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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Afonso Grisi Neto A proteção da dignidade da pessoa humana como causa justificadora para uma intervenção internacional institucional DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS São Paulo 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Afonso Grisi Neto

A proteção da dignidade da pessoa humana como causa justificadora para uma

intervenção internacional institucional

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São Paulo

2018

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Afonso Grisi Neto

A proteção da dignidade da pessoa humana como causa justificadora para uma

intervenção internacional institucional

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo (PUC-SP), como exigência parcial

para obtenção do título de Doutor em

Ciências Sociais sob a orientação do

Professor Doutor Edison Nunes.

São Paulo

2018

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Grisi Neto, Afonso. A proteção da dignidade da pessoa humana como causa justificadora

para uma intervenção internacional institucional. 162p. 2018. Tese (Doutorado em

Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, São Paulo,

2018.

Banca Examinadora

______________________________________

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G869

Grisi Neto, Afonso

A proteção da dignidade da pessoa humana como causa

justificadora para uma intervenção internacional institucional. – São

Paulo: s.n., 2018.

162 p. ; 30 cm.

Referências: 152-162

Orientador: Prof. Dr. Edison Nunes

Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,

2018.

1. Direitos humanos. 2. Dignidade da Pessoa Humana. 3.

Intervenção internacional. 4. ONU.

CDD 300

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A meus pais, Salvador Humberto Grisi e Maria Aparecida Pereira Grisi (In

Memoriam), e a minha dileta irmã, Luiza Regina, com todo amor, respeito e gratidão.

A minha querida esposa, Maria Helena, com amor e carinho, pela dedicação

extrema e pela abnegação diante das infindáveis horas de estudo roubadas a seu convívio.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Professor Doutor Edison Nunes, pela orientação criteriosa e segura e

pelo permanente estímulo.

Expresso, também, minha gratidão à Katia Cristina da Silva e a Rafael Diego

Garcia, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, pela gentileza e cortesia no trato pessoal.

Agradeço à Miriam da Silva Lima Coelho, da Secretaria de Pós-Graduação da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela afabilidade e presteza no exercício da

função.

Agradeço à Rosana Portela, pelo esmero e pela competência no trabalho de

revisão e formatação.

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“Consideramos estas verdades como evidentes por si: que todos os

homens são criados iguais; que são dotados pelo seu Criador de certos

direitos inalienáveis; que entre esses direitos estão a vida, a liberdade e

a procura da felicidade”.

Thomas Jefferson, Declaração da Independência Americana.

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Grisi Neto, Afonso. A proteção da dignidade da pessoa humana como causa justificadora

para uma intervenção internacional institucional. 162p. 2018. Tese (Doutorado em Ciências

Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, São Paulo, 2018.

RESUMO

Nas duas últimas décadas, vem ganhando vulto a questão dos conflitos internos dos Estados e das

nefastas consequências deles advindas quanto às condições de sobrevivência de suas populações,

trazendo à discussão um tema que de há muito vem merecendo a atenção de estudiosos das Relações

Internacionais e do Direito Internacional e que consiste na busca de um sistema de princípios e normas

destinado a promover, da forma mais ampla possível, a proteção e a defesa da dignidade e dos diretos

da pessoa humana. Associada a essa questão e como seu corolário, tem lugar um dos temas mais

candentes e polêmicos da política e das relações internacionais, que é o da admissibilidade de

intervenções levadas a efeito por Estados e por Organizações Internacionais em Estados nos quais se

verifique situações de flagrante vilipêndio das condições mínimas de dignidade humana. A discussão

em torno de uma intervenção empreendida nas condições antes referidas insere-se em um debate mais

amplo envolvendo duas questões de relevo nas relações internacionais, quais sejam, a soberania do

Estado e a legitimidade das intervenções humanitárias. O conceito clássico de soberania diz que esta

significa o poder absoluto do Estado sobre as pessoas e coisas dentro de seu território e, nesse sentido,

uma intervenção em determinado Estado, ainda que levada a efeito com fins humanitários,

representaria uma afronta a sua soberania. Nas duas últimas décadas, no entanto, com a proliferação

dos conflitos internos em diversos Estados, passou-se a discutir se o Estado, em nome de sua

soberania, tinha o direito de infligir sofrimento e, em muitos casos, até de matar sua população. Em

2001, a Organização das Nações Unidas (ONU), após o estudo de uma comissão especializada, lança a

doutrina da “Responsabilidade de Proteger”. Segundo essa doutrina, compete ao Estado dar proteção e

assistência a sua população e se, de algum modo, aquele não cumprir com esta obrigação ou não tiver

condições de fazê-lo, a comunidade internacional suprirá essa deficiência do Estado, intervindo neste

para o fim de reorganizá-lo, devolvendo a paz e a estabilidade a sua população. De acordo com a

doutrina da “Responsabilidade de Proteger”, a soberania do Estado, antes entendida como um

“direito” do Estado, passa a ser uma “responsabilidade” deste de proteger sua população. Como se vê,

a doutrina da “Responsabilidade de Proteger” visa a um duplo objetivo: 1) confere a responsabilidade

primeira de proteger sua população ao respectivo Estado; 2) permite, subsidiariamente, a intervenção

por parte da ONU nesse Estado, como instituição representativa da comunidade internacional. A

aludida doutrina vem corroborar dispositivo da Carta da ONU, que veda a intervenção levada a efeito

em um Estado, unilateralmente, por outro Estado ou por grupos de Estados, sem mandato daquela

entidade. Portanto, é na acepção de dignidade como essência da pessoa humana, como seu valor

intrínseco, que se desenvolve, no presente trabalho, a ideia de que toda agressão a esse valor

fundamental, seja por parte do próprio Estado, seja por parte de grupos radicais nele estabelecidos,

configura um ilícito internacional. Nesse sentido, a ONU, com todos os seus defeitos e imperfeições,

ainda continua a ser o órgão representativo da comunidade internacional. Desse modo, a doutrina da

“Responsabilidade de Proteger” pode ser considerada um passo significativo na busca de meios e

instrumentos que legitimem e justifiquem as intervenções humanitárias.

Palavras-chave: Direitos humanos; Dignidade da pessoa humana; Intervenção; ONU.

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Grisi Neto, Afonso. The protection of the human person’s dignity as a justifying cause for an

institutional international intervention. 162p. 2018. Thesis (PhD in Social Sciences).

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, São Paulo, 2018.

ABSTRACT

During the last two decades, the matter of States’ internal conflicts has been becoming important as

well as their adverse consequences, which come from the survival conditions of their populations,

bringing the discussion of a theme which, for a long time, has been deserving the attention of

International Relations and International Law scholars and which consists of the pursuit of a system

composed of principles and rules meant to promote, in the broadest way possible, the protection and

defence of dignity and rights of the human person. Associated to this matter and to its corollary, there

is place for one of the most burning and controversial themes of politics and international relations,

which is the admissibility of interventions practiced by States and International Organizations in States

in which situations of flagrant contempt of the minimal conditions of human dignity can be verified.

The discussion around an intervention undertaken on the conditions already mentioned before is

inserted in a broader debate involving two significant issues about international relations, which are

State’s sovereignty and legitimacy of humanitarian interventions. The classical concept of sovereignty

states that it means absolute power of the State over people and things within its territory and, in this

sense, an intervention in a particular State, even if aimed towards humanitarian ends, would represent

an affront to its sovereignty. During the last two decades, however, by the proliferation of internal

conflicts in several States, discussion has arisen on whether the State, in the name of its sovereignty,

had the right to inflict suffering and, in many cases, even to kill its population. In 2001, the United

Nations (UN), upon the study of a specialized commission, released the “Responsibility to Protect”

doctrine. According to this doctrine, the State is responsible for giving protection and assistance to its

population and if, somehow, it does not comply with its obligation or is incapable of doing so, the

international community will supply this State’s deficiency, intervening in order to reorganize it,

restoring peace and stability to its population. According to the “Responsibility to Protect” doctrine,

State’s sovereignty, formerly seen as a State’s “right”, becomes its “responsibility” to protect its

population. As it is seen, the “Responsibility to Protect” doctrine has a double objective: 1) it grants

the first responsibility to protect its population to the respective State; 2) it enables, additionally, the

UN’s intervention in this State, as an institution representing the international community. The alluded

doctrine comes to support a mechanism from the UN’s Letter, which forbids the intervention practiced

in a State, unilaterally, by another State or by groups of States, without a warrant from that entity.

Therefore, it is through the sense of dignity as a human person’s essence, as his or her intrinsic value,

that it is developed, in the present work, the idea that every aggression to this fundamental value,

coming from the own State, coming from radical groups established in it, is framed as an international

illegal act. In this sense, the UN, with all its flaws and imperfections, is still the representative body of

international community. Thus, the “Responsibility to Protect” doctrine can be considered a significant

step towards the search for means and instruments, which legitimize and justify humanitarian

interventions.

Keywords: Human rights, Human person’s dignity, Intervention, UN.

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Grisi Neto, Afonso. La protección de la dignidad de la persona humana como causa

justificadora para una intervención internacional institucional. 162p. 2018. Tesis (Doctorado

en Ciencias Sociales). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, São Paulo,

2018.

RESUMEN

En las dos últimas décadas viene ganando destaque la cuestión de los conflictos internos de los

Estados y de las nefastas consecuencias de ellas derivadas de las condiciones de supervivencia de sus

poblaciones, trayendo a la discusión un tema que desde hace mucho viene mereciendo la atención de

estudiosos de las Relaciones Internacionales y del Estado Derecho Internacional y que consiste en la

búsqueda de un sistema de principios y normas destinado a promover de la forma más amplia posible

la protección y la defensa de la dignidad y de los derechos de la persona humana. Asociada a esa

cuestión y como su corolario, tiene lugar uno de los temas más candentes y polémicos de la política y

de las relaciones internacionales, que es el de la admisibilidad de intervenciones llevadas a cabo por

Estados y por Organizaciones Internacionales en Estados en los que se verifican situaciones de

flagrante vilipendio de las condiciones mínimas de dignidad humana. La discusión en torno a una

intervención emprendida en las condiciones antes mencionadas se inscribe en un debate más amplio

que involucra dos cuestiones de relieve en las relaciones internacionales, cuáles son, la soberanía del

Estado y la legitimidad de las intervenciones humanitarias. El concepto clásico de soberanía dice que

ésta significa el poder absoluto del Estado sobre las personas y cosas dentro de su territorio y, en ese

sentido, una intervención en determinado Estado, aunque llevada a cabo con fines humanitarios,

representaría una afrenta a su soberanía. En las dos últimas décadas, sin embargo, con la proliferación

de los conflictos internos en diversos Estados, se pasó a discutir si el Estado, en nombre de su

soberanía, tenía el derecho de infligir sufrimiento y, en muchos casos, hasta de matar a su población.

En 2001, la Organización de las Naciones Unidas (ONU), tras el estudio de una comisión

especializada, lanza la doctrina de la "Responsabilidad de Proteger". Según esta doctrina, corresponde

al Estado dar protección y asistencia a su población y si, de algún modo, aquel no cumple con esta

obligación o no tiene condiciones de hacerlo, la comunidad internacional suplirá esa deficiencia del

Estado, interviniendo en éste para el fin de reorganizarlo, devolviendo la paz y la estabilidad a su

población. De acuerdo con la doctrina de la "Responsabilidad de Proteger", la soberanía del Estado,

antes entendida como un "derecho" del Estado, pasa a ser una "responsabilidad" de éste de proteger a

su población. Como se ve, la doctrina de la "Responsabilidad de Proteger" apunta a un doble objetivo.

1) confiere la responsabilidad primera de proteger a su población al respectivo Estado; 2) permite,

subsidiariamente, la intervención por parte de la ONU en ese Estado, como institución representativa

de la comunidad internacional. La aludida doctrina viene a corroborar dispositivo de la Carta de la

ONU, que veda la intervención llevada a cabo en un Estado, unilateralmente, por otro Estado o por

grupos de Estados, sin mandato de aquella entidad. Por lo tanto, es en el sentido de dignidad como

esencia de la persona humana, como su valor intrínseco, que se desarrolla, en el presente trabajo, la

idea de que toda agresión a ese valor fundamental, sea por parte del propio Estado, sea por parte de

grupos radicales en él establecidos, configura un ilícito internacional. En ese sentido, la ONU, con

todos sus defectos e imperfecciones, sigue siendo el órgano representativo de la comunidad

internacional. De este modo, la doctrina de la "Responsabilidad de Proteger" puede considerarse un

paso significativo en la búsqueda de medios e instrumentos que legitimen y justifiquen las

intervenciones humanitarias.

Palabras-clave: Derechos humanos; Dignidad de la persona humana; Intervención; ONU.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 13

CAPÍTULO 1 - OS DIREITOS HUMANOS COMO COROLÁRIO DA DIGNIDADE

HUMANA. ALCANCE E SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO “DIREITOS

HUMANOS” ...................................................................................................................... 18

I. 1 A Dignidade da Pessoa Humana como pressuposto do reconhecimento dos direitos

humanos ........................................................................................................................... 18

1. 2 O caráter polissêmico da locução “Direitos Humanos” ......................................... 22

1. 3 Universalismo e Relativismo – um debate cultural acerca do significado dos

direitos humanos .............................................................................................................. 25

CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTO TEÓRICO DA DIGNIDADE DA PESSOA

HUMANA ........................................................................................................................... 31

2.1 O período axial (séculos VIII a II a.C.): o ser humano como ser dotado de liberdade

e razão e a afirmação da igualdade entre os homens ....................................................... 31

2. 2 Aristóteles – o Ser enquanto Ser .............................................................................. 33

2.3 O homem em sua dimensão de “pessoa” ................................................................... 37

2.3.1 O Estoicismo ...................................................................................................... 37

2.3.2 O Cristianismo .................................................................................................... 40

2.3.3 Santo Tomás de Aquino .................................................................................... 43

2.4 O fundamento da dignidade da pessoa humana......................................................... 46

2.4.1 O Discurso Sobre a Dignidade do Homem, de Giovanni Pico Della Mirandola 46

2.4.2 O pensamento dos teólogos espanhóis Francisco de Vitoria e Bartolomé de Las

Casas ............................................................................................................................ 48

2.4.3 Kant: O homem considerado como fim em si mesmo e a consequente noção de

dignidade humana ........................................................................................................ 52

2.4.4 Uma abordagem moderna a respeito do fundamento dos direitos humanos ...... 55

2.4.4.1 Hannah Arendt ........................................................................................ 55

2.4.4.2 Mireille Delmas-Marty ........................................................................... 57

CAPÍTULO 3 - A SOBERANIA DO ESTADO EM FACE DA VIOLAÇÃO DA

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ........................................................................... 62

3.1 A evolução histórica do conceito de soberania ......................................................... 62

3.1.1 Da “autarquia” da Cidade-Estado ao conceito de soberania de Jean Bodin ....... 62

3.2 Os Acordos de Westfália: o surgimento de Estados soberanos e

iguais perante a lei ........................................................................................................... 69

3.3 O poder do Estado – a questão da titularidade da soberania ..................................... 72

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3.4 A adequação do conceito clássico de soberania às novas exigências da ordem

internacional contemporânea – a questão da dignidade da pessoa humana .................... 88

CAPÍTULO 4 - INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA: A INFINDÁVEL

CONTROVÉRSIA ACERCA DA DELIMITAÇÃO DA AÇÃO INTERVENTIVA . 94

4. 1 Assistência humanitária: a constituição de um direito internacional humanitário

como instrumento de proteção à pessoa humana ............................................................ 94

4. 2 A discussão em torno da justeza e da legitimidade da intervenção humanitária . 101

4.3 A Responsabilidade de Proteger: uma possível tentativa de se equacionar o problema

da intervenção por humanidade ..................................................................................... 113

CAPÍTULO 5 - A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO

JUSTIFICATIVA PARA UMA INTERVENÇÃO INTERNACIONAL

INSTITUCIONAL ........................................................................................................... 125

5. 1 Carta das Nações Unidas: o princípio da abstenção do uso da força pelos Estados e

as exceções a tal princípio ............................................................................................. 125

5. 2 A controvérsia a respeito da intervenção da ONU nos conflitos que envolvem

situações de violação da dignidade da pessoa humana.................................................. 131

5. 3 A proteção da dignidade da pessoa humana como justificativa para uma

intervenção internacional institucional .......................................................................... 138

CONCLUSÃO .................................................................................................................. 149

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 152

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INTRODUÇÃO

Inicia-se o século XXI com profundas transformações da ordem internacional,

descortinando um quadro sombrio de incertezas e apreensões. Hoje, a guerra entre Estados

parece não constituir objeto de preocupação maior por parte da comunidade internacional, a

qual dirige sua atenção mais para os conflitos que ocorrem dentro dos territórios dos Estados e

que revelam as mais brutais e ignominiosas violações da dignidade da pessoa humana.

Contudo, a aflição e o sofrimento do ser humano sempre estiveram presentes em um contexto

de guerras entre Estados, o que levou ao surgimento de organizações de caráter humanitário

destinadas a prestar auxílio aos enfermos e feridos que padeciam nesses conflitos.

As atrocidades cometidas contra a pessoa humana atingiram níveis sem

precedentes durante a Segunda Guerra Mundial. Imaginava-se que a Humanidade estaria

despertando de um pesadelo representado pelo flagelo de duas guerras mundiais, agora com

esperanças renovadas de que a paz e a estabilidade internacionais se impusessem diante do

poder desmedido e da cobiça dos Estados. A Organização das Nações Unidas (ONU)

representou um passo importante na tentativa de se disciplinar as relações entre os Estados em

bases legais de modo a se conjurar o espectro da guerra. Assistia-se, então, ao término de um

ciclo e ao início de uma nova era de reorganização do sistema internacional, o qual passava a

constituir um conjunto de normas destinado a reger a conduta dos Estados.

O período que se sucedeu ao término da Segunda Guerra Mundial, conhecido

como Guerra Fria, trouxe significantes transformações nas relações internacionais, pois, a

liderança da política internacional passou a ser disputada por duas potências nucleares

emergentes – os Estados Unidos e a União Soviética (URSS). Paralelamente à bipolaridade da

Guerra Fria, que exibia a potencialidade de um conflito nuclear entre os referidos países,

começava a articulação das nações do Terceiro Mundo, conhecida como a polaridade Norte-

Sul e, em grande parte desses países da África e da Ásia, afloravam os movimentos de

libertação nacional contra o colonialismo e pela independência. Entretanto, pelo fato de a

política internacional, no período da Guerra Fria, ser dominada pelas duas grandes potências,

esses conflitos, que eclodiam em diversos pontos do mundo, acabavam sendo absorvidos pela

ameaça maior de uma iminente guerra nuclear, passando a ter, assim, uma importância

secundária no plano internacional.

A queda do Muro de Berlim, no final da década de 1980, constituiu um ponto de

inflexão nas relações internacionais, alterando sobremaneira a configuração do mundo a partir

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de uma lógica de fragmentação. A desintegração da URSS dá lugar ao restabelecimento da

emancipação de diversas repúblicas que até então estavam subjugadas pelo império soviético

e que agora retomavam a sua condição de Estados livres e independentes, em um processo de

transição marcado por uma relativa tranquilidade. Esse sentimento de revolta por

emancipação e por maior liberdade iria contribuir decisivamente para o afloramento dos

nacionalismos e dos conflitos étnicos na então Iugoslávia, que levariam à extinção deste

Estado e ao surgimento de outros Estados independentes. Importa notar que o episódio da

fragmentação da Iugoslávia assume importância singular porque representou uma das mais

execráveis e abjetas demonstrações de vilipêndio à dignidade da pessoa humana depois dos

crimes hediondos perpetrados pelo Nazismo.

Na década de 1990, a irrupção de conflitos entre governos e grupos étnicos e

tribais passou a ser uma constante em diversos países da África, notadamente na Somália, em

Ruanda, em Serra Leoa e na República Democrática do Congo. Do mesmo modo, no Oriente

Médio, o eterno conflito israelo-palestino, sem qualquer perspectiva de solução, a guerra na

Síria, com toda sua complexidade, envolvendo governo e uma miríade de facções sectárias

radicais, além da presença estrangeira, com alguns Estados a dar respaldo ao governo e

outros, a apoiar os grupos rebeldes. Em que pese o esforço empreendido pelas organizações

de fins humanitários, bem como pelas Missões de Paz da ONU no sentido de prestar

assistência às populações envolvidas em conflitos e de criar meios e instrumentos que

possibilitem a reconstrução dos países, fato é que sem o empenho efetivo da comunidade

internacional organizada, tais medidas acabam se revelando insuficientes.

Por outro lado, a proliferação de crises humanitárias em diversas partes do mundo,

sobretudo a partir da década de 1990, levou estudiosos ingleses e franceses a formular

doutrinas sobre a possibilidade de intervenção de Estados em conflitos no interior de outros

Estados nos quais se verificasse violações de direitos humanos. Assim, a doutrina da

intervenção humanitária passou a ser defendida pelos Estados ocidentais em duas situações:

quando houvesse a simples ameaça de desrespeito aos direitos humanos ou diante de uma

situação concreta de violação desses direitos. Não tardou para que tal doutrina recebesse

severas críticas por parte de analistas internacionais no sentido de que tal concepção

significava apenas um pretexto para que, sob a roupagem do intento nobre da prestação de

ajuda humanitária, as potências ocidentais passassem a promover, de modo contínuo e

abusivo, intervenções militares em outros Estados com o propósito de salvaguardar seus

próprios interesses.

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15

O episódio da intervenção estadunidense no Iraque em 2003 ilustrou bem a

situação em que um Estado, a partir de uma avaliação subjetiva de que é iminente uma

ameaça aos direitos humanos em outro Estado, antecipa-se e leva a efeito uma intervenção

militar neste Estado, a chamada “intervenção preventiva”, cunhada pelo então Presidente

americano George W. Bush. Este e outros casos de intervenção armada para fins de se dar

proteção e assistência aos direitos humanos veio suscitar uma controvérsia, que ainda

subsiste, sobre a existência de um direito ou de um dever de intervenção, por parte de um

Estado, em outros Estados, sempre que se verifique nestes flagrantes violações da dignidade e

dos direitos da pessoa humana.

Embora os Estados poderosos advoguem a tese de que, na hipótese acima descrita,

há um dever de intervenção unilateral em outros Estados, vai se delineando, em grande parte

da doutrina de Relações Internacionais e de Direito Internacional, o entendimento de que,

diante de situações claras e inequívocas de afronta aos direitos humanos, cabe somente à

comunidade internacional organizada, por meio da ONU, definir em que situações, e segundo

quais limites, pode ter lugar uma intervenção internacional para coibir a violência contra a

pessoa humana.

O móvel que se teve em vista ao se desenvolver o presente trabalho foi o de levar

em consideração as situações objetivas que revelam desrespeito e afronta à dignidade da

pessoa humana e em que medida poder-se-ia conceber, tendo em vista a organização

institucional da comunidade internacional, a possibilidade de uma intervenção coletiva de

natureza humanitária. Para lograr esse propósito, o trabalho foi dividido da seguinte forma

descrita nos próximos parágrafos.

No Capítulo 1, será analisada a afinidade existente entre os conceitos de dignidade

humana e de direitos humanos, ressaltando-se, no entanto, que a dignidade humana,

representando a qualidade inerente ao ser humano, deve ser considerada pressuposto dos

direitos de que a pessoa humana é titular e que se destinam a concretizar o atributo daquela

dignidade. Em seguida, considerar-se-á a locução “direitos humanos” e a diversidade de

significados que a mesma encerra. Por fim, será considerado o debate cultural travado entre as

correntes do Universalismo e do Relativismo, aquela defendendo a tese de que os direitos

humanos têm caráter universal, e esta, sustentando que os direitos humanos são considerados

de forma diversa segundo circunstâncias históricas, culturais, sociais e outras.

O Capítulo 2 será dedicado ao estudo do fundamento teórico da proteção da

dignidade humana, iniciando pelo período axial da História, em que o ser humano era dotado

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de liberdade e razão. Na Antiguidade Grega, inicia-se por Aristóteles, e o conceito do Ser

enquanto Ser, a partir da noção de substância como qualidade intrínseca ao ser. Passa-se,

então, à consideração do homem em sua dimensão de “pessoa”, reportando-se às concepções

do Estoicismo, do Cristianismo e do representante máximo da “Escolástica”, Santo Tomás de

Aquino. O próximo passo é a busca do fundamento da dignidade da pessoa humana,

iniciando-se pela análise de alguns aspectos das formulações do pensador renascentista

Giovanni Pico della Mirandola, examinando-se, em seguida, o pensamento dos teólogos

espanhóis Francisco de Vitoria e Bartolomé de Las Casas. Mais adiante, será objeto de análise

o pensamento de Kant, segundo o qual o homem é considerado em si mesmo e dotado de

dignidade. Concluindo o Capítulo, reporta-se a ao fundamento da dignidade da pessoa

humana a partir de uma abordagem mais moderna, ressaltando-se alguns aspectos do

pensamento de Hannah Arendt e de Mireille Delmas-Marty.

A relação entre soberania do Estado e a dignidade da pessoa humana será objeto

de estudo no Capítulo 3. Inicia-se pela evolução histórica do conceito de soberania, desde a

autarquia da Cidade-Estado grega até se chegar ao conceito formulado por Jean Bodin, o qual

concebe a soberania como poder absoluto e incontrastável do Estado. Em seguida, serão

examinados os desdobramentos da Paz de Westfália para as relações internacionais com o

surgimento de Estados soberanos e a consequente noção exercício de poder do Estado dentro

de um território. Mais adiante, ocupar-se-á do estudo da titularidade da soberania, desde as

concepções do direito divino dos reis, passando pelas soberanias popular e da nação, até se

chegar à titularidade da soberania pelo Estado. O último tópico deste Capítulo será dedicado à

análise da soberania em um contexto de proteção à dignidade da pessoa humana.

No Capítulo 4, analisar-se-á a controvérsia em torno da intervenção humanitária,

bem como dos limites a ela impostos, iniciando-se pelo estudo de alguns aspectos essenciais

do Direito Internacional Humanitário como instrumento de proteção à pessoa humana, para,

em seguida, considerar-se a discussão em torno da justeza da intervenção humanitária.

Concluindo este Capítulo, tratar-se-á da Responsabilidade de Proteger, doutrina concebida

pela ONU que atribui a responsabilidade primária do Estado em proteger sua população,

reconhecendo uma responsabilidade subsidiária da comunidade internacional na hipótese de o

Estado não cumprir com seu dever de proteção.

O Capítulo 5 traz o objeto central do presente trabalho e que consiste na crença de

que a proteção da dignidade da pessoa humana pode constituir causa justificadora para uma

intervenção internacional institucional. Considera-se, inicialmente o princípio da abstenção do

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uso da força pelos Estados e as exceções a tal princípio estabelecidas pela Carta das Nações

Unidas. Em seguida, partir-se-á de uma análise sobre a atuação da ONU em alguns casos de

conflitos internacionais envolvendo violações da dignidade humana, alternando aquela

entidade em momentos de eficiência com momentos de ambiguidade. Na conclusão do

Capítulo, recorre-se à Teoria da Instituição, de Maurice Hauriou, o qual concebe a instituição

como uma ideia de obra ou de empresa, que se realiza e dura juridicamente em um ambiente

social. Transplantando-se essa concepção para o meio internacional, ter-se-ia a organização

internacional, dotada de órgãos e funções, como a concretização de uma conjugação de ideias

que nascem no seio da sociedade internacional e se perpetuam no meio social. É por meio

dessa organização institucional da sociedade que se poderia admitir uma intervenção

internacional para proteção da dignidade e dos direitos da pessoa humana.

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CAPÍTULO 1 - OS DIREITOS HUMANOS COMO COROLÁRIO DA

DIGNIDADE HUMANA. ALCANCE E SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO

“DIREITOS HUMANOS”

1.1 A Dignidade da Pessoa Humana como pressuposto do reconhecimento dos direitos

humanos

A expressão “direitos humanos”, na atualidade, reveste-se de universalidade e

abrangência e é o resultado de uma longa evolução histórica em que se sucederam diversas

formulações teóricas e filosóficas, as quais buscaram estabelecer o fundamento de tais

direitos. Assim, diante do caráter polissêmico de tal expressão, uma variada gama de

conceitos vem procurando explicar aqueles direitos que, em essência, emanam da própria

personalidade do homem e, como tal, requerem a mais ampla proteção. Contudo, quaisquer

considerações a respeito dos direitos humanos ao longo de toda sua evolução histórica

parecem pressupor uma análise mais detida do conceito de “dignidade humana”, que

constitui, a nosso ver, o prius lógico do que se passou a designar como “direitos da pessoa

humana”.

No processo de evolução do homem, durante milhares de anos, o Outro sempre foi

visto como inimigo por antecipação, uma ameaça que deveria ser neutralizada, porque

manifestava uma linguagem ininteligível, costumes exóticos, hábitos esdrúxulos, revelando,

em relação aos olhos do povo que o estava avaliando, diferenças substanciais, daí a

impossibilidade de se reconhecer a esse Outro o estatuto da igualdade. Era um ser distinto e,

dessa forma, passível de tratamento violento ou mesmo cruel, sendo destituído de suas posses,

família e títulos e submetido a condições infames de vida. Esse é o resumo da racionalização

que está por trás das justificativas dos preconceitos que sustentaram as várias formas de

discriminação mesmo de ações hostis de uns povos contra outros, conduzindo ao escravismo,

ao apartheid e às limpezas “étnicas” por meio de genocídios, confinamentos e criação

preventiva de barreiras à imigração. O elemento comum é sempre a visão de inferioridade, da

condição subumana do Outro (KEINERT, 2012, p. 340-347).

A ideia de que o ser humano é portador de certos direitos inalienáveis e

imprescritíveis, inerentes à sua própria personalidade, está intimamente ligada à noção de

dignidade humana. A dignidade da pessoa humana encontra suas raízes no pensamento

cristão, segundo o qual, criada à imagem e semelhança de Deus, a pessoa é dotada de

atributos próprios e intrínsecos, que a tornam especial e detentora de dignidade. Nesse

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sentido, a contribuição mais significativa do Cristianismo talvez tenha sido a de ter dado ao

homem um valor individual e único.

Cleber Francisco Alves, ao dedicar atenção especial à concepção da promoção e

defesa da dignidade da pessoa humana, observa que as formulações doutrinárias nesse campo

inspiram até os dias de hoje os passos da Igreja Católica, sendo possível identificar, na

doutrina social da Igreja, vários contornos da noção de dignidade humana, sucintamente

expostos pelo autor da seguinte forma: a) a pessoa humana é dotada de uma dignidade excelsa

e sublime por ter sido criada à imagem e semelhança de Deus, conforme ensinamentos das

Sagradas Escrituras; b) há que se buscar ao respeito à dignidade da pessoa humana e dos

direitos que lhe são inerentes, direitos esses considerados invioláveis, anteriores e superiores a

qualquer deliberação ou pacto respaldado apenas na vontade humana, individual ou coletivo;

c) dentre os direitos e princípios que decorrem da excelsa dignidade humana, enunciam-se:

direito à vida, à integridade física e psíquica, prioridade do trabalho e do trabalhador sobre o

lucro e sobre o capital, direito de participação efetiva na vida comunitária, econômica, política

e cultural, direito de professar uma religião, além de outros (ALVES, 2001, p. 63-65).

Releva notar que até o advento do cristianismo, não existia nem em grego nem em

latim uma palavra para exprimir o conceito de pessoa, porque a cultura clássica não

reconhecia valor absoluto ao indivíduo enquanto tal e fazia depender o seu valor

essencialmente do grupo, do patrimônio e da raça (MOURA, 2002, p. 77).

Quadra histórica de relevo na construção e afirmação do valor da pessoa humana

foi o Iluminismo do século XVIII. Para essa corrente de pensamento, os direitos individuais

do homem, principalmente os referentes à sua liberdade e à limitação do poder público,

passam a ser indispensáveis para o desenvolvimento da dignidade humana nesse período.

Assim, os seres humanos, dotados de razão, tornaram-se centro das ideias da época,

afirmando sua posição como sujeitos de direitos que devem ser preservados pelo Estado.

Reconhecia-se, dessa forma, que os indivíduos eram detentores de certos direitos em face do

Estado, conservando-se uma área de autonomia individual na qual o Estado não poderia

intervir, rompendo com a ideia de poder ilimitado do soberano, característica das monarquias

absolutistas (SARLET, 2001, p. 50). Entretanto, o modelo concebido pelo Estado Liberal foi,

paulatinamente, dando mostras de sua debilidade, visto que a industrialização gerou um

quadro crítico de miséria humana e de exploração da mão de obra, de sorte que a abstenção do

Estado em relação às atividades econômicas, a liberdade de comércio, a livre concorrência,

entre outros valores, não conduziram, necessariamente, à garantia da promoção da dignidade

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humana. Era necessário investir no bem-estar do indivíduo, ou seja, o Estado não deveria

apenas se abster, mas também promover a dignidade através de prestações positivas ligadas à

saúde, educação, trabalho, etc. Nascia O Estado Social (WelfareState) (GUERRA, 2013, p.

67-68).

Vale lembrar que o princípio da dignidade da pessoa humana adquiriu contornos

mais universais com o advento da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela

Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, destacando-se de seu

Preâmbulo os seguintes excertos:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os

membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o

fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...]. Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé

nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa

humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher, e que decidiram

promover o progresso social e melhores condições de vida em uma

liberdade mais ampla; [...]. (RANGEL, 2010, p.411)

Na sequência, proclama no art. 1º: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em

dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às

outras com espírito de fraternidade” (RANGEL, 2010, p. 411).

Observa Fábio Konder Comparato que a dignidade da pessoa não consiste apenas

no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo,

como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela

resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de

autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita (COMPARATO,

2003, p. 21).

Ingo Wolfgang Sarlet propõe a seguinte conceituação para a dignidade da pessoa

humana:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de

cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por

parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo

de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra e

todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe

garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de

propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da

própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

(SARLET, 2001, p. 60)

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Luiz Fernando Barzotto reflete, com lucidez e discernimento, a respeito da relação

que se estabelece entre a dignidade, de que é portador o ser humano, e a necessidade do

reconhecimento de tal atributo, ponderando:

Reconhecer o ser humano como pessoa é o desafio ético de civilizações

(escravidão, colonialismo, imperialismo), povos (estrangeiros, minorias,

hierarquia social) e pessoas (preconceito, discriminação, indiferença).

Reconhecer o outro como pessoa é afirmar o valor ou a dignidade inerente à

condição de pessoa [...]. A dignidade da pessoa humana expressa a exigência

do reconhecimento de todo ser humano como pessoa. Dizer, portanto, que

uma conduta ou situação viola a dignidade da pessoa humana significa que

nesta conduta ou situação o ser humano não foi reconhecido como pessoa

[...]. A dignidade de alguém impõe determinado comportamento àqueles que

se defrontam com ele. O portador da dignidade ‘merece’ (é digno de) ser

tratado de uma determinada maneira [...]. A dignidade é a manifestação

vinculante de uma identidade, é a consideração da identidade como dotada

de valor e, portanto, regulativa do comportamento [...]. O reconhecimento

consiste na captação do valor positivo de uma identidade e, portanto, é um

conceito correlativo ao de dignidade. Toda dignidade exige reconhecimento

e todo reconhecimento tem por objeto a dignidade. O reconhecimento ocorre

quando alguém manifesta, por sua atitude, o valor que percebe na identidade

de outrem. (BARZOTTO, 2010, p. 39-67)

Recorrendo a uma explicação de caráter metafísico do reconhecimento da

dignidade da pessoa humana, sustenta o mesmo autor:

A dignidade da pessoa humana exige o reconhecimento do ser humano como

pessoa, isto é, como mistério, absoluto e sagrado, transcendente à cognição,

à deliberação e à instrumentalização [...]. Somente no âmbito em que se faz a

experiência do mistério, do absoluto e do sagrado, a saber, no âmbito

religioso, tem-se um tipo de experiência suficientemente radical que permite

traçar uma analogia adequada com a ‘dignidade da pessoa humana’.

(BARZOTTO, 2010, p. 65)

Releva notar que a tomada de consciência em torno da valorização das condições

dignas do ser humano foi consequência da constatação de uma realidade totalmente diversa,

como o comprovaram as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. A partir

daí, há uma reorientação das políticas internacionais, que se expressa na profusão de tratados

internacionais e contribuem para a constituição de um Direito Internacional dos Direitos

Humanos, além do advento da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse

sentido, observa Eduardo Bittar que a noção de dignidade pode ser vista, nos tempos pós-

modernos, como anúncio de uma identidade, ou de um termo comum, entre as diversas

ideologias e linhas de pensamento contemporâneo. Acrescenta, ainda, o autor:

A concepção que se propõe para a importância da expressão dignidade da

pessoa humana, sobretudo na pós-modernidade, passa por uma compreensão

não-unilateral das culturas e muito menos centrista-ocidental das culturas,

mas pela visão de que a afirmação da dignidade da pessoa humana, em

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territórios com amplas distinções culturais regionais, como é o caso do

Brasil, ou mesmo projetando-se para fora do território do Estado, para

alcançar o plano das relações entre os povos, passa por um profundo respeito

da diferença, bem como pela afirmação da multiculturalidade e da

relatividade das concepções de dignidade, [...]. Uma concepção de

dignidade cultural da pessoa humana (versão pós-moderna da idéia de

dignidade) está em fermentação em pleno bojo dos conflitos mais cruentos

(atentados de 11 de setembro, invasão do Iraque, atentados de Londres) para

a afirmação da lógica da dignidade universal da pessoa humana (versão

moderna da idéia de dignidade). (BITTAR, 2010, p. 20)

De todo modo, é de se reconhecer que a expressão “dignidade da pessoa humana”,

considerando-se as suas complexidade e diversidade, não é um dado, e sim um conceito que

vem sendo construído e ainda está a demandar estudo acurado a fim de se lhe conferir

contornos mais precisos. Contudo, tendo-se em vista o escopo do presente trabalho, que

consiste na crença de que a proteção da dignidade da pessoa humana pode ser considerada

causa justificadora para a intervenção internacional institucional, procuramos traçar, em

linhas gerais, os elementos essenciais visando a uma conceituação básica de “dignidade

humana”, que, a nosso ver, constitui o pressuposto necessário da noção de “direitos

humanos”, sobre a qual passaremos a discorrer no próximo tópico.

