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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Iris Friedman Literatura de Testemunho e a denúncia de uma voz ausente em Primo Levi e Bernardo Kucinski MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA São Paulo 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Iris Friedman

Literatura de Testemunho e a denúncia de uma voz ausente em

Primo Levi e Bernardo Kucinski

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

São Paulo

2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Iris Friedman

Literatura de Testemunho e a denúncia de uma voz ausente em

Primo Levi e Bernardo Kucinski

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência parcial

para obtenção do título de Mestre em

Literatura e Crítica Literária, sob a orientação

da Profa. Dra. Vera Bastazin

São Paulo

2016

Page 3: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP … Friedman.pdf · chamada Literatura de Testemunho. O trabalho, centrado na importância do ato de lembrar e suas particularidades,

Banca examinadora

___________________________________

___________________________________

___________________________________

São Paulo, ____ de _________ de _______

Page 4: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP … Friedman.pdf · chamada Literatura de Testemunho. O trabalho, centrado na importância do ato de lembrar e suas particularidades,

Aos meus avós, Josef e Bela Friedman, que

apesar de tudo o que sofreram, sempre

acreditaram em um mundo melhor.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Profa. Dra. Vera Bastazin, por todo apoio, paciência e

disponibilidade nessa jornada. Sua pareceria me acalmou em momentos mais

tortuosos e, devido às diversas conversas e reuniões, sempre me fez acreditar na

qualidade desse trabalho, desde sua concepção inicial até sua forma final.

Aos colegas e amigos que fiz no Mestrado, e aos professores do Programa, por

propiciarem discussões importantes, que contribuíram tanto para a concepção desse

trabalho. Aos amigos, por compartilharem dessa jornada. À Ana, pela paciência e

calma para lidar com toda minha angústia de mestranda.

Aos membros da minha banca examinadora, Profa. Dra. Maria Rosa Duarte

Oliveira e Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva, por terem aceitado nosso convite e pela

disponibilidade e atenção que tiveram com essa pesquisa, suscitando discussões

importantes que possibilitaram a construção desse trabalho em sua forma final.

À minha família, meu porto seguro. Meus pais, Jane e Mena, e meus irmãos,

Samuel e Julia, por sempre acreditarem em mim, mesmo quando nem eu acreditava.

Por acompanharem todo o processo de escrita dessa dissertação, dando todo o

suporte necessário para que ela se tornasse realidade.

Ao meu amor, Dudu, por me encher de carinho e sempre acreditar no meu

potencial. Por me dar forças quando eu achava que as minhas já haviam acabado, por

enxugar as minhas lágrimas e por, sempre, arranjar um jeito de me fazer sorrir.

Aos meus avós, João e Lourdes, que sempre me apoiaram em toda e qualquer

decisão, e por estarem sempre disponíveis para um chá, um café com bolo ou mesmo

uma conversa longa e acolhedora.

Aos meus tios, e grandes companheiros, Rê, pela revisão cuidadosa e

perspicaz; Luiz, pela ajuda com o resumo e o abstract. Por todas as discussões

frutíferas e por terem me acalmado, quando os prazos batiam à porta e eu achava que

não daria conta.

Page 6: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP … Friedman.pdf · chamada Literatura de Testemunho. O trabalho, centrado na importância do ato de lembrar e suas particularidades,

Aos meus amigos, que entenderam meu sumiço nesse tempo, mas que nunca

deixaram de mostrar que se importam comigo.

Aos meus alunos, que todos os dias me fazem acreditar em um mundo melhor.

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FRIEDMAN, Iris. Literatura de Testemunho e a denúncia de uma voz

ausente em Primo Levi e Bernardo Kucinski. Dissertação de Mestrado.

Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2016.

RESUMO

Esta dissertação propõe um estudo das obras É isto um homem? (1988), de Primo

Levi, e K.- Relato de uma busca (2014), de Bernardo Kucinski, a partir de uma

abordagem da Literatura de Testemunho. Privilegiar esta modalidade literária na

realização de uma leitura – que utiliza elementos ficcionais para dar conta de textos de

cunho testemunhais – favorece a compreensão de eventos-limite como a Shoah e a

Ditadura Militar Brasileira, inseridos na Era das Catástrofes. A análise das tensões

entre presença e ausência nas representações do trauma destaca a questão da

potência negativa como forma de redimensionamento da obra em função de suas

possibilidades narrativas.

Palavras-chave: Literatura de Testemunho; elementos ficcionais; trauma, potência

negativa; possibilidades narrativas.

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FRIEDMAN, Iris. Literatura de Testemunho e a denúncia de uma voz

ausente em Primo Levi e Bernardo Kucinski. Master dissertation.

Postgraduate Studies Program in Literature and Literacy Criticism.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brazil, 2016.

ABSTRACT

This dissertation proposes a study of the works É isto um homem? (1988), by Primo

Levi, and K.- Relato de uma busca (2014), by Bernardo Kucinski, utilizing an

approach from the Testimony Literature. Prioritizing this literary category to conduct a

Reading – that employs fictional elements to cope with texts of witnessing nature –

benefits the understanding of limit-events such as the Shoah and the Brazil´s military

dictatorship, which belong to the Era of Catastrophes. The analysis of

tensions between the presence and absence in the representations of

the trauma highlights the issue of negative power as a way to re-dimension the work

according to its narrative possibilities.

Key words: Witness literature; fictional elements; trauma, negative power; narrative

possibilities.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................11

1. A Literatura de Testemunho como vertente da teoria do trauma...........18

2. A trabalho ético da Literatura de Testemunho .......................................27

2.1. Memória e rastros de memória na Literatura de Testemunho ............... 37

2.2. A testemunha e a Shoah ...................................................................... 42

2.3. Primo Levi e a urgência do testemunho ................................................ 45

2.4. Bernardo Kucinski e o testemunho de um enigma ................................ 50

3. Entre o relato e a interrogativa: contrapontos ........................................54

3.1. A voz como encenação .......................................................................... 69

3.2. Insuficiência da linguagem, obstáculo linguístico e violência inútil ........ 73

Considerações Finais ...............................................................................100

Referências bibliográficas .........................................................................103

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Nos rios ao norte do futuro

eu lanço a rede que tu

hesitante carregas

com sombras escritas por

pedras.

(Celan II, p. 14)

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa visa ao estudo de relatos de memória, a partir da

chamada Literatura de Testemunho. O trabalho, centrado na importância do ato

de lembrar e suas particularidades, busca responder como a memória se insere

na Literatura de Testemunho, tendo em vista a relevância dos rastros de

memória e suas subjetivações. Os conceitos em destaque são responsáveis

pela composição da modalidade literária, cuja importância reside em

materializar experiências efêmeras na oralidade que se tornam literatura.

A denominação Literatura de Testemunho surge a partir da Era das

Catástrofes, esta entendida como a caracterização de situações-limite de

violência, dentre as quais, pode-se destacar a Shoah ou, mais próximo ao

contexto brasileiro, a Ditadura Militar das décadas 1960-70. A dificuldade em

narrar momentos extremos passa a ser enfrentada por meio do relato

testemunhal daqueles que, tendo vivido tais experiências, se propuseram a

narrá-las, compartilhando suas angústias e conflitos, de maneira a chegar a um

estado próximo de libertação.

Esta modalidade literária é tida como fronteira, uma vez que ficção e

historiografia estão, a todo momento, entrelaçadas no texto. Desta maneira,

quanto mais objetiva uma obra de cunho testemunhal pretenda ser, mais

subjetiva ela se revelará, pois o efêmero da memória só consegue atingir certo

grau de realidade quando abrange caráter literário. Escrever somente sobre a

história seria um registro de fatos, e não literatura. O preenchimento dos

espaços vazios deixados pela narração histórica, assim como o afastamento do

autor, são elementos fundamentais para a criação de condições necessárias

para dar o caráter literário à obra.

A literarização não é apenas uma maneira de representar a memória,

mas relaciona-se ao fato de as situações narradas estarem no patamar do

inenarrável. Assim, somente pelo caráter literário torna-se possível aproximar-

se do acontecimento passado. A literatura é, portanto, alternativa necessária à

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construção de obras testemunhais como forma de preencher as lacunas da

memória efêmera, além de viabilizar o registro do inenarrável, dentro de uma

linguagem que se coloca como insuficiente.

É importante, ainda, destacar que, mesmo com o objetivo de contar uma

história particular, a Literatura de Testemunho conta, sempre, uma história que

é coletiva. Ela fala por aqueles que não conseguiram sobreviver para contar

suas experiências. Isto só se dá de maneira eficaz quando o autor consegue,

de fato, afastar-se da obra, muitas vezes chegando a anular-se para alcançar

tal objetivo.

Primo Levi, escritor e sobrevivente da Shoah, revelou em seu livro A

Trégua (2010), sobre um sonho que tinha, reiteradamente, ainda nos campos

de concentração, e que mais tarde descobriu ser comum a muitos prisioneiros.

O sonho era, na realidade, um pesadelo. Sonhava com o fim da guerra, a

libertação, a volta para casa e a tentativa de narrar suas histórias às pessoas

mais próximas que, repetidamente, levantavam-se e davam-lhes as costas, isto

é, não tinham nenhum interesse em ouvi-lo. Os fatos narrados soavam,

provavelmente, como impossíveis e, por consequência, ninguém lhes dava

crédito.

Poder-se-ia afirmar que o discurso testemunhal é, de maneira geral,

corajoso e inteligente, pois se constrói a partir de estilhaços da realidade, que

para o discurso monológico oficial de contextos como o da Segunda Guerra

Mundial e, em específico da Shoah, ou mesmo da Ditadura Militar Brasileira,

deveria transmitir uma ideia de aparente tranquilidade.

A voz do narrador-testemunha rompe com o discurso monológico oficial

e constrói uma segunda voz impregnada de dor. A força dessa estética reside

em poder dar voz àqueles que não escutamos, pois, por si só, a memória

histórica não é mais suficiente para falar de um momento específico.

Abordaremos neste trabalho, a partir da Psicanálise, de Freud, como a

experiência individual assume relevância para a memória coletiva, não mais

estanque em si mesma, mas em permanente processo. O texto testemunhal

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sai da singularidade e vai para o âmbito da subjetividade e é isso que o

transforma em literatura.

A narração de experiências traumáticas é a última arma que golpeia o

inimigo. Ela rompe com o discurso monológico e evidencia novas

reelaborações, utilizando-se da memória que capta e reconstrói os fatos

mesmo que de forma fragmentada, pois não consegue atualizá-los na sua

totalidade.

Além da Shoah, outros eventos-limite aconteceram, e continuam a

acontecer em todo o mundo. A Ditadura Militar no Brasil - ocorrida entre 1964 e

1985 - é um deles, e, assim como na Shoah, apresenta uma reiterada tentativa

de apagamento de rastros. O conceito de rastro, no âmbito literário, é de

grande importância à Literatura de Testemunho, pois é ele que assinala tanto a

ausência de uma presença, quanto a presença de uma ausência, nos vazios

deixados pelo texto, ou porque não pôde ser dito, ou porque se criou uma

forma poética de dizer o próprio silêncio denunciado pelo rastro. É ele que

sublinha a fragilidade da memória, pois, ao mesmo tempo em que se tenta

narrar o passado, lacunas daquele momento traumático aparecem, assim como

a certeza da impossibilidade de narrar exatamente tal como o fato aconteceu.

Cada indivíduo, por mais que tenha passado por uma experiência semelhante

à de outros, constrói um sentimento e uma lembrança que são singulares.

Assim, a literalidade será sempre uma expectativa utópica, e a literariedade, a

maneira possível e – por que não – surpreendente de registrar a experiência.

O período da Ditadura Militar, em nosso país, é considerado por K.,

protagonista da obra K. - Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski (2014),

como um sumidouro de pessoas. Não se sabia, naquele momento, para onde

as pessoas eram levadas, nem o destino que era dado aos seus corpos

torturados e mortos. Apagava-se todo e qualquer rastro que pudesse indicar

uma pista.

É nesse sentido que a Literatura de Testemunho assume importância:

ela é um gesto literário que dá voz àqueles que foram testemunhas reais dos

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fatos, àqueles que chegaram a situações extremas e não conseguiram contar

suas histórias. Muitas vezes, essas testemunhas nem mesmo sobreviveram ou,

se sobreviveram, tiveram experiências tão traumáticas que não mais

conseguiram relatá-las. Nesta direção, pode-se dizer que a Literatura de

Testemunho é um registro ético, realizado com e pela linguagem, que visa dar

a lápide negada a todos aqueles que, enterrados em valas comuns ou

lançados em fornos crematórios, não deixaram nenhum rastro de existência.

Além disso, a Literatura de Testemunho é um registro contra o esquecimento e

a denegação dos fatos que realmente existiram, permitindo àquele que ouve

hoje, reconstruir uma história que se pretendeu apagar.

O corpus de investigação motivador desta pesquisa foi selecionado,

portanto, a partir da leitura das obras É isto um homem?1, de Primo Levi e,

como contraponto literário e contextual, K. - Relato de uma busca2, de

Bernardo Kucinski. Na primeira obra, emergem e se adensam noções como

trauma, escrita testemunhal e composição poética, num contexto específico

que é o da Segunda Guerra Mundial, momento histórico da Shoah. Na obra de

Kucinski, por sua vez, uma narrativa mais recente, emergem noções

relativamente semelhantes, em um contexto bem distinto, que é o da Ditadura

Militar Brasileira - o que suscita possíveis relações interessantes em nossa

hipótese de trabalho sobre a importância dos elementos ficcionais na

representação do trauma. O diálogo entre as obras e os autores leva-nos a

destacar o vigor próprio do teor testemunhal como uma modalidade literária

enriquecida pelas contaminações históricas e sociais. Vale destacar que,

apesar de não estarem diretamente selecionadas em nosso corpus de

1 A primeira edição de É Isto um Homem? foi publicada em 1947, pela editora Francesco de Silva, com

baixa difusão do texto. Somente em 1958 houve maior repercussão da obra, desta vez publicada pela editora Einaudi. O texto que usamos nessa dissertação foi a tradução em português da Editora Rocco, de 1988. Esta obra de Levi é considerada pela crítica como um texto autobiográfico, assim como A Trégua (1962) e A Tabela Periódica (1975). Outro livro que também fazemos referência aqui, Os afogados e sobreviventes (1986) é um texto ensaístico. O autor escreveu apenas um romance fictício, Se não agora, quando? (1982) e diversos contos, sendo que o mais famoso foi publicado na coletânea Chave Estrela (1978). 2 A obra utilizada para a dissertação é a primeira edição da Cosac Naify, de 2014. A primeira publicação do livro foi pela editora Expressão Popular, em 2010.

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investigação, utilizamos outras obras de Primo Levi, que nos ajudaram como

complemento nas análises textuais.

Relações entre memória e Literatura de Testemunho, assim como a

maneira de inscrição da linguagem, nesses registros, trazem experiências

individuais que se transformam para constituir uma experiência coletiva, ou

seja, uma experiência que convoca o distanciamento da realidade e a

ressignificação dos fatos. Identificar-se-á, nessa pesquisa, o caráter subjetivo

da Literatura de Testemunho, não como a reprodução da realidade, mas como

possibilidade de (res)significações.

Diversos estudos e autores foram consultados para o embasamento

teórico e metodológico nas análises a que este trabalho se propõe. Destacam-

se entre outros: o pesquisador Márcio Seligmann-Silva, como importante

referente teórico, devido à sua importância nos estudos da Literatura de

Testemunho; Jeanne Marie Gagnebin, que explora a concepção de rastro

histórico e literário; Giorgio Agamben, que discorre sobre as particularidades da

Shoah no âmbito literário; Roney Cytrynowicz, que analisa historicamente o

processo; e Sigmund Freud, que discute o trauma à luz da psicanálise. Apesar

de uma aparente variedade, é possível encontrar pontos de contato instigantes

e estabelecer diálogo entre esse conjunto de referências teóricas e o corpus de

investigação selecionado.

No percurso da pesquisa procuramos responder à seguinte

problemática: em que medida os elementos ficcionais possibilitam a

representação da memória traumática em obras de teor testemunhal? Como

hipótese, acreditamos que devido ao fato da memória ser fugidia e efêmera, a

linguagem literária é capaz de representar o intangível.

Esta Dissertação está organizada em três capítulos. O primeiro discute a

construção contextual da Literatura de Testemunho em um momento histórico

como a Shoah, a partir da teoria do trauma. O segundo aborda o trabalho ético

da Literatura de Testemunho, assim como a importância da memória e do

conceito de rastro na literatura. Neste momento, explora-se a relação com

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experiências traumáticas, visando compreender o papel da testemunha e da

construção narrativa, cuja linguagem literária aparece como única forma de

dizer aquilo que até então era indizível. Apresenta-se, também, Primo Levi, não

apenas como sobrevivente da Shoah, mas como importante figura literária

desse contexto histórico, além de Bernardo Kucinski, como autor original de

uma obra de ficção sobre a Ditadura Militar Brasileira.

O terceiro e último capítulo examina as possíveis aproximações entre as

obras de Levi e Kucinski como contrapontos histórico e literário. Será possível

perceber que, apesar dos períodos em que as obras foram escritas não

estarem tão distantes da nossa contemporaneidade, cada uma delas

caracteriza momentos e espaços distintos – o período entre 1939 e 1945, na

Segunda Guerra Mundial na Europa, e o período entre 1964 e 1985, na

Ditadura Militar no Brasil. Destaca-se, também, a importância da voz como

encenação nas narrativas de cunho testemunhal.

Vale enfatizar que o corpus ficcional foi selecionado em função de suas

peculiaridades históricas e literárias, diferenciando-se de tantas outras

publicações de sobreviventes das mesmas épocas. Primo Levi, por um lado,

escreve suas experiências e, também, a de seus companheiros de infortúnio

por delegação e, em nenhum momento, procura vitimizar-se ou apontar

monstros e carrascos. Seu objetivo é alertar as gerações futuras sobre os

perigos que o silêncio e a passividade sociais podem causar dentro de uma

ordem democrática.

A obra de Bernardo Kucinski, por outro lado, foi elaborada também

valendo-se de uma articulação entre os fatos políticos que compuseram certo

período histórico e as possibilidades abertas pela estruturação literária. Seu

objetivo é dar maior densidade à questão da busca por respostas a respeito do

que ocorreu à protagonista, sequestrada e morta durante o chamado período

de chumbo da Ditadura Militar Brasileira. A publicação do livro, por ser muito

recente - 2010 - ainda tem poucos estudos a seu respeito.

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Kucinski, diferentemente de Levi, que escreve logo após seu retorno de

Auschwitz, escreve suas memórias muito tempo depois, buscando resgatar

fatos importantes de um período crítico – política e socialmente falando – e

valendo-se de artifícios da ficção para o preenchimento das lacunas que lhe

ficaram na memória.

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1. A Literatura de Testemunho como vertente da teoria do

trauma

A obra de Primo Levi, É Isto um Homem?, é a narração, por meio da

rememoração de fatos ocorridos no período em que o autor esteve no campo

de concentração de Auschwitz, em 1944, último ano da Segunda Guerra

Mundial. Como obra testemunhal, ela tenta ser o mais objetiva possível, apesar

do caráter fragmentário e subjetivo das lembranças do trauma, aqui entendido,

a partir da psicanálise, como memória de um passado que não passa.

A teoria do trauma, desenvolvida pelo psicanalista Sigmund Freud (1856

– 1939), relaciona o inconsciente com o real. Segundo o autor, a memória do

trauma sabota a sua tradução, uma vez que não consegue dizer exatamente

como o evento ocorreu e, por este motivo, se apresenta de forma imprecisa e

fragmentada.

Em Além do princípio de prazer3, Freud sugere que uma maneira de

lidar com a dor é brincar com ela, ao conseguir enfrentá-la de uma maneira

menos dolorosa, já mais consciente e trabalhada internamente. Ao sobrepor-se

à dor, é possível lidar com ela de uma forma mais amadurecida. Podemos

entender a literatura como uma possibilidade de apoderar-se da dor causada

por situações traumáticas.

A psicanálise questiona a relação com o real, de maneira a evitar o

positivismo4, na medida em que apresenta outras visões e discursos sobre um

mesmo evento, que se estendem para além da História oficial. A partir da

3 A obra foi publicada originalmente em 1920, tendo como referência sobreviventes da Primeira Guerra Mundial. Utilizamos aqui a edição brasileira publicada pela editora L&PM, em 2016. 4 O positivismo é um pensamento com linearidade temporal, datado, sequencial de causa e efeito em um raciocínio lógico-dedutivo da História. A Literatura de Testemunho tem um olhar que vai além do que está na superfície, pois entende a História não como fato, mas como conjunto de processos. Só é possível o resgate e a discussão da História quando se dá voz não somente ao narrador oficial, mas àqueles que vivenciaram as experiências a serem representadas, uma vez que a História é, ao mesmo tempo, pluridimensional, policênica e polifônica. Neste sentido, a Literatura de Testemunho serve como pensamento dialético e como contraponto à História oficial.

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Primeira Guerra Mundial, a questão do trauma tornou-se decisiva para o estudo

da psicanálise. Em Conferências introdutórias sobre a psicanálise: teoria

geral das neuroses (1976), Freud pesquisa a respeito das neuroses

traumáticas com base nas experiências dos soldados e de sobreviventes desse

evento histórico, entre 1915 e 1917.

Sobre essa mesma questão debruçou-se também Walter Benjamin

(1994) em seus estudos sobre O narrador – Considerações sobre a obra de

Nikolai Leskov5, ao mostrar que esses mesmos soldados voltavam mudos de

suas experiências no front, mesmo sendo este um evento de grande magnitude

histórica.

Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano. (BENJAMIN, 1994, p. 198).

Em Além do princípio de prazer, publicado em 1920, após o final da

Primeira Guerra Mundial, Freud elabora a teoria da neurose de guerra, a partir

da reflexão sobre pulsões. A obra pretendia dar conta dos efeitos traumáticos

da guerra, por meio da relação entre trauma e pavor – ou susto. O trauma é

então causado pela fixação psíquica na situação de ruptura e pela pulsão de

morte,

5 Utilizamos a tradução em português do texto que se encontra na 7ª edição da obra Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, da Editora Brasiliense, em 1994. O texto original é datado de 1936.

