodoxia, através de duas assembleias solenes: o Sínodo de Dort e a

Assembleia de Westminster. Estas duas reuniões serão vistas como “a mais fiel

expressão do calvinismo”526. Obviamente não é correta a generalização de que

todos os aspectos negativos acima sobre os puritanos estão presentes em todos os

reformados que participaram destas assembleias. Mas seria incorreto afirmar que

algo deste “espírito” puritano de ser não estava presente. A seguir, cada um destes

encontros será analisado.

523 Ibidem, pos. 6446, 6450, 6458. 524 Ibidem, pos. 6458, 6463. 525 Ibidem, pos. 6463, 6469. 526 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 313.

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4.7. Sínodo de Dort

Dois motivos justificaram esta assembleia. Os dois já foram mencionados e

se tornam cada vez mais presentes como “motores propulsores” dos movimentos da

ortodoxia protestante, especialmente a calvinista: polêmica doutrinária e política.

Em relação a questão doutrinária, o problema se inicia quando o teólogo

Dirk Koornhert (1522-1590) ataca algumas doutrinas calvinistas, especialmente a

questão da predestinação. O nome do teólogo escolhido para refutar os ataque de

Koornhert foi Jacó Armínio (1560-1609), cuja fama era grande e dono de um

currículo de prestígio: teve formação teológica em Genebra, sob a direção de

Teodoro de Beza, sucessor de Calvino na mesma cidade e, em seu retorno para

Holanda, seu país natal em que era pastor e professor, passou a ocupar um

importante púlpito em Armsterdam. Importante destacar que Armínio era calvinista e

nunca deixou de ser. Após se dedicar aos estudos dos escritos de Koornhert,

comparando-os com as Escrituras, com a teologia dos primeiros séculos e com os

principais teólogos protestantes, após profundas lutas com sua consciência, chegou

a conclusão que Koornhert tinha razão. Após tornar-se professor de teologia da

Universidade de Leiden, suas opiniões vieram a público e Francisco Gomaro, colega

e partidário extremista da predestinação, entrou em conflito com Armínio, sendo que

seu nome acabou se tornando a antítese do calvinismo: arminianismo.527

Roger Olson, em seu livro Teologia Arminiana – Mitos e Realidades, destaca

que Armínio passou a ser atacado pelo estado e igreja da Holanda, tendo como

causa seu debate com Gomaro em Leiden. Olson diz que Armínio foi acusado de todos os tipos de heresia, mas as acusações de heresia nunca se sustentaram em nenhum inquérito oficial. Acusações ridículas de que ele era agente secreto do papa e dos jesuítas espanhóis, e até mesmo do governo espanhol [...], pairavam sobre ele. Nenhuma das acusações era verdadeira.528

A grande questão doutrinária em que o desacordo entre Armínio e Gomaro

residia não era a predestinação em si, pois ambos concordavam que ela existia e

que as Escrituras testemunhavam de sua realidade. Para Gomaro, Deus predestinou

alguns para terem fé antes de criação do mundo e, segundo sua vontade soberana,

determinou quem seria salvo e quem não seria. Armínio, diferentemente, afirmou: [...] O primeiro decreto integral de Deus a respeito da salvação do homem

527 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 313. 528 OLSON, Roger E.. Teologia Arminiana – Mitos e Realidades. São Paulo: Editora Reflexão, 2013, p. 29.

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pecador é aquele no qual Ele decreta a indicação de seu Filho, Jesus Cristo, para Mediador, Redentor, Salvador, Sacerdote e Rei que deve destruir o pecado pela sua própria morte, e que deve, pela sua obediência, obter a salvação que se perdeu, devendo comunica-la pela sua própria vontade.

[...] O segundo decreto preciso e absoluto de Deus é aquele em que Ele decretou receber aqueles que se arrependeram e creem, e, em Cristo, por causa dEle e por meio dEle, para efetivar a salvação de tais penitentes e crentes que perseveram até o fim, mas deixar em pecado, e sob a ira, todas as pessoas impenitentes e incrédulas, condenando-as como alheios a Cristo.

[...] Deus decretou salvar e condenar certas pessoas em particular. Este decreto tem o seu embasamento na presciência de Deus, pela qual Ele sabe, desde toda a eternidade, que tais indivíduos, por meio de sua graça preventiva, creriam, e por sua graça subsequente perseverariam, de acordo com a administração previamente descrita dos meios que são adequados e apropriados para a conversão e a fé; e, do mesmo modo, pela sua presciência, Ele conhecia aqueles que não creriam, nem perseverariam.529

Em outras palavras, Armínio entendeu que o grande e principal decreto de

Deus era tornar Jesus Cristo mediador entre Deus e os homens. Em relação a

predestinação, o embasamento para ela era a presciência de Deus. Ou seja, uma

vez que Deus sabia quem responderia a graça preventiva e quem em sua graça

subsequente perseveraria, estas pessoas estão predestinadas aos seus destinos

eternos.

Em relação a graça preveniente, citada no Concílio de Trento, Heber

Campos menciona que Armínio empresta o termo de Agostinho e, justamente, do

próprio Concílio de Trento530, organizado pelo inimigo número um do protestantismo.

Em relação especificamente a esta graça prévia Armínio diz: [...] atribuo à graça o início, a continuidade e a consumação de todo o bem, de tal forma que, sem a sua influência, um homem, mesmo já estando regenerado, não pode conceber, nem fazer bem algum, nem resistir a qualquer tentação do mal, sem esta graça emocionante e preventiva, que coopera com o homem. Como fica claro a partir desta afirmação, de maneira nenhuma cometo alguma injustiça à graça, atribuindo, como é relatado de mim, uma quantidade excessiva de coisas ao livre-arbítrio do homem.531

Ele cita neste momento onde reside a controvérsia em sua ótica: [...] Toda a controvérsia se reduz à solução desta questão: “A graça de Deus é uma certa força irresistível?” Ou seja, a controvérsia não se relaciona às ações ou às operações que podem ser atribuídas à graça (pois reconheço e inculco mais dessas ações e operações do que qualquer homem já o fez), mas se refere apenas ao modo de operação, irresistível ou não. Com relação a este tópico, creio eu, de acordo com as Escrituras, que

529 ARMÍNIO, Jacó. As Obras de Armínio – Volume I. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, p. 226-227. 530 JÚNIOR, Heber Carlos de Campos. A Graça Preveniente na Tradição Arminiana/Wesleyana (Parte 1). In: FIDES REFORMATA XVII, No 1, 25-43, 2012, p. 26. 531 ARMÍNIO, Jacó, 2015, p. 232.

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muitas pessoas resistem ao Espírito Santo e rejeitam a graça que lhes é oferecida.532

O leitor menos atento aos textos de Armínio, pode, provavelmente, não

“encaixá-lo” dentro da teologia arminiana ou não perceber as contradições com o

próprio calvinismo. Isto tem sua razão de ser, pois Armínio, como já mencionado,

era calvinista e sua ênfases estão relacionadas a graça de Deus, como ele mesmo

faz questão de ressaltar – destacado na última citação. Entretanto, existe um

contraste de posição em relação a Gomaro e ao calvinismo, que, como sistema

teológico, se estruturará enfaticamente contra a posição de Armínio.

Aqui é importante sintetizar os pontos de Armínio para verificar nos

documentos produzidos no Sínodo de Dort como a doutrina calvinista irá enfatizar e

contradizer as posições arminianas: Deus decretou Jesus Cristo como mediador do

homem pecador; presciência de Deus como fator para predestinação; graça

preveniente que possibilita a resposta do pecador positiva ou negativa em relação a

graça de Deus. Entretanto, antes de prosseguir, existe um contexto político de

grande importância a ser mencionado.

Após a morte precoce de Armínio em 1609, as discussões com Gomaro

permaneceram através do sucesso de cátedra de Armínio em Leiden. Somado ao

problema teológico, interesses políticos e econômicos utilizaram do “pano de fundo”

religioso para concretizarem seus interesses “carnais”. Por um lado, a classe

mercantil, que era uma oligarquia, tinha interesse em manter as boas relações com

a Espanha, uma vez que a Espanha contribuía com o comércio. As classes médias

e baixas, entretanto, não participavam da prosperidade financeira fruto desta relação

internacional e se trata de um grupo formado por calvinistas e patriotas ressentidos

com a classe de mercadores. O relacionamento comercial com a Espanha era visto

pelo clero calvinista como uma possível abertura para impurezas na igreja

holandesa. Este argumento estava exclusivamente preocupado com a “pureza” da

igreja ou tinha influência deste contexto político? Certo é que o grupo de mercadores

se uniu aos arminianos e os contrários a relação com a Espanha aos que defendiam

as teses de Gomaro.533

Em 1610 os arminiamos se organizaram e produziram um documento de

protesto chamado Remonstrantia, passando a serem chamados de “remonstrantes”.

532 Ibidem, p. 232 – grifo meu. 533 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 313-314.

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O documento declarava cinco pontos que tratavam das questões em disputa. O

primeiro artigo declara que “Deus, por um propósito eterno e imutável em Jesus

Cristo, seu Filho, antes da fundação do mundo, determinou salvar [...] aqueles que

[...] pela graça do Espírito Santo, hão de crer em seu Filho, Jesus [...]”534. O segundo

artigo declara que Jesus Cristo morreu por todos os seres humanos, muito embora

somente quem crê recebe os “benefícios de sua Paixão”. O terceiro ponto, que tem

por objetivo rejeitar os ataques de que os arminianos seja pelagianistas535, afirmava

que o ser humano não pode realizar nada de bom por suas próprias forças, sendo

imprescindível a graça de Deus para fazer o bem. O quarto ponto, que o próprio

Armínio coloca como questão chave no debate, afirma que a graça é resistível. O

quinto ponto diz respeito a possibilidade daquele que crê em perder a graça ou não.

A declaração dos arminianos aqui não é categórica, mas pede maiores provas das

Escrituras para os gomaristas, que, categoricamente, afirmavam que a

predestinação tem tamanha força que os predestinados a crerem não tem a

possibilidade de perder a graça.536

Os desdobramentos políticos não foram favoráveis aos arminianos. O

príncipe Maurício de Nassau tomou partido dos calvinistas. Johan van

Oldenbarnevelt, que trabalhava nas negociações com a Espanha em prol de uma

trégua e tomava partido dos arminianos, fora encarcerado. O amigo dele, Hugo

Grócio, também foi para a prisão. Assim, após esta reação contra o partido

mercantilista e contra o arminianismo, “os estados gerais holandeses convocaram

uma grande assembleia eclesiástica, conhecida como “Sínodo de Dort”, reunida

entre 1618 e 1619, com convite realizado para outras igrejas reformadas da Europa.

O propósito da assembleia? Condenar o arminianismo. E assim aconteceu, embora

não tenham concordado com as teses mais extremas de Gomaro, o qual estava

presente.537 Richard Muller, especialista em ortodoxia protestante, na mesma linha

evidenciada aqui, afirma que o documento produzido por este sínodo tinha como

objetivo a exclusão da teologia arminiana.538

534 VANCE, Laurence M.. O Outro Lado do Calvinismo. São Paulo: Editora Reflexão, 2017, p. 637. 535 “[…] Agostinho se opôs ao pelagianismo, doutrina que afirmava que o ser humano era capaz de fazer o bem por suas próprias forças.” (GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 314) 536 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 314. 537 Ibidem, p. 314-315. 538 MULLER, Richard. A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Edição Kindle: Publicado em 15 de novembro de 2012, pos. 5313.

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Antes de ser analisado o documento produzido, as consequências desta

assembleia são essenciais na compreensão da escolástica protestante. González

destaca: Depois do Sínodo de Dort, imediatamente tomaram-se medidas contra os arminianos e seus partidários. Van Oldenbarnevelt foi executado e Hugo Grócio foi condenado à prisão perpétua [...]. Quase uma centena de ministros de convicção arminianas foi desterrada e outros tantos foram privados de seus púlpitos. Os que insistiram em continuar pregando foram condenados à prisão perpétua.539

Em relação aos leigos que assistissem cultos arminianos corriam o risco de

pagarem multas pesadas. E passou-se exigir formalmente dos mestres que fossem

aceitas as decisões de Dort. Em alguns lugares, até mesmo para organista se exigiu

declaração formal de aceitação das decisões. Somente em 1625, com a morte de

Maurício de Nassau, o ambiente tornou-se mais ameno contra os arminianos e em

1631 passou a tolerá-los oficialmente. Somente posteriormente, com o metodismo e

não nas igrejas arminianas holandesas, o arminianismo teve seu principal impacto.540

O último parágrafo do documento do Sínodo de Dort, obtido no site da Igreja

Presbiteriana do Brasil, declara: Que o Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, o qual está sentado à direita do Pai e envia seus dons aos homens, nos santifique na verdade. Que ele traga à verdade os que se desviaram dela, cale a boca dos caluniosos da sã doutrina e equipe os ministros fiéis da sua Palavra com o Espírito de sabedoria e discrição, para que tudo que falem possa ser para a glória de Deus e a edificação dos ouvintes. Amém.541

No destaque, percebe-se o tom bélico do documento, em que é solicitado ao

Senhor Jesus que “cale a boca dos caluniosos”. O documento é organizado de

forma a rebater os cinco pontos que constam no documento dos remosntrantes e se

tornará parte fundamental do calvinismo ortodoxo. 542 Michael Horton, teólogo

calvinista, em seu livro A favor do Calvinismo, destaca o perigo de definir o que é ser

reformado através da definição do que o reformado ensina e que outros não

ensinam. Ele diz que “as tendências desta abordagem são óbvias: orgulho e

isolamento sectário”543. Ele associa esta abordagem a redução da teoria reformada

na TULIP544, em que cada letra representa um dos pontos discutidos no documento

539 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 316. 540 Ibidem, p. 316. 541 OS CÂNONES DE DORT. Disponível em: <https://bit.ly/2QoAV0m> Acessado em: 4 de jun. 2018, p. 10. 542 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 316. 543 HORTON, Michael. A favor do calvinismo. São Paulo: Editora Reflexão, 2014, p. 32. 544 T = Total Depravity; U = Unconditional Election; L = Limited Atonement; I = Irresistible Grace; P = Perseverance of the Saints.

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de Dort. Embora ele afirme que esta abordagem não foi utilizada antes do século

XX, a presença de sectarismo é marcante e inegável na história antes do séc. XX.

De qualquer forma, o objeto desta pesquisa, que consiste em um tipo ideal de

protestantismo, é reconhecido inclusive por este teólogo calvinista.

O documento, que é uma declaração “clara, simples e sincera da doutrina

ortodoxa com respeito aos Cinco Artigos da Fé disputados na Holanda”545 , é

organizado em cinco capítulos e possui uma conclusão final, já citada anteriormente.

Em cada capítulo são apresentados artigos com a finalidade de defender cada ponto

embasado biblicamente (por isso das várias referências bíblicas). Ao final de cada

capítulo existe uma seção destinada a refutação dos erros correspondentes ao tema

do capítulo, intitulada como “rejeição de erros”. Cada argumento contrário a doutrina

calvinista é exposto e, logo em seguida, refutado, com a utilização de terminologias

que, dentro deste contexto, são negativas. Na sequência, seguem alguns exemplos:

“novidade”, “engano”, “contrário as Escrituras”, “não é a verdade”, “invalida a graça”

e “pelagianismo completo”546.

No capítulo primeiro é tratado o tema da divina eleição e reprovação. Fica

evidente a posição calvinista categórica de que “Deus nesta vida concede a fé a

alguns enquanto não concede a outros” e “pelo mesmo decreto, entretanto, segundo

seu justo juízo, ele deixa os não-eleitos em sua própria maldade e dureza de

coração.” Fica clara também a refutação a Armínio em relação a presciência de

Deus. O documento afirma: “Esta eleição não é baseada em fé prevista [...].”547 A

eleição é, portanto, incondicional.

No segundo capítulo o tema é a morte de Cristo e a redenção do homem. O

objetivo evidente aqui é refutar a ideia de que Jesus Cristo morreu por todos os

homens. O artigo oitavo diz: Pois este foi o soberano conselho, a vontade graciosa e o propósito de Deus, o Pai, que a eficácia vivificante e salvífica da preciosíssima morte de seu Filho fosse estendida a todos os eleitos. Daria somente a eles a justificação pela fé e por conseguinte os traria infalivelmente à salvação. Isto quer dizer que foi da vontade de Deus que Cristo, por meio do sangue na cruz (pelo qual ele confirmou a nova aliança), redimisse efetivamente, de todos os povos, tribos, línguas e nações, todos aqueles e somente aqueles que foram escolhidos desde a eternidade para serem salvos e lhe foram dados pelo Pai.548

545 OS CÂNONES DE DORT, 2018, p. 16 – grifo meu. 546 Ibidem, passim. 547 Ibidem, p. 2 – grifo meu. 548 Ibidem, p. 7 – grifo meu.

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A ênfase é determinar que apenas e tão somente aqueles que Deus

escolheu é que serão salvos. Os demais estão destinados, também por decisão

soberana de Deus, a condenação eterna. Além disto fica evidente que Jesus Cristo,

segundo o documento, morreu na cruz apenas pelos eleitos à salvação. Ou seja, a

expiação é limitada aos eleitos.

O terceiro e quarto capítulo trata da corrupção do homem. A ênfase evidente

é mostrar que não existe a possibilidade de o homem responder a graça divina, pois

o homem não tem livre escolha, uma vez que é incapaz de qualquer ação que o

salve. O texto a seguir diz respeito aos que são convertidos, falando claramente de

heresia pelagiana: Outros que são chamados pelo ministério do Evangelho vêm e são convertidos. Isto não pode ser atribuído ao homem, como se ele se distinguisse por sua livre vontade de outros que receberam a mesma e suficiente graça para fé e conversão, como a heresia orgulhosa de Pelágio afirma. Mas isto deve ser atribuído a Deus: como ele os escolheu em Cristo desde a eternidade, assim ele os chamou efetivamente no tempo.549

É evidente que Armínio tinha outra posição. Igualmente evidente é a não

consideração pelo arrazoado arminiano, que considera a graça preveniente e não a

liberdade humana como fator decisivo para a salvação. Temos aqui a seguinte

definição calvinista: a depravação total do homem. Esta definição, entretanto, é

coerente com a lógica de Armínio. O que é declarado que é contrário ao

pensamento de Armínio consta na refutação do oitavo erro deste capítulo, onde é

afirmado que a graça é irresistível, pois, do contrário, seria “anular todo o poder da

graça de Deus”550.

No quinto e último capítulo o assunto é a perseverança dos santos, assunto

que no artigo quinto do documento dos remonstrantes não há definição clara, mas

tão somente recomendação para maior aprofundamento bíblico. O próprio Armínio

diz que nunca ensinou que “um verdadeiro crente pode tanto cair totalmente

distanciando-se da fé, e perecer”. Ele tão somente destaca a tensão bíblica sobre o

tema.551 O documento de Dort afirma: Deus, que é rico em misericórdia, de acordo com o imutável propósito da eleição, não retira completamente o seu Espírito dos seus, mesmo em sua deplorável queda. Nem tampouco permite que venham a cair tanto que recaiam da graça da adoção e do estado de justificados.552

549 Ibidem, p. 9-10. 550 Ibidem, p. 12. 551 ARMÍNIO, Jacó, 2015, p. 233. 552 OS CÂNONES DE DORT, 2018, p. 13.

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Desta forma, o que o documento declara de forma categórica é a

impossibilidade de o homem cair da graça. Em outras palavras, o documento

declara que os santos perseveram. Neste assunto para os calvinistas não há tensão

bíblica, enquanto para os arminianos a tensão é presente no texto sagrado.

Percebe-se, de forma geral, que o documento fruto do Sínodo de Dort revela

uma visão teológica clara, rígida e sem possibilidade de tensão em pontos

polêmicos, por isso se trata de uma declaração que se auto intitula “clara” e

“simples”. Fica bastante evidente que o documento tem a intenção de, não somente

condenar o arminianismo, mas definir de forma categórica o que os reformados

calvinistas compreendem. Em uma busca por fronteiras de pensamento teológico,

deixam claro que quem ultrapassa determinada linha é tido como “herege” e não

“ortodoxo”. Algo que não pode passar despercebido é a presença constante da

doutrina da Providência, especialmente no que diz respeito a questão da

Predestinação. Parece que o grande tópico teológico deste documento é

exatamente este, o que, conforme apresentado no capítulo sobre os sintomas, se

constitui elemento causador dos sintomas da racionalização da experiência de Deus,

uma vez que é elemento fundante da visão de mundo protestante no CRD. Não há

dúvida que é no Sínodo de Dort que esta polêmica ganha atenção especial, por

causa do ponto de Armínio, outro inimigo do CRD. Interessante notar que os

cânones de Dort, mesmo após aproximadamente quatrocentos anos, estão

disponíveis no site da Igreja Presbiteriana do Brasil, tamanha relevância que ainda

possuem.

4.8. Assembleia de Westminster

Outro momento em que o espírito da ortodoxia protestante reformada se faz

presente é na Assembleia de Westminster, em que a famosa Confissão de Fé de

Westminster foi produzida. O contexto é a Inglaterra do séc. XVII, em que está

sendo travada a Guerra Civil na Inglaterra. Para correta compreensão contextual do

ambiente sócio-político em que a confissão é produzida, será sintetizada parte da

história da Inglaterra que culminará neste momento em que a Assembleia de

Westminster acontece.

Esta história está intimamente ligada com o movimento dos puritanos na

Inglaterra do séc. XVII, já citado neste capítulo. Porém, ela inicia quando este

movimento ainda não possuía este nome. Mais uma vez política e religião se

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misturam em demasia produzindo a temperatura de cada momento histórico e

gerando todo ambiente para a assembleia deliberar sobre os assuntos político-

religiosos da pauta.

A Reforma na Inglaterra tratou de questões que foram muito além da do

divórcio de Henrique VIII (1491-1547), que rompeu com a Igreja Romana, se auto

intitulando chefe da Igreja da Inglaterra. 553 A Reforma na Inglaterra tem

relacionamento direto com dois elementos. Em primeiro lugar, às tensões entre

catolicismo romano e protestantismo e, posteriormente, anglicanismo e

protestantismo, percebidas na história através das tendências daqueles que

exercem papéis políticos, especialmente as variações monárquicas. Em segundo

lugar, questões em torno da Bíblia em língua inglesa.

Em 1485, Henrique VII (1457-1509) dá início ao seu reinado debaixo da

hegemonia da Igreja Católica Romana e com o aval formal do papa Inocêncio VIII

(1432-1492), sendo que seu pai, Eduardo IV (1442-1483), chega a dirigir-se ao papa

como “abençoado pai”, “o mais Santo Padre” e “vossa Santidade”. Neste tempo,

qualquer opinião contrária a Igreja Romana era considerada heresia e o estado se

encarregava de suprimi-las. John Wycliff tinha sido um nome importante como

contraponto do catolicismo, chegando a afirmar que a Missa era uma “verdadeira

abominação da desolação no lugar santo”. Embora a versão oficial da Bíblia fosse a

Vulgata Latina, Wycliff tinha concluído uma versão em inglês em 1382. Entretanto, o

Conselho Provincial de Oxford tinha uma atitude categórica em relação a Bíblia em

inglês, pois, em 1408, é declarada a proibição de tradução de qualquer texto da

Sagrada Escritura.554

Ao assumir o trono em 1509, Henrique VIII se mantém leal ao catolicismo

romano, como seu pai. “Hereges” continuam sendo queimados na fogueira, mas o

clima anticlerical aumentava, sendo que a grande diferença deste período era a

invenção da impressa e o renascimento da erudição, possibilitando a produção de

livros e panfletos contra a autoridade e corrupção de Roma. Em relação ao

reformador Lutero, neste período antes do divórcio do rei, a Inglaterra chegou a

queimar seus escritos publicamente, o que era uma resposta ao reformado

alemão.555 Leão X, papa contemporâneo de Lutero, chegou a intitular Henrique VIII

553 VANCE, Laurence M., 2017, p. 188-189. 554 Ibidem, p. 189. 555 Ibidem, p. 190.

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de “defensor da fé”, enquanto Lutero era o “asno coroado”, segundo o mesmo papa.

Neste mesmo período William Tyndale (1494-1536) fez a primeira cópia em inglês

da Bíblia traduzida diretamente do grego, o que lhe custou a vida, pois foi para a

fogueira, e sua versão foi proibida formalmente junto de outros livros proibidos. Ao

ser morto ouviram seu clamor para que o Senhor abrisse os olhos do rei da

Inglaterra. Henrique fez questão de enfatizar na proibição que não era

imprescindível a Bíblia em inglês e tão pouco nas mãos do povo.556

Em janeiro de 1533, Henrique VIII se casa com Ana Bolena secretamente e

seu casamento com Catarina de Aragão é declarado nulo. O rompimento com

Roma, que é político e não doutrinário, acontece. Em 1534 o Ato de Supremacia

estabelece Henrique como o “único líder supremo na terra da Igreja da Inglaterra”.

Importante destacar que a Igreja Inglesa “ainda era católica em sua doutrina”.557

Entretanto, é este rompimento que abre caminho para uma verdadeira reforma na

Inglaterra. Interessante que a oração de William Tyndale acabou sendo atendida,

pois outras versões em inglês da Bíblia foram produzidas e até o final de 1537 duas

Bíblias circulavam na Inglaterra.558

Henrique VIII era movido por interesses de momento e estritamente políticos

e conveniente a si mesmo. González afirmar que “as leis sobre matérias religiosas

variavam segundo as necessidades do momento”559. É por esta razão que no final

de seu reinado Henrique faz um retorno ao catolicismo, se distanciando da reforma,

embora não ceda em sua repudia ao Papa.560 Ele conserva a doutrina católica e

persegue os “hereges”.561 Seu legado, que gera uma interferência no rumo da

reforma na Inglaterra, foi a aprovação do uso da Bíblia em língua inglesa em cada

igreja da Inglaterra, com aceso a todos, o que viria a ser “arma poderosa nas mãos

dos propagandistas da reforma”562.

Com a morte de Henrique VIII, seu filho Eduardo VI (1537-1553) assumiu o

trono. A Reforma avançou muito e entre as suas medidas estavam permitir o

casamento entre membros do clero, retirar as imagens das igrejas, administração de

556 Ibidem, p. 191. 557 Ibidem, p. 191. 558 Ibidem, p. 192. 559 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 74. 560 Ibidem, p. 74-75. 561 VANCE, Laurence M., 2017, p. 193. 562 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 75.

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mais de um tipo de ceia563 e, naturalmente, a impressão de Bíblias floresceu564. “A

medida mais notável deste período foi a publicação do Livro de Oração Comum, cujo

principal autor foi Tomás Cranmer”, “a quem Henrique fez arcebispo de Cantuária”,

sendo “um dos principais propulsores da Reforma na Inglaterra”. Se trata de um livro

de liturgia no idioma inglês, o que até então não existia na Inglaterra. Vance

menciona que este mesmo livro será futuramente condenado pelos Presbiterianos,

que vão alegar que o livro é imperfeito, que se trata do livro da Missa e que está

repleto de abominações.565 Outro fato importantíssimo é que, ao mesmo tempo,

“muitas pessoas que se exilaram por questões religiosas regressaram ao país, e

agora traziam ideias teológicas procedentes do Continente, em sua maioria

calvinista ou zuinglianas 566 ”. González comenta que “os chefes do partido

reformador, que se inclinavam cada vez mais para a teologia reformada, tinham

amplas razões para esperar que sua causa triunfaria sem maior oposição”.567

Porém, com a morte prematura de Eduardo VI, que tinha uma saúde

precária568, as medidas de reforma chegam ao fim. É no período do reinado de

Eduardo – Vance afirma que no início – surge na Inglaterra um partido com o desejo

de uma reforma mais completa. Este partido será chamado no futuro de

Puritanos.569 Quem sucede a Eduardo é Maria (1516-1558), que ficará conhecida

como a sanguinária, já citada neste capítulo. Novamente há uma mudança de

tendência religiosa na Inglaterra. Maria, que sempre foi católica, foi declarada filha

ilegítima por ser filha de Catarina de Aragão com Henrique VIII, que tiveram o

casamento anulado. Assim, o propósito de restaurar a velha fé sempre esteve em

sua mente. Apoiada por bispos destituído nos dois últimos reinados e casando-se

com Felipe II da Espanha, católico fervoroso, Maria iniciou os primeiros passos para

uma guinada romana, que se tornaria sangrenta.570

Entre as suas medidas está a proibição de qualquer um dos súditos de

“pregar, ler, interpretar ou ensinar” as Sagradas Escrituras, revogar os decretos de

Eduardo e Henrique contrários a fé católica (ordenou aos sacerdotes casados a

separação de suas esposas, a guarda dos dias santo e respeito as datas 563 Ibidem, p. 75. 564 VANCE, Laurence M., 2017, p. 193. 565 Ibidem, p. 194. 566 O reformador Zwínglio será abordado no terceiro capítulo, em comparação com João Calvino. 567 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 75-76. 568 Ibidem, p. 76. 569 VANCE, Laurence M., 2017, p. 194. 570 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 76-77.