1.2 O caráter polissêmico da locução “Direitos Humanos”

Sempre que nos deparamos com a necessidade de buscar o conceito de direitos

humanos e de seus elementos constitutivos essenciais, constatamos que essa será uma tarefa

árdua e de difícil execução, em virtude do fato de que essa categoria de direitos compreende

uma imensa gama de acepções e significados que foram se formando ao longo dos tempos,

refletindo, muitas vezes, o contexto histórico, social e político nos quais esses direitos

estavam inseridos.

Reportando-se à dificuldade de se definir, com coerência, a base conceitual dos

“direitos humanos”, Vladimir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano ressaltam que

tal expressão encerra um significado tautológico que concretiza o conteúdo essencial dos

direitos próprios da dignidade da pessoa. E prosseguem os autores:

O fato é que a formulação dos direitos humanos obedece às nítidas linhas

históricas do pensamento, expressando valores que se encontram acima do

ordenamento jurídico. Com efeito, se a expressão ‘direitos humanos’

conforma uma ideologia que surgiu em dado momento histórico, vinculada

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aos interesses de uma classe particular, isso não implica negar-lhe consenso

e validade, para que cada vez mais supere suas determinações históricas,

espraiando-se num universo cada vez mais amplo de pessoas e direitos.

(SILVEIRA, 2010, p. 205)

Evidentemente, o que se pretende, neste capítulo, é apenas apresentar alguns

conceitos relativos aos direitos humanos, estabelecendo-se os pontos de contato e

dessemelhanças com outros conceitos, visando a uma compreensão mais clara do que

constitui o tema central do presente trabalho.

Observa Sidney Guerra que:

Se por um lado, a expressão “direitos humanos” chega ao século XX com

grande força e vitalidade, sendo largamente utilizada em manifestações da

sociedade civil, na política, para pleitear direitos, enfim, nas mais distintas

reivindicações, por outro lado, em razão do uso excessivo e indiscriminado

dessa expressão, ela acaba por incorrer em certa vagueza e imprecisão

(GUERRA, 2013, p. 31).

É certo que há ambiguidades conceituais e terminológicas em torno da expressão

“direitos humanos”, notadamente quando se procura estabelecer certa associação a outros

conceitos. José Luiz Rey Pérez, reportando-se a essas expressões que, frequentemente, são

utilizadas como assemelhadas aos direitos humanos, observa que tais expressões estão

insertas em determinado contexto histórico e, por vezes, indicam uma tomada de posição

quanto ao fundamento dos direitos humanos. Não obstante a doutrina reportar-se à

diversidade de termos e expressões que, de certo modo, apresentam alguma afinidade com os

direitos humanos, é certo que não constitui escopo do presente trabalho aprofundar o estudo

desses institutos, o que demandaria pesquisa específica e extensa. Entretanto, parece

oportuno tecer algumas considerações a respeito de dois conceitos que mais frequentemente

são citados pelos autores no que se refere às semelhanças e distinções com os direitos

humanos, vale dizer, os conceitos de direito natural e de direito positivo.

Alguns autores consideram como antecedente próximo dos direitos humanos o

direito natural, concebido pelo Iluminismo e pelo Jusnaturalismo, movimentos intelectuais

que floresceram na Europa entre os séculos XVII e XVIII. Segundo tais correntes, o ser

humano tem certos direitos pelos simples fato de ser “pessoa”. Esses direitos derivam da

própria personalidade do indivíduo e se põem perante o Estado antes mesmo do

reconhecimento por parte deste. São direitos inalienáveis e imprescritíveis, pondera Enrique

Lewandowski, decorrentes da própria natureza humana e existentes independentemente do

Estado. Passou-se a entender, desde então, que tais direitos, dentre os quais se destacam o

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direito à vida e à liberdade, não podem ser, em hipótese alguma, vulnerados por governantes

ou quaisquer indivíduos (LEWANDOWSKI, 1984).

Cumpre ressaltar, desde logo, que quaisquer considerações a respeito do direito

natural nos conduzem a uma incursão, ainda que breve, no campo do Direito, notadamente no

que respeita à distinção entre direito natural e direito positivo. A noção básica que se tem do

direito positivo é que se trata de um direito posto, instituído pelo Estado. Paulo Dourado de

Gusmão, realizando instigante análise acerca do direito positivo, reporta-se ao fato de essa

categoria ter surgido à época do Jusnaturalismo, em que o direito natural se opunha ao direito

positivo, sustentando aquele autor que o direito natural nada mais é do que uma aspiração, um

ideal jurídico, daí a oposição entre direito positivo e direito natural, segundo Gusmão, ser

destituída de sentido. Reconhecendo, no entanto, que essa adjetivação tornou-se tradicional na

doutrina, Gusmão formula o seguinte conceito de direito positivo: “É o direito efetivamente

observado em uma comunidade [...] o direito efetivamente aplicado pelas autoridades do

Estado e pelas organizações internacionais [...] é o direito histórica e objetivamente

estabelecido, efetivamente observado, passível de ser imposto coercitivamente” (GUSMÃO,

2000, p. 49).

Referindo-se ao fato de a dicotomia direito positivo-direito natural inserir-se no

contexto histórico-filosófico do racionalismo jurídico do século XVIII, em que o saber

jurídico era concebido como uma sistematização completa do Direito a partir de bases

racionais, observa Tercio Sampaio Ferraz Junior que o direito natural, uma disciplina até

então moral, ganhou certa autonomia e transformou-se numa disciplina jurídica. Essa

autonomia do direito natural em face da moral e sua superioridade diante do direito positivo,

sustenta Ferraz Junior, prevaleceu até as primeiras décadas do século XIX, seguindo-se um

período de declínio para, no final daquele século, reaparecer e readquirir sua importância.

Contudo, prossegue o autor, a dicotomia direito positivo-direito natural, como técnica para a

descrição e classificação de situações jurídicas normativamente decidíveis, perdeu força, e a

razão para o enfraquecimento dessa dicotomia pode ser buscada, observa Ferraz Junior, na

promulgação constitucional dos direitos fundamentais, de sorte que o estabelecimento do

direito natural na forma de normas postas na Constituição, acabou por positivá-lo (FERRAZ

JUNIOR, 2013).

Quanto à relação que se estabelece entre os conceitos de direitos humanos e

direitos fundamentais, convém ressaltar que, conquanto haja uma afinidade entre ambos,

apresentam os mesmos caracteres distintivos bem nítidos. Na mesma linha do raciocínio

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desenvolvido por Ferraz Junior, Blanca Martinez de Vallejo Fuster, citada por Alberto

Nogueira, reserva a fórmula “direitos humanos” para aqueles positivados em nível

internacional (exigências básicas relacionadas à igualdade, liberdade da pessoa, que não

haviam alcançado um estatuto jurídico positivo) e “direitos fundamentais” para os direitos

humanos positivados internamente, isto é, garantidos pelos ordenamentos jurídico-positivos

estatais (FUSTER apud NOGUEIRA, 1997).

No campo da Ciência do Direito, cabe destacar a posição de José Afonso da Silva,

o qual entende que a expressão mais adequada seria “direitos fundamentais do homem”, pois:

Além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e

informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada

para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e

instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre

e igual para todas as pessoas. No qualitativo fundamentais acha-se a

indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa

humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive;

fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não

apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.

(SILVA, 1996, p. 176)

Tendo em vista que não constitui objeto do presente trabalho a análise

pormenorizada do conceito e significado dos direitos humanos, buscou-se estabelecer, neste

tópico, apenas uma noção básica desses direitos, comparando-a com outros conceitos que, de

alguma forma, apresentam certa afinidade com o tema geral consistente na constatação da

existência de uma categoria específica de direitos inerentes à própria natureza do ser humano.

Nesse sentido, convém reproduzir o entendimento de Sidney Guerra adiante exposto: “De

toda sorte, os direitos da pessoa humana (consagrados no plano internacional e interno) têm

por escopo resguardar a dignidade e condições de vida minimamente adequadas do indivíduo,

bem como proibir excessos que porventura sejam cometidos por parte do Estado ou de

particulares” (GUERRA, 2013, p. 41).

1.3 Universalismo e Relativismo – um debate cultural acerca do significado dos

direitos humanos

Com o recrudescimento da violência em diversos pontos do globo, avulta o

discurso dos direitos humanos e, consequentemente, a necessidade de suas urgentes

regulamentação e proteção. Do ponto de vista jurídico, essa categoria de direitos conta com

uma quantidade razoável de instrumentos internacionais de proteção, mas a dúvida que surge

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é até que ponto poder-se-ia assegurar a implementação de medidas reguladoras e protetivas a

esses direitos, se ainda persiste a assimetria de poder entre os Estados, os quais, a partir de

uma avaliação subjetiva e segundo seus interesses, continuam a definir quais os conflitos em

que se verificam situações de desrespeito aos direitos humanos e que tornariam possível uma

intervenção de caráter humanitário.

Com efeito, do ponto de vista da normativa internacional, os direitos humanos

foram consagrados como valor universal em diversos documentos internacionais, v. g. , a

Carta das Nações Unidas de 1945, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a

Conferência Mundial de Viena sobre os Direitos Humanos de 1993, entre outros. Contudo, a

despeito de uma grande quantidade de tratados voltados ao tema dos direitos humanos, a

divisão do mundo, durante a Guerra Fria, entre dois hemisférios ideologicamente hostis,

contrastando com a mobilização dos países do Terceiro Mundo contra o colonialismo e as

reivindicações de independência, fundadas no princípio de autodeterminação dos povos,

acabava por expor as contradições de um sistema que, antes de promover a efetiva proteção

da dignidade da pessoa humana, tal como prevista nas normas internacionais, parecia

favorecer a continuidade de um quadro de guerras e conflitos que acarretavam cada vez mais

sofrimento e aflição ao ser humano.

A Guerra Fria e a bipolaridade dela decorrente não davam conta de toda a vida

mundial, expondo suas fissuras e permitindo uma articulação dos países do Terceiro Mundo,

conhecida como a polaridade Norte-Sul (países desenvolvidos X países subdesenvolvidos e

em desenvolvimento). Se, durante a Guerra Fria prevaleceu a organização bipolar do mundo,

no período que se lhe sucedeu assistiu-se a um sistema internacional marcado por polaridades

indefinidas e que gerou duas forças contraditórias: as forças centrípetas e as forças

centrífugas. Na opinião de Celso Lafer, as forças centrípetas são representativas do fenômeno

da globalização, que se expressa nas finanças, no comércio, na democracia, nos direitos

humanos e na segurança coletiva (maior consenso entre os Estados no sistema da ONU). As

forças centrífugas expressam a fragmentação e se fizeram notar no processo de desagregação

e secessão de Estados (URSS e Iugoslávia, no final da década de 1989 e início da década de

1990). (LAFER, 2003).

Logo, se essas duas forças antagônicas estão modelando o sistema internacional, é

razoável concluir que o equilíbrio político entre as lógicas da unificação e da fragmentação só

é alcançável pela tolerância e esta só se viabiliza pela associação entre direitos humanos e

democracia, como condição da construção da paz. Assim, há que se construir no plano interno

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e internacional uma tolerância em relação ao diverso das etnias, das línguas, das identidades

políticas e dos tipos de visão do mundo no pluralismo da civilização (LAFER, 2003).

Para Celso Lafer, a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos de 1993

conferiu abrangência inédita aos direitos humanos, tratando-os como tema global, ao

reafirmar, por consenso, sua universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-

relacionamento e tendo aceitado essa categoria de direitos como ingrediente da

governabilidade do sistema mundial, ao reconhecer a legitimidade da preocupação

internacional com a sua promoção e proteção (LAFER, 2003).

Mesmo com a inegável importância da Declaração de 1948 e da Conferência

Mundial de Viena sobre Direitos Humanos de 1993 na universalização dos direitos humanos,

há autores que sustentam que esses direitos não podem ser considerados de maneira universal

e, a partir dessas dissensões, estabeleceu-se um debate cultural entre duas correntes de

pensamento: o Relativismo e o Universalismo. Partindo de um ponto de vista particular, que

envolve a comunidade, o Relativismo ou Doutrina Relativista tece uma série de críticas à

concepção universalista dos direitos humanos que podem ser assim sintetizadas por Sidney

Guerra: 1) o conceito de direitos humanos leva em consideração uma visão antropocêntrica do

mundo, que não é compartilhada por todas as culturas; 2) o caráter ocidental da visão dos

direitos humanos, que pretende ser geral e imperialista; 3) a falta de adesão formal por parte

de muitos Estados aos tratados de direitos humanos ou a falta de políticas comprometidas com

tais direitos, o que seria indicativo da impossibilidade do universalismo. No que respeita,

especificamente, à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, países da África e da

Ásia questionaram a sua legitimidade sob o argumento de que estavam eles alijados das

relações internacionais por não terem o reconhecimento de sua personalidade jurídica

internacional, alegando que a referida Declaração fora assinada por um número limitado de

Estados (GUERRA, 2013).

Para os relativistas, afirma Flávia Piovesan:

A noção de direitos humanos está estritamente relacionada ao sistema

político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada

sociedade. Neste prisma, cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos

direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias

culturais e históricas de cada sociedade. Para os relativistas, o pluralismo

cultural impede a formação de uma moral universal, tornando-se necessário

que se respeite as diferenças culturais apresentadas em cada sociedade, bem

como seu peculiar sistema moral [...]. Na análise dos relativistas, a pretensão

de universalidade desses instrumentos simboliza a arrogância do

imperialismo cultural do mundo ocidental, que tenta universalizar suas

próprias crenças. (PIOVESAN, 2002, p. 185-198)

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As críticas formuladas pelos relativistas são rebatidas pelos adeptos do

Universalismo segundo as posições a seguir referidas. Flávia Piovesan ressalta que os

instrumentos internacionais de direitos humanos são claramente universalistas, uma vez que

buscam assegurar a proteção universal dos direitos e liberdades fundamentais. Daí a adoção,

pela Declaração de 1948, de expressões como “toda pessoa” e “ninguém”, citados nos artigos

3º e 5º do aludido documento, “in verbis”: art. 3º - Toda pessoa tem direito à vida, [...]; art. 5º

- Ninguém será submetido à tortura, [...]. Logo, ainda que os exercícios da própria cultura seja

um direito fundamental (inclusive previsto na Declaração Universal), nenhuma concessão é

feita às “peculiaridades culturais”, quando houver risco de violação a direitos humanos

fundamentais, de sorte que para os universalistas o fundamento dos direitos humanos é a

dignidade humana, como valor intrínseco à própria condição humana. (PIOVESAN, 2007).

Lindgren Alves, de outra parte, pondera que se os países africanos e asiáticos, em

um primeiro momento, poderiam ter razões para se opor à Declaração de 1948, pelos motivos

de ainda não serem países independentes:

Aos poucos foram perdendo razão, à medida que os direitos consagrados

pelo referido documento foram entrando gradativamente nas consciências de

seus nacionais, auxiliando-os, inclusive, nas lutas de descolonização. São

mais prudentes e mais construtivas as várias tentativas de compatibilizar o

particularismo de diversas culturas e o que há de efetiva universalização dos

direitos. Essa tarefa intelectual é complexa na medida em que a própria

noção de direitos, assim como a do indivíduo, é oriunda do Ocidente. As

culturas não ocidentais sempre acentuaram os deveres, privilegiando o

coletivo sobre o pessoal, fosse em prol da ‘harmonia social’, fosse em

defesa da ordem e da autoridade, religiosa ou secular, não importando sua

arbitrariedade ou o grau de sofrimento exigido na vida de cada um. (ALVES,

2005, p. 24-34)

Quanto às alegações dos relativistas segundo as quais a pretensão de

universalidade contida nos documentos internacionais de direitos humanos expressa a

arrogância do imperialismo cultural do mundo ocidental, Flávia Piovesan reporta-se à reação

oferecida pelos universalistas, os quais alegam que:

A posição relativista revela o esforço de justificar graves casos de violações

dos direitos humanos que, com base no sofisticado argumento do relativismo

cultural, ficariam imunes ao controle da comunidade internacional,

acrescentando, ainda, que se diversos Estados optaram por ratificar

instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, é porque

consentiram em respeitar tais direitos, não podendo isentar-se do controle da

comunidade internacional na hipótese de violação desses direitos e, portanto,

de descumprimento de obrigações internacionais. (PIOVESAN, 2007, p.

151)

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Embora haja algumas vozes que se insurgem contra a universalidade dos direitos

humanos, é fato notório que a adesão aos documentos internacionais que consagram normas

de proteção aos direitos humanos vem abrangendo, nas últimas décadas, um número cada vez

maior de países não ocidentais. Atento a essa realidade, Ubiratan Borges de Macedo atribui o

interesse crescente desses países na ratificação de tratados internacionais de direitos humanos

a uma razão de ordem ontológica da pessoa humana, expressando-se desta forma:

As sociedades não podem viver sem moral. Ela faz parte da estrutura

ontológica do homem. Por isso, a razão pública, em continuado debate nas

sociedades democráticas, consegue ir chegando a um acordo sobre alguns

pontos mínimos da moral, com independência de sua fundamentação

religiosa, costumeira ou em alguma doutrina ético-política particular,

formando o consenso indispensável para a vida em comum. Os direitos

humanos são exatamente esse mínimo moral – a moral consensual de nossa

sociedade [...]. Os direitos humanos constituem hoje uma instância moral

transcultural e permitem a coexistência entre as diferentes civilizações.

(MACEDO, 1999, p.141)

A Declaração de Viena, que se originou da Conferência de Viena sobre Direitos

Humanos de 1993, constituindo o documento mais abrangente sobre os direitos humanos na

esfera internacional, vem corroborar a constatação de Ubiratan Macedo acima exposta no

sentido de que há hoje uma maior conscientização por parte dos países não ocidentais acerca

de um padrão mínimo moral a informar os direitos humanos e, consequentemente, a

reconhecer a universalidade desses direitos. Lindgren Alves, estabelecendo uma comparação

entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a Declaração de 1993, nota que

a última foi mais representativa, além do fato de que todos os Estados presentes eram

soberanos e independentes:

Adotada consensualmente por representantes de todos os Estados de um

mundo já sem colônias, sua validade não pode ser contestada como fruto do

imperialismo, o que era possível dizer-se até então, com alguma lógica, da

Declaração Universal de 1948, aprovada pelo voto de 48 países

independentes e 8 abstenções, numa época em que a maioria da população

extraocidental vivia em colônias do Ocidente sem representação na ONU.

Envolvendo 171 Estados, cerca de mil organizações não governamentais e

um total de mais de dez mil indivíduos, a Conferência Mundial sobre

Direitos Humanos teve efeito decisivo para a disseminação em escala

planetária dos direitos humanos no discurso contemporâneo. (ALVES, 1994,

p. 105)

Cabe, nesta oportunidade, reportar à percuciente ponderação de Paulo-Edgar

Almeida Resende:

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A recriação e reinvenção de novas formas de sociabilidade, novos estilos de

existência pela ampliação da autonomia e da liberdade é o que dá efetividade

ao que podemos formular como direitos fundamentais da humanidade [...] há

de se compatibilizar a afirmação dos direitos com fluxos de relações

mundializadas, que fazem com que nenhuma cultura nacional seja capaz de

sobrepor-se a outras como sua força motriz. (RESENDE, 2004, p. 28)

O debate acalorado entre universalistas e relativistas à época da conclusão dos

primeiros documentos de proteção dos direitos humanos, vai, gradativamente, perdendo seu

vigor, em razão de haver hoje um maior envolvimento de países que, até há quatro décadas,

encontravam-se na condição de colônias, sem qualquer voz ativa na discussão das principais

questões internacionais. A representatividade expressiva alcançada com a Conferência

Mundial de Viena sobre Direitos Humanos é um sinal claro de que a universalidade dos

direitos humanos como realização plena da dignidade da pessoa humana vai se consolidando

na vida internacional. Cumpre notar, entretanto, que a universalidade parece não autorizar o

entendimento de que se possa eleger um paradigma para os direitos humanos, pois, as

peculiaridades dos diversos povos e países, ditadas por circunstâncias históricas, sociais e

culturais sempre existirão e devem ser assim consideradas para o fim de se estabelecer um

maior diálogo entre as culturas, com respeito à diversidade e com base no reconhecimento do

outro. É somente a partir do reconhecimento do outro como ser pleno de dignidade e direitos

que se poderá pensar na formação de uma cultura de direitos humanos.

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CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTO TEÓRICO DA DIGNIDADE DA

PESSOA HUMANA

2.1 O período axial (séculos VIII a II a.C.): o ser humano como ser dotado de

liberdade e razão e a afirmação da igualdade entre os homens

Para que se possa chegar a uma compreensão mais adequada do significado da

dignidade da pessoa humana, há que se buscar seu fundamento, sua razão de ser. O

“Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” nos dá algumas acepções do conceito de

“Fundamento”: “1. base, alicerce [...]; 2. conjunto de princípios a partir dos quais se pode

fundar ou deduzir um sistema, um agrupamento de conhecimentos [...]” (HOUAISS, 2009, p.

938).

Fábio Konder Comparato observa que “na linguagem filosófica, o termo

fundamento designa o que serve de base ao ser, ao conhecer, ou ao decidir. Fundamento é,

pois, a causa ou razão de algo (ratio essendi, ratio cognoscendi, ratio decidendi)”

(COMPARATO, 2013, p. 51). Observa ainda o autor que o tema da dignidade humana é a

parte mais bela e importante de toda a História, revelando que`

Todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e

culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos

entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o

reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém

– nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação –

pode afirmar-se superior aos demais. (COMPARATO, 2003, p. 1)

Digna de nota é a referência de Comparato a um período da História denominado,

por Karl Jaspers, de “Era Axial” (entre os séculos VIII e II a.C.) (JASPERS apud

COMPARATO, 2003, p. 8). No centro do período axial, entre 600 e 480 a.C., coexistiram,

sem se comunicarem entre si, alguns dos maiores doutrinadores de todos os tempos:

Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Lao-Tsê e Confúcio na China. Todos eles, a seu modo,

foram autores de visões de mundo, a partir das quais estabeleceu-se a grande linha divisória

histórica: as explicações mitológicas anteriores são abandonadas e o curso posterior da

História passa a constituir um longo desdobramento das ideias e princípios expostos nesse

período. No século V a.C., tanto na Ásia quanto na Grécia, nasce a filosofia, com a

substituição, pela primeira vez na História, do saber mitológico da tradição pelo saber lógico

da razão. Em suma, é a partir do período axial que, pela primeira vez na História, o ser

humano passa a ser considerado, em sua igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e

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razão, não obstante as suas múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais.

Lançavam-se, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e

para a afirmação da existência de direitos universais, porque a ela são inerentes

(COMPARATO, 2003, p. 8-11).

Ainda considerando-se o período axial da História, reportado por Jaspers, e, no

que respeita ao pensamento de Buda, Hans Joachim Störig pondera:

Uma semelhança com a doutrina cristã se pode ver no fato de que Buda,

como Jesus, dirigiu-se basicamente a todas as pessoas, de todas as classes, de

todos os povos. Ambas as religiões são internacionais. De Buda nunca se

ouviu qualquer afirmação no sentido de dizer que os membros das castas

inferiores pudessem ser menos partícipes da salvação [...]. As castas eram

para Buda insignificantes e longe dele afirmar que a pertença a alguma

determinada casta, no que tange à religião, pudesse ser em si alguma

vantagem. (STÖRIG, 2009, p. 42)

Na China, ainda considerando-se a “Era Axial”, vale ressaltar a valiosa

contribuição do pensador e filósofo chinês Confúcio (551 a.C. - 479 a.C.) em diversos campos

do conhecimento, sobretudo no que diz respeito ao estudo do homem, tomado em sua

essência. O nome “Confúcio” corresponde à versão latinizada de K’ung Fu-Tse, “Mestre

K’ung”, como os chineses o chamavam. A primeira biografia do Mestre é devida ao

historiador palaciano Sse-ma Ch’ien, por volta dos anos 100 a.C. A fonte que mais utilizou

esse historiador foi a coletânea de sentenças recolhidas pelos discípulos e alunos de Confúcio,

intitulada Lun yü, “Palavras reunidas”, que contêm as “Conversações” de Confúcio. Segundo

Störig: “como muitos outros grandes mestres da humanidade, Confúcio ensinou somente de

maneira oral. Conhecemos seus pensamentos apenas através dessas opiniões escritas por seus

alunos” (STÖRIG, 2009, p. 71).

Nesse sentido, observa Robert Paul Kramers que:

A palavra Jen vem mencionada e definida em muitos textos, e é

particularmente especificada em situações concretas. A etimologia do

vocábulo, pela maneira como este é pronunciado, sugere a sua proximidade

com a palavra que designa “homem”. Não há expressão mais concisa para

indicar que o homem, por sua própria essência, é ligado ao seu semelhante

[...]. O Mestre sabia que existiam grandes diferenças entre os homens, mas

que, todavia, eles são profundamente semelhantes entre si: – O Mestre

falou: ‘Por natureza, os homens são próximos uns dos outros; por hábitos

adquiridos, eles se distanciam entre si’ (Lun yü, 17.1). (KRAMERS apud

BRUNNER-TRAUT, 2000, p. 191-199)

Existe um caminho de volta a si mesmo, pelo qual se pode reencontrar o princípio,

o “germe”, a maneira de ser essencial do homem. Mais adiante, Kramers reporta-se a Mêncio,

filósofo chinês e seguidor do confucionismo:

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Uma criança cai num poço: o primeiro impulso de alguém que presencia o

fato é resgatar a criança desse poço. Nisto reside, segundo Mêncio, o

princípio do Jen, a humanidade – inequivocamente aqui entendida como co-

humanidade, o amor do próximo [...]. Não estaria longe disso uma analogia

com a doutrina cristã do amor de Deus, que tudo perpassa [...]. A passagem

de um sistema religioso-ritual para uma sociedade ordenada, fundada na fé

em um poder celeste ordenador, em que o homem é chamado a realizar a sua

essencial dimensão de homem-com-os-outros e sua ligação com tudo quanto

existe, tal passagem foi efetuada por Confúcio e sua Escola. Por esse motivo,

ele pôde ser venerado pelas gerações posteriores como o maior santo da

China, santo no sentido de um homem que levou à perfeição o ser-homem e

que ensinou aos demais o caminho que conduz a essa perfeição [...].

(KRAMERS, In: BRUNNER-TRAUT, 2000, p. 200)

Sendo assim, esclarece Maria Victoria Benevides que:

Durante muito tempo o fundamento da concepção de dignidade era buscado

na esfera sobrenatural da revelação religiosa, da criação divina – o ser

humano criado à imagem e semelhança do Criador. Ou, então, na abstração

metafísica que levou a inconclusas discussões filosóficas sobre o que seria ‘a

essência’ da natureza humana. Independentemente dessas polêmicas, é

razoável afirmar que os espiritualistas têm um motivo a mais para evocar

nossa comum dignidade, se creem na criação divina, na afirmação de que

todos somos irmãos, nessa fraternidade afirmada por várias crenças

religiosas. Mas é evidente que a fé não tem respostas para todas as dúvidas e

não pode ser imposta a ninguém. Portanto, até que ponto será possível – e

intelectualmente razoável – buscar um modelo ou critério ético supremo, que

justifique racionalmente a dignidade humana? [...]. Toda vida ética, ou seja,

todo sistema de regulação do comportamento fundado na escolha entre o

Bem e o Mal (a moral, o direito e a religião), supõe o estabelecimento de um

modelo ou critério supremo, em relação ao qual se definem os deveres de

comportamento. Esse modelo fundamental pode ser um conjunto de normas,

ou então uma pessoa determinada. O monoteísmo hebraico tinha ambos:

Javé, o Deus único e verdadeiro, deu a Moisés as normas fundamentais de

vida, o chamado Decálogo, e ao mesmo tempo sempre se apresentou perante

o povo eleito como o modelo transcendental do Ente Perfeito a ser seguido.

(BENEVIDES, 2009, p. 207-208)

2.2 Aristóteles – o Ser enquanto Ser

Uma vez considerada a “Era Axial” como um período histórico relevante para a

compreensão do ser humano como ser dotado de liberdade e razão, bem como da afirmação

de uma igualdade entre os homens, há que se tomar, agora, o ser humano em sua condição de

“ser” e de “pessoa”, o que remete, necessariamente, a considerações de ordem metafísica e,

até mesmo, de caráter religioso para, em momento posterior, analisar-se a questão fulcral do

presente trabalho, vale dizer, a dignidade da pessoa humana, iniciando-se, pois, pelas

considerações de ordem metafísica.

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Nesse sentido, observa Miguel Reale, tecendo comentários a respeito do fato de

alguns autores, no campo da Filosofia, imaginarem que esta restringe-se a uma teoria do

conhecer e uma teoria do agir:

Porém, o homem não é um ser que conhece, valora e age, tão somente, mas é

também, e antes de mais nada, um ser, uma ‘existência’, um ente que sabe

que existe entre outros entes, de igual ou de diversa categoria: – donde os

problemas radicais do ser e da existência, em uma palavra, da Metafísica

[...]. Conhecer é conhecer algo, donde a necessidade de determinar-se a

natureza daquilo que é conhecido, o que nos leva a formular perguntas sobre

a ‘coisa em si’ ou o absoluto, mesmo que depois se chegue à conclusão de

ser impossível alcançar respostas dotadas de certeza [...]. Depois de

estabelecermos as condições do conhecimento, assim como as da vida

prática, surge em nosso espírito o desejo ou a tendência irretorquível de

atingir uma compreensão universal da realidade. Não se trata de perguntar

apenas sobre o que vale o pensamento ou o que vale a conduta, mas sim de

considerar o valor de nós mesmos e de tudo aquilo que nos cerca. (REALE,

2007, p. 31-32)

Ao se tomar como objeto de análise o vocábulo “metafísica”, há que se tecer

algumas considerações sobre o pensamento do filósofo grego Aristóteles a respeito de tal

conceito para que se possa ter uma compreensão mais precisa acerca do tema em foco.

É sabido que o termo “metafísica” (= o que está além da física) não é termo

aristotélico [...]. No mais das vezes Aristóteles usava a expressão “filosofia primeira” ou

“teologia”, em oposição à “filosofia segunda” ou “física”. Entretanto, o termo “metafísica” foi

sentido como mais significativo pela posteridade, tornando-se o preferido. Com efeito, a

“filosofia primeira” é precisamente a ciência que se ocupa das realidades-que-estão-acima-

das-realidades-físicas. E, nas pegadas da visão aristotélica, definitiva e constantemente, toda

tentativa no sentido de ultrapassar o mundo empírico para alcançar uma realidade

metaempírica passou a ser denominada “metafísica” (REALE, 2003, p. 195).

Esclarece Marilena Chauí que:

Embora a ontologia ou metafísica tenha começado com Parmênides e Platão,

costuma-se atribuir seu nascimento a Aristóteles [...], diferente de seus dois

predecessores, Aristóteles considera que a essência verdadeira das coisas

naturais e dos seres humanos e de suas ações não está no mundo inteligível,

separado do mundo sensível, onde as coisas físicas ou naturais existem e

onde vivemos. As essências, diz Aristóteles, estão nas próprias coisas, nos

próprios homens, nas próprias ações e é tarefa da Filosofia conhecê-las ali

mesmo onde existem e acontecem [...]. O que distingue a ontologia ou

metafísica dos outros saberes (isto é, das ciências e das técnicas) é o fato de

que nela as verdades primeiras ou os princípios universais de toda e qualquer

realidade são conhecidos direta ou indiretamente pelo pensamento ou por

intuição intelectual, sem passar pela sensação, pela imaginação e pela

memória [...]. Na Metafísica, Aristóteles afirma que a Filosofia Primeira

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estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todas as coisas e

investiga “o Ser enquanto Ser”. (CHAUI, 1995, p. 217-218)

Aristóteles, discorrendo sobre as acepções das palavras, afirma que:

[...] em vários sentidos se pode dizer que uma coisa “é”. Num dêsses

sentidos, “ser” significa “o que uma coisa “é”, ou uma essência; noutro,

designa uma qualidade, uma quantidade ou algum outro atributo dêsse

gênero. Embora “ser” tenha todos esses sentidos, é evidente que o que

primàriamente “é”, é a essência, a substância da coisa. Com efeito, quando

enunciamos a qualidade de um ser, dizemos que êle é bom ou mau e não que

tem três côvados de comprimento ou que é um homem; mas quando

queremos exprimir a sua natureza não falamos em “branco”, nem em

“quente”, nem em “três côvados de comprimento”, mas num “homem”ou

num “deus”. (ARISTÓTELES, 1969, p.147)

Para Aristóteles, o ser, e cada ser, continha uma substância que o definia, que era

sua essência. Essa substância, constitutiva e indispensável à existência do ser, caracterizaria

aquilo que era definidor do fenômeno, seus atributos, e lhe daria realidade. Compreender essa

substância era a tarefa do conhecimento. Aristóteles não atribuía, como Platão, a essência da

coisa a algo externo a ela, mas considerava que cada coisa tinha uma essência que estava nela

própria (ANDERY; MICHELETTO; SÉRIO, 2014, p. 83). Nas palavras de Aristóteles: “Ora,

o substrato é aquilo de que se predica tudo mais, mas que não é predicado de nenhuma outra

coisa. Por isso, devemos começar por determinar a sua natureza, porquanto aquilo que

constitui o fundamento primeiro de uma coisa é o que se julga ser, na mais legítima acepção, a

sua substância” (ARISTÓTELES, 1969, p.147). Observa Manuel García Morente que

Aristóteles distingue, na coisa real, vale dizer, na coisa como a vemos e sentimos, três

elementos:

Um primeiro elemento que denomina substância; um segundo elemento,

que denomina essência, e um terceiro elemento, que denomina acidente [...].

Se nós analisamos uma coisa, descobrimos nela caracteres, notas distintivas,

elementos conceituais: este copo é grande, é de cristal [...]. Mas o quid do

qual se diz que é isto, que é aquilo, que foi feito desta maneira ou daquela

outra maneira; o quid, como diz S. Tomás, a quidditas, a coisa da qual se

predica tudo aquilo que se pode predicar, é isso que Aristóteles chama o

‘substante’, em grego hipojéimenos, que jaz debaixo, e que os latinos

traduziram pela palavra substare, estar debaixo: chama-o a ‘substância’ [...].

Quando num juízo dizemos: esse é tal coisa, Sócrates é mortal, Sócrates é

homem, Sócrates é ateniense [...], sempre dizemos de alguém tôdas essas

coisas. O quid, o sujeito da proposição da qual dizemos tudo isto, essa é a

substância. Mas, que dizemos da substância? Pois tudo aquilo que dizemos

da substância é o que chama Aristóteles essência. A essência é a soma dos

predicados que podemos predicar da substância. Ora, êstes predicados

dividem-se em dois grupos; predicados que convêm à substância, mas que

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são de tal sorte que se lhe faltasse um deles não seria o que é; e predicados

que convêm à substância, mas que são de tal sorte que ainda que algum dêles

faltasse, continuaria a ser a substância aquilo que é. Aquêles primeiros são a

essência pròpriamente dita, porque se algum dêles faltasse à substância, a

substância não seria aquilo que é; e êstes segundos são o acidente, porque o

fato de tê-los ou não, não impede de modo algum que seja aquilo que é [...].

(GARCÍA MORENTE, 1967, p. 95-96)

O ser, no seu sentido fundamental, é chamado por Aristóteles de ousía (que na

versão latina passou a ser substantia). A substância é aquilo a que pertencem as qualificações

e que existe por si [...]. Mas Aristóteles falava de “substância” também em outro sentido. Com

essa palavra igualmente denominava aquilo que uma coisa é – a sua essência. A essência,

como substância no segundo sentido (diferenciando-se da coisa concreta ou substância no

primeiro sentido), é aquilo que é comum a todos os indivíduos de uma categoria e que

corresponde ao conceito genérico [...]. Diversamente de Platão, Aristóteles não concebia a

essência como algo separado dos seres concretos. Sua crítica ao platonismo atinge em

primeira linha o conceito de que as coisas concretas participam das Idéias, embora existam

separadas delas. Tal concepção, segundo Aristóteles, é insustentável. Se as coisas concretas se

relacionam com o ser genérico mediante a participação, ou seja, imitam esse ser, então, de

acordo com a doutrina das Ideias, a essa relação por sua vez deve corresponder uma Ideia.