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[...] uma energia que ataca o psiquismo e pode paralisar o trabalho do eu, mobilizando-o em direção ao desejo de não mais desejar, que resultaria na morte psíquica. É provavelmente a primeira vez em que se postula no psiquismo uma tendência e uma força capazes de provocar a paralisia, a dor e a destruição. (FREUD, 2016, p. 16).

Na neurose de guerra, o inconsciente está ligado à regressão de modos

de reação primitivos, devido à permanência das cenas traumáticas em sonhos.

Segundo Freud (1976: III 241s), o objetivo da psicanálise é “reparar o domínio

da excitação com base no desenvolvimento da angústia, cujo fracasso foi a

causa da neurose traumática”.

Após a Segunda Guerra Mundial, os sobreviventes dos campos de

concentração forneciam novos elementos para a teoria do trauma. Em 1967,

em Copenhague, foi realizado o 1º Simpósio sobre os problemas psíquicos de

sobreviventes. Trabalhos apresentados e discussões decorrentes levaram à

proposição de um novo conceito: síndrome de sobrevivente. Tal conceito diz

respeito a uma situação crônica de angústia, cujas consequências, dentre

outras, são: depressão, distúrbios de sono com pesadelos constantes, apatia,

problemas somáticos, anestesia afetiva, incapacidade de verbalizar a

experiência traumática, culpa por ter sobrevivido, luto. No caso do luto, por

exemplo, a incapacidade de se trabalhar com ele leva à angústia, o que

equivale à permanência e intensidade do trauma.

Apesar da dificuldade em elaborar o trauma verbalmente, há, no sujeito,

uma necessidade de tradução testemunhal, a fim de contar para fazer

conhecer a sua história e se desvencilhar dos fantasmas do passado. No

entanto, a tradução total da experiência é impossível, seja no pensamento, na

memória ou na linguagem.

Sublinha-se, também, a questão da impossibilidade de se narrar o

trauma em sua literalidade, pois a efemeridade da memória faz com que se

distancie muito a representação fiel dos fatos. Assim, a escrita torna-se uma

modalidade literária de fronteira que necessita tanto da realidade quanto da

literariedade para se estabelecer. A literariedade, no entanto, não significa,

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simplesmente, a invenção de uma história, mas o uso de estratégias de

linguagem frente à incapacidade de se narrar o inenarrável.

O conceito de apagamento de rastros, trabalhado principalmente por

Jeanne-Marie Gagnebin (2006), é tido como uma tentativa por parte dos

nazistas de descrédito das dores e horrores da Shoah. Gagnebin trabalha

também com o testemunho como maneira de luto, de libertação, além de

ressaltar que o mesmo só se torna efetivamente autêntico quando recebido por

parte do leitor.

O filósofo italiano, Giorgio Agamben, na obra O que resta de Auschwitz

(2008), traz um conceito bastante pertinente sobre o Paradoxo de Levi, a

respeito das reais testemunhas, que são exatamente aquelas que não

sobreviveram ou que chegaram ao fundo e não conseguiram voltar. Portanto,

todo e qualquer relato nunca será completo porque não abordará o evento em

sua totalidade. As testemunhas que sobreviveram e que escreveram para

contar seus traumas fizeram-no como forma de luto e, paradoxalmente, de

libertação, mas estas são apenas testemunhas consideradas potenciais, na

medida em que conseguiram, de alguma maneira, sobreviver. O fato de não

terem sido enviadas às câmaras de gás e aos fornos crematórios já não as

tornam testemunhas integrais, pois apesar de terem passado por diferentes

estágios de destruição humana, não chegaram a ser eliminadas fisicamente.

O resgate da memória da Shoah assume grande importância política nos

dias de hoje: 71 anos depois do final da Segunda Guerra Mundial, ainda

existem aqueles que negam os acontecimentos na tentativa de apagar fatos

históricos que feriram profundamente a humanidade. A negação desses fatos

equivaleria a um tipo de assassinato da memória, correspondente a uma

tentativa de cunho autoritário, tal como foi o nazismo na Europa. O regime

nazista singularizou a Segunda Guerra Mundial e, com sua ideologia centrada

na superioridade biológica da raça ariana, fez culminar uma visão racista que

levou ao genocídio de milhões de inocentes.

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Para o historiador, Roney Cytrynowicz,

Os seis campos de extermínio (com câmaras de gás) construídos pelos nazistas na Polônia não foram apenas mais um episódio de violência na história da Segunda Guerra Mundial ou da humanidade. O genocídio dos judeus é um fato sem precedentes na história. Os campos de extermínio constituíram a mais brutal máquina de matar já construída pelo homem. Todos os recursos tecnológicos desenvolvidos em nome do progresso foram colocados a serviço da destruição de um povo inteiro. As câmaras de gás não representaram apenas nova lógica de destruição, o assassinato em massa de inocentes segundo critérios de eficiência da produção industrial.

O genocídio dos judeus não foi crime apenas contra o povo judeu. Ele foi crime contra a humanidade. Porque humanidade significa diversidade étnica e cultural, significa multiplicidade. Ao pretender decidir quais povos tinham o direito de habitar este planeta, os nazistas tentaram aniquilar a própria ideia de diversidade humana. O nazismo instaurou a possibilidade de destruir povos inteiros da face do planeta.

(CYTRYNOWICZ, 1990, p. 12-13).

Os judeus, nos discursos nazistas, eram denominados de ratos,

parasitas, bacilos e até agentes de contaminação, como se percebe na fala

proferida por Himmler, um dos principais líderes do partido nazista na

Alemanha: “Quando falamos do problema racial não nos referimos ao

antissemitismo. A luta antissemita é só uma luta contra parasitas. Livrar-se dos

piolhos não é uma questão ideológica. É simplesmente uma questão de

limpeza” (apud CYTRYNOWICZ, 1990, p. 25). Desta maneira, Himmler sugeria

que o combate aos judeus era uma necessidade biológica e que estava acima

da vontade humana, sendo os nazistas apenas agentes que deveriam cumprir

um designo superior.

O grande objetivo do pacto de não-agressão nazi-soviético, de 1939,

também conhecido como Ribbentrop-Molotov (em referência aos dois ministros

do exterior de ambos os países), era controlar os efeitos do combate quando a

guerra começasse. O acordo estabelecia que as duas nações deveriam

manter-se afastadas em termos bélicos e não poderiam invadir os territórios

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uma da outra. Além disso, em protocolos secretos, os dois governos dividiriam

territórios entre si: cada um teria uma parte da Polônia; a Lituânia ficaria para a

Alemanha, enquanto a Estônia, Letônia e parte da Finlândia caberiam à URSS.

Além do mais, as relações comerciais garantiriam petróleo soviético para os

alemães e, em contrapartida, produtos bélicos germânicos para a União

Soviética.

Hitler, porém, entrou em guerra com a URSS ao exigir a devolução de

territórios, na Polônia, perdidos pelo Tratado de Versalhes. No dia 1º de

setembro de 1939, a Alemanha invade a Polônia com um ataque conjunto de

aviões, carros blindados e um milhão de soldados. A URSS, por sua vez, ataca

a porção oriental polonesa. Logo a seguir, a Inglaterra, aliada da Polônia, e a

França, aliada da Inglaterra, declaram guerra à Alemanha. Iniciava-se a

Segunda Guerra Mundial.

Até 1939 o objetivo nazista consistia na expulsão dos judeus da

Alemanha e dos territórios anexados à Tchecoslováquia e à Áustria. Desta

maneira, a Alemanha se tornaria judenrein, livre de judeus. Mas, devido a

ocupação da Polônia por parte da Alemanha, a quantidade de judeus sob

domínio alemão aumentou de 300 mil para mais de 4 milhões de pessoas e,

com a ocupação de vários outros países europeus e parte da URSS, o número

de judeus sob tutela alemã saltou para 8 milhões, segundo Cytrynowicz (idem,

1990).

Com uma grande quantidade de judeus sob domínio alemão, a ideia de

expulsão para outros países tornou-se inviável. Iniciou-se, então, a obsessão

nazista de encontrar uma maneira de eliminá-los da forma mais impessoal

possível. As primeiras experiências do extermínio em massa aconteceram com

a utilização de caminhões, que serviriam de câmaras de gás móveis. O gás

monóxido de carbono, proveniente do motor, era convertido para o caminhão

lotado e matava por asfixia durante um trajeto de apenas 15 minutos até uma

floresta, quando os corpos eram então descarregados e enterrados em valas

comuns. Este procedimento era capaz de matar entre 50 e 60 pessoas de uma

só vez. Devido ao fato de, após a asfixia, os mortos serem encontrados com as

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faces desfiguradas e os corpos cobertos de fezes, eram os próprios judeus

obrigados a retirá-los dos caminhões e enterrá-los.

Entre setembro e dezembro de 1941, com as técnicas do programa de

eutanásia, prisioneiros soviéticos passaram a ser mortos em câmaras de gás.

Ao final deste mesmo ano, o êxito do projeto levou ao início do genocídio dos

judeus em massa. No início de 1942, as câmaras de gás começaram a operar

sistematicamente também na Polônia – era a solução final do problema judeu.

Mesmo sendo iminente o final da guerra, prisioneiros dos campos de

concentração eram comandados pelos soldados alemães em longas

caminhadas conhecidas como Marchas da Morte. Como as balas de revólveres

eram muito caras, o plano era esgotar a força dos judeus, já fracos, que

acabavam morrendo no caminho por diversos motivos, entre eles a fome, o frio,

as doenças e a exaustão.

Aproximadamente 60 mil presos foram retirados de Auschwitz em janeiro

de 1945, com temperaturas inferiores a 20ºC negativos; por volta de 5 mil

prisioneiros que não podiam andar, foram largados no campo, entre eles, Primo

Levi. Estes foram libertados pelas tropas soviéticas em 27 de janeiro de 1945.

A maioria dos países envolvidos estava devastada. As perdas humanas

foram contabilizadas em cerca de 50 milhões. A Alemanha foi dividida

terriorialmente entre os países vencedores e os nazistas foram julgados por

seus crimes no tribunal de Nuremberg.

Adolf Eichmann, encarregado por coordenar a deportação de judeus

para o extermínio, é encontrado pelo serviço secreto de Israel em 1960, na

Argentina. Ele é julgado em Jerusalém e, em 1962, é enforcado. Foi a única

pena de morte aplicada em Israel até hoje.

O caso de Eichmann foi estudado por Hannah Arendt no livro Eichmann

em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1999). Na obra, a

autora propõe entender os crimes nazistas como imersos no cotidiano das

pessoas, ou seja, todo o genocídio aconteceu sem constrangimento ético, uma

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vez que, matar judeus era uma lei. Assim, todas as tarefas eram realizadas

como atos cotidianos. O próprio Eichmann é descrito como um homem

mesquinho e calculista, que via no nazismo uma oportunidade de emprego e

realizou todas as deportações com extremo rigor, de maneira burocrática, sem

sentimento de culpa ou problema moral. Ele estava cumprindo uma lei, assim

como muitos o fizeram e se calaram diante do extermínio de milhões de

pessoas.

Algo semelhante acontecia com Rudolf Höess, comandante de

Auschwitz. Em entrevista com um psiquiatra na prisão, depois da guerra,

Höess declara:

Você pode ter certeza que nem sempre foi um prazer ver aquela montanha de corpos e cheirar o contínuo queimar (dos corpos). Mas Himmler ordenou e até explicou a necessidade e eu realmente nunca pensei muito se isto era errado. Parecia simplesmente uma necessidade. (apud CYTRYNOWICZ, 1990, p. 110).

Conforme Hannah Arendt (idem, 1999) nos alerta, o perigo da

banalidade do mal está justamente na ausência de questionamento desse tipo

de ação, que era executada como uma ordem burocrática, e o consequente

silenciamento diante da morte de inocentes. Cytrynowicz completa o raciocínio:

Para que o extermínio funcionasse normalmente naquele Estado, não bastava um grupo de militantes fanáticos que acreditava que o extermínio era necessário. Era preciso que cada alemão continuasse a executar sua tarefa da mesma maneira rotineira com que sempre o fizera, estivesse ou não envolvido diretamente com o genocídio. Pesquisas feitas na Alemanha sob o nazismo mostraram que cerca de 10% dos entrevistados eram nazistas ativos. A maioria era indiferente ou omissa. Uma das questões mais agudas que existe em relação ao nazismo é a discussão de quem foi responsável pelos crimes. Alguns historiadores dizem que não é possível culpar ou responsabilizar toda a população alemã, mas apenas a minoria que esteve diretamente envolvida na execução no genocídio. Outros afirmam que boa parte da população sabia do genocídio e silenciou ou colaborou, sendo igualmente

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responsável. A banalidade do mal fez com que fosse abolida a diferença entre criminosos e não criminosos, instaurando e institucionalizando o crime no interior da sociedade. Dessa forma, tanto aqueles 10% fanáticos quanto a maioria omissa foram indispensáveis para o nazismo realizar o genocídio. (CYTRYNOWICZ, 1990, p. 111-112).

Em função deste panorama complexo e, buscando–se evitar que outros

eventos-limite como esse voltem a acontecer, muitos sobreviventes assumiram

testemunhar os fatos, ao final da guerra. Dentre eles, Primo Levi se destaca,

devido à sua lucidez e sagacidade. Conforme seus pronunciamentos, ele não

buscou achar culpados, tampouco colocar-se como vitima; seu objetivo foi falar

por aqueles que não conseguiram sobreviver para poderem contar suas

histórias.

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2. O trabalho ético da Literatura de Testemunho

A Literatura de Testemunho é uma modalidade literária que teve seu

surgimento ligado às violências extremas ocorridas durante o século XX,

denominado por Eric Hobsbawn (1995) de breve século XX6, período em que

políticas de destruição humana em escala massiva passaram a compor o

cenário mundial.

Essa época é também caracterizada pelo autor como a Era dos

extremos, pois, apesar das conquistas científicas incontestáveis, houve uma

barbárie civilizada (Michael Löwy, 2000), englobando duas guerras mundiais

que incluíram campos de concentração e extermínio, genocídio racial,

institucionalização do racismo e da xenofobia, morticínios étnicos, bomba

atômica, ditaduras latino-americanas, entre outros eventos-limite.

Este século, devido às situações extremas e aos diversos eventos

traumáticos em várias partes do mundo, caracterizou-se, ainda, como a Era

das Catástrofes, convertendo-se, em seguida, na Era dos testemunhos. Desta

maneira, o testemunho surgiu como uma prática social quase imperativa dentro

de um quadro sócio-histórico devastado e traumatizado com as guerras em

geral, a Shoah, em particular, ou as Ditaduras Latino-Americanas e a Brasileira,

em especial.

Sobre esta questão, Márcio Seligmann-Silva (2005) mostra que, com o

passar do tempo, se opta por usar a Literatura de Testemunho como uma

modalidade de teor testemunhal da obra literária. A questão de gênero é

discutida desde sua origem, ainda em Aristóteles. Platão (2009) já dizia: “não

falarei em versos, já que não sou poeta”, diferenciando verso e prosa. Essa

divisão permanece, de certa maneira, nos dias atuais, porque serve ainda

6 A expressão breve século XX é uma maneira, de certa forma, irônica de Eric Hobsbawn especificar o

período histórico de cem anos - que se inicia com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e vai até o declínio da URSS. A quantidade de acontecimentos de grande impacto para a humanidade somada às transformações econômicas, sociais e tecnológicas, que culminaram com as duas Grandes Guerras Mundiais, teriam sido acontecimentos em demasia para um período de cem anos.

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como instrumental didático importante. No entanto, a partir da modernidade,

esse ponto, abordado de maneira estanque, é discutido com mais ênfase e a

Literatura de Testemunho passa a ser entendida como uma modalidade de teor

testemunhal, uma vez que pode aparecer em diferentes gêneros, como nos

romances, poemas, contos, crônicas e até em histórias em quadrinhos.

O testemunho e o diário são dispositivos que surgem na literatura dentro deste embate entre este Eu moderno e o mundo, sobretudo quando o mundo se apresenta como uma manifestação violenta. Testemunho e diário são marcas ou pegadas do indivíduo na era da sua desaparição. Este indivíduo precisa se apegar a um Eu que ele está recriando e reafirmando tanto quanto lhe é permitido por um mundo que o puxa, se não para o extermínio, ao menos para o anonimato e para a sua insignificância. (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 9).

A Literatura de Testemunho (ou relatos testemunhais, ou ainda, relatos

de memória) é uma modalidade literária que, como sugere Seligmann-Silva, se

encontra entre a objetividade e a subjetividade. De um lado, encontra-se o

tempo em que sucedeu o evento e, de outro, o tempo de sua enunciação, que

tem como estética a denúncia, por meio da representação escrita. Desta

maneira, a estrutura narrativa desse tipo de texto está dividida em experiência

individual e memória coletiva, e abarca uma responsabilidade tanto social

quanto histórica. Maurice Halbswachs (2006) explica que toda memória

individual existe a partir da memória coletiva de grupos sociais.

Essa narração da memória coletiva, que parte da singularidade em

direção à subjetividade é que transforma a escrita em texto literário, uma vez

que ultrapassa o caráter individual da experiência traumática. A ausência dos

afogados7 torna-se, então, presença, dentro do silêncio do texto, uma vez que

nunca saberemos o que eles realmente gostariam de dizer. Esses vazios pela

supressão de falas respeitam as individualidades e as vozes que foram caladas

na memória coletiva.

7 O conceito de afogados aparece na última obra de Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes (2004),

para denominar aqueles que não sobreviveram aos campos de concentração nazista.

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Alfredo Bosi (1995), ainda, caracteriza a Literatura de Testemunho como

o limite entre a mímese dos fatos e a tentativa de apresentá-los o mais

fielmente possível, e os estados da alma ou juízos de valor, que equivalem às

situações evocadas. Essa subjetivação, presentificada pela literatura, não

significa invenção de acontecimentos passados, mas, ao contrário, torna-se

experiência necessária para a construção de um discurso traumático envolto

em lacunas, como possíveis interpretações de um tempo que já passou.

A Literatura de Testemunho não pretende imitar a realidade, mesmo

porque essa seria uma pretensão inalcançável. A realidade não é estanque, e

não é a mesma para todos os indivíduos que a experimentam. É por isso que a

Literatura de Testemunho se realiza como uma manifestação do real por meio

da representação que, no fundo, resiste à simbolização.

A manifestação do real acontece por meio do texto, em uma tensão

entre necessidade e impossibilidade de narrar. No entanto, a dificuldade em

narrar faz parte da própria estrutura do testemunho. Para Agamben (op.cit.,

2008, p. 20), a aporia de Auschwitz consiste no fato de que a realidade,

comparativamente, não é mais verdadeira, pois ela excedeu os elementos

factuais.

Refletir sobre violências extremas somente a partir de análises teóricas é

impossível, assim como o seria se a questão fosse examinada apenas por

meio de documentos oficiais. Todos esses materiais apresentam, sem dúvida,

importância histórica, mas sozinhos, dizem muito pouco e correm o risco de

cair no positivismo. Para que se tornem realmente relevantes é preciso,

também, levar em conta o testemunho dos sobreviventes.

As lacunas da memória, apresentadas nos silêncios do texto, no entanto,

servem a um trabalho ético, pois respeitam a diversidade de vozes dos mortos

e afogados que não conseguiram contar suas histórias. A Literatura de

Testemunho caminha permanentemente com essa ausência, que se torna

presença justamente nesses espaços vazios, tanto da memória do autor-

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testemunha, como nas potências negativas, de tudo aquilo que poderia ter sido

dito e transformado em ato, mas não o foi.

Ainda segundo Agamben (idem, 2008), a consciência da impossibilidade

de dizer é o que transfere, para o discurso, a ética na língua. Ao não estetizar o

sofrimento, a língua dá seu testemunho justamente pela sua impossibilidade de

dizer, tornando-se a figura de uma ausência.

A Literatura de Testemunho tem responsabilidade tanto com o evento

ocorrido, quanto com a maneira como ele é escrito, evidenciando seu trabalho

ético. De acordo com Seligmann-Silva, “Essa ética e estética da Literatura de

testemunho possui o corpo – a dor – como um de seus alicerces”. (2005, p.

210)

Ainda segundo o autor,

A Shoah pode desempenhar um papel fundamental no desenho dessa ética da tradução baseada no diálogo e no respeito. A reflexão sobre a Shoah pode desdobrar e aprofundar e aprofundar muitos dos teoremas discutidos no âmbito da teoria pós-colonial. É em torno desse evento, como muitos autores já o afirmaram, que se está delineando uma nova estética e, sobretudo, uma nova ética da representação. A Shoah introduz um novo modelo de representação porque ela redimensiona a questão do intraduzível, revela que não existe uma monolíngua que dê conta de abarcar o “todo”; em segundo lugar, porque esse evento teve um efeito tal na nossa cultura que trouxe à luz de modo irrefutável em que medida a identidade (e o universo simbólico) só se estabelece a partir dos traumas (e não de uma formação linear e ascendente); finalmente, a reflexão sobre a Shoah é essencial para a nova ética da tradução porque esse evento é o resultado mais decantado e trágico do modelo monológico da língua. O nazismo se caracterizou pela tentativa de construir uma língua radicalmente autocentrada. Esse caráter autotélico está na origem da sua “impotência” em lidar com o “outro”: essa língua só podia se estruturar via eliminação do “outro”. (SELIGMANN-SILVA, idem, 2005, p. 211)

A grandeza de um autor, e consequentemente, de sua obra, está em sua

anulação enquanto narrador. É exatamente esse espaço de ausência da voz

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do autor que fascina, pois somente com o desapego do eu e com a conquista

da voz anônima, não há a limitação da capacidade produtiva e, tampouco, o

controle do intervalo de uma outra possibilidade do real. A escrita literária e seu

caráter testemunhal ocorrem, então, não pelo viés de personagens ficcionais,

mas pelo processo de enunciação. A palavra, segundo Maria Rosa Duarte de

Oliveira (2015), passa a ser um ter-lugar, pois a dramatização se encontra na

língua - não nos personagens, e sim nas potências negativas do que foi dito e

do que ficou por dizer, do que poderia ser feito e não foi. A linguagem, no

discurso testemunhal, cede “lugar a uma voz muda que dá testemunho da

impossibilidade de dizer” (OLIVEIRA, 2015, p. 227).