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tradicionais, bem como o retorno à obediência ao papa571), proibição de leitura e

posse de qualquer livro de Lutero, Calvino, Coverdale572, Tyndale e Cranmer,

também o Livro de Oração Comum ou qualquer outro contrário a fé e a doutrina

católica. A pena de morte era requerida para os infratores e estatutos contra a

heresia foram estabelecidos. John Knox considerou Maria um “monstro horrível” e a

“Jezabel da Inglaterra”.573 O seu ato mais cruel aconteceu em relação ao arcebispo

Cranmer. Maria desejava obrigar o líder do partido reformado a se retratar. Ela o fez

presenciar a prisão o martírio de dois dos companheiros na causa reformadora:

Latimer e Ridley. Mesmo após ter assinado uma série de retratações, foi condenado

a morte na fogueira (seu caso tinha sido levado para Roma, local de onde foi decreta

a condenação).574

Com toda a perseguição, cerca de oitocentos protestantes deixaram a

Inglaterra para o Continente, sendo que alguns deles se estabeleceram em

Genebra. Neste período o Novo Testamento é traduzido para o inglês, com notas

bastante anticatólicas. Após a morte de Maria em 1558, o Antigo Testamento

também foi traduzido, formando a Bíblia de Genebra, a qual foi dedicada a nova

rainha: Elizabete I.575

Com o reinado de Elisabete veio a anulação completa das medidas politico-

religiosas de Maria em favor do catolicismo. A autoridade papal foi novamente

abolida e as leis contra heresia foram revogadas. O Livro de Oração Comum foi

reestabelecido e ordenou que ninguém seria obrigado a defender e manter qualquer

heresia, erros ou falsas doutrinas contrarias as Escrituras.576 González expõem com

clareza o teor religioso do reinado de Elisabete: [...] Elisabete não era protestante extremista. Seu ideal era uma igreja cujas práticas religiosas fosse uniformes, de modo que o reino ficasse unido, e ao mesmo tempo fosse permitida razoável liberdade de opiniões. Nessa igreja, não haveria espaços para extremismos, nem do catolicismo romano nem do protestantismo. Qualquer outra forma de protestantismo seria aceitável, sempre que se ajustasse ao culto comum da Igreja Anglicana.577

Muito embora Elisabete tenha posto um fim ao problema com Roma, os

problemas internos começaram a se manifestar. Liderados por Thomas Cartwright 571 Ibidem, p. 76-77. 572 Myles Coverdale (1488-1569) foi o primeiro a produzir uma tradução complete da Bíblia para o inglês em 1535 (VANCE, Laurence M., 2017, p. 192). 573 VANCE, Laurence M., 2017, p. 194. 574 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 77. 575 VANCE, Laurence M., 2017, p. 194-195. 576 Ibidem, p. 195. 577 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 78.

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(1532-1603), um professor de Cambridge, aquele pequeno partido que desejava

uma reforma mais completa – agora chamados de Puritanos – entram em diálogo

com o Parlamento inglês em busca de mais reformas. Eles eram favoráveis da

mudança da forma de governos eclesiástico, sendo partidários do modelo

Presbiteriano e não Episcopal578, o que não agradava a monarquia, uma vez que os

bispos do modelo Episcopal eram os mais “decididos e úteis defensores da

coroa”579.

Com a morte de Elisabete no início do séc. XVII, o trono passou ao rei da

Escócia, Tiago VI (1566-1625), tornando-se Tiago I da Inglaterra. Graças a John

Knox a Reforma tinha avançado bastante na Escócia e, com o sucessor de Knox,

Andrew Melville (1545-1622), eles tinham estabelecido de forma madura o governo

eclesiástico Presbiteniano.580 Após deixar a Escócia com destino a Inglaterra, Tiago

é recebido pelos Puritanos, cheios de exigências relacionadas aos ritos e

cerimoniais. A petição dos puritanos, chamada de Petição Milenária, por conta de

envolver mais de mil ministros, deu origem a Conferência da Corte de Hampton, em

que os puritanos foram liderados por John Reymond (1549-1607). Como o rei era

contrário a deixar o Episcopado, os puritanos foram ordenados a se conformarem

neste ponto. Fruto desta conferência é uma nova versão da Bíblia que, por sugestão

de Reymond, achava que as traduções que existiam não atendiam ao original. Esta

Bíblia foi chamada King James Bible (Bíblia do Rei Tiago).581

As políticas do rei Tiago não agradavam a classe mercantil e burguesa, que

eram protestantes em sua maioria. Embora Elisabete tenha construído bases sólidas

para o comércio, que tinha começado a dar seus frutos, Tiago tinha políticas

internacionais e nacionais que não agradavam esta classe, pois esperavam que

suas decisões deviam beneficiá-los. Na Guerra dos Trinta Anos, por exemplo, os

comerciantes ingleses queixavam-se da falta de participação inglesa, pois

entendiam que a guerra ameaçava tanto sua religião como seus negócios. Em

relação as questões religiosas, em 1604, o então arcebispo Bancroft conseguiu

aprovação para uma série de cânones que em que se dizia que a hierarquia dos

bispos era de origem divina. Os puritanos enxergaram esta afirmação como

retrocesso e como um risco de retorno ao romanismo. Entre os cânones, muitos 578 VANCE, Laurence M., 2017, p. 196. 579 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 278. 580 VANCE, Laurence M., 2017, p. 196. 581 Ibidem, p. 197.

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deles eram dirigidos contra os puritanos. Daqui resultou a Conferência da Corte de

Hampton, já citada.582

A tensão entre o Parlamento, que tinha muitos puritanos, e o rei só aumenta.

Carlos I (1600-1649), filho e sucessor de Tiago, que faleceu em 1625, assim como

seu pai, era partidário de uma monarquia absoluta. Carlos recebeu um reino com

muito atrito no Parlamento nas questões religiosas. Tiago, antes de morrer, havia

proibido a pregação dos puritanos, restringindo horários e temas. Além disto, em

1618, promulgou a Declaração de Esportes, que rebatia a tese dos puritanos de

guardar o domingo e obrigou que fosse lida nas igrejas.583 Alister McGrath afirma

que Carlos era conhecido como muito mais pró-católico e antipuritano que seu pai e

ainda se casou com Henriqueta Maria da França, que era católica, o que gerou

muita crítica religiosa, que foi “fomentada pela ansiedade em relação ao que isso

poderia prognosticar para a vida religiosa, a nação e a politica externa inglesas”584.

McGrath nota algo muito interessante na história. Muito embora os próprios

puritanos estarem divididos em facções – presbiterianos, congregacionais e

separatistas –, McGrath se atenta ao fato de que A percepção de uma diferença, com frequência, leva à enfatização, às vezes a ponto de fazer com que o que é defendido em comum recue para segundo plano, ofuscado pela suspeita e hostilidade provocada pela divisão. Assim, uma divergência aparentemente menor tinha o potencial para se tornar o motivo de divisão e de disputa no puritanismo – se fosse permitido que isso acontecesse.585

Entretanto, McGrath conclui que, no caso do puritanismo [...] a crescente percepção de que havia uma elite governante perigosamente hostil fez com que os puritanos vissem suas diferenças de uma perspectiva um tanto diferente e com que eles abraçassem um senso de realismo em relação a essas diferenças. As hostilidades mutuamente destrutivas foram suspensas a fim de se concentrarem na ameaça maior que o movimento enfrentava. O puritanismo tornou-se um movimento cada vez mais bem organizado, alerta aos perigos e às oportunidades. Se, considerado de forma isolada, isso teria levado a algo mais ou não permanece aberto a questionamento. No entanto, no contexto das crescentes tensões entre Carlos e o Parlamento, a posição dos puritanos pode ser vista como muito mais séria.586

Carlos tentou governar sem o Parlamento, que foi dissolvido em 1629, após

o mesmo decidir pela proibição de inovações religiosas, o que, provavelmente,

estava ligado a preocupação do Parlamento com o interesse de Carlos no 582 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 277, 279. 583 Ibidem, p. 281-282. 584 MCGRATH, Alister, 2012, p. 138. 585 Ibidem, p. 138-139. 586 Ibidem, p. 139.

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catolicismo.587 Ele voltaria a convocar o Parlamento apenas onze anos depois.

“Cada vez mais, e particularmente nas regiões industriais, o rei e os bispos, que

apoiavam sua causa dando-lhe aprovação religiosa, eram vistos como inimigos do

povo.” 588 Após fazer concessões aos poderosos e criar um ambiente de

prosperidade as classes mais ricas, pois dependia do fundo deles, os pobres eram

oprimidos pelos ricos, gerando ainda mais impopularidade. Os ataques puritanos

aos excessos da coroa e dos bispos ganharam popularidade.589 Em 1633, Willian

Laud (1573-1645) foi feito arcebispo de Cantuária, gerando muita insatisfação por

parte dos puritanos.590 Laud, com o pleno poder que Carlos lhe deu, fez medidas

cruéis contra os puritanos, com penas de morte e mutilações ordenadas por ele. O

arcebispo tentou também impor a liturgia e outros elementos da Igreja Anglicana na

Escócia, gerando motim e, consequentemente, rebelião. A Assembleia Geral da

Escócia buscou limitar os poderes dos bispos e, mesmo o rei declarando a

assembleia dissolvida, a ordem real não foi obedecida e declararam nulo o

episcopado, reorganizando a Igreja da Escócia com bases calvinistas e

presbiterianas. A guerra se tornou inevitável. Como precisava de fundos para a

guerra com os escoceses, o rei reuniu o Parlamento inglês, com grande influência

puritana, que estava aliado aos rebeldes calvinistas escoceses. O rei foi obrigado a

dissolver o que seria chamado de “Parlamento Curto” de 1640. Após a invasão dos

escoceses em terras inglesas, o rei se viu obrigado a convocar novamente o

Parlamento em novembro de 1640, que receberia o nome de “Parlamento Longo”

(que recebeu este nome por ter se reunido até 1660591).592

O Parlamento, percebendo que o reinado de Carlos estava em situação

frágil e com a intenção de mostrar seu poder, acusou de comportamento inadequado

pessoas próximas ao rei, inclusive com sentenças de execuções. A mais notável

aconteceu em 1645: William Laud executado por traição.593 Com o desenrolar da

guerra, em maio de 1646, Carlos, que teve dificuldades em relação a sua estrutura

587 Ibidem, loc. cit. 588 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 282. 589 Ibidem, loc. cit. 590 MCGRATH, Alister, 2012, p. 138. 591 VANCE, Laurence M., 2017, p. 198. 592 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 282-283. 593 MCGRATH, Alister, 2012, p. 140.

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militar, acabou se entregando ao exército escocês, que, por sua vez, o entregou ao

Parlamento.594

González pontua que na ótica do Parlamento, o que estava ocorrendo era

uma “guerra santa”. Inclusive, antes dos combates, liam as Escrituras, oravam e

cantavam salmos. González destaca as atitudes do Parlamento e dos puritanos

dentro deste ambiente favorável e a percepção de alguns: Os puritanos prevaleceram sobre o partido dos bispos e do rei e se dedicaram a implantar suas reformas. Promulgaram-se leis ordenando que se dedicasse o Dia do Senhor aos exercícios religiosas e se legislou também acerca dos costumes e dos passatempos frívolos. Assim, houve quem se queixou de uma ditatura puritana.595

“Os puritanos, unidos quando se tratava de opor-se ao rei e aos bispos,

viram sua unidade desvanecer-se tão rápido como se fizeram vencedores.”596 O

Parlamento teve tensões, inclusive, com o exército – exército que chegou a ter

discurso religioso, pois acreditavam que o Senhor estava pronto a retornar e que

precisavam transformar a ordem social – que, ao se recusarem serem dispensados

pelo Parlamento, produziram no Parlamento preocupação com que a guerra civil

resultasse em caos. Após o exército vencer os escoceses e voltar sua fúria para o

Parlamento “quarente e cinco parlamentares foram detidos e quase o dobro desse

número ficou proibido de assistir às sessões.” Este “Parlamento Manco”, conforme

foi chamado, acabaria decapitando o rei Carlos em 1649597, acusado de “tirano,

traidor e assassino”598 e a Inglaterra declarada uma república,599 que se tornaria

novamente monarquia com Carlos II (1630-1685), que teve seu retorno negociado

com o Parlamento naquilo que McGrath chamou de “decisão de desespero”, devido

a falta de visão, desilusão e rivalidade interna na Comunidade Puritana.600

Carlos II, que se declarou católico em seu leito de morte601, implantou uma

forma dócil de anglicanismo para a elite governante. McGrath fornece o ambiente

deste momento histórico: O protestantismo radical nunca mais seria de novo uma presença marcante na Inglaterra. Nem mesmo, quando por um breve período, parecia que o catolicismo seria imposto à nação durante o curto e difícil reinado de Jaime II [Tiago], ninguém parece, nem mesmo, ter cogitado a possibilidade de

594 Ibidem, p. 140-141. 595 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 288. 596 Ibidem, loc. cit. 597 Ibidem, p. 289-291. 598 MCGRATH, Alister, 2012, p. 142. 599 VANCE, Laurence M., 2017, p. 204. 600 MCGRATH, Alister, 2012, p. 143. 601 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 292.

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restaurar o puritanismo. No entanto, ele seria permitido: o Ato de Tolerância, de 1690, deu aos sucessores o direito de adorar, desde que sujeito a determinadas concessões.602

Porém, como o próprio McGrath destaca, o Ato de Tolerância deu uma

alternativa não esperada: “não adorar em lugar nenhum”603. Embora o episcopado

permaneça até hoje na Inglaterra, a famosa Assembleia de Westminster, que

acontece dentro deste contexto bélico e de muita polêmica religiosa, ainda vive e

para ela que a análise será dirigida604.

A Assembleia de Westminster foi convocada em 1643605 pelo Parlamento

inglês para deliberar sobre questões religiosas.606 Ela acontece durante o reinado de

Carlos I, dentro do contexto da guerra civil na Inglaterra.607 Já durante o reinado de

Tiago, pai de Carlos, a polêmica em que a teologia calvinista estava envolvida era

grande, principalmente por conta do Sínodo de Dort e da questão arminiana. Tiago

chegou a ordenar que não se pregasse os “pontos obscuros da Predestinação,

Eleição, Reprovação, ou da Universalidade, Eficácia, Resistibilidade ou

Irresistibilidade da Graça de Deus”, deixando que este tipo de temática se

restringisse a homens instruídos e isto “moderada e discretamente a título de estudo

e aplicação, em vez de doutrinas incontestáveis”, pois compreendia que se tratava

de assunto de escola e não de simples auditórios. Em nome da “paz e tranquilidade

da Igreja”, Carlos também chegou a proibir que se pregasse sobre a predestinação.

O calvinismo, que agora era claramente identificado com o puritanismo, foi tema de

debate no Parlamento durante toda a década de 1620 e o arminianismo foi

redefinido não só como contrário ao Calvinismo, mas contra tudo o que o

puritanismo contestava na Igreja. Neste ambiente teológico e político-religioso que a

Assembleia de Westminster acontece.

Os Presbiterianos eram maioria e destaca-se a presença de John White

como assistente da presidência, que era bisavô de John Wesley608 – ironicamente

seria um dos maiores representantes da teologia arminiana –. Vance pontua que os

calvinistas são obrigados a admitir que a assembleia nunca escapou da supervisão

do Parlamento, que ela era subserviente à autoridade política do Parlamento e que,

602 MCGRATH, Alister, 2012, p. 145. 603 Ibidem, p. 145. 604 VANCE, Laurence M., 2017, p. 205. 605 Ibidem, p. 200. 606 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 286. 607 VANCE, Laurence M., 2017, p. 197. 608 Ibidem, p. 202.

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em termos políticos e seculares, não respondia a Deus, mas aos Lordes e Comuns

do Parlamento inglês. Em 1 julho de 1643 os trabalhos se iniciaram na Abadia de

Westminster e foram encerrados em 22 de fevereiro de 1649.609

Os três grandes documentos produzidos nesta assembleia que, assim como

os cânones de Dort, são fundamentais para ortodoxia calvinista610, são a Confissão

de Fé, o Breve Catecismo e o Maior Catecismo. Estes três documentos são

utilizados até hoje e considerados a melhor expressão das doutrinas contidas nas

Escrituras, de acordo com os calvinistas presbiterianos. Tanto calvinista como não-

calvinistas reconhecem que a Confissão de Fé tem méritos e qualidades

indiscutíveis. Entretanto, para os calvinistas, passaram a considera-la como a

incorporação de suas crenças.611

A análise do conteúdo será iniciada com a Confissão de Fé, em que serão

realizados alguns destaques conforme interesse desta pesquisa em investigar as

causas da racionalização da experiência de Deus. O primeiro ponto que será

abordado na confissão diz respeito a Bíblia, objeto de muito embate na história que

foi relatada na Inglaterra. Diz a confissão em seu primeiro parágrafo: Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência de tal modo manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, contudo não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade necessário para a salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna indispensável a Escritura Sagrada, tendo cessado aqueles antigos modos de revelar Deus a sua vontade ao seu povo.612

Rubem Alves diz que a atitude do protestante para com a Bíblia é algo

relacionado com o conhecimento necessário para salvação, afirmando que este

trecho da confissão está centrado neste núcleo.613 A confissão neste parágrafo

relaciona salvação com o texto, pois sem a Escritura, que é a revelação

indispensável, uma vez que todos os antigos modos de Deus se revelar cessaram, o

homem estará condenado. Obviamente o que a confissão se propõe é normatizar a

interpretação da Escritura, colocando a Escritura como um “finito absoluto”. Ou seja,

609 Ibidem, p. 203. 610 GONZÁLEZ, Justo, 2011b, p. 286. 611 VANCE, Laurence M., 2017, p. 206-207. 612 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, 2016, p. 21. 613 ALVES, Rubem, 1979, p. 96.

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“conhecer Deus é conhecer a palavra escrita do texto”.614 O princípio formal é

altamente privilegiado, conforme já foi destacado, impedindo qualquer elemento de

ordem mais subjetiva. Há conexão clara entre sintoma – a saber a construção de

uma teoria protestante de conhecimento – e causa – que neste caso se trata do

contexto altamente apologético e polêmico e da necessidade de identidade do

protestantismo em meio a inúmeros conflitos externos e internos.

Em segundo lugar, será transcrito abaixo um trecho da confissão em que,

claramente, a Igreja de Roma é posta como inimiga da igreja de Cristo e o papa,

declaradamente, é chamado de anticristo: Não há outro Cabeça da Igreja senão o Senhor Jesus Cristo; em sentido algum pode ser o Papa de Roma o cabeça dela, mas ele é aquele anticristo, aquele homem do pecado e filho da perdição que se exalta na Igreja contra Cristo e contra tudo o que se chama Deus.615

Novamente é possível constatar a relação entre sintoma e causa. A história

mostra o quanto a identidade protestante é construída sob o alicerce do confronto

com Roma. A confissão é mais uma evidência deste fato. Toda a história e ambiente

político-religioso revela a tensão dos calvinistas e puritanos em relação ao

posicionamento da coroa inglesa em relação ao romanismo. Uma vez que esta

mesma confissão é utilizada até hoje em dia, é de se esperar que ao menos parte do

protestantismo contemporâneo tenha um comportamento bélico, especialmente com

o catolicismo. A consequência do apego ao “saudoso” escolasticismo protestante

certamente produz comportamento sectário, em maior ou menor grau.

Em terceiro lugar, serão pontuados os assuntos teológicos que estão

conectados ao Sínodo de Dort. Abaixo seguem transcrições acerca da Providência: Pela sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre e imutável conselho da sua própria vontade, Deus, o grande Criador de todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a maior até a menor.

Posto que, em relação à presciência e ao decreto de Deus, que é a causa primária, todas as coisas acontecem imutável e infalivelmente, contudo, pela mesma providência, Deus ordena que elas sucedam conforme a natureza das causas secundárias, necessárias, livre ou contingentemente.616

[...]

A onipotência, a sabedoria inescrutável e a infinita bondade de Deus, de tal maneira se manifestam na sua providência, que esta se estende até a

614 Ibidem, p. 97. 615 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, 2016, p. 89 – grifo meu. 616 Ibidem, p. 34-35 – grifo meu.

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primeira queda e a todos os outros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma mera permissão, mas por uma permissão tal que, para os seus próprios e santos desígnios, sábia e poderosamente os limita, e regula e governa em uma múltipla dispensarão; mas essa permissão é tal, que a pecaminosidade dessas transgressões procede tão somente da criatura e não de Deus, que, sendo santíssimo e justíssimo, não pode ser o autor do pecado nem pode aprová-lo.617

A ênfase que a doutrina da Providência fornece é de que nada acontece,

seja a mais insignificante coisa, sem que Deus não tenha devidamente decretado.

Não é sem razão que alguns puritanos chegaram a atribuir até mesmo dor de dente

à doutrina, conforme já foi visto. Entretanto, é digno de nota que na própria confissão

existam elementos teológicos que tentam fornecer um equilíbrio doutrinário que

deveria ajudar em relação aos extremismos, como é o caso da permissão que Deus

concede a alguns acontecimentos sem que Ele mesmo seja autor, efetivamente, da

ação.

Entretanto, existem outras considerações que, definitivamente, não

colaboram com esta pseudo tentativa de favorecer equilíbrio doutrinário. A cerca de

outro trecho, transcrito abaixo, Rubem Alves entende que há contradição, do ponto

de vista lógico, quando a confissão diz que tudo ocorre pela vontade de Deus, mas

que o homem é livre.618 Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas.619

Em outro parágrafo, na seção em que os decretos ternos de Deus são

tratados, é ratificado que o decreto divino não está baseado em sua presciência,

mas por ser do seu soberano interesse. Esta preocupação está, provavelmente,

ligada a posição de Armínio e de Trento. Ainda que Deus sabe tudo quanto pode ou há de acontecer em todas as circunstâncias imagináveis, ele não decreta coisa alguma por havê-la previsto como futura, ou como coisa que havia de acontecer em tais e tais condições.620

A contradição parece evidente. Mais evidente é a ênfase que a confissão dá

em relação ao tipo de soberania de Deus que ela busca sustentar. Existe claramente

uma intencionalidade em sustentar que Deus é soberano a tal ponto que Ele deve

617 Ibidem, p. 35-36 – grifo meu. 618 ALVES, Rubem, 1979, p. 158. 619 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, 2016, p. 29-30 – grifo meu. 620 Ibidem, p. 30 – grifo meu.

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decretar tudo, pois se assim não fosse, não seria tão soberano e,

consequentemente, não seria Deus. Sproul, teólogo calvinista já citado, sinaliza

exatamente isto quando diz que “se Deus não é soberano, ele não é Deus”621,

definindo soberania nos termos da confissão.

Neste mesmo capítulo sobre os decretos de Deus consta uma declaração

importante acerca da salvação: Pelo decreto de Deus e para manifestação da sua glória, alguns homens e alguns anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados para a morte eterna.622

A aproximação com a temática e contexto dos Sínodo de Dort são evidentes

e a doutrina da Providência revela aqui sua consequência mais polêmica, que

determina o destino eterno de cada ser humano. Logo no início da confissão, de

forma clara, a doutrina da predestinação é posta em local de destaque, como é de

se esperar da ortodoxia protestante reformada. O presente está cristalizado. A

dualidade dos dois caminhos – largo e estreito – dá lugar para um mundo em que

tudo está definido: ou Deus te “predestinou” ao céu ou te “preordenou” ao inferno. As

palavras de Weber são, no mínimo, razoáveis, ao se pensar na dúvida do fiel em

relação ao seu destino eterno, especialmente o puritano dentro deste contexto: No lugar dos humildes pecadores, a quem Lutero prometia graça caso confiassem-se a Deus, por meio de uma fé penitente, foram criados aqueles santos autoconfiantes, a quem podemos redescobrir nos rijos mercantes puritanos da era heroica do capitalismo, e em instâncias isoladas do presente. Por outro lado, para se conseguir chegar àquela autoconfiança, a atividade mundana era recomendada como o meio mais adequado. Isso, e somente isso, dispensaria as dúvidas religiosas e daria a certeza da salvação.623

Este tipo de fiel ou é autoconfiante ou vive no martírio da dúvida. Abaixo,

neste outro trecho, a cristalização em si ganha destaque: Esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, são particular e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que não pode ser nem aumentado nem diminuído.624

Parece evidente o caráter determinista da confissão de fé, que ressalta a

completa impossibilidade de acréscimo de seres humanos salvos. Quem vive, vive

debaixo da certeza divina que decretou o destino da alma humana. As expressões

são claras e atestam o caráter deste protestantismo, que tem no presente um local

interditado, pois Deus a todos, “homens e anjos”, “predestinou” e preordenou”. 621 Sproul, R. C., 2009, p. 36. 622 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, 2016, p. 30 – grifo meu. 623 WEBER, Max, 2013, p. 141 – grifo meu. 624 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, 2016, p. 31 – grifo meu.

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No próximo trecho destacado abaixo, o caráter limitado da expiação de

Cristo vem à tona: Assim como Deus destinou os eleitos para a glória, assim também, pelo eterno e mui livre propósito da sua vontade, preordenou todos os meios conducentes a esse fim; os que, portanto, são eleitos, achando-se caídos em Adão, são remidos por Cristo, são eficazmente chamados para a fé em Cristo pelo seu Espírito, que opera no tempo devido, são justificados, adotados, santificados e guardados pelo seu poder por meio da fé salvadora. Além dos eleitos não há nenhum outro que seja remido por Cristo, eficazmente chamado, justificado, adotado, santificado e salvo.625

Para glória de Deus, apenas aqueles que Deus destinou tem em Cristo os

benefícios que a salvação resulta: remissão, justificação, adoção, santificação.

Quem Deus não destinou tem zero chance de ser alvo da graça salvadora. Quando

Deus determinou? O próximo trecho responde: Segundo o seu eterno e imutável propósito e segundo o santo conselho e beneplácito da sua vontade, Deus antes que fosse o mundo criado, escolheu em Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados para a vida; para o louvor da sua gloriosa graça, ele os escolheu de sua mera e livre graça e amor, e não por previsão de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse, como condição ou causa.626

Antes mesmo da fundação do mundo, o decreto de cada homem está

realizado por Deus. Trata-se da posição supralapsariana, conforme McGrath explica:

“associada a Beza, considera a eleição anterior à Queda. Aqui, a humanidade antes

da Queda é considerada o objeto do decreto divino da predestinação. Assim, a

Queda é vista como um meio de levar a cabo o decreto da eleição.”627

No último trecho que será destacado sobre este ponto destaca-se o que

Weber e Rubem Alves expõem: a fisionomia do salvo. A doutrina deste alto mistério de predestinação deve ser tratada com especial prudência e cuidado, a fim de que os homens, atendendo à vontade revelada em sua palavra e prestando obediência a ela, possam, pela evidência da sua vocação eficaz, certificar-se da sua eterna eleição. Assim, a todos os que sinceramente obedecem ao Evangelho esta doutrina fornece motivo de louvor, reverência e admiração de Deus, bem como de humildade diligência e abundante consolação.628

Para Weber a evidência do salvo será atestada no trabalho secular. Para

Alves, conforme demonstrado no capítulo primeiro, existe toda uma fisionomia

relacionada a ética cristã. Certo é que a ênfase nesta doutrina produz no converso

625 Ibidem, p. 31 – grifo meu. 626 Ibidem, loc. cit. – grifo meu. 627 MCGRATH, Alister, 2010, p. 535. 628 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, 2016, p. 31-32 – grifo meu.

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ansiedade. Relacionado a esta questão, existe um capítulo da confissão intitulado

“Da certeza da graça e da salvação”. Abaixo um trecho deste capítulo: Ainda que os hipócritas e os outros não regenerados podem iludir-se vãmente com falsas esperanças e carnal presunção de se acharem no favor de Deus e em estado de Salvação, esperança essa que perecerá, contudo, os que verdadeiramente creem no Senhor Jesus e o amam com sinceridade, procurando andar diante dele em toda a boa consciência, podem, nesta vida, certificar-se de se acharem em estado de graça e podem regozijar-se na esperança da glória de Deus, nessa esperança que nunca os envergonhará.629

É interessante notar a tensão que a confissão apresenta. Existem os

“hipócritas” e “não regenerados” que possuem “falsa esperança” no favor de Deus.