Assim como o triângulo retângulo e o triângulo isósceles devem ter participação com a Idéia

do “triângulo”, também o homem concreto e o homem em geral – a Ideia de homem –

deveriam estar em relação com uma Idéia superior de homem, de sorte que seria necessário

admitir “um terceiro homem”. Dessa nova Ideia deveriam participar os homens originais e os

homens concretos [...]. No intuito de superar essa dificuldade, Aristóteles estabeleceu que a

essência das coisas deve ser procurada nelas mesmas, e não além delas (RÖD, 2004, p. 215-

216).

Cumpre notar que Aristóteles não se refere, em sua obra, diretamente à dignidade

do ser humano, porém, em dado momento, parece reconhecer o atributo da virtude não apenas

no homem livre, mas também na pessoa do escravo. É o que se depreende do excerto de

Política, adiante reproduzido:

Em primeiro lugar, no que se refere aos escravos, deve-se procurar saber se,

além das qualidades que do escravo fazem um instrumento e o tornam apto

para o serviço, pode o escravo ter alguma virtude superior, como a

temperança, a coragem, a justiça e qualquer outra semelhante; ou então se

outro mérito não possui além de saber fazer serviços materiais. Por qualquer

lado a questão é difícil de resolver. Possuindo os escravos tais virtudes, que é

que os diferenciará dos homens livres? Por outra, afirmar que eles são

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incapazes de outra coisa além dos trabalhos materiais, embora sejam homens

e tenham a sua parte de razão, é um absurdo. (ARISTÓTELES, 2009, p. 34)

Nesse sentido, pertinente a observação de Mendo Henriques:

Aristóteles está consciente de um a aporia. Como pode a diferença de tipos

humanos reconciliar-se com a ideia de unidade da natureza humana? Tendo

o escravo capacidade de virtude, como se distinguirá do homem livre? E se é

humano, como pode deixar de ter razão? A sua solução reside na descrição

de caracteres em termos de predominância de um dos componentes. A

diferença entre seres humanos é de espécie, e não de grau nem de gênero.

Aristóteles sustenta a igualdade da natureza humana, a par de diferenças de

personalidade. (HENRIQUES, 2008, p. 20).

O pensamento de Aristóteles acima exposto assume particular relevo na medida

em que concebe o ser sempre em sua integralidade, em sua essência, o ser enquanto ser,

designando-se como “ser” as coisas e o próprio homem. Entretanto, ainda não se conhecia a

ideia de “pessoa”, noção que viria a ser desenvolvida mais tarde, com o Estoicismo, escola

filosófica a ser analisada a seguir.

2.3 O homem em sua dimensão de “pessoa”

2.3.1 O Estoicismo

O Estoicismo insere-se, ao lado de outras escolas, no período da filosofia grega

denominado “helenismo”, termo que, de acordo com Danilo Marcondes:

É derivado da obra do historiador alemão J. G. Droysen, Hellenismus (1836-

43), e designa a influência da cultura grega em toda a região do

Mediterrâneo oriental e do Oriente Próximo desde as conquistas de

Alexandre (332 a.C.) [...] até a conquista romana do Egito em 30 a. C., que

passa a marcar a influência de Roma nessa mesma região [...]. A filosofia do

helenismo é fortemente marcada por uma preocupação central com a ética,

entendida em um sentido prático como o estabelecimento de regras do bem

viver, da ‘arte de viver’. (MARCONDES, 2007, p. 84-86).

Dentre as escolas filosóficas compreendidas no helenismo, o Estoicismo adquire

singular relevo, pois será nessa quadra histórica da filosofia grega que surgirão as primeiras

formulações da noção de “pessoa”, esta, até então desconhecida, e que passaria a designar,

após um processo evolutivo do conceito, a essência individual de cada ser humano.

A filosofia estoica desenvolveu-se durante seis séculos, desde o momento em que

Zenão de Cítio começou a ensinar em Atenas, em 321 a.C., até a segunda metade do século III

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da era cristã. Mas os seus princípios permaneceram em vigor durante toda a Idade Média e

mesmo além dela. Muito embora não se trate de um pensamento sistemático, o estoicismo

organizou-se em torno de algumas ideias centrais, como a unidade moral do ser humano e a

dignidade do homem, considerado filho de Zeus e possuidor, em consequência, de direitos

inatos e iguais em todas as partes do mundo, não obstante as inúmeras diferenças individuais

e grupais. Foi justamente para explicar essa unidade substancial do ser humano, distinta da

aparência corporal, ou das atividades que cada qual exerce na sociedade, que os estoicos

lançaram mão dos conceitos de hypóstasis e de prósopon. O primeiro, correlato de ousía, que

na língua latina traduziu-se por substantia, significava o substrato ou suporte individual de

algo. A igualdade essencial do homem foi expressa mediante a oposição entre a

individualidade própria de cada homem e as funções ou atividades por ele exercidas na vida

social. Essa função social designava-se, figurativamente, pelo termo prósopon, que os

romanos traduziram por persona, com o sentido próprio de rosto ou, também, de máscara de

teatro, individualizadora de cada personagem. A oposição entre a máscara teatral (papel de

cada indivíduo na vida social) e a essência individual de cada ser humano – que veio a ser

denominada com o termo personalidade – foi, em seguida, longamente discutida e

aprofundada pelos estoicos (COMPARATO, 2003, p. 15-16).

A partir do século I, o núcleo do estoicismo desloca-se para Roma, dando origem

ao assim chamado “novo estoicismo” ou “estoicismo imperial”, cujos principais

representantes foram Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), o Imperador Marco Aurélio (121-180) e

Epicteto (60-138), que nasceu como escravo. Considerando-se a distinção entre os conceitos

de hypóstasis e de prósopon, anteriormente referidos, Fábio Comparato reporta-se a Epicteto,

citando um excerto da obra “Discursos” (COMPARATO, 2003, p. 41-43), observando que o

filósofo reafirma a ideia de que o papel dramático que cada um de nós representa na vida não

se confunde com a individualidade pessoal:

Haverá um tempo em que os atores trágicos acreditarão que suas máscaras

(prósopa), seus calçados, suas roupas, são eles mesmos. Homem, tu nada

mais és aqui do que matéria para a tua ação e teu papel (prósopon) a

desempenhar. Fala um pouco para se ver se és um ator trágico ou cômico;

pois, exceto a voz, tudo o mais é comum a um e outro; e se lhe tiramos os

calçados e a máscara (prósopon), se ele se apresenta em cena com a sua

própria individualidade, o ator trágico desaparece ou sobrevive ainda? Se ele

tem a voz correspondente (a esse papel), sobrevive. (COMPARATO, 2003,

p. 17)

Tendo-se em vista que o objeto do presente capítulo consiste no estudo do

fundamento da dignidade da pessoa humana, mister se faz tecer algumas considerações a

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respeito de aspecto relevante da doutrina estoica e que se relaciona com uma concepção

cosmopolita e humanitária do homem. Nas palavras de Umberto Padovani:

[...] manifesta-se na filosofia estóica um racionalismo cosmopolita radical a

propósito da sociedade estatal: o homem, político por natureza, torna-se

cosmopolita por natureza [...]. Tal cosmopolitismo foi fecundo em progresso,

em civilização humana e moral. Abre-se caminho a um sentimento de

caridade, de perdão, até para os infelizes e os escravos, os estrangeiros e os

inimigos, em virtude da doutrina que afirma a identidade da natureza

humana, sentimento este inteiramente desconhecido ao mundo antigo,

clássico, onde campeia solitária uma justiça, que existe, porém, apenas para

os concidadãos, livres e íntegros. (PADOVANI, 1981, p. 149)

Na mesma linha de raciocínio, Hans Störig pontua:

Os estoicos [...], não apenas conhecem e valorizam a amizade entre os

sábios, mas fazem duas grandes exigências sociais: justiça e amor ao

próximo–e ambas numa medida que, nessa dimensão, até então a

Antiguidade ainda não havia tido conhecimento. Pois estendem-na a todos os

homens, isto é, incluem também os escravos e os bárbaros. Trata-se de

exigências verdadeiramente revolucionárias. Pois até então sempre se

entendia por ‘homem’, evidentemente, apenas o cidadão livre grego ou

romano. Estas exigências são o resultado natural das convulsões políticas e

sociais, numa época em que o Império Romano abrangia inúmeros povos

considerados antes como bárbaros, e que ansiavam por ser reconhecidos

como cidadãos. Por sua vez contribuíram também de forma decisiva para

este desenvolvimento, por exemplo, para o desenvolvimento do direito

internacional romano. Assim os estoicos são os primeiros que na

Antiguidade chegaram a defender uma ampla ideia de humanitarismo, como

também um amplo cosmopolitismo. (STÖRIG, 2009, p. 163)

Maria Amália Andery, Nilza Micheletto e Tereza Maria Sério observam que:

A lógica estoica supõe a causalidade necessária da natureza, decorrente da

racionalidade universal que controla todos os eventos cósmicos, ou seja, a

cadeia causal entre os fenômenos que ligam o passado, o presente e o futuro

[...]. Em sua vida, o homem almejava e deveria almejar o bem, que era a

preservação da ordem natural do mundo, e dele mesmo como parte dessa

ordem. A compreensão e o reconhecimento da racionalidade da natureza

eram a garantia do bem na vida humana. (ANDERY; MICHELETTO;

SÉRIO, 2014, p.106-107)

Mais adiante, as referidas autoras trazem à colação um excerto do Livro VII,

referente ao Estoicismo, e que compõe a obra Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, de

Diógenes Laércio (século III), historiador e biógrafo dos antigos filósofos gregos:

É por isto que Zenão, o primeiro, no seu livro sobre a Natureza humana,

disse que o fim supremo era viver conforme a natureza porque é vivê-la, pois

a natureza nos conduz à virtude [...]. Crisipo, no primeiro livro de sua obra

Dos fins, diz por sua vez que viver segundo a natureza é a mesma coisa que

viver segundo a experiência daquilo que está de acordo com a natureza, pois

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nossas naturezas não são senão partes do todo. Eis porque o fim supremo é

viver segundo a natureza, ou seja, segundo a sua natureza e a do todo [...].

(DIÓGENES LAÉRCIO apud ANDERY; MICHELETTO; SÉRIO, 2014, p.

107)

2.3.2 O Cristianismo

A religião cristã, embora originária do judaísmo, surge e se desenvolve no

contexto do helenismo, e é precisamente da síntese entre o judaísmo, o cristianismo e a

cultura grega que se origina a tradição cultural ocidental de que somos herdeiros até hoje. O

primeiro marco da constituição do cristianismo como religião independente e dotada de

identidade própria é a pregação de São Paulo, um judeu helenizado, funcionário do Império

Romano, que se converte e passa a difundir a religião em suas viagens por alguns dos

principais centros do Império Romano. É em São Paulo que encontramos a concepção de uma

religião universal, não só a religião de um povo, mas de todo o Império, de todo o mundo

então conhecido. Nos Atos dos apóstolos (15, 1-34) é narrado o episódio do confronto no

Concílio de Jerusalém entre alguns fariseus convertidos ao cristianismo e Paulo, Baranbé e

Pedro. Os fariseus pretendiam que o cristianismo fosse pregado apenas aos judeus, ao passo

que Paulo defendia a necessidade de pregar a todos, tendo ficado por isso conhecido como o

“apóstolo dos gentios”. Conforme lemos na Epístola aos gálatas (3, 28), “Não há judeu, nem

grego, nem escravo, nem homem livre, nem homem, nem mulher: todos sois um no Cristo

Jesus”. A mensagem cristã não se dirige apenas a um povo escolhido, mas é universal,

dirigida a todos os homens (Mateus, 28, 19), pois todos foram criados à imagem e semelhança

de Deus (Gênesis 1, 26). E esta é uma diferença básica em relação ao judaísmo e às demais

religiões da época, todas elas religiões de um povo ou de uma cultura, sem a pretensão de

difundir, de evangelizar ou converter outros povos (MARCONDES, 2007, p. 108).

Destarte, com o advento do Cristianismo, a crença na transcendência divina vai,

gradativamente, sendo atenuada pela concepção da existência de Jesus Cristo, filho de Deus,

que passou a encarnar, na mesma pessoa, Deus e o homem, vale dizer, a transcendência divina

é claramente temperada pela imanência do modelo, encarnado na pessoa de Jesus Cristo.

Segundo Fábio Comparato (2003, p. 17), na tradição bíblica, Deus é o modelo de pessoa para

todos os homens. Sem dúvida, o cristianismo, proclamando o dogma da Santíssima Trindade

(três pessoas com uma só substância), quebrou a unidade absoluta e transcendental da pessoa

divina. Mas, em compensação, Jesus de Nazaré concretizou na História o modelo ético de

pessoa, e tornou aos homens mais acessível a sua imitação. “Doravante, os homens tinham

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um modelo ético a seguir, encarnado numa pessoa que vivera conosco e partilhara a nossa

condição humana, tanto na vida quanto na morte” (COMPARATO, 2013, p. 59).

Cumpre notar que a primeira discussão conceitual entre os doutores da Igreja não

ocorreu a respeito do ser humano, e sim da identidade de Jesus Cristo. Neste particular, cabe

uma referência ao Tratado sobre a Santíssima Trindade, escrito por Santo Hilário (300-368),

Bispo de Poitiers e Padre da Igreja, valoroso defensor da fé cristã contra as heresias do século

IV. O Tratado da Trindade procura, primeiramente, repelir o arianismo, proclamando contra

os seguidores de Ário, a divindade do Filho. Ário (280-336) foi presbítero em Alexandria. Sua

doutrina, que negava ser Cristo Deus verdadeiro, foi condenada pelo Concílio de Nicéia de

325, que definiu a consubstancialidade do Pai e do Filho. Os arianos pregavam a

subordinação do Filho ao Pai, dizendo ser o Pai o único princípio ingênito sem origem, eterno

e imutável. O Filho seria, para os arianos, mutável, fraco, sem as prerrogativas divinas

pertencentes apenas a Deus Pai. Sendo uma criatura, embora mais excelente que todas as

criaturas, não podia merecer a adoração, reservada somente ao Pai eterno. A intenção de

Hilário, como dos outros Padres, na defesa da ortodoxia da doutrina trinitária contra as

heresias, é basicamente soteriológica. Trata-se, em última análise, da nossa salvação, operada

por Deus que se revela como Trindade. Porque, se Cristo não é Deus, consubstancial ao Pai,

então nós não somos salvos, já que a salvação só pode ser obra divina. Sendo Deus de Deus, o

Filho assumiu nossa humanidade para dar-lhe sua vida divina, para fazê-la participar da sua

glória e imortalidade (SANTO HILÁRIO DE POITIERS, 2005, p. 16-19).

Cita-se, nesta oportunidade, alguns excertos do Livro Segundo do Tratado sobre a

Santíssima Trindade acima referido:

O significado das palavras, a eficácia do ato, a ordem do conteúdo e a

compreensão da natureza aqui se encontram. Ordenou batizar em nome do

Pai, do Filho e do Espírito Santo, isto é, na confissão do Autor, do

Unigênito e do Dom. O autor de tudo é um só. Pois há um só Deus, o Pai, de

quem tudo procede, e um só Senhor nosso, Unigênito, Jesus Cristo, por

quem tudo existe, em um só Espírito, dom de tudo [...]. Quando se ouve a

palavra Pai, a natureza do filho não está contida no nome? Não será o

Espírito Santo Aquele que recebe este nome? O Pai não pode deixar de ser

Pai porque é Pai. O Filho não deixa de ser Filho, porque é Filho, e o Espírito

Santo é Aquele que é recebido [...]. O Filho procede do Pai que tem o ser, é

o Unigênito que procede do Ingênito, descendência do Pai, Vivente que

procede do Vivente. [...]. (SANTO HILÁRIO DE POITIERS, 2005, p. 53-

61)

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Cumpre notar que o Concílio de Nicéia, antes referido, debruçando-se sobre a

controvérsia a respeito da identidade de Jesus Cristo, já decidira pela consubstancialidade de

Deus (Pai) e de Jesus (Filho). Observa Comparato que:

Os padres conciliares recorreram, para a solução da controvérsia, aos

conceitos de hypóstasis e prósopon, decidindo, como dogma de fé, que a

hypóstasis de Jesus Cristo apresentava uma dupla natureza, humana e divina,

numa única pessoa, vale dizer, numa só aparência. Daí porque a expressão

pessoa humana, nessa concepção religiosa do mundo, não é um pleonasmo.

(COMPARATO, 2003, p.19).

Indagando sobre se seria legítimo deslocar a discussão acerca da dignidade

humana do âmbito antropológico e teológico para situá-la única e exclusivamente na esfera

moral, Sinivaldo Tavares busca analisar a dignidade da pessoa humana, em suas múltiplas

dimensões, à luz do mistério da Santíssima Trindade, expressando-se da seguinte maneira:

É no entrecruzamento entre destinação e decisão, que se desenrola toda a

trama do teatro humano, seja este uma epopeia ou um drama. Destinação

remete-nos à dimensão do já dado, do prévio, do anterior, do experimentar-

se como alguém de antemão lançado ao burburinho da existência. Decisão

ao contrário, corresponde à dimensão da possibilidade do discernimento, do

acolher ou não, em liberdade, tudo o que porventura nos tenha sido dado de

antemão. Concebidas assim, destinação e decisão são dimensões recíprocas e

auto-implicantes. Uma não se dá sem a outra, pois ambas se reclamam

reciprocamente [...]. A relacionalidade se nos afigura como uma dimensão

constitutiva de cada pessoa e de todos os seres humanos. A fenomenologia

da nossa existência humana, comunitária e social também revela a dimensão

intrinsecamente interpessoal e relacional da nossa existência. Em última

análise, não apenas vivemos, nós convivemos [...]. Vivemos na medida em

que reconhecemos o outro na sua singularidade e, ao mesmo tempo,

sentimo-nos reconhecidos e aceitos pelos outros sem ter que negar nossa

identidade [...]. Todo processo de introspecção direcionado ao conhecimento

maior da própria identidade pressupõe necessariamente esta abertura prévia e

intrínseca de cada pessoa às demais [...]. Segundo a ótica cristã, a inviolável

dignidade humana jamais poderá ser reduzida a um atributo do sujeito na sua

autonomia. Ela se revela, ao contrário, no bojo mesmo de uma relação de

reciprocidade e de acolhida do outro na sua irredutível diferença [...] o

mistério por excelência da fé cristã, o da Trindade Santa, revela e fomenta

experiências que concernem ao que de mais humano existe em cada ser

humano e em todos os seres humanos. De fato, os mistérios cristãos não

constituem um complexo de verdades heterônomas, mas, ao contrário, elas

se dão no bojo mesmo de um processo que, provocando o ser humano a um

conhecimento cada vez mais profundo de si, estimula-o a engajar-se sempre

mais no processo de sua auto-realização enquanto pessoa humana integral.

(TAVARES, 2007, p. 251-260)

Analisando o significado da palavra “pessoa”, segundo a concepção dos

estudiosos da teologia cristã, e referindo-se à ideia de “um Deus pessoal”, no sentido de uma

aproximação entre o ser humano e a divindade, observa Alister McGrath que:

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Para os primeiros escritores cristãos, a palavra “pessoa” expressava a

individualidade do ser humano, vista por intermédio de suas palavras e

ações. Acima de tudo, dava-se uma certa ênfase à idéia de relacionamento

social [...]. A pessoa tem um papel a ser interpretado dentro de uma rede de

relacionamentos sociais. A noção de “individualidade” não evoca a ideia de

relacionamento social, ao passo que a noção de “personalidade” está

relacionada ao papel desempenhado pelo indivíduo em uma rede de

relacionamentos, por meio do qual esse indivíduo diferencia-se dos outros.

Portanto, a ideia básica que se expressava por meio de “um Deus pessoal”

era a de um Deus com o qual podemos nos relacionar, da mesma forma

como nos relacionamentos com outro ser humano [...]. Quando os cristãos

falam de Deus como uma pessoa, estão referindo-se ao fato de que é possível

estabelecer um relacionamento pessoal com Deus. Os relacionamentos

humanos são tidos como analogias ou modelos apropriados para retratar

nosso relacionamento com Deus. (McGRATH, 2005, p. 319-321)

Wolfgang Röd sustenta a existência de uma associação íntima entre a doutrina da

Trindade e a filosofia, notadamente quanto aos conceitos de “pessoa” e de “substância”,

ressaltando, contudo, a dificuldade representada pela necessidade de se buscar uma explicação

para o fato de o Uno divino poder desdobrar-se em muitos dentro de si mesmo. Nesse sentido,

convém reproduzir as palavras do aludido autor:

Os problemas que se levantam em relação à doutrina trinitária não podem ser

entendidos independentemente da filosofia. Os conceitos filosóficos de que

se serviram os teólogos cristãos – por exemplo, “sabedoria”, “substância”,

“pessoa” – não foram empregados inconsequentemente, mas de fato

influenciaram o pensamento teológico, o qual foi levado a formular questões

que não se teriam verificado independentemente dos conceitos filosóficos

nos quais se passou a traduzir a tradição bíblica [...]. Olhando-se mais de

perto os fundamentos filosóficos da doutrina trinitária, parece não se

justificar a proposição de que o cristianismo, com sua doutrina das três

pessoas divinas, teria eliminado o monoteísmo puro, defendido pelo

judaísmo e pelo islamismo. Se Deus é a origem absolutamente simples de

todos os seres, então surge a pergunta sobre como pode do Uno originar-se

uma pluralidade. Para tornar isso de algum modo compreensível, admitiu-se

que no próprio Deus se engendrava o princípio da pluralidade: a fim de

poder produzir os numerosos seres, o Uno divino parece desdobrar-se em

muitos dentro de si mesmo. Tornar compreensível a relação entre Deus-Pai,

Deus-Filho e Espírito Santo, sem que a diferença entre eles suprimisse a

pressuposta igualdade de essências, era, todavia, tarefa extremamente difícil,

para não dizer impossível. Expressões como “um ser e três substâncias

(hipóstases)”, ou “uma essência e três pessoas”, são muito menos soluções

do que sintomas da dificuldade. (RÖD, 2004, p. 389-390)

2.3.3 Santo Tomás de Aquino

Tendo-se em vista o objeto do presente capítulo, que consiste em se buscar o

fundamento da dignidade humana, a partir da consideração do ser humano enquanto “pessoa”,

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cumpre, desde logo, mencionar a contribuição fecunda de Santo Tomás de Aquino ao tema

ora em estudo. Observa Danilo Marcondes:

São Tomás foi de fato um pensador de grande criatividade e originalidade,

que desenvolveu uma filosofia própria em um sentido fortemente

sistemático, tratando praticamente de todas as grandes questões da filosofia e

da teologia de sua época, bem como tomando Aristóteles – e não mais o

platonismo e o agostinianismo como até então se fazia – como ponto de

partida para a elaboração de seu sistema. São Tomás mostra então que a

filosofia de Aristóteles é perfeitamente compatível com o cristianismo,

abrindo assim uma nova alternativa para o desenvolvimento da filosofia

cristã. (MARCONDES, 2007, p. 128)

Julián Marías, de outra parte, assim se expressa:

S. Tomás realiza a adaptação da filosofia grega de Aristóteles ao pensamento

cristão da Escolástica. O fundo geral de seu pensamento é, pois, o da

dogmática cristã, a dos Padres da Igreja, a da tradição medieval anterior e,

sobretudo, o de Aristóteles [...], mas não pode esquecer-se que as mesmas

ideias aristotélicas utilizam-se com fins bem distintos, a dezesseis séculos de

distância e, antes de mais nada, com o cristianismo entre um e outro. Além

disso, S. Tomás possuía uma genialidade filosófica muito grande para

limitar-se simplesmente a seguir fielmente o aristotelismo. O sentido geral

do seu sistema difere do de Aristóteles, profundamente. Basta pensar que

toda a actividade intelectual de S. Tomás dirige-se para a fundamentação da

teologia cristã, baseada em pressupostos totalmente alheios à mente

helénica. (MARÍAS, 1982, p. 174-175)

Traço marcante no pensamento de Tomás de Aquino é a definição de “substância”

como característica própria de um ser, definição que Boécio (480-524), filósofo e teólogo

romano, na obra Sobre as Duas Natureza, associara a “Pessoa”, expressando-se desta forma:

persona proprie dicitur naturae rationalis individua substantia (“diz-se propriamente pessoa

a substância individual de natureza racional”). Nas palavras de Comparato:

Aqui, como se vê, a pessoa já não é uma exterioridade, como a máscara de

teatro, mas a própria substância do homem, no sentido aristotélico; ou seja, a

forma (ou fôrma) que molda a matéria e que dá ao ser de determinado ente

individual as características de permanência e invariabilidade. A substância é

a característica própria de um ser, isto é, como se dizia em linguagem

escolástica, a sua quidditas. (COMPARATO, 2003, p. 19).

Importa notar que o termo quidditas (do latim) originou, em nosso vernáculo, o

vocábulo “quididade”, cujo significado nos é dado pelo Dicionário Houaiss: “1. virtude

essencial; 2. entre os escolásticos, essência ou natureza real de algo [...]”.

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Tomás de Aquino, em sua obra “O Ente e a Essência”, tomando por base a

distinção ente substâncias simples e compostas, explicita o conceito de “essência”, nos

seguintes termos:

Algumas das substâncias são simples, ao passo que outras são compostas,

sendo que em ambas existe uma essência. Todavia, nas substâncias simples a

essência reside em sentido mais verdadeiro e mais elevado, mesmo porque

possuem um ser mais nobre, e, além disso, constituem causas das

substâncias compostas. Isto ocorre, pelo menos, com aquela substância

primeira e simples por excelência, que se denomina Deus [...]. Nas

substâncias compostas a forma e a matéria são conhecidas, como o são, no

homem, a alma e o corpo. Todavia, não se pode dizer que apenas uma delas

se denomine essência [...]. Com efeito, de quanto até aqui expusemos se

evidencia que a essência é aquilo que é significado ou expresso pela

definição de uma coisa [...]. Do exposto se infere, portanto, que o termo

essência significa, nas substâncias compostas, o que é composto de matéria e

forma. Aliás, também Avicena diz que a qüididade das substâncias

compostas é a mesma composição de matéria e forma [...]. A essência do

homem é significada tanto pelo termo homem como pelo termo

“humanidade”, mas de maneiras diferentes, segundo ficou dito: o termo

homem traduz a essência do homem como um todo, isto é, enquanto não

subentende a designação da matéria [...]. Em contrapartida, o termo

“humanidade” designa a essência do homem como parte, englobando em seu

significado exclusivamente o que compete ao homem enquanto homem,

prescindindo de qualquer designação da matéria, razão pela qual não seria

predicável dos homens considerados individualmente (TOMÁS DE

AQUINO, 2000, p. 27-35).

Vale ressaltar, ainda, na obra de Tomás de Aquino, a consideração do homem

como um composto de substância espiritual e corporal. Nesse sentido, reportando-se à questão

“A alma é o homem”, que consta da Suma Teológica, I Parte, questão 75, artigo 4, assim se

expressa o Doctor Angelicus:

RESPONDO: Que a alma seja o homem pode-se entender de duas maneiras:

1. Que o homem é a alma, mas que este homem não o é, pois é composto de

alma e de corpo; por exemplo, Sócrates [...] a definição das coisas naturais

não significa só a forma, mas a forma e a matéria [...]. Assim como é da

razão deste homem ter esta alma, estas carnes e estes ossos, assim também é

da razão de homem ter alma, carnes e ossos. Isto porque pertence à

substância da espécie ter o que é comum à substância de todos os indivíduos

contidos naquela espécie [...]. 2. Que esta alma é este homem. É possível

sustentar isso, se se afirma que a operação da alma sensitiva é própria dela

independentemente do corpo, porque, então, todas as operações atribuídas ao

homem seriam só da alma, uma vez que cada coisa é aquilo que opera suas

próprias operações. Por isso, é homem aquilo que opera as operações

próprias do homem. – Mas foi demonstrado acima que sentir não é

operação só da alma. Sendo o sentir uma operação do homem, embora não

própria, é claro que o homem não é só alma, mas é algo composto de alma e

corpo. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 362-363).

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Ainda no que se refere ao estudo do homem como composto de corpo e alma,

aduz Santo Tomás, em sua obra “O Ente e a Essência”:

E embora a individuação da alma dependa ocasionalmente do corpo, quanto

à origem, já que a alma não adquire o seu ser individualizado a não ser no

corpo do qual é ato, disto não se deve concluir, todavia, que, ao perecer o

corpo, pereça também a individuação da alma. Com efeito, uma vez que a

alma tem um ser absoluto, desde que adquiriu o seu ser individualizado, pelo

fato de ter-se tornado a forma deste determinado corpo, o seu ser

permanecerá individualizado para sempre. (TOMÁS DE AQUINO, 2000, p.

46-47)

2.4 O fundamento da dignidade da pessoa humana

2.4.1 O Discurso Sobre a Dignidade do Homem, de Giovanni Pico Della Mirandola

A partir de uma perspectiva histórico-filosófica, a ideia de “dignidade da pessoa

humana” foi sendo elaborada em diversas doutrinas e concepções de mundo ao longo do

desenvolvimento da cultura ocidental. Com efeito, a noção de que a pessoa humana é

portadora de uma dignidade que lhe é inerente já era objeto de cogitação entre os gregos,

vindo a ganhar alento com o advento do Cristianismo, sobretudo no que tange à difusão da

ideia de uma igualdade de todos perante a criação. Entretanto, o tema em tela adquirirá

contornos mais precisos com a obra Oratio de Hominis Dignitate, traduzida para o Português

como “Discurso Sobre a Dignidade do Homem” (1486), de autoria do pensador italiano

renascentista Giovanni Pico Della Mirandola.

Observa, a propósito, Ingo Sarlet:

Mesmo no auge do medievo [...] a concepção de inspiração cristã e estoica

seguiu sendo sustentada, destacando-se Tomás de Aquino, o qual,

fortemente influenciado também por Boécio, chegou a referir expressamente

a expressão ‘dignitas humana’, secundado, já em plena Renascença e no

limiar da Idade Moderna, pelo humanista italiano Pico della Mirandola, que,

partindo da racionalidade como qualidade peculiar inerente ao ser humano,

advogou ser esta a qualidade que lhe possibilita construir de forma livre e

independente sua própria existência e seu próprio destino (SARLET, 2012,

p. 37).

Reportando-se à obra de Pico Della Mirandola anteriormente citada, Maria de

Lourdes Sirgado Ganho assim se expressa:

Numa leitura atenta dos textos, encontramo-nos perante uma dupla imagem

de Pico, onde não há contradição ou exclusão, mas complementaridade: com

efeito, é só aparente a oposição entre uma sua faceta de homem apostando

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numa filosofia da acção e uma atitude que o enquadra na mística, enquanto

homem de contemplação. Se o homem na sua dimensão terrena é dignificado

e se a busca da felicidade é o horizonte do seu agir, não é menos verdade que

dessa felicidade terrena faz parte a relação do homem com Deus, e esta sua

preocupação resolve-se muitas vezes, no seu próprio itinerário, numa adesão

a uma mística de luz [...]. O problema da dignidade do homem é

perspectivado em função do lugar central que este ocupa no universo, ponto

de referência de toda a realidade. Daí podermos falar em antropocentrismo

[...]. Com efeito, neste seu texto, surge inequivocamente uma afirmação da

razão e do seu poder indagador, enquanto envolve uma possibilidade de

compreender, sendo o filósofo o ser privilegiado por ter como atributo o

discernir ‘com recta razão’, e sendo a filosofia caracterizada como um

discurso dessa mesma razão. Ora, é precisamente esta capacidade racional

que permite ao homem tomar consciência da sua dimensão como ser livre.

(GANHO apud MIRANDOLA, 2006, p. VIII-XXII).

Ressalte-se, outrossim, que, não obstante outros autores humanistas já tivessem

manifestado preocupação com a valorização do homem em sua condição terrestre, celebrando

sua dignidade e acentuando o valor da atividade humana, obtempera Maria de Lourdes

Sirgado Ganho que será na aludida obra de Pico Della Mirandola que se poderá entrever com

maior nitidez um alcance ontológico, metafísico e ético revestindo a questão da dignidade da

pessoa humana. Nas palavras da autora: “De facto, no Conte di Concordia, esta questão surge

como uma tematização muito mais elaborada, podendo detectar-se na temática da dignidade

do homem a articulação de três níveis de inteligibilidade: um problema da razão; um

problema da liberdade humana; e um problema de ser” (GANHO apud MIRANDOLA, 2006,

p. XXI-XXII).

Mister se faz, neste passo, trazer à colação alguns excertos da obra “Discurso

Sobre a Dignidade do Homem”, de Pico Della Mirandola:

Li nos escritos Árabes, venerandos Padres, que, interrogado Abdala

Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetáculo mais maravilhoso neste

cenário do mundo, tinha respondido que nada via de mais admirável do que

o homem [...]. Finalmente, pareceu-me ter compreendido por que razão é o

homem o mais feliz de todos os seres animados e digno, por isso, de toda a

admiração, e qual enfim a condição que lhe coube em sorte na ordem

universal, invejável não só pelas bestas, mas também pelos astros e até pelos

espíritos supramundanos. Coisa inacreditável e maravilhosa. E como não? Já

que precisamente por isso o homem é dito e considerado justamente um

grande milagre e um ser animado, sem dúvida, digno de ser admirado.

Mas, escutai, ó Padres, qual é essa condição de grandeza e, com a vossa

liberalidade, prestai um ouvido benigno e tolerante a esse meu discurso.

Já o Sumo Pai, Deus arquitecto, tinha construído segundo leis de arcana

sabedoria este lugar do mundo como nós o vemos, augustíssimo templo da

divindade. Tinha embelezado a zona superceleste com inteligências, avivado

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os globos etéreos com almas eternas, povoado com uma multidão de animais

de toda a espécie as partes vis e fermentantes do mundo inferior. Mas,

consumada a obra, o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de

compreender a razão de uma obra tão grande, que amasse a beleza e

admirasse a sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e

Timeu atestam, pensou por último criar o homem [...]. Estabeleceu, portanto,

o óptimo artífice que, àquele a quem nada de especificamente próprio podia

conceder, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros.

Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no

meio do mundo, falou-lhe deste modo: ‘ Ó Adão, não te demos nem um

lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma

específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto,

aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a

tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por

nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação,

determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei [...].

Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que

tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na

forma que tivesses seguramente escolhido [...]. Ó suma liberalidade de Deus

pai, ó suma e admirável felicidade do homem! Ao qual é concedido obter o

que deseja, ser aquilo que quer [...]. Para que compreendamos, a partir do

momento em que nascemos na condição de sermos o que quisermos, que o

nosso dever é preocuparmo-nos sobretudo com isto: que não se diga de nós

que estando em tal honra não nos demos conta de nos termos tornado

semelhantes às bestas e aos estúpidos jumentos de carga [...]. Que a nossa

alma seja invadida por uma sagrada ambição de não nos contentarmos com

as coisas medíocres, mas de anelarmos às mais altas, de nos esforçarmos por

atingi-las, com todas as nossas energias, desde o momento em que,

querendo-o, isso é possível. (MIRANDOLA, 2006, p.53-61)

2.4.2 O pensamento dos teólogos espanhóis Francisco de Vitoria e Bartolomé de Las

Casas

No que diz respeito à temática dos direitos humanos, cabe destacar a contribuição

de Francisco de Vitoria e de Bartolomé de Las Casas, os quais ofereceram relato fecundo

acerca dos métodos cruéis e desumanos empregados pelos colonizadores espanhóis durante a

conquista da América. Francisco de Vitoria, teólogo dominicano e professor de teologia na

Universidade de Salamanca, recebendo frequentes notícias sobre os índios da América e o

relacionamento destes com os colonizadores espanhóis, escreveu carta a seu superior religioso

Miguel de Arcos, denunciando a impiedade e a tirania dos conquistadores para com os

aborígines.

José Carlos Brandi Aleixo observa que:

Os ensinamentos de Vitoria foram recolhidos por seus discípulos e

publicados, após sua morte, pela primeira vez, em Lyon, em 1557, sob o

título RelectionesTheologicae, obra composta de doze lições, das quais duas

serão por nós analisadas, quais sejam, De Indiis e De Jure Belli, tendo-se em

vista o escopo do presente trabalho. José Carlos Brandi Aleixo esclarece que

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o vocábulo latino relectio (no plural relectiones) – muito mais do que uma

simples “releitura” –, consistia na leitura, perante o corpo acadêmico de uma

Universidade, de texto em que o mestre desenvolvia o conteúdo das

principais teses dos cursos por ele ministrados. (ALEIXO, 2016, p. 150)

Releva notar que Francisco de Vitoria, com suas reflexões sobre a natureza do

homem, sobre a sociabilidade humana e sobre o papel temporal da Igreja, criou, de fato, as

bases de natureza jurídica que possibilitariam o tratamento do problema da inserção na

comunidade internacional dos povos então descobertos, mormente em relação à Coroa

espanhola, quer do ponto de vista do Direito Internacional Público, quer como precursor dos

modernos estudos de Relações Internacionais. Vitoria considerava que os homens encontrados

pelos descobridores no Novo Mundo não eram coisas, eram seres sociais que ultrapassavam a

concepção restritiva da pessoa humana, possuindo uma natureza social e política, ao admitir

que as novas gentes reveladas ao mundo depois do descobrimento, estavam politicamente

organizadas (MOURÃO, 2016).