Este conceito de ter-lugar, elaborado inicialmente por Agamben, explica

o sistema linguístico como um espaço habitado pelo homem, que não tem

consciência que é devido à particularidade desse ter-lugar que seu

pensamento e sua maneira de se apresentar no mundo acontecem. A

literatura, então, se manifesta em forma de uma “língua estrangeira” que tem a

capacidade de dizer/não dizer, pois opõe-se à comunicação e à informação, a

partir do momento que se conscientiza da sua incapacidade de classificar de

forma permanente as coisas do mundo. Para Oliveira (idem, 2015, p. 227),

“Contemplar a língua em seu ‘ser de infância’, é dar testemunho de sua pura

potência de não dizer/dizer, que constitui a ética e a responsabilidade do

escritor”.

As narrativas de teor testemunhal abrangem a mímese do evento

passado, por meio de sua reprodução, além de se encontrar no intervalo entre

o estético e o político, pois o testemunho se dá pela voz daquele que escreve,

muito embora seu foco esteja naqueles que não sobreviveram, por isso a sua

incapacidade de dizer. Desta maneira, ainda segundo Oliveira (idem, 2015, p.

227), “Permanecer no limiar é o maior desafio dos relatos de testemunho”.

Seguindo essa mesma linha de pensamento, Seligmann-Silva afirma:

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Devemos pensar a mímese como a coluna vertebral do pensamento antigo sobre as artes, que se estrutura a partir da separação entre a própria mimeses (enquanto modo de representação) e aquilo que é seu objeto, o mito, a fábula. Aristóteles deixa clara a diferença entre o modo trágico da mímesis e a narrativa histórica. A poesia está voltada para o universal, não para o que aconteceu, mas sim para o que poderia acontecer. Sua tendência é para a tipificação, para a encenação de personagens e situações paradigmáticas. No campo do testemunho, a equação é bem diversa: a narrativa visa antes de tudo o particular, apenas em um segundo momento da recepção e da construção das narrativas testemunhais é que entra em cena a autorreferência e a estruturação de um discurso de certo modo tipificador (que cria certas regras para o comportamento dos protagonistas, bem como aponta para o desenho das bordas dos grupos e comunidades de vítimas e leitores). O “drama” da narrativa testemunhal é justamente a dificuldade de reduzir o particular histórico ao universal da discursividade. [...] Ou seja, os valores aristotélicos encontram-se invertidos. É dentro dessa nova visão dos fatos culturais que o teor testemunhal da literatura pôde vir à tona com maior evidência. O testemunho encontra-se no vértice entre literatura e historiografia (ou o subgênero da autobiografia). Sua ligação com as artes o qualifica para a apresentação do único, mas é também no testemunho que este singular encontra refúgio, diante de uma historiografia voltada para tipificações de épocas e grandes períodos, ou para as “reduções” economicistas, nacionalistas etc. [...] A fragmentação tendencial do testemunho enquanto narrativa que emana das catástrofes, no entanto, vai contra este movimento de estereotipia. De resto, no registro do testemunho da Shoah, não podemos falar de mímesis no sentido imitatio. Aqui o que ocorre é uma tendencial manifestação da catástrofe sob a forma de índices. Assim como nas artes plásticas contemporâneas já não podemos mais distinguir o “suporte” da obra – ou o ergon do parergon –, do mesmo modo não existe mais em certos testemunhos a separação entre mímesis e o objeto mimetizado. (SELIGMANN-SILVA, op.cit., 2005, p. 93-94)

A existência da literatura permanece negando seu limite, aquilo que a

separa do “real”, resiste à simbolização. A partir do século XX, no entanto, a

literatura, assim como outras formas de manifestação artística, é abalada pela

história do presente traumático.

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A essa nova ética e estética de representação transfere-se a sensação

de clausura, própria da realidade do campo de concentração. Mesmo após os

sobreviventes terem retornado às suas casas, o sentimento de angústia é algo

constante e, portanto, torna-se tema central nas obras de teor testemunhal.

A Literatura de Testemunho é uma maneira diferente de se relacionar

com o passado, uma vez que apresenta uma outra voz, em forma de lamento,

para se relacionar com o passado. O testemunho tem sua origem no presente,

para poder, enfim, elaborar seu passado. A elaboração do tempo linear é

sobreposta por uma concepção topográfica, como a memória. Diferentes

pontos e aspectos da memória se cruzam, formando diferentes conexões, que

não objetivam representar o passado, mas construí-lo através do presente.

Dentro do testemunho duas diferentes modalidades se apresentam: a

Zeugnis – que é a Literatura de Testemunho da Shoah tal como conhecemos –

e o Testimonio. A primeira parte da psicanálise, da teoria literária e da

disciplina histórica tendo como base os estudos sobre a memória. A segunda

concepção de testemunho advém da tradição religiosa da confissão e do

testemunho bíblico cristão. Enquanto a Zeugnis se apresenta em maior escala

em países da Europa devastados pela Segunda Guerra Mundial e pela Shoah,

o Testimonio se concentra em países ditatoriais de língua espanhola na

Hispano-América, nos anos de 1960.

O evento central da Zeugnis é a Shoah, em sua particularidade e

radicalidade. A política de memória está relacionada a este evento; enquanto

no Testimonio, sobressai-se a política partidária, como forma de representação

dos esforços revolucionários nas ditaduras hispano-americanas.

O Brasil, apesar de ter vivido 21 anos de ditadura civil-militar, não está

inserido no Testimonio. Nesta época, a literatura brasileira se concentrava na

teoria do romance e suas implicações com o realismo. É por isso que, no

Brasil, as obras escritas durante ou mesmo após a ditadura civil-militar e

ligadas ao evento, são consideradas textos com teor testemunhal, e não

literatura de Testimonio.

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A Zeugnis - como algo que vai além da nossa capacidade de apreensão

- se aproxima do conceito kantiano de sublime8, a partir da experiência estética

da obra, que quer representar artisticamente a expressão de uma

subjetividade. A aporia dessa modalidade testemunhal, tanto estética quanto

moral, está justamente na sua impossibilidade de apreensão e representação

e, ao mesmo tempo, na necessidade expressa pelos sobreviventes.

A fragmentação passa a ser um elemento da própria literariedade, em

sua impossibilidade de dizer, causando uma tensão permanente entre

oralidade e escritura do trauma. Há uma incapacidade de transpor a memória

de um passado traumático em imagens ou metáforas, motivo pelo qual os

elementos ficcionais tornam-se necessários para narrar o choque, mesmo que

em fragmentos.

O testemunho serve, portanto, não somente como documento para uma

memória coletiva, mas como prova para a história oficial, a partir do

anarquivamento (Seligmann-Silva, 2014), ou seja, enquanto na historiografia, o

arquivo serve como organização e memória dos fatos, o anarquivamento

mistura os arquivos, fazendo emergir questões de fronteiras, revelando

segredos e desestabilizando dicotomias.

A grande diferença entre a historiografia e o anarquivamento é que o

segundo foge a uma visão reducionista do saber histórico, quando meramente

relacionado ao arquivo. O anarquivo, por outro lado, mostra que existem

diversos fatos e documentos que são tão importantes quanto a historiografia e

absolutamente necessários para a construção da História, com vozes e pontos

de vista que vão além do registro oficial.

Agamben reflete a respeito das vozes presentes no testemunho:

8 Sublime, para Imannuel Kant (2010), refere-se a um objeto “[...] cuja representação determina o ânimo a imaginar a inacessibilidade da natureza como apresentação de ideias.” Em outras palavras, para Kant o sublime equivale às coisas que conseguimos pensar, mas não somos capazes de traduzir em imagens.

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Os poetas – as testemunhas - fundam a língua como o que resta, o que sobrevive em ato à possibilidade – ou à impossibilidade de falar.

A respeito de que tal língua dá testemunho? Porventura de algo – fato ou evento, memória ou esperança, alegria ou agonia – que poderia ser registrado no corpus do já-dito? Ou da enunciação, que atesta no arquivo a irredutibilidade do dizer ao dito? Não é nem de uma nem de outra coisa. Não enunciável, não arquivável é a língua na qual o autor consegue dar testemunho da sua incapacidade de falar. (AGAMBEN, op.cit., 2008, p. 160-161).

O testemunho, portanto, é sempre uma potência de ser/não ser, pois por

mais objetivo que se pretenda, tanto mais subjetivo se apresenta. O

testemunho não se esgota, é ao mesmo tempo a possibilidade e a

impossibilidade de narrar, é apenas uma parcela do que foi e a potência de

tudo mais que poderia ter sido.

Um caso que apresenta relevância literária é o do menino Hurbinek,

apresentado em A trégua (2010), obra também de Primo Levi. Hurbinek foi o

nome que os prisioneiros deram a um menino, de três anos, nascido em

Auschwitz. O menino sem nome, devido às condições em que havia nascido e

crescido, não falava. Logo após a libertação dos prisioneiros, Hurbinek não

conseguiu resistir e faleceu. Primo Levi, então, conclui: “Nada resta dele: seu

testemunho se dá por meio de minhas palavras” (2010, p. 21), ou seja, o relato

de Primo Levi nunca se esgotaria em ato, pois muitas coisas que o menino

poderia ou não ter dito nunca serão narradas. Mais uma vez, é uma potência

recheada de possibilidades e impossibilidades.

De acordo com Shoshana Felman (2000), prestar testemunho é um

trabalho solitário que equivale a um fardo. Isto porque, por maior que seja a

urgência em contar, em se libertar das lembranças amargas dos tempos de

cativeiro, ativar a memória para esses momentos é sempre doloroso. Toda vez

que uma experiência traumática é rememorada, um lampejo de dor retorna

àquele que lembra. O fardo consiste, ainda, na consciência de que falar em

lugar de outros, daqueles que não sobreviveram, significa não conseguir nunca

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representar o que eles teriam, realmente, a dizer, restringindo-se apenas ao

que se supõe que seria dito.

Foi nesse sentido que Elie Wiesel (apud FELMAN, 2000, p. 15), também

sobrevivente da Shoah, constatou: “Se algum outro pudesse ter escrito minhas

histórias, eu não as teria escrito. Eu as escrevi para testemunhar e esta é a

origem da solidão que pode ser apreendida em cada uma de minhas frases,

em cada um de meus silêncios”.

O grande trabalho ético em relação à Literatura de Testemunho da

Shoah é o ato de testemunhar, uma vez que este foi um evento, afinal, sem

testemunhas integrais (NETROVSKI e SELIGMANN-SILVA, 2000).

Segundo Levi,

[...] vale dizer, daqueles que constituíam o cerne dos campos e que só escaparam da morte por uma combinação de eventos improváveis. Eram maioria nos Lager, mas exígua minoria entre os sobreviventes: entre estes, são muito mais numerosos aqueles que, no cativeiro, desfrutaram um privilégio qualquer. Numa distância de anos, hoje se pode bem afirmar que a história dos Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão. (LEVI, op.cit., 2004, p. 14).

Exatamente por este motivo, de os testemunhos serem escritos por

aqueles que não foram as testemunhas integrais, que esta modalidade literária

esbarra no limite ético de não dar conta de um discurso completo e totalizador.

Para Shoshana Felman (idem, 2000), o testemunho é uma prática discursiva

que se opõe à teoria, pois cada ato de fala produzido pelo testemunho produz a

sua própria verdade inserida na verdade comum do evento em si. A

incapacidade de testemunhar por alguém é o que torna a experiência individual

única e singular.

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A complexidade do testemunho se apresenta no emaranhado de

informações e narrativas, seja por meio da visão, da oralidade narrativa ou da

capacidade de julgar. De acordo com Seligmann-Silva (1998), apesar de

diferentes, um complementa o outro, em uma relação conflituosa característica

desta modalidade literária. Porém, a questão central que assombra o

testemunho é o apagamento de rastros do evento-limite, seja excluindo as

marcas do crime ou eliminando grupos ou, ainda, desacreditando na fala

daquele que precisa expor suas dores.

2.1. Memória e rastros de memória na Literatura de Testemunho

Por se tratar de uma modalidade literária que tem a memória como seu

principal fio condutor, este tipo de texto é, conforme já enfatizado, fragmentado.

O testemunho como evento singular desafia a linguagem e o ouvinte. Sabemos que a fragmentação do real, o colapso do testemunho do mundo, [...] emperra sua passagem e tradução para o simbólico. A conhecida literalidade da cena traumática – ou o achatamento de suas imagens [...] – trava a simbolização. Mas ao se reafirmar esta singularidade absoluta do testemunho barra-se a possibilidade de sua repetição e sinapse com o simbólico, sempre assombrado pela possibilidade da sua ficcionalização. [...] esta passagem para o imaginário é desejável e pode ter um efeito terapêutico, mas para um certo discurso sobre o testemunho – sobretudo o jurídico, mas não só – a ficção contamina e dissolve o teor de verdade do testemunho. (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 72)

A memória tem como elementos falsificadores o tempo, a subjetividade e

o fato de ser simbólica. Henri Bergson desenvolve o conceito de duração da

memória:

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A duração é o progresso contínuo do passado que rói o porvir e incha à medida que avança. Uma vez que o passado cresce incessante-mente, também se conserva indefinidamente. A memória... não é uma faculdade de classificar recordações numa gaveta ou de inscrevê-las num registro. Não há registro, não há gaveta, não há aqui, propriamente falando, sequer uma faculdade, pois uma faculdade se exerce de forma intermitente, quando quer ou quando pode, ao passo que a acumulação do passado sobre o passado prossegue sem trégua. Na verdade, o passado se conserva por si mesmo, automaticamente. Inteiro, sem dúvida, ele nos segue a todo instante: o que sentimos, pensamos, quisemos desde nossa primeira infância está aí, debruçado sobre o presente que a ele irá se juntar, forçando a porta da consciência que gostaria de deixá-lo de fora. (BERGSON, 2011, p. 47-48).

Segundo o autor, até os anos 1950, a memória individual e coletiva era

tida como algo dado, como um instrumento de um discurso da certeza da

imagem do passado. Para muitos historiadores, a memória coletiva é certa e

segura, servindo para consulta e pesquisa. A partir do estudo da psicanálise

freudiana, o modelo estanque da memória passou a ser criticado e a memória

passou a ser entendida como uma construção, tanto do indivíduo como da

coletividade, a fim de preencher a imagem do passado. Entende-se que a

memória nunca é uma unidade fechada e que o modo de lembrar, ao longo do

tempo, muda, assim como as maneiras de ser entendida e interpretada. Isto

acontece porque a memória é maleável e aberta à reinterpretação. Além de ser

processual, fragmentária, lacunar e sem uma linguagem específica.

Bernice Eisenstein, filha de sobreviventes da Shoah, ao tentar relatar

suas lembranças a respeito dos seus pais, diz:

Estou perdida na memória. Ela não é um lugar mapeado, com coordenadas de longitude e latitude, onde eu possa redesenhar um passo e voltar ao mesmo lugar. Cada vez é diferente. (EISENSTEIN, 2007, p. 10).

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Em se tratando da memória, tudo é fugidio, efêmero, e até mesmo

possível de ser negado e contrariado. Bergson ainda constata que “chega um

momento em que a lembrança assim reduzida se encaixa tão bem na

percepção presente que não se saberia dizer onde termina a percepção e onde

começa a lembrança” (2011, p. 59). Falar sobre o passado, no presente, é ter o

hoje preenchido de lembranças e de experiências vividas, sejam antigas ou

atuais.

Desta maneira, a percepção pura e simples não existe, uma vez que

[A] percepção [da memória], por mais instantânea que seja, consiste portanto numa incalculável quantidade de elementos rememorados e, na verdade, toda percepção já é memória. Na prática, percebemos apenas o passado, sendo o presente puro o inapreensível avanço do passado roendo o porvir. (BERGSON, idem, 2011, p. 90).

A construção da memória do passado é necessária para a elaboração

do conhecimento histórico, dentro dos interesses ideológicos e lutas políticas

que pertencem ao presente. Para Jeanne Marie Gagnebin,

[...] só se pode, paradoxalmente, respeitar a memória dos mortos e a experiência-limite dos sobreviventes se se acolhe o silêncio e a interrogação que a provocam; ou ainda, em termos emprestados à filosofia de Adorno, se se obedece o interdito da reconciliação mesmo estético-literária. (GAGNEBIN, 2002, p. 108).

Há, ainda, uma metáfora que diz respeito àquilo que entendemos como

memória e lembrança: a escrita. Segundo Gagnebin (2002, p. 128), a

lembrança “serve como um rastro privilegiado que os homens deixam de si

mesmos”. A autora revela a ligação, vista em Primo Levi, entre o conceito de

rastro e a importância do testemunho:

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Ele [Levi] também anuncia, de maneira profética, a estratégia nazista de aniquilação não só dos prisioneiros nos campos, mas ainda dos rastros de sua morte em massa. Em seu último livro, “Os afogados e os sobreviventes”, Primo Levi (1989) insiste na vontade explícita de aniquilação dos rastros pelos nazistas. Quando se tornou claro, depois da Batalha de Estalingrado, que o Reich alemão não seria o vencedor, que ele não seria, portanto, “o senhor da verdade futura”, diz Primo Levi, então deu-se início à destruição dos rastros da própria destruição. Os cadáveres já em decomposição nas fossas comuns foram desenterrados pelos prisioneiros sobreviventes e queimados; também a maior parte dos arquivos dos Campos de Concentração foi destruída ainda alguns dias antes da chegada dos Aliados. A ausência total de túmulo e de rastros que pudessem servir de documentos ou de provas prepara, assim, na lógica nazista, os raciocínios negacionistas posteriores. Em nosso continente, a luta dos familiares dos “desaparecidos” também se opõe à mesma estratégia política de aniquilação. Torturam-se e matam-se os adversários, mas depois, nega-se a existência mesma do assassínio. Não se pode nem afirmar que as pessoas morreram, já que elas desapareceram sem deixar rastros, sem deixar também a possibilidade de um trabalho de homenagem e de luto por parte dos seus próximos. (GAGNEBIN, idem, 2002, p. 131-132).

A tentativa de apagamento de rastros que comprovassem que a Shoah

existiu equivaleria ao descrédito por parte dos sobreviventes, pois tudo o que

dissessem não passaria de pura imaginação ou especulação, tamanha sua

monstruosidade. A descrença na narração daqueles que conseguiram se salvar

ainda estaria aliada à efemeridade de suas memórias, incapazes de reconstituir

o passado tal como ele exatamente aconteceu. Para os sobreviventes, a

fragilidade da lembrança enquanto memória de um passado que já foi e que

corre, a todo momento, o risco de apagar-se definitivamente, constitui uma

barreira para que suas histórias sejam conhecidas.

O rastro na literatura equivale, também, àquela ausência que resiste à

representação simbólica, seja advinda de uma experiência, de um objeto ou de

uma percepção. Essa ausência sugere o que não pôde ser registrado no papel.

Para Maria Rita Kehl (2003, p. 138), este “resto” é justamente aquilo “que não

conseguimos simbolizar; o núcleo ‘duro’ das coisas, que lhes confere

independência em relação à linguagem e nos garante, de alguma forma, que o

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mundo não é uma invenção de nosso pensamento”. É esta ausência sempre

presente no rastro que identifica a distância da lembrança do acontecimento.

Ruth Klüger disserta exatamente sobre essa memória impalpável e

fugidia:

Se ao menos pudesse me apropriar da memória de minha mãe para completar a minha, imperfeita, e assim penetrar no próprio passado. Se ela fosse mais digna de crédito; mas ela molda o mundo à sua maneira, tanto quanto possível. E, contudo, faço-lhe perguntas a toda hora, pobre senhora idosa. Estes muros das memórias antigas, se eu pudesse ver o que lhe passa pela cabeça, se pudéssemos ao menos tocar aquilo que habita as lembranças do outro, sem os polimentos e os retoques que filtram a parte granulosa, arenosa da realidade vivida numa narrativa posterior. Sua imagem é uniforme, a minha, confusa. Ela o conheceu, eu muito mal, a ponto de ter se tornado um objeto imutável em minha mente, inundado por ondas de acontecimentos posteriores, como um móvel que apodrece aos poucos, mas que não pode ser tirado do lugar e muito menos descartado. (KLÜGER, 2005, p. 33).

A memória, na visão de Klüger, é uma senhora idosa, aquela que carece

de crédito por ser confusa e imprecisa; ela “molda o mundo a sua maneira”,

uma vez que as experiências passadas transformam as ações presentes,

mesmo que inconscientes. Desta maneira, toda narrativa testemunhal trará um

rastro de tudo aquilo que aconteceu, apesar de não conseguir reconstruir os

fatos exatamente como aconteceram.

Falar sobre as experiências vividas na Shoah torna-se um evento ainda

mais complexo, devido ao fato de que esse momento histórico foi único e sem

precedentes. Klüger relata essa dificuldade do testemunho quando diz que

Por certo, ajudam bastante as fotos ali expostas, as informações e fatos detalhados por escrito e os documentos. Ortschaft, Landchaft, Landcape, seascape – deveria existir uma palavra Zeitschaft – uma paisagem do tempo, para explicar o que significa um

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lugar no tempo, num tempo determinado, nem antes nem depois. (KLÜGER, idem, 2005, p. 73).

A memória traumática, segundo Cathy Caruth (2003), apresenta-se

como uma resposta a um ou mais eventos violentos inesperados ou

arrebatadores que, mesmo tempos depois, não são completamente

compreendidos e, por este motivo, insistem em voltar em forma de flash-backs,

pesadelos e outros episódios que se repetem. O trauma equivale a um excesso

de estímulos que não estamos preparados para receber, portanto, tornam-nos

vulneráveis.

Ao testemunhar, ou seja, ao transferir experiências traumáticas em

narrativa, oral ou escrita, o sobrevivente passa por dois momentos. O primeiro

é de desequilíbrio, quando se dá conta de que não conseguirá falar tudo o que

tem a dizer, pois as palavras não são suficientes. O segundo momento é o de

reparo, quando percebe que a transmissão da experiência é capaz de superar

alguns danos, pois, devido ao esforço de narrar, existe uma atribuição de

sentido àquilo que se passou. O ato de narrar, portanto, passa a ser uma

necessidade de sobrevivência.