Em contrapartida, existem os “sinceros”, que “procuram andar diante dele em toda a

boa consciência”. Quem parece assegurar a salvação? A confissão responde: Esta segurança infalível não pertence de tal modo à essência da fé, que um verdadeiro crente, antes de possuí-la, não tenha de esperar muito e lutar com muitas dificuldades; contudo, sendo pelo Espírito habilitado a conhecer as coisas que lhe são livremente dadas por Deus, ele pode alcançá-la sem revelação extraordinária, no devido uso dos meios ordinários. É, pois, dever de todo o fiel fazer toda a diligência para tornar certas a sua vocação e eleição, a fim de que por esse modo seja o seu coração no Espírito Santo confirmado em paz e gozo, em amor e gratidão para com Deus, em firmeza e alegria nos deveres da obediência que são os frutos próprios desta segurança. Este privilégio está, pois, muito longe de predispor os homens à negligência.630

A segurança vem com “dificuldade” e com “lutas”. Esta certeza não é fruto

de “revelação extraordinária”, mas “ordinária”. E é dever do fiel “fazer toda a

diligência para tornar certas sua vocação e eleição”. Novamente se sobressai o

dilema do crente em saber se está salvo ou se está condenado. De uma forma ou de

outro, fica claro que a busca desta certeza depende do próprio fiel e do seu esforço

moral.

Em quarto lugar, vale destaca que em relação a liberdade de consciência do

cristão também existe um capítulo: “Da liberdade cristã e da liberdade de

consciência”. Abaixo será destacado um dos parágrafos: Visto que os poderes que Deus ordenou, e a liberdade que Cristo comprou, não foram por Deus designados para destruir, mas para que mutuamente nos apoiemos e preservemos uns aos outros, resistem à ordenança de Deus os que, sob pretexto de liberdade cristã, se opõem a qualquer poder legítimo, civil ou religioso, ou ao exercício dele. Se publicarem opiniões ou mantiverem práticas contrárias à luz da natureza ou aos reconhecidos princípios do Cristianismo concernentes à fé, ao culto ou ao procedimento; se publicarem opiniões, ou mantiverem práticas contrárias ao poder da piedade ou que, por sua própria natureza ou pelo modo de publicá-las e

629 Ibidem, p. 65-66 – grifo meu. 630 Ibidem, p. 66-67 – grifo meu.

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mantê-las, são destrutivas da paz externa da Igreja e da ordem que Cristo estabeleceu nela, podem, de justiça ser processados e visitados com as censuras eclesiásticas.631

É importante relembrar que um dos grandes crimes do CRD é o crime de

pensamento. Na confissão, conforme destaque, se percebe que “se opor a qualquer

poder legítimo”, se opor aos “princípios do Cristianismo” relacionados a “fé, ao culto

ou ao procedimento” ou ir contra o “poder da piedade”, é passível de processo e

censura eclesiástica. A história nos mostra que os movimentos protestantes foram

contra poderes instituídos (o próprio contexto desta confissão!) e se opuseram a

princípio cristãos até então consolidados (Igreja Católica). Mesmo assim, esta

ortodoxia protestante está precavida em relação aqueles que querem se utilizar

indevidamente da liberdade que existe em Cristo.

Relacionado a este último ponto, não se pode deixar de mencionar o

capítulo que aborda a autoridade dos sínodos e concílios. Abaixo a transcrição: Aos sínodos e concílios compete decidir ministerialmente controvérsias quanto à fé e casos de consciência, determinar regras e disposições para a melhor direção do culto público de Deus e governo da sua Igreja, receber queixas em caso de má administração e autoritativamente decidi-las. Os seus decretos e decisões, sendo consoantes com a palavra de Deus, devem ser recebidas com reverência e submissão, não só pelo seu acordo com a palavra, mas também pela autoridade pela qual são feitos, visto que essa autoridade é uma ordenação de Deus, designada para isso em sua palavra.632

Ou seja, os documentos frutos destas assembleias religiosas são dotados,

conforme destaque, de autoridade. Se faz necessário recordar que as confissões

são determinantes para o correto funcionamento da teoria do conhecimento

protestante e, neste sentido, nada mais coerente do que dedicar um capítulo para

munir de poder tais documentos.

Em quinto e último lugar, nos capítulos finais, existe uma série de assuntos

que eram debatidos na época que a confissão procura abordar. Um deles, em

especial, foi citado no primeiro capítulo: o Dia do Senhor. Como é lei da natureza que, em geral, uma devida proporção do tempo seja destinada ao culto de Deus, assim também em sua palavra, por um preceito positivo, moral e perpétuo, preceito que obriga a todos os homens em todos os séculos, Deus designou particularmente um dia em sete para ser um sábado (descanso) santificado por Ele; desde o princípio do mundo, até a ressurreição de Cristo, esse dia foi o último da semana; e desde a ressurreição de Cristo foi mudado para o primeiro dia da semana, dia que na Escritura é chamado Domingo, ou dia do Senhor, e que há de continuar até ao fim do mundo como o sábado cristão.

631 Ibidem, p. 74 – grifo meu. 632 Ibidem, p. 101 – grifo meu.

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Este sábado é santificado ao Senhor quando os homens, tendo devidamente preparado os seus corações e de antemão ordenado os seus negócios ordinários, não só guardam, durante todo o dia, um santo descanso das suas próprias obras, palavras e pensamentos a respeito dos seus empregos seculares e das suas recreações, mas também ocupam todo o tempo em exercícios públicos e particulares de culto e nos deveres de necessidade e misericórdia. 633

Se percebe que o sintoma detectado por Rubem Alves tem sua

correspondente causa nesta confissão do séc. XVII. O “Dia do Senhor” tem uma

importância elevadíssima para esta ortodoxia e isto pode ser percebido até hoje.

Em relação aos catecismos, serão feitas algumas considerações com o

propósito de esclarecer o motivo de sua existência. Na versão analisada, que data

de 2016, existe uma introdução ao Catecismo Maior feita pelo editor. Algumas de

suas considerações merecem ser pontuadas. Ele justifica a necessidade deste

catecismo por conta do risco do subjetivismo existem nesta época. O editor entende

que este tipo de documento protege a comunidade religiosa de “outras correntes

doutrinárias e teológicas”, conduzindo o crente à aceitação da Bíblia, as Escrituras

Sagradas.634 Para ele, este catecismo é “modelo de fidelidade às Escrituras e

coerência”. Outro ponto que o editor destaca é o propósito do catecismo, que é

“servir à instrução geral do povo de Deus, dentro do sistema de teologia

apresentado pela Confissão de fé de Wesminster.”635

Tendo em vista tudo que foi analisado no capítulo primeiro, o espírito do

CRD parece estar presente no séc. XXI. É a confissão quem determina a

interpretação das Escrituras. Ou seja, dentro deste contexto, o “livre exame” não é

tão livre assim. Todo o conteúdo do catecismo tem o propósito de instruir os

membros da comunidade religiosa a compreenderem, sem dúvida alguma, a

confissão de fé. Dentro da dinâmica já apresentada, entre mestres e aprendizes, o

catecismo subtrai do indivíduo a oportunidade da dúvida, pois as próprias perguntas

já estão postas, bem como as respostas. Em outras palavras, os catecismos, tanto o

maior como o breve, são norteadores que dirigem o fiel a, adequadamente,

responder acerca da reta doutrina, que consta na confissão. Herminster Maia

discorre fornecendo características específicas acerca dos catecismos de

Westminster e pontua que a teologia dos catecismos tem sua base na confissão: O Breve Catecismo foi elaborado para instruir as crianças; O Catecismo Maior, especialmente para a exposição no púlpito, ainda que não

633 Ibidem, p. 78-79 – grifo meu. 634 Ibidem, p. 109. 635 Ibidem, p. 110.

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exclusivamente. Eles substituíram em grande parte os Catecismos e Confissões mais antigos adotados pelas igrejas Reformadas de fala inglesa. Apesar da teologia dos Catecismos e da Confissão de Westminster ser a mesma, sendo por isso sempre adotados os três, parece que os mais usados são o Catecismo Menor e a Confissão.636

Uma comparação se faz necessária. Quando o catecismo confeccionado em

Westminster é comparado, por exemplo, com o Catecismo de Heidelberg (publicado

em 1563637), percebe-se alguns elementos bastante distintos, muito embora tenha

formato semelhante (perguntas e respostas). Vance destaca que o Catecismo de

Heidelberg tem um caráter geral, abrangendo todos os tipos de temas e doutrinas.638

Nota-se, por exemplo, que a palavra “predestinação” sequer é mencionada no

Catecismo de Heidelberg.639 É possível notar um caráter pastoral no Catecismo de

Heidelberg, muito diferente da ênfase apologética de Dort e Westminster. Hermisten

Maia destaca este aspecto não polêmico e cita a notória ênfase pastoral: Este Catecismo tem como dois de seus pontos fortes o seu aspecto não polêmico – com exceção da pergunta 80 –, e o tom pastoral com o qual ele foi escrito, usando muitas vezes a primeira pessoa do singular, sendo as suas respostas uma declaração pessoal de fé, tendo as verdades teológicas uma aplicação bem direta às necessidades cotidianas do povo de Deus.640

Finalizamos este tópico citando mais uma vez Weber, que destaca a

importância para os calvinistas desde dois eventos importantíssimo para ortodoxia

protestante reformada. Os grandes sínodos do século XVII, acima de tudo aqueles de Dordrecht [Dort] e de Westminster, a despeito de numerosos outros de menor importância, fizeram de sua elevação ao nível de autoridade canônica o propósito central de suas vidas.641

5. Causas da racionalização da experiência de Deus na Escolástica Protestante

Diante da exposição realizada no capítulo segundo, será realizado neste

momento um resumo das causas da racionalização da experiência de Deus que se

encontram dentro da “saudosa” ortodoxia protestante. Na sequência, no capítulo

636 MAIA, Hermisten. A relevância da ortodoxia protestante na elaboração das confissões protestantes dos séculos XVI e XVII. Disponível em <https://bit.ly/2yi2jFR> Acessado em 4 de out. 2018, p. 12 – grifo meu. 637 VANCE, Laurence M., 2017, p. 146. 638 Ibidem, p. 187. 639 CATECISMO DE HEIDELBERG. Disponível em <https://bit.ly/2zSYmcH> Acessado em 4 de out. 2018, passim. 640 MAIA, Hermisten, 2018, p. 10 – grifo meu. 641 WEBER, Max, 2013, p. 130.

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terceiro, as causas serão analisadas tendo em vista aquele cujo nome está presente

na teologia do CRD: João Calvino.

Antes de levantarmos as causas, porém, é de suma importância relembrar a

hipótese desta pesquisa. As hipóteses levantadas na introdução da pesquisa

afirmam que a racionalização da experiência de Deus acontece por conta de um

comprometimento por parte do CRD com uma sistematização teológica, a qual não

permite que o aspecto subjetivo da vivência da fé se manifeste, pois é no sistema

teológico que se encontra a verdade. Esse tipo de comportamento é fruto da própria

dinâmica da religião, que cria seus “sacerdotes” para preservar, conservar e suportar

no presente a religião de forma intacta e sem novidades, tendo suas bases no

passado, sustentando, assim, sua ortodoxia. No caso do CRD, a desconfiança inicial

desta pesquisa é a existência de um deslocamento indevido de contextos. O CRD

não é capaz de compreender o locus originário e as razões em que a ortodoxia se

constitui no passado. Por isso, o mesmo ambiente do passado, que possui

características religiosas, políticas e sociais específicas, é vivenciado no presente

com as mesmas paixões dos religiosos dos séculos XVI e XVII. Dai surge no CRD o

espírito apologético, a constante presença de inimigos e hereges, além do próprio

espírito saudosista. As causas destacadas abaixo corroboram com esta

descontextualização do CRD, que é causa primária.

Na sequência, seguem as causas da racionalização da experiência de Deus

identificadas neste período e que produzem, direta ou indiretamente, os sintomas

identificados no capítulo primeiro: a. Dissociação da relação de Lutero com sua

experiência de Deus pessoal como agente decisivo para a Reforma no séc. XVI; b.

Falta de compreensão de que o séc. XVI produziu uma mudança de paradigma em

relação ao monopólio da fé da religião instituída para aspecto subjetivos do ser

humano religioso; c. Compreensão clara da não intenção de Lutero em provocar um

cisma com a Igreja Católica; d. Necessidade de constante reafirmação de identidade

do protestantismo, fruto de uma busca que remonta a Contra-Reforma católica em

Trento, o que gera o espírito apologético, bélico e cuja matriz da identidade está

relacionada com o grande inimigo: Igreja Romana; e. Influência do aristotelismo na

teologia da ortodoxia protestante; f. Influência do racionalismo na teologia da

ortodoxia protestante; g. Busca desequilibrada pela verdade absoluta no campo

religioso; h. Presença de um processo natural de maior reflexão após a Reforma do

séc. XVI; i. Elementos teológicos específicos como o princípio formal e material, que

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colaboram para a Teoria do Conhecimento Protestante, e acerca da teologia natural

e revelada, que tem em si fator que produz desequilíbrio entre fé e razão; j.

Descompressão do papel das confissões doutrinárias no contexto da ortodoxia

protestante, que expandia os horizontes religiosos e estavam diretamente

associadas à questões políticas e de Estado; h. O CRD herdou características

negativas do movimento puritano; l. Desprezo pelos contextos político-sociais do

passado da ortodoxia, os quais tiverem seus processo históricos específicos, e

desconsideração de novas sínteses históricas, que reconfiguram o espírito

protestante do presente (causa primária); m. Ênfase teológica relacionada a

acontecimentos e documentos importantes do passado – a saber, Sínodo de Dort e

Assembleia de Westminster –, cujos contextos político-sociais não são colocados

em seus devidos lugares, produzindo incapacidade de novas reflexões no presente

(relacionado a causa anterior).

Conclusão

Após essa explanação sobre a “saudosa” ortodoxia protestante, merece

destaque a questão acerca do desprezo contextual do CRD em relação ao seu

passado, o que se caracteriza causa primária da racionalização da experiência de

Deus. É razoável pensar, ainda mais dentro da proposta aqui desprendida e mesmo

considerando possíveis divergência em uma ou outra interpretação dos fatos

históricos, que uma leitura honesta do passado do CRD é um argumento que ajuda

a mitigar os sintomas que a racionalização da experiência de Deus causa. É irônico,

conforme sinaliza Laurence Vence, pensar que o Sínodo de Dort se inicia com a

Guerra dos Trinta anos, a qual termina junto da Assembleia de Westminster.642

Parece evidente o prejuízo que as guerras religiosas trouxeram para a fé e bastante

razoável que movimentos como o pietismo e liberalismo tenham se desenvolvido

como reação dessa ortodoxia que, minimamente, produziu ceticismo religioso.

No afã de busca de identidade e em meio a contextos políticos bastante

distintos, o fatalismo e o determinismo parecem ser forjados a partir de confissões

religiosas produzidas nesses eventos hiper-valorizados da ortodoxia protestante.

Mesmo que não tenha sido a intenção, o resultado foi a construção de uma

cosmovisão que, ao menos no CRD, resulta na interdição do presente como local

642 VANCE, Laurence M., 2017, p. 203.

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criativo e de renovação, principalmente em relação a experiência de Deus. O

contexto de defesa de identidade e o espírito apologético contribuíram muito para a

construção de uma teologia que tirava o poder da Igreja Católica e retornava o poder

a Deus, que estava acima da igreja instituída. Entretanto, o protestantismo ortodoxo

estava, ironicamente, criando os alicerces para um comportamento semelhante ao

“inimigo”.

Esse tipo de postura confessional está extremamente em conformidade com

as características desse período em que a ortodoxia protestante se desenvolve,

período este que exige definição teológica por motivos religiosos e por razões

políticas. Não se pretende aqui esgotar as motivações das relações político-

religiosas. Porém, fica evidente que há uma relação. Quem faz uso de quem não é

objeto desta investigação. Mas é correto afirmar que as conexões de ambas as

partes, das polêmicas religiosas em favor de posições políticas ou das posições

políticas em favor das posições religiosas, deram um sinal claro para o mundo no

final do séc. XVII de desgaste e quem foi prejudicada foi a religião, a qual caiu em

descrédito. Se a religião buscou força para estabelecer sua ortodoxia, é certo que

seu “plano” não foi bem-sucedido, ao menos no que diz respeito aos assuntos

religiosos. Ao contrário, como já foi dito, a ortodoxia ganhou outros inimigos (por

exemplo o liberalismo teológico), os quais, de alguma forma, tentaram recolocar as

questões religiosas para dentro dos debates intelectuais do período iluminista.

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CAPÍTULO III – A EXPERIÊNCIA DE DEUS EM CALVINO

Introdução

Neste terceiro capítulo, último passo que será dado na análise proposta

neste trabalho, as causas da racionalização da experiência de Deus serão

investigadas no teólogo mais significativo dentro do calvinismo: João Calvino.

Algumas perguntas deverão ser respondidas. Dentre elas: Calvino era calvinista?

Calvino foi o grande sistematizador da teologia calvinista? Calvino tinha um espírito

racionalista, desprezando a experiência de Deus? Calvino estava mais próximo de

Lutero ou da escolástica protestante que lhe sucedeu? As Institutas da Religião

fornecem as mesmas ênfases do calvinismo? Como se deu a experiência de Deus

de Calvino? Qual era a diferença de Calvino em relação aos outros reformadores? O

quanto Calvino enfatizou a doutrina da predestinação e por quê?

Como já foi reiterado algumas vezes no decorrer da exposição, se espera

que as tentativas de respostas aos questionamentos acima colaborem com uma

argumentação que resulte em colocar a experiência de Deus em seu local de

importância dentro do universo religioso cristão, especialmente dentro do CRD.

Certamente este retorno ao passado colabora para uma compreensão do presente,

desmistificando certos paradigmas criados e contribuindo para uma mentalidade

condizente ao espírito do tempo presente e não, simplesmente, uma repetição de

antigas interpretações.

A análise de João Calvino se dará permeando quatro pontos deste

importante reformador. O primeiro será uma biografia não exaustiva da vida de

Calvino, em que será feito um recorte relacionado a sua experiência de conversão e

uma busca por suas influências. Em segundo lugar será feita uma análise

comparativa entre Calvino com Lutero, visando compreender o que os assemelha e

os distingui. A principal obra desse reformador, As Institutas da Religião Cristã, será

analisada no terceiro tópico. E, por fim, a pergunta “Calvino era calvinista?” será

trabalhada, com argumentos pró e contra e uma ênfase na doutrina da

predestinação em Calvino.

1. Biografia de João Calvino

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Alister McGrath, já citado neste trabalho, possui uma excelente obra sobre a

vida e pensamento de João Calvino, A vida de João Calvino, em que lida com

muitos detalhes da vida do reformador e as divergências encontradas em sua

história, sempre retornando à uma análise das fontes bastante minuciosa. Tendo

esta biografia como base (além de outros autores), a proposta deste início de

capítulo é retratar a vida do reformador destacando as suas influências, que serão

de muito valor para atestar como Calvino colabora – ou não – com a constituição do

Calvinismo da Reta Doutrina e racionalização da experiência de Deus.

É preciso, primeiramente, salientar a dificuldade que existe em retratar o

“Calvino histórico”. Como McGrath afirma em sua biografia, “sabemos muito menos

sobre ele, particularmente sobre seu período inicial, do que gostaríamos de

saber.” 643 Alguns motivos devem ser considerados para esta ausência de

informação. Em primeiro lugar, ausência de material de autoria do próprio Calvino

relacionado ao seu período de formação.644 Segundo, Calvino tem em sua modéstia

uma barreira que dificulta sua reconstituição histórica, pois fala pouco acerca de si

mesmo. 645 Existe ainda um outro elemento que pode dificultar uma correta

compreensão sobre esse importante reformador. Há uma “leviana” insistência na

reprodução de ideias que se baseiam em uma obra de Jerônimo Bolsec, com quem

Calvino teve um desentendimento em 1551. No livro de Bolsec, Calvino é retratado

como “irremediavelmente aborrecido, malicioso, violento e frustrado”. Bolsec ainda

faz afirmações na direção que Calvino “considerava suas próprias palavras como se

fossem a palavra de Deus” e que era “vítima de suas tendências homossexuais”,

tendo, por conta disto, o hábito de flertar com “qual mulher que se aproximasse

dele” 646 . É certo, porém, como afirma McGrath, que existe uma ausência de

fundamentação histórica para tal descrição.647

1.1. Influências

Calvino nasceu em 1509 na cidade de Noyon, na França, “quando Lutero já

havia ditado suas primeiras conferências na universidade de Wittenberg”648. Ele

nasce, portanto, no séc. XVI, durante um período caracterizado pela “iminência da 643 MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 31. 644 Ibidem, p. 32. 645 Ibidem, p. 33. 646 Ibidem, loc. cit. 647 Ibidem, loc. cit. 648 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 107.

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Reforma”649. Período que, dentre tantas características, se destaca o avanço da

alfabetização dos adultos, o fenômeno da religiosa pessoal, avanço do

anticlericalismo e a crise de autoridade na igreja instituída.650 Foi filho de Gérard

Cauvin, pertencente à classe média de sua cidade e secretário do bispo e

procurador da biblioteca da catedral. Justo González diz que esta relação de Cauvin

com o clero permitiu o custeio dos estudos do jovem Calvino.651 Wilson Castro

Ferreira, em seu livro Calvino: Vida, Influência e Teologia, esclarece que “o desejo

de Gérard Cauvin de encaminhar Calvino para uma carreira eclesiástica em Paris

(estudar teologia) não era fruto de uma preocupação religiosa”652, mas, tão somente,

o desejo de ver o filho bem sucedido e usufruindo dos benefícios sociais, políticos e

financeiros que este tipo de carreira propiciava na época. Ferreira afirma que Gérard

era “católico praticante, embora sem a piedade que distinguia a nobre esposa”653.

McGrath, que também ressalta os interesses pouco religiosos do pai de Calvino,

afirma, inclusive, que a motivação para que Gérard acabasse por remover Calvino

de Paris entre 1527 e 1528, com o objetivo dele estudar direito civil na cidade de

Orleans, era puramente financeira, já que a prática do direito era mais rentável.654

É muito provável que Calvino sequer iniciou os estudos teológicos em Paris.

Mesmo assim, é confiável afirmar que ele cursou a faculdade de humanidade, que

era entendido como um curso de filosofia. Essa faculdade era um curso preparatório

e, ao término, o aluno poderia optar por uma das três faculdades mais importantes:

teologia, medicina ou direito. Conforma já informado, Calvino acabaria estudando

direito. Neste período em Paris ele chegou a ter aulas de gramática latina e,

provavelmente, teve aulas de latim.655 Beza, em sua segunda biografia de Calvino

(1575), atesta o domínio de Calvino do latim neste período.656

O curso de humanidade tinha grande ênfase no estudo da lógica,

principalmente a lógica de Aristóteles. A postura em relação a Aristóteles em Paris

era positiva, muito embora em outros lugares da Europa Aristóteles estava sendo

alvo de crítica e ceticismo. Embora Calvino venha a ter uma posterior aversão ao

649 MCGRATH, Alister, 2004, p. 30. 650 Ibidem, passim. 651 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 107-108. 652 FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: Vida, Influência e Teologia. Campinas: Luz para o Caminho, 1990, p. 34. 653 Ibidem, 1990, p. 32. 654 MCGRATH, Alister, 2004, p. 49. 655 Ibidem, p. 41;43. 656 Ibidem, p. 50.

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escolasticismo medieval, ele acabou por ser influenciado pela filosofia natural

aristotélica, particularmente em relação a física, astronomia e meteorologia.657 A

impressão que a Europa tinha da vida estudantil parisiense era equivalente a que

Europa tinha dos pensadores escolásticos (a Escolástica correspondia a 1250 e

1500). Muito aliada aos métodos e ideias de Aristóteles, os humanistas

consideravam a Universidade de Paris o centro de um movimento inútil e com

especulações intelectuais áridas acerca de trivialidades. Questões tolas, como, por

exemplo, “Deus poderia ter se tornado um pepino, em vez de um humano?”, ilustram

a imagem de universidade cuja reflexão sinalizava uma total irrelevância.658

Uma outra corrente de pensamento presente em Paris também pode ter

influenciado o ainda jovem reformador. Perguntas relacionadas a salvação do

homem parecem ter surgido nesta época, trazendo à tona um debate teológico

realizado outrora por Agostinho e Pelágio. Existia a escola da via moderna, que

tendia mais para o lado pelagiano, em que o homem podia encontrar em si recursos

necessários para a salvação. Por outro lado, existia a escola agostianiana moderna

que somente Deus poderia iniciar o processo para salvar o homem. Obras de

Agostinho, especialmente as antipelagianas, tiveram ampla utilização neste período.

A perspectiva do pecado original era tida como muito pessimista, sendo um marco

na história da humanidade. Dentro deste pensamento a grande ênfase estava na

prioridade de Deus na salvação da humanidade e na doutrina da dupla

predestinação absoluta. Certamente essa influência é percebida nos escritos de

Calvino, que chegou a afirmar que Agostinho seria totalmente “nosso”659, no sentido

dele ser totalmente “protestante”. Como Calvino foi influenciado por essas

discussões teológicas em Paris não é certo, em virtude da fragmentação das

informações desse período em que esteve em Paris.660 Como McGrath destaca, “Ela

é, contudo, intrigante e serve para nos lembrar que Calvino, longe de romper de

forma absoluta com a tradição medieval, adota, na verdade, muitas posições

teológicas e filosóficas de uma impecável linhagem medieval.”661

Outra possível influência que Calvino sofreu diz respeito as ideias atreladas

a grande figura da reforma da primeira metade do séc. XVI: Lutero. Devido a

657 Ibidem, p. 51-52. 658 Ibidem, p. 57. 659 Ibidem, p. 178. 660 Ibidem, p. 58-64. 661 Ibidem, p. 65.

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censura às ideias de Lutero, a faculdade de teologia de Paris foi dominada,

consequentemente, por uma agenda relacionada ao monge agostiniano. A “heresia

estrangeira”, embora não haja como precisar com exatidão, pode ter encontrado em

Calvino um ponto de contato neste período.662

Este período que Calvino passou na Universidade de Paris não foi tão

decisivo em relação as influências que ele sofreu quando comparado ao segundo

momento que será descrito: o estudo de direito na cidade de Orleans. Nesta cidade

e, posteriormente, em Bougers, João Calvino será apresentado ao Humanismo, que

iria influencia-lo com maior profundida.663 É preciso esclarecer que este Humanismo

do séc. XVI, do período da Renascença, não é caracterizado dentro de uma

perspectiva secular, como é associado a partir do séc. XX. Em sua teologia

sistemática McGrath traz a definição correta deste movimento determinante na vida

do ainda jovem reformador: Em sentido estrito, a palavra designa um movimento intelectual ligado ao Renascimento na Europa. A essência do movimento encontrava-se em um renovado interesse pelas conquistas culturais da Antiguidade Clássica, e não em um conjunto de idéias ou conceitos de caráter secular ou secularizante (como parece sugerir o significado atual da palavra). Sob a ótica humanista, as conquistas da Antiguidade Clássica eram vistas como fonte de importância fundamental para a renovação da cultura e do cristianismo europeu no período do Renascimento.664

Dentro deste movimento é possível encontrar como tema comum nos

escritos humanistas uma “necessidade de incentivar a eloquência falada e escrita,

com o grego e o latim clássicos servindo como modelos e fontes para esse

ambicioso programa estético.” As obras em grego e latim eram estudas em sua

versão original, como “meios para alcançar um fim, e não como um fim em si

mesmas.” “O estudo clássico e a competência filosófica eram, simplesmente, as

ferramentas usadas para explorar os recursos da Antiguidade.” Os humanistas

compartilhavam de uma “visão comum sobre como se chegar aos conceitos” e não

os conceitos em si, pois se trata de um movimento heterogêneo. Exemplo disto é a

presença de adeptos de Platão e de Aristóteles, como acontecia em Paris.665 É

dentro deste ambiente que está presente o famoso retorno às fontes (ad fontes).