Entre os contemporâneos de Vitoria, cabe destacar a figura de Frei Bartolomé de

Las Casas (1484-1566), teólogo dominicano espanhol, que formulou a crítica mais

contundente do colonialismo dos conquistadores espanhóis, e pregou incansavelmente a

compaixão pelos indígenas, inclusive o dever de reparação aos mesmos. Las Casas passou a

adotar uma ação mais efetiva em defesa dos direitos dos índios colonizados após ouvir um

sermão proferido pelo Frei Antonio de Montesinos no último domingo de novembro de 1511,

na pequena igreja de teto de palha, a primeira erguida na Ilha Espanhola (hoje, São

Domingos). Pela primeira vez, na história do Novo Mundo, erguia-se, pública e

deliberadamente, uma voz em defesa dos índios do Caribe, cujo processo de extinção,

iniciado desde a segunda viagem de Colombo, em 1484, prosseguia aceleradamente.

A conquista americana suscitou uma ampla polêmica entre os partidários da

evangelização como único instrumento colonizador e os que consideravam lícito o uso de

outros recursos. Nos dois casos, surgiram três problemas que permearam todo o processo de

assentamento dos colonos no continente: a relação como os infiéis, o poder do Papa e do rei e

a guerra justa contra os índios. A teoria aristotélica de que todas as coisas obedecem ao

desenvolvimento da natureza, que por sua vez, tem uma propriedade teleológica, isto é,

encaminhada para um fim, que é a perfeição ontológica, e de que o homem é um animal

político, cujo progresso, para a justiça e a felicidade, depende do curso geral da natureza,

serviram de fundamento ao pensamento de Las Casas.

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Para os dominicanos do século XVI, e Las Casas é expressão desse pensamento, a

lei natural, impressa nos espíritos por Deus, era um produto do intelecto, um ditame da razão

justa e é nesse sentido que Las Casas usou essa ideia para legitimar a sociedade política dos

indígenas, não apenas como algo natural, mas, por ser produto da vontade deles, como um

resultado genuinamente humano, pois assim nascem todas as sociedades políticas (HERNAN

BRUIT, 1995).

O título dos reis de Castela de senhorio universal e supremo estava fundado na

prática do Evangelho e conversão dos índios. Foi este princípio que permitiu à Igreja ceder-

lhes esse direito. Mas, de modo algum, esse fato eliminava os direitos soberanos e a liberdade

dos nativos, nem mesmo a propriedade das terras e fazendas (HERNAN BRUIT, 1995).

Se, por um lado, Las Casas conseguiu alguns aliados e adeptos em sua campanha

de mais de cinquenta anos a favor dos direitos dos índios, por outro lado, teve que enfrentar

incontáveis inimigos. Dois dos mais destacados: o historiador oficial da conquista, Gonzalo

Fernández de Oviedo e Juan Ginés de Sepúlveda, também historiador e partidário da teoria

aristotélica da “servidão natural” e dos povos “inferiores”. Com Sepúlveda Las Casas travou

uma polêmica de tal dimensão que exigiu a interferência da maior autoridade moral do

Ocidente: a Igreja Católica. Uma polêmica que terminou no banco dos tribunais, em

Valladolid, na Espanha. Os debates judiciais prolongaram-se por três anos, de 1547 a 1550 e

terminaram com a ampla vantagem da tese de Las Casas (BUENO, 2007).

Alguns dos depoimentos de Ginés Sepúlveda tornaram-se famosos, como por

exemplo:

[...] há os que, por natureza, são senhores e os que, por natureza, são servos

[...]. Os que ultrapassam os outros pela prudência e pela razão, mesmo que

não os dominem pela força física, são, pela própria natureza, os senhores;

por outro lado, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo quando têm força

física para realizar todas as tarefas necessárias, são, por natureza, servos. E é

justo e útil que sejam servos, e vemos que isso é sancionado pela lei divina

[...]. E sempre será justo e de acordo com o direito natural que essas pessoas

sejam submetidas ao império de príncipes e de nações mais cultivada e

humanas, de modo que graças à virtude dos últimos e à prudência de suas

leis, eles abandonam a barbárie e se adaptam a uma vida mais humana e ao

culto da virtude. E se recusam esse império, é permissível impô-lo por meio

das armas e tal guerra será justa, assim como o declara o direito natural [...].

Concluindo: é justo, normal e de acordo com a lei natural que todos os

homens probos, inteligentes, virtuosos e humanos dominem todos os que não

possuem essas virtudes. (BUENO, 2007, p. 23-24)

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Contrapondo-se à tese apresentada por Sepúlveda, pronuncia-se, enfaticamente,

Las Casas, consoante se verifica dos excertos adiante expostos:

[...] até esse momento em que li e dissertei por escrito a esta notável e

venerável Assembleia, falei geralmente contra os adversários dos índios de

nossas Índias que estão no mar Oceano, sem fazer menção de ninguém,

embora eu conheça alguns que se dão ao trabalho de escrever abertamente

certos tratados cujo fim principal é desculpar e defender as guerras que eram

e são feitas e podem ainda fazer-se contra esses índios [...]. Subjugar esses

índios por meio de guerras, antes que tenham pela prègação da fé ouvido o

nome de JESUS CRISTO, como cousa conforme à nossa lei cristã e como se

essas guerras fossem justas [...] nenhum cristão pode lícita e honestamente

confirmar e defender a autoridade que se diz apostólica nem a dominação de

um rei cristão com guerras injustas, cobrindo montanhas e campos de sangue

inocente, com infâmia e blasfêmia para Jesus Cristo e a fé. Senão que ao

contrário isso constitui uma difamação da Sé Apostólica que assim vê sua

autoridade diminuída e o verdadeiro Deus desonrado, tornando-se o

verdadeiro título e o direito dos reis de Castela, nulo [...]. Êsse título e direito

não se funda na ação de entrar nesses países e contra esses índios para roubá-

los, matá-los e tiranizá-los com a desculpa de pregar a fé, tal como ali

entraram e fizeram os tiranos que destruíram por matança e massacre

universal tão grande multidão de inocentes. Êsse título consiste ao contrário

numa pacífica, dócil e amável prègação do Evangelho e na introdução e

fundação não fingida da fé e do reino de Jesus Cristo [...]. Ora, para que não

possam algumas de Vossas Senhorias, Graças e Paternidades, ser induzidas a

tão prejudiciais tendências, (como cristãos e mui sábios que sois) será cousa

útil e conveniente impor o silêncio a uma opinião tão nociva e abominável

(LAS CASAS, 1944, p. 173-175).

A controvérsia entre Sepúlveda e Las Casas foi dirimida, a favor deste, por

Francisco de Vitoria, teólogo tomista e titular da cátedra de direito da Universidade de

Salamanca. Vitoria concluiu que os índios não poderiam ser escravizados e eram os autênticos

possuidores das terras descobertas. A decisão de Vitoria, no entanto, chegara tarde demais,

pois, em 1550, mais de noventa por cento da população indígena do Caribe já estava

exterminada.

Dos fatos acima narrados, é de se concluir que as ideias de Bartolomé de Las

Casas contra a colonização, a opressão e a escravização, conquanto difundidas há mais de

cinco séculos, permanecem vivas e atuais, sobretudo quando se considera a política

intervencionista levada a efeito pelos EUA nas duas últimas décadas, que muito se

assemelham, mutatis mutandis, ao furor e à avidez dos conquistadores espanhóis, acarretando

toda sorte de vilipêndio e afronta à dignidade da pessoa humana.

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2.4.3 Kant: O homem considerado como fim em si mesmo e a consequente noção de

dignidade humana

Sem embargo da valiosa contribuição oferecida por Pico Della Mirandola no que

se refere ao tema da dignidade da pessoa humana, será com os autores modernos, dos quais

Immanuel Kant é figura proeminente, que a discussão acerca do tema em questão ganhará

contornos mais precisos, a partir da ideia de igualdade e da concepção da existência de uma

natureza racional. No pensamento de Kant, a dignidade (Würde) decorre da natureza humana

racional, na medida em que significa dominação e capacidade de auto-imputação de regras de

comportamento. (CANTO-SPERBER, 2003).

Como bem observa Eduardo Bittar:

De fato, a dignidade tem a ver com esta capacidade de ser autônomo, na

medida em que age a razão legisladora e moral. Se há o mundo dos fins

absolutos (esfera do incondicional, do não relativizável, do inapreciável), em

contraposição ao mundo dos fins relativos (esfera do preço, da troca, do útil,

do variável), a definição humana decorre se sua condição invariável e

inavaliável, na medida em que ninguém vale mais que ninguém, ninguém

pode ser avaliado mais que ninguém, ao contrário das coisas in comercio. O

uso da lei moral é um uso da razão legisladora a favor da humanidade-como-

fim, ou seja, contrária a que o homem seja tornado instrumento ou meio para

a realização de fins pessoais ou egoísticos [...]. (BITTAR apud ALMEIDA

FILHO, MELAGARÉ, 2010, p. 247).

Sally Sedgwick, de outra parte, pondera:

Kant faz uma distinção entre, por um lado, os seres racionais que pertencem

ao reino dos fins como “membros” e, por outro, o “soberano” dos reinos dos

fins. [...] os membros do reino dos fins ao mesmo tempo dão a lei e estão a

ela “submetidos” [...]. Por sermos seres racionais, nós temos a capacidade de

autonomia e podemos, dessa maneira, dar a nós mesmos uma lei. Porém, por

sermos vontades finitas e precisarmos ser comandados para a moralidade,

nós somos ao mesmo tempo submetidos às leis morais. Em outras palavras,

essas leis nos obrigam” (SEDGWICK, 2017, p. 218-219).

Analisando a argumentação de Kant quanto às acepções que adquire a palavra

“valor” quando esta vem associada ao homem, observa Eduardo Rabenhorst:

[...] Kant estabelece uma distinção inexistente na língua portuguesa entre

Wert (valor em alemão) e valor (valor em latim). Para Kant, aquilo que pode

ser comparado ou substituído por algo equivalente, tem um preço. Em

contrapartida, aquilo que é incomparável e insubstituível, encontra-se acima

de qualquer preço. Dessa forma, o homem pode ser avaliado sob dois

prismas distintos: em função de suas habilidades, méritos ou competências,

ele tem um valor (valor); entretanto, enquanto pessoa moral, ele é portador

de um valor (Wert) incalculável que recebe o nome de dignidade

(Würdigkeit). E um ser digno, acrescenta Kant, deve ser tratado, pelos

outros, mas também por ele próprio, sempre com respeito (Achtung), isto é,

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como um fim em si mesmo e não como meio para obtenção de alguma coisa.

(RABENHORST apud ALMEIDA FILHO, MELAGARÉ, 2010, p. 30-31).

Com o escopo de explicitar o pensamento de Kant a respeito da questão essencial

de se considerar o homem como um fim em si mesmo, decorrendo daí que esse homem possui

um valor superior intrínseco – a dignidade, cita-se alguns excertos da obra Fundamentos da

Metafísica dos Costumes:

Agora eu afirmo: o homem, e em geral todo ser racional, existe como fim em

si mesmo, não só como meio para qualquer uso desta ou daquela vontade; em

tôdas as suas ações, deve, não só nas dirigidas a si mesmo, como também

nas dirigidas aos demais sêres racionais, ser considerado sempre ao mesmo

tempo como fim [...] os sêres cuja existência não assenta em nossa vontade,

mas na natureza, têm, contudo, se são sêres irracionais, um valor meramente

relativo, como meios, e por isso se denominam coisas; por outro lado, os

sêres racionais se denominam pessoas, porque a sua natureza os distingue já

como fins em si mesmos, isto é, como algo que não pode ser usado

meramente como meio, e, portanto, limita nesse sentido todo capricho (e é

um objeto do respeito) [...]. Segundo o conceito do dever necessário para

consigo mesmo, há de indagar de si mesmo quem ande pensando no

suicídio, se sua ação pode compadecer-se com a ideia da humanidade como

fim em si. Se, para fugir a uma situação dolorosa, êle se destrói a si mesmo,

faz uso de uma pessoa como meio ocasional para conservar uma situação

tolerável até o têrmo da vida. Mas o homem não é uma coisa; não é, pois,

algo que se possa usar como simples meio; deve ser considerado, em tôdas as

ações, como fim em si mesmo. Não posso, pois, dispor do homem, em

minha pessoa, para mutilá-lo, estropiá-lo, matá-lo [...]. No que se refere ao

dever necessário para com os demais, aquêle que está meditando em

formular promessa falsa, compreenderá até que ponto quer usar do outro

homem como de um simples meio, sem que êste contenha, ao mesmo tempo,

o fim em si [...]. Aquêle que lesa os direitos dos homens livres está decidido

a usar a pessoa alheia como simples meio, sem levar em consideração que os

demais, como sêres racionais que são, devem ser tidos sempre ao mesmo

tempo como fins, digamos, só como tais sêres que devem conter em si o fim

da própria ação [...]. A respeito do dever meritório com os demais, é o fim

natural, que todos os homens têm: sua própria felicidade [...]. Pois, sendo o

sujeito fim em si mesmo, os fins dêste devem ser também, na medida do

possível, meus fins, se aquela representação há de se ter em mim todo o seu

efeito [...] Quando se julgava o homem submetido sòmente a uma lei (fôsse

qual fôsse), era necessário que esta lei levasse consigo algum interêsse,

atração ou coação, porque não surgia como lei de sua própria vontade, mas

esta vontade era forçada, conforme à lei, por alguma outra coisa a agir de

certo modo [...]. Pois, nunca se obtinha dever, senão necessidade da ação por

certo interêsse, fôsse êste interêsse próprio ou alheio. Então, o dever

imperativo havia de ser sempre condicionado e não poderia servir para o

mandato moral. Chamarei êste princípio o da autonomia da vontade, em

oposição a qualquer outro, que, por isso mesmo qualificarei de heteronomia

[...]. Todos os sêres racionais estão sujeitos à lei de que cada um dêles deve

tratar-se a si mesmo e tratar a todos os demais, nunca como simples meio,

mas sempre ao mesmo tempo como fim em si mesmo [...]. A razão refere,

pois, toda máxima da vontade como universalmente legisladora de qualquer

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outra vontade e também de qualquer ação para consigo mesma, e isto não em

virtude de algum outro motivo prático ou em vista de determinado proveito

futuro, mas pela idéia da dignidade de um ser racional que não obedece a

nenhuma outra lei senão àquela que êle dá a sim mesmo [...]. No reino dos

fins tudo possui ou um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço pode

ser substituído por algo equivalente; por outro lado, o que se acha acima de

todo preço e, portanto, não admite nada equivalente, encerra uma dignidade

[...] o que constitui a condição para algo que seja fim em si mesmo, isso não

tem meramente valor relativo ou preço, mas um valor interno, isto é,

dignidade [...]. A moralidade é a condição debaixo da qual um sêr racional

pode ser fim em si mesmo [...]. Assim, pois, a moralidade e a humanidade,

enquanto esta é capaz de moralidade, são as únicas que possuem dignidade

[...]. A habilidade e o afã no trabalho têm um preço comercial; a graça, a

imaginação, o engenho, têm um preço de afeto; por outra forma, a fidelidade

nas promessas, a benevolência por princípio (não por instinto), têm um valor

interno. A natureza, como a arte, não encerra nada que possa substituí-la, no

caso de faltar, pois seu valor não consiste nos efeitos que delas brotam, nem

no proveito e na utilidade que proporcionam, mas sim nos sentimentos

morais, isto é, nas máximas da vontade, que estão prontas a manifestar-se

desse modo em ações, ainda quando o êxito não as favoreça [...]. Que é que

justifica tão altas pretensões dos sentimentos morais bons ou da virtude?

Nada menos do que a participação que dá ao ser racional na legislação

universal, fazendo-o através dele, apto a ser membro de um reino possível

dos fins, ao qual por sua própria natureza estava já destinado, como fim em

si mesmo e, portanto, como legislador no reino dos fins, como livre acêrca

de tôdas as leis naturais e obedecendo só àquelas que êle mesmo dá e pelas

quais suas máximas possam pertencer a uma legislação universal (à qual êle

próprio se submete ao mesmo tempo) [...]. Contudo, a própria legislação, que

determina todo valor, deve, por isso mesmo, ter uma dignidade, digamos, um

valor incondicionado, incomparável, para o qual só a palavra respeito dá a

expressão conveniente da estima que um ser racional deve tributar-lhe. A

autonomia é, pois, o fundamento da dignidade da natureza humana e de tôda

natureza racional. (KANT, 1967, p. 90-101).

Tendo-se em vista que o propósito do presente trabalho é analisar em que medida

as situações de vilipêndio e desrespeito à dignidade da pessoa humana, perpetradas tanto por

autoridades do Estado como por grupos armados, poderiam ensejar uma intervenção

internacional em bases institucionais, mister se faz considerar o fundamento da instituição dos

direitos humanos e, para tanto, há que se estudar, inicialmente, as formulações teóricas de

dois teólogos da Igreja Católica – Francisco de Vitoria e Bartolomé de Las Casas – para, em

seguida, examinar-se as concepções mais modernas a respeito da temática em foco.

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2.4.4 Uma abordagem moderna a respeito do fundamento dos direitos humanos

2.4.4.1 Hannah Arendt

A temática da dignidade humana e dos direitos humanos reveste-se de grande

complexidade, de modo que qualquer trabalho de investigação acerca de seu significado e

caracterização encerra uma empresa arrojada e árdua. Assim, as formulações sobre os direitos

humanos ainda hoje ressentem-se de grande imprecisão e, por essa razão, revelam-se

insuficientes para explicar, a partir de um padrão mínimo, quais seriam esses direitos

fundamentais comuns a todas as pessoas, indistintamente, a serem observados e efetivamente

protegidos pelos Estados.

No tema dos direitos humanos, há que se destacar a relevante contribuição de

Hannah Arendt, a qual, tendo nascido na Alemanha e sendo proveniente de uma família de

judeus, presenciou as brutalidades perpetradas pelo Nazismo, denunciando a situação dos

apátridas como seres privados de cidadania e de direitos. Talvez o ponto alto de toda sua luta

em prol dos direitos humanos seja a obra Origens do Totalitarismo, publicada em 1951, após

ter conseguido a cidadania norte-americana. A publicação da referida obra é saudada nos

EUA como grande acontecimento e ela passa a receber o reconhecimento público de seu

pensamento. Nessa obra, Hannah Arendt descreve o processo pelo qual, depois dos Tratados

de Paz que puseram fim à Primeira Guerra Mundial, os direitos do homem herdados da

tradição das Revoluções passaram por uma prova de fogo. Considerados inexistentes para

uma categoria de pessoas tidas como “sem direitos” por serem apátridas, os direitos do

homem demonstraram sua ineficácia quando desvinculados da cidadania. Essa era também a

situação das pessoas pertencentes às minorias nacionais de muitos países, que por força da

guerra, haviam sido transformadas em refugiadas, sem encontrar um lugar no mundo.

Observa, a propósito, Hannah Arendt que a Declaração dos Direitos do Homem,

no fim do século XVIII, foi um marco decisivo na história. Significava que doravante o

Homem, e não o comando de Deus nem os costumes da história seria a fonte da Lei.

Independente dos privilégios que a história havia concedido a certas camadas da sociedade ou

a certas nações, a declaração era ao mesmo tempo a mostra de que o homem se libertava de

toda espécie de tutela e o prenúncio de que já havia atingido a maioridade. Como se afirmava

que os direitos do homem eram inalienáveis, irredutíveis e indeduzíveis de outros direitos ou

leis, não se invocava nenhuma autoridade para estabelecê-los; o próprio Homem seria a sua

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origem e seu objetivo último. A soberania do povo (diferente da do príncipe) não era

proclamada pela graça de Deus, mas em nome do Homem, de sorte que parecia apenas natural

que os direitos “inalienáveis” do Homem encontrassem sua garantia no direito do povo a um

autogoverno soberano e se tornassem parte inalienável desse direito. Toda a questão dos

direitos humanos foi associada à questão da emancipação nacional; somente a soberania

emancipada do povo parecia capaz de assegurá-los – a soberania do povo a que o indivíduo

pertencia. Como a humanidade, desde a Revolução Francesa, era concebida à margem de uma

família de nações, tornou-se gradualmente evidente que o povo, e não o indivíduo,

representava a imagem do homem (ARENDT, 1989).

E prossegue a autora dizendo que os direitos do Homem, afinal, haviam sido

definidos como “inalienáveis” porque se supunha serem independentes de todos os governos,

mas sucedida que, no momento em que os seres humanos deixavam de ter um governo

próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a

garanti-los. Os Direitos do Homem, supostamente inalienáveis, mostraram-se inexequíveis –

mesmo nos países cujas constituições se baseavam neles – sempre que surgiam pessoas que

não eram cidadãos de algum Estado soberano. Ninguém se apercebia de que a humanidade,

concebida durante tanto tempo à imagem de uma família de nações, havia alcançado o estágio

em que a pessoa expulsa de uma dessas comunidades rigidamente organizadas e fechadas via-

se expulsa de toda a família das nações. Enfatiza Arendt que:

Os próprios nazistas começaram a sua exterminação dos judeus privando-os,

primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda

classe) e separando-os do mundo para ajuntá-los em guetos e campos de

concentração. O importante é que se criou uma condição de completa

privação de direitos antes que o direito à vida fosse ameaçado. O crime de

instituir a escravidão não começou quando um povo derrotou e escravizou os

seus inimigos, mas quando a escravidão se tornou uma instituição na qual

alguns homens “nasciam” livres, e outros escravos. Assim, a calamidade que

se vem abatendo sobre um número cada vez maior de pessoas não é a perda

de direitos específicos, mas a perda de uma comunidade disposta e capaz de

garantir quaisquer direitos. O homem pode perder todos os chamados

Direitos do Homem sem perder a sua qualidade essencial de homem, sua

dignidade humana. O fator decisivo é que esses direitos, e a dignidade

humana que eles outorgam, deveriam permanecer válidos e reais mesmo que

somente existisse um único ser humano na face da terra; não dependem da

pluralidade humana e devem permanecer válidos mesmo que um ser humano

seja expulso da comunidade humana. O conceito de direitos humanos,

baseado na suposta existência de um ser humano em si, desmoronou no

mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram

pela primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas as outras

qualidades e relações específicas – exceto que ainda eram humanos.

(ARENDT, 1989, p. 332-336).

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2.4.4.2 Mireille Delmas-Marty

Mireille Delmas-Marty, em arguta análise a respeito do referido tema, sustenta,

em linhas gerais, que os “direitos do homem” implicam o reconhecimento dos mesmos

direitos a todos, porém, observa a autora, que sob a aparente simplicidade dessa fórmula

esconde-se uma série de armadilhas relacionadas a processos de exclusão e assimilação de

culturas diferentes (DELMAS-MARTY, 1995). Reportando-se à Declaração Universal dos

Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 10/12/1948,

enfatiza Delmas-Marty que, inicialmente proclamada como “ideal comum”, esse documento

aproxima-se lentamente do direito positivo, lembrando, ainda, a autora, que no discurso de

abertura da Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena, em 1993, ressaltou o então

Secretário-Geral das Nações Unidas que a Declaração Universal dos Direitos do Homem de

1948 constituiu “um modelo comum a ser seguido por todos os povos e todas as nações”,

ponderando Delmas-Marty que a objeção de que essa afirmação do Secretário-Geral das

Nações Unidas estaria carregada de eurocentrismo, ou ocidentalismo, é de sustentação difícil,

já que, na aludida Conferência, 180 Estados e numerosas organizações não-governamentais

estavam ali representados (DELMAS-MARTY, 1995).

Apesar disso, se as dificuldades não estão superadas, são ao menos discutidas, e o

debate está aberto a partir do reconhecimento “universal”, o qual continua sob forte risco.

Risco de permanecer puramente encantatório e de manter a exclusão daqueles que são

expelidos da esfera jurídica; ou risco de assimilação forçada, ou furiosa, que, sob o pretexto

da integração, suprime todas as diferenças. Será necessário estabelecer limites, submeter-se às

interdições fundadoras para consagrar, no sentido pleno do termo, o humano do homem, este

“irredutível humano” invocado pelo Secretário-Geral da ONU na abertura da Conferência de

Viena, em junho de 1993. Proibição dos Estados derrogá-los, aos indivíduos de transgredi-los:

direitos “inderrogáveis” e crimes “imprescritíveis”, tais são as expressões jurídicas dos

grandes interditos que protegem, sem ousar nomeá-lo, este irredutível humano que é urgente

fundar (DELMAS-MARTY, 1995).

Observa, ainda, Delmas-Marty (1995) que no caminho da universalidade dos

direitos humanos encontram-se armadilhas, sendo que a mais visível delas é a exclusão sob a

forma de exclusão, sob todas as suas formas, individuais ou coletivas, civis e políticas ou

sociais e econômicas. Do mesmo modo, há a armadilha dos bons sentimentos em nome dos

quais uma civilização impõe a outras a assimilação forçada, persuadida de sua superioridade

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sobre práticas “arcaicas” e “bárbaras”, o que vem caracterizar um universalismo “de cima

para baixo”, contrastando com outro, “plural”, “reiterativo” ou ainda “lateral”, que, pelo

diálogo, confrontação ou mesmo oposição e conflito, esforça-se por conjugar as diferenças,

lembrando a autora que a dignidade da pessoa não se divide e que depende tanto dos direitos

econômicos e sociais quanto dos direitos civis e políticos, consagrados nos Pactos

Internacionais de 1966, no âmbito das Nações Unidas.

A questão relativa à exclusão e assimilação ganha vulto, segundo Delmas-Marty,

quando se enfrenta o problema das minorias, sejam elas nacionais, étnicas, religiosas ou

linguísticas, visto que, segundo a autora, no momento em que se reconhecem os direitos de

uma minoria, admitindo-se, então, o “direito à diferença”, respeita-se a minoria, mas, de outro

lado, legitima-se a exclusão dos minoritários por uma política de apartheide a criação de

guetos de todos os tipos. Em resposta ao universalismo ingênuo de 1948 (ano da Declaração

Universal dos Direitos do Homem da ONU), pontua Delmas-Marty que o ano de 1993,

quando se realizou a Conferência Mundial dos Direitos Humanos, também sob a ONU,

marca-se a passagem a um “universalismo plural” e, a partir daí, pode-se conceber um espaço

construído de muitas globalidades, umas perfeitamente ordenadas, outras parcialmente, outras

ainda não ordenadas. A lógica clássica pode apenas perceber o primeiro modelo e conclui,

para o resto, ser desordem. Entretanto, combinando-a com uma lógica de gradação, vale dizer,

combinando o par identidade e conformidade com o par proximidade e compatibilidade,

pode-se abranger uma parte mais extensa do conjunto (DELMAS-MARTY, 1995).

Destarte, a superposição dos conjuntos normativos nacionais, regionais e

mundiais, já fundada, parece ser um instrumento adequado, assinala a autora. Pois esta

superposição permite todo um jogo de referências cruzadas (de um país ou de uma região à

outra, mas também de um nível nacional, regional ou mundial a outro), facilitando a

elaboração de princípios comuns, não apenas declarativos, mas comandando a escolha e a

interpretação das normas jurídicas nacionais. Delmas-Marty reporta-se à expressão “nova

permeabilidade jurídica”, utilizada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas no discurso de

abertura da Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena, ponderando que essa

permeabilidade aboliria a tradicional distinção entre ordem interna e ordem internacional, e

poderia facilitar não apenas as trocas verticais, mas também as horizontais, de um Estado a

outro, de uma região a outra e, assim, contribuir para o “universalismo plural” dos direitos do

homem que conjugaria as diferenças sem por isso retornar a formas de exclusão disfarçada,

sob a condição de não causar prejuízo a este “irredutível humano”, que expressa ao mesmo

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tempo a identidade da Comunidade Humana e a singularidade de cada um dos que a

compõem.

Segundo Delmas-Marty (1995), esse “irredutível humano” submeteu-se a rude

prova durante a Segunda Guerra Mundial, tomando a forma de um duplo interdito após a

guerra: 1) interdito aos Estados de derrogar alguns direitos chamados “inderrogáveis”; 2)

interdito aos homens de transgredir alguns valores, referente aos crimes ditos

“imprescritíveis”. E prossegue a autora que a primeira manifestação da ideia de que nenhuma

circunstância, fosse ela excepcional como uma guerra, poderia justificar certas violações dos

direitos fundamentais, está ligada ao que é chamado convencionalmente de direito

internacional “humanitário”, que compreende um conjunto de convenções assinadas em

Genebra – a primeira em 1864 – assinadas por iniciativa do Comitê Internacional da Cruz

Vermelha para proteger ,em tempos de guerra, os feridos, doentes e naufragados das forças

armadas, os prisioneiros de guerra e a população civil. Mais tarde, foram assinadas mais

quatro convenções em 1949, completadas pelos protocolos adicionais de 1977, sobre proteção

das vítimas de conflitos armados, internacionais ou não (guerras civis). Contudo, não apenas

nas circunstâncias de guerras e de conflitos armados os Estados podem estar tentados a

derrogar esses direitos fundamentais, mas também nos “estados de exceção”, daí a

necessidade de se impor um limite maior como um interdito extremo à concretização dessas

situações de violação dos direitos humanos.

É por essa razão, afirma a autora, que, desde 1982, com o relatório elaborado pela

Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas, vem sendo lançada a ideia de que o

princípio da intangibilidade dos direitos fundamentais viria a ser, para além do direito escrito

das convenções internacionais ou regionais, um princípio geral constituinte para todos os

Estados, uma norma imperativa do direito internacional geral. Ressalta Delmas-Marty que

essa imperatividade é válida ao menos em relação ao “standard mínimo” comum aos

diferentes textos, como, por exemplo, o interdito da tortura e das penas ou tratamentos

desumanos ou degradantes, o da escravidão e da servidão e das leis penais retroativas. O

direito à vida, no entanto, para Delmas-Marty (1995), não poderia ser considerado, no sentido

estrito, como um direito inderrogável porque a pena de morte permanece admitida por alguns

sistemas jurídicos, salvo se se consideram as circunstâncias que podem acrescentar

tratamentos desumanos ou degradantes ao ato homicida, quer se trate das condições de uma

execução capital, ou ainda de desaparecimentos forçados ou involuntários, e mesmo de

genocídio. Estes exemplos mostram que há uma urgência em compreender melhor este

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irredutível humano que, em nome dos direitos inderrogáveis, protegeria de fato bem mais que

a vida de um indivíduo, pois trata-se de um valor tanto individual (o mais precioso de cada

ser) quanto coletivo (a ideia mesmo de humanidade).

Analisados os direitos inderrogáveis, cabe, neste passo, analisar a categoria dos

crimes contra a humanidade, considerados por Delmas-Marty como crimes imprescritíveis. A

prescrição, explica Delmas-Marty (1995), não é um ato de vontade, como a anistia e a graça.

Não é o perdão dos homens, mas somente o esquecimento devido ao tempo, que garante a

impunidade dos crimes após um certo prazo, porém, acrescenta a autora, apesar de suas

virtudes apaziguadoras, a impunidade, sobretudo quando bloqueia todo processo, impede a

formação de uma memória. O fundamento dos direitos inderrogáveis permanece como um

fundamento individual – trata-se de direitos do homem, mesmo se eles evocam aqui a

dignidade da pessoa, no sentido mais forte do termo. Com o crime contra “a humanidade”

aparece a ideia de um fundamento coletivo. Está aí um ponto comum aos vários interditos

enumerados como crimes contra a humanidade. Dizemos, prossegue Delmas-Marty (1995),

que o ser humano, mesmo inscrito profundamente em um grupo familiar, cultural ou

religioso, não deveria jamais perder sua individualidade.

Singularidade e igual pertencimento, tais seriam os componentes da humanidade

compreendida como pluralidade de seres únicos, o que equivale a dizer que a expressão

“crimes contra a humanidade” designaria toda prática deliberada, política, jurídica, médica ou

científica, comportando quer a violação do princípio da singularidade (exclusão podendo

chegar até o extermínio de grupos humanos reduzidos a uma categoria racial, étnica ou

genética, ou, ao contrário, fabricação de seres idênticos), quer o princípio de igual pertencer à

comunidade humana (práticas discriminatórias, como o apartheid, criação de “super-

homens”, por seleção genética ou de “sub-homens” por cruzamento de espécies). Pelo

interdito supremo do crime contra a humanidade, conclui Delmas-Marty, é precisamente o

direito comum da humanidade que nos esforçamos por inventar. Esforço sempre recomeçado,

limites sempre a reconstruir, pois se “nada é mais comum que as boas coisas”, a questão é as

discernir. E sua proximidade nos afasta e torna-as quase invisíveis (DELMAS-MARTY,

1995).

Edison Nunes, analisando as transformações operadas no final do século XX,

manifesta-se, percucientemente, da seguinte forma:

Duas grandes reivindicações marcam o pensar e o agir sobre o mundo neste

final de século. Uma exige veemente homogeneização das relações

sociopolíticas: a democracia, o mercado e os direitos humanos constituem

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ideias regulativas quase consensuais, ainda que passíveis de interpretações

divergentes. A outra – outra em mais de um sentido – pede o respeito às

diversidades, aos processos indentitários coletivos, à alteridade e à

autonomia. Entre a primeira demanda, a da Norma, e a segunda, das

Diferenças, constela-se um espaço de tensão permanente e irredutível. Hoje,

um espaço planetário. (NUNES, 1995, s/d)

O quadro teórico acima exposto revela, com toda clareza, que a busca de um

fundamento único, que se apresente como um paradigma para expressar o significado e a

essência da dignidade humana, ainda constitui empresa assaz arrojada. Tal constatação parece

justificar-se pelo fato de que quaisquer formulações ou considerações nesse sentido irão

espelhar, não raro, um ponto de vista subjetivo e unilateral a respeito de um tema que,

evidentemente, reveste-se de grande abrangência. Contudo, os argumentos ponderáveis

expendidos por autores de excelência como aqueles citados neste capítulo, a par da

divergência natural que entre eles possa existir, parecem convergir em um ponto essencial: o

reconhecimento de que a dignidade da pessoa humana constitui a sua essência, é um atributo

intrínseco ao homem enquanto ser e, quando de alguma forma, mostrar-se ameaçada ou

vilipendiada, deve merecer total e completa proteção por parte dos Estados, bem como das

organizações internacionais intergovernamentais e de outras instituições representativas da

comunidade internacional organizada.

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CAPÍTULO 3 - A SOBERANIA DO ESTADO EM FACE DA VIOLAÇÃO

DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

3.1 A evolução histórica do conceito de soberania

3.1.1 Da “autarquia” da Cidade-Estado ao conceito de soberania de Jean Bodin

Um estudo mais detido do tema central objeto do presente trabalho não poderia,

evidentemente, prescindir de uma análise acurada acerca de um instituto com o qual aquele

guarda estreita relação, qual seja, o da soberania do Estado. Em princípio, o vocábulo

“soberania” parece provir remotamente do latim medieval superanus e, mais proximamente

do francês souveraineté (MACHADO PAUPÉRIO, 1971, p. 136). Hoje já se encontra

sedimentado o entendimento segundo o qual a soberania é um atributo do Estado. Nesse

sentido, a soberania, como bem observa Themístocles Cavalcanti:

É sempre o poder supremo, absoluto, acima do qual nenhum outro se

encontra [...]. Se a soberania pressupõe uma supremacia absoluta, deve-se

considerar como soberano aquele Estado que, na comunidade internacional,

não encontra limites no exercício dos seus direitos, não admite a tutela de

outros, em seus negócios internos. (CAVALCANTI, 1977, p. 135)

Contudo, há que se considerar o processo de transformação experimentado, ao

longo dos tempos, pelo conceito de soberania, concebido, em sua gênese, como o poder

supremo e absoluto de que desfrutavam os monarcas e que provinha de um direito divino

para, em época posterior, conceber-se o povo e a nação como titulares desse mesmo poder,

com a consequente evolução de um poder absoluto e concentrado para um poder mais

relativo, baseado na convivência entre os Estados soberanos cujas relações se desenvolvem no

ambiente da sociedade global. Nesse sentido, avulta uma questão atual consistente no

entendimento segundo o qual poder-se-ia admitir uma mitigação do poder soberano do

Estado, seguida da possibilidade de uma intervenção militar de caráter institucional, quando

constatadas claras situações de desrespeito à dignidade da pessoa humana.