2.2. A testemunha e a Shoah

É importante explicitar conceitualmente o termo testemunha para

podermos localizar em que espaço Primo Levi se encontra dentro do seu

próprio testemunho. Para isso lançamos mão da discussão de Émile

Benveniste (1995) que trata da diferenciação entre o supertes e o testis. O

primeiro diz respeito àquele que passou por algum evento, que o viveu

pessoalmente e, por esse motivo, pode narrá-lo. O segundo designa aquele

que, estando presente em um conflito ou evento não participou efetivamente

dele, mas foi uma testemunha dos fatos.

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Verificamos a diferença entre superstes e testis. Etimologicamente, testis é aquele que assiste como um “terceiro” (terstis) a um caso em que dois personagens estão envolvidos; e essa concepção remonta ao período indo-europeu comum. Um texto sânscrito enuncia: “todas as vezes em que duas pessoas estão presentes, Mitra está lá como terceira pessoa”; assim o Deus Mitra é, por natureza, a “testemunha”. Mas superstes descreve a “testemunha” seja como aquele “que subsiste além de”, testemunha ao mesmo tempo sobrevivente, seja como aquele “que se mantém no fato”, que está aí presente. (BENVENISTE, 1995, p. 278).

Desta maneira, Primo Levi é, ao mesmo tempo, testis e superstes, pois,

vivenciou diretamente os fatos, numa experiência que foi particular, mas

acabou produzindo uma narrativa que conta uma história coletiva. Levi

portanto, fala também por delegação pois tornou-se uma testemunha das

bárbaras atrocidades, ao lado de todos aqueles que sofreram a experiência

traumática. Assim, sua fala é fragmentada e impossível em sua inteireza.

Agamben (op. cit., 2008) sublinha o trabalho escravo e a violência inútil nos

campos de concentração nazistas como responsáveis pelas dificuldades de

comunicação, dentro e fora dos campos, tornando as experiências como algo

“indizível”: um sofrimento real, sufocado, inaudito e absolutamente traumático.

Agamben ainda evidencia que o termo testemunha equivale ao que

conhecemos por mártir. O martírio dos primeiros padres da Igreja Católica

relacionava-se à morte dos cristãos perseguidos, como testemunho de sua fé.

Contraditoriamente, os testemunhos e as mortes em campos de concentração

não aconteceram em forma de martírio, e esse é um dos motivos de a palavra

holocausto não nos servir para descrever esse momento histórico.

O infeliz termo “holocausto” (frequentemente com H maiúsculo) origina-se dessa inconsciente exigência de justificar a morte “sine causa”, de atribuir um sentido ao que parece não poder ter sentido: “Desculpe: eu uso esse termo Holocausto de má vontade, pois não me agrada. Uso-o, porém, para nos entendermos.

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Filologicamente está errado [...]”. “Trata-se de um termo que, quando nasceu, me deixou muito incomodado; posteriormente eu soube que foi o próprio Wiesel que o forjou, depois, porém, se arrependeu disso e teria querido retirá-lo”. (P. Levi, Conversazioni e interviste, cit. p. 243 e 219, respectivamente). (apud AGAMBEN, 2008, p. 37).

Ainda para este autor, “Holocausto é a transcrição douta do latino

holocaustum que, por sua vez, traduz o termo grego holókaustos (um adjetivo

que significa, literalmente, ‘todo queimado’; o substantivo grego correspondente

é holokaústoma)”. A explicação semântica do termo é, então, de sacrifício

supremo, como entrega total a causas sagradas e superiores.

Em suas pesquisas a respeito do termo, Agamben deparou-se com uma

passagem de um cronista medieval que utilizou a primeira acepção do termo

holocausto, como referência a um massacre de judeus em uma conotação

absolutamente antissemita.

É por esse motivo que se utiliza um eufemismo para tratar desse

momento histórico: a Shoah.

A formação de um eufemismo, ao implicar a substituição da expressão própria por algo de que, realmente, não se quer ouvir falar, com uma expressão atenuada ou alterada, sempre traz consigo ambiguidades. Nesse caso, porém, a ambiguidade vai muito além. Inclusive os judeus recorrem a um eufemismo para indicar o extermínio. Trata-se do termo shoá, que significa “devastação, catástrofe” e, na Bíblia, implica muitas vezes a ideia de uma punição divina [...]. Mesmo que seja provavelmente a esse termo que se refere Levi, ao falar da tentativa de interpretar o extermínio como uma punição pelos nossos pecados, o eufemismo aqui não contém escárnio algum. Pelo contrário, no caso do termo “holocausto”, estabelecer uma vinculação, mesmo distante, entre Auschwitz e o Olah bíblico, e entre a morte nas câmaras de gás e a “entrega total a causas sagradas e superiores” não pode deixar de soar como uma zombaria. O termo não só supõe uma inaceitável equiparação entre fornos crematórios e altares, mas acolhe uma herança semântica que desde o início traz uma conotação antijudaica. Por isso, nunca faremos uso deste termo. Quem continua a fazê-lo, demonstra

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ignorância ou insensibilidade (ou uma coisa e outra ao mesmo tempo). (AGAMBEN, idem, 2008, p. 40).

Desta maneira, empregamos aqui o termo Shoah (catástrofe) ao invés

de Holocausto (sacrifício), para evidenciar tanto a sua relevância ideológica,

quanto linguística. Nenhum dos prisioneiros dos campos de concentração e

extermínio nazistas foi para lá em forma de sacrifício sagrado. Todos foram

levados à força, contra sua vontade, tornando-se este evento uma catástrofe. A

própria ideia de Holocausto apagaria qualquer intenção de memória e,

consequentemente, de uma Literatura de Testemunho.

2.3. Primo Levi e a urgência do testemunho

O testemunho da Shoah teve como um de seus principais

representantes o escritor italiano Primo Levi. Nascido na cidade de Turim, em

31 de julho de 1921, Levi cresceu em uma família judia não ortodoxa. No ano

de 1941, iniciou o curso de Química da Universidade de Turim. Como as leis

raciais vigoraram depois que Levi já estava realizando seu curso, ele conseguiu

manter-se na Universidade e se formar, apesar de em seu diploma aparecer a

inscrição raça judia.

Levi encontrou grande dificuldade em se colocar no mercado de

trabalho, uma vez que a situação dos judeus, na Europa, não era favorável em

época de efervescência do nazismo e do fascismo.

Em 1942, Levi juntou-se clandestinamente ao Partido Ação e, em 1943,

ao Comitê de Libertação Nacional, movimento de luta antifascista. Neste

mesmo ano, foi capturado e preso em Bruson e, em seguida, levado ao campo

de triagem de Carpi-Fòsoli. Em fevereiro de 1944, foi enviado ao campo de

concentração de Auschwitz na condição de judeu, onde ficou preso por um

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ano. Lá, trabalhou em uma fábrica de borrachas do complexo de Auschwitz III,

ou Buna-Monowitz. O próprio Primo Levi acredita ter sobrevivido somente

porque foi para Auschwitz um ano antes da guerra terminar; seus

conhecimentos em química e seu parco domínio da língua alemã também o

teriam ajudado a resistir às atrocidades a que esteve exposto.

Em entrevista a Ferdinando Camon, Levi ressalta a importância de não

se calar:

Depois do meu retorno de Auschwitz, eu tinha uma grande necessidade de falar, eu procurava meus antigos amigos e falava até cansar, e eu me lembro deles me dizendo, “Que estranho! Você não mudou nada.” Eu achava que eu tinha passado por um processo de amadurecimento, tendo a sorte de ter sobrevivido. Porque isso não era uma questão de força, mas de sorte: você não pode vencer um campo de concentração com suas próprias forças. Eu tive sorte: por ser um químico, por ter encontrado um pedreiro que me deu algo para comer, por ter superado a dificuldade linguística (isso eu posso dizer que eu consegui); eu nunca fiquei doente – aliás, eu fiquei doente apenas uma vez, no final, e isso foi também uma sorte, porque eu perdi a evacuação do campo. Os outros, os saudáveis, todos morreram por terem sido transferidos para Buchenwald e Mauthausen no meio do inverno. (LEVI apud CAMON, 1989, p. 67).

É isto um homem? foi a primeira obra escrita por Primo Levi, logo após

sua libertação de Auschwitz, em 1945. O livro foi organizado entre 1945 e

1946, com a urgência de testemunhar os horrores passados durante o ano de

confinamento no campo de concentração nazista. A obra, em si, diferencia-se

de tantas outras do mesmo período devido a sua responsabilidade moral e

ética para com aqueles que não conseguiram sobreviver e contar suas

histórias.

Seu testemunho é centrado no cotidiano de violências e agressões do

Lager9, assim como nos tipos humanos lá presentes, na violência inútil que

9 Campo de concentração.

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culminava em função da dificuldade de comunicação, e na desumanização do

homem. A narrativa desse testemunho é fragmentada e envolta por espaços

vazios e silêncios, assim como reminiscências sensoriais, justamente porque a

língua não é suficiente para descrever os horrores passados, mas é também

uma maneira de respeitar a voz calada daqueles que sucumbiram. O

testemunho de Levi é extremamente ético, por não colocar palavras na boca

dos que não sobreviveram, mas respeitar seus silêncios sufocados. Levi fala

em seus nomes, mas não diz por eles. São as diversas possibilidades de tudo

o que poderia ser dito e não o foi que torna presente a ausência daqueles que

não sobreviveram. Primo Levi explica os espaços vazios nas obras

testemunhais:

Há também outra lacuna em todo testemunho: as testemunhas são, por definição, sobreviventes e, portanto, todos, em alguma medida, desfrutaram de um privilégio... Ninguém narrou o destino do prisioneiro comum, pois, para ele, não era materialmente possível sobreviver... O prisioneiro comum foi descrito também por mim, quando falo de “mulçumanos”: mas os mulçumanos não falaram. (LEVI apud AGAMBEN, op.cit., 2008, p. 42).

Apesar de É isto um homem? ser um dos testemunhos pioneiros sobre

os campos de concentração nazistas, a obra teve pouco prestígio na época em

que foi publicada (1947). O livro foi recusado, a princípio, pois era um momento

turbulento para a editora Einaudi, situada em Turim. A célebre escritora italiana

Natalia Ginzburg justificava a recusa da publicação pelo clima pós-guerra que

pairava na Itália, afirmando que, naquele momento, os leitores italianos não

estariam interessados na narração dos horrores dos campos de concentração

e extermínio. Por essa época, todos já estariam saturados de informações,

além de já se manifestar a culpa coletiva dos italianos por terem feito tão

pouco, frente a tudo o que acontecera.

O crítico Franco Antonicelli, que assim como Primo Levi, teve papel de

destaque na resistência contra o fascismo na Itália, especialmente na região de

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Piemonte, ao ler uma cópia da obra, percebe o grande valor, tanto histórico

como literário, do texto e propõe sua publicação em uma pequena editora de

sua propriedade: Francesco de Silva. Em 1947, com uma tiragem de apenas

2.500 cópias, o livro foi lançado, ainda sem grande expressividade. Pouco além

de 1.400 cópias foram comercializadas neste primeiro momento.

Com a baixa difusão de seu texto, Levi resolve voltar a se dedicar

inteiramente à profissão de químico. Anos mais tarde, entre 1952 e 1953,

Primo Levi encontra-se colaborando com traduções, revisões de textos

científicos e pareceres editoriais com Paolo Boringhieri, responsável pelas

edições científicas da editora Einaudi. Neste momento, Levi vê a chance de

publicar novamente seu texto, dessa vez pela editora escolhida originalmente.

Em 1955, após um evento bem sucedido sobre a história dos deportados, ele

consegue enviar novamente uma cópia do seu livro para uma segunda análise.

Com pareceres positivos de Luciano Foà e Ítalo Calvino, Primo Levi

fecha contrato com a editora para a publicação de sua obra. A dificuldade

econômica da editora, no entanto, adiou a sua publicação por três anos. Em

1958, com um preço acessível e chamando a atenção de jovens leitores, o livro

tem uma boa repercussão e assume destaque na Literatura de Testemunho da

Shoah.

Quase quarenta anos mais tarde, em 1986, um ano antes de sua morte,

Levi faz o desfecho de sua carreira literária com a obra Os afogados e os

sobreviventes. Segundo Tzvetan Todorov, no prefácio da edição italiana, esse

foi um testamento espiritual de Levi, que unia a voz do sobrevivente ao trabalho

de memória, ao testemunho e à revisão crítica, a fim de alertar as futuras

gerações sobre os perigos da exceção em uma ordem democrática.

A obra demorou 10 anos para ser finalizada, tendo como obstáculo a

memória de um evento ocorrido à distância. É um trabalho maduro, pois

transpassa o objetivo de análise histórica e torna-se fonte privilegiada para

reflexão de violências extremas. Levi acredita que o sofrimento silencia o

homem, mas eventos como este devem ser narrados, para que nunca voltem a

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acontecer, por mais dolorido que seja a lembrança de fatos tão traumáticos. Ele

acreditava que a grande função de seu testemunho era “fornecer documentos

para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana” (LEVI, 1988, p. 7).

Em um contexto de desvanecimento da memória coletiva de Auschwitz,

assim como da falta de conhecimento histórico dos jovens, o distanciamento

temporal e o surgimento de revisionistas e negadores da Shoah, Levi ressalta o

ponto crucial dos testemunhos:

Devemos ser escutados: acima de nossas experiências individuais, fomos coletivamente testemunhas de um evento fundamental e inesperado, fundamental justamente porque inesperado, não previsto por ninguém. Aconteceu contra toda previsão; aconteceu na Europa; incrivelmente aconteceu que todo povo civilizado, recém-saído do intenso florescimento de Weimar seguisse um histrião cuja figura, hoje, leva ao riso; no entanto Adolf Hitler foi obedecido e incensado até a catástrofe. Aconteceu, logo pode acontecer de novo: este é o ponto principal de tudo quanto temos a dizer. (LEVI, 2004, p. 124).

Ruth Klüger, também sobrevivente de Auschwitz, sintetiza a ideia de

que uma vez tendo passado pelos horrores dos campos de concentração, a

identidade pessoal de cada um que conseguiu sobreviver perde-se,

automaticamente, para incorporar uma designação de “relevância” e “nova

identidade” apenas como “sobrevivente de um Lager”:

E, no entanto, esse lugar torna-se para todo aquele que ali sobreviveu uma espécie de lugar de origem. A palavra Auschwitz tem hoje uma aura, mesmo que seja negativa, de modo que ela determina em grande medida o que se pensa sobre uma pessoa quando se sabe que ela esteve lá. Também em relação a mim, as pessoas que querem dizer algo importante a meu respeito mencionam que estive em Auschwitz. Mas não é tão simples assim, pois não importa o que vocês possam pensar, não venho de Auschwitz, eu venho de Viena. Viena não pode ser posta de lado, ela se percebe pela minha linguagem; Auschwitz, porém, era tão estranho para mim quanto a lua. Viena é uma parte

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de minha estrutura mental e fala através de mim, enquanto Auschwitz foi o lugar mais despropositado onde jamais estive e a lembrança que tenho de lá permanece na alma como um corpo estranho, como um projétil de chumbo que não pode ser extirpado do corpo. Auschwitz foi apenas um acaso monstruoso. (KLÜGER, op.cit., 2005, p. 126).

O testemunho de Levi se diferencia de tantos outros da mesma época

porque, desde o início, ele se assume como um indivíduo que teve que fazer

escolhas para poder sobreviver, respondendo por elas. Kehl (op. cit., 2003, p.

148) acredita que “Seu suicídio, em 1987, logo depois da morte de sua mãe, é

testemunho do preço que se paga por estas escolhas em condições limite”.

Seu texto torna o leitor participante, engajado diante da inevitabilidade de fazer

escolhas e, por fim, precisar responder por elas, por toda a vida.

2.4. Bernardo Kucinski e o testemunho de um enigma

Tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.

Assim tem inicio o livro K. - Relato de uma busca, de Bernardo

Kucinski. Mas, se quase tudo aconteceu, por que, então, o autor se utiliza da

ficção? Poderiamos, talvez, afirmar que, em primeiro lugar, Kucinski não se

apoia em fontes documentais, mas apenas em rastros da sua própria memória

(conforme Berta Waldman,2014).

A memória efêmera e fugaz sustenta o fio narrativo do livro e, por isso,

os acontecimentos passados se misturam aos sentimentos que perduram até o

presente. As lacunas da memória são preenchidas pela ficção ou, como sugere

Waldman (idem, 2014), por soluções inventadas.

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K. - Relato de uma busca é o testemunho de uma denúncia: o

desaparecimento de Ana Rosa Kucinski Silva, durante a Ditadura Militar

Brasileira. O desaparecimento da personagem, no contexto político ditatorial,

associado à ausência de qualquer tipo de informação conduz o autor à

construção ficcional da obra. Kucinski precisou, de certa forma, anular-se para

conseguir escrever e, por este motivo, as vozes de narrador e personagem se

misturam no discurso, dando ao texto uma camada interpretativa de forte

impacto para os leitores.

No romance, todo o enredo permanece em suspenso, devido a

constante busca de K. por informações que o levassem ao paradeiro de Ana

Rosa, sua filha. Mais tarde, já convencido da morte da jovem, sua busca era

por alguma indicação sobre o que lhe teria acontecido. A morte de Ana Rosa é,

desde as primeiras páginas, uma evidência que se pronuncia sem, contudo,

evitar brechas de esperança, lado a lado às falsas pistas, de forma a criar uma

atmosfera de buscas permanentes que tornam o livro, a cada página, mais

angustiante.

Ao desaparecimento, em 1974, de Ana Rosa Kucinski Silva,

professora doutora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, e de

seu marido Wilson Silva, formado em Processamento de Dados pela mesma

Universidade, sucedem-se várias etapas visando despistar, confundir e agoniar

familiares, como se pronuncia Bernardo Kucinski (2014), irmão da vítima, em

obra tardia sobre esse momento histórico. Militantes da Ação Libertadora

Nacional (ALN), Ana Rosa e o marido foram sequestrados no centro de São

Paulo e, em seguida, presos, torturados e mortos. Sem informação sobre o

paradeiro das vítimas e com a certeza de sua morte sob tortura, Kucinski

encontra na ficção uma maneira de obter respostas sobre a irmã e o cunhado,

além de qualquer pista que o levasse à decifração do enigma do

desaparecimento.

Por muito tempo, respostas sobre os desaparecidos ficaram escondidas.

Tentou-se, de todas as maneiras, buscar informações sobre as mortes, todas

negadas, como foi o caso da solicitação de habeas-corpus requerida pelo

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advogado Aldo Lins e Silva, uma vez que nenhum militar ou policial reconhecia

a prisão do casal. Houve até a tentativa de buscar informações a partir de uma

investigação da Comissão de Direitos Humanos da OEA que, meses mais

tarde, afirmou não ter responsabilidade no destino de Ana Rosa e Wilson.

Em 12 de setembro de 1974, John Hugh Crimmins, embaixador dos

Estados Unidos no Brasil, pediu auxílio ao Departamento de Estado Americano

depois de ter recebido uma carta do presidente do Congresso Mundial Judaico,

Jacques Torczyer, pedindo interferência da diplomacia americana no caso de

Ana Rosa. A resposta foi também negativa, afirmando que devido ao fato de

Ana Rosa não ser cidadã americana, o governo americano não poderia

interferir.

Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo, conseguiu

que uma audiência em Brasília fosse realizada junto a Golbery do Couto e

Silva. Nesta sessão, obteve como resposta do general a garantia de

investigação sobre o caso. Em pouco tempo, uma nota oficial publicada pelo

ministro de Justiça, Armando Falcão, citava os desaparecidos políticos como

terroristas foragidos sem nenhuma resposta acerca de seu paradeiro.

Somente décadas depois, com o processo de abertura política do Brasil,

começaram a surgir as primeiras pistas a respeito do desaparecimento do

casal. O ex-cabo do exército, José Rodrigues Gonçalves, durante uma

entrevista nunca publicada à revista Veja, em 1993, afirmou que Ana Rosa e

Wilson foram presos pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos

mais conhecidos agentes da repressão durante a Ditadura Militar no Brasil.

Gonçalves declarou que o casal foi entregue aos militares e levado à Casa da

Morte, centro clandestino de tortura e assassinato em Petrópolis, no Rio de

Janeiro. Lá, ambos foram interrogados, torturados e executados.

Recentemente, em 2012, Cláudio Guerra, ex-delegado e torturador,

confessou aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, que os dois

procurados estavam escrevendo o livro Memória de uma Guerra Suja. Afirmou,

ainda, que tanto o corpo de Ana Rosa quanto o de seu marido, Wilson, foram

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queimados no forno da Usina Cambahyba, no Rio de Janeiro, juntamente com

outros corpos de presos políticos igualmente assassinados. Ele afirmou que o

corpo de Ana Rosa apresentava marcas de mordidas, provavelmente por ter

sido abusada sexualmente, enquanto a mão direita de Wilson estava sem

unhas, devido à tortura que sofrera antes de ter sido assassinado.

Neste mesmo ano, organizações de direitos humanos, agrupadas no

Fórum Aberto pela Democratização da USP, demandaram a reversão e

revogação da decisão da Reitoria, que alegou a demissão de Ana Rosa,

professora do Instituto de Química, por “abandono de função”,

desconsiderando seu desaparecimento forçado, em 1975 - quando a

professora já havia sido assassinada há mais de um ano. Somente em 2014, a

demissão foi anulada por unanimidade pela Congregação do Instituto de

Química da USP, sendo a primeira decisão considerada um “equívoco” da

época. Foi formalizado um pedido de desculpas à família e, em seguida,

comunicado a inauguração de um monumento em homenagem à Ana Rosa

nos jardins do Instituto de Química.

Contraditoriamente, é devido a sua ausência que a filha desaparecida se

aproxima do pai. Os fatos do desaparecimento associados às buscas fazem

com que ele descubra coisas que até o momento desconhecia, inclusive em

relação ao casamento e ao genro. Segundo Waldman, “já morta, o pai vê a

filha de corpo inteiro” (op. cit., 2003, p. 3).

O livro serviu também como uma lápide negada à jovem, morta pelos

militares da Ditadura. Foi uma maneira que o autor encontrou de prestar sua

homenagem e impedir o apagamento de rastros de uma história que insistiam

nunca ter existido.

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3. Entre o relato e a interrogativa: contrapontos

Apesar de as duas narrativas apresentarem pontos de contato, são os

contrapontos que queremos destacar neste capítulo. A principal diferença diz

respeito à estrutura das obras. Enquanto É isto um homem?, de Primo Levi, é

uma interrogativa que, logo de início, propõe um enfoque crítico e que lança o

leitor a um questionamento contundente. O livro K. – relato de uma busca, de

Bernardo Kucinski, é um relato que, a princípio, sugere uma narrativa mais

fluida e instigadora em função da ideia de busca.