662 Ibidem, p. 67. 663 Ibidem, p. 69. 664 Idem, 2010, p. 654-655. 665 MCGRATH, Alister, 2004, p. 71.

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Dentro deste contexto existe uma busca pela vitalidade dos textos bíblicos lidos a

partir da língua original e sem a mediação de comentários medievais.666

Calvino chegou a Orleans provavelmente em 1528 e, no ano seguinte, foi

para Bourges, devido a reputação de um professor de direito italiano, o jurista

Andréa Alciati. Depois, em 1530, ele parece ter retornado a Orleans, em decorrência

do declínio de Alciati, que já não estava em Bourges. “Calvino era, ao mesmo

tempo, um filósofo humanista e um advogado prático” e a “ligação entre direito e

literatura [...] parece haver introduzido Calvino ao mundo dos valores, métodos e

fontes humanistas.”667 As origens do método de Calvino estão relacionadas ao

estudo de direito que ele teve em Orleans e em Bourges.668 Calvino estava sendo

preparado para, no futuro, se tornar o “advogado de Deus” dentro do seu contexto

histórico.

1.2. Adesão (conversão) à Reforma

Calvino ainda não se tornara o reformador que haveria de ser e, tão pouco,

tinha aderido a Reforma. Como ele passou de humanista para reformador? Dentro

daquele contexto do séc. XVI, conversão tinha uma certa equivalência em relação

ao que Paulo critica no Novo Testamento: deixar um tipo de Judaísmo que confia na

justificação pelas obras da Lei e aderir ao Evangelho. Mas, no caso de Calvino, se

tratava de abandonar o Catolicismo medieval e declarar uma ligação com a

Reforma. Ou seja, “ninguém nascia evangélico nos anos 1520 ou de 1530: tornar-se

um envolvia uma decisão consciente de romper com o passado, equivalendo-se

àquilo que havia sido experimentado pelos judeus convertidos ao Cristianismo, no

seu período inicial.”669

A experiência de conversão de Calvino – a experiência de Deus – é difícil de

ser descrita, uma vez que existem poucos relatos devido a personalidade de

Calvino, que, conforme descreve Ferreira, “se abstém de tratar de suas experiências

íntimas.”670 González, igualmente, diz que se sabe pouco sobre o que levou Calvino

a abandonar a fé romana. “Diferentemente de Lutero, Calvino nos diz muito pouco

666 Ibidem, p. 73. 667 Ibidem, p. 77. 668 Ibidem, p. 78. 669 Ibidem, p. 88. 670 FERREIRA, Wilson Castro, 1990, p. 50.

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sobre o estado interior de sua alma.”671 McGrath, além de outros pesquisadores que

se referem a este mesmo escrito, diz que é no comentário de Calvino sobre os

Salmos (1557) em que se encontra a referência segura sobre esse processo na vida

do futuro reformador: Quando eu era ainda bem pequeno, meu pai me destinou aos estudos de teologia. Mais tarde, porém, ao ponderar que a profissão jurídica comumente promovia aqueles que saíam em busca de riquezas, tal prospecto o induziu a subitamente mudar seu propósito. E assim aconteceu de eu ser afastado do estudo de filosofia e encaminhado aos estudos da jurisprudência. A essa atividade me diligenciei a aplicar-me com toda fidelidade, em obediência a meu pai; mas Deus, pela secreta orientação de sua providência, finalmente deu uma direção diferente ao meu curso. Inicialmente, visto eu me achar tão obstinadamente devotado às superstições do papado, para que pudesse desvencilhar-me com facilidade de tão profundo abismo de lama, Deus, por um ato súbito de conversão, subjugou e trouxe minha mente a uma disposição suscetível, a qual era mais empedernida em tais matérias do que se poderia esperar de mim naquele primeiro período de minha vida. Tendo assim recebido alguma experiência e conhecimento da verdadeira piedade, imediatamente me senti inflamado de um desejo tão intenso de progredir nesse novo caminho que, embora não tivesse abandonado totalmente os outros estudos, me ocupei deles com menos ardor.672

É possível perceber no relato a associação do acontecimento com a

providência divina, o então aprisionamento ao que ele chama de “superstições do

papado”, o ato de Deus ter promovido a “súbita conversão” e que, mediante a

experiência, ele teve acesso ao conhecimento da “verdadeira piedade” e “sentiu-se

inflamado”. Embora os relatos sejam poucos, parece evidente que ocorreu uma

experiência místico-religiosa com Calvino. Entretanto, é importante destacar que,

diferente de Lutero, a experiência religiosa de ordem institucional está bastante

presente, tanto pela descrição de Calvino, ao se referir ao papado, como pelo já

citado contexto deste período. McGrath argumenta que a “’conversão’ não

designava, meramente, uma experiência religiosa privada e interna; ela abrangia

uma mudança exterior, visível e radical da lealdade institucional.”673 A teologia de

Calvino está presente em seu relato. É possível notar que ele é passivo na

experiência, enquanto Deus é ativo. “Deus age, Calvino sofre a ação.”674

Em relação ao termo “súbita”, diretamente relacionado a experiência do

próprio Calvino, McGrath destaca: O termo súbita ressoa com nuances do inesperado, do imprevisível, do

671 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 109. 672 CALVINO, João. Série Comentários Bíblicos: Salmos. São José dos Campos: Editora Fiel, vol.1, 2009, p. 30-31 – grifo meu. 673 MCGRATH, Alister, 2004, p. 88. 674 Ibidem, p. 89.

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incontrolável – todos os aspectos essenciais da maneira como Deus age, segundo Calvino. Falando de sua conversão, ele não tem a intenção de nos informar historicamente, mas deseja sinalizar seu vínculo com as grandes figuras “renascidas” no mundo cristão – homens e mulheres cujos caminhos Deus reverteu para que eles pudessem lhe prestar um grande serviço.675

Outro ponto que merece ser destacado é a maneira como Calvino

compreende a experiência de Deus. Devido a formação intelectualizada de Calvino,

pode-se, facilmente, cair no erro de compreender que o reformador não coloca a

experiência de ordem subjetiva em lugar de equilíbrio com as explicações mais

racionalizadas acerca da fé cristã. Isto é um erro. McGrath discorre sobre esta

temática, combatendo a ideia de um Calvino “bibliólatra” e argumentando acerca da

maneira como o reformador compreendia o texto sagrado: Deve-se enfatizar, desde o início, que Calvino não reduz e não acredita que seja possível reduzir Deus e a experiência cristã a palavras. O Cristianismo não é uma religião verbal, mas, antes, baseada em experiências; está centralizado no encontro transformador daquele que crê com o Cristo ressuscitado. A partir da perspectiva da teologia cristã, contudo, essa experiência é posterior às palavras que a gerem, evocam e informam. O Cristianismo é centralizado em Cristo, não em livros; se este aparenta ser centrado em livros, isto se deve ao fato de que é através das palavras da Escritura que o fiel se encontra e se alimenta do conhecimento de Jesus Cristo. A Escritura é um meio, não um fim; um canal, em vez daquilo que é transmitido por esse canal. A preocupação de Calvino com a linguagem humana e, principalmente, com o texto da Escritura, reflete sua crença fundamental de que é ali, isto é, através da leitura do texto e da meditação sobre aquele texto, que se torna possível encontrar e experimentar o Cristo ressuscitado. A concentração sobre o meio retrata a importância crucial que Calvino atribui ao fim. Sugerir que Calvino seja um “bibliólatra”, alguém que idolatra um livro, é demonstrar uma vergonhosa falta de percepção sobre seus interesses e métodos. É precisamente porque Calvino atribui uma importância suprema à adoração apropriada de Deus, que ele considera tão importante reverenciar e interpretar, corretamente, o único meio através do qual se pode obter o pleno e definitivo acesso a esse Deus – as Escrituras.676

Mesmo assim, é preciso ressaltar o caráter fundamental do texto na

compreensão de Calvino. Embora a Escritura não seja um fim em si mesma, ela é

um meio decisivo para que o homem tenha uma experiência de Deus. A ideia que

ele desenvolve é chamada de “princípio de acomodação” e consiste no fato de Deus

se revelar a si mesmo em forma de palavras. Se trata de Deus se auto adaptar às

capacidades e coração humano, de forma que nos tornamos capazes de

compreendê-lo. Em outras palavras, “Deus teve de descer ao nosso nível, para se

revelar a nós”. Isso acontece na Escritura quando Deus se utiliza, por exemplo, de

“linguagem infantil” ao se referir a si próprio com boca, olhos, mãos e pés. Se trata

675 Ibidem, p. 90. 676 Ibidem, p. 156-157.

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do conceito comumente chamado de “antropomorfismo”.677 Ele não despreza o fato

da Escritura carecer de interpretação. São nas Institutas da Religião Cristã que

Calvino desenvolverá a “única apresentação oficial de suas ideias religiosas”, que

deverá ser considerada como “prioridade” em relação as demais obras deste

pensador cristão.678 Esta importantíssima obra terá lugar de destaque e análise

ainda neste capítulo.

O rompimento oficial com a Igreja Católica pode ser considerado em 4 de

maio de 1534, em que ele deixa a capelania de La Gésine, em Noyon, a entregando

a um novo beneficiário.679 Muito embora haja bastante nebulosidade em relação a

como se deu, exatamente, essa transição de Calvino entre o catolicismo para uma

aderência a causa da Reforma, é certo que sua compreensão de religião passou de

“consensual” para “comprometida”, pois sua reflexão e percepção religiosa

ganharam outra dimensão.680

A França passou a ter no evangelicalismo uma ameaça, uma “religião de

rebeldes”, que colava em risco o status quo francês. Devido ao ambiente hostil ao

Calvino já associado e marcado por ideias reformistas, em 1534 ele deixa a França

e vai para Basiléia, chegando em janeiro de 1535. De lá ele ficou muito magoado por

perceber que os evangélicos estavam sendo associados aos anabatistas, os quais

eram inspirados por motivos políticos e não religiosos. É neste contexto em que ele

escreve a primeira versão das Institutas, para “provar a manifesta estupidez da

alegação de que a perseguição dos évangéliques poderia ser justificada pela

comparação com os anabatistas alemães.”681 Abaixo trecho da conclusão da carta

de Calvino ao rei da França Francisco I em que, dentre outras coisas, justifica a sua

obra – As Institutas – e procura argumentar em prol dos evangélicos injustamente

acusados: E nós estamos sendo imerecidamente acusados de tais intenções, das quais, certamente, jamais temos dado sequer a mínima razão de suspeita. Se tais fôssemos nós, como dizem, que premeditamos a subversão de reinos, nós de quem nenhuma palavra facciosa jamais se ouviu, e cuja vida, a todo tempo que vivíamos sob teu cetro, foi sempre conhecida como pacata e singela, e que ainda agora, escorraçados de nossos lares, contudo não cessaríamos de suplicar em oração toda prosperidade a ti e a teu reino. Nós que afoitos buscamos desenfreada liberdade para toda sorte de desregramentos; nós de quem, ainda que nos costumes muitas coisas

677 Ibidem, p. 154-156. 678 Ibidem, p. 172-173. 679 Ibidem, p. 91. 680 Ibidem, p. 93. 681 Ibidem, p. 95.

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possam ser censuradas, entretanto nada há digno de tão veemente censura. Nem tão insatisfatório progresso temos, pela graça de Deus, experimentando no evangelho, que a esses detratores não possa nossa vida ser exemplo de castidade, de generosidade, de misericórdia, de moderação, de paciência, de sobriedade e de toda e qualquer virtude.682

Após aproveitar a oportunidade para retornar à França, quando o Edito de

Courcy (16 de julho de 1535) autorizou os exilados religiosos regressarem, Calvino

viaja com a intenção de resolver questões familiares pendentes. Em 15 de julho de

1536, ele parte para Estrasburgo, fugindo dos perigos da França. Porém, devido a

guerras entre Francisco I e o Imperador, a estrada estava ameaçada pelos

movimentos de tropas. Calvino precisou pegar um desvio que o levou a passar uma

noite em Genebra.

1.3. Genebra

Calvino não era um homem apenas de teorias sem impacto na história

humana, mas um “homem de ação”. Compreender sua relação com a cidade de

Genebra, que neste período tinha o catolicismo em decadência683, é, neste sentido,

decisivo para se perceber a grande influência que o reformador teve na Europa de

seu tempo e também nos dias atuais. 684 Diferente da Reforma na Alemanha,

conduzida por Lutero, que tinha um contexto menos desenvolvido culturalmente e

comunidades menos sofisticadas, em Genebra, assim como em outras cidades, a

Reforma encontrou terreno fértil nas comunidades urbanas do séc. XVI. Lutero não

tinha familiaridade com as ideologias urbanas, o que o levou a produzir uma teologia

de ordem mais subjetiva e profunda. A teologia de Zwínglio (1484-1531), que fora

um reformador protestante na Suíça, ao contrário, tinha uma orientação dentro da

realidade urbana, se engajando na disciplina comunitária e estruturas corporativas

da cidade.685 A Reforma de Zwínglio em Zurique teve uma abrangência religiosa,

intelectual e política.686 Uma data significativa é 29 de janeiro de 1523, quando

Zwínglio é ouvido em um Grande Debate para defender suas ideias reformista

perante opositores católicos. Suas ideias são aceitas pelo Conselho municipal e este

fato tornou-se um marco na Reforma Suíça, pois permitiu que as cidades 682 CALVINO, João. As Institutas. Volume 1, 2003a. Disponível em: <https://bit.ly/2yG4X9c> Acesso em: 25 de abr. 2017, p. 40. 683 ZAGHENI, Guido. A idade moderna – Curso de História da Igreja III. São Paulo: Paulus, 1999, p. 130. 684 MCGRATH, Alister, 2004, p. 99. 685 Ibidem, p. 101-102. 686 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 89.

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independentes adotassem ou não os “princípios fundamentais” da reforma

protestante. Durante 1532 os acontecimentos reformistas começaram a suceder em

Genebra através do reformador (1489-1565).687

Quando Calvino chega a Genebra, apenas para pernoitar, Farel parece ter

se convencido que se tratava do homem que ele e Genebra precisava. McGrath

transcreve um texto de Calvino que demonstra o quanto Calvino se sentiu

persuadido a permanecer em Genebra em meados de 1536. [...] eu decidi passar por Genebra rapidamente, não permanecendo mais de uma noite na cidade. Pouco antes, as doutrinas, práticas e rituais da Igreja Católica haviam sido banidos de lá, pelo homem que mencionei [Farel] e por Pierre Viret. A situação, contudo, ainda estava longe de estar resolvida, havendo divisões e facções sérias e perigosas, dentre os habitantes da cidade. Então alguém, que havia, de forma perversa, se rebelado e se voltado para os papistas, descobriu que eu estava na cidade e divulgou esse fato aos demais. Diante disso, Farel (que ardia, com grande zelo, pela expansão do Evangelho) fez de tudo para me deter lá. E, após ter ouvido que eu tinha uma série de estudos particulares, para os quais eu desejava me manter livre, e descobrindo que ele não havia conseguido me convencer com seus pedidos, ele soltou uma imprecação, dizendo que Deus poderia amaldiçoar o tempo livre e a paz para estudar que eu buscava, se eu lhe virasse as costas e fosse embora, recusando-me a lhe dar apoio e ajuda, em uma situação de tamanha necessidade. Essas palavras me chocaram e causaram em mim tal impacto que desisti da viagem que intencionava fazer. Porém, consciente da minha vergonha e timidez, eu não queria ser forçado a desempenhar quaisquer funções específicas.688

Inexperiente como pastor e ingênuo em relação às realidades da política

urbana e da vida econômica, foi ser professor e proferir conferências públicas sobre

a Bíblia. O que lhe garantiu fama foi sua inesperada participação em um debate

público em outubro de 1536 em Lausanne, pois Farel decidiu levar Calvino consigo.

Diante da dificuldade no debate junto do clero católico, Calvino interveio de forma

decisiva, citando, aparentemente, muitos textos de memória, e fez com que o grupo

evangélico tivesse vantagem. A recém descoberta fama de orador e argumentador

religiosa lhe rendeu a designação de pastor e pregador na igreja em Genebra.689

É importante notar que neste período em Genebra era o Conselho municipal

quem controlava os assuntos religiosos, o que tornava a posição de Calvino e Farel

bastante vulnerável a qualquer mudança política na cidade. A construção da “Nova

Jerusalém” que sonhavam Calvino e Farel foi interrompido por uma facção contrária

a Farel na cidade e bastante desgostosa das medidas que eles tinham

implementado até então. Dentre as medidas que pretendiam estabelecer para uma

687 MCGRATH, Alister, 2004, p. 110-111. 688 Ibidem, p. 116-117. 689 Ibidem, p. 118.

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igreja “bem organizada e regulamentada”, pode-se destacar: a frequência na

celebração da comunhão seria observada pelos pastores, a defesa de um tribunal

disciplinar eclesiástico (independente dos tribunais civis), os Salmos deveria ser

cantados, os jovens deveriam ser instruído e examinados publicamente sobre seu

conhecimento acerca da fé Reformada, novo regulamentos para o casamento e

obrigatoriedade de todos os cidadãos de Genebra confirmarem a adesão aos vinte

um artigos da Confissão de Fé de Calvino. Fora isso, os cidadãos não gostaram de

serem obrigados a ouvirem os sermões e ameaçados em relação a excomunhão.

Em relação a excomunhão, nem mesmo os favoráveis a Farel eram unânimes. Na

ótica dos cidadãos se tratava de medidas “legalistas e severas”. Os pastores

acabaram por serem proibidos de se envolverem em questões de ordem política.

Calvino e Farel acabaram expulsos de Genebra.690

1.4. Estrasburgo e o retorno à Genebra

Calvino acabou vivendo exilado em Estrasburgo entre 1538 até 1541. Nesse

período ele teve contato com o reformador Martinho Bucero (1491-1551) e a cidade

já tinha implementado a Reforma a algum tempo. Ele foi muito influenciado por

Bucero em relação a organização eclesiástica, pois ele havia organizado a igreja em

Estrasburgo. 691 Foi neste período que Calvino adquiriu experiência pastoral e

política, que lhe era, até então, deficitária. Ele acabou se tornando pastor da

congregação francesa Reformada da cidade e adquiriu experiência diplomática,

sendo levando por Bucero a conferências internacionais em Worms e Ratisbon. De

Estrasburgo ele observou o quanto as igrejas eram dominadas pelo Estado nos

territórios alemães, “legado sinistro de Lutero para a Reforma”, de acordo com

McGrath. Assim, Calvino passou a idealizar outros modelos.692 Até 1541, Calvino havia adquirido uma considerável experiência prática de administração da igreja e havia dedicado muita reflexão à teoria da organização e disciplina eclesial e civil (na qual ele foi consideravelmente influenciado por Bucero). A Igreja e a comunidade Reformadas, que haviam existido apenas em sua mente, na Genebra de 1538, eram agora realidades concretas. A teoria abstrata e o sonho foram substituídos pela experiência prática e concreta.693

690 Ibidem, p. 119-121. 691 ZAGHENI, Guido, 1999, p. 133. 692 MCGRATH, Alister, 2004, p. 121-123. 693 Ibidem, p. 124.

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Após os problemas políticos e o estabelecimento da facção favorável a Farel

no poder de Genebra, em 1540, o Conselho municipal percebeu a íntima

interdependência entre Reforma e independência. Embora o grande interesse do

Conselho fosse a independência e a moral da cidade, muito embora o pouco

entusiasmo com reformas religiosas e imposições de normas públicas, acabaram

por chamar Calvino e Farem de volta. Mesmo não demonstrando um interesse inicial

no regresso, Calvino acabou persuadido novamente por Farel a retorna para

Genebra. Em 1541, o já experiente estrategista eclesiástico, retorna para seu

segundo período na cidade que seria sempre associada ao seu nome.694

A ideia de que Calvino iria implementar um governo “teocrático” precisa ser

esclarecida aqui e trabalhada de forma cautelosa, para não se incorrer em erros

históricos que comprometam as ações que Calvino teve em Genebra nesta segunda

passagem. Embora um regime “teocrático” tenha popularmente o significado de um

regime político em que a autoridade civil é dominada pelo clero ou algum meio de

poder nas mãos da igreja, é certo que este não era o caso de Calvino em Genebra,

pois não parece ter sido nessa direção os esforços do reformador. McGrath colabora

com um segundo significado para “teocracia”, que condiz de forma mais adequada a

perspectiva de Calvino: [...] um regime no qual se reconhece que toda autoridade é derivada de Deus. O conceito de Calvino a respeito do governo civil, particularmente no que se refere à situação de Genebra, pode ser considerado radicalmente teocrático nesse sentido último e menos ameaçador do termo.695

Mesmo assim, McGrath faz um contraponto importante: Contudo, em ambos os sentidos, entende-se que Deus está indiretamente envolvido nas questões de ordem e governo, tanto através do clero, na forma de agentes que alegam operar em nome de Deus, quanto através da própria noção de autoridade civil, a qual deriva em última análise de Deus.696

A conclusão a que se chega é, portanto, a de que Calvino não teve poderes

ditatoriais em Genebra para aplicar suas decisões de forma irrestrita. Ao contrário,

foi contrariado muitas vezes por um conselho “astuto e ansioso por preservar e

ampliar seu próprio controle sobre a cidade”. “Ao final da década de 1540, tornou-se

cada vez mais óbvio que Calvino não possuía o status político necessário para

alcançar seus objetivos.” As dificuldades de Calvino se intensificaram devido a

694 Ibidem, p. 124-125. 695 Ibidem, p. 128. 696 Ibidem, p. 128.

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questões familiares trágicas. Seu único filho com uma viúva com quem casara em

Estrasburgo morreu logo após seu nascimento. Sua mulher veio a falecer em 1549,

após 4 anos de grande sofrimento devido a uma enfermidade. O reformador se viu

sozinho a cuidar de seus dois filhos, fruto de seu primeiro casamento.697

Calvino não tinha poder de ordenar, mas tão somente de influenciar através

de suas pregações, conferência e outras formas de persuadir seu público. O

enfraquecimento de Calvino chegou a tal ponto que ele chega em 1553 a propor sua

demissão, que foi recusada. A tensão existente entre Calvino e o Conselho

municipal foi amenizada quando surgiu uma nova ameaça: o caso de Miguel

Serveto.698

Calvino tinha muita consciência das instituições para a propagação de suas

respectivas revoluções, tomando as medidas organizacionais cabíveis para atingir

seus objetivos. Essa ênfase na importância das instituições é, provavelmente, o

principal fator que fez com que o calvinismo se tornasse capaz de suportar as

adversidades políticas, principalmente quando comparado com o luteranismo. O

elemento mais controvertido criado por Calvino era o Consistório, que será

importante para compreender o caso de Serveto. Ele surge em 1542 com a intenção

de manter a disciplina eclesiástica. Inicialmente se tratava de um colegiado que

deliberava sobre questões matrimoniais, pois tocava em questões pastorais e legais.

A concepção de Calvino desse instrumento tem como objetivo garantir o

policiamento da ortodoxia religiosa. Era por meio do Consistório que se monitorava

as ameaças para ordem religiosa em Genebra, garantindo o que, na experiência de

Calvino em Estrasburgo, era essencial para a sobrevivência do “império cristão

Reformado”. É digno de nota que, após a morte de Calvino, esse instrumento será

utilizado para deliberar sobre questões que beiram o ridículo, que se aproximam de

pontos negativos relacionados a questões tolas e desprezíveis de pormenores

religiosos que lembram o puritanismo inglês, perdendo seu propósito.699

O grande ponto de embate era quem detinha o poder de conceder a pena de

excomunhão: o Consistório ou o Conselho municipal. Os oponentes de Calvino,

liderados por Ami Perrin, não eram contra a Reforma, mas contra o sistema de

697 Ibidem, p. 129. 698 Ibidem, p. 132-133. 699 Ibidem, p. 134-137.

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disciplina de Calvino, o que fez com que ganhassem o nome de “libertinos”.700 Havia

grande insatisfação em relação a estrutura disciplinar rígida de Calvino, pois a

possibilidade de processos em decorrência de afirmações irreverentes, críticas a

Calvino e à sua severidade, por dançar ou jogar baralho, era algo real na prática.701

É dentro deste contexto de briga de poder que o caso Serveto surge. Na intenção de

deixar Calvino marginalizado, o Conselho municipal tentava sempre sabotar a

autoridade de Calvino. Entretanto, como o caso de Serveto tinha conotações muito

religiosas, não era possível ignorá-lo. Assim, Calvino acabou sendo o primeiro

promotor indireto das acusações e, posteriormente, viria a ser testemunha, “na

qualidade de especialista em teologia”.702

Dois elementos constituíam a heresia de Serveto: a negação da Trindade e

da prática do batismo infantil. McGrath afirma que Calvino considerava o primeiro

item mais grave, a se perceber pela “ferocidade de seus ataques verbais a Serveto

(ataques, diga-se de passagem, cuja natureza confirma a impressão generalizada

sobre a crescente mesquinhez e amargura de Calvino, à medida que envelhecia).”

Porém, para o Conselho municipal, o segundo item aproximava Serveto dos

anabatistas, ala radical da Reforma que já tinha causado problemas em outras

cidades. Ou seja, se tratava de uma ameaça real. Muito embora Calvino tenha

providenciado a acusação e prisão de Serveto, foi o Conselho municipal que

assumiu o caso. Condenado a morte em 1553, Serveto foi queimado vivo por

carrascos amadores, o que fez de sua morte uma verdadeira carnificina.703

Calvino, embora não possa ser totalmente desculpado por sua participação

nesse incidente que, para qualquer indivíduo de bom senso que vive no séc. XXI se

trata de uma barbárie, precisa ser devidamente “contextualizado como alguém que

viveu em uma época a qual, não possuindo muitas preocupações típicas do

pensamento liberal do século XX, considerava a execução de hereges como uma

atividade rotineira.”704 Vale destacar que em Genebra, durante a época de Calvino,

Serveto foi o único indivíduo executado por conta de suas convicções religiosas,

muito embora fosse comum esta prática em outras localidades.705 Certo é que este

incidente rendeu a Calvino a constituição de sua reputação posterior de “tirano 700 Ibidem, p. 137. 701 ZAGHENI, Guido, 1999, p. 134. 702 MCGRATH, Alister, 2004, p. 139. 703 Ibidem, p. 142-143. 704 Ibidem, p. 140. 705 Ibidem, p. 139.

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sanguinário”.706 É claro que, historicamente, as considerações acima realizadas são

adequadas para uma visão correta da personagem analisada em seu devido

contexto. Mesmo assim, é fato que a ortodoxia religiosa de Calvino em Genebra, de

certa maneira intransigente em questões religiosas, a se ver pela oposição e os

respectivos argumentos, possuía elementos que tornaram um acontecimento

lamentável como esse possível. Isso não pode ser desconsiderado igualmente.

Após o caso Serveto a tensão entre Calvino e o Conselho municipal

permaneceram. Isso veio a mudar por conta de alterações populacionais em

Genebra. Em 1555 houve um processo de fluxo migratório de refugiados

protestantes buscando refúgio na cidade. Eles, em sua maioria, eram “defensores

vigorosos de Calvino”, o que fortaleceria o reformador. Devido a uma crise financeira

que a cidade enfrentava se decidiu obter vantagem dos estrangeiros, entre os quais

alguns eram ricos, instruídos e de alta posição social. Em troca de uma significativa

taxa de admissão eram concedidos um alto status social aos estrangeiros, evitando

assim, uma crise financeira. Mas, a crise social seguiu-se imediatamente. Tendo

agora um grande número de favoráveis a Calvino, seus adversários foram

derrotados na eleição de 1556, permitindo a Calvino, finalmente, estar plenamente

no comando da cidade e, posteriormente, canalizar seus esforços para a

evangelização de seu país natal, a França.707

McGrath não deixa de citar as Guerras de Religião ocorridas na França

entre 1562 e 1568. O ápice da influência de Calvino sobre a França foi exatamente

em 1562 e um dos motivos que contribuíram para que esses confrontos eclodissem

foi a agenda estipulada por Calvino. McGrath afirma que por uma geração a luta da

supremacia calvinista se tornaria uma causa perdida, sendo que, na melhor

possibilidade, podia ser tolerado um “estado dentro de um estado”. Mesmo assim,

com as perdas na França, o calvinismo já havia se tornado um movimento

internacional, atingindo outras localidades.708 Ele morre em 1564, marco na história

do calvinismo.709

1.5. Motivos do sucesso de Calvino

706 Ibidem, p. 138. 707 Ibidem, p. 144-146. 708 Ibidem, p. 221-222. 709 Ibidem, p. 230.

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O que justifica o sucesso da Reforma de Calvino em Genebra? McGrath

fornece alguns motivos. A visão de Reforma de Calvino, diferente de Lutero, “que

partia de si mesmo e da sua experiência subjetiva”710, rompia às estruturas, às

práticas e às doutrinas existentes na igreja. Se tratava de uma Reforma mais radical

e profunda, com capacidade de transcender divisões geográficas, culturais e

políticas. Em segundo lugar, Calvino investiu em um programa de ampla divulgação

de suas obras, garantindo que sua audiência fosse a mais ampla possível.