A doutrina, em geral, considera que o conceito de soberania foi claramente

afirmado e teoricamente definido no século XVI, com a publicação da obra “Les Six Livres

de la République”, de Jean Bodin. Na Antiguidade greco-romana, em que pese o elevado

grau de desenvolvimento das Cidades-Estado, ainda não se podia falar em soberania no

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sentido que se empresta ao vocábulo quando da definição de seu conceito no final da Idade

Média. Sendo assim, Alexandre Groppali sustenta que:

Na antiguidade, realmente, os grandes clássicos, enquanto mantinham

sempre presentes, tanto o território quanto o povo, considerando-os como

fatôres das constituições políticas, jamais acenaram para êsse outro

elemento, o da soberania. Nem ARISTÓTELES a êle se refere, não sendo

possível confundir o seu conceito de autarcheia, isto é, da possibilidade de o

Estado bastar-se a si mesmo sem necessidade de outros organismos que o

integrem, com o conceito moderno de soberania, o qual pressupõe auto-

suficiência mas significa também e acima de tudo, domínio no interior e

independência frente a outros Estados. (GROPPALI, 1953, p.143-144)

Aduz Sahid Maluf que “Historicamente, é bastante variável a formulação do

conceito de soberania, no tempo e no espaço. No Estado grego antigo, como se nota na obra

de Aristóteles, falava-se em autarquia, significando um poder moral e econômico, de auto-

suficiência do Estado” (MALUF, 1991, p. 30).

No mesmo sentido, pondera Dalmo Dallari:

Em ARISTÓTELES, no Livro I de “A Política”, apontam-se as

peculiaridades da Cidade, sobretudo aquelas que a diferenciam da sociedade

familiar, afirmando-se então a idéia de superioridade da Cidade-Estado, por

ser dotada de autarquia. Esta expressão, entretanto, não indica supremacia

de poder, significando apenas que ela era auto-suficiente, capaz de suprir às

próprias necessidades. Do conceito de autarquia nada se pode deduzir quanto

à intensidade e à amplitude interna ou externa do poder do Estado. Em Roma

também não se chega a qualquer noção que se possa considerar semelhante

ou análoga à de soberania. Com efeito, os termos majestas, imperium e

potestas, usados em diferentes circunstâncias como expressões de poder, ou

indicam poderio civil ou militar, ou revelam o grau de autoridade de um

magistrado, ou ainda podem externar a potência e a força do povo romano.

Nenhuma delas, porém, indica poder supremo do Estado em relação a outros

poderes ou para decidir sobre determinadas matérias [...]. No final da Idade

Média, os monarcas já têm supremacia, ninguém lhes disputa o poder, sua

vontade não sofre qualquer limitação, tornando-se patente o atributo que os

teóricos logo iriam perceber, a soberania, que no século XVI aparece como

um conceito plenamente amadurecido, recebendo um tratamento teórico

sistemático e praticamente completo. (DALLARI, 2005, p. 75)

Para Francisco Porrua Perez:

El hecho de que en la antigüedad no se haya llegado a obtenerse concepto

preciso de soberanía, tiene una explicación histórica. En el mundo antiguo

no existió una situación que hiciera nacerse concepto, que es, precisamente,

la oposición del poder del Estado a otros poderes. En cambio, en épocas

posteriores surgieron esas luchas y el Estado, para consolidarse, tuvo que

luchar con otros poderes sociales, y surgió como Estado soberano

precisamente de esas luchas, al triunfar en las mismas. (PORRUA PEREZ,

1962, p. 304)1

1 “O fato de na Antiguidade não se ter chegado a obter esse conceito preciso de soberania tem uma explicação

histórica. No mundo antigo, não existiu uma situação que fizera nascer esse conceito, que é, precisamente, a

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Marcelo Figueiredo Santos, reportando-se ao fato de a soberania constituir um

tema complexo e de variada significação, assim se expressa: “Poucos são os conceitos tão

polêmicos e tão cheios de significação como o da ‘soberania’. Deveras, pode-se dizer que

soberania em sentido amplo significa o poder, a autoridade em última instância, em uma

sociedade política”. (SANTOS, 2009, p.24). E prossegue o autor, louvando-se nos

ensinamentos de Niccola Mateucci:

Niccola Mateucci fornece-nos a evolução histórico-política da soberania. Na

antiguidade e na Idade Média, eram utilizados termos diversos tais como:

summa potestas, summum imperium, matestas plenitudo potestatis (doutrinas

teocráticas), ‘soberano’. Na Idade Média, a palavra soberano muda

profundamente o seu significado para designar apenas uma posição de

proeminência, isto é, a posição daquele que era superior num bem definido

sistema hierárquico: por isso, até os barões eram soberanos em suas

baronias. (MATEUCCI apud SANTOS, 2009, p. 24)

Oskar Fischbach assinala que:

El origen del concepto ‘soberanía’ está íntimamente relacionado con el

robustecimiento del poder del Estado moderno, de una parte, en sentido

interno, es decir, sobre sus nacionales, y de otra hacia fuera, esto es, en

relación con otros Estados [...]. Fue desconocido de la Antigüedad y de la

Edad Media porque sólo pudo evidenciarse cuando se trató de la relación

de un Estado con otros, es decir, cuando coexistieron diversos Estados con

potencia aproximadamente igual o equilibrada. Como, por ejemplo, los

territorios medievales no eran independientes ni sus relaciones exteriores,

porque sobre ellos gravitaban poderes más altos (El Emperador y el Papa),

ni su órbita interior, porque los estamentos ejercían las atribuciones de su

clase, que en la actualidad no podemos imaginar de otro modo que como

relacionadas con el poder del Estado, es claro que no pudiera entonces

hablarse de su soberanía. (FISCHBACH, 1929, p. 125-126)2

A Idade Média apresenta dois momentos que vão indicar o exercício da soberania

por meio de duas autoridades. Observa Dalmo Dallari que:

oposição do poder do Estado a outros poderes. Por outro lado, em épocas posteriores surgiram essas lutas e o

Estado, para consolidar-se, teve que combater com outros poderes sociais, e surgiu como Estado soberano

precisamente dessas lutas, após vencê-las”. (Tradução nossa). 2 “A origem do conceito “soberania” está intimamente relacionado com o fortalecimento do poder de Estado

Moderno, de uma parte em sentido interno, vale dizer, sobre seus nacionais, e de outra para fora, isto é, em

relação a outros Estados [...]. Foi desconhecido da Antiguidade e da Idade Média porque só pôde se tornar

evidente quando se tratou da relação de um Estado com outros, ou seja, quando coexistiram diversos Estados

como potência aproximadamente igual ou equilibrada. Como, por exemplo, os territórios medievais não eram

independentes nem em suas relações exteriores, porque sobre eles gravitavam poderes mais altos (o Imperador e

o Papa), nem em sua órbita interior, porque os estamentos exerciam as atribuições de sua classe, que na

atualidade não podemos imaginar de outro modo senão o de que estavam relacionadas com o poder do Estado, é

claro que não se podia então falar de sua soberania”. (Tradução nossa).

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Até o século XII, a situação continua mal definida, aparecendo referência a

duas soberanias concomitantes, uma senhorial e outra real. Já no século

XIII, o monarca vai ampliando a esfera de sua competência exclusiva,

afirmando-se soberano de todo o reino, acima de todos os barões, adquirindo

o poder supremo de justiça e de polícia, acabando por conquistar o poder

legislativo. Assim é que o conceito de soberano, inicialmente relativo, pois

se afirmava que os barões eram soberanos em seu senhorio e o rei era

soberano em todo o reino, vai adquirindo o caráter absoluto, até atingir o

caráter superlativo, como poder supremo. No desenvolvimento desse

processo de afirmação da soberania dos reis há um aspecto verdadeiramente

curioso: tal afirmação se faz, de um lado, para tornar clara sua superioridade

em relação aos senhores feudais e a outros poderes menores; de outro, para

afirmar a independência dos reis relativamente ao Imperador e ao Papa.

(DALLARI, 2005, p.83)

Os estudiosos do Estado, em geral, parecem comungar do entendimento segundo

o qual o desenvolvimento da teoria da soberania, na Idade Média, foi corolário, de um lado,

da disputa de poder entre o Estado e a Igreja e, de outro, da luta pela afirmação do Estado

sobre o poder dos senhores feudais. No que tange ao embate entre Estado e Igreja, convém

aqui uma referência às ponderações de Thomas Fleiner-Gerster para quem:

[...] todas as formas de dominação tinham uma origem religiosa. Os

monarcas, com a ajuda da magia ou da religião, tentavam consolidar o poder

que haviam conquistado e deduzir do direito divino os seus direitos de

dominação. No entanto, não somente o direito dos monarcas, mas todo o

direito em geral era atribuído a uma origem sacra, razão pela qual não podia

ser modificado ad libitum [...]. É assim que a disputa entre a Igreja e o

Estado já surge com o nascimento do cristianismo [...]. A teoria das duas

espadas permitiu que se encontrasse novamente uma solução – temporária –

para as tensões entre o Estado e a Igreja. De acordo com essa teoria, o

imperador deteria a espada temporal enquanto o papa disporia da espada

espiritual [...]. A consolidação da posição do Papa, quer dizer, da direção da

Igreja, desempenhou um papel essencial ao lado do poder do Estado. No

começo de sua ampla dominação na Europa, a Igreja pôde exercer uma

influência decisiva sobre os imperadores [...]. Apesar disso, o germe da

separação já existia. Os dois poderes encontravam-se em uma relação de

mútua concorrência. (FLEINER-GERSTER, 2006, p. 218-220)

Paulo Bonavides, em percuciente análise do conflito entre os diversos poderes que

imperou na Idade Média e que levou ao desenvolvimento da noção de soberania, assim se

expressa:

A idade do meio se revela historicamente como o longo período em que a

ideia de Estado se apresenta amortecida em face da multiplicidade e

competição de poderes rivais [...]. A frouxa unidade do poder político

centralizado simbolicamente na pessoa do Imperador padece em sua órbita

mais larga o desafio da Igreja. A cúria romana e o Império lutam entre si,

pela supremacia do poder político. Dois gládios se defrontam, duas ordens se

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hostilizam: a ordem temporal e a ordem espiritual, a coroa e o sacerdócio,

Cristo e César. Os poderes autônomos das ordens intermediárias estavam

nominalmente sujeitos à autoridade superior do Império. Somente este, a

cuja testa se achava o Imperador, não ficara sujeito a nenhuma jurisdição. O

princípio da soberania começa historicamente por exprimir a superioridade

de um poder, desembaraçado de quaisquer laços de sujeição. Tomava-se a

soberania pelo mais alto poder, a supremitas, que constava já na linguagem

latina da Idade Média, por traço essencial com que distinguir o Estado dos

demais poderes rivais, que lhe disputavam a supremacia no curso do período

medievo. Ilustra a França, mais que qualquer outro país, o drama histórico

que gerou o conceito de soberania. Esse drama teve ali seu palco principal. A

expressão souveraineté (soberania) é francesa. (BONAVIDES, 2012, p.134-

135)

Celso Ribeiro Bastos, centrando sua análise nas profundas transformações

econômicas e sociais que levaram à decadência do sistema feudal e, por conseguinte, criaram

as condições para o aparecimento da classe burguesa, observa:

Diante desse contexto, fazia-se necessário substituir urgentemente o modelo

feudal, já tido por ultrapassado, por outro com condições de superar as crises

advindas da desintegração do primeiro. É o início do alinhamento de forças,

entre rei e burguesia, para a formação do modo de produção capitalista. E o

modelo que se prestou perfeitamente a levar adiante este papel, foi o das

monarquias nacionais, cujo esquema, posto de uma maneira simplista, era o

seguinte: a burguesia fornecia as condições materiais para que os reis

impusessem a sua soberania à Nação, com o que tinha-se por constituído o

Estado. Para ser mais exato, é só a partir do século XVI, na Europa, que os

reis, através de inúmeras e sangrentas batalhas, ganharam uma ascendência

inconteste dentro do território de cada reino. Note-se que a unificação

territorial e a centralização política dos Estados nacionais europeus tiveram

um papel fundamental na guinada da expansão do setor mercantil, ou melhor

dizendo, da força capitalista que já se iniciava. Portanto, o termo soberania

surge neste período, e não pode ser desvinculado de outro: o Estado

Moderno. (BASTOS, 2004, p. 96)

Nessa linha de raciocínio, pondera Reinhold Zippelius:

O princípio de um poder homogéneo de domínio do Estado revela-se, assim,

como uma ideia penosamente conquistada contra a desunião; esta ideia

nasceu da necessidade política e não de mera especulação [...]. O postulado

de um poder estatal homogêneo fundamenta-se na suposição de que só ele

cumpre adequadamente a função de proteção e ordem que se espera do poder

político. O conceito empírico de um poder de domínio do Estado, superior a

todos os outros poderes nele existentes, tem, porém, o seu fundamento na

evolução histórica e numa determinada situação política. (ZIPPELIUS, 1997,

p. 74)

A primeira obra teórica, assinala Dalmo Dallari, “a desenvolver o conceito de

soberania foi ‘Les six Livres de la République’, de Jean Bodin, havendo inúmeras fontes que

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apontam o ano de 1576 como o do aparecimento dessa obra” (DALLARI, 2005, p. 83).

Complementa Alberto Ribeiro de Barros, aduzindo que:

A primeira exposição sistemática da soberania é normalmente atribuída ao

jurista francês Jean Bodin (1529/30-1596), que reclama justamente da falta

de uma clara definição desse conceito: ‘Há, de fato, a necessidade de

formular a definição de soberania, porque não existiu nem jurisconsulto nem

filósofo que a tenha definido, embora seja o ponto principal e o mais

importante a ser entendido no tratado sobre a República’. Embora a palavra

‘Estado’ já esteja presente na literatura política do século XVI, Bodin

continua utilizando o tradicional termo ‘República’ para designar a

sociedade política organizada, que não se constitui, segundo ele, pela

aceitação das mesmas leis, da mesma religião, dos mesmos costumes, da

mesma língua, mas pelo reconhecimento da submissão a uma mesma

autoridade soberana, sem a qual há apenas grupos dispersos. A soberania é

considerada condição indispensável para a existência da sociedade política,

uma vez que é a única forma de poder capaz de assegurar a esse

agrupamento social sua necessária unidade e coesão. (BARROS, 2001, p.

27-28)

Será adotada, no presente trabalho, uma versão em espanhol da obra de Jean

Bodin, “Les Six Livres de la République” (“Los Seis Libros de la República”), notadamente o

Livro I, Capítulo 8, que trata, especificamente, do conceito de “Soberania”. Bodin, então,

define a soberania como o “poder absoluto e perpétuo de uma República”, aclarando, quanto

ao poder soberano, seu atributo de perpetuidade, expressando-se desta forma:

Digo que este poder es perpetuo, puesto que puede ocurrir que se conceda

poder absoluto a uno o a varios por tiempo determinado, los cuales, una vez

transcurrido este, no son más que súbditos. Por tanto, no puede llamárseles

príncipes soberanos cuando ostentan tal poder, ya que solo son sus

custodios o depositarios, hasta que place al pueblo o al príncipe revocarlos.

(BODIN, 1973, p. 46)3

Observa Dalmo Dallari que, “sendo um poder absoluto, a soberania não é limitada

nem em poder, nem pelo cargo, nem por tempo certo. Nenhuma lei humana, nem as do

próprio príncipe, nem as de seus predecessores podem limitar o poder soberano” (DALLARI,

2005, p. 84). Ainda examinando o caráter “absoluto” do poder, aduz Alberto de Barros:

O uso do adjetivo absoluto implica atribuir ao poder soberano as

características de superior, independente, incondicional e ilimitado. Ilimitado

porque qualquer limitação é incompatível com a própria idéia de um poder

supremo [...] Incondicional na medida em que este poder deve estar

desvinculado de qualquer obrigação [...] Independente, pois seu detentor

3 “Digo que este poder é perpétuo, posto que pode ocorrer que se conceda poder absoluto a um ou a vários por

tempo determinado, os quais, uma vez transcorrido este, não são mais que súditos. Portanto não se lhes pode

chamar de príncipes soberanos quando ostentam tal poder, já que são apenas seus guardas ou seus depositários,

até que convenha ao povo ou ao príncipe revogá-los”. (Tradução nossa).

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deve ter plena liberdade de ação [...] Superior porque aquele que possui o

poder soberano não pode estar submetido ou numa posição de igualdade em

relação a outros poderes [...]. (BARROS, 2001, p. 236)

E prossegue o mesmo autor tecendo considerações sobre a perpetuidade do

poder: “O adjetivo perpétuo indica a continuidade que o poder deve ter ao longo do tempo. Se

tiver uma restrição cronológica, por mais amplo que possa ser, não pode ser considerado

soberano. Trata-se da afirmação do princípio de continuidade temporal do poder público”

(BARROS, 2001, p. 234).

Embora parta do princípio de que o poder soberano é absoluto, vale dizer, que não

pode ser limitado por qualquer outro poder que detenha qualquer outra autoridade dentro do

Estado, admite Bodin, no entanto, que esse mesmo poder encontra limites somente em duas

situações, conforme se depreende do excerto adiante reproduzido:

Supongamos que cada año se elige a uno o varios de los ciudadanos y se

les da poder absoluto para manejar el estado y gobernarlo por entero sin

ninguna clase de oposición o apelación. No podremos decir, en tal caso,

que aquellos tienen la soberanía, puesto que es absolutamente soberano

quien, salvo a Dios, no reconoce a otro por superior? Respondo, sin

embargo, que no la tienen, ya que solo son simples depositarios del poder,

que se les ha dado por tiempo limitado [...]. No ocurre así con el príncipe

soberano, quien solo está obligado a dar cuenta a Dios [...]. La razón de

ello es que el uno es príncipe, el otro súbdito; el uno señor, el otro

servidor; el uno propietario y poseedor de la soberanía, el otro no es ni

propietario ni poseedor de ella, sino sudepositario. (BODIN, 1973, p. 48)4

Mais adiante, enfatiza Bodin:

En cuanto a las leyes divinas y naturales, todos los príncipes de la tierra

están sujetos a ellas y no tienen poder para contravenirlas, si no quieren ser

culpables de lesa majestad divina, por mover guerra a Dios, (...). Por esto,

el poder absoluto de los príncipes y señores soberanos no se extiende, en

modo alguno, a las leyes de Dios y de la naturaleza. (BODIN, 1973, p. 52-

53)5

4 “Suponhamos que a cada ano se eleja um ou vários cidadãos e se lhes dê poder absoluto para administrar,

integralmente, o governo, sem qualquer oposição nem apelação. Não poderemos dizer, em tal caso, que aqueles

têm a soberania, posto que é absolutamente soberano quem não reconhece outro por superior, salvo o poder de

Deus? Respondo, sem embargo, que não a têm, visto que são apenas simples depositários do poder, que se lhes

foi concedido por tempo limitado [...]. Não ocorre assim com o príncipe soberano, o qual só está obrigado a

prestar contas a Deus ... A razão disso é que um é príncipe, o outro é súdito; um é senhor, o outro é servidor; um

é proprietário e possuidor da soberania, o outro não é nem proprietário nem possuidor da mesma, mas apenas seu

depositário.” (Tradução nossa). 5 “Quanto às leis divinas e naturais, todos os príncipes da Terra estão sujeitos a elas e não têm poder para

transgredi-las, se não quiserem ser culpados de lesa-majestade divina, por fazer guerra a Deus, [...]. Por isso, o

poder absoluto dos príncipes e senhores não se estende, de modo algum, às leis de Deus e às leis da natureza”.

(Tradução nossa).

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A despeito do fato de Bodin aludir recorrentemente à lei divina, esclarece Alberto

Barros que:

Não se encontra uma definição clara e precisa daquela [...]. Não se encontra

também uma clara definição da lei natural. Ela aparece quase sempre ligada

à lei divina, às vezes pela conjunção ou, às vezes pela conjunção e,

marcando ora alternância, ora equivalência. Tomadas praticamente como

sinônimas, elas parecem se distinguir apenas pela maneira de se manifestar:

enquanto a lei divina é conhecida por meio da revelação, a lei natural se

impõe à razão pela equidade que carrega. Ambas expressam a vontade de

Deus, diante da qual o poder do soberano está submetido. (BARROS, 2001,

p. 245-247)

Cumpre notar que as leis de Deus e da natureza passam a adquirir um conteúdo

ainda mais específico no que se refere à obrigatoriedade dos contratos firmados pelo

soberano, consoante se infere das palavras de Jean Bodin: “[...] el príncipe soberano está

obligado al cumplimiento de los contratos hechos por él, tanto con sus súbditos como com

los extranjeros” (BODIN, 1973, p. 60)6. Acrescenta Alberto de Barros que: “O contrato

obriga as partes a cumprir suas promessas. Ambas estão comprometidas a manter a palavra

dada, mesmo que uma das partes seja o soberano [...]. O fundamento dessa obrigação são as

leis de Deus e da natureza, que forçam as partes contratantes a manter seus acordos”

(BARROS, 2001, p. 248-250).

Destarte, se, por um lado, Bodin afirma o caráter absoluto do poder soberano, por

outro, admite que tal poder deve se conformar dentro dos limites impostos pelas leis de Deus

e da natureza. Wilson Accioli reporta-se a essa contradição, ponderando: “Embora Bodin

tenha sido apontado como precursor do absolutismo, assentando suas bases teóricas, e pela

trilha que abriu com sua idéia de soberania como poder absoluto, o fato é que admitiu certos

balizamentos ao poder soberano” (ACCIOLI, 1985, p. 109).

3.2 Os Acordos de Westfália: o surgimento de Estados soberanos e

iguais perante a lei

Marco de relevo na evolução de uma nova configuração de Estado e, por

conseguinte, na reformulação do conceito de soberania, é o advento dos Acordos ou Tratados

de Westfália de 1648, que puseram termo à Guerra dos Trinta Anos, período conturbado de

conflitos religiosos que assolou a Europa entre os anos de 1618 e 1648. Segundo J. M.

6 “[...] o príncipe soberano está obrigado ao cumprimento dos contratos concluídos por ele, tenham estes sido

realizados com seus súditos ou com príncipes estrangeiros”. (Tradução nossa).

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Roberts: “A Reforma e a Contra-Reforma dividiram amargamente os europeus. O mundo

ortodoxo do leste foi pouco afetado, mas por toda parte onde a Europa fora católica houve por

mais de um século lutas políticas, envenenadas pela religião” (ROBERTS, 2001, p. 468).

Explica Cláudio Vicentino que:

Esse conflito começara com disputas religiosas no Sacro Império Romano-

Germânico e acabou por desdobrar-se num confronto entre a dinastia dos

Habsburgos e a dos Bourbons, que visava à hegemonia política da Europa,

Defrontaram-se católicos Habsburgos (Áustria e Espanha) e protestantes da

Boêmia, Dinamarca, Suécia, Holanda e principados alemães. A França

interveio na guerra lutando contra os católicos a fim de enfraquecer os

Habsburgos. (VICENTINO, 2002, p. 213)

Aldir Soriano observa que:

A Reforma Protestante (1517) rompeu, de certa forma, com o paradigma da

supremacia do poder papal ao questionar os dogmas religiosos, como a

infalibilidade papal, a venda de indulgências e a salvação pelas obras [...]. A

reforma propiciou o surgimento, ou melhor, o ressurgimento de novas crenças

conformadas com as Escrituras Sagradas, que buscavam resgatar a pureza da

Igreja Primitiva [...]. O certo é que o pluralismo religioso não mais se

harmonizava com o modelo de Estado confessional. A partir desse evento,

passou-se, na verdade, a exigir uma separação entre a Igreja e o Estado [...].

Após o Tratado de Westphalia, observa-se uma tendência laica (processo de

secularização dos Estados). Os Estados adotam, a partir de então, uma

preferência não-confessional, [...] bem mais favorável à liberdade de

consciência religiosa. (SORIANO apud GUERRA; SILVA, 2004, p. 82)

O período medieval expressava, em um primeiro momento, a coexistência do

poder espiritual do Papa com o poder temporal do Imperador, difundindo-se a ideia de unidade

do gênero humano, a partir da crença de que essas autoridades apresentavam-se como

supremos representantes de toda a humanidade. O sistema político instituído pelos Tratados de

Westfália promoveram profundas e significantes transformações quanto ao modo de exercício

do poder, bem como quanto à autoridade que passa a exercer esse poder, denominado de

“soberania”, que será exercido de maneira absoluta pelo soberano, dentro de certo limite

territorial.

Analisando as transformações que se operaram nas relações internacionais com o

advento dos Tratados de Paz de Westfália, observa Balladore Pallieri que:

Os poderes tendem a concentrar-se, e não nas supremas potências, papado e

império, nem sequer nas tantas e tão variadas em que era rica a época

anterior, mas a meio caminho, nas comunidades que, por um lado, tinham

caráter territorial e por outro uma certa amplitude e força, em particular e em

primeiro lugar naquelas que então eram os ‘reinos’, e que depois passaram a

ser os ‘Estados’. Esta transformação produz-se num duplo sentido, em

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apertada ligação com um outro conceito, também ele moderno e

desconhecido nas épocas anteriores: o de soberania. Por um lado, estas

maiores entidades territoriais, tendo adquirido notável poder e uma acentuada

autonomia, bem depressa reivindicam a sua completa independência de

qualquer autoridade superior, pontifícia ou imperial [...], cada uma se

apresenta como inteiramente independente das outras e único árbitro dos seus

destinos, sem nada de exterior que a ligue e a force ao prosseguimento das

finalidades mais gerais; cada uma delas pretende determinar-se

exclusivamente por si mesma, repelindo qualquer ordem ou sugestão vinda do

exterior. (PALLIERI, 1969, p. 18)

Reportando-se ao fato de que, na Idade Média, havia uma repartição, entre vários

sujeitos, dos direitos sobre a mesma área territorial, Alberto do Amaral Júnior ressalta que:

A Paz de Westfália, assinada em 1648, assinala o surgimento do princípio da

territorialidade, coroando as profundas mudanças sociais e políticas que a

precederam. Ela enuncia, ademais, nova concepção da ordem internacional,

em oposição à que vigorara nos séculos anteriores [...]. O Estado secular e o

princípio da territorialidade nasceram em estreita comunhão, prenunciando

novo modo de encarar as relações internacionais. As comunidades políticas

passaram a definir-se em relação ao território, que se torna o âmbito de

jurisdição do poder soberano do Estado [...]. Não bastava atribuir ao Estado o

direito de usar a força, era preciso conferir-lhe esse direito com caráter de

exclusividade [...]. Quem tem o direito de usar a força em certo território é o

soberano [...]. O uso exclusivo da força pressupõe a fixação de um domínio

espacial – o território, no qual a força é exercida – e um domínio pessoal – o

conjunto de pessoas submetidas às decisões do governo. O território e a

população tornam-se assim elementos do Estado, estabelecendo a esfera de

abrangência do poder soberano. (AMARAL JÚNIOR, 2015, p. 27-29).

Segundo Antônio Celso Alves Pereira:

O fim da fragmentação política da Idade Média e a conseqüente

concentração desse poder nas mãos do soberano, a partir de então o único

centro de decisão e mando na esfera política, permitiu-lhe dispor de

condições absolutas para intervir em todas as questões internas, uma vez que

todas as forças e instrumentos de coerção ficaram sob seu controle [...]. Com

a chegada da moderna teoria da soberania, a reviravolta é total: o novo rei é

soberano na medida em que faz a lei e, conseqüentemente, não é por ela

limitado, encontra-se supra legem [...]. Em conseqüência disso, a soberania

manifesta-se de duas formas: internamente, com a sujeição ao soberano de

todas as esferas que até então dividiam e descentralizavam o poder e,

externamente, em posição de igualdade com os outros soberanos, cabe-lhe

decidir, em última instância, sobre a guerra e a paz, já que não há mais

nenhum poder superior ao Estado [...]. Suplantada, portanto, a organização

política medieval pelo advento do Estado-Nação, entidade dotada de aparato

burocrático e protegida por exércitos permanentes, no campo externo a nova

realidade se assenta numa ordem jurídica horizontal, não hierarquizada,

frontalmente diferente da verticalidade que vigorava na Idade Média, ao

tempo em que o Papa e o Imperador titulavam poderes sobre a sociedade

européia [...]. A partir do fim das guerras religiosas, organizou-se a nova

sociedade internacionalcom base no Direito Internacional resultante dos

Acordos de Westfália (1648), compreendendo, desde então, um sistema

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interestatal centrado na teoria da igualdade soberana dos Estados.”

(PEREIRA apud BRANT, 2004, p. 621-623)

3.3 O poder do Estado – a questão da titularidade da soberania

Para a maior parte dos estudiosos do Estado, o poder é um elemento essencial, um

traço característico do Estado, pois, sendo o Estado uma sociedade, não pode existir sem um

poder, tendo este, na sociedade estatal, certas peculiaridades que o qualificam, das quais a

mais importante é a soberania. Observa Celso Bastos que:

Uma primeira aproximação ao conceito de soberania exige a sua separação

de outra noção com que comumente é confundida: a de poder político.

Soberania não é propriamente um poder do Estado, mas é uma qualidade que

se empresta normalmente a este poder. As sociedades políticas, sob as quais

vivemos hoje, requerem a soberania como condição para a sua existência. A

soberania é, pois, um atributo do Estado. Traduz-se a soberania pela

circunstância de não reconhecer nenhum outro poder superior nem igual ao

seu na ordem interna nem outro superior na ordem externa. (BASTOS, 2004,

p. 94)

Nicola Mateucci, de outra parte, estabelece uma relação entre o conceito de

soberania e a ideia de poder político, expressando-se desta forma: “de fato, a soberania

pretende ser a racionalização jurídica do poder, no sentido da transformação da força em

poder legítimo, do poder de fato em poder de direito” (MATEUCCI, 1993, p. 1.179).

No que diz respeito à justificação e à titularidade da soberania, a doutrina, em

geral, cita duas teorias: teorias teocráticas e teorias democráticas. No final da Idade Média,

predominam as teorias teocráticas, as quais se subdividem em teoria de direito divino

sobrenatural e teoria de direito divino providencial. A teoria de direito divino sobrenatural,

cujo principal expoente é Santo Tomás de Aquino, afirmava que todo poder vem de Deus,

invocando o princípio cristão, externado por São Paulo, omnis potestas a Deo. Essa teoria

afirmava que, sendo Deus a causa primeira de todas as coisas, é também nele que reside a

origem do poder; se Deus designa diretamente a pessoa que deve exercer o poder, se os reis

são reis por vontade de Deus, só a Deus devem contas do seu modo de governar, nenhum

outro poder na Terra é superior à autoridade real. Já a teoria de direito divino providencial,

que tem como principais representantes os teólogos católicos Francisco de Vitória e Francisco

Suárez, sustentava que Deus não intervém diretamente para indicar a pessoa que deve exercer

o poder, mas sim indiretamente, pela direção providencial dos acontecimentos humanos; essa

teoria iria, mais tarde, influenciar a teoria da soberania popular (AZAMBUJA, 1993, p. 56).

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Tomando por base a doutrina da natureza divina dos governantes, bem como a

doutrina da investidura divina ou de direito divino sobrenatural, aquela sustentando que os

governantes eram considerados deuses vivos, e esta, defendendo que os reis recebem de Deus

a investidura para o exercício de um poder que por sua natureza se concebe como divino,

Paulo Bonavides passa a analisar a teoria do direito divino providencial antes referida e,

traçando um paralelo entre esta teoria e as duas anteriores, tece as seguintes considerações:

Fazendo da designação dos governantes obra dos homens e não da

divindade, a teoria da investidura providencial alcança de imediato um

resultado cabal e visível que a separa das duas posições antecedentes do

pensamento teocrático: o da eventual participação dos governados na escolha

dos governantes. Quebrou-se, assim, a rigidez das implicações autocráticas

decorrentes das teorias monárquicas do direito divino e tornou-se possível

conciliar os princípios teológicos da soberania com os postulados

democráticos pertinentes à sede e ao exercício do poder político.

(BONAVIDES, 2005, p. 130)

Os reis não recebem o poder por ato de manifestação sobrenatural da vontade de

Deus, mas por uma determinação providencial da onipotência divina. É o que observa Sahid

Maluf:

O poder público vem de Deus, sua causa eficiente, que infunde a inclusão

social do homem e a consequente necessidade de governo na ordem

temporal [...]. O poder civil corresponde com a vontade de Deus, mas

promana da vontade popular – omnis potestas a Deo per populum libere

consentientem, conforme com a doutrinação do Apóstolo São Paulo e de São

Tomás de Aquino. (MALUF, 2018, p. 46)

Destarte, a aura de misticismo que envolveu todo o período da Idade Média,

revelando no início uma fase de convivência e, mais tarde, de conflito entre os poderes

espiritual e temporal, exerceu considerável influência no modo de exercício do poder político,

visto que os reis buscavam justificar e legitimar sua autoridade na vontade de Deus. Esse

entrelaçamento entre o político, o jurídico e o teológico que caracterizaram o medievo

mostrou-se, com muita clareza, na Inglaterra dos séculos XIII a XVI com a propagação, entre

cristãos, clérigos e leigos, da discussão acerca do fato de que o rei possuía dois corpos, um

corpo natural, como qualquer outro homem e, além disso, um “corpo místico”, invisível e

imortal, ou seja, o rei constituía uma pessoa dupla, uma proveniente da natureza, outra

conferida pela graça de Deus.

Um estudo percuciente e minucioso a respeito do tema em foco foi elaborado por

Ernst Kantorowicz em sua obra “Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política

medieval”, na qual o autor parte, inicialmente, da análise da pessoa do rei, constituído de um

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corpo natural e de um corpo místico, dualidade esta também presente nos clérigos católicos,

para, em uma segunda oportunidade, dirigir sua atenção para outra dualidade que se

expressava no exercício, pelo rei, do poder político propriamente, ressaltando o aspecto da

titularidade do exercício desse poder.

Um clérigo normando desconhecido, que passou a ser denominado de “Anônimo

normando”, tinha desenvolvido, por volta do ano 1100, algumas noções curiosas acerca da

pessoa “geminada” do rei, as quais constavam de alguns tratados teológicos e políticos,

produzidos no contexto da Querela das Investiduras. O Anônimo Normando parte do Velho

para o Novo Testamento escrevendo sobre a unção dos reis de Israel:

Assim, temos de reconhecer (no rei) uma pessoa gêmea, descendendo uma,

da natureza, e a outra, da graça [...]. Por intermédio de uma, pela condição

natural, conformou-se com os outros homens; por meio da outra, pela

eminência de (sua) deificação e pelo poder do sacramento (da consagração),

excedeu a todos os outros. Em relação a uma personalidade, ele era, por

natureza, um homem individual; em relação à sua outra personalidade, era,

pela graça, um Christus, isto é, um Deus-homem. (KANTOROWICZ, 1998,

p. 48-50)

E prossegue Kantorowicz:

Em outras palavras, o rei torna-se ‘deificado’ por um breve período em

virtude da graça, ao passo que o Rei celestial é Deus eternamente por

natureza [...]. A essência e substância do poder são iguais em Deus e no rei,

seja esse poder possuído por natureza ou apenas adquirido pela graça [...].

De qualquer modo, as teorias do Anônimo não estão centradas na noção de

‘cargo’ enquanto oposta a homem, nem em considerações constitucionais ou

sociais; são cristológicas e cristocêntricas [...]. A ênfase excessiva na idéia

de Rex imago Christi (em lugar de Dei!) evidencia que a analogia

prevalecente entre o Deus-homem e sua imagem não deve ser buscada em

uma distinção funcional entre ‘cargo’ e ‘homem’. Seria difícil, para não

dizer impossível, interpretar a natureza divina de Cristo como um ‘cargo’,

uma vez que a natureza divina é seu ‘Ser’. E o Anônimo, similarmente,

visualiza em seu rei duas formas diferentes de ‘ser’: uma, natural ou

individual, e a outra, consagrada ou (como o autor a chama) deificada e

apoteosada. Em resumo, a visão do autor normando sobre o rei como

persona geminataé ontológica e, como eflúvio de uma ação sacramental e

litúrgica realizada no altar, é também litúrgica. Essa filosofia não foi a dos

tempos que se seguiriam [...]. Os novos Estados territoriais que começaram a

se desenvolver no século XII eram reconhecidamente seculares, a despeito

de empréstimos consideráveis do modelo eclesiástico e hierárquico; o direito

secular, inclusive o direito canônico secularizado, mais que os efeitos da

sagrada unção, doravante justificariam a santidade do monarca. As idéias do

Anônimo normando, portanto, não encontraram ressonância nem no campo

eclesiástico nem no secular. Sua imagem da monarquia era inaceitável à

hierarquia e não era mais de interesse relevante para o Estado secular.

(KANTOROWICZ, 1998, p. 57)

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No século XVI, ganha corpo a doutrina dos “Dois Corpos do Rei” a propósito da

controvérsia sobre o ducado de Lancaster, que os reis haviam possuído como propriedade

privada e não como propriedade da Coroa. Os juízes decidiram que se as terras que o Rei

havia comprado antes de ser Rei, a saber, na capacidade de seu “Corpo Natural”, fossem mais

tarde por ele doadas, tal doação, mesmo quando feita durante sua menoridade, teria de ser

reconhecida como ato do Rei. Pois – assim declaravam os juízes elisabetanos, e aqui começa

seu “misticismo” –

Conquanto ele (o rei) tenha ou receba a terra em seu Corpo natural, embora a

esse Corpo natural esteja unido seu Corpo político, que contém sua Riqueza

e Dignidade Reais; e o Corpo político inclui o Corpo natural, mas o Corpo

natural é o menor, e com ele o Corpo político é consolidado. Assim, o fato

de que ele possui um Corpo natural, adornado e investido da Riqueza e

Dignidade real; e ele tem um Corpo natural distinto e separado por si mesmo

do Cargo e Dignidade reais, mas um Corpo natural e um Corpo político

inseparáveis [...]. De sorte que o Corpo natural, por meio dessa união do

Corpo político a si (Corpo político que contém o Cargo, o Governo e a

Majestade reais), é magnificado e pela referida Consolidação contém em si o

Corpo político.