Em Levi, coloca-se também a questão do contraponto do pronome

demonstrativo isto com o verbo de valor conceitual, utilizado como afirmativa e

seguido pela interrogação – isto é um homem? O homem, então, é colocado na

categoria de objeto quando referido como isto, indiciando a perda da qualidade

do ser pela descaracterização – seja da vítima ou do agressor, ou, em outras

palavras, da grande catástrofe da guerra que é, de fato, a desumanização.

Na obra de Kucinski, a palavra relato, que em certa medida pode ser lida

de forma irônica, tem uma força que extrapola a questão de uma simples

narrativa. É uma maneira de enunciar um enredo que, na verdade, é

extremamente tenso do início ao fim. Implicitamente, a interrogativa que está

em Primo Levi também está presente em todo o relato de Bernardo Kucinski:

onde está Ana Rosa? O que foi feito dela? Enquanto em Levi a interrogativa é

direta e se remete ao leitor antes mesmo deste dar início à leitura do texto, em

Bernardo Kucinski a interrogativa é indireta, está subjacente ao texto e

permanece latente ao longo de toda a narrativa.

Ainda em relação à capa, em É isto um homem?, logo abaixo do nome

do autor e do título da obra, encontra-se uma imagem predominantemente

referencial: um arame farpado com uma teia de aranha, e o campo, desfocado,

ao fundo. A foto embaçada induz a pensar na memória efêmera, ou seja, as

distâncias de tempo e de espaço levam a uma perda de foco, assim como a

frouxidez da teia de aranha, com seus espaços mais soltos.

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A teia de aranha no arame farpado pode sugerir algo velho e esquecido,

como a memória e o próprio campo de concentração. A teia, ainda, por ser

entrelaçada, pode relacionar-se ao cruzamento de várias memórias e

acontecimentos. Cada espaço equivaleria a uma memória individual. A teia

como um todo, pode corresponder à memória coletiva, que apesar do tempo

não foi completamente esquecida.

Ressalta-se ainda um possível contraponto entre a fragilidade sugerida

pela teia de aranha e a resistência do arame farpado. Apesar de tanto tempo, a

estrutura física do campo de concentração permaneceu de certa maneira

intacta, enquanto a lembrança desses momentos traumáticos se torna cada

vez mais distante.

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Por fim, a linha nítida do arame farpado, contraposta à imagem de fundo

desfocada, poderia sugerir que a lembrança dos tempos como prisioneiro no

campo, assim como os sentimentos provocados por essa experiência, ainda

são muito vivos e presentes.

K.- relato de uma busca, por sua vez, se revela desde o início como

uma obra de ficção, pois está predominantemente inscrita em uma qualidade

estética, cujos significados precisos nos escapam. A letra K., vazada, lembra o

espaço de uma boca que se abre tanto para revelar quanto para expressar um

espaço vocal e cênico, materializando a voz ausente, que se torna presença

justamente pela busca exaustiva.

A capa da obra de Bernardo Kucinski sugere um jogo de claro e escuro,

indiciando presença e ausência, tanto de vozes, quanto de informações. Todas

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essas vozes, seja do autor, do protagonista ou das personagens, no entanto,

tornam-se presença dentro do relato, por meio dos enigmas e da constante

procura por informações.

A letra K em negro pode remeter também a um túmulo – a lápide negada

à Ana Rosa Kucinski Silva – em duas dimensões: por meio do livro de

memórias confeccionado por K., o pai; e pela obra, que se torna atemporal

enquanto objeto literário.

A abertura dentro da letra K em forma de labirinto pode sugerir uma

ausência. A presença escapa pelo labirinto, ao mesmo tempo em que a voz se

propaga, em uma reiterada busca por qualquer pista que levasse ao paradeiro

de Ana Rosa. As linhas retas, que se relacionam à estaticidade, levam-nos a

entender que, apesar da procura incessante, K. permanece no mesmo lugar,

ou seja, sem respostas, sem informações válidas.

Há, também, quatro diagonais na letra K inscrita na capa em

contraposição às linhas retas, também presentes na mesma letra. Neste

conjunto de retas e diagonais, há um jogo entre a fixidez e o movimento, isto é,

apesar da busca contínua, o narrador encontra-se sempre no mesmo lugar.

A disposição do nome do autor, B. Kucinski, e depois um retângulo

arroxeado, seguido da letra K em negrito, pode sugerir algumas interpretações.

A primeira é que a distribuição desses elementos indicaria um espelhamento

entre Bernardo Kucinski e K. A letra K em negrito equivale a um tríplice relato

da família Kucinski – Ana Rosa, pai e irmão. Os relatos nascem da procura,

seja da personagem, seja do narrador.

Em É isto um homem?, de Levi, a obra é considerada não-ficcional

com teor testemunhal. Os elementos ficcionais presentes no texto servem para

tensificar seu caráter literário, mas não a tornam ficção em si. K. – relato de

uma busca, por outro lado, pode ser considerado um livro de ficção realista

com um trabalho testemunhal. O narrador é mais forte que as personagens,

possibilitando deslocamentos mais intensos, a partir da alteração de tom

frequente. A obra se inicia na voz do autor, o irmão de Ana Rosa, no primeiro

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capítulo que talvez possamos chamar de prefácio e, logo em seguida, dá

espaço à voz indireta da personagem K., o pai. Terminada a leitura do texto, o

autor se revela, mais uma vez, no posfácio do livro. Em outros capítulos, a voz

é dada de forma direta às personagens que apresentam uma passagem bem

pontual na narrativa: à própria Ana, em uma carta fictícia que ela teria escrito a

uma amiga, quando percebera que corria perigo junto à milícia; ao Wilson, por

meio de uma correspondência que teria enviado a um suposto companheiro

Klemente, da milícia, falando dos perigos que corriam; aos policiais que

sequestraram o casal Silva sob a ordem do delegado Sérgio Paranhos Fleury;

ao próprio delegado; ao pai de Wilson; à amante de Fleury; e à faxineira da

Casa da morte em Petrópolis.

O teor testemunhal dá intensidade ao texto em um discurso repleto de

“vazios". A ausência de Ana Rosa e de informações possibilita a cena

enunciativa em uma forma inovadora de narrar, ao usar a voz do pai e,

também, ao utilizar capítulos independentes entre si pela voz de outros

personagens, fictícios ou reais, a fim de criar a verossimilhança necessária à

obra.

Aos poucos K. foi se dando conta de que havia um impedimento maior. Claro, as palavras limitavam o que se queria dizer, mas não era esse o problema principal; seu bloqueio era moral, não era linguístico: estava errado fazer da tragédia de sua filha objeto de criação literária, nada podia estar mais errado. Envaidecer-se por escrever bonito sobre uma coisa tão feia. Ainda mais que foi por causa desse maldito iídiche que ele não viu o que estava se passando bem debaixo de seus olhos, os estratagemas da filha para evitar que ele a visitasse, suas viagens repentinas sem dizer para onde.

[...]

[...] Assim, não era mais o escritor renomado a fazer literatura com a desgraça da filha; era o avô legando para os netos o registro de uma tragédia familiar. (KUCINSKI, 2014, p. 136-137).

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A obra não é propriamente uma escrita testemunhal, pois não foi

Bernardo Kucinski quem passou pelas experiências narradas, mas é a

reconstrução de um rosto, de um nome, que se apresenta em pedaços,

principalmente na memória daqueles que ficaram. A busca serve, então, como

meta narrativa, uma vez que somente a partir da falta é que o autor sentiu a

urgência em escrever, incorporando fantasmaticamente, por meio de um vulto

constante, uma ausência que se torna presente em toda a narração. A escrita

do romance, embora tardia, serviu como trabalho de luto ao autor, que ainda

precisa lidar com a falta de sua irmã, e com a sociedade brasileira, que

necessita enfrentar a lacuna causada pelo desaparecimento de muitos

indivíduos.

Ao contrário de É isto um homem?, K. – relato de uma busca se

apresenta a partir de capítulos autônomos, enquanto a primeira obra segue

uma cronologia linear, apesar das lacunas causadas pela memória.

As epígrafes na obra de Kucinski, juntamente com os outros paratextos

como a capa, o título e o subtítulo, prenunciam o caráter ficcional do livro.

Tanto Guimarães Rosa como Mia Couto apresentam, também, relatos de

incerteza:

Conto ao senhor é o que sei e o senhor não sabe;

mas principal quero contar é o que eu não sei se sei,

e que pode ser que o senhor saiba.

(Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas)

A epígrafe de Guimarães Rosa pode ser um indício de que Bernardo

Kucinski necessitará da ficção para escrever suas lembranças, uma vez que,

devido ao contínuo apagamento de rastros por parte dos setores da Ditadura, o

autor pouco sabia sobre o que havia acontecido à sua irmã. Ao mesmo tempo,

a partir de Guimarães Rosa, Kucinski parece sugerir que o leitor tenha alguma

informação, assim como todas as personagens que passam pela narrativa.

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Na referência de Mia Couto, Kucinski sugere que só conseguiu escrever

a narrativa a partir de seu apagamento, transmitindo sua voz à personagem do

pai. O livro, como forma de lidar com o luto, possibilitou-lhe falar, mesmo que

indiretamente. Ao final da sua escrita, o autor indica que deverá, novamente

lidar com a falta de Ana Rosa e a falta de informações:

Acendo a história,

me apago a mim.

No fim destes escritos, serei

de novo uma sombra sem voz.

(Mia Couto, Terra sonâmbula)

Há, ainda, duas epígrafes internas, ambas de poetas judeus, a fim de

reafirmar a importância da literatura judaica para K., que era escritor e crítico

literário da língua iídiche e que, por estar tão imerso em seu trabalho, não

percebeu o que acontecia com sua filha, gerando uma sensação de culpa ao

longo de toda narrativa. Essas duas epígrafes marcam, também, dois

momentos atípico de certeza na obra: as mortes de Ana Rosa, no capítulo “A

Abertura”, e de K., no capítulo “No Barro Branco”.

Na epígrafe que antecipa o capítulo “A Abertura”, no qual se tem a

certeza da morte de Ana Rosa, há a sugestão de que os setores opressivos já

haviam feito tudo o que podiam a ela, desde a tortura e o assassinato, até o

apagamento de rastros que encobrissem o crime.

Que poderiam eles fazer-te que já não tenham feito?

(Moises Ibn Ezra, p. 69)

A epígrafe de H. N. Bialik, que antecede o capítulo “No Barro Branco”,

sugere que muitos foram desaparecidos e mortos no regime opressor da

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Ditadura Militar, e que a constante busca por informações sobre o ocorrido a

Ana Rosa só mostrava uma face cada vez mais cruel daqueles que

comandavam o país. A culpa e a agonia de K., depois de tanto procurar, sem

conseguir sair do lugar, só seriam neutralizadas com sua própria morte e,

consequentemente, com o fim de uma busca infrutífera.

De que valem mil mortos por dia?

Morre de vez, em paz encerra tua agonia.

(H. N. Bialik, p. 170)

A densidade da narrativa, em ambos os casos, ocorre justamente pela

impossibilidade de dizer do narrador que se encontra no limiar do inenarrável,

pois, ao mesmo tempo em que escrever é uma necessidade, a tradução da

lembrança em si se torna impossível.

Há também intervalos do que não foi dito, de potências do que ficou por

dizer, em ambas as obras. O leitor, desta maneira, torna-se participante, pois

assume a responsabilidade de ouvir e elaborar uma realidade entre a história e

a ficção. Ao leitor cabe criar conexões, “gerando interpretações falíveis e

sujeitas à contingência do poder/não poder ser” (OLIVEIRA, op. cit., 2015, p.

229).

A narrativa de K. – o relato de uma busca acontece no hiato do que

ficou por dizer. Por isso, em primeiro plano, percebe-se uma ausência e, a

partir de então, a busca, sempre fracassada, do narrador-personagem na figura

do pai. A narrativa, em toda sua extensão, é atravessada por lembranças e

indícios testemunhais e levam à imagens desfocadas que, em certos

momentos, tornam-se visíveis para, logo em seguida, não mais se conseguir

enxergar.

No espaço entre o que foi ou não dito, o narrador de K. procura dizer, de

outra maneira, usando a ficção para inventar uma cena e, assim, criar a

presença de Ana – tudo isso, pelos elementos ficcionais propostos na narrativa.

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Como Kucinski não tinha informações concretas do que havia acontecido à Ana

Rosa, ele precisou imaginar diálogos e situações que explicassem sua

ausência. O diálogo de Fleury é um exemplo disso, uma vez que o autor nunca

teve acesso a tal tipo de conversa:

É isso, Mineirinho, vamos espalhar boatos de onde os corpos estão. Um boato atrás do outro. A gente solta um, dá um tempo, tipo um mês ou dois, depois solta outro. Vamos matar esses caras de canseira. Aquele teu tio do churrasco em Ibiúna ainda trabalha de corretor? Mineirinho, peça para ele escolher lá na lista dos sítios em oferta um que seja grande e tenha muro alto. De preferência vazio. Você pega a localização, e passa para esses familiares, do jeito que você fez com o Juqueri. Só que agora é o morto, o cadáver. Você só dá a pista, não dá o endereço completo, deixa eles mesmos pensarem que encontram. (KUCINSKI, idem, 2014, p. 75).

Tanto Primo Levi, quanto Bernardo Kucinski produzem obras que se

valem de elementos ficcionais. Para Levi, a ficção foi alternativa necessária

para preencher as lacunas da memória - fugidia e efêmera. Foi também uma

maneira de poder narrar experiências traumáticas que, de tão absurdas,

parecem inverossímeis. Foi, ainda, a forma que os autores encontraram para

conseguir dar voz aos ausentes, àqueles que não conseguiram sobreviver ou

não conseguiram mais contar suas experiências.

Quando se trabalha, se sofre, não há tempo de pensar; nossos lares são menos que uma lembrança. Aqui, porém, o tempo é nosso; de beliche para beliche, apesar da proibição, nos visitamos e falamos, falamos. O Bloco de madeira, apinhado de humanidade sofredora, está cheio de palavras, de lembranças e de uma dor diferente. Heimweh, chama-se em alemão essa dor. É uma palavra bonita: significa “dor do lar”. (LEVI, 1988, p. 54).

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Em K.- Relato de uma busca, o autor se apoia na ficção para narrar

uma experiência que não foi propriamente sua. A ficção, neste caso, também

serviu para completar os vazios deixados pela ausência de informações a

respeito do que aconteceu com Ana Rosa, assim como pelo apagamento de

qualquer rastro de sua existência. Ao contar a história de sua irmã, ele conta

uma história coletiva.

A voz do narrador em K. revela, ainda, uma questão, até certo ponto,

sofisticada e interessante, associada à arquitetura do texto. Vejamos: apesar

da narrativa se desenrolar, ao que tudo indica, pela voz de K. – o pai – que

busca diuturnamente por sua filha, e que, portanto, é o protagonista de todas

as ações do enredo, ao final da obra, a voz do irmão, Bernardo Kucinski, é

revelada. O autor precisou, de certa maneira, anular-se, para conseguir contar

essa história.

A busca por Ana Rosa é o eixo central da narrativa, visto que é ela a

motivação maior que dá sustentação ao texto e ao redor da qual todas as

ações se desenvolvem. Assim, apesar de Ana Rosa não ter voz, à exceção de

uma rápida passagem em uma carta fictícia, sua procura é a justificativa para a

escrita do livro. Em seu desaparecimento reside a origem da obra; sua

ausência – ou quase inexistência – torna-se presença pela voz do narrador que

a denuncia em, praticamente, todas as páginas do livro.

Durante a leitura do texto, o leitor vivencia com K. a angústia pela busca

por respostas a respeito do paradeiro de sua filha. No entanto, ao final do texto,

exatamente nos últimos parágrafos, o narrador traz ao leitor uma revelação,

pois quem narra não é exatamente aquele que foi construído na mente do

leitor, mas, de forma surpreendente, ele se apresenta como um outro: a saber,

K – o irmão e não o pai. O jogo narrativo pode ser um índice que denuncia a

dor incomensurável, passada por entre gerações.

Passadas quase quatro décadas, súbito, não mais que de repente, um telefonema a essa mesma casa, a esse mesmo filho meu que não conheceu sua tia

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sequestrada e assassinada; voz de mulher, apresenta-se, nome e sobrenome, moradora de Florianópolis. (KUCINSKI, idem, 2014, p. 181, grifo nosso).

A denúncia do texto se dá não como manifesto político, mas como forma

indicial literária, e aí se encontra também a força expressiva da obra, pois o

texto se mostra como revelação de artifícios da linguagem. A arquitetura da

obra é altamente metalinguística: mostra e esconde elementos da composição

narrativa à imagem do seu enredo. Revela e encobre num jogo de espelhos e

vozes o seu núcleo central. Ao mesmo tempo em que o narrador constrói o

enredo, o sistema político é revelado, encobrindo persistentemente os fatos

que levaram a morte da jovem Ana Rosa.

Quarenta anos depois do desaparecimento da personagem, o autor

escreve, tentando distanciar-se dos fatos. É somente pela ficção que Kucinski

encontra a maneira como narrar sua angústia, que permanece pulsando no

presente, tal como o foi no passado.

O foco da narrativa em K. é a memória sob duas vertentes: a coletiva, da

Ditadura Militar; e a individual, da família Kucinski personificada em K. O

contrário acontece em Primo Levi, que narra sua experiência em curto espaço

de tempo, mas, mesmo assim, a memória já apresenta suas falhas, pois ela é,

na realidade, sempre lacunar. Kucinski narra o passado no presente. A

reconstrução da lembrança do autor é possibilitada, tão somente, pela ficção.

É importante destacar que a invenção, no texto literário, não equivale à

mentira. Qualquer reconstrução do passado exige uma precisão que escapa ao

poder do escritor. O artifício utilizado para preencher esses vazios é a ficção.

Primo Levi utiliza os arquivos da memória ao elaborar seu testemunho.

As lacunas de seu texto são causadas pelos lapsos da lembrança fugaz. O

imaginário, nesse caso, preenche o que poderia ter acontecido, mas que nunca

saberemos de fato, uma vez que a efemeridade da memória escapa à

representação, como descreve Levi: “Hoje, neste hoje verdadeiro, enquanto

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estou sentado frente a uma mesa, escrevendo –, hoje eu mesmo não estou

certo de que esses fatos tenham realmente acontecido” (1988, p. 105).

Bernardo Kucinski, além da memória efêmera, utiliza arquivos históricos

na construção de sua obra. Neste caso, os vazios do texto adquirem outro

significado: eles representam a ausência de informações sobre Ana Rosa,

desde o seu desaparecimento até o destino dado a seu corpo. A invenção de

possíveis situações e diálogos foi a maneira que o autor encontrou para dar

voz a um evento sufocado, assim como a tentativa de encontrar respostas

àquilo que se tentou apagar.

A tentativa de apagamento de rastros dos corpos torturados e

assassinados dos presos políticos se deu durante o período de chumbo,

momento mais sangrento da Ditadura Militar. Ainda no prefácio da obra,

Kucinski fala das cartas que, muitos anos após a morte de Ana Rosa,

continuavam a chegar em sua casa. Buscando, ainda, encobrir o que foi feito

de sua irmã, agentes da repressão continuaram a enviar pistas falsas aos

familiares, na tentativa de reprimir qualquer busca que já teria sido percebida

como inútil ou indesejável ao sistema. É, também, uma forma cruel o modo

como a Ditadura Militar impediu a realização do luto.

O carteiro nunca saberá que a destinatária não existe; que foi sequestrada, torturada e assassinada pela ditadura militar. Assim como ignorarão antes dele, o separador das cartas e todos do seu entorno. O nome no envelope selado e carimbado como a atestar a autenticidade, será o registro tipográfico não de um lapso ou falha do computador, e sim de um mal de Alzheimer nacional. Sim, a permanência do seu nome no rol dos vivos será, paradoxalmente, produto do esquecimento coletivo do rol dos mortos. (KUCINSKI, idem, 2014, p. 12).

A figura do carteiro, que entra na narrativa, pode também conduzir a

uma leitura instigante. Ao mesmo tempo em que é uma personagem de

passagem na obra, ela marca a questão da temporalidade. Um carteiro é

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comumente aquele que, por meio de cartas ou outro tipo de documento

qualquer, traz notícias – sejam elas boas ou ruins.

O carteiro ajuda a manter acesa a memória, pela presença das

correspondências que deflagram justamente, a ausência. É a temporalidade do

presente: toda vez que uma nova carta destinada à Ana Rosa chega, mais se

torna viva sua presença, em forma de um vulto que não existe mais.

O “totalitarismo institucional” exige que a culpa, alimentada pela dúvida e opacidade dos segredos, e reforçada pelo recebimento das indenizações, permaneça dentro de cada sobrevivente como drama pessoal e familiar e não como a tragédia coletiva que foi e continua sendo, meio século depois. (KUCINSKI, idem, 2014, p. 169).

Assim como Levi, em seu sonho, é abandonado por seus ouvintes -

quando tenta contar o drama vivido -, o mesmo parece suceder com Kucinski

quando este busca encontrar respostas sobre o paradeiro da filha, abordando

vizinhos, fregueses em sua loja e até desconhecidos, na esperança de que

alguém lhe trouxesse alguma informação.

A maioria ouvia até o fim em silêncio, depois davam-lhe eventualmente um tapinha nas costas encurvadas e diziam: eu sinto muito. Alguns poucos o interrompiam já no início, alegando hora marcada no médico, ou um pretexto parecido – como se ouvir já os colocasse em perigo. (KUCINSKI, idem 2014, p. 20).

Tanto em Levi, quanto em Kucinski, a dificuldade em se fazer ouvir era

parte da culpa coletiva, por não terem feito muito, ou terem deixado a situação

chegar a condições tão atrozes. Como coletividade, todos sabiam dos fatos,

portanto, ouvir poderia equivaler a admitir uma culpa sobre a qual todos

procuravam se esquivar.