Relacionado a esse ponto, está o fato de que as Institutas de Calvino ganharam a

simpatia dos novos convertidos, o que favorecia a predominância da visão de fé

Reformada, e o fato da facilidade que Calvino tinha para providenciar a publicação

de suas obras. Outro elemento era sua grande capacidade de organização711, dando

grande ênfase a importância de estruturas e da disciplina eclesiástica, criando um

modelo de igreja que se adequava aos seus planos de expansão internacional. Por

fim, é considerado uma mente brilhante, capaz de unir eloquência e a capacidade de

criar e defender ideais interessantes.712

Finalizando esse tópico inicial acerca da biografia e influência de Calvino, é

importante ressaltar que Calvino não se limitou a pensar ideias unicamente de

caráter religioso. Grande parte de seu pensamento se relaciona com economia e

com política, indo muito além de compreensões abstratas de um mero sistema

religioso.713

2. Estudo comparativo de reformadores

Com a intenção de melhor elucidar quem foi Calvino, em termos de sua

personalidade e tipo de pensamento, a comparação com outros reformadores se faz

necessária e tem muito a colaborar. Neste momento, Calvino, um reformador de

segunda geração714, será colocado lado a lado com Martinho Lutero, que, por sua

vez, será contrastado com Zwínglio. A investigação continua em relação as causas

da racionalização da experiência de Deus no Calvinismo da Reta Doutrina e, aqui, a

expectativa é de encontrar algum tipo de elemento ao nome mais significativo da

710 ZAGHENI, Guido, 1999, p. 124. 711 McGrath chega a comparar Calvino a Lênin em alguns momentos, por conta da perspicácia de ambos em dar o devido valor as instituições para atingir um dado objetivo revolucionário. 712 MCGRATH, Alister, 2004, p. 149-151. 713 Ibidem, p. 152. 714 MULLER, Richard, 2012, pos. 648.

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teologia calvinista. McGrath compreende também que esse tipo de comparação

ajuda a conhecer o Calvino por detrás de suas ideias715, que, conforme já dito, se

trata de uma busca histórica que carece de fontes e bastante comprometida por

alguns escritores tendenciosos de forma negativa em relação a figura de Calvino.

2.1. Lutero

Em um primeiro momento, é digno de nota que Lutero tinha um tipo de

personalidade apaixonada e sincera, que era seguida, não poucas vezes, pelo uso

de expressões vulgares. Apaixonado, principalmente, por sua profunda fé, não

media as consequências de suas convicções religiosas e, com o uso magistral da

linguagem (latim e alemão) era, muitas vezes, exagerado.716 Outro ponto a respeito

do reformador alemão é sua generosidade em relação à referências autobiográficas,

que são possíveis de constatar em toda extensão de sua obra. Ele chega a fazer

descrições detalhadas de sua experiência pessoal, a evolução de seu pensamento

religioso e as condições que o levaram à Reforma Luterana.717

É possível perceber que o caminho que levou Martinho Lutero à Reforma,

tinha uma conexão profunda com sua própria peregrinação espiritual (essa

característica foi discutida no capítulo segundo). Isto é importante ser dito, pois a

reflexão teológica de Lutero passa, em primeiro lugar, por sua experiência de Deus,

e não em mero empenho acadêmico e, consequentemente, a utilização de métodos

humanistas de leitura da Escritura, como era o caso de Zwínglio, reformador na

Suíça. 718 Isso não significa dizer que Lutero desprezasse a Bíblia. Muito pelo

contrário, foi nela que encontrou respostas para suas “angústias espirituais”.

Entretanto, isto não significa dizer também que Lutero fosse um “biblista rígido”, pois

considerava que a “Palavra de Deus é muito mais do que a Bíblia”719. González diz

que, para Lutero, a “Palavra de Deus é nada menos do que Deus mesmo”.720 O

historiador cubano aprofunda a compreensão de Lutero sobre as Escrituras:

715 MCGRATH, Alister, 2004, p. 31. 716 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 45. 717 MCGRATH, Alister, 2004, p. 33. 718 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 90. 719 Tillich faz questão de mencionar o fato de Lutero conservar elementos nominalistas e humanistas, caindo por vezes em um legalismo nominalista em sua doutrina da inspiração, “ao afirmar que cada palavra da Bíblia havia sido inspirada pelo ditado de Deus.” Exemplo disso é a doutrina da Ceia do Senhor, que está embasada em textos escriturísticos interpretados de forma literal. (TILLICH, Paul, 2015, p. 241) 720 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 65-66.

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A Bíblia é então a Palavra de Deus, não porque seja infalível, ou porque seja um manual de verdades que os teólogos podem utilizar em seus debates entre si. A Bíblia é a Palavra de Deus porque nela chega Jesus Cristo até nós. Quem lê a Bíblia e não encontra nela Jesus Cristo, não tem lido a Palavra de Deus. Por isso Lutero, ao mesmo tempo que insistia na autoridade das Escrituras, podia fazer comentários pejorativos sobre certas partes dela. A epístola de Tiago, por exemplo, parecia-lhe “pura palha”, pois nela não se trata do evangelho, mas sim de uma série de regras de conduta. Mesmo que não estivesse disposto a tirar tais livros do Cânon, Lutero confessava abertamente que lhe era difícil ver Jesus Cristo neles e que, portanto, tinham escasso valor para ele.721

González conclui que, para Lutero, “a autoridade final não está na Bíblia,

nem na igreja, mas no evangelho, na mensagem de Jesus Cristo, que é a Palavra

de Deus encarnada”722. Para Tillich, que tem a mesma compreensão que González,

quando Lutero afirma que a Bíblia é a Palavra de Deus ele sabe muito bem ao que a

expressão correspondia: “na Bíblia se encontra a Palavra de Deus, a mensagem de

Cristo, a expiação, o perdão dos pecados e a dádiva da salvação.”723

Algo que deixa ainda mais clara a compreensão de Lutero, é sua forma de

argumentar em relação a doutrina da predestinação. Enquanto Zwínglio

argumentaria que essa doutrina seria algo deduzido racionalmente do caráter de

Deus, Lutero compreendia a predestinação como o “resultado e a expressão de sua

experiência de sentir-se impotente diante de seu próprio pecado e ver-se obrigado a

declarar que sua salvação não era uma obra sua, mas de Deus”. Lutero não

utilizaria uma argumentação que partisse de atributos do próprio Deus, mas sempre

retorna para a “impotência do ser humano para libertar-se de seu próprio pecado”, o

que tem relação com a doutrina da justificação pela fé somente, muito cara para o

reformador alemão, ainda mais pelo contexto relacionado aos abusos da igreja

romana. Um tipo de argumentação que não partisse da experiência do evangelho,

certamente seria considerado “porca razão” para o monge agostiniano.724 Tillich

contribui no sentido de descrever um Lutero que convivia bem com paradoxos, ao

contrário de Zwínglio, que, ao defender a predestinação, é possível subentender um

determinismo racional.725

A relação que Lutero tinha com a Lei do Antigo Testamento também é

importante ser pontuada. Sua visão da Lei está dentro de um contexto teológico

dialético entre Lei e o evangelho. O contraste que existe entre Lei e evangelho não é 721 Ibidem, p. 66. 722 Ibidem, p. 67. 723 TILLICH, Paul, 2015, p. 241. 724 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 94-95. 725 TILLICH, Paul, 2015, p. 254-255.

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no sentido de afirmar que o Antigo Testamento se refere a Lei e que o Novo ao

evangelho. A grande questão é que o cristão, por ter sido justificado pela graça

mediante a fé, é, ao mesmo tempo, justo e pecador. Em outras palavras, quem é

justificado percebe o quanto é pecador.726 É certo afirmar que a visão de Lutero em

relação a Lei é, dentro deste contexto dialético com o evangelho, negativa, pois ela

tem o papel de mostrar o pecado humano. Para muitos críticos de Calvino, cuja

visão diferia de Lutero, principalmente luteranos, a acusação referente ao

reformador de Genebra é de legalismo cristão.727 Lutero, segundo Tillich, percebeu

que “a lei produz resistência e, assim como dizia Paulo, torna o pecado mais

pecaminoso. Nem Zwínglio nem Calvino chegaram a esse tipo de pensamento.”728

Abaixo, segue citação direta de Lutero, se referindo a carta aos Romanos, em que

sua dialética aparece com certa clareza: [...] estamos na graça e não na lei. Ele [Paulo] mesmo explica que “estar sem lei” não significa estar sem lei alguma e que por isso se possa fazer o que os desejos querem, mas “estar debaixo da lei” é quando, sem a graça, nos ocupamos com as obras da lei. Aí reina certamente o pecado por meio da lei, visto que ninguém por natureza ama a lei, mas isso é grande pecado. Mas a graça torna a lei bela para nós; assim, já não há pecado, e a lei já não está contra nós, mas está do nosso lado.729

González retorna novamente para a experiência pessoal de Lutero como

fator que o faz ter sempre muita cautela quando há a possibilidade de algum tipo de

porta aberta ao retorno de boas obras como meio de salvação, que pode ser o caso

de um olhar positivo para Lei: Em razão de sua experiência de haver passado anos de profunda angústia tentando alcançar a salvação, ou tentando se justificar, Lutero via com desconfiança qualquer ensino ou prática que, mesmo remotamente, pudesse abrir a porta para o retorno das boas obras como meio de salvação.730

A visão de Lutero acerca da relação entre igreja e estado também deve ser

colocada em comparação com Calvino. Ele desenvolve um tipo de pensamento

intitulado “Os Dois Reinos”, em que existe o “reino da lei”, de ordem civil, em que o

estado opera debaixo da lei, e o “reino do evangelho”, em que as autoridades civis

não tem poder algum. Os cristãos estão no “reino do evangelho” e, como cristãos,

não tem uma expectativa de que o “reino da lei”, o estado, se torne cristão, apoie

sua fé e persiga hereges. González faz uma observação importante, dizendo que a 726 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 68-69. 727 MCGRATH, Alister, 2004, p. 185. 728 TILLICH, Paul, 2015, p. 255. 729 LUTERO, Martinho, 2017, p. 199. 730 GONZÁLEZ, Justo. Uma breve história das doutrinas cristãs. São Paulo: Hagnos, 2015, p. 210.

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ideia de Lutero dos dois reinos não significa que o reformador tenha sido um

pacifista, principalmente por conta de sua postura em relação aos anabatistas, mas

que “Lutero sempre teve dúvidas sobre como a fé devia relacionar-se com a vida

civil e política.”731 Tillich não poupa críticas a limitação de Lutero neste aspecto e diz

que “é o seu ponto mais fraco”732. Zwínglio, ao contrário de Lutero que não era

nacionalista e nem humanista, “o sentimento patriótico e o humanismo se

conjugaram em um programa de reforma religiosa, intelectual e política”733, atingindo

uma amplitude estatal que Lutero não atingiu, mas que se aproximava muito em

relação a visão de Calvino.

2.2. Calvino

Calvino, que era tímido e reservado734, tinha uma personalidade bastante

diferente de Lutero. McGrath discorre sobre a personalidade do reformador de

Genebra: Calvino não era propriamente uma pessoa agradável, faltando-lhe a perspicácia, o humor e a cordialidade que faziam de Lutero uma pessoa tão divertida nas rodas de conversa que frequentava. A personalidade de Calvino, como se pode inferir a partir de suas obras, é a de um indivíduo um tanto quanto frio e reservado, cada vez mais predisposto ao mau humor e à irritabilidade, à medida que sua saúde se deteriorava, e dado a se engajar em brutais ataques pessoais contra aqueles com quem se desentedia, em vez de combate-los apenas ao nível das ideias. [...] a despeito de sua relutância em falar de si mesmo, é óbvio que ele era um homem infeliz, motivo pelo qual é bastante difícil que o leitor atual sinta algum traço de simpatia. Portanto, é muito fácil se predispor a ter uma atitude antagônica em relação a Calvino.735

A relação de Calvino com a Escritura também é distinta de Lutero e,

segundo Tillich, é o que incentivou o surgimento de todo o biblicismo no

protestantismo.736 Já foi falado sobre o “princípio de acomodação” de Calvino,

destacado por McGrath e que precisa ser levado em consideração nesse assunto.

Mesmo assim, o acento que Calvino coloca na importância das Escrituras carecem

de justificativas inclusive por McGrath, conforme destacado abaixo: Pelo fato de Jesus Cristo ser conhecido somente através dos registros bíblicos, assegura-se a centralidade e a indispensabilidade das Escrituras tanto para teólogos como para fiéis. Calvino adiciona, contudo, que as

731 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 72-73. 732 TILLICH, Paul, 2015, p. 249. 733 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 89. 734 MCGRATH, Alister, 2004, p. 35. 735 Ibidem, p. 34. 736 TILLICH, Paul, 2015, p. 270.

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Escrituras somente podem ser lidas e compreendidas de forma adequada através da inspiração do Espírito Santo [...]. No entanto, ele não desenvolve um entendimento mecânico ou literal sobre a inspiração das Escrituras. É verdade de que ele, ocasionalmente, utiliza imagens que podem sugerir uma visão mecânica acerca da inspiração – por exemplo quando ele se refere aos autores bíblicos como “assistentes” ou “escribas”, ou quando fala que o Espírito Santo “dita” as Escrituras. Contudo, essas imagens devem ser entendidas metaforicamente, como acomodações visuais.737

Abaixo, segue trecho do comentário Calvino das cartas pastorais, a que

McGrath faz referência: Todos quantos desejam beneficiar-se das Escrituras devem antes aceitar isto como um princípio estabelecido, a saber: que a lei e os profetas não são ensinos passados adiante a bel-prazer dos homens ou produzidos pelas mentes humanas como sua fonte, senão que foram ditados pelo Espírito Santo.738

Tillich diz que esse termo “ditado pelo Espírito Santo” é o que contribui para

a doutrina da inspiração verbal se constituir, decisiva na construção da teoria do

conhecimento protestante do CRD. Tillich não hesita, como McGrath, em afirmar que

se trata de uma compressão que transcende tudo o que Calvino ensinou e que

contradiz até mesmo o princípio protestante. 739 Mesmo se tratando de uma

consequência futura, a compreensão de Calvino acentua um papel para as

Escrituras que transcende o de Lutero, conforme se percebe em suas Institutas: Por fim, para que em perpétua continuidade de doutrina, a sobreviver por todos os séculos, a verdade permanecesse no mundo, esses mesmos oráculos que depositara com os patriarcas ele quis que fossem registrados como que em instrumentos públicos. Neste propósito, a lei foi promulgada, a qual mais tarde os profetas foram acrescentados como intérpretes.740

Diferente da antítese radical entre lei e evangelho, bastante presente na

dialética de Lutero, Calvino tem outro tipo de abordagem. Tendo em vista a

imutabilidade da vontade divina, o que impede Deus de ter um tipo de

comportamento no Antigo Testamento e outro no Novo, “lei e o evangelho são

reciprocamente contínuos e não se encontram em oposição.”741 O conceito de lei

para Calvino tem uma conotação positiva, assim como para Zwínglio. 742 Isso

significa dizer que a lei (no sentido moral) tem para Calvino funções que

permanecem para os cristãos. Primeiramente, a lei tem um papel pedagógico, pois,

ao trazer à tona a realidade do pecado, prepara o caminho para a redenção. 737 MCGRATH, Alister, 2004, p. 181 – grifo meu. 738 CALVINO, João. Série Comentários Bíblicos: Pastorais. São José dos Campos: Editora Fiel, 2009, p. 262-263. 739 TILLICH, Paul, 2015, p. 270-271. 740 CALVINO, João, 2003a, p. 78. 741 MCGRATH, Alister, 2004, p. 187. 742 TILLICH, Paul, 2015, p. 255.

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Segundo, impede que os não regenerados ou não convertidos caiam em uma

espécie de caos moral (bastante pertinente se tratando do contexto urbano que

Calvino tem em mente e suas intenções estatais). Por fim, “encoraja os fieis a se

submeterem mais plenamente à vontade de Deus, da mesma forma como um

chicote pode encorajar um jumento preguiçoso”.743

McGrath, ainda sobre a relação de Calvino o texto sagrado, fala de suas

influências humanistas: O surgimento do movimento humanista trouxe consigo um novo interesse pela maneira através da qual as palavras e os textos são capazes de mediar e transformar a experiência e as expectativas humanas; Calvino foi hábil em utilizar tais percepções ao formular suas perspectivas sobre o conceito da “palavra de Deus” e sua manifestação no texto da Escritura. Ele utilizou seu conhecimento retórico de forma sutil, a ponto de que o mesmo pudesse passar totalmente despercebido. Entretanto, as ideias da ciência da retórica ecoam por todos os seus escritos – de uma forma experimental, no comentário de Sêneca, com alguma profundidade, na sutil sofisticação do comentário de Romanos (1540) e, talvez, na forma mais completa de todas, em suas últimas edições das Institutas.744

Em relação a concepção de igreja e estado, Calvino, por ser um humanista,

“concedeu ao Estado muito mais funções do que Lutero”. Enquanto que para Lutero

o Estado ajudava a suprimir o mal e preservar a sociedade do caos, “Calvino

desenvolveu as ideias humanistas de bom governo, de ajuda ao povo”.745 Para

Calvino, os dois poderes – secular e religioso – eram teoricamente complementares,

embora, na prática, houvesse muita turbulência, conforme relatado na biografia do

reformador.746 A ênfase em relação a esta complementariedade é evidente e sua

história atesta o quanto ele foi além de Lutero nesse aspecto, tendo em vista,

principalmente, a diferença contextual de cada reformador.

De forma geral, não é exagero afirmar que Calvino difere muito de Lutero.

Primeiro em relação a sua personalidade. Segundo, em sua relação com a Bíblia,

embora seja necessária uma compreensão adequada de seu pensamento, levando

em conta o “princípio de acomodação”, e tendo toda a cautela para não o tornar

culpado de posições mais radicais dos seus sucessores. Mas, não se pode deixar de

pontuar que Calvino possui algumas “sementes” que levam o cristão a uma relação

com o texto bíblico mais determinante, o que sugere um elemento constitutivo do

que é parte da teoria do conhecimento protestante, sinalizada no capítulo primeiro.

743 MCGRATH, Alister, 2004, p. 185. 744 Ibidem, p. 154. 745 Ibidem, p. 269. 746 Ibidem, p. 199.

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As sementes acabam germinando facilmente se o leitor de Calvino não compreender

toda sofisticação do pensamento religioso do reformador, o que, ao menos

parcialmente, não parece ter ocorrido com a ortodoxia protestante calvinista, como

analisado no capítulo segundo e ainda neste capítulo. Em terceiro lugar, em razão

do ponto anterior, Calvino busca evitar uma descontinuidade entre Lei e evangelho,

tendo uma visão da Lei moral positiva, quando comparado com a visão do

reformador alemão. Esse ponto afeta diretamente o tipo de visão de vida cristã que

cada reformador possui. Tillich diz que “Para Lutero, a vida nova é alegre reunião

com Deus; para Calvino, o cumprimento da Lei.” 747 Em quarto e último lugar,

novamente com a contribuição do item anterior, Calvino tem uma relação com o

Estado muito mais intensa que Lutero e, na visão do reformador genebrino, a Lei de

Deus exerce papel decisivo na constituição da sociedade. Para Tillich, essa

distinção entre os dois reformadores foi decisiva para perpetuação do protestantismo

após a Contra-Reforma católica, conforme segue: Calvino salvou o protestantismo de ser devastado pela Contra-Reforma. O calvinismo transformou-se, logo, num tremendo poder internacional fortalecido por alianças entre protestantes do mundo todo. Outro elemento importante no calvinismo é a possibilidade da revolução. Calvino também achava, como Lutero, que as revoluções contrariam a lei de Deus. Mas admitiu uma exceção que veio a ser decisiva para a história da Europa Ocidental. Entendia que embora os cidadãos individuais não deveriam ter a permissão para iniciar a revolução, os magistrados menos graduados poderiam fazê-lo sempre que a lei natural, a que todos se submetem, começasse a ser violada. Todos nós, numa democracia como a nossa, em que somos magistrados menos graduados, temos essa mesma possibilidade. Estabelecemos o governo por meio do nosso voto. Sob essas circunstâncias, a revolução passa a ser universalmente permissível. Na Europa Ocidental, os reis e rainhas estavam mais ao lado do catolicismo, e o protestantismo só podia ser salvo pelo povo que acreditava em sua capacidade de luta contra os governantes, em nome de Deus. Esses governantes haviam suprimido o verdadeiro e puro evangelho da Reforma.748

3. As Institutas da Religião Cristã

747 TILLICH, Paul, 2015, p. 266. 748 TILLICH, Paul, 2015, 269-270. Cabe aqui uma questão: será que esta engrenagem do pensamento de Calvino que percebia a possibilidade de uma “revolução”, no caso da “lei moral” estar comprometida, não seria a raiz para muito teólogos ortodoxos calvinistas da contemporaneidade flertarem com ideias de um “estado cristão” ou uma espécie de transformação do mundo na “Genebra de Calvino”? Certamente a resposta carece de um estudo aprofundado, mas, certamente, essa raiz influenciou movimentos do passado e do presente, inclusive com grande teor bélico, que lutaram por uma revolução com propósitos religiosos. Não seria exagero chamar este tipo de possibilidade de “utopia religiosa”, que, aparentemente, é fruto de não colocar Calvino em seu devido contexto. Pode-se arriscar afirmar que Calvino, provavelmente, dentro do contexto político-democrático do ocidente contemporâneo, não aceitasse tal proposta.

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O próximo passo de análise, antes de iniciar a investigação se Calvino pode

ser considerado um Calvinista, são as Institutas da Religião Cristã de Calvino. É

preciso ter em mente que as Institutas podem ser consideradas o principal meio pelo

qual Calvino dissipou suas ideias, levando em conta as muitas edições da obra.749 A

palavra “Instituta”, embora, em uma primeira análise, parecer ter correspondência

com o importante código legal do período clássico de Justiniano, pouco se parece

com um código legal, tendo em vista seu conteúdo e estrutura. “A palavra

‘instituição’ pode, talvez, traduzir outra preocupação de Calvino – retornar a uma

forma mais autêntica de Cristianismo do que aquela encontrada no final do período

medieval.” McGrath diz ser evidente a inspiração da primeira versão das Institutas

no Catecismo Menor de Lutero, de 1529. Por outro lado, as diferenças são notórias.

Calvino não escreve um catecismo a ser memorizado.750 As Institutas, cuja primeira

edição data de 1536, ultrapassava em importância as obras concorrentes de Lutero,

Melanchthon e Zwínglio.751

De forma geral, é importante destacar algumas características das Institutas.

O “catecismo dedicado ao rei da França, da autoria de algum francês”752, conforme

as Institutas já foram chamadas, tinha um propósito inicial ao ser escrito: fazer um

apelo ao rei da França, Francisco I, pelos protestantes que estavam sendo

perseguidos e associados com os anabatistas, os quais eram considerados rebeldes

e dignos de perseguição, conforme já citado.753 Nesse sentido, quando Calvino

escreve sua ao rei da França754, se referindo a primeira edição das Institutas755, a

qual continha 516 páginas e era de formato pequena756, ele tem uma estratégia

bastante definida em mente. Ele diz: Quando iniciei a redação deste livro, nada estava mais longe de minhas intenções que escrever algo para Vossa Majestade; meu propósito era somente ensinar princípios àqueles que são tocados por algum bom sentimento em relação a Deus, instruindo-os na verdadeira piedade.757

749 MCGRATH, Alister, 2004, p. 167. 750 Ibidem, p. 161-162. 751 Ibidem, p. 164. 752 Ibidem, p. 161. 753 VANCE, Laurence M., 2017, p. 122. 754 A carta data de 1535, segundo o texto publicado pela editora Vida Nova. Entretanto, a carta que consta na edição clássica aqui utilizada data de 1536. 755 Vance sinaliza que Calvino prefaciou suas Institutas com a carta ao rei francês. (VANCE, Laurence M., 2017, p. 122) 756 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 110. 757 CALVINO, 1509-1564. João Calvino: uma coletânea de escritos. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 33.

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Neste outro trecho fica clara a intenção de Calvino em separar o joio

(anabatistas) do trigo (protestantes por quem Calvino advoga): Diante, porém, do furor de certos iníquos, tão grande em vosso reino que não deixa espaço para a santa doutrina, pareceu-me oportuno que o livro não só se voltasse para a instrução dos que primeiramente desejam ensinar, mas também fosse como confissão de fé aos vossos olhos, para que conheçais a doutrina contra a qual se erguem os que perturbam vosso reino com fogo e espada. Pois não terei vergonha alguma de confessar que apresento aqui quase uma compilação dessa doutrina, que, segundo esses homens, deveria ser punida com prisão, banimento, proscrição e fogo, além de erradicada de terra e mar.758

Em sua dedicatória do comentário de Salmos, ele esclarece mais tarde o

que tinha em mente: Essa foi a consideração que induziu-me a publicar minha Instituição da Religião Cristã. Meu objetivo era, antes de tudo, provar que tais notícias eram falsas e caluniosas, e assim defender meus irmãos, cuja morte era preciosa aos olhos do Senhor; e meu próximo objetivo visava a que, como as mesma crueldades poderiam muito em breve ser praticadas contra muitas pessoas infelizes e indefesas, as nações estrangeiras fossem sensibilizadas, pelo menos, com um mínimo de compaixão e solicitude para com elas. Ao ser publicada, ela não era essa obra ampla e bem trabalhada como agora; mas não passava de um pequeno tratado contendo um sumário das principais verdades da religião cristã; e não foi publicada com outro propósito senão para que homens soubessem qual era a fé defendida por aqueles a quem eu vi sendo ignominiosa e perversamente difamados por aqueles celerados e pérfidos aduladores. É evidente que meu objetivo não visava a granjear fama, diante do fato de que imediatamente depois deixei Basle [Basileia, local em que escreveu a primeira edição], e particularmente à luz do fato de que ninguém ali sabia que eu era seu autor.759

Em sua segunda edição, também publicada em latim, do tempo em que

Calvino viveu em Estrasburgo e publicada em 1539, o tamanho da obra tinha

triplicado em seu tamanho. 760 Muitas outras versões viriam a serem editadas,

conforme levantamento que McGrath realiza. 761 González sintetiza as versões

publicadas após 1536 e 1539, com destaque para a importante versão francesa762: Em 1541 Calvino publicou em Genebra a primeira edição francesa, que é uma obra mestra da literatura nesse idioma. A partir de então, as edições surgiram em pares, uma latina seguida de sua versão francesa, como segue: 1543 e 1545, 1550 e 1551, 1559 e 1560. Visto que as edições latina e francesa de 1559 e 1560 foram as últimas produzidas durante a vida de

758 Ibidem, p. 33. 759 CALVINO, João, 2009, p. 32-33. 760 MCGRATH, Alister, 2004, p. 161. 761 Ibidem, p. 165-166. McGrath confecciona uma tabela em que lista mais de 50 edições até 1600. 762 McGrath explica que a versão francesa de 1541 não foi uma mera tradução da edição latina de 1539, mas uma “reconstrução da obra original a partir da perspectiva das limitações tanto da língua francesa quanto de seu público em potencial”, se tratando de um “marco para a Reforma e para a evolução da língua francesa.” (MCGRATH, Alister, 2004, p. 159-160)

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Calvino, são elas as que nos dão o texto definitivo das Institutas.763

O propósito de Calvino em relação a sua obra a partir da segunda edição

ganha um outro acento. McGrath afirmar que o próprio Calvino escreveu que seu

objetivo com a segunda edição era “preparar e treina estudantes de teologia para o

estudo da Palavra de Deus de modo que eles tenham um fácil acesso à mesma e

sejam capazes de prosseguir nesse estudo sem quaisquer obstáculos.” McGrath

sintetiza afirmando que “a obra pretende ser um guia para as Escrituras,

funcionando como um livro de referência e um comentário sobre seus significados

por vezes complexos e intrincados.”764

“O domínio intelectual do Protestantismo, por parte dos teólogos de tradição

Reformada, é duplamente devido à estrutura e ao conteúdo da última edição das

Institutas de Calvino.”765 Publicada em 1559 e tendo como ponto negativo o “tom

irritadiço e petulante, ocasionalmente beirando o desagradável”, a bem sucedida

versão das Institutas, com quatro volumes (livros), era considerada por Calvino

como a apresentação oficial de suas ideias religiosas, o que significa dizer que as

Institutas tenham prioridade na compreensão do pensamento de Calvino em relação

aos seus comentários bíblicos, sermões ou cartas.766 Tendo em vista isso, os

pensamento de Calvino em suas Institutas (versão de 1559) serão brevemente

sintetizados.