Os Dois Corpos do Rei, dessa forma, constituem uma unidade indivisível, sendo

cada um inteiramente contido no outro. Entretanto, não pode haver dúvida em relação à

superioridade do corpo político sobre o corpo natural.

[...] “Corpo político” e “corpo místico” parecem ser termos utilizados sem

muita discriminação. É evidente que a doutrina da teologia e da lei canônica,

ensinando que a Igreja, e a sociedade cristã em geral, era um “corpus

mysticum cuja cabeça é Cristo”, havia sido transferida pelos juristas, da

esfera teológica para o Estado, cuja cabeça é o rei [...]. De fato, basta apenas

que se substitua a estranha imagem dos Dois Corpos pelo termo teológico

mais corrente das Duas Naturezas para que nitidamente se perceba que os

discursos dos advogados do rei, no julgamento, derivava seu teor da dicção

teológica [...]. A jurisprudência continental também chegou às doutrinas

políticas concernentes a uma majestade dual, uma maiestas realis do povo e

uma maiestas personalis do imperador [...]. Os juristas continentais,

contudo, não estavam familiarizados com instituições parlamentares como as

desenvolvidas na Inglaterra, onde a “Soberania” não era identificada

isoladamente com o Rei ou com o povo, mas com o “Rei no Parlamento”.

(KANTOROWICZ, 1998, p. 22-30)

Essas relações muito próximas entre Igreja e Estado, durante toda a Idade Média,

acabaram por revelar um caráter híbrido nos campos religioso e secular. Sob a pontificialis

maiestas do papa, que era chamado também “Príncipe” e verdadeiro imperador, o aparelho

hierárquico da Igreja Romana tendia a tornar-se o protótipo perfeito de uma monarquia

absoluta e racional sobre uma base mística, enquanto, ao mesmo tempo, o Estado apresentava

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cada vez mais uma tendência a tornar-se uma quase Igreja ou uma corporação mística em uma

base racional. Kantorowicz prossegue sua análise detendo-se na expressão corpus mysticum

(corpo místico), aduzindo que tal expressão estava associada, na linguagem dos teólogos

carolíngios, à hóstia consagrada, adquirindo, tempos depois, outro significado, qual seja, o de

Igreja entendida como corpo organizado da sociedade cristã unida no Sacramento do Altar.

Portanto, a expressão “corpo místico”, que antes possuía um significado litúrgico ou

sacramental, passou a assumir uma conotação de conteúdo sociológico. Destarte, à dimensão

litúrgica sempre presente na Igreja Católica acrescentava-se, a partir da noção de corpus

mysticum, a concepção de que a Igreja constituía também um corpo político e legal,

equiparando-se, assim, aos corpos políticos seculares que começavam a se confirmar como

entidades autossuficientes. Os teólogos canonistas passaram, então, a distinguir entre os “Dois

Corpos do Senhor” – um, o corpus verum individual no altar, a hóstia, e, o outro, o corpus

mysticum coletivo, a Igreja. Nessa nova afirmação dos “Dois Corpos do Senhor” – nos corpos

natural e místico, pessoal e corporativo, individual e coletivo, de Cristo, parece encontrar-se,

como acentua Kantorowicz (1998), o precedente exato dos “Dois Corpos do Rei”.

Enquanto a ideia da Igreja como corpo místico era inflada de conteúdos seculares,

corporativos e legais, o Estado secular empenhava-se em sua própria exaltação e glorificação

quase religiosa, haja vista a expressão corpus reipublica e mysticum (corpo místico da

república), cunhada pelo frade dominicano francês Vicente de Beauvais, expressando, assim,

a apropriação das ideias eclesiásticas e a transferência, para a república secular, dos valores

sobrenaturais e transcendentes inerentes à Igreja. Desenvolveu-se, assim, analogamente ao

que sucedia na Igreja, a ideia de corpus verum – o corpo tangível de uma pessoa individual –

e corpus fictum, o coletivo intangível e existente apenas como uma ficção da jurisprudência.

Kantorowicz enfatiza que a Igreja, como corpo coletivo supra-individual de Cristo encontrava

seu paralelo exato no Estado como corpo coletivo supra-individual do Príncipe – o Príncipe é

a cabeça do reino, e o reino, o corpo de Príncipe (KANTOROWICZ, 1998).

O corpo político, místico ou público, da Inglaterra era definido não apenas pelo rei

ou cabeça, mas pelo rei em conjunto com o conselho e o parlamento. Decorre daí que não o

rei sozinho, mas o rei e o governo juntos arcam com a responsabilidade pela república, vale

dizer, o que evidencia, na Inglaterra, a natureza compósita da autoridade, visto que não apenas

o rei, mas o rei em conjunto com lordes e comuns constituíam o “corpo místico” do reino.

Kantorowicz ainda se refere ao Corpo político quando toma por base as declarações dos

juristas ingleses, os quais se referiam à cabeça e aos membros, desta forma: “o outro [Corpo]

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é um Corpo político e os seus respectivos Membros são seus Súditos, e ele e seus Súditos em

conjunto compõem a Corporação [...] e ele é incorporado com eles e eles com ele, e ele é a

Cabeça e eles são os Membros, e ele tem o governo exclusivo deles [...].” (KANTOROWICZ,

1998, p. 142-146). Essa ideia foi transformada, segundo Kantorowicz, em um conceito mais

lapidar – Princeps maior singulis, minoruniversis – O Príncipe é mais do que os cidadãos

individuais, mas menos do que sua totalidade. E reportando-se a John Fortescue, jurista

inglês, que definiu a Inglaterra como um dominium regale et politicum, observa

Kantorowicz: “Fortescue parece haver acalentado idéiassimilares quando desenvolveu sua

doutrina sobre uma Inglaterra régia e ao mesmo tempo política. Seu rei estava acima e

também abaixo do corpo político do reino” (KANTOROWICZ, 1998, p. 142-146).

No final da Idade Média, com o advento do Estado Moderno e da consequente

definição, de um lado, do poder temporal do rei e de outro, do poder espiritual do Papa, a

autoridade dos reis passa a sobrepujar a autoridade dos senhores feudais, de sorte que o

conceito de soberania, antes ligado à posse da terra, transfere-se para a pessoa do rei. Assim,

soberano passa a ser o monarca e a soberania, o apanágio real, a autoridade do rei. Como o

poder supremo fora conquistado pelos reis e era exercido por eles, a soberania fundiu-se com

a qualidade de rei. O rei, e não o Estado, é que era soberano. A soberania deixou de ser o

poder do Estado, o que já constituía uma confusão, para ser um poder existente dentro ou

mesmo acima do Estado, encarnado na pessoa do rei. O rei era o detentor único, o verdadeiro

titular da soberania [...]. O rei não era soberano por ser chefe do Estado ou por ser rei; ao

contrário, por ser soberano, por possuir o direito de soberania é que era rei e chefe do Estado.

Esse conceito se tornou plenamente vitorioso nas monarquias absolutas de Direito divino,

onde o príncipe é proprietário da soberania, reina por vontade de Deus, que expressamente

teria escolhido certas famílias para governar. (CARRÉ DE MALBERG apud AZAMBUJA,

1993)

No absolutismo monárquico do século XVI, a soberania passou a ser o poder

pessoal exclusivo dos monarcas, sob a crença generalizada da origem divina do poder de

Estado, predominando o entendimento segundo o qual eram os monarcas acreditados como

representantes de Deus na ordem temporal, e na sua pessoa concentravam-se todos os

poderes. Com efeito, a teoria da soberania absoluta do rei, que encontra raízes na teoria de

direito divino sobrenatural, veio a ser sistematizada na obra “Les Six Livres de la Républic”,

de Jean Bodin, anteriormente citada. Cabe, neste passo, aludir às considerações de Nina

Ranieri, quando ressalta aspecto controvertido na obra de Bodin, assim se expressando:

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Bodin argumenta que o cerne do poder reside na faculdade de legislar sobre

os súditos e os estamentos, independentemente de seu consentimento. O

poder de dispor, portanto, deve ser a manifestação de uma única

competência de direção normativa, que coordena a conduta dos homens

segundo estrutura juridicamente organizada [...]. O príncipe, contudo, não é

soberano absoluto – o poder absoluto e soberano pertence apenas a Deus. A

lei divina e a lei natural transcendem a soberania humana, legitimamente

atribuída e exercida pelo príncipe desde que este não contrarie a vontade

divina. Aí se encontram os fundamentos do direito divino dos reis. A lógica

da construção de Bodin é a seguinte: a soberania só é legítima se for

sacralizada [...]. O curioso é que, a despeito de lançar os fundamentos do

direito divino dos reis, Bodin desloca a titularidade da soberania para a

comunidade política. O titular da soberania é uma ‘corporação’, provinda do

povo, que necessita de um chefe que assegure a unidade entre todos. É o que

proclama na frase de abertura de sua obra mais famosa: ‘República é o reto

governo de várias famílias, e do que lhes é comum, com poder soberano’.

(RANIERI, 2013, p. 95-96).

Ou, como pondera Porrua Perez:

Aquí encontramos el vocablo “soberana” que Bodino encuentra referido a

una definición, a la definición de ‘República’. Por tanto, en este autor

vemos ya un avance notable respecto de la doctrina aristotélica; ya no se

habla de ‘autarquía’, sino que se define a la ‘República’, es decir, al

Estado, en virtud de dos elementos: uno de ellos constituido por el grupo,

por el elemento humano que forma una comunidad. El otro elemento que

encontramos en su definición es el poder soberano bajo el cual se encuentra

sometido. (PORRUA PEREZ, 1962, p. 307)7

Mário Lúcio Quintão Soares, ao observar que a concepção de Jean Bodin a

respeito da soberania circunscrevia o exercício desse poder aos domínios do território do

Estado, aduz que:

No âmbito externo, o conceito clássico de soberania, por ele elaborado,

como summa potestas, pressupunha a inexistência de comunidade

internacional ou de Direito Internacional Público que vinculasse os diversos

Estados entre si. No âmbito interno, como poder absoluto e perpétuo de

república ou reino, ilimitado no tocante ao poder, responsabilidade e ao

tempo, exigia que o soberano não reconhecesse nenhuma autoridade superior

a si mesmo, que nenhuma lei o obrigasse, salvo Deus e as leis divinas e

naturais. A nação soberana, governada por rei, pelos representantes do povo

ou por uma classe, que possuía algum tipo de vínculos jurídicos com outros

Estados, emergentes de tratados internacionais, não poderia ser considerada,

na expressão clássica de Bodin, Estado soberano. (SOARES, 2008, p. 96)

7 “Aqui encontramos a palavra ‘soberano’, que Bodin associa a uma definição, à definição de ‘República’.

Portanto, neste autor já vemos um avanço notável em relação à doutrina aristotélica; já não se fala em

‘autarquia’, mas se define a ‘República’, isto é, o Estado, em virtude de dois elementos: um deles constituído

pelo grupo, pelo elemento humano que forma uma comunidade. O outro elemento que encontramos em sua

definição é o poder soberano sob o qual aquela comunidade encontra-se subordinada”. (Tradução nossa).

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Walter Ullmann, historiador austríaco que, em sua obra Historia del pensamiento

político en la Edad Media, dedicou-se a assuntos ligados ao pensamento político da

Idade Média, notadamente no que se refere ao exercício do poder da Igreja e do Estado e da

consequente evolução do conceito de soberania, inicialmente a cargo do rei, para, em

momento posterior, conceber o povo como titular do poder soberano. Aspecto de relevo na

obra de Ullmann é o que se relaciona com o pensamento de Santo Tomás de Aquino e do

estudo desenvolvido por este sobre a obra de Aristóteles. Observa Ullmann que a teleologia

aristotélica referente às operações da natureza e a ideia de Estado como produto da natureza

reaparecem no sistema tomista, assim como a definição aristotélica do homem como “animal

político”, que Tomás de Aquino aprimorou definindo também o homem como animal social,

resultando a definição de que o homem é um “animal político e social”. Surgia um conceito

novo cunhado por Tomás de Aquino – o de “governo político” (regimen politicum), quando

os poderes dos governantes estavam circunscritos às leis do Estado. Em contraposição, o

“governo regalista”, assim designado por Santo Tomás de Aquino, caracterizava-se pelo fato

de que o rei possuía “plenos poderes” e não tinha que dar conta a ninguém de seus atos de

governo. Eram as formas políticas teocráticas que prevaleciam na Idade Média. Nesse sentido,

esclarece Ullmann o sentido de “democracia” contido no pensamento de Tomás de Aquino:

[...] aparecía aquí la voluntad del pueblo, puesto que ‘los dirigentes

pueden escogerse de entre los miembros del pueblo y su elección

corresponde a éste’. Conello surge el principio de representación: el

dirigente ‘personifica’ al Estado, con lo cual puede decirse que ‘lo

que hace el gobernante del Estado lo realiza el propio Estado’

[...]. Tomás sostenía que era el ‘instinto natural’ del hombre lo

que originaba Estado, es decir, la sociedad humana organizada. En

consecuencia, para Tomás de Aquino, el Estado era un producto de

la naturaleza, y de ahí derivaban las leyes de la naturaleza. La

‘razón natural exigía’ esta asociación humana, y para el

funcionamiento del Estado no se requerían elementos divinos o

supranaturales, puesto que contenía en sí mismo las leyes de

su propio funcionamiento. (ULLMANN, 1983, p. 170-171)8

8 “[...] aparecia aqui a vontade do povo, posto que ‘os dirigentes podem ser escolhidos dentre os membros do

povo e sua eleição corresponde a este.’ Com ele, surge o princípio da representação: o dirigente ‘personifica’ o

Estado, com o qual pode-se dizer que ‘o que faz o governante do Estado realiza-o o próprio Estado’ [...].

Tomás sustentava que era o ‘instinto natural’ do homem que originava o Estado, isto é, a sociedade humana

organizada. Em consequência, para Tomás de Aquino, o Estado era produto da natureza, e daí derivavam as leis

da natureza. A ‘razão natural exigia’ esta associação humana, e para o funcionamento do Estado não se

requeriam elementos divinos ou sobrenaturais, visto que continha em si mesmo as leis de seu próprio

funcionamento.” (Tradução nossa).

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Com a superação do sistema político e jurídico medieval, sedimentado sobre

relações pessoais de suserania e vassalagem, haveria que se elaborar um conceito que

traduzisse a submissão do súdito ao monarca, com o consequente deslocamento dos poderes

intermediários para o ápice da pirâmide hierárquica representada pelo soberano. Portanto, o

postulado da doutrina clássica da soberania, que teve lugar nessa quadra histórica, residia na

ideia de que só o poder estatal homogêneo, superlativo e independente teria condições de

cumprir adequadamente a função de coerção, proteção e ordem que se esperava do poder

político (RANIERI, 2013). O conceito clássico de soberania forjado pela teoria clássica

mostrou-se perfeito para esse fim, com a vantagem adicional de, ao vincular a soberania ao

monarca, promover a identificação deste com o Estado, posto que só por intermédio daquele o

Estado se torna realidade (RANIERI, 2013).

Observa Sahid Maluf que:

Os monarcas da França levaram o absolutismo às últimas consequências,

identificando na pessoa sagrada do rei o próprio Estado, a soberania e a lei.

Reunia-se na pessoa do rei o conceito de senhoriagem, trazido do mundo

feudal, que se desmoronava, e a ideia de imperium, exumada das ruínas do

cesarismo romano que ressurgia, exuberante, na onipotência das monarquias

absolutistas [...]. Firmou-se esta doutrina da soberania absoluta do rei nas

monarquias medievais, consolidando-se nas monarquias absolutistas e

alcançando a sua culminância na doutrina de Maquiavel. (MALUF, 2018, p.

45-46)

Em Maquiavel já se nota a proposta de secularização e o fortalecimento do

Estado, mediante o uso virtuoso da força (virtu) pelo Príncipe, a partir das ideias contidas em

sua obra máxima O Príncipe. Nesse sentido, observa Machado Pauperio, Maquiavel

“concentra o poder do Estado nas mãos do Rei, tornando-o o fim supremo da sociedade civil.

O centro do Estado é, assim, o príncipe governante, daí decorrendo, como critério político, o

seu próprio engrandecimento. Personificado no Príncipe, vem de MAQUIAVEL o que se

convencionou chamar a razão de Estado” (PAUPERIO, 1958, p. 63). No Capítulo XVII de O

Príncipe, Maquiavel examina os aspectos da crueldade e da piedade, quando aplicáveis tais

características ao Príncipe, indagando se é melhor que o Príncipe seja amado ou temido,

expressando-se desta forma:

Daí nasce uma controvérsia, qual seja: se é melhor ser amado ou temido.

Pode-se responder que todos gostariam de ser ambas as coisas; porém, como

é difícil conciliá-las, é bem mais seguro ser temido que amado, caso venha a

faltar uma das duas [...]. Todavia, o príncipe deve inspirar temor de tal modo

que, se não puder ser amado, ao menos evite atrair o ódio, já que é

perfeitamente possível ser temido sem ser odiado. (MAQUIAVEL, 2010, p.

102-103)

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Mais adiante, reportando-se a Aníbal, general e estadista cartaginês, Maquiavel

enfatiza:

Entre as notáveis ações de Aníbal, costuma-se ressaltar que ele, comandando

um exército imenso, constituído de soldados originários de várias nações e

levados a guerrear em terras estrangeiras, nunca deixou que emergissem

dissensos, nem entre eles nem contra o príncipe, tanto na má quanto na boa

fortuna. E isso só foi possível graças à sua crueldade inumana – a qual,

acrescida de suas infinitas virtudes, o fez sempre venerável e temível diante

de seus soldados. Sem ela, e sem seus efeitos, toda sua virtude não teria

bastado; e os historiadores, pouco ponderados neste ponto, em parte

admiram suas ações, em parte condenam seus motivos fundamentais.

(MAQUIAVEL, 2010, p.103)

Contrapondo-se às teorias teocráticas, surgem as teorias democráticas, as quais

passam a sustentar que a soberania origina-se do povo ou da nação. Subdividem-se, assim, em

teoria da soberania popular e teoria da soberania nacional. Na primeira, aparece como

titular da soberania o próprio povo, como massa amorfa, situado fora do Estado. Na segunda,

a titularidade da soberania é atribuída à nação, que é o povo concebido numa ordem

integrante. Os filósofos e teólogos da Escola Espanhola, também conhecida como Escola de

Salamanca, são considerados precursores da teoria da soberania popular, havendo que se

destacar nessa escola o nome de Francisco Suárez, filósofo e teólogo jesuíta, o qual veio a

inspirar, mais tarde, o pensamento de Rousseau a respeito da soberania como manifestação da

vontade do povo.

Cabe aqui reportar às considerações de Machado Pauperio sobre alguns pontos

essenciais da doutrina desenvolvida por Francisco Suárez:

Para SUAREZ (1548-1617) a soberania é uma característica do Estado [...].

Ainda que nenhum homem nasça submetido a outro, pelo próprio fato de ser

homem, tem, naturalmente, a disposição para viver subordinado, senão

deixaria de ser social – animal político – como nos ensina ARISTÓTELES.

Por isso, justifica SUAREZ a existência do poder político, que,

imediatamente, procede dos homens e, mediatamente, de Deus. Longe de ser

absoluto, portanto, o poder do Estado é, apenas, supremo, livre de tôda a

coação, dentro de sua esfera, para que possa atuar em benefício do bem

comum [...]. O Estado é uma personalidade coletiva complexa, persona

mystica, dotada de valor singular, que emana do fim que tem em vista, o

bem comum [...]. SUAREZ mostra que o poder civil, para ser justo e

legítimo, deve proceder da comunidade [...]. O poder reside na comunidade,

como propriedade inerente a ela, e desta se transfere, com o consentimento

do povo, ao Príncipe que a exerce [...]. De maneira geral, entende SUAREZ

que o povo, uma vez conferido o poder ao Rei, está privado dele; assim, não

se pode insurgir de modo justo contra o Rei, porque já não tem o poder que

pretende ter (v. SUAREZ, Defensio fidei, L. III, c. IV, I). Em alguns casos,

porém, entende SUAREZ poder o povo conservar radicalmente o poder.

Assim, conforme as condições preestabelecidas no pacto, ou conforme as

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exigências da justiça natural, o povo, que transferiu o poder político para o

monarca, pode tê-lo feito sob reserva. Neste caso, é lícito ao povo usar de

seu direito. Igualmente pode fazê-lo no caso de se ter tornado o soberano

tirânico. Fora dêstes casos, entretanto, não pode o povo subtrair-se à

autoridade legítima (v. SUAREZ, ob. cit., L. III, c. III, 2). (PAUPERIO,

1958, p. 70-71)

No que respeita à teoria da soberania popular, argumenta Darcy Azambuja,

inúmeros são os filósofos que a proclamam, porém, pondera o autor, diante da

impossibilidade de se expor o ponto de vista de todos, cita-se apenas dois deles, a saber,

Thomas Hobbes, filósofo inglês, cuja principal obra é Leviatã, e Jean-Jacques Rousseau,

filósofo suíço, autor de O Contrato Social. Para Hobbes, os homens, em épocas primitivas,

viviam fora da sociedade, em estado de natureza. Sendo todos os homens iguais e

essencialmente egoístas, tendo todos os mesmos direitos naturais e não existindo autoridade

ou lei, o estado de natureza foi uma época de anarquia e violência, em que o indivíduo uma

vida solitária, sórdida e brutal. Para pôr termo a esse período de violenta anarquia, os homens

criaram por um contrato a sociedade política e cederam seus direitos naturais, e citando

Hobbes, “a um poder comum, a que se submetem por medo, e que disciplina seus atos em

benefício de todos.” Assim, a soberania, que residia primitivamente em todos os homens,

passa a ser propriedade da autoridade criada pelo contrato político. Essa autoridade, que pode

ser um homem ou alguns homens, é um mandatário com poderes ilimitados, indiscutíveis e

absolutos. (AZAMBUJA, 1993). Forçoso é convir, no entanto, a partir das ponderações de

Darcy Azambuja, que não é possível entrever, com clareza, uma localização definitiva do

pensamento de Hobbes nas formulações das teorias democráticas, pois, se de um lado, o

filósofo inglês concebe que o conjunto dos indivíduos, a multidão, expressa um ato de

vontade ao estabelecer um contrato que designará um homem ou uma assembleia que será

responsável pela promoção da paz e da segurança comuns, de outra parte afirma que, quando

surge o Estado, o grande Leviatã, é este que passa a deter a soberania como um poder

incondicionado, irresistível, inapelável e ilimitado.

É o que se depreende das ponderações de Machado Pauperio a respeito do

pensamento de Hobbes: “A soberania, doutrina êle no seu Leviathan, não reside na multidão,

mas sòmente no Estado. Atribuindo o direito primitivo de soberania à civitas ou respublica,

admite que deva ser êle transferido a um titular escolhido pelo pacto de sujeição. HOBBES

quer, porém, a soberania, para o órgão em quem ela reside, para o Príncipe, em sua absoluta

plenitude, [...]” (PAUPERIO, 1958, p. 78). Ou nas palavras do próprio Hobbes:

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Dessa forma, a multidão assim unida numa só pessoa passa a chamar-se de

Estado (em latim Civitas). Essa é a geração do grande Leviatã, ou, antes

(para usarmos termos mais reverentes), daquele deus mortal a quem

devemos, abaixo do Deus imortal, nossa paz e defesa [...]. A essência do

Estado consiste nisso e pode ser assim definida: uma pessoa instituída, pelos

atos de uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros,

como autora, de modo a poder usar a força e os meios de todos, da maneira

que achar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. O titular

dessa pessoa chama-se soberano, e dizemos que possui poder soberano.

Todos os restantes são súditos. (HOBBES, 2012, p. 140)

Jean-Jacques Rousseau também compartilha da ideia de que os homens, em época

primeva, viviam em estado de natureza, todavia, ao contrário de Hobbes, acreditava que

aqueles eram livres, felizes e bons e que a sociedade o tornara escravo, mau e desgraçado em

virtude do progresso da civilização, criando diferenças profundas entre ricos e pobres,

poderosos e fracos. Assim como Hobbes, Rousseau também parte da ideia de que, para

manter a ordem e evitar maiores desigualdades, os homens criaram a sociedade política, por

meio de um contrato, a que também denominou Contrato Social. Portanto, de acordo com

Rousseau, parece ser a soma de forças de todos os homens que gerará uma maior cooperação

em benefício do todo. Cita-se, nesta oportunidade, excerto de O Contrato Social:

Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir

e dirigir as que existem, eles não têm outro meio para se conservar senão

formar por agregação uma soma de forças que possa prevalecer sobre a

resistência [...]. Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja

com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual

cada um, ao unir-se a todos, obedeça somente a si mesmo e continue tão

livre quanto antes. Esse é o problema fundamental para o qual o contrato

social oferece a solução. (ROUSSEAU, 2013, p. 33)

Sahid Maluf, interpretando a ideia central de Rousseau em torno da natureza do

Contrato Social, assim se expressa:

Esse convênio determinante da sociedade civil, isto é, esse contrato social,

teria resultado, assim, das seguintes proposições essenciais: cada um põe em

comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade

geral. E cada um obedecendo a essa vontade geral, não obedece senão a si

mesmo. A liberdade consiste, em última análise, em trocar cada um a sua

vontade particular pela sua vontade geral. Ser livre é obedecer ao corpo

social, o que equivale a obedecer a si próprio. O homem transfere o seu eu

para a unidade comum, passando a ser parte do todo coletivo, do corpo

social, que é a soma de vontades da maioria dos homens. O povo,

organizado em corpo social, passa a ser o soberano único, enquanto a lei é,

na realidade, uma manifestação positiva da vontade geral. (MALUF, 2018,

p. 103-104)

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Rousseau sustenta que a soberania é inalienável e indivisível, expressando-se

assim:

[...] somente a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo a

finalidade de sua instituição, que é o bem comum: [...]. Afirmo, portanto,

que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, nunca pode

alienar-se e que o soberano, que não é senão um ser coletivo, só pode ser

representado por ele mesmo; o poder pode perfeitamente ser transmitido,

mas não a vontade [...]. Pela mesma razão que é inalienável, a soberania é

indivisível. A vontade ou é geral, ou não existe; ou é vontade do corpo do

povo, ou somente de uma parte. No primeiro caso, essa vontade declarada é

um ato de soberania e constitui lei; no segundo, não é senão uma vontade

particular ou um ato de magistratura; quando muito é um decreto [...].

Assim, pela natureza do pacto, todo ato de soberania, isto é, todo ato

autêntico da vontade geral, obriga ou favorece igualmente a todos os

cidadãos, de modo que o soberano conhece apenas o corpo da nação e não

distingue nenhum daqueles que o compõem [...]. Vê-se por aí que o poder

soberano, por mais absoluto, sagrado e inviolável que seja, não ultrapassa

nem pode ultrapassar os limites das convenções gerais e que todo homem

pode dispor plenamente do que lhe foi deixado de seus bens e de sua

liberdade por essas convenções; de modo que o Soberano nunca tem o

direito de onerar um súdito mais do que a um outro, porque, então, tornando-

se particular a questão, seu poder não é mais competente. (ROUSSEAU,

2013, p. 42-49)

Machado Pauperio considera que Rousseau não chegou a fixar os contornos

precisos da expressão “vontade geral”, mas admite por outro lado que: “Embora constituindo

um mito, um dos tantos do mundo moderno, tronou-se a vontade geral [...] o fundamento de

todo o direito público moderno, inscrito que foi na maioria das Constituições desde então

promulgadas, talvez pelo fato de fundir o soberano e o súdito, concebidos como simples

situações que se completam” (PAUPERIO, 1958, p. 88).

Walter Ullmann, na obra supracitada, faz acurada análise do Estado, como

entidade natural, e da Igreja, como entidade sobrenatural, para, em seguida, examinar a

questão das bases populares do poder do governante. O autor observa, de início, que “na

medida em que a natureza e a lei natural eram concebidas como manifestações da divindade,

elevava-se uma formidável barreira frente à autonomia plena do cidadão e do Estado [...]. Se

se pretendia levar adiante a tese da plena autonomia do cidadão e do Estado, havia que se

adotar medidas radicais” (ULLMANN, 1983, p. 194-195).

Pondera Ullmann que coube a Marsilio de Padua, filósofo e teólogo italiano, no

livro Defensor Pacis (1324), tomar essas medidas radicais, quando revela, na aludida obra,

que seu objetivo era demonstrar que a paz e a tranquilidade podiam ser alcançadas.

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Reportando-se às considerações expendidas por Marsilio de Padua sobre o Estado, Walter

Ullmann assim se expressa:

El Estado de Marsilio era unfinen sí mismo: tenía su propio valor y no

podía ser ‘mejorado’ al recibir la gracia divina. Se llegaba a una

situación en que la ‘congregación de los ciudadanos’ (universitas civium)

había asumido su plena autonomía. La antigua congregación de los

creyentes (universitas fidelium) cedía su lugar al cuerpo mundano, terrestre,

de los ciudadanos, el Estado, el único cuerpo que vivía y de hecho el

único que podía vivir según sus propias leyes y su propia

substancia inherente. Para Marsilio, se trataba de un cuerpo

autosuficiente y por lo tanto de una ‘congregación perfecta’, definición

que tenía resonancias tomistas. El Estado estaba tan sólo compuesto

de ciudadanos, sin que importase si éstos eran o no cristianos. El

elemento constitutivo del Estado era el ciudadano puro y simple [...].

De hecho, puede incluso decirse que su teoría de la ley constituía el

pilar en que él apoyaba su doctrina política [...] La cuestión estribaba

en establecer qué o quién confería a la ley su obligatoriedad, cómo

pasaba una norma a adquirir carácter obligatorio, [...] para él constituía

un axioma que, al ser la ley la fuerza que ordenaba e regulaba a los

hombres que vivían en el Estado, eran estos mismos ‘hombres’, los

ciudadanos, quienes conferían su carácter obligatorio a las normas de

conducta. De ahí se desprendía que las leyes debían su carácter

obligatorio a la voluntad del pueblo. La ley no les era dada por ningún

funcionario especialmente calificado, sino que era hecha por ellos

mismos. De ahí que Marsilio denominara al conjunto de todos los

ciudadanos ‘legislador humano’, para distinguirlo claramente de

cualquier legislador divino. (ULLMANN, 1983, p. 196-197)9

Uma vez já analisada a teoria da soberania popular, cabem, neste passo, algumas

considerações sobre a teoria da soberania nacional, o outro ramo no qual se divide as teorias

democráticas da soberania. Esta teoria corresponde às formulações da Escola Clássica

Francesa e ganhou corpo com as ideias político-filosóficas que fomentaram o liberalismo e

9 “O Estado de Marsilio era um fim em si mesmo: tinha seu próprio valor e não podia ser melhorado ao receber a

graça divina. Chegava-se a uma situação em que a ‘congregação dos cidadãos’ (universitas civium) havia

assumido sua plena autonomia. A antiga congregação dos crentes (universitas fidelium) cedia seu lugar ao corpo

mundano, terrestre, dos cidadãos, o Estado, o único corpo público que vivia e de fato o único que podia viver

segundo suas próprias leis e sua própria substância inerente. Para Marsilio, tratava-se de um corpo

autossuficiente e portanto de uma ‘congregação perfeita’, definição que tinha repercussões tomistas. O Estado

era tão-só composto por cidadãos, não importando se eram estes cristãos ou não. O elemento constitutivo do

Estado era o cidadão puro e simples [...]. De fato, é possível mesmo dizer que sua teoria da lei constituía o pilar

no qual se apoiava sua doutrina política [...]. A questão consistia em estabelecer o que ou quem conferia à lei

sua obrigatoriedade, como passava uma norma a adquirir caráter obrigatório, [...] para ele, era de se considerar o

axioma segundo o qual ao ser a lei a força que ordenava e regulava os homens que viviam no Estado, eram estes

mesmos ‘homens’, os cidadãos, que conferiam seu caráter obrigatório às normas de conduta. Daí se depreendia

que as leis deviam seu caráter obrigatório à vontade do povo. A lei não lhes era dada por nenhum funcionário

especialmente qualificado, e sim que era feita por eles próprios. Daí que Marsilio denominara o conjunto de

todos os cidadãos ‘legislador humano’ para distingui-lo claramente de qualquer legislador divino”. (Tradução

nossa).

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inspiraram a Revolução Francesa, opondo o símbolo da Nação ao símbolo da Coroa. Nesse

sentido, acentua Paulo Bonavides:

A doutrina democrática da soberania que os poderes da Revolução fundaram

e fizeram prevalecer na Assembléia Constituinte foi a doutrina da soberania

nacional. A Nação surge nessa concepção como depositária única e

exclusiva da autoridade soberana. Aquela imagem do indivíduo titular de

uma fração da soberania, com milhões de soberanos em cada coletividade,

cede lugar à concepção de uma pessoa privilegiadamente soberana: a Nação.

Povo e Nação formam uma só entidade, compreendida organicamente como

ser novo, distinto e abstratamente personificado, dotado de vontade própria,

superior às vontades individuais que o compõem. A Nação, assim

constituída, se apresenta nessa doutrina como um corpo político vivo, real,

atuante, que detém a soberania e a exerce através de seus representantes. A

distinção sensível e capital entre as duas doutrinas democráticas da soberania

se faz sentir sobretudo, quanto aos efeitos da faculdade de participação

política do eleitorado, que aqui se limita, circunscrito àqueles que a Nação

investir na função de escolha dos governantes e ali, na doutrina da soberania

popular, se universaliza a todos os cidadãos, com o direito que lhes cabe por

ser cada indivíduo portador ou titular de uma parcela da soberania.

(BONAVIDES, 2012, p. 131-132)

Maurice Hauriou, expoente da Escola Clássica Francesa, partindo da ideia geral

de que a nação é a fonte única do poder de soberania e que o órgão governamental só o exerce

legitimamente mediante o consentimento nacional, explicita muito bem a relação de sujeição

da nação aos órgãos de governo por ela mesma instituídos, trazendo a ideia de “nação

organizada”, de sorte que as ordens emanadas desse governo só constituem manifestações da

soberania se são aceitas pela vontade geral da nação.

Que la soberanía reside en la nación está claro. Pero si la misma

residiera en la nación de tal manera que eliminase toda sujeción,

la teoría de la soberanía nacional sería falsa, ya que el hecho

primordial del gobierno nos impone el admitir que existe un

poder de gobierno al que se somete la nación [...]. La conciliación es

fácil si se quiere admitir con nosotros que, según la construcción

que acabamos de hacer, la soberanía reside en la nación

organizada, es decir, en la nación provista de órganos de gobierno y

de órganos de gobierno autónomos. (...) Los poderes de gobierno mandan

en nombre de la nación, y ésta obedece, es decir, que incluso las

minorías opositoras están obligadas a obedecer. Es cierto que las

ordenes de los poderes de gobierno sólo son manifestaciones de la

soberanía si son aceptadas por la voluntad general de la

nación,[...]. (HAURIOU, 2013, p. 101-102)10

10

Que a soberania reside na nação está claro. Mas se ela residisse no país de tal forma que eliminasse toda a

sujeição, a teoria da soberania nacional seria falsa, uma vez que o fato primordial que o governo nos impõe é

admitir que há um poder de governo ao qual se submete o país [...]. A reconciliação é fácil se se quer admitir

que, de acordo com a construção que acabamos de fazer, a soberania reside na nação organizada, ou seja, na

nação provida de órgãos de governo e órgãos governamentais autônomos [...]. Os poderes do governo

mandam em nome da nação, e esta obedece, isto é, até as minorias de opositores são obrigadas a obedecer. É

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A partir da segunda metade do século XIX, surge na Alemanha a teoria da

personalidade jurídica do Estado, a qual sustenta que o Estado é o verdadeiro titular da

soberania. Para essa teoria, o povo, mesmo concebido como nação, não tem personalidade

jurídica, porém, como o povo participa do Estado e é o elemento formador da vontade deste, a

atribuição da titularidade da soberania ao Estado atende às exigências jurídicas, ao mesmo

tempo em que preserva o fundamento democrático (MORTATI apud DALLARI, 2003).

Georg Jellinek, principal representante da teoria da personalidade jurídica do Estado, parte do

princípio de que a soberania é a capacidade de autodeterminação do Estado por direito próprio

e exclusivo. O Estado é anterior ao direito e sua fonte única, de modo que a soberania é um

poder jurídico, um poder de direito e, assim como todo e qualquer direito, ela tem a sua fonte

e a sua justificativa na vontade do próprio Estado. As mesmas formulações, com o acréscimo

de algumas especificidades, é apresentada pela Escola Austríaca, cujo principal expoente é

Hans Kelsen. Para este autor, a soberania pertence ao Estado e consiste na capacidade de

autodeterminação do Estado por direito próprio e exclusivo. O Estado é anterior ao direito e

sua fonte única, vale dizer, o direito é feito pelo Estado e para o Estado. Só existe o direito

estatal, elaborado e promulgado pelo Estado, já que a vida do direito está na força coativa que

lhe empresta o Estado. Nega a existência de um direito natural e de toda e qualquer

normatividade jurídica destituída da força de coação que só o poder público pode dar

(MALUF, 2018). Portanto, Kelsen só admite o direito instituído pelo Estado, vale dizer, o

direito positivo, que, segundo Darcy Azambuja, é norma existencial destinada à solução

concreta de situações históricas e sociais, mas que, de outra parte, interpreta e aplica, em cada

sociedade, um direito humano e universal, o Direito Natural (AZAMBUJA, 1993).