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O apagamento de rastros é também uma realidade comum às duas

obras. Enquanto em K. narra-se o desaparecimento de pessoas, sem deixar

vestígios, em Levi fala-se também dos soldados nazistas apagando quaisquer

rastros sobre os acontecimentos. No entanto, nem tudo pôde ser destruído e

muitas provas permaneceram intactas até nossos dias.

K. tudo ouvia, espantado. Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas registravam os mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte, davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias da invasão houve chacinas e depois também. Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto. Mas os goim de cada lugar sabiam que os seus judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza; eram execuções em massa, não era um sumidouro de pessoas. (KUCINSKI, idem, 2014, p. 23).

Na Ditadura Militar, não havia registros sistematizados dos presos

políticos. O objetivo era que eles, sofrendo a tortura, liberassem informações

importantes sobre os líderes das milícias que, alcançados, pudessem ser

sufocados em seus planos de rebelião. Informação obtida, significava para o

sistema, a necessidade de apagamento de qualquer rastro, ou seja, eliminação

inexorável dos envolvidos.

Assim como Levi, Kucinski narra por delegação. Não somente pela voz

calada de Ana Rosa, mas também de todos os outros presos políticos

sequestrados. Neste sentido, os assassinados representam a massa anômala

que, em Primo Levi se revela como afogados, os submersos. Os torturados e

mortos não chegaram a se tornar mulçumanos, como ocorria nos campos de

concentração, porque estes não serviriam de mão de obra barata à industria

ditatorial e, o quanto antes eles fossem mortos, menos evidências seriam

deixadas.

Somando-se ao apagamento de rastros, K. não consegue levantar uma

lápide em homenagem à sua filha. A justificativa para negação era

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insistentemente a mesma: “afinal, ela não era comunista?”. Até mesmo para

aqueles que não conheciam Ana Rosa, havia a crença de que sua posição

política justificava a ausência de qualquer homenagem, mesmo que fosse uma

simples lápide – o que, de certa forma, era um agravante nas tradições

judaicas, pois a ausência do luto e do corpo equivalia à inexistência da jovem.

K. sente com intensidade insólita a justeza desse preceito, a urgência em erguer para a filha uma lápide, ao se completar um ano de sua perda. A falta da lápide equivale a dizer que ela não existiu e isso não era verdade: ela existiu, tornou-se adulta, desenvolveu uma personalidade, criou o seu mundo, formou-se na universidade, casou-se. Sofre a falta dessa lápide como um desastre a mais, uma punição adicional por seu alheamento diante do que estava acontecendo com a filha bem debaixo de seus olhos. (KUCINSKI, idem, 2014, p. 78-79).

Assim como K. escreve um livro de memórias a partir das lembranças da

filha, uma forma de superar a impossibilidade de um túmulo para Ana Rosa, os

livros de seu genro, Wilson Silva, “seriam os únicos vestígios de sua vocação

revolucionária, pequenas lápides de um túmulo até hoje inexistente”

(KUCINSKI, 2014, p. 54).

Mais adiante, o autor destaca,

Agora, quando já não havia mais esperanças, quando seus dias custavam a passar na agonia de não ter mais o que procurar ou a quem falar, só lhe restava mesmo retomar seu ofício de escritor, não para criar personagens ou imaginar enredos; para lidar com seu próprio infortúnio. (KUCINSKI, idem, 2014, p. 134).

Como expoentes do romance moderno contemporâneo, ambas as obras

são fragmentos da realidade e como tal devem ser entendidas. Elas

necessitam desse apelo estético para tornar a obra verossímil em si mesma,

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assim como as lacunas traduzidas em silêncios e preenchidas pela imaginação

de diálogos que nunca existiram, apesar de perfeitamente verossímeis.

3.1. A voz como encenação

Segundo Mikhail M. Bakhtin (1998), o romance reproduz a vida cotidiana

por meio da representação do homem e de sua linguagem. Dentro do romance,

há uma multiplicidade discursiva, tanto da língua quanto das linguagens

apresentadas.

A multiplicidade discursiva, proposta por Bakhtin, como a tensão entre

fala e escritura, representa não somente o homem que fala, mas também

aquele que expõe e discute ideias. Para Irene Machado o dialogismo é um

“fenômeno elementar do discurso romanesco e de toda relação que o homem

mantém com o mundo através da linguagem” (MACHADO, 1995, p. 48).

No romance, em geral, a representação de uma voz se dá por meio da

escritura, na qual

Cada palavra evoca um ou vários contextos da vida socialmente tensa. As palavras e as formas estão carregadas desta intencionalidade que torna o discurso literário uma manifestação daquilo que Bakhtin denominou plurilinguismo: trata-se não de uma linguagem, mas de um diálogo de linguagens. (MACHADO, idem, 1995, p. 58-59).

Bakhtin (idem, 1998), também estuda o conceito de polifonia, que no

processo narrativo apresenta grande importância, uma vez que o discurso do

narrador deixa de ser o suporte de todos os outros e passa a se confundir com

a voz dos seus personagens.

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Roland Barthes, por sua vez, disserta a respeito do doador da narrativa

e do seu destinatário, como codependentes, pois não existe narrativa sem

narrador e, tampouco, sem ouvinte ou leitor. No entanto, tanto o doador quanto

o destinatário da narrativa são seres de papel. Isto quer dizer que o narrador

não deve ser confundido com o autor. “Quem fala (na narrativa) não é quem

escreve (na vida) e quem escreve não é quem é” (BARTHES, 2011, p. 50). A

narrativa, portanto, não quer transmitir uma realidade, mas mostrá-la.

Assim, em toda narrativa, a imitação permanece contingente; a função da narrativa não é de “representar”, é de constituir um espetáculo que permanece ainda para nós muito enigmático, mas que não saberia ser de ordem mimética; a “realidade” de uma sequência não está na continuação “natural” das ações que a compõem, mas na lógica que aí se expõe, que aí se arrisca e que aí satisfaz; poder-se-ia dizer de uma outra maneira que a origem de uma sequência não é a observação da realidade, mas a necessidade de variar e de ultrapassar a primeira forma que se ofereceu ao homem, a saber, a repetição; uma sequência é essencialmente um todo no seio do qual nada se repete; a lógica tem aqui um valor emancipador – e toda a narrativa com ela; é possível que os homens reinjetem sem cessar na narrativa o que conheceram, o que viveram; ao menos isto está em uma forma que, ela, triunfou da repetição e instituiu o modelo de um vir a ser. A narrativa não faz ver, não imita; a paixão que nos pode inflamar à leitura de um romance não é a de uma “visão” (de fato, não “vemos” nada), é a da significação, isto é, de uma ordem superior da relação, que possui, ela também, suas emoções, suas esperanças, suas ameaças, seus triunfos: “o que se passa” na narrativa não é do ponto de vista referencial (real), ao pé da letra: nada “do que acontece” é a linguagem tão somente, a aventura da linguagem, cuja vinda não deixa nunca de ser festejada. (BARTHES, idem, 2011, p. 61-62).

TzvetanTodorov (2011), por outro lado, explica que a obra literária se

apresenta em duas vertentes: ao mesmo tempo em que é uma história, pois se

assemelha a uma realidade de fatos que poderiam ter acontecido e

personagens que poderiam ter existido é, também, um discurso que poderia

ser representado de diferentes maneiras: escritura de um livro; peça de teatro;

tela de cinema. A obra é discurso porque existe um narrador, que doa a

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história, e um ouvinte ou leitor, que a percebe. Neste sentido, o que importa é a

maneira como a narrativa é construída, e não exatamente os acontecimentos

nela relatados.

O tempo na narrativa é diferente do tempo da história. O primeiro é

linear, e o discurso obriga a colocar os acontecimentos um depois do outro,

enquanto a temporalidade histórica é pluridimensional, dando espaço para

diferentes acontecimentos ao mesmo tempo. A deformação temporal na obra

literária serve para fins estéticos, mas temos de levar em conta o tempo da

enunciação – escritura, – e da percepção, que é o tempo da leitura.

A proposta da obra de Levi é claramente não-ficcional. Já no prefácio do

livro, o autor declara: “Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos

episódios foi fruto da imaginação” (1988, p. 8). Apesar disso, o livro é envolto

por fragmentação, pois como se apoia na memória para escrever e os

acontecimentos podem não ter sido descritos exatamente como aconteceram,

mas como o autor se lembra deles. Ainda, havia urgência em escrever e se

fazer ouvir. Os espaços vazios precisaram de elementos ficcionais e históricos

para possibilitar a narrativa, de forma a criar uma autoridade na escrita. Ao

mesmo tempo que Levi tenta ser o mais objetivo possível, ele conta suas

experiências através de sua visão de mundo, da maneira como a lembrança se

fez presente no momento da escrita. Desta maneira, a subjetividade se faz

presente em toda sua obra.

Levi tenta narrar suas experiências de forma precisa, seja em suas

frases, descrições, diálogos e monólogos interiores. Há uma predominância do

discurso indireto em sua obra, e os acontecimentos são narrados de uma

maneira que causa a sensação de estarem acontecendo diante dos olhos

daquele que lê. A atmosfera cotidiana é recriada pela narrativa cronológica e

linear, como podemos observar a seguir:

Infindáveis e insensatos são os rituais obrigatórios: cada dia, de manhã, deve-se arrumar a cama, perfeitamente plana e lisa; passar nos tamancos

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barrentos a graxa patente para isso destinada; raspar das roupas as manchas de barro (as de tinta, gordura e ferrugem, pelo contrário, são admitidas); à noite, a gente deve submeter-se ao controle dos piolhos e ao da lavagem dos pés; aos sábados, fazer-se barbear e raspar o cabelo, cerzir ou fazer-se cerzir os farrapos; aos domingos, submeter-se ao controle geral da sarna e ao dos botões do casaco, que devem ser cinco. (LEVI, idem, 1988, p. 32).

Muitas vezes, no entanto, a narração é interrompida incluir comentários

– ou reflexões – do próprio autor.

Por outro lado, em K.- relato de uma busca (2014, p. 8), a proposta de

Bernardo Kucinski é claramente ficcional. A escolha pela ficcionalidade da obra

dá liberdade ao autor para criar, uma vez que ele não precisou se pautar em

discursos racionais para escrever seu texto. A partir da subjetividade do autor,

assim como o tratamento estético e o imaginário, possibilitaram um olhar

diferenciado, traduzido pela palavra.

O prefácio da obra já dá a tônica do livro de Bernardo Kucinski, ou seja,

a história serve à ficção, assim como a ficção serve à história. Inúmeras

referências extratextuais são escolhidas estrategicamente pelo autor e, então,

reorganizadas na obra, a fim de dar uma sustentação à narrativa e tornar as

cenas mais visíveis e palpáveis ao leitor.

A busca, em K., é o eixo de toda a narrativa, e assume maior relevância

do que as personagens e suas ações. As artimanhas do narrador por meio da

constante procura por respostas norteiam a obra e a tornam tão peculiar.

Bernardo Kucinski deixa rastros ao longo de toda a obra, desvendando-se,

como narrador, somente nas últimas linhas do texto.

O recurso utilizado por Kucinski, em dar voz à primeira pessoa, serviu

para dar um tom de verdade na narrativa, onde “quase tudo aconteceu”, ao

passo que o contrato ficcional dá voz a terceira pessoa, mostrando que “tudo

não passa de ficção”.

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A estratégia em denominar Ana Rosa e Kucinski, pai, pela inicial – A., K.,

e o próprio autor na capa do livro, B. – cria uma relação indireta, ao mesmo

tempo em que ao despersonalizá-los, universaliza a narrativa. O enredo é

particular, origina-se da busca de Ana Rosa, pelo pai, mas é universal quando

passa a ser interiorizada pelos leitores que identificam a mesma narrativa em

diversos setores da nossa sociedade, criando o sentido de denúncia da obra.

A linguagem em obras de teor testemunhal apresenta uma tendência

antissimbolizante, isto é, transforma-se na própria coisa que se quer

representar, mostrando o que se pretendeu apagar. Isto é, encena o que está

fora de cena.

Mesmo em textos históricos, não existe uma verdade absoluta, uma vez

que ela é contada a partir de uma visão e, portanto, passa a ser subjetiva. Não

se fala mais em verdade, mas em verdades, em interpretações, como afirma

Roland Barthes (1970, p. 28): “A linguagem nunca pode dizer o mundo, pois ao

dizê-lo está criando um outro mundo, um mundo em segundo grau regido por

leis próprias que são as da própria linguagem”.

O testemunho nunca deve ser entendido como uma descrição realista do

evento passado, mas como construção ficcional da cena traumática “real”. A

ética da representação, neste caso, é justamente ir contra o modelo positivista

e o relativismo sem limites.

3.2. Insuficiência da linguagem, obstáculo linguístico e violência

inútil

A dificuldade em comunicar a experiência está ligada à insuficiência da

linguagem para narrar os horrores presenciados, uma vez que o sobrevivente

foi testemunha dos acontecimentos. Apesar do trauma e da consciência da

impossibilidade de se narrar tal como o evento de fato aconteceu, havia, entre

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os prisioneiros, um sentimento de obrigação em prestar testemunho e contar

ao mundo o que se passava no lado de dentro dos arames farpados.

Não se trata aqui, obviamente, da dificuldade que experimentamos toda vez que procuramos comunicar a outros as nossas experiências mais íntimas. A dificuldade tem a ver com a própria estrutura do testemunho. Por um lado, o que aconteceu nos campos aparece aos sobreviventes como a única coisa verdadeira e, como tal, absolutamente inesquecível; por outro lado, tal verdade é, exatamente na mesma medida, inimaginável, ou seja, irredutível aos elementos reais que a constituem. Trata-se de fatos tão reais que, comparativamente, nada é mais verdadeiro; uma realidade que excede necessariamente os seus elementos factuais: é esta a aporia de Auschwitz. (AGAMBEN, op. cit., 2008, p. 20).

A narrativa utiliza a linguagem no seu poder de representação e, por

meio da voz testemunhal, procura elaborar uma construção discursiva que

sustente os antagonismos da necessidade de depoimento e sua

impossibilidade integral, além do objetivo dramático do texto. Para Friedlander

(apud SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 78), devido ao excesso que foi a Shoah,

esta se torna um objeto que escapa à representação. A linguagem não dá

conta dos acontecimentos em um espaço temporal tão curto e, ao mesmo

tempo, tão saturado. Há uma tentativa de delinear um limite para a

representação do trauma, que leva a uma complexa constatação da dificuldade

de representar algo que está além do que conseguimos imaginar.

Se, para o prisioneiro, já era difícil entender o que se passava nos Lager,

enquanto a experiência concentracionária ainda estava acontecendo, transmitir

o evento passado tornou-se um desafio ainda maior. As palavras são

escassas, a memória se esvai e, narrar as experiências alheias é uma tarefa,

ao mesmo tempo necessária e impossível. A representação de uma vivência

traumática, por meio da linguagem, busca ampliar os limites do simbólico,

mesmo com a consciência da inviabilidade de cobrir o real como um todo.

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Em Primo Levi, há uma superação dos problemas de representação,

uma vez que o autor tanto legitima, como tenta transmitir a experiência. Para

isso, ele evita a tendência, muito explorada em outros testemunhos da mesma

época, de um mero esteticismo descomedido que utiliza a vitimização como

forma de narrar as experiências, além da simples reprodução de momentos

vividos por um indivíduo. Sua narrativa seleciona contornos de alto impacto, em

um discurso referencial mesclado com a linguagem poética, diferenciando-o de

tantos outros escritores-testemunhas desse mesmo período. Em sua obra,

narrativa, elementos ficcionais e reflexão andam juntos.

Para Agamben, é justamente na lacuna de vozes que se narra a

potência de tudo que poderia ter sido dito e não foi:

Contudo, tendo em vista que, a uma certa altura, nos pareceu evidente que o testemunho continha como sua parte essencial uma lacuna, ou seja, que os sobreviventes davam testemunho de algo que não podia ser testemunhado, comentar seu testemunho significou necessariamente interrogar aquela lacuna – ou, mais ainda, tentar escutá-la. (AGAMBEN, idem, 2008, p. 21).

Com essa transição de vozes entre aqueles que não sobreviveram e o

autor, Levi quer garantir a manutenção de uma individualidade genérica, isto é,

os judeus sobreviventes dos campos de concentração nazista. Ele objetivava

assegurar a sobrevivência da história como lembrança, por meio de uma

memória coletiva. Há certa facilidade com a linguagem quando falamos sobre

algo inofensivo, no entanto, a experiência da dor, como a da Shoah, descrita

por Levi, exige uma abertura semântica muito ampla, de forma a tornar a

experiência do autor mais próxima ao leitor, que sente em diversos momentos

da narrativa a dor, a angústia e o desespero daqueles que se encontravam nos

campos. O narrador-testemunha tem medo da condescendência, isto é, por

mais que ele exponha a sua dor, aquele que ouve e não a experienciou, nunca

entenderá a extensão do que realmente se passou. A linguagem é insuficiente

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para narrar um trauma, pois cada dor é singular e, portanto, inapreensível em

sua peculiaridade.

É isto um homem?, desde seus paratextos altamente referenciais, até a

sua narração a respeito da experiência concentracionária, não quer ser lido

como ficção. Esta é uma obra realista, apesar de apresentar elementos

ficcionais como única maneira de representar a carga dramática tão intensa na

escrita. Foi justamente por causa desse trabalho com a escrita, que Primo Levi

se tornou escritor: suas experiências concentracionárias, como sobrevivente de

um evento inusitado e traumático. Não fosse isso, talvez ele nunca tivesse se

arriscado na Literatura. Ao mesmo tempo em que leva como sua essência a

linguagem de químico - exata e precisa –, é somente por meio dos elementos

ficcionais e do trabalho com a linguagem que ultrapassa a narrativa comum e

se torna o escritor-testemunha reconhecido.

O testemunho de Levi estabelece, ainda, uma relação com os leitores,

objetivando torná-los participantes e como tal, assumindo um compromisso

mútuo em relação à narrativa. Para Ricoeur (2007), o testemunho só pode ser

realmente autenticado quando houver uma resposta, por parte do receptor, que

indique não apenas uma leitura, mas uma aceitação da narrativa. Ou seja, o

testemunho deixa de ser apenas autenticado e passa a ser acreditado.

Levi aponta esse compromisso ético entre autor e leitor já no início de

sua obra, com o poema Shemá:

Vocês que vivem seguros em suas cálidas casas, vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos,

pensem bem se isto é um homem que trabalha no meio do barro, que não conhece paz, que luta por um pedaço de pão, que morre por um sim

ou por um não. Pensem bem se isto é uma mulher,

sem cabelos e sem nome, sem mais forças para lembrar,

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vazios os olhos, frio o ventre, como um sapo no inverno. Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras. Gravem-na em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; repitam-nas a seus filhos.

Ou, senão, desmorone-se a sua casa, a doença os torne inválidos, os seus filhos virem o rosto para não vê-los. (LEVI, 1988, p. 9).

Primo Levi, em sua primeira obra escrita no pós-guerra, com medo dos

revisionistas e dos apagamentos de rastros pelos nazistas, cria um

compromisso ético com o leitor de seu texto. Ele quer que, de fato, os leitores o

escutem; sejam participantes, acreditem no que leem e não deixem a história

se apagar. Para tanto, ele cria uma atmosfera sufocante e cruelmente

verdadeira sobre os horrores dos campos de concentração.

O poema, ainda nos paratextos do livro, prepara o leitor para o que vai

ser narrado. Levi utiliza como cenário de fundo para o seu poema, uma oração

judaica, denominada Shemá Israel (Escute, Israel) que é recitada diariamente.

A oração diz que devemos lembrar de Deus em todos os momentos - ao

deitarmos e ao levantarmos, ao sairmos de casa e ao retornarmos. Assim, o

poema sugere que também devemos lembrar, sempre, que a Shoah

aconteceu. Essa reiterada lembrança deve-se tanto ao medo de que a memória

possa se esvair, quanto aos negacionistas que, juntamente com a constante

tentativa de apagamento dos rastros, poderiam dizer que nada daquilo foi

verdadeiro.

A partir do poema, Levi adverte a respeito da magnitude dos

acontecimentos que serão narrados na obra, assim como a necessidade de

serem divulgados. A última estrofe, em forma de punição, reitera a importância

em testemunhar para as próximas gerações, a fim de prevenir a repetição de

horrores como este. O testemunho passa a ser, então, mais do que uma

necessidade, mas uma obrigação.

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No poema, que abre espaço a um testemunho sobrevivente da Shoah,

Levi aponta as violências inúteis cometidas pelos soldados SS. Essas

violências, que visavam anular o homem, começavam antes mesmo de se

chegar aos campos, anterior aos vagões de carga que serviam como meio de

transporte. A anulação do indivíduo tinha início já nas leis de Nuremberg, que

proibiam a presença de judeus em diversos espaços públicos e sua

participação em diferentes profissões, fossem elas liberais ou não.

A propaganda nazista foi eficaz ao apontar a imagem do judeu como

parasita, piolho, verme ou àquele que deveria ser eliminado. Todas essas

imagens foram enraizadas na mente do cidadão comum. Roland Barthes, em

seu célebre pronunciamento, Aula (2007), aborda a questão do poder do

discurso. Para ele, o objeto de poder está na língua, em seu códigos pré-

determinados. Assim como toda língua é uma classificação, toda classificação

é opressiva. Na propaganda nazista, a classificação dos judeus como parasitas

foi a maneira mais eficaz de dar início a opressão de todo um povo. Tudo

começou pela linguagem, pelo discurso.

A expulsão dos judeus de suas casas, a perda de seus pertences

pessoais e o consequente encarceramento em guetos lotados, sujos e

fechados deu sequência ao esvaziamento do homem e a sua anulação.

Quando muito humilhado, o individuo acaba por acreditar como verdadeiras as

razões da agressão sofrida. Neste caso, muitos dos que sofriam com os

preconceitos perpetrados pelo nazismo, interiorizaram a inferioridade proferida

contra eles e, depois de um dado tempo, deixaram de lutar e resistir.

Desde o início da narrativa, Levi nos transmite a sensação de medo; a

consciência de que algo terrível estava por acontecer. Os trens que levavam a

Auschwitz eram compostos de vagões de carga, trancados, amontoados de

pessoas, tratadas como mercadorias - o que não deixava de ser verdade, pois

todos aqueles que não eram mandados imediatamente para as câmaras de

gás, eram explorados até seu esgotamento físico e serviam como mão de obra

barata para a economia nazista.