3.1. Livro I

No primeiro livro, Calvino trabalha com questões inerentes a problemas

fundamentais da teologia. A grande questão trabalhada inicialmente é relacionada

ao conhecimento de Deus. Seu grande ponto sustentado é que tanto o

conhecimento de Deus como o conhecimento de nós mesmos estão interligados. Ele

diz: Quase toda a soma de nosso conhecimento, que de fato se deva julgar como verdadeiro e sólido conhecimento, consta de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como, porém, se entrelaçam com muitos elos, não é fácil, entretanto, discernir qual deles precede ao outro, e ao outro origina.767

McGrath comenta sobre este princípio: 763 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 111. 764 MCGRATH, Alister, 2004, p. 162. 765 Ibidem, p. 164. 766 Ibidem, p. 172. 767 CALVINO, João, 2003a, 2017, p. 47.

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Esse princípio é de fundamental importância para uma compreensão da teologia de Calvino, que apresenta uma característica intensamente afirmativa em relação ao mundo: o conhecimento de Deus não pode ser separado nem absolvido pelo conhecimento da natureza humana ou do mundo. Uma dialética é construída, baseando-se na interação cuidadosamente equilibrada entre Deus e o mundo, entre o Criador e sua criação.768

É por meio desse ponto de partida que Calvino vai trabalhar o que pode ser

considerado revelação geral ou universal. McGrath afirma dois motivos que podem

ser identificados para o fato de Calvino anunciar um “conhecimento genérico de

Deus”, o qual pode ser discernido por toda a humanidade. O primeiro, de ordem

subjetiva, é o “senso de divindade” ou “semente de religião”, que todo indivíduo

possui. O segundo, de ordem objetiva, é o fato da revelação de Deus por meio da

ordem natural, sobre o mundo (natureza).769 Abaixo, trecho das Institutas: Além de tudo isso, visto que no conhecimento de Deus está posto a finalidade última da vida bem-aventurada, para que a ninguém fosse obstruído o acesso à felicidade, não só implantou Deus na mente humana essa semente de religião a que nos temos referido, mas ainda de tal modo se revelou em toda a obra da criação do mundo, e cada dia nitidamente se manifesta, que eles não podem abrir os olhos sem se verem forçados a contemplá-lo.770

Uma vez dado os fundamentos para um conhecimento geral de Deus, cujo

objetivo é tornar a humanidade sem desculpa alguma por ignorar o Criador, o

conceito de revelação bíblica é apresentado, tendo em vista o “princípio de

acomodação”, já explicado em tópicos anteriores. É importante ressaltar que é neste

ponto que, conforme também já foi mencionado, está a “semente” de um

entendimento futuro de inspiração literal das Escrituras. O grande ponto que deve

estar claro ao leitor é que, para Calvino, “Deus só pode ser plenamente conhecido

por meio de Jesus Cristo que, por sua vez, só pode ser através das Escrituras”771.

Trata-se da revelação especial. Calvino enfatiza esse aspecto no trecho abaixo, em

que trabalha a questão da Trindade: Pelo mui infeliz resultado de qual temeridade nos importa ser advertidos, para que tenhamos o cuidado de aplicar-nos a esta questão com docilidade mais do que com sutileza, não inculcamos no espírito ou investigar a Deus em qualquer outra parte que não seja em sua Sagrada Palavra, ou a seu respeito pensar qualquer coisa, a não ser que sua Palavra lhe tome a dianteira, ou falar algo que não seja tomado dessa mesma Palavra.772

768 MCGRATH, Alister, 2004, p. 179. 769 Ibidem, p. 179. 770 CALVINO, João, 2003a, p. 61. 771 MCGRATH, Alister, 2004, p. 181. 772 CALVINO, João, 2003a, p. 150.

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Se trata de um ponto importante na investigação, pois a Bíblia tem uma

posição decisiva dentro da teologia de Calvino. Assim, levando em conta as

possibilidades interpretativas, futuramente, seria inevitável a ênfase nas confissões

doutrinária, para uniformar a interpretação, e da elaboração de uma teoria do

conhecimento com a intenção de evitar a dúvida, sinalizada no capítulo primeiro.

Fica mais evidente que a teoria do conhecimento protestante é tanto causa como

sintoma, uma vez que é na análise do passado que se identifica os elementos

fundamentais de sua elaboração e constituição, sendo causa, e, uma vez

constituída, sua presença é sintoma da racionalização da experiência de Deus.

Ainda no livro primeiro, dentre muitos outros detalhes, é trabalhada a

questão da natureza humana. O livre arbítrio foi prejudicado devido a queda.

Embora os serem humanos sejam imagem de Deus, o que os difere dos animais, a

humanidade é uma espécie de “espelho da glória divina” que reflete uma glória

imperfeita. Somente quando o homem está em Cristo é que esta glória torna-se

plenamente revelada. McGrath chama a atenção para o caráter altamente

cristocêntrico da teologia de Calvino, pois a natureza humana verdadeira só é

relevada na pessoa de Jesus Cristo.773

O término do livro acontece com a doutrina da providência (relacionada com

a doutrina da predestinação, conforme Tillich pontua774). Há algumas diferenças nas

edições das Institutas que devem ser notificadas. Na edição de 1536 não houve um

capítulo a parte para esta doutrina. Entretanto, edição de 1539, ela foi discutida junto

com a doutrina da predestinação. Aqui, na edição de 1559, a providência surge

separada da doutrina da predestinação, que é trabalhada no terceiro livro. A

resposta que McGrath fornece para esse fato é que Calvino deseja afirmar que “a

providência de Deus é uma extensão de sua criação. Havendo criado o mundo,

Deus continua a cuidar dele, dirigindo-o e sustentando-o”775. Vance trabalha com

outra possibilidade para as mudanças nas edições: Calvino, de acordo com os

ataques que a doutrina da predestinação sofreu, mudou suas ênfases com intenção

de defender a doutrina.776 Abaixo, segue trecho em que Calvino descreve a forma de

manifestação da providência divina: Seja esta a síntese: uma vez se diz que a vontade de Deus é a causa de

773 MCGRATH, Alister, 2004, p. 182-183. 774 TILLICH, Paul, 2015, p. 263. 775 MCGRATH, Alister, 2004, p. 183. 776 VANCE, Laurence M., 2017, p. 135.

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todas as coisas, a providência é estatuída como moderatriz em todos os planos e ações dos homens, de sorte que não apenas comprove sua eficiência nos eleitos, que são regidos pelo Espírito Santo, mas ainda obrigue os réprobos à obediência.777

É interessante perceber que a visão de mundo protestante, que foi definida

como sintoma, mas, também como causa, tendo em vista seu estado mais bruto e

menos desenvolvida, se apresenta aqui. Aquela visão de mundo dualista que, na

verdade, é monista por conta da providência e a dupla predestinação (crente e

ímpios), está presente em Calvino, embora ainda não de forma estritamente objetiva

como nos Cânones de Dort e na Confissão de Westminster. Se trata de mais uma

“semente” plantada por Calvino a ser regada e cultivada pela ortodoxia que iria lhe

suceder.

Existe mais um elemento que surge neste mesmo tema da providência com

o qual se finaliza esta etapa da análise: a questão da permissão de Deus. Calvino

parece não aceitar a possibilidade de Deus permitir certos acontecimentos e é

bastante claro no sentido de afirmar que Deus não é mero expectador das

arbitrariedades dos homens. Teólogos calvinistas, como Heber Campos Jr., ratificam

esse mesmo entendimento.778 Abaixo trecho em que esta permissão é negada: Aqueles que são ao menos medianamente versados nas Escrituras vêem que, para alcançar a brevidade, menciono apenas uns poucos exemplos dentre muitos, dos quais, no entanto, se faz mais do que evidente que dizem coisas sem nexo e pronunciam absurdos esses que no lugar da providência de Deus colocam a permissão absoluta, como se, assentado em uma guarita, aguardasse ele [Deus] eventos fortuitos, e assim do arbítrio dos homens dependessem seus juízos.779

Tillich é incisivo: “Calvino tenta mostrar que os atos maus de Satã e dos

homens maus são determinados pela vontade de Deus.”780 A “semente” de um

determinismo que transforma Deus no autor do mau está plantada.

3.2. Livro II

Neste segundo livro, Calvino abordará o tema do conhecimento de Deus.

Embora ele já tenha falado no primeiro livro sobre como Deus se revela, de forma

geral e especial, neste momento a ênfase de Calvino se relaciona ao aspecto

redentivo de Deus e que a Redenção só pode ser alcançada mediante Jesus Cristo.

777 CALVINO, João, 2003a, p. 232-233 – grifo meu. 778 JÚNIOR, Heber Carlos de Campos. Calvino e os Calvinistas da Pós-Reforma. In: FIDES REFORMATA XIV, No 2, 11-31, 2009. p. 22. 779 CALVINO, João, 2003a, p. 231. 780 TILLICH, Paul, 2015, p. 262.

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Alguns elementos principais serão analisados por Calvino: a queda e suas

consequências e a relação entre Antigo e Novo Testamento (já abordada na

comparação dele com Lutero). Em relação ao primeiro tema, a grande ênfase está

no fato da humanidade ter tido suas faculdade e dons humanos catastroficamente

afetados pela queda. Devido a “solidariedade da raça”, todos, em Adão,

compartilham da mesma queda e, consequentemente, embora não tenham tido o

livre-arbítrio destruído, ninguém está habilitado para resistir ao pecado.781 Segue

citação de Calvino sobre este tema: Portanto, observe-se este ponto principal de distinção: o homem, como foi corrompido pela queda, certamente peca porque o quer, não contra a vontade, nem coagido; pela mui natural inclinação da mente, não por compulsão forçada pelo ardor de concupiscência pessoal, não por pressão externa; contudo, tudo faz por depravação da natureza, que não pode ser movido e impulsionado senão para o mal. Se isso é verdadeiro, então não se expressa obscuramente que de fato o homem está sujeito à necessidade de pecar.782

Neste mesmo livro e dentro desta temática, a graça preveniente vem a tona

e a influência de Agostinho aparece nas Institutas e pensamento de Calvino. Fica

evidente que Calvino tem uma posição bastante reticente à possibilidade de uma

graça prévia em que o homem venha a colaborar com ela. A posição do reformador

é esclarecida quando ele explica que o pensamento de Agostinho está dentro do

contexto de embate com Pelágio e que, portanto, a vontade humana não é “serva

acompanhante da graça”, negando, então, qualquer “segunda função” da graça: Eu, porém, contendo que tanto nas palavras que citei do Profeta, quanto em outras passagens, duas coisas se expressam claramente: que o Senhor não só corrige nossa vontade depravada, ou antes a extingue, como também ele mesmo põe em seu lugar uma boa. Até onde a vontade é precedida pela graça, nisso permito que a chames serva acompanhante; mas, uma vez que a obra do Senhor é reformada, isso se atribui erroneamente ao homem: que obedeça à graça preveniente em virtude da vontade como serva acompanhante.

Por isso, não acertadamente escreveu Crisóstomo: “Nem a graça sem a vontade, nem a vontade sem a graça podem efetuar coisa alguma”, como se, na verdade, a graça não operasse também a própria vontade, como de Paulo vimos há pouco. De fato não foi intenção de Agostinho, quando chama à vontade humana serva acompanhante da graça, assinalar na boa obra alguma segunda função à graça, senão que apenas nutria o propósito de refutar a doutrina mui nefasta de Pelágio, que punha a causa primeira da salvação no mérito do homem, porque, contende ele, era suficiente à presente causa que a graça precedesse a todo mérito, deixada de lado, entrementes, a outra questão, a relativa ao efeito perpétuo da graça, que,

781 MCGRATH, Alister, 2004, p. 183. 782 CALVINO, João. As Institutas. Volume 2, 2003b. Disponível em: <https://bit.ly/2RmvJKX> Acesso em: 25 de abr. 2017, p. 63.

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entretanto, focaliza eximiamente em outro lugar.783

Calvino se volta então para o Antigo Testamento, argumentando que se trata

de um período relacionado a preparação histórica para vinda do Messias e que lei,

no sentido de “sistema religioso entregue nas mãos de Moisés”, foi uma graça

concedida ao povo de Israel. Esta continuação entre Antigo e Novo Testamento está

dentro de uma estratégia divina para a redenção da humanidade. Portanto, a religião

judaica tem como propósito apontar para Jesus Cristo. Conforme já mencionado,

Calvino leva em conta a imutabilidade da vontade divina em sua teologia, o que o

faz nivelar ambos testamentos.784 Abaixo, dois trechos das Institutas. O primeiro que

ressalta que a “substância” do Antigo Testamento equivale a do Novo785 e, na

sequência, o acento positivo em relação a lei, neste caso o exemplo é o domingo. Portanto, estabeleçamos firmemente o que não pode ser subvertido por qualquer maquinação do Diabo: que o Antigo Testamento, ou Pacto, que Deus firmou com o povo de Israel, não se limitara às coisas terrenas; ao contrário, continha a promessa da vida espiritual e eterna, cuja expectação se impôs que fosse impressa na mente de todos quantos anuíam verdadeiramente ao pacto.786

Contudo, não foi sem alguma razão que os antigos escolheram o dia do domingo para pô-lo no lugar do sábado. Ora, como na ressurreição do Senhor está o fim e cumprimento daquele verdadeiro descanso que o antigo sábado prefigurava, os cristãos são advertidos pelo próprio dia que pôs termo às sombras a não se apegarem ao cerimonial envolto em sombras. Nem a tal ponto, contudo, me prendo ao número sete que obrigue a Igreja à sua servidão, pois nem haverei de condenar as igrejas que tenham outros dias solenes para suas reuniões, desde que se guardem da superstição. Isto ocorrerá, se se mantiver a observância da disciplina e da ordem bem regulada.787

Se percebe a preocupação de Calvino em relação as questões exteriores e

regulamentais da igreja instituída quando se refere a “ordem bem regulada”. Outro

item que deve ser enfatizado é a relação entre a ênfase de Calvino ao domingo, que

a disciplina eclesiástica no CRD leva muito a sério, bem como, o sistema disciplinar

em si, que tanto para Calvino como para o CRD é muito significativo.

A dificuldade que surge na união de Antigo e Novo Testamento é resolvida

por Calvino através de Cristo. McGrath diz que “Antigo e Novo Testamento, tomados

em conjunto, devem ser colocados em contraste com a ordem não redimida” e não

783 Ibidem, p. 66. 784 MCGRATH, Alister, 2004, p. 184-185. 785 Ibidem, p. 186. 786 CALVINO, João, 2003b, p. 204. 787 Ibidem, p. 158.

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contrastados entre si. Cristo, portanto, apresentou ao Pai um sacrifício que redimiu

todo o pecado, corrigindo a desobediência humana original.788

Ainda neste livro, Calvino trabalha outros aspectos em torno de Cristo, como

sua função de profeta, sacerdote e rei, e como a obediência de Cristo,

principalmente em relação a sua morte, está conectada a obtenção da redenção. É

interessante notar que, diferente de Lutero, Calvino é relutante em destacar o

aspecto humano de Jesus. Para Lutero, o fato de Jesus ser Deus é o que atribui

valor para seu sofrimento e morte. Para Calvino, “o mérito da morte de Cristo

dependia do valor que Deus resolveu lhe atribuir”, ideia que remete a uma influência

do pensamento do período medieval posterior.789

3.3. Livro III

Após discutir a redenção relacionada a pessoa e a obra de Jesus, Calvino

passa a discutir a consequência ou “sequência lógica” dos motivos da redenção: sua

efetiva ocorrência. Seria razoável pressupor que a predestinação precedesse a

discussão sobre a justificação e que o assunto da regeneração ocorresse após a

doutrina da predestinação. Não é o que ocorre. McGrath afirmar que Calvino opta

por uma prioridade educacional, ao invés de precisão teológica.790 O local em que a

doutrina da predestinação é colocada nas Institutas é, portanto, fonte de discussão

sobre o quão central ela é para o próprio Calvino. De maneira equilibrada e

colocando o argumento com o peso que devidamente lhe cabe, Klooster discorre

sobre esse tema: Não obstante, é digno de observar-se que os teólogos Reformados, posteriores a Calvino, quando discutiram a predestinação junto com o decreto de Deus, e antes de discutir a criação, não seguiram o arranjo final, do material de Calvino. Deparamo-nos com Calvino tratando da predestinação próximo do final do livro terceiro das Institutas, em meio à discussão da Soteriologia. Um longo capítulo sobre a oração precede os três capítulos sobre a predestinação, seguindo-se-lhe um capítulo sobre a ressurreição final. Só este fator contextual merece mais atenção por parte dos que consideram a predestinação o fundamento lógico da teologia de Calvino. Contudo, é também necessário hoje evitar o perigo mais comum de permitir que o lugar sistemático, dado à doutrina, obscureça aquilo que Calvino, de fato, diz claramente nesta seção, e obscureça também a importância fundamental que a doutrina tem dentro de todo o seu pensamento. Conquanto a predestinação não seja a doutrina central, na teologia de Calvino, ela, não obstante, é de crucial importância para toda a

788 MCGRATH, Alister, 2004, p. 188-189. 789 Ibidem, p. 189-190. 790 Ibidem, p. 190-191.

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sua teologia calcada na Bíblia.791

O primeiro item da discussão diz respeito a fé. Calvino define o que é fé: Portanto, podemos obter uma definição perfeita de fé, se dissermos que ela é o firme e seguro conhecimento da divina benevolência para conosco, fundado sobre a veracidade da promessa graciosa feita em Cristo, não só é revelado à nossa mente, mas é também selado em nosso coração mediante o Espírito Santo.792

O que se nota é que o objeto da fé “são as promessas divina de

misericórdia”, e não Deus ou a Escritura.793 Como consequência dessa fé, Calvino

afirma que, além dos benefícios das promessas, o homem se torna beneficiário do

próprio Cristo, sendo “membro de seu corpo e, melhor, um com ele”794. Com a

presença de Cristo, o homem pode ser santificado e regenerado, conforme Calvino

expõe: [...] esta é a suma do que foi dito: que Cristo, que nos foi dado pela benignidade de Deus, nos é apreendido e possuído pela fé, mercê de cuja participação recebemos acima de tudo dupla raça, a saber, primeiro que, reconciliados com Deus por sua inculpabilidade, já temos nos céus em vez de um Juiz, um Pai propício; então que, santificados por seu Espírito, exercitamos inocência e pureza de vida; e da regeneração, com efeito, que é a segunda graça dessas duas, já foi dito o que me parecia ser suficiente.795

Devido a descentralização da doutrina da justificação pela fé nos

reformadores de segunda geração, muito diferente de Lutero, que enfatizava sempre

a gratuidade da graça, Calvino elabora de forma conciliar tanto justificação como

santificação. Ele coloca a justificação e santificação como consequências da união

do crente em Cristo. McGrath discorre sobre a mudança de ênfase entre os

reformadores, deixando claro as diferenças contextuais: Esta [doutrina da justificação pela fé] foi central para as origens da teologia reformadora de Lutero e permaneceu de crucial importância, por toda sua vida. Ainda que possa ter sido importante para a primeira geração de Reformadores, a doutrina tornou-se de menor relevância para a segunda geração. Embora Calvino se refira à justificação pela fé como “a principal tese da religião cristã” [...], parece que ele está reconhecendo sua importância para uma geração anterior. Ela não é central para sua concepção de fé cristã. A primeira onda da Reforma deve, de fato, ter feito um apelo persistente à doutrina da justificação e à sua relevância para as consciências individuais, confusas em meio à devoção católica orientada para as obras; no entanto, a segunda onda da Reforma assistiu uma alteração da discussão para questões adequadas às necessidades das

791 KLOOSTER, Fred H. O Lugar da Predestinação nas Institutas. Disponível em <https://bit.ly/2D89W6J> Acessado em 26 de out. 2018. 792 CALVINO, João. As Institutas. Volume 3, 2003c. Disponível em: <https://bit.ly/2zjH1Ii> Acesso em: 25 de abr. 2017, p. 31. 793 MCGRATH, Alister, 2004, p. 191. 794 CALVINO, João, 2003c, p. 49. 795 Ibidem, p. 197 – grifo meu.

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sociedades urbanas, tais como as estruturas e as disciplinas eclesiais.796

Esta mudança de ênfase para santificação, regeneração e questões de

ordem estruturais e disciplinares, sempre compreendendo a mudança contextual de

Lutero para Calvino, pode ser também uma espécie de “semente” que, para o leitor

menos atento de Calvino, poderia acabar se tornando um grande acento na

fisionomia do salvo, que foi discutida como sintoma do CRD no capítulo primeiro.

Certamente, a doutrina da predestinação tende a contribuir ainda mais para este tipo

de ênfase, que, para Tillich, faz o crente precisar se tornar um “bom cidadão

burguês” para “ostentar as marcas da predestinação”797.

Porém, antes de falar sobre a predestinação, chama a tenção o fato de

Calvino escrever um longo capítulo sobre oração. Se trata de um trecho riquíssimo e

que demonstra que a espiritualidade cristã para Calvino é algo importante e

profundo. No trecho abaixo, Calvino destaca seis motivos que justifica a oração para

o crente: Portanto, ainda que ele vigia por nós e monta guarda sobre nós, míopes e obtusos para com nossas misérias, e vezes até nos socorre sem ser solicitado, entretanto nos é do máximo interesse que seja por nós constantemente implorado, primeiro, para que nosso coração se inflame de sério e ardente desejo de sempre buscá-lo, amá-lo, servi-lo, enquanto nos acostumamos a nos refugiarmos nele em toda necessidade, como em uma âncora sagrada; em segundo lugar, para que nenhuma paixão e nenhum desejo sequer nos suba ao coração, com vergonha de tê-lo por testemunha, enquanto aprendemos a diante de seus olhos colocar todos nossos desejos, e até mesmo a derramar todo nosso coração; em terceiro lugar, para que nos preparemos a receber seus benefícios com verdadeira gratidão de alma e até mesmo com ação de graças, os quais somos por nossa deprecação advertidos de que nos provêm de sua mão [Sl 145.15, 16]; em quarto lugar, para que, havendo conseguido o que buscávamos, persuadidos de que ele respondeu nossos rogos, daqui sejamos levados a mais ardentemente meditar em sua benignidade; em quinto lugar, ao mesmo tempo, com mais profundo deleite abracemos as benesses, as quais reconhecemos que foram obtidas mercê de nossas orações; em sexto lugar, para que, segundo a medida de nossa fraqueza, sua providência nos confirme, em nossas almas, o próprio uso e experiência, enquanto entendemos que ele não apenas promete que jamais nos haverá de faltar, e de seu próprio arbítrio escancara o acesso para invoca-lo no próprio e preciso momento da necessidade, mas também tem a mão sempre estendida para ajudar os seus; nem os alenta com palavras, mas os assiste com auxílio sempre presente.798

Calvino passa a discorrer sobre a doutrina da predestinação, a qual será

melhor detalhada no último tópico deste capítulo. Cabe, entretanto, desde já

anunciar que a preocupação de Calvino, segundo McGrath, é de “explicar porque

796 MCGRATH, Alister, 2004, p. 192. 797 TILLICH, Paul, 2015, 266. 798 CALVINO, João, 2003c, p. 319.

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alguns indivíduos respondem ao evangelho, enquanto outros não o fazem.” Em

outras palavras, “a doutrina da predestinação [...] deve ser considerado como uma

discussão a posteriori sobre os dados da experiência humana [...] em vez de algo

que é deduzido a priori, com base em ideias preconcebidas”, como a onipotência de

Deus.799 Abaixo trecho das Institutas sobre esta doutrina um tanto polêmica: Chamamos predestinação o eterno decreto de Deus pelo qual houve por bem determinar o que acerca de cada homem quis que acontecesse. Pois ele não quis criar a todos em igual condição; ao contrário, preordenou a uns a vida eterna; a outros, a condenação eterna. Portanto, como cada um foi criado para um ou outro desses dois destinos, assim dizemos que um foi predestinado ou para a vida, ou para a morte.800

Chama a atenção neste trecho o destaque para os “dois destinos” que

Calvino faz. A constituição da visão de mundo do CRD parece estar refletida aqui.

Mesmo que o reformador tenha em mente tão somente fornecer uma resposta a

posteriori, como McGrath defende, a explicação de Calvino é incisiva e não é de se

surpreender que seus seguidores, especialmente a próxima geração, se apegasse a

esse tipo de elemento acerca de uma doutrina tão discutida e polêmica para

constituir sua visão de mundo um tanto determinista. Mesmo assim, parece razoável

quando McGrath afirma que essa doutrina não é a premissa central da teologia de

Calvino.801 Essa discussão será aprofundada no próximo tópico deste capítulo.

3.4. Livro IV

Calvino, no quarto livro das Institutas, se volta para um assunto

importantíssimo em sua reflexão: a Igreja. McGrath diz que as Institutas são,

essencialmente, “um manual voltado à plantação, crescimento, organização e

disciplina da Igreja.”802

A forma como Calvino elabora seu pensamento eclesiológico faz o leitor

lembrar a Igreja Católica. Calvino diz que fora da Igreja, no sentido de Igreja visível

(institucional), “não há de esperar-se nenhuma remissão de pecados, nem qualquer

salvação”803. Enquanto no sentido de Igreja visível a igreja é a comunidade dos

cristãos, um grupo concreto, composta tanto de eleitos como de reprovados, no

sentido de invisível, a Igreja é, para Calvino, a comunidade dos eleitos, conhecidos 799 MCGRATH, Alister, 2004, p. 195. 800 CALVINO, João, 2003c, p. 388. 801 MCGRATH, Alister, 2004, p. 197. 802 Ibidem, p. 197-198. 803 CALVINO, João. As Institutas. Volume 4, 2003d. Disponível em: <https://bit.ly/2Oi93K1> Acesso em: 25 de abr. 2017, p. 28.

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apenas por Deus. Essas duas realidades caminham junto e, para Calvino, embora

haja esta distinção, se trata de apenas uma igreja, a que tem Jesus como cabeça.804

Segue trecho das Institutas que demonstra o pensamento de Calvino sobre este

tema: “Portanto, da mesma forma que somos obrigados a crer na Igreja invisível

para nós e conhecida só de Deus, assim também se nos exige que honremos esta

Igreja visível e que nos mantenhamos em sua comunhão.”805

Ainda neste mesmo livro Calvino vai elaborar os elementos que constituem a

essencialidade da Igreja. Ele desconsidera a disciplina como essência da igreja,

muito embora demonstre intensa preocupação com esta temática, principalmente

com a forma com que a disciplina é exercida. Conforme se percebe no trecho

abaixo, com destaque para “com clemência e segundo a mansidão do Espírito de

Cristo”, Calvino discorre sobre a questão disciplinatória e sua função: Portanto, a disciplina é como um freio com que se contêm e se domam aqueles que se enfurecem contra a doutrina de Cristo; ou como um acicate com que sejam estugados os de pouca disposição; ou às vezes até mesmo como castigo paterno com que têm de ser castigados, com clemência e segundo a mansidão do Espírito de Cristo, os que caem mais gravemente. Vemos, pois, que é o princípio certo de uma grande desgraça para a Igreja não ter cuidado nem preocupar-se de manter o povo na disciplina, e consentir que se desmande. De fato, este é o único remédio que Cristo não só preceitua, mas também foi sempre usado entre os pios.806

No CRD, se percebe que há total potencial para a forma de se exercer a

disciplina ser esquecida, se mantendo, apenas, a ênfase na disciplina em si. Aqui

pode estar outra “semente” do CRD em forma de ênfase.

Questões referentes aos sacramentos e funções eclesiástica também são

abordados neste último livro das Institutas. Muitos outros aspectos e detalhes

constituem a riqueza dessa obra da teologia protestante, matéria que pode ser fonte

de uma vida de estudo. Certo é que, os acentos dados pela ortodoxia protestante

calvinista, principalmente no tipo de ortodoxia que “concebe” o CRD, é de uma

pobreza teológica imensurável, quando comparada a vasta e sofisticada teologia

presente nas Institutas. Não quer dizer, entretanto, que Calvino não tenha semeado

elementos que colaboraram com a formação das características do CRD. Se Calvino

era calvinista, o próximo tópico se encarregará de debater.

804 MCGRATH, Alister, 2004, p. 198. 805 CALVINO, João, 2003d, p. 33. 806 Ibidem, p. 223.

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4. Calvino era calvinista?