Carolina Stuchi, analisando o pensamento de Kelsen no que tange à relação entre

a positividade do direito e a soberania do Estado, assim se expressa:

O problema da positividade do direito, na teoria formulada por Kelsen,

coincide com o da soberania do Estado, uma vez que o princípio da

positividade se dirige contra o princípio jusnaturalista que trata de

demonstrar a ‘justiça’ da ordem jurídica, isto é, sua correspondência com

uma norma ditada pela razão, por Deus, etc., situada fora do direito positivo,

e de favorecer essa relação como se fosse essencial ao direito. (STUCHI,

2015, p. 84)

verdade que as ordens dos poderes do governo são apenas manifestações de soberania se forem aceitas pela

vontade geral da nação, [...]. (Tradução nossa).

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Kelsen concebe o sistema normativo na forma de uma pirâmide, a qual trazia em

seu ápice a “norma hipotética fundamental”, que tinha a natureza de norma internacional – o

pacta sunt servanda. Observa Carolina Stuchi que:

Não é uma norma “positiva”, mas sim “pressuposta”, constituindo, assim, o

fundamento de todas as normas positivas [...] e nesse pressuposto básico

reside o que se chama soberania da ordem jurídica estatal, constituída pela

referida norma fundamental [...]. Sustentando a tese monista sobre a unidade

da ordem jurídica nacional e internacional, Kelsen afirma que a soberania do

Estado e o direito internacional não são apenas compatíveis, mas aquela não

existe senão sobre a base deste. (STUCHI, 2015, p. 85-86)

Analisando as teorias formuladas por Jellinek e Kelsen, pondera Sahid Maluf

que, “dentro dessa linha de pensamento, desenvolveram-se as inúmeras teorias estadísticas,

que serviram de fomento doutrinário aos Estados totalitários de após guerra” (MALUF, 2018,

p. 33-34).

Tendo-se em vista as teorias e escolas de pensamento acima expostas e,

considerando-se que não há fundamento razoável, nos dias de hoje, para a subsistência da tese

da soberania absoluta do Estado, parece razoável atentar para as postulações de uma teoria

que vai se ajustando às novas realidades mundiais. Trata-se da Teoria Realista ou

Institucionalista, que consiste em um desdobramento da Teoria da Soberania Nacional

concebida por Maurice Hauriou, antes referido. Para a Teoria Realista ou Institucionalista, a

soberania, conquanto seja originária da nação (fonte do poder), só adquire expressão concreta

e objetiva, quando se institucionaliza no órgão estatal (exercício do poder). Destarte, se Nação

e Estado são realidades distintas, uma sociológica e outra jurídica, certo é também que ambas

compõem uma só personalidade no campo do Direito Internacional Público, pois, neste

campo não se projeta a soberania como vontade do povo, e sim como vontade do Estado, que

corresponde à Nação politicamente organizada, segundo a definição que nos vem da Escola

Clássica Francesa.

É exatamente as circunstâncias que contribuem para a redefinição do conceito

clássico de soberania que serão objeto de análise no item seguinte.

3.4 A adequação do conceito clássico de soberania às novas exigências da ordem

internacional contemporânea – a questão da dignidade da pessoa humana

O poder soberano do Estado, embora seja absoluto e supremo em seu domínio,

não pode ser exercido arbitrariamente e sem limites. Assim, não sendo o Estado um fim em si

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mesmo, mas um meio de os indivíduos procurarem cumprir seu destino, desenvolvendo suas

qualidades físicas, morais e intelectuais, o poder soberano do Estado é limitado pelos direitos

naturais da pessoa humana. Segundo Sahid Maluf, o poder de soberania exercido pelo Estado

encontra fronteiras não só nos direitos da pessoa humana como também nos direitos dos

grupos e associações, tanto no domínio interno como na órbita internacional. Notadamente, no

plano internacional, a soberania é limitada pelos imperativos da coexistência de Estados

soberanos, não podendo invadir a esfera de ação das outras soberanias (MALUF, 2018).

Como todo conceito de Ciência Política, a doutrina da soberania passou por

significantes e profundas transformações e também por um processo de revisão, ditados pela

alteração do cenário mundial nas últimas décadas. De acordo com Paulo Bonavides, “há

juristas, sociólogos e pensadores políticos que entendem tratar-se de um conceito já em

declínio. Hoje, [...] as ideologias pesam mais nas relações entre os Estados do que o

sentimento nacional de soberania” (BONAVIDES, 2012, p. 132). Gilmar Bedin estabelece

uma relação entre a transformação do conceito de soberania e o fenômeno da globalização,

sustentando que a primeira consequência estrutural da globalização é o declínio do conceito

de soberania e a redefinição do papel do Estado, ressalvando, no entanto, que esse fato não

significa que o Estado deixou de ser uma das mais sólidas instituições políticas modernas,

contudo, esse mesmo Estado passou a desempenhar novas funções, como o auxílio à

formação de blocos regionais e o estímulo às organizações econômicas multilaterais,

passando a ostentar o estatuto de entidade política com soberania relativa (BEDIN, 2009).

Embora o conceito de globalização não seja uniforme, parece ser possível

identificar alguns elementos comuns para designá-lo e que são identificados genericamente

por sociólogos, juristas, economistas e políticos como sendo um fenômeno de disseminação

de processos globais que extrapolam os limites das fronteiras nacionais e influenciam as

culturas, as economias, as liberdades e até as organizações políticas dos países, em escala

mundial. A globalização, assim considerada, produz reflexos no conceito de soberania, na

medida em que acaba por atingir cada país de forma desigual, na proporção da riqueza, poder,

ou desenvolvimento social, econômico e tecnológico de cada um deles. Nesse sentido, os

efeitos da globalização sobre o conceito de soberania têm sido avaliados por uma imensa

gama de autores, que expressa os mais variados pontos de vista, destacando-se, de um lado,

aqueles que enfatizam o aspecto econômico e preveem a extinção da soberania e, de outro

lado, os que realçam os aspectos políticos, defendendo, em muitos casos, a sobrevivência da

soberania de forma absoluta, como conceito inerente ao Estado.

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Reportando-se aos efeitos deletérios da globalização sobre a soberania do Estado,

e assinalando a perda da autonomia deste, bem como de sua legitimidade, assim se expressa

José Eduardo Faria:

O denominador comum dessas rupturas é, como se pode ver, a perda da

soberania e da autonomia dos Estados nacionais. Por um lado, o Estado já

não pode mais almejar regular a sociedade civil nacional por meio de seus

instrumentos jurídicos tradicionais, dada a crescente redução de seu poder de

intervenção, controle, direção e planejamento. Por outro lado, é obrigado a

compartilhar sua soberania com forças que transcendem o nível nacional

[...]. A conseqüência desse processo é paradoxal: ao mesmo tempo que se

observa um movimento da internacionalização dos direitos nacionais,

também se constata a expansão de normas privadas no plano internacional,

[...] (FARIA, 1996, p. 47).

Como bem observa Luiz Gonzaga Silva Adolfo:

Parece óbvio que a própria visão de soberania reclama novos paradigmas,

[...]. Na verdade, tudo está umbilicalmente ligado à esfera de atuação

política, que não deixa de ser jurídica. Entretanto, a globalização não pode

desconsiderar as realidades locais – culturais, econômicas, antropológicas,

sociológicas e jurídicas –, sob pena de tornar-se a mais perversa ditadura já

vista pelo homem. (ADOLFO, 2001, p. 127)

Nesse sentido, de todo oportuna a observação de Gilmar Bedin de que o poder do

Estado passou a ser compartilhado:

Com outros órgãos, outras instituições, [...] menos soberanos e mais

integrados num projeto comum, alicerçados na constatação de que os

problemas são interdependentes e que interessam a toda a humanidade [...].

Entre os elementos que mais contribuíram para essa nova configuração da

sociedade internacional, pode-se destacar o surgimento de novos atores

internacionais, quais sejam, as organizações internacionais, cujo exemplo

mais expressivo é a Organização das Nações Unidas (ONU), as organizações

não-governamentais e as empresas transnacionais. (BEDIN, 2009, p. 168-

169)

É de se ter presente que, nos dias hodiernos, a soberania exercida pelo Estado não

pode ser concebida apenas como exercício de poder político absoluto, como produto de um

ato de vontade ilimitado do Estado. Em face das inúmeras transformações pelas quais passou

e vem passando o instituto da soberania, parece que o mais razoável, nos tempos que seguem,

é o entendimento da soberania de duas maneiras distintas: como expressão de poder jurídico

mais elevado e como sinônimo de independência. Na primeira acepção, significa que, dentro

dos limites territoriais do Estado, o poder soberano é superior a todos os demais, tanto dos

indivíduos como dos grupos sociais existentes no âmbito do Estado. No segundo sentido, a

soberania é tomada em sua dimensão internacional, vale dizer, no conjunto de relações

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estabelecidas entre os Estados, deve prevalecer a igualdade jurídica entre entidades soberanas,

de sorte que entre esses Estados deve haver independência, o que equivale a dizer que nas

relações estabelecidas entre os Estados há qualquer superioridade de uns em relação aos

outros.

Analisando os dois sentidos do instituto da soberania, assim se manifesta Dalmo

Dallari:

Como é natural, e os fatos o comprovam constantemente, é absurdo

pretender que a soberania tenha perdido seu caráter político, como expressão

de força, subordinando-se totalmente a regras jurídicas [...]. A conceituação

jurídica, no entanto, considera irrelevante, em princípio, o potencial de força

material, uma vez que se baseia na igualdade jurídica dos Estados e

pressupõe o respeito recíproco, como regra de convivência. Neste caso, a

prevalência da vontade de um Estado mais forte, nos limites da jurisdição de

um mais fraco, é sempre um ato irregular, antijurídico, configurando uma

violação de soberania, passível de sanções jurídicas. (DALLARI, 2005, p.

83-84)

Cumpre notar que a presença do Direito restringindo o poder absoluto do Estado,

mesmo dentro de seus limites territoriais, parece denotar um avanço significativo de

concepções humanistas e liberais, visto que as teorias da soberania absoluta do Estado, antes

referidas, serviram para justificar os Estados nazista, fascista e todos os totalitarismos e que

foram responsáveis por duas conflagrações mundiais, trazendo sofrimentos indizíveis à

humanidade. Nesse sentido, avulta a questão de o exercício da soberania, no plano interno do

Estado, ser compatível com a possibilidade da convivência pacífica com outros Estados

soberanos na órbita internacional. Destarte, a liberdade do Estado, a nosso ver, deve estar em

conformidade com as normas do direito internacional dos direitos humanos, pois, ao se

comprometerem mutuamente por meio de tratados internacionais, notadamente os que se

referem a direitos humanos, os Estados acabam por limitar sua soberania em favor dos

direitos fundamentais da pessoa humana.

Valerio Mazzuoli chama a atenção para o fato de que “soberania” e “direitos

humanos” são dois conceitos inconciliáveis, aduzindo que:

Não existem direitos humanos globais, internacionais e universais, sem uma

soberania flexibilizada, o que impediria a projeção desses direitos na agenda

internacional [...]. Um novo conceito de soberania, afastada sua noção

tradicional, aponta para a existência de um Estado não isolado, mas incluso

numa comunidade e num sistema internacional como um todo. A

participação dos Estados na comunidade internacional, seguindo-se esta

nova trilha, em matéria de proteção internacional dos direitos humanos, esta

sim, seria, sobretudo, um ato de soberania por excelência. (MAZZUOLI,

2004, p. 353-354)

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Na mesma linha de raciocínio, José Augusto Lindgren Alves pondera que:

[...] o sistema de proteção internacional dos direitos humanos das Nações

Unidas não ameaça a soberania nacional dos Estados, uma vez que o seu

caráter de proteção é complementar e subsidiário, onde se reconhece

primordialmente aos Estados a incumbência pela efetiva proteção. Apenas

no caso deste não zelar pela proteção de tais direitos é que o sistema da ONU

entra em ação como meio de se efetivar a proteção internacional dos direitos

humanos. (ALVES, 1994, p. 39)

Importa ressaltar que essa proteção complementar e subsidiária prestada pela

ONU nos casos de violação de direitos humanos, conforme acentua Lindgren Alves, é exposta

com clareza no Relatório da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania do Estado

das Nações Unidas de dezembro de 2001. Colhe-se, assim, do aludido Relatório, que:

The Charter of the UN is itself an example of an international obligation

voluntarily accepted by member states. On the hand, in granting

membership of the UN, the international community welcomes the

signatory state as a responsible member of the community of nations.

On the other hand, the state itself, in signing the Charter, accepts the

responsabilities of membership flowing from that signature. There is no

transfer or dilution of state sovereignty. But there is a necessary re-

characterization involved: from sovereignty as control to sovereignty as

responsibility in both internal functions and external duties.11

Eduardo Matias, conjecturando sobre uma necessária reformulação do conceito de

soberania, propõe a substituição da independência pela interdependência. Em suas palavras:

Ao Estado soberano contemporâneo não é mais permitido usar a força nas

relações internacionais, ou tratar seus cidadãos abaixo de um padrão mínimo

de proteção aos direitos humanos, [...]. Portanto, a soberania não é mais o

conceito inatacável sobre o qual foi construída a sociedade internacional. A

interdependência afeta a capacidade do Estado de decidir exclusivamente

com base em sua vontade, o que reduz sua autonomia e modifica sua

soberania – de fato, o tempo das tomadas de decisão autônomas parece, para

a maioria dos Estados e em diversos assuntos, parte do passado. (MATIAS,

2005, p. 443)

Cabe destacar, ainda, a posição de Luigi Ferrajoli, quando analisa as

transformações significativas operadas pela Carta das Nações Unidas, de 1945, e pela

11

“A Carta das Nações Unidas resulta de uma obrigação internacional voluntariamente aceita pelos Estados-

membros. De um lado, o Estado signatário da Carta da ONU é bem recebido pela comunidade internacional, a

qual o reconhece como membro responsável pela comunidade das nações. De outra parte, o próprio Estado, ao

assinar a referida Carta, aceita as responsabilidades de membro que decorrem de sua assinatura. Não há, assim,

transferência ou diluição da soberania do Estado, porém, o que ocorre é uma nova caracterização da soberania:

de soberania como controle para soberania como responsabilidade, expressas nas funções internas e nos deveres

externos”. (Tradução nossa). INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE

SOVEREIGNTY. The responsabilitiy to protect. Report of the International Commission on Intervention and

State Sovereignty, 2001, p. 13.

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Declaração dos Direitos do Homem, de 1948, no tocante à soberania, expressando-se assim:

“Esses dois documentos transformam, ao menos no plano normativo, a ordem jurídica do

mundo, levando-o do estado de natureza ao estado civil. A soberania, inclusive externa, do

Estado – ao menos em princípio, deixa de ser, com eles, uma liberdade absoluta e selvagem e

se subordina, juridicamente, a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos

direitos humanos” (FERRAJOLI, 2002, p. 39-40).

À guisa de conclusão, parece não haver, nos dias hodiernos, qualquer razão

ponderável no sentido de se justificar a soberania em seus padrões clássicos, vale dizer, como

expressão de poder absoluto, ilimitado e incontrastável do Estado, pois este está integrado em

uma ordem internacional informada pela igualdade jurídica entre todos os entes estatais, de

sorte que a soberania plena e absoluta, outrora apanágio do Estado-nação tal como concebido

em seus primórdios, passa a sofrer as restrições impostas pela crescente interdependência

entre os Estados e pelo imperativo das regras de proteção da dignidade humana e dos direitos

humanos. De outra parte, entretanto, mostram-se um tanto temerárias algumas posições

segundo as quais a instituição “Estado” estaria fadada ao desaparecimento e que a soberania

seria um conceito ultrapassado. Há que se reconhecer que as Constituições nacionais

continuam sendo o fundamento da legalidade e da legitimidade das comunidades estatais e a

soberania, por conseguinte, é a base do sistema internacional, pois, ainda que essa soberania

seja posta em causa em virtude de o Estado não ser capaz de prover os meios necessários à

promoção da dignidade da pessoa humana, a comunidade internacional será chamada a

intervir, não para se substituir a esse Estado, mas para reconstruir suas instituições de modo a

torná-lo forte e para que possa, novamente, impor a ordem e criar a regra da lei.

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CAPÍTULO 4 - INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA: A INFINDÁVEL

CONTROVÉRSIA ACERCA DA DELIMITAÇÃO DA AÇÃO

INTERVENTIVA

4.1 Assistência humanitária: a constituição de um direito internacional humanitário

como instrumento de proteção à pessoa humana

A proteção internacional da pessoa humana, entendida esta como pessoa detentora

de dignidade e de direitos inerentes a sua personalidade, acarreta direitos e deveres aos

indivíduos e Estados e deve ser compreendida a partir de uma perspectiva holística, vale

dizer, a proteção e a assistência humanitárias internacionais englobam uma abordagem tanto

de direitos como de necessidades, com vistas a assegurar aquilo que é essencial no momento

(como alimentos e proteção), mas também buscando projetar situações ideais em que não se

precise remediar ou evitar situações em que os direitos decorrentes da dignidade humana

sejam violados.

Não obstante o conceito abrangente de “assistência humanitária”, cumpre

apresentar, de início, uma noção básica do significado do adjetivo “humanitário”, que nos é

fornecido pelo Dicionário da seguinte forma: “1. Que visa ao bem-estar da humanidade.

2.Que ama os seus semelhantes; bondoso, benfeitor, humano. [...]. 3. Aquele que deseja e

trabalha para o bem da humanidade, considerada coletivamente; filantropo” (FERREIRA,

2004, p. 1059).

Atualmente, uma das maneiras pelas quais se concretiza a proteção internacional

da pessoa humana é a prática da Proteção e Assistência Humanitárias Internacionais, por meio

de ações humanitárias. Vale ressaltar que a noção de assistência humanitária está

intrinsecamente ligada às guerras, as quais acompanharam a história da Humanidade, trazendo

indizíveis sofrimentos e gerando o repúdio por parte da comunidade internacional. A História,

lamentavelmente, é pródiga em episódios de autêntico descaso pela dignidade humana, como

a noite de São Bartolomeu, quando houve o massacre dos huguenotes na França, ou o

perecimento dos judeus na II Guerra Mundial, passando pelos genocídios de Camboja, Haiti,

Ruanda, Somália, a guerra da Bósnia e, mais recentemente, as guerras na Síria e no Iraque.

A ideia de assistência humanitária está associada ao conceito de jus in bello

(direito da guerra), que consiste no conjunto de normas, primeiro costumeiras, depois

convencionais, que floresceram no domínio do Direito Internacional quando a guerra era uma

opção lícita para o deslinde de conflitos entre Estados e define parâmetros a serem observados

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durante a condução dos conflitos armados, incluindo tratamento de feridos, prisioneiros e

populações civis, diferenciação entre combatentes e não combatentes, bem como meios e

métodos militares permitidos e proibidos. O jus in bello, anteriormente referido, não se

confunde com o jus ad bellum (direito à guerra), o qual consiste no direito de fazer a guerra

quando esta se apresentar com subsídios para sua legitimação. Hodiernamente o direito à

guerra se apresenta na ordem jurídica internacional como um ilícito, salvo duas hipóteses

previstas na Carta das Nações Unidas: legítima defesa coletiva ou individual e a autorização

do uso da força junto ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (GUERRA, 2013).

Na busca dos antecedentes históricos da assistência humanitária, pode ser citada a

ação operosa de Jean-Henri Dunant (1828-1910), empresário suíço que tinha como objetivo

investir todo o seu patrimônio em moinhos de milho, na Argélia – antiga colônia francesa. Em

uma de suas viagens de negócios, presenciou cenas de verdadeira barbárie, por ocasião de um

combate envolvendo tropas austríacas e franco-sardenhas, na luta pela unificação da Itália.

Henri Dunant, traumatizado com aquele quadro impressionante em que os feridos não

recebiam nenhuma assistência, ficando os mortos no campo de batalha, relegados ao mais

absoluto abandono, decidiu organizar, em uma das Igrejas de Castiglioni, na Lombardia, um

hospital, contando com o auxílio voluntário dos habitantes da região, que se dispunham a

prestar socorro, ainda que precariamente, às vítimas dos combates.

Impressionado com o quadro dantesco que presenciara naqueles locais

conflagrados, Henri Dunant publica o livro Un souvenir de Solférino, em que relata as

crueldades perpetradas durante a guerra. Esta obra atraiu atenção de muitos cidadãos notáveis

e personalidades da Suíça, os quais, adotando a proposta de Henri Dunant, fundaram o

“Comitê Internacional de Socorro aos Militares Feridos”, que mais tarde passou a se chamar

Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Em 1864, é convocada uma Conferência

Diplomática em Genebra, resultando daí a Primeira Convenção de Genebra para oferecer um

destino melhor aos militares feridos dos exércitos em campanha militar. A aludida convenção

foi revisada, modificada e ampliada várias vezes, especialmente em 1906, 1929, 1949 e 1977

(VALLADARES apud JUBILUT; APOLINÁRIO, 2012).

Embora haja, por vezes, alguma diferença de enfoque entre os autores, é possível

identificar, por outro lado, algum consenso entre eles no sentido de se admitir a expressão

“assistência humanitária” como sendo a ajuda material e técnica necessárias diante da

degradação das condições materiais de existência e da destruição total ou parcial das infra-

estruturas coletivas, visando assegurar um padrão de vida adequado até que as necessidades

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básicas possam ser satisfeitas pelas autoridades ou pelos próprios meios das pessoas, o que

abrange serviços de saúde, segurança alimentar, educação , etc. Assim, mesmo em se tratando

de um conflito armado, a conduta dos beligerantes não pode ser anárquica, devendo estar

sujeita a limitações, de acordo com os princípios da humanidade (se existe a consciência de

respeito à dignidade humana) e da necessidade (que consiste na observância da real

necessidade do emprego da força militar) (JUBILUT; APOLINÁRIO, 2012).

Referindo-se à atuação da Cruz Vermelha Internacional no campo da assistência

humanitária, Jean Pictet assim se expressa:

En realidad, la Cruz Roja nada detesta tanto como la guerra y sus

holocaustos. Su ideal si extiende por igual a todos los seres,

incluso a los combatientes. Pero, ante la imposibilidad de vencer

una plaga cuyo desencadenamiento se produce sin que ella pueda

evitarlo, quiere que , por lo menos, en ese desbordamiento de las

fuerzas maléficas, se salvaguarden los preceptos esenciales de humanidad

con respecto a quienes no tienen, o ya no tienen, fuerzas para

combatir. (PICTET, 1986, p. 93-94)12

Ressalte-se desde logo que a expressão “assistência humanitária” vem ensejando,

ao longo das últimas décadas, intensa controvérsia no campo das relações internacionais e do

Direito Internacional, em virtude de um desvirtuamento de seu significado original para

revesti-lo de conotações ideológicas e políticas. Assim, concebida originariamente como

ações destinadas a prover meios de sobrevivência à população de um Estado, em decorrência

de guerras ou de catástrofes naturais, a assistência humanitária, entendida, inicialmente, como

um direito de todos aqueles que estivessem submetidos àquelas situações extremas, passaram

a ser objeto de consideração pelas potências mundiais, as quais, expressando seus interesses

políticos de ocasião e, a partir de um critério seletivo, disseminaram a noção de um “dever de

assistência humanitária”, por meio de intervenções armadas destinadas a tal propósito.

Portanto, cumpre, desde logo, delimitar o significado e a abrangência da expressão

“assistência humanitária”, de modo a afastar qualquer associação desta com ações políticas

armadas que não se fundamentam nos princípios humanitários.

Uma compreensão mais precisa do significado da expressão “assistência

humanitária” pressupõe uma análise acerca das profundas transformações operadas no quadro

político internacional, considerando-se os inúmeros desafios que se apresentaram ao exercício

12

“Nada é mais execrado pela Cruz Vermelha que a guerra e seus holocaustos. Seu ideal estende-se por igual a

todos os seres, inclusive aos combatentes. Mas, diante da impossibilidade de vencer uma praga cujo

desencadeamento acaba se produzindo sem que aquela possa evitá-lo, deseja que, pelo menos, nesse

desbordamento das forças maléficas, se possa salvaguardar os preceitos essenciais de humanidade quanto

àqueles que não os têm, ou já não têm, forças para combater.” (Tradução nossa)

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do poder e da autoridade no plano mundial. Com efeito, a crescente porosidade das fronteiras

nacionais e a consequente expansão de interesses supranacionais, a erosão do conceito de

soberania e a internacionalização dos direitos humanos vieram confrontar uma ordem

internacional fundada na concepção de Estados Nacionais, cujo alicerce era a soberania

territorial como forma suprema de organização política, e a fixação das fronteiras separava o

nacional do estrangeiro, o amigo e o inimigo, contra quem se decreta a guerra, mas com quem

é possível celebrar a paz.

A crise da ordem internacional que emergiu de Westfalia foi determinada, em

grande parte, pelo avanço do processo de globalização, que permitiu um incremento das

interações sociais e, no que diz respeito, especificamente, ao campo dos direitos humanos,

verificou-se a gradativa consolidação de um processo de internacionalização dessa categoria

de direitos, que se materializou em uma multiplicidade de tratados e convenções. Segundo

Alberto do Amaral Júnior: “A formação de um espaço público internacional dos direitos

humanos alimentado pelos meios de comunicação enfraqueceu o apelo político ao conceito de

soberania para encobrir a prática de perseguições, massacres e torturas contra minorias étnicas

e opositores políticos” (AMARAL JÚNIOR, 2003, p. 4).

De acordo com Mônica Teresa Sousa, há um princípio de solidariedade universal

que embasa o direito de assistência humanitária, e esclarece:

Na definição da assistência humanitária como direito do indivíduo, e para

sua regulamentação detalhada e específica deve se levar em consideração

muito mais as necessidades dos indivíduos que dela precisam que as

vontades políticas estatais quanto ao oferecimento de assistência a outros

Estados. O compromisso com a assistência humanitária não está vinculado

com as ações puramente intervencionistas, que infelizmente muitas vezes

são identificadas de maneira equivocada com ações humanitárias [...].

Associam-se os fundamentos éticos e morais do direito à assistência aos

princípios da solidariedade universal e da dignidade do homem. Princípios

de alcance universal, não há muita diferenciação entre os mesmos nos mais

diferentes Estados. (SOUSA, 2011, p. 77-78)

Gross Espiell, enfatizando que a prestação de ajuda humanitária constitui um

direito dos indivíduos, assim se expressa:

A ação que constitui a ajuda humanitária deve repousar sobre o respeito dos

princípios e da igualdade soberana dos Estados. Deve ser solicitada ou

concedida por estes e conduzida em conformidade com os princípios da

humanidade, neutralidade e imparcialidade, de modo tal que a integridade do

território e a unidade nacional não sofram violações nem ataques.

(ESPIELL, 1999, p. 31)

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A necessidade de se prover os meios necessários ao pronto e adequado

atendimento àquelas pessoas que padeciam nos campos de batalha demandava uma atuação

decisiva no sentido de se estruturar um conjunto de normas que, efetivamente, regulamentasse

a conduta dos Estados, limitando o recurso a determinados métodos e meios de combate nas

hostilidades, bem como assegurasse adequada proteção às vítimas do conflito, o que levou,

gradativamente, à estruturação do Direito Internacional Humanitário, que veio a se

desenvolver em duas vertentes: o “Direito de Haia” e o “Direito de Genebra”. O primeiro

passo nesse sentido foi dado com a convocação das Conferências Internacionais de 1899 e de

1907, na cidade de Haia, Holanda, e a normativa que emergiu dessas duas Conferências ficou

conhecida como “Direito de Haia”, cujo objetivo era limitar a aflição e o padecimento das

pessoas vitimadas nos conflitos por meio de uma regulamentação de como as tropas deveriam

conduzir suas atitudes, buscando com isso a não utilização de meios e métodos cruéis. A

segunda vertente, conhecida como “Direito de Genebra”, que corresponde ao trabalho

desenvolvido pelas Convenções de Genebra de 1864 e de 1949, tinha como escopo proteger

as vítimas militares, que já não faziam parte do combate, e a população civil, estendendo a

proteção a médicos e pessoas envolvidas com os trabalhos de socorros, obrigando o

tratamento aos feridos e enfermos, bem como adotando medidas no sentido de se prover a

imunização contra qualquer ataque a hospitais e veículos voltados ao transporte hospitalar.

Observa Christophe Swinarski que:

Embora seja óbvio que a limitação ou proibição de determinadas maneiras

de combater, assim como o uso de certas armas, são de uma importância

evidente para a proteção dos combatentes, costuma-se considerar o ‘Direito

de Haia’ como sinônimo do ‘direito da guerra’, stricto sensu, e o ‘Direito de

Genebra’ como o ‘direito humanitário’, stricto sensu. (SWINARSKI, 1990,

p. 30)

O mesmo autor, partindo de tal constatação, apresenta o seguinte conceito de

Direito Internacional Humanitário:

O Direito Internacional Humanitário é um conjunto de normas

internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente

destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não-

internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em

conflito escolherem livremente os métodos e os meios utilizados na guerra

(Direito de Haia), ou que protege as pessoas e os bens afetados (Direito de

Genebra). (SWINARSKI, 1990, p. 31)

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A terceira vertente do Direito Internacional Humanitário, conhecida como

“Direito de Nova York”, surge com a fundação da Organização das Nações Unidas (ONU),

em 1945. Inicialmente, enfatiza Leonardo Estrela Borges:

A ONU não se preocupou com o Direito Internacional Humanitário, na

medida em que fez uma abordagem indireta a esse direito ao tratar de dois

temas específicos: 1) a criação dos tribunais penais internacionais para

julgamento dos crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial; 2) a

avassaladora proliferação de armamentos atômicos e de elevado potencial de

destruição no pós-Guerra. Assim, surge um esboço de normas que, mais

tarde, vem a se consolidar como um Direito Penal Internacional e que passa

a ter reflexos no Direito Internacional Humanitário, sejam eles de natureza

direta – pela tipificação de condutas ilícitas – ou indireta – pela provisão de

mecanismos para garantir o cumprimento de normas humanitárias.

(BORGES, 2006, p. 32)

O Direito Internacional Penal passa a ganhar corpo com o término da Segunda

Guerra Mundial. Vitoriosos os Aliados, propuseram os EUA à Inglaterra, Rússia e França um

plano com o fim de ser organizado um Tribunal Internacional destinado a julgar e condenar os

grandes criminosos de guerra. O Acordo de Londres, de 8 de agosto de 1945, instituiu o

referido Tribunal, constando como anexo do acordo o respectivo Estatuto, o qual estabelece,

em seu art. 6º, o conceito de “crime de guerra”, nestes termos:

Crimes de guerra são as violações das leis e dos costumes da guerra. Essas

violações incluem, mas não limitam, assassinatos, maus-tratos e deportações

para trabalhos forçados ou para qualquer outro propósito, de populações

civis de territórios ocupados ou que se encontrem neles; assassinatos e maus-

tratos de prisioneiros de guerra ou de pessoas nos mares; execução de reféns,

saques à propriedade pública ou privada, injustificável destruição de cidades

e aldeias; devastação não justificada por necessidades militares. (TORRES,

1992, p. 52-53)

A se considerar as três vertentes do Direito Internacional Humanitário, antes

referidas, a saber, o “Direito de Haia”, o “Direito de Genebra” e o “Direito de Nova York”,

notar-se-á, segundo pontua Leonardo Estrela Borges, que não há uma linha divisória

claramente definida entre elas, havendo muito mais uma relação de complementaridade,

notadamente, acentua o autor, a partir de um evento de grande significado para o Direito

Internacional Humanitário, que consistiu na realização, pela ONU, da Conferência de Teerã

sobre Direitos Humanos de 1968, ao termo da qual foi adotada a Resolução XXIII referente à

aplicação dos direitos humanos em tempo de guerra. Conclui, então, Leonardo Borges:

De fato, a partir da adoção da Resolução XXIII pela Assembleia Geral das

Nações Unidas, identifica-se um movimento cada vez mais forte de

confluência entre as três correntes, dando início à criação de um único corpo

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de normas jurídicas que engloba as disposições de proteção das vítimas dos

conflitos, as regras de limitação aos meios e métodos de combate, e a

proteção internacional dos direitos humanos nos conflitos armados.

(BORGES, 2006, p. 32)

Aspecto de relevo no que diz respeito ao Direito Internacional Humanitário é sua

relação muito próxima com os Direitos Humanos, apresentando uma série de pontos em

comum, a começar pela proteção da dignidade humana. Esclarece Christophe Swinarski que:

O propósito dos Direitos Humanos é, antes de tudo, o de garantir ao

indivíduo a possibilidade de desenvolver-se como pessoa para realizar os

seus objetivos pessoais, sociais, políticos e econômicos, amparando-o contra

os empecilhos e os obstáculos que encontre em seu caminho, a raiz da

arbitrariedade do Estado ou da exacerbação pelo mesmo, do conceito de

soberania em matéria pessoal [...]. Quando se fala do Direito Humanitário,

não se deve esquecer que esta normativa de proteção tem como finalidade

suprema fazer possível que um ser humano, em toda a sua condição de

pessoa, atravesse os gravíssimos perigos do conflito armado e das situações

de violência em que este se aplica, salvaguardando a sua integridade pessoal

e, em certa medida, a de seu âmbito social (família, casa, profissão, etc.) [...].

Por conseguinte, seria difícil poder considerá-lo como um direito

promocional. Ao contrário, trata-se visivelmente de um direito de

sobrevivência, de um sistema que tende a conservar a pessoa humana e não a

oferecer-lhe mais espaço para que viva melhor. (SWINARSKI, 1990, p. 90)

No que concerne aos direitos humanos, convém atentar para o fato de que, ainda

que sejam estes estabelecidos como essenciais à pessoa humana, e também entendidos como

universais e indivisíveis, pode ocorrer que cada Estado, ao implementá-los em sua normativa

interna, adote uma regulamentação específica e discricionária, diferentemente da

regulamentação dada por outros Estados. Esta regulamentação diferenciada de um mesmo

direito dentro dos sistemas jurídicos dos Estados decorre do “relativismo cultural”, que

consiste na possibilidade de uma implementação diferenciada dos direitos humanos,

respeitando-se a existência de diversas identidades culturais, étnicas ou religiosas. Nesse

sentido, bastante oportuna a colocação de Mônica Teresa Sousa, ao considerar que essas

apreciações que trazem a ideia de um relativismo cultural, muitas vezes aplicáveis aos direitos

humanos, não podem ser consideradas em se tratando do Direito Humanitário. Nas palavras

da autora:

Essa relativização não é possível ao se tratar do Direito Humanitário. A

guerra não traz margens a relativismos políticos, jurídicos ou culturais. A

agressão armada é um conceito universal, ainda que diferentes sejam os

métodos de combate e as razões que levam ao conflito. As motivações

políticas, étnicas e religiosas que levam os Estados à guerra não são matéria

do Direito Humanitário. O que interessa é a necessidade de proteger aqueles

que estão fora de combate, e minimizar o sofrimento dos que sofrem algum

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mal causado pelos conflitos. Não há lugar para discussões políticas, apenas

para ações concretas. (SOUSA, 2011, p. 110)

Do ponto de vista teórico, três correntes doutrinárias procuram explicar o elo

existente entre o Direito Internacional Humanitário e os Direitos Humanos: a tese

integracionista; a tese separatista; a tese complementarista. A tese integracionista preconiza a

fusão do Direito Internacional Humanitário e dos Direitos Humanos, sendo estes parte

integrante daqueles, de sorte que os Direitos Humanos fazem parte do Direito Internacional

Humanitário lato sensu, enquanto que o Direito Humanitário propriamente dito

permaneceria humanitário stricto sensu da palavra. A tese separatista sustenta a separação

entre o Direito Intencional Humanitário e os Direitos Humanos, dada a diferença entre as

finalidades de uma e de outra categoria. O primeiro protege o indivíduo em situações em que

a ordem nacional já não pode garantir-lhe uma proteção eficaz, quando este indivíduo é vítima

de um conflito armado. O segundo protege o indivíduo contra o aspecto arbitrário da própria

ordem jurídica interna. Por fim, a tese complementarista afirma que os Direitos Humanos e o

Direito Internacional Humanitário são dois sistemas distintos, porém, complementares

(SWINARSKI, 1990).