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Ao fim da viagem, o trem parava frente a um portão cuja inscrição dizia:

ARBEIT MACHT FREI, “O trabalho liberta”. Eram, de início, palavras de

escárnio. Auschwitz recebia os novos prisioneiros para os campos da morte,

onde aquele que não saísse pelas chaminés dos fornos crematórios, seria, de

fato, uma exceção.

A chegada a Auschwitz era marcada por atos sequenciais de violência

inútil. Primeiramente, os prisioneiros deviam permanecer em pé para a seleção,

mesmo após dias exaustivos de viagem. Em seguida, era o momento de formar

filas, que seriam, mais tarde, tão comuns à rotina dos Lager. Por fim, todos,

sem exceção, deviam despir-se, colocando suas roupas e os poucos pertences

que ainda lhes restavam, em um canto já determinado, para que não lhes

fossem “roubados”.

Segundo ato. Quatro homens entram bruscamente com pincéis, navalhas e tesouras para tosquia. Usam calças e casacos listrados, um número costurado no peito, devem ser da mesma espécie daqueles desta noite (ou da noite passada?), mas estes são robustos e saudáveis. Fazemos perguntas e mais perguntas; eles simplesmente nos agarram, e num instante estamos barbeados e tosquiados. Com que caras ridículas ficamos sem cabelos! Os quatro falam uma língua que não parece ser desse mundo; alemão, em todo caso, não é; um pouco de alemão eu já entendo. (LEVI, 1988, p. 21).

Levi inscreve esse momento, utilizando-se de termos e expressões com

forte carga semântica, a começar pela escolha da palavra tosquia. Animais são

tosquiados, não os homens. Neste momento, após diversas humilhações

iniciadas mesmo antes de chegarem ao local, esses indivíduos passavam a

sentir-se menos homens e mais animais. A anulação do indivíduo estava quase

completa, sem suas roupas e seus pertences, perdia-se ainda mais a

caracterização individual, agravada com a raspagem dos cabelos - aparato que

compõe uma moldura para cada rosto, enfatizando a diferenciação dos homens

entre si.

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Uma das violências mais macabras era a dos próprios prisioneiros

servirem de carrascos aos recém-chegados, que não compreendiam o que

estava acontecendo, nem para onde iam. Para agravar a situação, ninguém se

entendia, pois cada um falava uma língua diferente. Assim, além do caos

instaurado pela quantidade de recém-chegados, somava-se a babel das

diferentes línguas e culturas.

Após longo tempo de viagem e um dia inteiro de atividades de inserção

no espaço concentracionário, os novatos podiam se recolher para os barracões

designados. Na manhã seguinte, nem bem clareado o dia, todos são

acordados violentamente e levados a uma ducha para desinfecção. Ainda

molhados e nus, são levados a socos, pontapés e empurrões para uma sala

gelada, onde receberam seus uniformes listrados e esfarrapados, além de

tamancos de madeira. Mais uma vez, a violência inútil aparece, pois muitas

vezes, nem mesmo suas roupas e sapatos equivaliam aos seus tamanhos,

precisando procurar alguém que também necessitasse fazer uma troca.

Ao terminar, cada qual fica em seu canto, sem ousar levantar o olhar para os demais. Não há espelhos, mas a nossa imagem está aí na nossa frente, refletida em cem rostos pálidos, em cem bonecos sórdidos e miseráveis. Estamos transformados em fantasmas como os que vimos ontem à noite. (LEVI, 1988, p. 24).

Nos campos de concentração, não havia espelho. Levi, no entanto, em

muitos momentos descreve a tristeza de se ver refletido no outro, de se ver

cada vez mais esvaziado de sua essência, mais apagado, menos homem.

Assim como os soldados nazistas os chamavam, passavam a sentir-se como

peças, bonecos e, finalmente, fantasmas, ou seja, seres anulados, invisíveis,

indiferentes. Por um tempo, Levi e seus companheiros italianos chegaram a se

encontrar em um canto do campo, o que lhes permitia observar que, com o

passar do tempo, mais mirrados, abatidos, amarelados ou cinzentos de

doenças, eles mal conseguiam se reconhecer. Decidem, então, não mais se

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encontrarem: era muito triste assistir o apagamento do outro, como reflexo da

sua própria inexistência.

A distribuição de uniformes, principalmente dos tamancos de madeira,

também dizem respeito ao contínuo processo de desumanização dentro do

campo de concentração. Levi reflete a respeito:

E não é de crer que os sapatos signifiquem pouco na vida do Campo. A morte começa pelos sapatos. Eles se revelaram, para a maioria de nós, verdadeiros instrumentos de tortura que, após umas horas de marcha, criam feridas dolorosas, sujeitas a infecção na certa. A gente, então, caminha como se tivesse uma bola de ferro amarrada no pé (daí, a estranha andadura do exército de fantasmas que a cada noite volta em formação de marcha); sempre chega por último, e sempre apanha; se perseguido, não consegue fugir; seus pés incham e, quanto mais incham, mais insuportável torna-se o atrito com a madeira e a lona dos sapatos. Então, só resta o hospital, mas entrar no hospital com o diagnóstico dicke Füsse (pés inchados) é sumamente perigoso, já que todos sabem (e especialmente os SS) que dessa doença, aqui, não dá para se curar. (LEVI, 1988, p. 32-33).

Levi poderia dizer, simplesmente, que os prisioneiros eram obrigados a

usar tamancos de madeira muito desconfortáveis; todavia, ele os coloca como

instrumentos de tortura associados à imagem de “uma bola de ferro amarrada

aos pés que causam inchaço e infecções sem cura”, e acaba criando uma série

de elementos semânticos e imagéticos que transferem, ao leitor, de forma

visceral, a dor sentida pelos prisioneiros dos campos. Aquele que lê sente em

seu próprio corpo, a dificuldade de andar; de trabalhar o dia inteiro com parcas

roupas, incapazes de aquecerem frente ao frio intenso e, ainda, usando

tamancos de madeira que, dificilmente eram de tamanhos iguais para ambos

os pés.

São nessas passagens que Levi declara perceber, pela primeira vez, a

insuficiência da linguagem para comunicar as atrocidades vividas. Tanta

violência gratuita e deliberada significa a desumanização do homem.

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Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível. Condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se nos escutarem, não nos compreenderão. Roubarão também o nosso nome, e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que éramos. (LEVI, 1988, p. 24-25).

A anulação do homem estava completa: agora, sem nome, o indivíduo

dentro do campo não tem mais nada que o diferencie, que o singularize. É

simplesmente mais uma peça da engrenagem nazista que estava viva apenas

porque ainda era útil aos interesses do Estado. No momento em que o

indivíduo deixava de ser vantajoso para o sistema, era imediatamente

eliminado, sem deixar rastros de existência.

A linguagem é insuficiente para recriar nossas experiências, sejam elas

terríveis ou agradáveis. Apesar dos esforços e desejo intensos, o homem

nunca consegue dizer o todo de um fato, ideia ou sentimento. Levi, na sua

angústia, quer trazer ao leitor a totalidade ou a intensidade da experiência

vivida, mas isso é tão somente uma utopia escritural.

Segundo Vera Bastazin (2012), a utopia da linguagem consiste na

construção de um não-lugar, isto é, um espaço diferente daquele já existente a

partir do trabalho com e da palavra. A literatura não tem como objetivo recriar

exatamente um momento ou um espaço real, mas criar, pela imagem poética,

um novo lugar , ou melhor, o não-lugar, cuja particularidade é a sua qualidade

estética.

Nessa linha de raciocínio, existe uma lógica que produz o encontro entre o universo da utopia e o da literatura, ou seja, impossibilitada de se realizar no mundo real, a

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utopia ou o sonho de um amanhã sem guerras, desigualdades, rancor e misérias transforma-se em literatura – possibilidade de realização pela palavra. A espacialidade alternativa que brota da escritura literária traz o deslocamento de espaços sociais, costumes e governos para espaços metafóricos, responsáveis esses pela construção de um outro tipo de realidade de caráter peculiarmente estético. (BASTAZIN, 2012, p. 66).

Na literatura, a língua revela-se como um sistema que, por suas

limitações faz romper regras e convenções, conduzindo a um universo infinito

de artifícios linguísticos e imagéticos para poder dizer sempre mais. Todavia,

mesmo na dimensão literária, a linguagem é sempre fragmentada, pois se

utiliza de apenas um ângulo da realidade. A utopia escritual se dá a partir da

expectativa do autor em falar o todo, em conseguir apreender com e pela

palavra a totalidade do mundo. A literatura quer produzir novos significados

pela palavra e não apenas utilizar a linguagem como sua primeira finalidade, a

de comunicar. Na literatura, a palavra vai além, cria novas possibilidades de

escolhas e interpretações.

O pensador russo, Mikhail Bakthin (1895-1975), estudioso da cultura

europeia e de suas manifestações artísticas, acreditava que tanto a arte como

a literatura não se definiam em si mesmas sem fins externos e apenas em seus

elementos composicionais. Ele defendia a relação da obra com a exterioridade:

o mundo, o autor e os leitores. Desta maneira, a postura do leitor passa a ser

mais ativa e sua proximidade com o autor aumenta na medida em que a partir

do momento em que o texto é escrito, ele assume vida própria.

Bakthin foi um estudioso, em especial, de Fiódor Dostoiévski. Em um de

seus textos, ele acentua a diferença de Dostoiévski em relação a lei estética

em que o escritor não age mais com superioridade sobre a personagem. A

posição do autor é abalada, pois ela assume o mesmo peso de sua

personagem. Bakthin (2010, p. 7) explica essa semelhança de configuração

textual: “pois não há mais, de um lado, a verdade absoluta (do autor) e, do

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outro, a singularidade da personagem; existem apenas posições singulares, e

nenhum lugar para o absoluto”.

Escrever literatura, a partir de Dostoiévski, não é mais almejar a uma

verdade, mas ter a consciência de que ela não existe. Algo similar acontece

quando tratamos da literatura seja por uma perspectiva utópica, seja

testemunhal, pois o que existe são pontos de vista de uma experiência. A

vivência de cada um gera narrativas que passam a ser únicas e diversas ao

mesmo tempo.

Em outras palavras, poderíamos arriscar na afirmação de que não existe literatura destituída de certa utopia, ou seja, toda forma de expressão da palavra traz consigo uma maneira de ver, de interpretar e de projetar o mundo – como realidade próxima ou infinitamente distante de nós. (BASTAZIN, 2012, p. 68).

Ao compor a narrativa de testemunho, relacionada ao campo de

concentração, Levi constrói o espaço e o tempo como não-lugares, criando

assim as condições estéticas que delineiam o espaço da ficção. É por meio de

seu trabalho com a palavra, que o escritor cria possibilidades estéticas que

despertam a consciência e trazem ao leitor outras maneiras de ver e de sentir o

mundo, seja a partir do universo que experienciou, seja daquele que projetou

no processo de construção da obra, seja ainda, no resultado que alcança com

o leitor ao final da leitura do texto.

Levi, com a pretensão de recriar o todo de sua experiência na

linguagem, constrói um espaço de escrita que traz uma nova consciência

àqueles que o leem. Sua narrativa, sempre crítica, apresenta novos olhares

para a realidade que se pretendeu sufocar. Levi se arrisca na tentativa da

construção de leitores também críticos, a fim de evitar outros acontecimentos

bárbaros, como os que vivenciou. Os vazios, deixados pela memória e pela

falta de palavras para exprimirem uma sensação ou um momento específicos

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são preenchidos pela ficção, pelo trabalho com a linguagem que sugere sem

fechar possibilidades.

Ao leitor é necessária, então, uma nova postura em relação à obra; uma

relação que ultrapasse a leitura passiva e de entretenimento. É preciso

interatividade com o texto de forma a tornar o leitor, componente literário

vinculado ao ato de escritura, pois, é a partir da leitura que Levi anseia por uma

mudança de mundo. Levi quer que o leitor se sinta incomodado, a ponto de

perceber tanto as atrocidades passadas como aquelas ainda presentes, a fim

de colaborar para a construção de um mundo mais justo. O bom escritor deve

atingir o leitor tanto no âmbito intratextual quanto no extratextual.

Uma obra depois de escrita assume vida própria e apresenta uma

verdade em si mesma. As experiências de Levi nos campos de concentração

são uma coisa única e sua transferência para a literatura é outra. Apesar da

tentativa de dizer o todo, o discurso é incapaz disso, caso contrário, a palavra

se tornaria o próprio objeto de referência. A força do texto literário se realiza

por meio do talento do escritor em tratar o real e o ficcional, a fim de elaborar

novos contornos para esses dois espaços.

Primo Levi reflete a respeito da perda de identidade, esteticamente:

Imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses considerando puros critérios de conveniência. Ficará claro, então o duplo significado da expressão “Campo de extermínio”, bem como o que desejo expressar quando digo: chegar no fundo. (LEVI, 1988, p. 25).

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Realizada a transformação física, inicia-se o tormento psicológico dos

campos, os novos Häftilnge10 são levados a um barracão vazio, com um

beliche atrás do outro. Estavam, todos, arrumados, mas a eles foi

rigorosamente proibido sequer tocá-los. Os prisioneiros ficaram vagando pelo

pequeno espaço do barracão, até que alguma instrução lhes fosse dada. Em

algum momento desse tormento, Primo Levi, já há dias sem comer ou beber

direito, conta que

[...] com toda aquela sede, vi, do lado de fora da janela, ao alcance da mão, um bonito caramelo de gelo. Abro a janela, quebro o caramelo, mas logo adianta-se um grandalhão que está dando voltas lá fora e o arranca brutalmente da minha mão. – Warum? – pergunto, em meu pobre alemão. – Hier ist kein Warum – (aqui não existe “por quê”), responde-me, empurrando-me para trás.

A explicação é repugnante, porém simples: neste lugar tudo é proibido, não por motivos inexplicáveis e sim porque o Campo foi criado para isso. Se quisermos viver aqui, teremos que aprendê-lo, bem e depressa. (LEVI, 1988, p. 27).

Por que Levi se utiliza da expressão “caramelo de gelo” para referir-se

àquela pequena quantidade de água ao alcance de suas mãos? Teria visto um

caramelo, no delírio da fome, ou escreveu isso, apropriando-se dos diferentes

alcances da linguagem ficcional? O autor, no trabalho com a língua, cria

imagens capazes de transmitir sensorialmente a sede e o cansaço daquele

instante, assim como o momento das muitas chamadas. Uma banda de música

começa a tocar uma canção sentimental, “Rosamunda”. Os novos Häftlinge se

entreolham, sem entender o que está acontecendo. Chegam, inclusive, a

acreditar que toda essa iniciação não passou de uma piada de mau gosto. No

entanto, logo começam a entender um pouco a mente macabra do nazismo.

Naquele momento, os outros prisioneiros do Lager aparecem, voltando em

grupos do trabalho e marchando em filas de cinco, com um andar esquisito,

10 Prisioneiros do campo de concentração.

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nada natural porque duro e mecânico, parecendo-se com bonecos feitos

apenas de ossos. Eles, porém, marcham acompanhando exatamente o

compasso da música.

Após a chamada e a longa contagem que dura mais de hora, ouve-se

um grito, Absperre!, e todos desmancham as filas e saem em grupos,

desesperadamente, com uma gamela na mão, à espera da sopa rala que lhes

servirá como única refeição.

O absurdo do sistema concentracionário, no entanto, não demora muito

tempo para ser incorporado à rotina de cada Häftlinge novato. Isso porque, não

há muita opção, ou se adapta, ou se afoga. Primo Levi descreve sua

angustiante, mas rápida, adaptação:

Aqui estou, então: no fundo do poço. Quando a necessidade aperta, aprende-se em breve a apagar da nossa mente o passado e o futuro. Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar à noite; que fica dentro de cada fragmento de nossos corpos. Aprendi a não deixar que me roubem; aliás, se vejo por aí uma colher, um barbante, um botão dos quais consiga tomar posse sem risco de punição, embolso-os, considero-os meus, de pleno direito. Já apareceram, no peito de meus pés, as torpes chagas que nunca irão sarar. Empurro vagões, trabalho com a pá, desfaleço na chuva, tremo no vento; mesmo meu corpo já não é meu; meu ventre está inchado, meus membros ressequidos, meu rosto túmido de manhã e chupado à noite; alguns de nós têm a pele amarelada, outros cinzenta; quando não nos vemos durante três ou quatro dias, custamos a reconhecer-nos. (LEVI, 1988, p. 35).

Mal sabia Levi, quando da sua iniciação ao Lager, que a degradação

humana ainda não teria acabado. A chegada ao campo e todos os rituais de

iniciação, pouco a pouco, foram esvaziando cada ser, cada história, cada

individualidade, e transformando os prisioneiros em uma massa - massa

cinzenta, sem nome, sem passado e sem futuro. Cinza como era a cor que

definia o “mulçumano”, o prisioneiro que parou de resistir, que passou a fazer,

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sem pensar, o que lhe era ordenado - pensar, a essas alturas, era provocar

ainda mais uma dor.

No decorrer da narrativa, Levi aborda também a fome crônica

desconhecida pelos homens livres. Ele explica a sensação de fome como algo

que se concentra num momento do dia em que tudo se resolverá: um punhado

de ração e a permanente resignação do vazio que o habita. Irônica e

paradoxalmente, será também a fome que manterá aqueles homens vivos, pois

é somente pensando na recompensa do alimento que conseguem manter-se

em pé, trabalhando sob o frio, a chuva, além dos socos e pontapés que os

atingem ao longo do dia.

A transformação do homem em Häftlinge é essencialmente igual para

todos. Levi descreve como se percebeu um não-homem – imagem que pode

ser transferida para o coletivo daquele espaço. As feridas no corpo, e

principalmente nos pés por causa dos tamancos de madeira, torturavam os

prisioneiros a cada passo, a cada movimento; o corpo ressequido, doente,

descolorido; a perda de identidade e, mesmo de identificação entre si os

tornavam, cada vez mais conscientes da situação degradante em que viviam.

O conceito universo concentracionário, que diz respeito não somente ao

espaço em que os campos se encontravam, mas também a toda organização

social nele inserida, foi utilizado pela primeira vez, em 1946, pelo também

sobrevivente David Rousset. Mais tarde, o termo foi usado por Levi, em Os

afogados e os sobreviventes, que o criticou, acreditando que, mesmo os

campos de concentração – constituindo um sistema extenso e de grande

autonomia, com lógica própria e regras bem delimitadas – estavam altamente

conectados com a vida cotidiana do país, inclusive por meio das sociedades

industriais, como a fábrica de borracha de Buna-Monowitz, que garantia seu

lucro através da mão de obra escrava. Primo Levi descreve o funcionamento

do Campo:

Muitíssimas coisas ainda deverão ser aprendidas; muitas, porém, já aprendemos. Já temos ideia da

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topografia do Campo: este nosso Campo é um quadrado de uns seiscentos metros de lado, fechado com duas cercas de arame farpado, sendo a de dentro ligada à corrente de alta tensão. Consta de sessenta barracos de madeira, aqui chamados Blocos; destes, uma dezena ainda está em construção. Além dos Blocos, o conjunto, em material, das cozinhas; uma granja experimental, cuidada por um grupo de Häftilinge privilegiados; os barracos das duchas e das latrinas, um para cada seis ou sete Blocos. E mais, alguns Blocos destinados a finalidades especiais: antes de tudo, um conjunto de oito, na extremidade leste do Campo, constitui a enfermaria e o ambulatório; há, logo, o Bloco 24, o Krätzeblock, para os sarnentos, o Bloco 7, no qual nunca entrou nenhum Häftling comum, reservado à Prominenz, ou seja, à aristocracia, aos prisioneiros incumbidos de funções superiores; o Bloco 47, para o Reichsdeutsche (os arianos alemães, políticos ou criminosos); o Bloco 49, só para Kapos, o Bloco 12, metade do qual funciona como cantina para os Reichsdeutsche e os Kapos, ou seja, para a distribuição de tabaco, pó, inseticida e, ocasionalmente, outros artigos; o Bloco 37, contendo o Escritório Central e a Chefia do Trabalho, e, por fim, o Bloco 29, que fica sempre com as janelas fechadas, porque é o Frauenblock, o Bloco das Mulheres, o prostíbulo do Campo, servido por moças Häftlinge polonesas e reservado aos Reichsdeutsche. (LEVI, 1988, p. 29-30).

A desumanização estava presente em cada ato, em cada gesto, em

cada palavra pronunciada dentro dos campos. Ruth Klüger (2005, p. 114) tenta

dar voz à chaminé, aquela presença da morte constante, aquele aviso olfativo e

visual que não deixava que os prisioneiros esquecessem qual seria o destino

de cada um. Em seu poema, a autora objetiva coisificar a chaminé, a máquina

da morte, como soberana dos campos:

Todo dia por trás dos galpões vejo subir fogo e fumaça. Judeu, abaixa a cabeça. Dela aqui ninguém escapa. Acaso não vês na fumaça um rosto desfigurado? Não exclama cheia de escárnio: - Já traguei cinco milhões! Auschwitz está em minhas mãos, tudo, tudo há de queimar.

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Todo dia além do arame farpado o sol desponta em púrpura mas sua luz é fraca e sem consolo e logo irrompe a outra chama. Pois a cálida chama da vida há muito já não vale aqui. Olha lá a chama rubra: Só a chaminé é real. Auschwitz está em suas mãos, tudo, tudo há de queimar.

Desde que chegaram ao campo, os prisioneiros eram alertados de que

não estavam mais em casa e que de lá só se saía pela chaminé. Custou um

tempo para que pudessem entender o tamanho da barbárie. A partir de então,

ou mantinham a mente vazia e trabalhavam incessantemente sem questionar,

ou qualquer descuido seria fatal. As chaminés dos fornos crematórios

trabalhavam dia e noite, sem descanso e sem piedade.

O trauma vivido nos campos de concentração e entranhado até os

últimos dias de vida, mesmo fora dos Lager, diz respeito às inúmeras formas

de violência, na sua grande maioria, inúteis, que fizeram dos prisioneiros,

meros Häftlinge. Tzvetan Todorov (1995), aborda a falta de liberdade dos

prisioneiros, reduzidos a obedecer ordens que determinavam seus gestos e

impossibilitavam suas vontades e escolhas de condutas, desaparecendo,

dessa maneira, qualquer traço de vida moral.