A pergunta que dá nome para este tópico é, talvez, a mais fundamental em

relação a investigação proposta nesta pesquisa. Alguns elementos de causa da

racionalização da experiência de Deus foram anunciados neste capítulo. Porém,

responder se Calvino era calvinista pode ser decisivo para localizar com maior

precisão o que desencadeia o processo de racionalização da experiência de Deus

no CRD, atestando a hipótese posta. Será que os elementos presentes em Calvino

são causas ou será que a descontextualização do reformador é causa? Em outras

palavras, o agente causador do que constitui um CRD racionalizador da experiência

de Deus está em Calvino ou em quem o sucedeu? Tendo em vista a relevância da

questão, este tópico é, sem dúvida, o mais importante do capítulo que caminha para

o final.

Autores como McGrath, González e Muller, já citados nesta pesquisa, são

partidários da tese de que existe uma descontinuidade entre Calvino e o calvinismo

posterior. McGrath é sempre muito cauteloso em não considerar Calvino como

“sistematizador” e não atribuir ao seu pensamento a característica de “sistema

rigorosamente lógico”. Inclusive, a doutrina da predestinação é sempre colocada por

McGrath como uma doutrina que está “longe de representar uma premissa central

do ‘sistema’ [ele faz questão de colocar entre aspas] teológico de Calvino (sendo o

termo ‘sistema’, de qualquer modo, um tanto inadequado) [...]”, a chamando de

“doutrina secundária”.807 González acompanha McGrath nessa questão, afirmando,

inclusive, a disposição dos seguidores dos grandes mestres em serem mais

“extremados que eles mesmos”808. Muller fala, inclusive, como Calvino se percebia: “Calvino [...] não pensava em si mesmo como um dogmático no sentido moderno do termo: como a maioria dos outros teólogos de seu tempo, ele se percebia como pregador e exegeta, e compreendia que a atividade primária de sua vida era expos a Escritura.”809

A compreensão de McGrath está bastante clara no parágrafo abaixo: Calvino é considerado, de um modo geral, como um sistematizador frio e impassível, um cérebro, em vez de uma pessoa, uma figura introspectiva e socialmente isolada que se sentia mais à vontade no mundo das ideias do que no mundo real de carne e osso, o mundo das relações humanas. A concepção popular sobre o pensamento religioso de Calvino é a de um

807 MCGRATH, Alister, 2004, p. 197. 808 GONZÁLEZ, Justo. 1995, p. 119. 809 MULLER, Richard. A. The Unaccommodated Calvin: Studies in the Foundation of a Theological Tradition (Oxford Studies in Historical Theology). Edição Kindle: Publicado em 17 de fevereiro de 2000, pos. 112 – grifo meu.

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sistema rigorosamente lógico, centrado na doutrina da predestinação. Embora essa crença popular possa representar um pensamento de grande influência, ela guarda pouca relação com a realidade; ainda que a doutrina da predestinação possa ser importante para o posterior movimento Calvinista, isso não está refletido na exposição de Calvino sobre esta ideia.810

As influências de Calvino são trazidas por McGrath para argumentar que o

pensamento de Calvino não reflete um sistema no sentido escolástico medieval, que

é caracterizado por “sistematização” e “coerência”. Atribuir a Calvino o atributo de

sistematizador teológico é negar que Calvino tenha tido um “desgosto característico

da república humanista” em relação aos escolásticos e descontextualizar o

reformador, que não possuía recursos intelectuais e seque via razão em produzir

uma “teologia sistemática”. Portanto, as Institutas precisam ser compreendidas de

forma consistente com o Humanismo bíblico da época de Calvino.811 Nesse mesmo

sentido, Muller concluir que “Pode-se argumentar razoavelmente que Calvino nunca

se propôs a produzir uma teologia sistemática no moderno sentido do termo.”812

McGrath, deixa bastante evidente sua posição de descontinuidade de

Calvino e do calvinismo e dá razão, que em seu ponto de vista é justa, para

possíveis distorções futuras do pensamento de Calvino. O argumento dele está

relacionado justamente ao fato de Calvino ter um “aglomerado de ideias tão

delicadamente harmonizado e complexo” ao ponto de ser “vulnerável à tensão e

distorção, ao menos em certo grau, à medida que vai sendo difundido por futuros

adeptos.” McGrath ainda traz à tona uma preocupação do próprio Calvino em

relação a esta possibilidade, citando uma frase do reformador quando este estava

morrendo: “não mude nada, não inove.” A cautela de McGrath está sempre presente

na discussão sobre esse assunto, o que fica refletido em suas considerações

equilibradas. Uma delas é o fato de ser bastante razoável que alterações e

descontinuidades seriam inevitáveis, uma vez que os seguidores de Calvino

estariam inseridos em situações e contextos bastante específico e diferentes de

Calvino.813 A cautela de McGrath, porém, não evita seu posicionamento categórico

neste assunto: “É tarefa do historiador identificar essas alterações, e do teólogo

810 MCGRATH, Alister, 2004, p. 174. 811 Ibidem, p. 174. 812 MULLER, Richard, 2000, pos. 113-115. 813 MCGRATH, Alister, 2004, p. 234.

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verificar seu significado. A negação nua e crua dessas alterações é, porém,

historicamente insustentável.”814

A questão do nome do movimento que se relaciona com Calvino carece de

esclarecimento também. Para McGrath, a utilização do termo “Reformado” é

preferível em relação a “Calvinismo”, pois o primeiro demonstra um tipo de relação

de não exclusividade para com Calvino, o que seria o caso. A terminologia

“calvinista” é enganosa e restringe a influência do movimento as ideias intelectuais

de Calvino, o que, segundo McGrath, não é uma verdade, pois, embora Calvino seja

a “estrela mais importante”, existiram “outras estrelas”, que, através de ideias e

métodos, modificaram Calvino em alguns aspectos.815

Como já discutido no capítulo segundo a identidade protestante é construída

a partir de um grande inimigo: o catolicismo. Dentro dessa perspectiva é também

compreensível o impulso para sistematização que o Calvinismo teve, pois precisava

se defender da oposição católica romana. Além disso, as mudanças no clima

intelectual da Europa devem ser pontuadas. Conforme a influência renascentista

diminuía, a resistência à sistematização também começou a diminuir. McGrath

discorre sobre estas características, as relacionando aos escritores calvinistas: Escritores calvinistas, sempre mais sensíveis ao seu contexto intelectual do que muitos dos seus adversários, reagiram por intermédio da criação de sofisticados sistemas teológicos, capazes de explorar os recursos e as atitudes do novo clima acadêmico; nisso eles estavam, provavelmente, uma geração à frente do Luteranismo, contribuindo posteriormente para que esse último fosse relativamente ofuscado fora de seus territórios alemães.816

O Calvinismo se consolidou como “a melhor alternativa ao Catolicismo

Romano” e o seu desenvolvimento, do que McGrath chama de “escolasticismo

Calvinista”, carece ser analisado.817 A mudança de ênfase para a doutrina da

predestinação é importantíssima de ser discutida. Duas explicações são fornecidas

por McGrath para esta importância: uma de ordem sociológica e outra teológica.

Em relação a questão sociológica, McGrath toca em um ponto que já foi

discutido no capítulo segundo: a relação entre doutrina e definição social de um

determinado grupo. A identidade religiosa foi distinguida neste período do séc. XVI e

XVII por questões de ordem doutrinárias. O luteranismo, por exemplo, teve na

814 Ibidem, p. 235. 815 Ibidem, p. 236. 816 Ibidem, p. 237. 817 Ibidem, p. 238.

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doutrina da justificação pela fé aquilo que o distinguia dos católicos na Alemanha. A

Contra-Reforma católica, que tem no Concílio de Trento seu momento mais

importante (também discutido no capítulo segundo), foi obrigada a rediscutir sua

própria identidade e não somente condenar as “heresias” luteranas. Todo este

processo da Europa do séc. XVI acaba por distinguir socialmente católicos de

evangélicos, tendo na doutrina o critério de demarcação social em certas regiões

geopolíticas.818 A tensão posterior entre luteranos e calvinistas seguiu uma lógica

semelhante. No final do séc. XVI surgiu o já citado processo de “confessionalização”,

que servia como elemento decisivo para distinguir luteranos de reformados. O

problema era que luteranos e reformados tinham aspectos bastante semelhantes.

Dessa forma, McGrath conclui acerca do papel sociológico da doutrina da

predestinação: A doutrina da predestinação, dessa forma, fornecia uma diferença teológica expressiva (e fácil de compreender) entre os dois grupos. E assim, a necessidade de diferenciá-los como entidades sociais levou, naturalmente, a que se atribuísse um certo grau de prioridade a essa doutrina, não necessariamente em razão de qualquer ênfase particular nela posta pelos calvinistas, mas devido à sua utilidade como um meio que permitia que dois grupos, sob outros aspectos semelhante, pudessem ser diferentes.819

Em relação ao motivo teológico, McGrath reafirma que Calvino não criou um

“sistema” no sentido estrito que o termo se refere. A questão está relacionada ao

pensamento Reformado posterior a Calvino e seus herdeiros das ideias religiosas.

Teodoro Beza820, além de Lambert Daneau, Pietro Martire Vermigli e Giralmo

Zanchi, estavam dispostos a usar toda arma que possuíssem para assegurar, ao menos, sua sobrevivência, se não uma vitória completa, em face de tamanha oposição. A razão, vista por Calvino com certa reserva, era agora acatada como uma aliada.821

Tendo em vista a importância em se posicionar doutrinariamente em relação

a luteranos e católicos, demonstrar coerência e consistência era algo

importantíssimo ao calvinismo. A ênfase relacionada aos métodos do final do

Renascimento aumentou e buscou-se estabelecer uma base racional para

sustentação teológica. Dentre as características desse novo enfoque teológico

McGrath ressalta, em primeiro lugar, sistema logicamente coerente e racionalmente

818 Ibidem, p. 238-239. 819 Ibidem, p. 240. 820 Jacó Armínio foi seu aluno. Importante ressaltar que o Arminianismo, como discutido no capítulo segundo, se tornaria um grande inimigo do Calvinismo, a ser combatido com todas as forças. 821 MCGRATH, Alister, 2004, p. 241.

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defensável. Segundo, papel decisivo da razão humana na investigação e defesa da

teologia cristã. Terceiro, influência da filosofia aristotélica, principalmente em relação

a natureza do método. E, quarto, preocupação com questões metafisicas e

especulativas, principalmente em torno da predestinação.822

Essa nova ênfase em métodos escolásticos e no aristotelismo 823 , que

acentua a função de silogismos, se deu mesmo pouco após a morte de Calvino (que

era reticente em relação a este tipo de “escolasticismo aristotélico”) devido a já

citada mudança intelectual da Europa, que privilegiava questões inerente ao método.

Assim, a teologia passou a ter como ponto de partida “princípios gerais”.824 McGrath

esclarece a diferença entre Calvino e Beza: Enquanto Calvino adota um enfoque teológico indutivo e analítico, concentrando-se no evento histórico específico de Jesus Cristo e prosseguindo na investigação de suas implicações, Beza adota um enfoque dedutivo e sintético, partindo de princípios gerais e prosseguindo na dedução de suas consequências para a teologia cristã. [...] Esses princípios gerais – os decretos divinos – são determinantes com relação à doutrina da predestinação, que assume, dessa forma, um status de princípio determinante, afetando o posicionamento e a discussão das mais diversas doutrinas, como a Trindade, a das duas naturezas de Cristo, a da justificação pela fé e a natureza dos sacramentos. A existência da predestinação é tida como algo que implica em um decreto ou decisão divina de predestinar, e é esse decreto divino de predestinação que assume uma posição predominante dentro do contexto da doutrina de Deus, de Teodoro Beza.825

McGrath complementa e acentua as diferenças entre Calvino e Beza: Uma nova preocupação com o método. Reformadores como Martinho Lutero e João Calvino tiveram um interesse relativamente pequeno em relação ao método. Para eles, a teologia voltava-se, sobretudo, à explicação das Escrituras. Na verdade, as Institutas, de João Calvino, podem ser consideradas como uma obra de “teologia bíblica”, que reunia as ideias básicas das Escrituras com uma apresentação sistemática. Entretanto, nos escritos de Teodoro de Beza, o sucessor de João Calvino na direção da Academia de Genebra (uma organização que treinava pastores em toda a Europa), pode ser vista uma nova preocupação com as questões metodológicas, como observamos acima. A organização lógica do material e sua fundamentação em pressupostos assumiram uma importância extraordinária. O impacto dessa postura talvez seja mais evidente na maneira como Beza lidou com a doutrina da predestinação [...]826

É importante conhecer Beza, pois ele tem papel importante nessa

discussão. McGrath faz uma síntese biográfica dele, evidenciando as características

e as divergências de interpretações de sua obra: 822 Ibidem, p. 241. 823 McGrath destaca a Universidade de Pádua como “grande fortaleza do Aristotelismo” (MCGRATH, 2004, p. 242). 824 MCGRATH, Alister, 2004, p. 242. 825 Ibidem, p. 243. 826 Idem, 2010, p. 115.

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Teodoro de Beza (1519-1605), notável escritor calvinista, professor de teologia na Academia de Genebra, de 1559 a 1599. Os três volumes de sua obra Tractationes theologicae [Tratados teológicos], de 1570 a 1582, apresentam uma descrição racionalmente coerente dos principais elementos da teologia reformada mediante o uso da lógica aristotélica. O resultado é uma descrição que apresenta argumentação consistente e defesa racional da teologia de João Calvino, na qual algumas das tensões não resolvidas dessa teologia (principalmente em relação às doutrinas da predestinação e da expiação) são esclarecidas. Alguns escritores sugeriram que a preocupação de Beza com a clareza lógica levou-o a uma distorção de vários pontos críticos da teologia de João Calvino; outros alegaram que ele simplesmente aperfeiçoou a teologia de João Calvino, amarrando alguns dos pontos que estavam soltos.827

É interessante reafirmar o que já foi citado sobre a perspectiva de Calvino

em relação a essa doutrina, a qual tinha caráter secundário, principalmente quando

comparado a Beza. Calvino faz uma famosa afirmação sobre a predestinação em

suas Institutas: “Certamente confesso ser esse um decreto espantoso. Entretanto,

ninguém poderá negar que Deus já sabia qual fim o homem haveria de ter, antes

que o criasse, e que ele sabia de antemão porque assim ordenara por seu

decreto.”828 Este “espanto” significa que a doutrina inspira temor ou terror.829 Tillich,

comentando acerca do pensamento de Calvino sobre esta doutrina, faz um

comentário sobre as ênfases de Calvino: “É impressionante o pouco que Calvino

tem a dizer a respeito do amor de Deus.”830 É certo, contudo, que Calvino percebe o

teor polêmico que a predestinação produz. Lutero, de forma ainda mais incisiva, fala

acerca desta doutrina com muita cautela e em tom de alerta ao seu leitor,

destacando as consequências da reflexão desta questão na vida do crente. Trata-se

do já citado prefácio da carta aos Romanos de Lutero: Mas aqui é preciso colocar um limite ao sacrílegos e espíritos arrogantes, que primeiramente dirigem sua atenção a essa questão e querem começar por investigar o abismo da predestinação divina e se ocupam inutilmente com a questão se são predestinados ou não. Estes cairão sozinhos, ou por desesperarem ou por colocarem tudo em jogo.

Quanto a ti, porém, segue esta epístola na sua ordem. Ocupa-te acima de tudo com Cristo e com o evangelho, para que reconheças o teu pecado e a graça dele. E que depois lutes com o pecado, como ensinam aqui os capítulos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8.

Depois, quando tiveres chegado ao capítulo 8, debaixo da cruz da cruz e do sofrimento, isso te ensinará a entender como é consoladora a predestinação nos capítulos 9, 10 e 11. Pois sem sofrimento, cruz e aflições de morte não

827 Ibidem, p. 115-116. 828 CALVINO, João, 2003c, p. 416. Na tradução em latim consta decretum horribile, que, incorretamente, é traduzido por “horrível decreto”, quando, na verdade, significa “inspira temor” ou “terror” (MCGRATH, 2004, p. 194). 829 MCGRATH, 2004, p. 194. 830 TILLICH, Paul, 2015, p. 266.

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se pode entender a predestinação sem prejuízo e sem alimentar uma ira oculta contra Deus. Por isso é que antes Adão precisa estar morto para poder suportar essa coisa e beber o seu forte vinho. Assim, guarda-te para que não bebas vinho se ainda és bebê no aleitamento. Todo ensinamento tem sua medida, época e idade.831

É evidente que a mudança cultural interfere diretamente na forma de se

construir a teologia, especialmente se tratando dessa doutrina delicada. Em

decorrência da mudança de ênfase questões seriam suscitadas, como por quem

Cristo morreu. Calvino não chega a sugerir que Cristo morreu apenas pelos

eleitos.832 O desdobramento natural da doutrina, a dupla predestinação, acabaria

dividindo os calvinistas envolvendo, o já citado, Jacó Armínio, que argumentaria que

o método de Beza, via predestinação, é dedutivo e sintético, muito inapropriado, e

que o correto seria a utilização do método indutivo e analítico.833 Armínio discorre

sobre a doutrina, também em tom de muita cautela e preocupação: É, portanto, muito desejável que os homens não prossigam mais neste assunto, e não tentem investigar os juízos insondáveis de Deus; pelo menos, não além do ponto em que esses juízos têm sido claramente revelados nas Escrituras.834

Sobre a questão do método da teologia, Armínio afirma: Por muito tempo, tem sido uma máxima dos filósofos, que são os mestres do método e da ordem, que as ciências teóricas devem ser transmitidas numa ordem sintética, enquanto que as práticas, numa ordem analítica. Por esse motivo, e uma vez que a teologia é uma ciência prática, ela deve ser tratada segundo o método analítico.835

De forma contrária e muito pouco cautelosa, deixando claro a despriorização

das Escrituras como livro de testemunho, Beza enfatiza que os decretos divinos não são especulações construídas pela imaginação humana, mas devem ser derivados das Escrituras, porém a maneira como eles devem derivar implica em tratar as Escrituras como um conjunto de proposições, a partir das quais os decretos divinos possam ser deduzidos, e não como um livro testemunho ao eventos central de Jesus Cristo, a partir do qual a natureza da predestinação possa ser inferida.836

McGrath, em sua teologia sistemática, enfatiza novamente o ponto de

partida e metodologia teológica de Beza: Portanto, quais são os princípios gerais que Beza utiliza como um ponto de partida para sua sistematização teológica? A resposta para essa pergunta é que ele baseou seu sistema nos decretos divinos da eleição — isto é, na decisão divina de eleger certas pessoas para a salvação, e outras para a

831 LUTERO, Martinho, 2017, p. 202-203. 832 MCGRATH, Alister, 2004, p. 244. 833 Ibidem, p. 244, 246. 834 ARMÍNIO, Jacó, 2015, p. 229. 835 ARMÍNIO, Jacó. As Obras de Armínio – Volume II. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, p. 16. 836 MCGRATH, Alister, 2004, p. 243 – grifo meu.

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condenação. Todo o restante de sua teologia se preocupa com a investigação das consequências dessas decisões. Assim, a doutrina da predestinação assume a posição de um princípio determinante.

Existe um fluxograma em que Teodoro Beza representa sua sequência

lógica da redenção humana, mostrando como ele compreende os decretos divinos

da eleição da eleição. Uma coisa é evidente para Beza, tudo é mostrado como se

fosse a execução lógica no tempo do “eterno e imutável propósito de Deus”, que

seria a causa de todas as coisas. O mundo dos protestantes discutido na primeira

etapa desta investigação fica nítido em Beza, que demonstra exatamente a visão,

em primeiro momento, dualista – crentes e ímpios, eleitos e rejeitados ou vida eterna

e morte eterna – que, com uma análise um pouco mais aprofundada, é, na verdade,

extremamente monista, determinista e fatalista. O presente está cristalizado em

Beza, no sentido em que ele define sinteticamente que Deus a tudo determinou,

inclusive os salvos e perdido, para “Glória de Deus pelo eterno decreto, muito

misericordioso e muito severo”.837 Certamente aqui está, ao menos em parte, a

causa que constitui a visão de mundo ao estilo O Peregrino de Bunyan.

A conclusão que McGrath chega, assim como outros estudiosos, é que esta

teologia sintética, que ficará ainda mais evidente nos documentos da ortodoxia

calvinista, especialmente na TULIP, resultado do Sínodo de Dort (capítulo segundo),

não é idêntica a de Calvino. Muito cuidadoso na escolha das palavras, McGrath diz

que “não estamos sugerindo que o Calvinismo posterior tenha distorcido as

perspectivas de seu fundador. Antes, estamos chamando a atenção para a

variedade de fontes sobre as quais o Calvinismo posterior foi capaz de se

inspirar.”838 Em outras palavras, o Calvinismo não seria fruto exclusivamente de

Calvino, mas de outros, como Teodoro Beza. Tillich vai na mesma direção,

ratificando que a doutrina da predestinação não é central para Calvino e que se trata

de uma tese facilmente refutável, pois ela nem mesmo fora desenvolvida na primeira

edição das Institutas, vindo a ocupar espaço somente em edições posteriores.839

Há, contudo, quem pense diferente. Outros autores vão discordar da tese de

que Calvino não era calvinista. Vance, já citado neste trabalho, mesmo considerando

de forma equilibrada e adequado os contextos em que as doutrinas são forjadas e

acentuadas, algo muito enfatizado aqui, é categórico em afirmar que Calvino é o

837 Ibidem, p. 243-245. 838 Ibidem, p. 247. 839 TILLICH, Paul, 2015, p. 259.

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grande forjador deste sistema e que, portanto, é “mais do que evidente que Calvino

foi um ‘Calvinista’.”840 As concepções Calvinistas dos Reformadores sobre a predestinação e o livre-arbítrio foram uma reação direta às falsas concepções de salvação propagadas pela Igreja Católica Romana na época. Assim como a doutrina da predestinação de Agostinho foi uma reação a Pelágio, a predestinação dos Reformadores foi uma reação a Roma. Ninguém pode negar que o extremo oposto à salvação pelas obras é a salvação por um decreto absoluto e irresistível de predestinação. Isso implica por que os Reformadores se mostravam mais inclinados a abraçar o “Calvinismo”. Mas a questão fundamental da Reforma era a salvação pela graça unicamente por meio da fé em contraste com a salvação pela fé acrescida de méritos, obras ou das intermediações da Igreja. Se a salvação era ou não fruto de um decreto eterno de predestinação que resultava em uma oferta irresistível de fé para os eleitos não era a preocupação inicial. O fato é que os Calvinistas frequentemente confundem a questão de que muitos daqueles que rejeitam o ensino da salvação pelas obras são levados a aceitar as doutrinas do Calvinismo porque não veem outra alternativa. Uma coisa é certa, no entanto, qualquer que seja o “Calvinismo” que Agostinho e os Reformadores defendiam, “Foi Calvino quem o forjou esse sistema de pensamento teológico com tanta ênfase e clareza lógica que, desde então, carrega o seu nome”841.842

Outro nome e autor de um artigo que tenta refutar essa tese é o, já citado,

Heber Carlos de Campos Júnior. Ele se propõe a contrapor a ideia de que os

sucessores de Calvino distorceram o reformador de Genebra e de que o período pós

reforma, do séc. XVI e XVII, seria um “período de distorções”.843 As fraquezas da

hipótese, segundo Campos, são apresentadas na forma de alguns argumentos.

Serão destacados três deles.

O primeiro é relacionado ao “arranjo das doutrinas”. O argumento consiste

em refutar a tese de que dependendo da doutrina que “vem primeiro” se determina o

restante de um dado sistema teológico, se referindo a ideia de que os sucessores de

Calvino afetaram o “equilíbrio das doutrinas” ao ter como ponto de partida a

predestinação, o que Calvino não faz nas Institutas de 1559, a inserindo apenas no

Livro III e não no Livro I, junto da doutrina da soberania de Deus. Ele acusa os

defensores de “Calvino não é calvinista” de terem em Beza o “vilão” histórico desta

mudança.844

A resposta de Campos deste primeiro ponto se dá, em primeiro lugar,

deixando claro que não é a ordem das doutrinas que definem a posição teológica do

840 VANCE, Laurence M., 2017, p. 137. 841 BOETTNER, Loraine. The Reformed Doctrine of Predestination. Disponível em: <https://bit.ly/2QyIzW4> Acesso em: 6 de jun. 2018, p. 2. 842 VANCE, Laurence M., 2017, p. 85. 843 JÚNIOR, Heber Carlos de Campos, 2009, p. 12. 844 Ibidem, p. 14.

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escritor. Ou seja, mesmo Calvino inserindo a doutrina da predestinação no terceiro

livro isso não é o mesmo que dizer que falta clareza ao reformador neste ponto

doutrinário.845 Nota-se que a discussão realizada até aqui destaca principalmente

uma mudança de ênfase, perpassando o aspecto metodológico, e não há um foco

demasiado na mudança na localização “física” da doutrina no texto de Calvino,

embora seja parte da argumentação dos autores citados. Neste sentido, não se

trata, prioritariamente, de mudança de convicção de Calvino, mas mudança de

acento teológico entre ele e seus sucessores. Mesmo assim, quando se fala que

existem “sementes” no pensamento de Calvino que colabora muito para uma

acentuação incisiva em dada doutrina, se quer dizer também que Calvino tem certa

continuidade de reflexão doutrinária com seus sucessores.

O segundo ponto discutido no artigo diz respeito a certeza da salvação.

Campo afirma que [...] existe a argumentação de que os puritanos desviaram-se de João Calvino quanto à certeza da salvação ao proporem uma base muito mais subjetiva para essa certeza. Os “calvinistas” enfatizaram excessivamente o aspecto subjetivo/experimental, enquanto que Calvino nunca dissociou a “fé” da “certeza da salvação”. Ele sempre apontou para Cristo para se ter segurança.846

Campo, para contrapor a ideia de que Calvino tenha uma essência diferente

dos calvinistas, pensamento refletido na Confissão de Westminster (discussão

realizada no capítulo segundo), cita as Institutas, em que Calvino revela a

possibilidade de tensão na vida do crente em relação a certeza da salvação, de

forma similar que a confissão em termos qualitativos – essência –, porém, com

diferenças quantitativas – de ênfase.847 Abaixo trecho das Institutas: Nós, de fato, enquanto ensinamos que a fé deve ser certa e segura, não imaginamos alguma certeza que jamais possa ser tangida por alguma dúvida, nem uma segurança que não possa ser atingida por alguma inquietude; senão que, antes, dizemos que os fiéis têm perpétuo conflito com sua própria desconfiança. Tão longe está de que coloquemos sua consciência em algum plácido repouso, o qual não seja absolutamente importunado por nenhuma perturbação! Todavia, por outro lado, de qualquer maneira que sejam afligidos, negamos que decaiam e se apartem daquela segura confiança que conceberam da misericórdia de Deus.848

Parece ser bastante claro o problema prático que a doutrina da

predestinação gera: a dúvida se o crente é ou não é salvo. É interessante notar que,

845 Ibidem, p. 21-22. 846 Ibidem, p. 15. 847 Ibidem, p. 22-23. 848 CALVINO, João, 2003c, p. 41-42.

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o argumento que Heber Campos contrapõe, vai em direção oposta ao que foi

levantado no capítulo segundo, ao ser tratada a questão da certeza da salvação na

ortodoxia protestante (o tipo de objeto analisado pode interferir nessa diferença de

percepção, pois aqui é dada ênfase no CRD). Se nota na ortodoxia protestante, na

qual os puritanos se incluem, uma ausência de experiência subjetiva que resultasse

em convicção de fé, pois a convicção é resultado da crença na confissão da reta

doutrina. Parece que, ao menos em parte, os fieis calvinistas do período da

escolástica protestante tendiam a uma busca incessante por certeza e uma rejeição

à dúvida, inclusive sobre sua eleição. Para tanto, não é sem razão o surgimento de

teses como a de Weber, que encontrou no ascetismo calvinista um ponto de contato

com o capitalismo, pois, devido a crise da certeza de fé provocada pela dúvida

acerca da predestinação, o crente, visando ter uma fisionomia de salvo, se engajou

no trabalho secular com excelência tal, para glorificar o seu Deus, e atestar que era

um eleito. Neste sentido, levando em conta o próprio argumento de Campos, de que

Calvino enfatiza a certeza, embora não deixe de considerar a “ansiedade” do crente,

parece razoável afirmar que a doutrina em si provoca este tipo de crise – tanto para

Calvino como para seus sucessores isso é uma verdade – e que, como resultado, a

busca pela certeza está sempre sendo discutida – tanto em Calvino como em seus

sucessores (inclusive nas confissões, vide Westminster). A busca pela certeza e das

elaborações para resolver o problema da dúvida é parte, portanto, da discussão

calvinista como um todo.

O terceiro argumento de Heber Campo que será destacado diz respeito a

ideia de que a teologia produzida no período do escolasticismo protestante seria

“árida” e “rígida”. Heber comenta que O escolasticismo é tido como um tipo de teologia racionalista, em que se faz muita especulação metafísica, gerando aridez e determinismo. Supostamente, neste período perde-se o caráter pastoral de teólogos como Calvino, além de toda a teologia ser baseada em uma filosofia aristotélica.849

Para responder esses argumentos ele vai em duas direções. A primeira leva

em conta o método e o gênero literário. Para Campos, a escolástica possui seu

próprio método de produzir teologia. Não que o conteúdo mude, mas o método

acadêmico é distinto de outros períodos. Ele esclarece o funcionamento das

famosas disputationes utilizada nos séculos XVI e XVII:

849 JÚNIOR, Heber Carlos de Campos, 2009, p. 16.

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O método formula a discussão apresentando o tema em questão (quaestio), detalhando os assuntos a serem discutidos (status quaestionis), levantando as objeções contra a resposta assumida como correta (objectiones) e, finalmente, à luz de todas as fontes de informação e regras de discurso racional, formula uma resposta ou tese seguida de respostas a cada objeção (responsio).850

Assim, argumenta ele, não compreender o método e o gênero literário que

surge como consequência seria distinguir Calvino dos calvinistas de forma indevida.

Mas, além disso, ele argumenta que o aristotelismo não pode ser colocado como

ponto de partida da ortodoxia protestante, pois o próprio Calvino fez uso e foi

influenciado por esta corrente filosófica. Neste sentido, Campos concluir que Ao fazer uso da racionalidade, o escolasticismo protestante não fez o mesmo que o racionalismo. Afinal, suas premissas provinham da fé (das Escrituras), não da razão ou da experiência. O que o escolasticismo realizou foi simplesmente gerar maior coerência teológica, usando por vezes as ferramentas da lógica (inclusive as aristotélicas).851

Já foi discutido neste trabalho o impacto das mudanças de ênfases em

relação ao método escolhido para produzir a teologia. Não seria exagero que,

dependendo do ponto de partida e das influências sofridas existam diferente

resultados teológicos. A história mostra com certa clareza que a escolástica produziu

uma teologia que, como o próprio Heber Campos afirma, é mais “coerente”, no

sentido de ser lógica, se apropriando da razão aristotélica para explicar

racionalmente coisa que são do campo da fé, despriorizando a experiência de Deus.

Isso produziu reações incontestáveis, como, por exemplo, o pietismo de Spener. A

grande ênfase apologética (o próprio Heber afirma que os escritos escolásticos

tinham a intenção de combater heresias852) é o contexto dessa teologia e o tom das

discussões dessa ortodoxia, a se ver pelas muitas guerras com pautas religiosas. É

razoável, portanto, entender que Calvino não estava no mesmo contexto, embora

tenha sim um resquício do aristotelismo. O próprio Heber conclui: Portanto, a tese de tomar Calvino como único ponto de referência do movimento reformado erra ao supor que o “calvinismo”, ou melhor, a tradição reformada deveria ser um monolito dogmático. A ortodoxia reformada não estava tentando repetir Calvino, mas desenvolver a teologia. A expectativa de que os “calvinistas” sejam uma duplicação exata de Calvino é um problema.

É um problema mesmo, pois os contextos são distintos. Assim, há uma

descontinuidade entre Calvino e os calvinista, tendo em vista que o contexto mudou

850 Ibidem, p. 23-24. 851 Ibidem, p. 25. 852 Ibidem, p. 24.

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e, portanto, métodos e ênfases também. Nada mais natural e correto. Porém, tendo

em vista outros aspectos estritamente teológicos, não há descontinuidade, pois é

evidente que algumas “sementes” de Calvino tenham sido germinadas por seus

sucessores, “desenvolvendo a teologia”, como Heber argumenta.

Parece que há dois modos, não necessariamente excludentes, de responder

a questão se Calvino era calvinista. O primeiro através de uma resposta positiva,

pois obviamente existem elementos da teologia de Calvino em seus sucessores. A

segunda negativa, pois Calvino é fruto de seu próprio tempo e seria mais do que

natural uma descontinuidade em relação aos seus sucessores, pois o contexto

mudou. Heber Campo parece fazer uma análise academicamente sólida, porém se

preocupa em demasia em “proteger” o Calvino de uma possível desassociarão do

reformador da ortodoxia calvinista do séc. XVII e da contemporânea, a qual, por sua

vez, traz um certo tom saudosista. Ele afirma que É preciso romper com a idéia de que a teologia pura, exegética e não metafísica de Calvino foi substituída por uma teologia especulativa, metafísica, exageradamente racional e dogmática a ponto de “achar pelo em ovo” do escolasticismo protestante.

Qual a necessidade de romper com esta ideia? Será que não há nada de

verdade nesta compreensão? Parece evidente que sim, como já discorrido, inclusive

com aspecto trazido pelo próprio Heber Campos. Por isso, não se trata de “achar

pelo em ovo”, mas de buscar elementos razoáveis que nos mostrem as diferenças e

as semelhanças entre Calvino e a escolástica protestante, a qual Heber busca

claramente defender e ter preferência. Em seguida ele diz: O fato de os reformados posteriores serem mais claros do que Calvino em certos pontos não é demérito para Calvino. Ele foi extraordinário para o seu período. Mas o desenvolvimento é uma naturalidade histórica, saudável inclusive. Era de se esperar que os sucessores de Calvino fossem muito mais precisos e abrangessem questões teológicas não discutidas por Calvino. Isto não tira o brilho da obra do reformador genebrino. O que não se pode fazer é colocá-lo como parâmetro único do que seja reformado, pois, por estar no início da história dessa tradição, há muito que Calvino não define que vem à tona em anos seguintes.853

Ele fala em um possível “demérito para Calvino” quando da possibilidade

dos sucessores de Calvino serem mais claros e lógicos que ele. Ora, a TULIP é

muito mais objetiva e clara que as Institutas e não há necessidade de se discutir

sobre “o brilho” do reformador por conta desse fato. Interessante notar que, para

este teólogo ortodoxo calvinista contemporâneo, o que é visto como risco de

853 Ibidem, p. 31.

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“demérito” ou de ofuscamento do “brilho” de Calvino é exatamente o fato de Calvino

não ser “claro” e “preciso”, características da escolástica protestante, o que parece

atestar sua preferência metodológica pessoal. Por que o risco de falta de “brilho” não

seria da escolástica protestante em não produzir uma teologia mais sofisticada e

menos sintética, como foi a de Calvino? A resposta pouco importa, pois, como o

próprio Heber disse, “o desenvolvimento é uma naturalidade histórica”. Ou seja,

embora pareça haver maior apreço pela ortodoxia protestante do que por Calvino no

artigo de Heber Campos, Calvino e seus sucessores devem ser colocados em seus

respectivos tempos, analisados e discutidos sem nenhum saudosismo e,

consequentemente, detectadas as continuidades e descontinuidades entres eles.

Afinal, os tempos atuais divergem – e muito – tanto do tempo de Calvino como de

seus sucessores, obrigando os teólogos atuais a se atualizarem.

5. Causas da racionalização da experiência de Deus em Calvino

Neste momento, como foi feito em todos os capítulos, as causas da

racionalização da experiência de Deus em Calvino serão sintetizadas. Mas,

recordaremos a hipótese posta no início da investigação. A racionalização da

experiência de Deus acontece por conta de um comprometimento por parte do CRD

com uma sistematização teológica, a qual não permite que o aspecto subjetivo da

vivência da fé se manifeste, pois é no sistema teológico que se encontra a verdade.

Esse tipo de comportamento é fruto da própria dinâmica da religião, que cria seus

“sacerdotes” para preservar, conservar e suportar no presente a religião de forma

intacta e sem novidades, tendo suas bases no passado, sustentando, assim, sua

ortodoxia. No caso do CRD, a desconfiança inicial desta pesquisa é a existência de

um deslocamento indevido de contextos. O CRD não é capaz de compreender o

locus originário e as razões em que a ortodoxia se constitui no passado. Por isso, o

mesmo ambiente do passado, que possui características religiosas, políticas e

sociais específicas, é vivenciado no presente com as mesmas paixões dos religiosos

dos séculos XVI e XVII. Dai surge no CRD o espírito apologético, a constante

presença de inimigos e hereges, além do próprio espírito saudosista. As causas

destacadas abaixo, de forma semelhante ao capítulo segundo, corroboram com esta

descontextualização presente no CRD.

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São elas: a. Compreensão das influências de Calvino, como o aristotelismo

e o humanismo; b. Falta de ênfase na experiência de Deus de Calvino e sua

espiritualidade, que, embora haja poucos relatos documentais, é algo decisivo na

vida do reformador e produziu grandes novidades, podendo até mesmo inspirar

experiência de Deus; c. A grande ênfase em aspectos religioso-institucionais, como

a disciplina eclesiástica, em Calvino; d. Compreensão que se trata de um reformador

de segunda geração e que a ênfase reflexiva é diferente da geração anterior; e.

Calvino possui um tipo de visão mais ampla da Reforma, envolvendo aspectos

religiosos, políticos, sociais e econômicos; f. Calvino difere muito de Lutero, que

tinha uma ênfase maior na experiência de Deus, pois seu contexto era o centro

urbano de Genebra; g. As Institutas fornecem elementos (“sementes”), que, por má

compreensão (descontinuidades) ou um desenvolvimento natural (continuidades),

produzem: a compreensão literal da Bíblia, a busca pela fisionomia do salvo (certeza

da salvação e ênfase na disciplina eclesiástica), o determinismo absoluto

(providência e predestinação) e comportamento farisaico (visão positiva da lei); h.

Calvino tem elementos de descontinuidade em relação aos seus sucessores, não

era calvinista em certo sentido, o que precisa ser compreendido; i. Calvino tem

elementos de continuidade em relação aos seus sucessores, era calvinista em

outros sentidos, o que precisa ser compreendido da mesma forma.

Conclusão

A grande conclusão deste último capítulo está relacionada ao título da

pergunta do último tópico: Calvino era calvinista? Essa pergunta tem relevância por

conta da metodologia desta pesquisa, que investiga causas da racionalização da

experiência de Deus. Se Calvino era calvinista, logo, as causas encontradas são, de

certa forma, causas primárias, herdadas diretamente de Calvino aos seus

sucessores. Se Calvino não era calvinista, logo se faz necessária uma distinção

entre causas primárias e causas secundárias, pois Calvino, por ser mau

compreendido e descontextualizado, fornece causas secundárias que são fruto da

causa primária: a descontextualização ou incompreensão do reformador pela

ortodoxia e, consequentemente, para o CRD, que se alimenta de elementos que

proporcionam o ambiente para a experiência de Deus ser racionalizada.

Não há necessidade de fechar questões acerca da resposta, pois a história

é feita de continuidades e descontinuidades, as quais não podem ser aferidas com

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total precisão, com exceção do campo teórico. Isso dito, as causas da racionalização

da experiência de Deus estão presentes em Calvino de forma geral, mas em tom

mais explícito na ortodoxia protestante. Elementos que constituem a teoria do

conhecimento e a visão de mundo no CRD estão, ao menos indiretamente ou de

forma embrionária, em Calvino. Entretanto, parece que a causa primária se

sobressai, na medida em que ela tem um peso e um potencial ainda maior de

cristalização do presente: descontextualização do reformador genebrino, bem como,

descontextualização da escolástica protestante. Calvino é filho de seu tempo.

Descontinuidades entre ele e seus sucessores não são uma surpresa. É exatamente

isso que se espera. As perguntas de cada tempo que os teólogos têm de responder

mudam. Compreender Calvino, tanto quanto a ortodoxia protestante, em seu tempo

é imprescindível. Quando isso não ocorre, torna-se difícil ter um ambiente em que a

experiência de Deus possa acontece sem ser submetida a um processo de

racionalização.

Calvino não era Lutero. Calvino não era calvinista no sentido de seus

sucessores. Calvino nada tem a ver com o teólogo do séc. XXI. Calvino viveu a sua

experiência de Deus, não a de Lutero. Calvino revolucionou o seu tempo, não o de

Lutero, não o da ortodoxia e não o tempo presente. Ele fez novas sínteses de sua fé,

tentou responder as questões que estavam postas, lendo os sinais do seu tempo.

Não há necessidade de se concordar com tudo e tão pouco de deixar de apreciar a

sofisticação das Institutas deste mestre protestante. A questão que fica para quem

não estava na Genebra de Calvino quando, “por acaso”, ele precisou pernoitar lá, é:

qual a novidade – ou revolução – que a experiência de Deus está produzindo nos

teólogos e fieis do cristianismo contemporâneo? Se vive a experiência hoje ou se

vive do saudosismo da experiência de Deus de reformadores do passado?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início destas considerações finais, após um itinerário em que a

reconstituição histórica de determinados períodos foi protagonista, cabe uma

consideração inicial: o caráter teológico desta pesquisa. Assim, a voz de Yves

Congar precisar se fazer ouvir. Lima afirma, citando este importante teólogo que Para a teologia, a história é um “lugar teológico”, uma fonte de conhecimento neste campo do saber. Segundo Yves Congar, a história abre o caminho para um “sadio relativismo”. Esse é algo bem diferente do ceticismo; é a devida percepção da relatividade do que é efetivamente relativo, de modo a qualificar como absoluto somente aquilo que verdadeiramente o é. Graças à história, pode-se compreender a exata proporção das coisas, evitando-se considerar como a Tradição o que data de anteontem, e que mudou mais de uma vez no decorrer dos tempos. Pode-se enfrentar o drama de muitas inquietações trazidas pelo surgimento de ideias e formas novas. Com a história, é possível situar-se melhor no presente, com uma consciência mais lúcida do que se desenrola realmente, e do significado das tensões que se vive (CONGAR, 1970, p. 886-94).854

Tendo a história como “lugar teológico”, os teólogos do presente,

especialmente os que se aproximam do Calvinismo da Reta Doutrina, tem a

oportunidade de considerarem a argumentação aqui proposta e se recolocar no

tempo presente. A impossibilidade de participar da ressignificação histórica e deste

“sadio relativismo” que a compreensão do passado nos permite, produz um presente

estagnado e cristalizado, em todos os sentidos, como recorrentemente foi aqui

sinalizado. Se tratando especialmente da experiência de Deus, é certo afirmar que,

ao não se situar de forma adequada no presente, este tipo de experiência tende a

ser limitada a uma experiência religiosa institucional, cujo caráter não permite novas

sínteses do presente, apenas repetição do passado.

A grande questão a ser respondida, proposta na introdução, era: a teologia

mais “ortodoxa”, mais “tradicional”, mais “bíblica”, mais “evangélica” e “reformada” do

CRD é, na verdade, uma sombra que encobre a racionalização da experiência de

Deus, fruto da influência de elementos da dinâmica da religião e da

descontextualização do papel apologético e contexto sócio-político da escolástica

protestante, provocando desequilíbrio entre fé proposicional e fé experiencial? É

razoável responder de forma afirmativa. Sabe-se o quão enraizados alguns teólogos,

comunidades religiosas, seminários e cristãos em geral podem ser em relação a

854 CONGAR, Yves-Marie. A história da Igreja, “lugar teológico”. In: Concilium: revista internacional de teologia, 1970, n.7, p. 886-94 apud LIMA, Luís Corrêa. História do cristianismo. Disponível em: <https://bit.ly/2OVanU6> Acesso em: 27 de set. 2018.

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uma teologia “ortodoxa”, “tradicional”, “bíblica”, “evangélica” e “reformada”. Não se

questiona aqui a aderência em si a uma dada linha teológica. O elemento de

questionamento é a adesão acrítica, romantizada e, até mesmo, ingênua. A fala de

Otto quando afirma que “ortodoxia não soube fazer justiça ao elemento irracional do

seu objeto e mantê-lo vivo na experiência religiosa”855, parece se aplicar a todos

“ortodoxos” que aderem à tradicionalismos teológicos, sem, minimamente, realizar

as devidas contextualizações, tanto do passado como do presente. Esse tipo de

atitude acaba por desprezar o elemento não racional da religião, o que resulta na

tentativa constante de domesticação do sagrado e no ininterrupto processo de

racionalização da experiência de Deus.

Ao não colocar a experiência de Deus em seu devido lugar, produzindo

desequilíbrio entre fé e razão, que tipo de religião o homem acaba por

experimentar? Uma religião desencantada, alienada, descompromissada, arrogante,

ingênua, fria, seca, rígida, insensível, sem cheiro, sem beleza, sem vida, sem

humanidade, sem tensão, sem paradoxo, sem autocrítica, sem reforma, sem pathos,

sem força, sem gana, sem raça856, sem poesia.

Tentando de todas as formas mitigar o risco da essência deste tipo ideal que

foi analisado – o Calvinismo da Reta Doutrina (que é, na verdade, um tipo ideal que

extrapola fronteiras denominacionais) – permanecer contaminando e processando

experiências de fé genuínas em mera religiosidade pré-concebida das teorias do

conhecimento e cosmovisões postas, esta pesquisa se propõe a ser uma voz crítico-

reflexiva para todo aquele que professa a fé cristã, especialmente teólogos

protestantes de denominações históricas. Os sintomas da racionalização da

experiência de Deus não testemunham o Cristo. Não comunicam esperança. Não

sinalizam o Reino. Não falam à sociedade moderna e secularizada. Paradoxalmente

a racionalização da experiência nada tem a ver com a razão no sentido moderno.

Em outras palavras, a racionalização da experiência de Deus não é razoável para

alguém cético. Soa falso, contraditório e incoerente. É artificial. Nada mais correto do

que entender que o empreendimento teológico é ato segundo. O primeiro ato é a

vida.

O primeiro grande sintoma detectado é a interdição do presente como local

criativo. Não há novidade, há risco. A oração é o maior protesto diante de um mundo

855 OTTO, Rudolf, 2011, p. 35. 856 Citação de “Maria, Maria” de Milton Nascimento.

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pré-determinado. Diante do presente e do futuro “predestinado”, oração pode ser até

sintoma de neurose. Certamente uma das grandes causas desse sintoma está

conectada na construção do mundo deste protestantismo, que reflete o

determinismo e fatalismo de sua teologia. O presente não é lugar de transformação,

mas de conformismo, que revela seu pior aspecto quando lida com um Deus que

destina pessoas para perdição para sua glória e é transformado no autor do mal.

O comportamento farisaico se manifesta como outro sintoma deste

protestantismo altamente vinculado a literalidade do texto sagrado, na busca

desenfreada pela verdade que consta na letra como lei ditada por Deus. Deste tipo

de sintoma derivam outros: arrogância, soberba e muita intolerância. A verdade

absoluta, construída no saudoso passado, é protegida ao custo da experiência de

Deus se tornar experiência religiosa institucionalizada, racionalizada e “enlatada”. A

causa está relacionada a uma compreensão das Escrituras como texto propositivo e

não relato testemunhal de homens e mulheres que provaram de um Deus vivo, real

e que se revela. A letra neste protestantismo mata a alma, aprisiona e cega. Não

inspira o leitor do presente. As discussões do passado sobre lei e graça, antiga e

nova aliança, Moisés ou Jesus, ecoam neste tipo de comportamento que se alimenta

de vaidade religiosa, de depósito da fé em proposições escritas em confissões dos

séculos passados.

A ênfase na fisionomia do salvo é cultural neste protestantismo. Quem é

salvo? Quem é eleito? Quem está predestinado? As respostas pouco têm a ver com

quem provou o Cristo, a quem Deus escreveu no coração suas leis ou quem se

humilhou diante do Salvador em arrependimento e esperança de salvação. Aqui a

ortodoxia, sustentada poderosamente, dá prioridade as instituições. Promover

disciplina na igreja pouco tem a ver com amor, graça, paciência, misericórdia.

“Precisamos ver os frutos”, diz a ortodoxia. “Precisamos do Cristo”, dizem os

perdidos. A voz da ortodoxia é mais alta e, por isso, quem “prova” o Cristo é quem

está moralmente aceito diante dos olhos humanos.

A certeza é como mel para este tipo de espiritualidade da reta doutrina. A

certeza de que está certo, a certeza de quem está errado, a certeza de uma

elaboração clara, segura e precisa, paira no ar. Não há espaço para dúvida. Tomés

não são aceitos. Se não decorou a fórmula está reprovado. A fé não é aposta, não

tem salto, não tem risco. Há a certeza absoluta. Há a presença constante de um

sistema que protege este protestantismo da grande inimiga: a dúvida. A causa disso

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tudo? Um espírito bélico, guerreiro, territorial, de domínio, de interesses políticos e

econômicos, cheio de inimigos. “Nós contra eles”, diz o espírito desta ortodoxia. Este

espírito é quem define a identidade deste protestantismo. Se este espírito não

estiver presente, há desorientação. Se não houver divisão, não há identidade. Se

não tiver hereges, não tem graça para eles. O pior dos crimes: pensar.

A experiência de Deus é um risco. A subjetividade, o questionamento, o

sentimento de desconforto. Tudo isso precisa ser evitado. Como? Muito treinamento.

Confissão na mão, explicações decoradas, respostas e perguntas dadas pelos

mestres aos seus aprendizes. Todos deste protestantismo têm linguagem própria e

interpretação das subjetividades de quem está adentrando ou de quem se aventurou

mesmo já sendo parte da comunidade. Se a explicação não convencer, se não

houver a confissão da reta doutrina, não há espaço. “Rua”, grita a ortodoxia. Só são

aceitos os semelhantes. Os diferentes são um total risco para a ordem instituída. Se

alguém quer experimentar algo novo, precisa ser uma variação de algo velho. Sem

muita novidade. Algo sob controle. Algo gerenciável. Algo domesticado. A mecânica

da religião (sociologicamente falando) é o fundamento secular deste tipo de

“tradição” religiosa. A causa disto? Medo de perder a identidade. Medo de não saber

quem é. Medo de conviver com o inimigo. Medo do diferente. Medo do prejuízo.

Medo de perder poder.

Muitos detalhes das causas foram fornecidos nos capítulos apresentados.

Muitas questões teológicas, análises documentais, biografias, histórias, etc. Existe,

porém, causas primárias, que produzem a esterilidade da experiência de Deus neste

círculo religioso. A mecânica da religião é, certamente uma delas. Outra é o que foi

chamado de descontextualização. Vinculado ao “saudosismo” do passado, o

Calvinismo da Reta Doutrina tem dificuldade de compreender quem foi Lutero, quem

foi Calvino e quem foi Beza. De forma semelhante a literalidade com que acolhem o

texto sagrado, acolhem o passado de sua ortodoxia, sem compreender que não

estamos mais no séc. XVI e nem no séc. XVII. Parece, inclusive, haver um salto do

XVII para o XX e XXI (teve quem ousou pensar nesta vácuo). Não se dão conta dos

processos históricos e, sem exagero, muitos sentem saudade da Genebra de

Calvino. Defendem seus “heróis” sem perceberem que eram homens de carne e

osso e que pensaram em seu próprio tempo. Olham com olhar crítico e condenatório

todos os que ousaram questionar a santidade da escolástica protestante. “Liberais”,

“petistas”, “neo-ortodoxos” (como se Barth fosse liberal), grita a ortodoxia. Estão

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aprisionados em um tempo que não é o deles. Não tem paladar para apreciar outros

tipos de sabores e, tão pouco, para apreciar seus grandes personagens do passado

de forma “desmitologisada”. Certamente evitar a descontextualização indevida

poderia provocar novas reformas, novos reformadores, novos pensadores.

“Gostamos do jeito que está”, diz a ortodoxia.

Teologias que dialogam com a poesia e fazem de Jesus o “poeta da

Torá”857, “não são bem-vindas”, diz a ortodoxia. Teologias que dialogam com a

logoterapia de um psicólogo sobrevivente do holocausto858, trabalhando teologia e o

sentido da vida859 860, “não são bem-vindas”, diz a ortodoxia. Teologias que criticam

com veemência o teísmo clássico, o qual afirma que Deus é autor do mal,

denunciando que isto não é fruto de revelação, mas de Platão861, “não são bem-

vindas”, diz a ortodoxia. Teologias que são inspiradas em católicos como Hans Urs

von Balthasar, que declaram a insuficiência do assentimento intelectual, que a Bíblia

não é um manual de informações propositivas e que transformam a igreja em uma

“companhia de atores” para “encenar” o drama do evangelho862, “não são bem-

vindas”, diz a ortodoxia. Teologias que decidem optar deliberadamente por priorizar

os pobres, tomando partido do oprimido863, ou por reafirmar o evangelho como

salvação para o homem todo e para todos os homens864 865, “não são bem-vindas”,

diz a ortodoxia.

Se buscou em todo momento evitar generalizações, pois o objeto, sendo um

tipo-ideal, não está estigmatizado em uma denominação, em uma comunidade

específica e nem mesmo em um grupo particular do cristianismo. Este “espírito” da

reta doutrina pode, certamente, se apresentar dentro de outros contextos religiosos

em que a experimentação do sagrado é burocratizada. Não há dúvida sobre a 857 VILLAS BOAS, Alex. Teologia em diálogo com a literatura. São Paulo: Paulus, 2016, p. 271. 858 FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido. 38. ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes: 2015. 859 VILLAS BOAS, Alex. A proposta de uma teopatodiceia: teologia e literatura como busca de sentido. Anais do Congresso da Soter, 26o Congresso Internacional da Soter, Deus na Sociedade Plural: Fé, Símbolos, Narrativas. 860 VILLAS BOAS, Alex. Teologia e literatura como Teopatodiceia: Em busca pensamento poético teológico. Tese (doutorado). 491f. Departamento de Teologia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2013. 861 PINNOCK, Clark. The Openness of God: A Biblical Challenge to the Traditional Understanding of God. Illinoiis: InterVarsity Press, 1994. 862 VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. São Paulo: Vida Nova, 2016, passim. 863 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: Perspectivas. Edições Loyola: São Paulo, 2000. 864 PACTO DE LAUSANNE, 1974. Disponível em: <https://bit.ly/2qNhuFV> Acessado em: 30 de out. 2018. 865 PADILLA, C. René. Missão Integral - Ensaios sobre o Reino e a Igreja. São Paulo: Temática Publicações, 1992.

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necessidade institucional e tão pouco se pretende com as provocações aqui

realizadas promover sua extinção. Entretanto, a tensão entre elementos

institucionais e elementos experimentais da fé deve existir. Do contrário, os sintomas

aqui detectados, por conta das respectivas causas, serão manifestados. Outro ponto

defendido e esclarecido é a necessidade de equilíbrio entre fé e razão. O grande

problema, aqui denunciado, está na apropriação indevida da razão por parte da

ortodoxia para sustentar suas “verdades absolutas”.

Pensar a experiência de Deus é uma grande oportunidade. Colocando-a em

seu lugar devido abrem-se portas que permitem ao teólogo reavaliar muitos

elementos teológico-práticos. O que se propõe é uma chave hermenêutica que

tenha sua construção baseada na experiência místico-religiosa (experiência de

Deus), uma teomística. A partir dela muitos outros elementos poderiam ser

reavaliados. O culto se tornaria local de encontro. Com o devido respeito a

subjetividade da experiência individual seria mais fácil construir uma experiência

comunitária. As Sagradas Escrituras, muito mais do que fornecer proposições

doutrinárias, poderiam inspirar a construir um tipo de vida que testemunhe na

história e encarne Jesus na vida. Certamente a apreciação de outras teologias com

outros pressupostos e chaves hermenêuticas distintas, se fosse levado em conta a

teomística, poderia acontecer e se perceber beleza na pluralidade das experiências

que produziram o pathos necessário para cada construção teológica.

Longe de um espírito bélico-apologético, declaramos que não somos

inimigos do leitor, ao qual muito estimamos. A estória contada por Kierkegaard e

citada por Rubem Alves pode convencer o leitor da nossa sinceridade: Se Deus tivesse na sua mão direita toda a Verdade, e na sua mão esquerda somente apenas o perpétuo impulso na direção da verdade, muito embora acrescido do fato de que estou destinado a errar sempre e eternamente, e me dissesse: “Escolhe”. Eu escolheria sua mão esquerda e diria: “Dá, ó Pai! A Verdade pura, na verdade, é para Ti somente”.866

Preferimos a mão esquerda.

866 Citado por KIERKEGAARD, Soren, 1968, p. 97 apud ALVES, Rubem, 1979, p. 284.

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