Para Jeanne-Marie Gagnebin,

O “trauma” é a ferida aberta na alma ou no corpo por acontecimentos violentos, recalcados ou não, mas que não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular linguisticamente, pelo sujeito. Ora, depois das duas Guerras Mundiais e, sobretudo, depois da Shoah (catástrofe, em hebraico), a temática do trauma torna-se predominante. Parece que as feridas continuam abertas, que não podem ser curadas, nem por encantações, nem por narrativas. A ferida não cicatriza e o viajante, quando, por sorte, consegue voltar para algo como uma “pátria”, não tem nem as palavras para contar, nem os ouvintes afetuosos para escutá-lo. (2002, p. 127).

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A violência inútil, conceito discutido por Levi em Os afogados e os

sobreviventes, confunde-se com a banalidade do mal, conceito utilizado por

Hannah Arendt quando foi enviada, como jornalista da New Yorker, para cobrir

o julgamento, em Jerusalém, do nazista Adolf Eichmann, capturado na

Argentina, em 1961, conforme já colocado. A autora utiliza o termo banalidade

do mal, como algo extremamente perigoso, pois envolve uma ação que pode

ser cometida por um homem comum, sem qualidades humanas excepcionais.

Ela implica ações cotidianas que devem ser cumpridas sem questionamentos.

Eichmann, ao ser confrontado com documentos a respeito da evacuação

dos judeus da Eslováquia, em seu processo em Jerusalém, admite, com

naturalidade, o erro de ter narrado exclusivamente o fato de ter jogado boliche

com um ministro e ter deixado de mencionar a evacuação dos judeus.

“Claro, claro, foi uma ordem de Berlim, eles não me mandaram lá para jogar boliche”. Será que havia mentido duas vezes, com grande coerência? Pouco provável. Evacuar e deportar judeus era coisa de rotina; o que ficou em sua cabeça foi o boliche, foi ser hóspede de um ministro, foi ficar sabendo do ataque contra Heydrich. E era característico do seu tipo de memória não se lembrar absolutamente do ano em que ocorrera esse dia memorável, no qual o “enforcador” foi fuzilado por patriotas tchecos. (ARENDT, 1999, p. 96).

Anos antes do conceito de banalidade do mal ser elaborado por Hannah

Arendt, Levi já refletia a respeito desse termo e suas consequências

catastróficas.

É preciso recordar que estes fiéis, e dentre eles os diligentes executores das ordens desumanas, não eram algozes natos, não eram (salvo poucas exceções) monstros: eram homens comuns. Os monstros existem, mas são muito pouco numerosos para serem verdadeiramente perigosos; os mais perigosos são os homens comuns, os funcionários prontos a ceder e a obedecer sem discussão, como Eichmann, como

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Höess, comandante de Auschwitz, como Stangl, comandante de Treblinka. (LEVI, 1988, p. 262).

No seu livro, Em face do extremo (1995), Todorov tece reflexões sobre

os atos de violências extremas, praticadas nos campos que visavam

transformar os prisioneiros em meros Häftling, fazendo com que perdessem

suas qualidades propriamente humanas. As violências, mais do que aquelas

efetivamente expressas em ações, foram as cometidas por pessoas que

simplesmente se calavam diante das barbáries que ocorriam. Todorov (1995, p.

175) explica que “Para que o mal se realize não basta a ação de alguns, é

preciso também que a grande maioria fique de lado, indiferente; disso, sem

dúvida, somos todos capazes”.

A indiferença é uma cápsula de proteção covarde, que impede que a

miséria alheia nos encare de frente. Quando não enxergamos, não

discriminamos de verdade. Esse foi o caso de Rita Klüger, também

sobrevivente de Auschwitz, que depois de ter conseguido escapar do campo,

presenciou, ao final da guerra, já na cidade, uma caminhada de prisioneiros no

meio da população local:

Foi meu último contato com a gente dos campos de concentração. Caminhavam no meio da cidade, no meio da rua, em plena luz do dia, e à minha direita e esquerda havia transeuntes, homens, mulheres e também crianças, que desviavam o olhar. Ou fechavam a cara, assim nada poderia penetrar. Temos nossos próprios problemas, por favor, não nos perturbem com exigências humanitárias. Esperamos na calçada até que os seres inferiores passassem. Quando os americanos chegaram, pouco depois, ninguém tinha visto coisa alguma. E, de certa maneira, era verdade. De fato, não se enxerga aquilo que não se percebe ou capta. Nesse sentido, só eu os tinha visto. (KLÜGER, op.cit., 2005, p. 165-166).

Aqueles que se calaram, contribuíram para que diferentes casos de

violência continuassem acontecendo, dia após dia, durante todos os anos de

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guerra. As lembranças de momentos tão dolorosos penetraram

inconscientemente em cada um que sobreviveu às atrocidades.

Neste sentido, a banalidade do mal, ou as situações-limite

transformadas em hábito, localizam-se também dentro de outro conceito,

elaborado por Primo Levi em sua última obra, Os afogados e os

sobreviventes: a zona cinzenta. Nela, todos os tipos humanos se misturavam,

entre algozes e vítimas, numa confusão e ausência de efeitos éticos e morais.

Em um contexto extraespacial e extratemporal como os campos de

concentração nazistas, dificilmente se separa, com nitidez, aqueles que foram

essencialmente bons daqueles que foram particularmente maus.

O Sonderkommando, por exemplo, era formado por prisioneiros que,

com um pouco mais de comida ou outros privilégios, facilmente se

corromperam. Eram eles os responsáveis, entre outras tarefas, pelas câmaras

de gás e fornos crematórios.

Outra parcela, anônima, da zona cinzenta é formada por aqueles que

ficaram conhecidos como mulçumanos - prisioneiros que, já sem forças, nem

vontade, sucumbiram e realmente chegaram ao fundo. São aqueles que, nas

palavras de Levi, se afogaram e não puderam mais voltar para contar suas

histórias, seja porque morreram nas câmaras de gás, seja porque fitaram as

górgonas tão de frente que, mesmo tendo sobrevivido, não mais conseguiram

falar.

Agamben disserta acerca do termo mulçumano para designar esses

prisioneiros que estavam sempre curvados, como se estivessem em postura de

oração:

A explicação mais provável remete ao significado literal do termo árabe muslim, que significa quem se submete incondicionalmente à vontade de Deus [...]. Contudo, enquanto a resignação do muslim se enraíza na convicção de que a vontade de Alá está presente em cada instante, nos menores acontecimentos, o mulçumano de Auschwitz parece ter, pelo contrário,

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perdido qualquer vontade e qualquer consciência. (op.cit., 2008, p. 52-53).

Não bastasse a própria adversidade dos campos e a complexidade de

tipos humanos na zona cinzenta, há também o obstáculo naquele que ouve,

mas que, na verdade, não escuta. A recusa dos ouvintes, mais do que a

descrença no que aconteceu, é de realmente escutar histórias que seriam

altamente violentas.

Levi, em um poema no prefácio de A Trégua (2010), desabafa a

respeito dessa memória sempre acesa, incrustada no corpo e na alma de cada

sobrevivente, presente inclusive nos sonhos dos prisioneiros, quando ainda nos

campos de concentração:

Sonhávamos nas noites ferozes sonhos densos e violentos sonhados com alma e corpo: voltar, comer, contar o que aconteceu.

Até que soava breve e abafada a voz de comando do amanhecer “Wstawac”; e no peito se rompia o coração.

Agora reencontramos a casa, o nosso estômago está saciado, acabamos de contar o que aconteceu. Chegou a hora. Logo ouviremos ainda a voz de comando estrangeira: “Wstawac”.

Em seu poema, Levi refere-se a uma dor incrustada nos prisioneiros que

era impossível de ser ultrapassada. Nem mesmo nos sonhos ela era

amenizada. E é ela que, mesmo anos depois da libertação, continua presente

no inconsciente dos sobreviventes. A marca do sofrimento vai além da

tatuagem no antebraço esquerdo, ela está tatuada na alma de cada um

daqueles que tiveram o infortúnio de conhecer o lado de dentro da ira nazista.

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A não compreensão da língua equivalia à ausência de informação, ou

ainda, à falta de entendimento das ordens cotidianas. Assim, a língua não

apreendida conduzia, inexoravelmente, à morte antes mesmo de qualquer

possível adaptação à rotina do campo. Muitas vezes, ainda, uma ordem era de

tal forma despropositada que seu entendimento, por princípio, se fazia

improvável.

Ainda nos primeiros dias de campo, chegando ao Bloco que lhe era

destinado, Primo Levi começa a perceber a confusão nas comunicações:

Compreendo que querem que cale a boca, mas essa palavra [Ruhe] é nova para mim e, não conhecendo seu significado nem suas implicações, minha ansiedade aumenta. Aqui, a confusão das línguas é um elemento constante da nossa maneira de viver; a gente fica no meio de uma perpétua babel, na qual todos berram ordens e ameaças em línguas nunca antes ouvidas, e ai de quem não entende logo o sentido. (LEVI, 1988, p. 36).

Essa babel linguística resulta na total falta de informação. Assim, sem

compreensão e sem respostas, esvai-se, aos poucos, o pensamento e surge a

consequente automação dos atos e movimentos.

A dificuldade de comunicação, porém, ultrapassa o tempo e o espaço

dos muros dos campos de concentração. Ela atinge os prisioneiros mesmo

após a libertação. A violência sofrida foi de tal forma extrema que se tornou

responsável pelo trauma associado às palavras não mais possíveis de serem

pronunciadas. Em um contexto em que os indivíduos eram literalmente

queimados vivos, deixam de existir palavras suficientes para o relato dos fatos.

Conforme Levi (1988, p. 124-126), “A linguagem segue ainda fazendo falta

para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero,

vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro de si

fraqueza, fome e consciência da morte que chega”.

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A dificuldade de comunicação e impossibilidade de narrar fazem do

testemunho um gênero literário fragmentado. A força da violência, assim como

as lacunas presentes na linguagem que constitui a narrativa testemunhal

traduzem um compromisso ético com a fala dos mortos que se fazem, então,

presentes. Seria, por assim dizer, o silêncio dos afogados que não puderam

narrar suas experiências. Para Agamben (2008), as lacunas são exatamente o

que resta de Auschwitz: a impossibilidade de testemunho em sua inteireza

mas, ao mesmo tempo, a sua absoluta necessidade. Esse é o conceito do

paradoxo de Levi, elaborado e escrito pelo filósofo italiano contemporâneo,

Giorgio Agamben.

Em uma entrevista a Ferdinando Camon, Primo Levi explica o trauma da

falta de comunicação.

Camon: E a consciência de que todos vocês estavam sofrendo uma injustiça em comum não os unia?

Levi: Não o suficiente. Por muitos motivos. A razão principal era a falta de comunicação, e esse era o segundo trauma. Poucos de nós, judeus italianos, compreendiam o alemão ou o polonês – muito poucos. Eu sabia algumas palavras em alemão. Naquelas condições, uma barreira linguística era fatal. Quase todos os italianos morreram por causa dela. Porque, desde o primeiro dia, eles não compreendiam as ordens, e isso não era permitido, não era tolerado. Eles não compreendiam as ordens e não podiam falar isso, eles não podiam se fazer entender. Eles ouviam um grito, porque os alemães, os soldados alemães, estavam sempre gritando. (CAMON, 1989, p. 22-23).

Apesar da falta de comunicação, a linguagem era o último instrumento

que os prisioneiros tinham para manter o mínimo da dignidade humana que

ainda lhes restava. Nos momentos mais difíceis, prisioneiros buscavam entre

seus companheiros um gesto ou palavra que os acalentassem. No entanto, não

havia nem mais tempo e nem mais força de vontade para tanto.

Mesmo com as dificuldades frente à língua alemã, Levi consegue

descrever a dor em palavras. Sua dor não era apenas física; era mais

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profunda, tocando o insuportável, o que fazia sofrer, realmente, era a dor da

ausência do lar; a dor daquilo que já haviam tido; uma lembrança sufocada.

Aqui está minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pessoas. Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da cama dura, do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de acordá-lo porque é mais forte que eu. Conto também a história da nossa fome, e do controle dos piolhos, e do Kapo que me deu um soco no nariz e logo mandou que me lavasse porque sangrava. É uma felicidade interna, física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tanta coisa para contar, mas bem me apercebo de que eles não me escutam. Parecem indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse. Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio. (LEVI, 1988, p. 60)

Esse sonho era o que tornava mais angustiante suas lembranças. Nem

mesmo nos sonhos tinham uma trégua que lhe possibilitasse pensar em um

futuro reconstruído. O sofrimento se convertia em sonho, mas voltava

rapidamente a materializar-se a cada manhã.

A descrição da dor é tão contundente que, como leitores, somos

capazes de sentir a pontada da indiferença que os prisioneiros no campo

sentiam na pele todos os dias. Exatamente nesse momento, o leitor se dá

conta de seu papel, ativo, junto ao texto. Ele, mais do que ler, acredita no relato

e escuta, ou continua a ler, apesar do desconforto causado pela linguagem

utilizada para representar o trauma. Torna-se, então, participante e, dificilmente

fechará o livro como se nada tivesse se passado com ele.

Normalmente, quando situações de tristeza e de dor são descritas, suas

imagens aparecem, instintivamente, preenchidas pela cor cinza, a mesma que

coloria os rostos e corpos opacos dos muçulmanos, prisioneiros já esgotados.

Mas, ao contrário do que aqueles que não experienciaram esse momento

extremo, os campos não eram essencialmente cobertos de cinza. No entanto,

seja pela seriedade e pela secura da fábrica de borracha de Buna, seja pela

tristeza enraizada em cada poro dos prisioneiros, a construção era cinzenta:

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A fábrica, essa não: a fábrica é desesperadamente, essencialmente cinzenta e opaca. Este emaranhado sem fim de ferro, cimento, fumaça e lama é a negação da beleza. Suas ruas, seus edifícios chamam-se como nós, com letras ou números, ou com nomes inumanos e sinistros. Dentro da sua cerca não cresce um fio de grama, a terra está saturada dos resíduos tóxicos de carvão e petróleo, não há nada vivo, a não ser as máquinas e os escravos; mais vivas aquelas do que estes. (LEVI, 1988, p. 72)

A imagem é de um lugar gelado, impessoal, distante e, mesmo assim, o

prisioneiro é considerado menos vivo do que as máquinas, isto é, sua energia

há muito já gasta é incapaz de competir com as máquinas do laboratório. Sua

presença torna-se insignificante, desnecessária para a própria engenharia

nazista; e os prisioneiros tem plena consciência disso, tanto que se veem

mortos em um corpo oco.

Um homem livre sente momentos de fome, de cansaço, mas são

episódios passageiros e passíveis de serem resolvidos. Para os prisioneiros

dos campos de concentração, a situação é outra: a fome é a característica

maior do campo, é a razão para continuar aguentando as humilhações

constantes, na esperança de ter alguma coisa para comer. É o que

transformava o indivíduo honesto em ladrão. É o que servia como moeda de

troca, como suborno, como expectativa de mais um tempo de vida.

Quando a animalização do homem está concluída e não resta mais,

praticamente, faísca de humanidade; quando o homem não mais questiona

absolutamente nada, apenas realiza o trabalho a ele destinado, come somente

a ração diária sem tentar conseguir mais nada; quando obedece todas as

ordens do campo sem pensar; quando perde o brilho dos olhos e perde

qualquer vontade de viver e não tem mais esperança em um futuro, então, este

ser se torna um muçulmano. O termo foi escolhido para descrever os

prisioneiros que, assim como os muçulmanos religiosos, não questionam Alá,

seu Deus, e andam curvados como forma de obediência à entidade superior,

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em forma de respeito. No caso dos muçulmanos do campo de concentração, a

curvatura é sinal de esgotamento extremo. Por algum motivo, esses

prisioneiros não tiveram tempo de se adaptarem à sua nova vida e acabaram

ficando para trás. Não conseguiram aprender o alemão e não entendiam os

comandos dos soldados nazistas. Simplesmente nadaram com a correnteza,

até afogarem-se.

A sua vida é curta, mas seu número é imenso; são eles, os “muçulmanos”, os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não-homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar “morte” à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la.

Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento. (LEVI, 1988, p. 91).

A imagem que Levi nos revela é de pessoas que perderam qualquer fé

na humanidade, qualquer vontade de viver. Em seu testemunho, ele

condensou, literariamente, o mal de seu tempo em um símbolo: os

muçulmanos dos campos de concentração. A anulação total do homem e sua

transformação em pessoas esvaziadas de qualquer pensamento ou olhar

esperançado conduziu Levi a respeitar, mais do que nunca, as vozes caladas e

a tornar-se o escritor pioneiro da Shoah.

A Literatura de Testemunho, seja ela escrita por um sobrevivente,

testemunha de fato, mesmo que não tenha sido a testemunha integral - isto é,

testis -, seja por uma testemunha que não tenha participado efetivamente do

evento - isto é, superestes -, além de dar voz aos mortos e preencher as

lacunas da memória, é uma necessidade para se conseguir lidar com o luto e,

de uma forma ou de outra, almejar a libertação interior.

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Considerações finais

Enquanto a Segunda Guerra Mundial e seus desdobramentos são

conhecidos mundialmente, a Ditadura Militar Brasileira é, ainda nos dias de

hoje, pouco estudada em seu próprio país. A partir disso, tentamos de alguma

maneira, falar a respeito do que, por muito tempo, se tentou apagar.

A Literatura de Testemunho tem um potencial importante, e isso nos leva

a pensar em alternativas de interpretação, pois rompe com um sistema

mnemônico, linear, sequencial que se apropria de um discurso apenas oficial.

Ao dar voz aos que passaram de fato pelas experiências, espera-se daqueles

que ouvem, uma nova percepção, tornando-se mais próximos e sentindo-se,

também, comprometidos em evitar outros eventos-limite.

Os elementos centrais desta dissertação, merecedores de destaque são,

em primeiro lugar, a subjetividade, cuja importância na Literatura de

Testemunho, se dá pelo anseio de reproduzir um episódio tal como ele de fato

aconteceu; mesmo embora esse objetivo se perceba utópico. Em segundo, a

literariedade, ou seja, essa estratégia de escrita no texto literário, que amplia

nossa consciência de que ela está sempre permeada de fatos, os quais são

preenchidos pelo imaginário. A literariedade é, desta maneira, artifício da

literatura.

Além disso, o trauma assume papel de importância na Literatura de

Testemunho. A subjetividade se dá, então, não apenas pela visão particular do

indivíduo que narra, mas também devido ao fato de que a representação

desses fatos, no presente, necessita de um trabalho de rememoração, isto é, a

memória sempre efêmera nunca será capaz de reproduzir um evento

exatamente como ele aconteceu, mas sim como lembramos. Somando-se a

isso, o trauma surge como obstáculo para a reelaboração do passado, uma vez

que sempre que solicitado, o trauma retorna em forma de dor e de angústia. A

subjetividade, dentro da escrita literária, tem um grau que é do “eu” expressivo

do narrador que chega a um “eu” que é universal.

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Enquanto a história oral, que resgata narrativas similares, produz

documentos e análises dos historiadores, cientistas políticos, e outros cientistas

sociais, a Literatura de Testemunho tem uma capacidade de socialização de

conhecimentos mais abrangente e mais pública, na medida em que se torna

parte de algo que vai ser valorizado tanto na expressão artística e estética,

quanto no processo documental.

Este limite da Literatura de Testemunho, que fica entre a historiografia e

a ficção, entre a objetividade e a subjetividade, é evidenciado nas obras

escolhidas para análise. Em ambos os casos, tanto Levi como Kucinski, ao

narrarem uma história individual, estão contando uma história que é também

coletiva. Levi, no intuito de ser o mais real possível, necessita dos elementos

ficcionais para dar conta da memória que falha e da linguagem que não

consegue mais dizer. Kucinski, por outro lado, apresenta seu livro como ficção,

mas precisa dos elementos históricos para criar verossimilhança no texto. Além

disso, o autor fica no limite entre autor, narrador e personagem, que ao longo

do texto se oculta para se revelar-se só no final.

Conforme o trabalho de pesquisa foi sendo consolidado, a hipótese

elaborada, proposta inicialmente, qual seja: a função dos elementos ficcionais

em obras de caráter testemunhal se evidencia pela possibilidade de

representação da memória traumática, a partir da linguagem literária que

consegue, até certo ponto, representar o indizível. O discurso literário é

composto de forma a permitir e estimular a diversidade do dizer, através da

presença de diversas vozes.

A Literatura de Testemunho, marcada como fictícia ou autobiográfica,

necessita de elementos ficcionais para representar a memória e honrar as

vozes caladas daqueles que não sobreviveram. Ainda, serve de alerta para

evitar que outras injustiças voltem a acontecer ou, para fazer com que o leitor

aja e evite que situações de exclusão, de perseguições e assassinatos tenham

espaço novamente entre nós. Além disso, pretende lutar contra o

esquecimento e a denegação, permitindo àquele que ouve hoje, construir uma

história diferente.

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Por fim, a grande força motriz desse trabalho é a ideia de resiliência, de

uma força extraordinária que os dois autores analisados tiveram ao se

adaptarem às situações extremas, assim como tantas outras pessoas, que

tiveram suas vozes ocultas. Levi e Kucinski, desta maneira, narram por

delegação sem, no entanto, dizer por eles.

As potências negativas, também em forma de lacunas e silêncios,

respeitam a ausência desses que, mortos em situações tão cruéis, não

puderam contar suas histórias. A maneira mais honrosa de narrá-las é

respeitando seus silêncios, mesmo que, para isso, o texto esteja repleto de

vazios.

Se Primo Levi e Bernardo Kucinski nos deixaram esse legado,

buscamos com esse trabalho fazer com que suas narrações sigam adiante e,

como um trabalho de pesquisa, visamos honrar não somente a memória e voz

daqueles que puderam contar suas histórias, mas também de todos os que não

puderam, que passaram, e que ainda passam nos dias de hoje, por sofrimentos

e situações-limite, ainda que em escalas e contextos sociais e políticos

distintos.

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11 Apesar de não termos usado diretamente toda fortuna critica aqui apresentada, consideramos relevante sua apresentação, como forma de facilitar o trabalho de futuros pesquisadores, na medida em que esse conjunto de textos ajudou a construir nossa reflexão ao longo da pesquisa.

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