De todo modo, ainda que o Direito Internacional Humanitário e os Direitos

Humanos constituam dois sistemas diferentes, com distintos propósitos jurídicos de proteção,

bem como apresentem diferenças de origem, quanto a sua formação histórica, há entre eles

uma complementaridade do ponto de vista do âmbito de aplicação. Nesse sentido, acentua

Christophe Swinarski:

As normas inderrogáveis dos Direitos Humanos podem ser aplicadas ao

mesmo tempo e nas mesmas situações nas quais têm efeito as normas

humanitárias, tendo, além disso, algumas delas o mesmo conteúdo ou um

conteúdo muito semelhante. Também não se deve esquecer, na perspectiva

mais ampla, da finalidade primordial comum desses dois conjuntos de

regras, que ambos nascem de uma mesma preocupação da comunidade

humana: o respeito à dignidade humana. (SWINARSKI, 2005, p. 189)

4.2 A discussão em torno da justeza e da legitimidade da intervenção humanitária

Os Acordos de Paz de Westfalia de 1648, que puseram termo à Guerra dos Trinta

Anos, promoveram substancial modificação nos padrões de relacionamento entre os Estados,

representando, segundo alguns estudiosos, um divisor de águas na história das relações

internacionais. A partir de então, é instituído um sistema moderno de Estados soberanos, os

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quais passam a se vincular entre si por meio de regras, que estabelecem uma igualdade

jurídica entre esses Estados, bem como o respeito aos acordos entre estes estabelecidos.

Assim, a coexistência entre os Estados passa a ser regulada pela regra da não-intervenção,

corolário da concepção de que se existe a igualdade jurídica entre Estados soberanos, não

seria admissível qualquer forma de intervenção que pudesse traduzir a imposição da vontade

de uns sobre os outros.

Vale ressaltar que o princípio de não-intervenção concebido pelo sistema de

Westfalia manteve-se por largo período, encontrando na Carta das Nações Unidas de 1945 sua

completa afirmação, em virtude do movimento de descolonização verificado nos Estados

africanos e asiáticos. Contudo, a ideia de uma não intervenção de forma absoluta foi passando

por um gradativo processo de erosão no segundo pós-guerra, ganhando corpo a concepção

segundo a qual os Estados não podem fazer o que pretendem sob o pálio da decantada

soberania. A controvérsia a respeito da admissibilidade jurídica e política da intervenção já se

iniciara na segunda metade do século XIX, expressando a divisão entre aqueles que

defendiam a intervenção por razões de justiça e solidariedade e outros que a condenavam por

representar uma violação do princípio da soberania e do direito internacional.

Ricardo Seitenfus observa que nos anos que precederam a I Guerra Mundial,

Antoine Rougier, em artigo célebre publicado em 1910, mostrou-se favorável à intervenção

humanitária, sustentando que esse tipo de intervenção é legal quando as autoridades

governamentais de um Estado violam os direitos dos cidadãos, mas a legalidade da

intervenção supõe a ação desinteressada do Estado interveniente, assim entendida a ação que

não se subordina a motivos políticos e econômicos. Rougier, no entanto, deixa transparecer

alguma dúvida sobre as intervenções empreendidas por Estados isolados porque o seu

objetivo visa, em geral, a promover o interesse de seu autor, aduzindo que a atuação dos

Estados poderosos pode ser mais facilmente controlada por meio da intervenção coletiva, a

qual, contudo, somente deveria ocorrer quando houvesse violação em massa dos direitos

humanos, que provocassem grande impacto para a ordem internacional (SEITENFUS, 1997)

A par do sistema de segurança coletiva, desenvolvido no âmbito das Nações

Unidas e destinado a regular as relações entre Estados soberanos, surge uma questão candente

na ordem internacional e que passa a requerer igual tratamento: a necessidade de proteção dos

direitos humanos. Inicialmente, matéria de competência interna dos Estados, os direitos

humanos acabam adquirindo projeção internacional, notadamente após a Segunda Guerra

Mundial. Assim, o princípio da soberania, no início, restringiu a defesa dos direitos humanos

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às fronteiras dos Estados, não permitindo assim que tal questão fosse objeto de preocupação

da sociedade internacional como um todo. Quando os direitos humanos deixam de ser

considerados matéria de exclusiva responsabilidade dos Estados soberanos e passam a estar

inseridos entre as prerrogativas da sociedade internacional, a sua defesa passa a ocorrer

independentemente das limitações territoriais impostas pelos Estados (RODRIGUES, 2000).

As situações de desrespeito à dignidade da pessoa humana e a seus direitos

fundamentais em diversas partes do globo acabaram assumindo as mais variadas formas,

desde a opressão e a brutalidade perpetradas pelos órgãos do Estado contra sua própria

população até o sofrimento infligido às vítimas de conflitos armados. Esse panorama sombrio,

que traduz antes de tudo um aviltamento das condições básicas de sobrevivência do ser

humano, propiciou uma discussão a respeito da necessidade de se estabelecer um sistema de

proteção e assistência humanitárias por meio de uma intervenção visando a esse desiderato.

Questão de relevo e que vem suscitar acesa polêmica é a que se relaciona com as situações

que podem ensejar uma intervenção humanitária, e em que limites a mesma deve ser exercida.

A constatação de que é admissível e possível uma intervenção com finalidade

humanitária remete, forçosamente, a considerações a respeito do caráter justo ou injusto desse

tipo de ação. Nesse sentido, há autores que sustentam que a intervenção humanitária foi

influenciada pela tradição da guerra justa, conceito desenvolvido por Santo Ambrósio, Santo

Agostinho, Santo Tomás de Aquino e Hugo Grotius. Santo Ambrósio expõe sua concepção

cristã de guerra justa, assim se expressando:

A Força que na guerra defende a Pátria contra os bárbaros, que protege os

débeis, que garante seus aliados contra o ataque dos bandidos, é plenamente

conforme a Justiça. Ou em Santo Agostinho, quando afirma: “algumas

vezes, seja como lei geral, seja por ordem temporária e particular, DEUS

ordena o homicídio. Ora, não é moralmente homicida quem deve à

autoridade o encargo e matar, pois não passa de instrumento, como a espada

com que fere.” Assim, para Agostinho, a guerra será justa se tem por

objetivo revidar uma ofensa, uma injúria praticada pelo adversário,

consequência do direito de punir inerente à autoridade. Santo Tomás de

Aquino apresenta os seguintes requisitos para que uma guerra seja

considerada justa: 1) deve ser declarada pela autoridade (auttoritas)

competente, isto é, o Príncipe, pois a este incumbe defender o Estado; 2) que

vise a defender uma causa justa, ou seja, revidar uma injustiça; 3) que o

beligerante proceda com reta intenção (intentio reta). (ARAÚJO, 2000, p.

326-327)

Hugo Grotius, jurista, historiador e diplomata holandês, considerado por muitos

autores como o precursor do Direito Internacional e inspirador dos Acordos de Westfalia de

1648, que puseram fim à Guerra dos Trinta Anos, também desenvolveu seus argumentos em

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torno do caráter justo ou injusto da guerra. Sua doutrina sobre a guerra justa é fruto de um

trabalho consciente e meticuloso que resulta numa teoria mais bem elaborada que a de seus

predecessores, pois impõe como condição da guerra a necessidade de, além de ser justa, dever

ser legal. Uma guerra deflagrada sem uma base de estrita justiça é necessariamente uma

guerra injusta e, portanto, inaceitável. Justa, em suma, é a guerra que se combate para impor o

direito. A injúria sofrida é a causa justa da guerra. Esclarece Hermes Marcelo Huck que: “na

teoria de Grócio, a guerra surge de uma violação da lei, mas igualmente como forma de dar-

lhe eficácia, o interesse da sociedade internacional cerra fileiras ao lado do Estado que

desencadeia a guerra justa. O interesse da comunidade internacional ordena-se no sentido de

aguardar a vitória de quem age em nome do direito” (HUCK, 1996, p. 58).

Para Simone Rodrigues:

A teoria da guerra justa emergiu com a finalidade de estabelecer critérios

para definir quando o uso da força era justificável, usando para isso

considerações de caráter moral e religioso. A intervenção para defender os

indivíduos expostos a situações degradantes, que põem em risco sua vida e

sobrevivência, está intimamente ligada à idéia de se empreender uma batalha

em nome de valores humanitários superiores. (RODRIGUES, 2000, p. 94).

Cabe, neste passo, a advertência de Joseph Boyle a respeito da possível aplicação

da teoria da guerra justa às situações de intervenção humanitária. Segundo o autor:

In short, traditional just war theory adds to the discussion of

humanitarian intervention a sober general assessment that emphasizes

the difficulty of justifying intervention, and a robust sense of the

limitations of what intervening states can rightly seek to do

protect the human rights of outsiders even when morality and

widespread revulsion at oppression call for intervention. (BOYLE,

2006, p. 54)13

A realidade internacional nos oferece inúmeros episódios em que se verificaram

intervenções humanitárias das mais variadas ordens e levadas a efeito sob as mais diversas

motivações, o que revela, desde logo, a impossibilidade de se estabelecer um critério objetivo

de avaliação de sua justeza e legitimidade. E não poderia ser diferente, pois, neste campo,

conquanto se tenha assistido nas últimas décadas a uma evolução do processo normativo, a

caracterização de situações concretas que justifiquem as intervenções humanitárias ainda

continua a ser, em grande parte, ditada por conveniências e interesses dos Estados poderosos.

13

“E de se adotar uma avaliação racional que ressalte a dificuldade de se justificar a intervenção, no sentido de

se ter presente as limitações de quais Estados podem justamente buscar proteger os direitos humanos de

estranhos, mesmo quando a moralidade e a reação desmedida à opressão clamem pela intervenção”. (Tradução

nossa).

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Durante o período da Guerra Fria, eventuais conflitos que viessem a ocorrer no

interior dos Estados e que pudessem levar a um choque direto entre as duas superpotências,

eram controlados tempestivamente por meio da prática da intervenção dos EUA e da então

URSS em suas respectivas áreas de influência. Com a desintegração do império soviético e a

eclosão de reivindicações autonomistas de minorias étnicas e religiosas dentro e fora daquele

antigo bloco, os conflitos internos passaram a representar uma ameaça mais séria à ordem

internacional do que os externos. Luiz Augusto Souto Maior pondera que:

Na ausência de uma ameaça exógena evidente, tornava-se necessária uma

doutrina que legitimasse – sobretudo, no caso das democracias, aos olhos da

opinião interna das próprias potências dominantes – a ingerência em tais

conflitos, sempre que considerada politicamente desejável. A defesa, real ou

alegada, dos direitos das minorias [...] surgiu, então, como uma justificativa

oportuna. (SOUTO MAIOR, 2000, p. 2)

Mais adiante, observa o mesmo autor que não se pode falar em um “dever” de

ingerência, acrescentando: “Existe, sim, por parte das grandes potências, particularmente, dos

Estados Unidos, um “direito” de ingerência auto-outorgado, que é exercido ou não, conforme

os seus próprios interesses e os ditames do realismo político” (SOUTO MAIOR, 2000, p. 2).

Michael Walzer é favorável à intervenção unilateral em determinado Estado,

quando neste são cometidos crimes que “chocam a consciência moral da humanidade”,

citando o exemplo da intervenção da Índia no Paquistão Oriental em 1971. Com a

independência da Índia britânica, surgiram dois Estados: Índia e Paquistão. Com a eclosão de

uma revolução na parte oriental do Paquistão, tropas paquistanesas são enviadas para sufocar

a rebelião e a Índia intervém no conflito ao lado dos bengalis (paquistaneses orientais).

Ocorre, assim, a secessão do Paquistão Oriental, que se torna um Estado independente, com o

nome de Bangladesh. Michael Walzer toma por base esse episódio para sustentar seu ponto de

vista segundo o qual a intervenção levada a efeito pela Índia no Paquistão Oriental, não

obstante se tratasse de uma intervenção unilateral, caracterizou a hipótese de uma intervenção

verdadeiramente humanitária, não por causa da especificidade ou pureza dos motivos do

governo indiano, mas porque seus diversos motivos convergiam para uma única linha de ação,

que coincidia com a linha de ação solicitada pelos rebeldes bengalis. Nas palavras de Walzer:

Essa convergência explica por que os indianos entraram no país e dali saíram

com tanta rapidez, derrotando o exército paquistanês, mas não ocupando seu

lugar, e sem impor nenhum controle político sobre o emergente Estado de

Bangladesh [...]. A intervenção humanitária é justificada quando é uma

reação (com razoáveis expectativas de sucesso) a atos que ‘abalam a

consciência moral da humanidade’. Em casos semelhantes, não é à

consciência política de líderes que se recorre [...]. Recorre-se às convicções

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106

morais de homens e mulheres comuns, adquirida ao longo de suas atividades

de rotina. E, considerando-se que seja possível elaborar uma argumentação

convincente nos termos dessas convicções, creio que não há nenhuma razão

moral para adotar a postura de passividade que poderia ser denominada de

‘esperando a ONU’ (esperando o Estado universal, esperando o Messias...).

(WALZER, 2003, p. 178-183)

Em outro estudo, Walzer considera a reconstrução do Estado uma forma de ação

humanitária, ressalvando, no entanto, que quando da intervenção soviética na Polônia em

1919, que visava a levar o comunismo a esse país, bem como no caso da intervenção dos

EUA no Iraque em 2003, que objetivava instaurar nesse país a democracia, essas situações

significaram antes uma tentativa de mudança de regime e não de reconstrução desses

Estados. Acrescenta o autor que tanto o caso da intervenção soviética como o caso da

intervenção americana constituíram projetos ideológicos, não humanitários, pois, o objetivo

primordial do humanitarismo é socorrer para, depois, reparar. É o que se depreende do texto

transcrito a seguir:

So state building can be a form of humanitarian work. […]. Regime

change, however, is something different. When the Red Army tried to

bring communism to Poland in 1919 and when the U. S. Army tried

to bring democracy to Iraq in 2003 (…), these were ideological, not

humanitarian, projects. They aimed at repair but not at relief, whereas

humanitarianism aims at repair only after, and in order to sustain,

relief. (WALZER, 2011, p. 69-80)14

Sara Guerreiro faz menção à existência de dois tipos de intervenção humanitária

no pós-Guerra Fria: as intervenções humanitárias autorizadas e as intervenções humanitárias

não-autorizadas. Aquelas são intervenções que decorrem de autorização ou mandato da ONU,

enquanto estas são levadas a cabo por um país ou grupo de países, ou por uma organização

sem autorização da ONU e sem o consentimento das autoridades do país em causa, cujo

exemplo paradigmático é o Kosovo (GUERREIRO, 2000).

Na esteira dos acontecimentos que levaram à desintegração da federação

iugoslava, mister se faz tecer breves considerações acerca do conflito de Kosovo, o qual põe

em evidência o debate sobre a legitimidade das intervenções humanitárias empreendidas,

unilateralmente, por grupos de Estados integrados em organizações regionais.

14

Assim, a construção do estado pode ser uma forma de trabalho humanitário. […]. Mudança de regime, no

entanto, é algo diferente. Quando o Exército Vermelho tentou trazer o comunismo para a Polônia em 1919 e

quando o Exército dos EUA tentou levar a democracia ao Iraque em 2003 [...], esses eram projetos ideológicos,

não humanitários. Eles visam a reparação, mas não o alívio, enquanto o humanitarismo visa a reparação, para

somente depois, sustentar o alívio. (Tradução nossa).

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107

O conflito envolvendo a província de Kosovo tem, como antecedentes próximos,

a libertação da Iugoslávia pelo líder comunista de origem croata, Josip Broz Tito, após a

invasão daquele Estado pela Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial. O Marechal Tito

empreende, então, a reorganização do país. Em 1945, a federação iugoslava passa a se

constituir de seis Estados e duas províncias autônomas, Kosovo e Voivodina. Em 1995, é

concluído o Acordo de Dayton, pondo fim à guerra civil na Bósnia-Herzegovina. Por esse

Acordo, os Estados europeus e os Estados Unidos passam, então, a reconhecer a nova

República da Iugoslávia compondo as fronteiras da Sérvia e do Montenegro, permanecendo a

província de Kosovo integrada à Sérvia. (LOHBAUER, 1999). Iniciam-se os conflitos entre o

Exército de Libertação de Kosovo (ELK) e forças do exército sérvio, no ano de 1998,

decorrendo daí a escalada da violência contra os albaneses de Kosovo, comandada pelo

presidente sérvio Slobodan Milosevic. Com o malogro do Acordo de Rambouillet, que tinha

como objetivo estabelecer a paz entre os kosovares albaneses e o governo sérvio, tem lugar a

intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em território iugoslavo

(LOHBAUER, 1999).

Não obstante a polêmica gerada pela ação militar da OTAN na Iugoslávia, o que

se fez sentir pelas dissensões entre os países quanto à legitimidade dessa Organização, tanto

no que respeita à condução das negociações de paz como no que tange à ação armada

propriamente dita, não há negar, como bem observa Ana Maria Stuart, que “a opinião pública,

em geral, parece entender que é necessário agir para impedir o avanço da política de ‘limpeza

étnica’ do governo Milosevic [...]. A opinião pública se divide, porém, em torno dos meios

utilizados para tal fim [...]. Reabre-se o debate sobre o papel da OTAN, aliança ‘defensiva’

que deverá redefinir seus objetivos em tempos de pós-guerra fria” (STUART, 1999, p. 13).

Na opinião de Jacky Mamou, ex-presidente da ONG Médecins du Monde:

Nunca antes da intervenção aérea da Organização do Tratado do Atlântico

Norte (OTAN) na República Federal da Iugoslávia (RFI) o grau de confusão

entre guerra e humanitarismo tinha ficado tão evidente [...]. Nenhuma

proteção foi garantida aos civis do Kosovo, lá onde as tropas de Belgrado e

as milícias obrigavam pela força e pelas piores brutalidades centenas de

milhares deles a fugir. A atividade ‘humanitária’ das tropas da Otan nos

países fronteiriços mais uma vez criou a ilusão de uma ação”. (MAMOU,

2012, p. 24-26)

Sob a alegação de refrear a escalada de ações de limpeza étnica promovidas pelo

governo da Sérvia contra os kosovares albaneses, a OTAN classificou a sua ação como

intervenção humanitária, não obstante sua conduta, em muitos momentos, significaram uma

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108

violação das normas de Direito Internacional Humanitário, o que veio a ser confirmado pelo

relatório do Human Rights Watch, nos seguintes termos:

Minimizing harm to civilians was central to governmental and public

consent for NATO's bombing campaign in the Federal Republic of

Yugoslavia-an air war officially justified as humanitarian intervention […].

Human Rights Watch concludes that as few as 489 and as many as 528

Yugoslav civilians were killed in the ninety separate incidents in Operation

Allied Force.15

Ainda levando-se em consideração as intervenções militares não-autorizadas, em

geral, e o episódio da intervenção da OTAN no Kosovo, em particular, pondera Sara

Guerreiro:

Negar a possibilidade de intervenções deste tipo é, digamos, a tese clássica,

defendida por todos os que vêm na intervenção no Kosovo um facto ilícito e

gerador de responsabilidade internacional. Para sustentar esta posição basta

invocar a ausência de previsão no direito positivo internacional da

competência das alianças militares, das organizações regionais e até dos

Estados para assumirem a missão de proteger os direitos do homem nas

situações de crise humanitária, [...]. (GUERREIRO, 2000, p. 904)

Convém ressaltar que a Organização das Nações Unidas (ONU), não obstante seja

alvo de reiteradas críticas quanto a sua atuação por vezes ambígua em certos acontecimentos

internacionais de monta, tem oferecido valiosa contribuição no que tange à estruturação de

um sistema de promoção de assistência humanitária, por meio de seus dois órgãos principais:

a Assembleia-Geral e o Conselho de Segurança. A Assembleia-Geral, considerada um grande

“fórum” internacional, é composta de todos os membros da ONU. O Conselho de Segurança é

o órgão político-militar da ONU, responsável pela definição de situações que possam

constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais. Tanto a Assembleia-Geral como o

Conselho de Segurança deliberam por meio de resoluções, as quais, no caso da primeira, são

consideradas apenas “recomendações”, e no caso do segundo, são dotadas de força coercitiva.

A intervenção humanitária, expressão utilizada pela doutrina anglo-americana, e

denominada “ingerência humanitária” pela doutrina francesa, estabelece a necessidade de se

promover assistência humanitária em situações emergenciais, causadas por conflitos armados,

catástrofes naturais ou promovidas pelo próprio Estado ou governo para diminuir o

15

Minimizar os danos aos civis era essencial para o consentimento público e dos governos para a campanha de

bombardeios da OTAN na República Federal da Iugoslávia – uma campanha aérea oficialmente justificada como

intervenção humanitária [...]. O “Human Rights Watch” concluiu baseado nas evidências disponíveis que entre

489 e 528 civis iugoslavos foram mortos como resultado da ação da Operação da Força Aliada. (Tradução

nossa). HUMAN RIGHTS WATCH. Civilians deaths in the NATO air campaign.

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sofrimento causado à população civil. Essas situações-limite, representadas pela total privação

por parte da população civil de determinado Estado, de recursos básicos de sobrevivência,

inspiraram a França a apresentar à Assembleia-Geral das Nações Unidas, na sessão de 1988, o

projeto de resolução sobre assistência humanitária que deu origem à expressão “direito de

ingerência”. Esse projeto foi posteriormente transformado na Resolução 43/131, aprovada por

consenso pela Assembleia-Geral. Visto por outro ângulo, não o dos titulares individualizados

desse direito fundamental, mas o das entidades prestadoras de auxílio tratava-se também do

direito de as organizações humanitárias não governamentais terem acesso às vítimas de

qualquer desastre ou conflito, independentemente de sua posição perante o governo do Estado

respectivo, para a prestação de assistência a sua população (ALVES, 2005).

A expressão “intervenção humanitária” pode ser examinada, de igual modo, sob o

enfoque da sanção, vale dizer, da possibilidade do emprego da força por parte da comunidade

internacional com o propósito de coibir as atrocidades perpetradas pelo governo de um Estado

ou por grupos armados contra a população civil, em situações de conflito interno. Trata-se da

intervenção internacional para a defesa dos direitos humanos fundamentais dessa população.

Alberto do Amaral Júnior, reportando-se a Mario Bettati, observa que a doutrina francesa

costuma distinguir a intervenção por humanidade, que tem por escopo subtrair ao domínio de

um governo ou de uma facção os seres humanos ameaçados de morte em um país estrangeiro,

da intervenção humanitária, que visa a fornecer abrigo, vestuário, assistência médica e

sanitária às populações locais, sem que haja qualquer ato de interposição entre as populações

e os responsáveis pela sua situação aflitiva (BETTATI apud AMARAL JÚNIOR, 2012).

É de se ter presente que o escopo do presente trabalho é examinar em que medida

uma situação de flagrante violação da dignidade da pessoa humana pode ensejar a intervenção

da instituição internacional, entendida esta como a expressão da comunidade internacional

organizada, em substituição à ação interventiva levada a efeito unilateralmente pelos Estados,

esta sim, configurando um ilícito internacional. Portanto, tendo-se em vista o aspecto da

sanção como corolário da violação desses direitos no âmbito de determinado Estado, o tema

objeto deste trabalho coaduna-se com o sentido de “intervenção por humanidade”, proposto

pela doutrina francesa, consoante já se expôs. Cumpre observar, ainda, que a intervenção por

humanidade, tal como concebida pela doutrina francesa, surgiu a partir das reflexões

suscitadas pelo conflito entre drusos e cristãos maronitas, ocorrido na Síria, que se encontrava

sob o controle do Império Otomano, na segunda metade do século XIX. A conferência

diplomática realizada em Paris, em 1860, da qual participaram França, Grã-Bretanha, Prússia,

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110

Rússia, Áustria e Turquia, decidiu intervir na região, mediante o envio de tropas à Síria. A

força militar francesa logrou êxito quanto à proteção aos cristãos, apesar de não ter

conseguido punir os verdadeiros culpados. O segundo Protocolo, firmado na conferência

diplomática de 03 de agosto de 1860, concluiu que a atuação das potências estrangeiras no

referido episódio deveria ser desinteressada, não visando à busca de vantagens territoriais e

econômicas na região.

O conflito na Síria, acima citado, dá a exata dimensão da controvérsia que envolve

as decisões a respeito da intervenção humanitária. Diante da pluralidade de situações em que

estão presentes claras violações dos direitos humanos, qual deve ser o critério mais adequado

para se aferir a legalidade e a legitimidade da intervenção humanitária. Adverte Celso de

Albuquerque Mello que “o problema da intervenção é que ela é uma prática política que pode

assumir as mais diferentes formas e, em alguns casos, chega a receber o apoio da opinião

pública mundial, quando, por exemplo, é realizada para evitar massacres ou derrubar um

governo ditatorial” (MELLO, 1998, p. 367). E prossegue o autor, comentando a respeito da

intervenção humanitária: “os maiores defensores desta prática como legal são os

internacionalistas americanos. Repetimos que os juristas das potências com pretensões

imperiais vão sempre defender a prática da intervenção, porque tais potências serão sempre as

autoras e não as vítimas da intervenção” (MELLO, 1998, p. 368).

É de se considerar, ainda, que a ordem bipolar que prevaleceu no período da

Guerra Fria transformou os direitos humanos em arma ideológica na disputa entre o bloco

ocidental, liderado pelos EUA, e o bloco oriental, dominado pela União das Repúblicas

Socialistas Soviéticas (URSS). Assim, os direitos humanos estiveram, em muitos casos, a

serviço dos interesses econômicos e estratégicos dessas duas potências, as quais, dentro de um

critério seletivo diante dos inúmeros casos de violações de direitos humanos pelo mundo,

alternavam atitudes de mobilização de esforços para conter as perseguições de minorias

étnicas e religiosas e os massacres contra populações inteiras com comportamentos de

indiferença e de inação diante de outros acontecimentos dessa natureza. As ações militares

dos EUA em Granada (1983) e no Panamá (1989), sob a justificativa de defesa dos direitos

humanos, contrastando com a passividade exibida pela aludida potência quanto ao conflito

árabe-israelense, são exemplos ilustrativos da disparidade de tratamento às situações de

desrespeito aos direitos humanos durante o período da Guerra Fria.

Analisando a diversidade de significado que comporta a expressão “intervenção

humanitária” e, partindo da premissa de que a Carta das Nações Unidas permite o uso da

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111

força, no que concerne à intervenção da ONU, em certas circunstâncias bem definidas,

observa Ralph Zacklin, Assistente do Secretário-Geral das Nações Unidas, que a questão a ser

considerada é:

In other words, the question is whether, in the absence of a specific

authorization of the Security Council, it may be legitimate for a state or

group of states to intervene in the territory of a third state, through the

threat or use of force, to halt massive and systematic violations of human

rights within that state. Humanitarian intervention, in this sense, does not

have the same meaning as other forms of intervention with which it is

sometimes confused, such as the protection of foreign nationals (e. g.

Grenada, Panama) or humanitarian assistance offered through international

non-governmental organizations (NGOs).” (ZACKLIN, 2001, p. 923-940)16

A assimetria entre os Estados na ordem internacional, expressa na concentração

de maior parcela de poder em alguns Estados, permitiu a estes definir quais as situações

existentes no mundo que, de acordo com sua conveniência e segundo seus interesses

estratégicos e econômicos, poderiam levá-los a promover intervenções, sob o pretexto da

salvaguarda dos direitos humanos. Cumpre notar que será no âmbito da ONU que surgirão as

primeiras tentativas no sentido de se estabelecer uma moldura legal e legítima para a

intervenção humanitária. Assim, quando da eclosão da Guerra do Golfo, em 1991, trazendo

em seu bojo a crise humanitária que se desencadeou com a severa repressão aos curdos

imposta por Saddam Hussein, foi aprovada pela ONU a Resolução nº 688 do Conselho de

Segurança das Nações Unidas 17

, destinada a proteger o povo curdo, com o estabelecimento

de corredores de assistência humanitária e organização das zonas de proteção aérea com o

propósito de conter a ação das forças militares iraquianas. Em 1992, com a irrupção da Guerra

dos Bálcans, que culminou com a desintegração da antiga Iugoslávia, novas resoluções da

ONU foram aprovadas para permitir o acesso de organizações internacionais humanitárias

para acudir as vítimas do conflito e, no que diz respeito, especificamente, à situação da

Bósnia-Herzegovina, destaca-se a determinação da ONU para que as cidades de Sarajevo,

Tuzla, Zepa e Srebrenica fossem consideradas “zonas de segurança.” Em Ruanda, em 1994,

também houve ação patrocinada pela ONU, por meio da aprovação da Resolução nº 929, do

16

“Se, na ausência de uma autorização específica do Conselho de Segurança das Nações Unidas, pode ser

considerada legítima a intervenção de um Estado ou grupo de Estados no território de terceiro Estado, por meio

da ameaça ou do uso da força, fazer cessar as violentas e sistemáticas violações dos direitos humanos dentro

desse Estado. A intervenção humanitária, nesse sentido, não tem o mesmo significado que possuem outras

formas de intervenção com as quais às vezes aquela se confunde, tais como a proteção de nacionais estrangeiros

(e. g., Granada, Panamá) ou a assistência humanitária prestada pelas Organizações Internacionais Não-

Governamentais (ONGs)”. (Tradução nossa). 17

Disponível em: <www.un.org/es/cmun/docs/ ? symbol = S/RES/688%20 (1991)>. Acesso em: 10 jan.

2018.

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112

Conselho de Segurança das Nações Unidas18

, quando um milhão de pessoas foram mortas, em

decorrência do enfrentamento entre as etnias Tutsi e Hutu.

Para alguns autores, essas questões intrincadas relacionadas à intervenção

humanitária em seu sentido mais amplo mostram, não raro, como pano de fundo, o debate

permanente no campo dos direitos humanos entre relativismo cultural e universalismo. Nesse

sentido, parece oportuno aludir-se às considerações de Federico Arcos Ramirez, quando este

se refere a uma “formulação minimalista dos direitos humanos” e, acompanhando Michael

Walzer, sustenta:

En este sentido, se ha tratado de reconciliar la diversidad

cultural y la universalidad de los derechos humanos con una

formulación minimalista de éstos, pero que, al mismo tiempo,

estabelezca unos principios mínimos comunes a todas las

culturas independientemente de sus particularidades sociales, políticas

y culturales [...] el valor moral del Estado descansa sobre la

protección que éste ofrece a la comunidad política y, por lo

tanto, cuando el Estado falla en este propósito se hace legítima o se

justifica la injerencia de otros Estados con el fin de restablecer

dicha protección. (...) Walzer reconoce la existencia de un tipo de

valores mínimos comunes a toda cultura, dentro de los cuales ubica

el principio de no intervención, principio que puede ser excepcionado

en aquellos casos en donde se violen derechos fundamentales y

comunes a todos los hombres [...] como la libertad y la vida.

(ARCOS RAMIREZ, 2002, p. 38-62)19

Destarte, embora se admita, por um lado, que o tema da intervenção humanitária

e da licitude ou legitimidade de seu exercício ainda estejam cercados de grande controvérsia,

de outra parte, é de se considerar que persistem situações claras e inequívocas de desrespeito

aos direitos fundamentais do homem por toda parte do globo, que se expressam nas ações

violentas perpetradas pelos governos de determinados Estados, bem como por grupos

extremistas religiosos ou étnicos, contra sua própria população. Tais atrocidades repugnam à

consciência do homem médio, gerando uma sensação de indignação em toda a comunidade

internacional.

18

Disponível em: <www.un.org/es/cmun/docs/ ? symbol = S/RES/929%20 (1994)>. Acesso em: 10 jan.

2018. 19

“Nesse sentido, se buscou reconciliar a diversidade cultural e a universalidade dos direitos humanos com uma

formulação minimalista destes, mas que ao mesmo tempo estabeleça princípios mínimos comuns a todas as

culturas, independente de suas particularidades sociais, políticas e culturais. (...). O valor moral do Estado

repousa na proteção que este oferece à comunidade política, de sorte que quando o Estado falha neste propósito,

faz-se legítima ou se justifica a ingerência de outros Estados com o fim de restabelecer essa proteção. Ainda

reportando-se a Walzer, Arcos Ramirez explica que há valores mínimos comuns a toda cultura, entre os quais o

princípio da não-intervenção, o qual, no entanto, pode ser excepcionado naqueles casos de violação dos direitos

fundamentais e comuns a todos os homens, [...], como a liberdade e a vida. (Tradução nossa).

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113

De todo modo, mantém-se a expectativa de que as intervenções militares levadas a

efeito pelos Estados poderosos, embora justificadas com propósitos humanitários, mas que,

não raro, encobrem interesses de outra ordem, deem lugar à formulação de uma normativa de

caráter geral e representativa da vontade predominante da comunidade internacional. Nesse

particular, a ONU parece desempenhar um papel proeminente, conforme se verá no item que

segue.

4.3 A Responsabilidade de Proteger: uma possível tentativa de se equacionar o problema

da intervenção por humanidade

O estudo da intervenção humanitária, consoante já se expôs, ressente-se de uma

considerável imprecisão terminológica, que se expressa na frequente confusão entre

expressões que guardam entre si, ao mesmo tempo, similitudes e diferenças. Contudo, a

despeito dessa imprecisão, buscou-se, no item precedente, traçar alguns elementos essenciais

que caracterizam as intervenções empreendidas com o propósito de coibir situações de

violação da dignidade da pessoa humana verificadas no território de um Estado. Partindo-se

dessa premissa e coerente com o objetivo do presente trabalho, passa-se a adotar a expressão

intervenção humanitária, mais largamente difundida na doutrina, no sentido de “intervenção

por humanidade”, a qual, segundo a doutrina francesa antes citada, tem por escopo subtrair do

domínio de um governo ou de uma facção os seres humanos ameaçados de morte em um país

estrangeiro.

O cenário internacional exibe, nos tempos hodiernos, uma tensão entre dois temas

cruciais das relações internacionais – a soberania e os direitos humanos. Essa realidade

tronou-se mais clara a partir das crises humanitárias ocorridas na década de 1990, em que se

assistiu a uma série de conflitos nos territórios dos Estados que expuseram os seres humanos

às mais degradantes e aviltantes condições de sobrevivência. Tais acontecimentos trazem à

discussão a necessidade imperiosa de se buscar instrumentos de proteção com o objetivo de

restringir a soberania do Estado, a qual vai gradativamente evoluindo de um direito, de acordo

com o conceito clássico, para uma responsabilidade para com o bem-estar de seus cidadãos.

Esse conflito entre soberania e direitos humanos é evidenciado na prática de

intervenções humanitárias, quando uma norma central das relações interestatais, qual seja, a

limitação do uso da força, é questionada à luz da necessidade da proteção dos direitos

humanos, trazendo em seu bojo outro debate fundamental – a legalidade e a legitimidade

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dessas ações interventivas. Nesse sentido, cabe trazer a arguta observação de Thomas Weiss

e Cindy Collins:

Therefore, humanitarian intervention by military forces, unlike efforts by

peacekeepers, places human rights above the approval of the state.

International efforts in Haiti, Somalia, the former Yugoslavia, Rwanda,

Kosovo, Sierra Leone, East Timor, and northern Iraq in some respects

penetrate the sanctity of sovereignty to rescue what in political theory is he

source of sovereign legitimacy – the people. (WEISS; COLLINS, 2000, p.

33)20

Nesse sentido, oportuna a ponderação de Liliana Jubilut, quando se refere à

posição proeminente dos seres humanos em relação à soberania estatal, trazendo à discussão a

noção de segurança humana que, a seu ver, deve ser acrescida à ideia de segurança

internacional no sentido de segurança estatal. Nas palavras da autora: “O conceito de

segurança humana também enfatiza a necessidade de proteger seres humanos e os coloca em

posição axiológica hierarquicamente superior à soberania estatal, dado que essa é vista como

servindo aos indivíduos e não vice-versa” (JUBILUT, 2010, p. 153).

Esclarece Mônica de Carvalho que “a definição de segurança humana foi

elaborada, em 2003, pela Comissão de Segurança Humana (CSH), criada em 2001, [...], em

documento intitulado ‘La securité humaine maintenant’” (ONU, 2009, p. 60). Segundo esse

documento, por segurança humana entende-se:

Proteger o núcleo vital de toda a vida humana, de maneira a beneficiar o

exercício das liberdades e facilitar o empoderamento humano. A segurança

humana significa a proteção das liberdades fundamentais, que são

essenciais à vida. Significa também proteger o indivíduo contra as ameaças

graves e generalizadas [...]. A noção de segurança humana inovava, pois, ao

deslocar a questão da segurança internacional para as pessoas – termo

amplamente utilizado por todos os documentos – e, por isso, qualificada de

humana, mas também por, em nome dela, considerar possível ultrapassar,

inclusive, as fronteiras soberanas dos Estados nacionais”. (CARVALHO,

2012, p. 271)

As relações internacionais vêm passando por um processo de redefinição de

conceitos no final do século XX e início do século XXI. Episódios como a intervenção da

OTAN no Kosovo e os atentados de 11 de setembro puseram em relevo a questão crucial da

intervenção humanitária em torno da qual se digladiam duas posições doutrinárias: de um

20 “Portanto, a intervenção humanitária empreendida por forças militares, diferentemente dos esforços dos

mantenedores da paz, situa os direitos humanos acima da aprovação do Estado. Os esforços internacionais no

Haiti, na Somália, na ex-Iugoslávia, em Ruanda, em Kosovo, em Serra Leoa, no Timor Leste e no norte do

Iraque em alguns aspectos ultrapassam a santidade da soberania para salvar aquilo que em teoria política é a

fonte da legitimidade soberana – o povo”. (Tradução nossa).

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lado, os defensores da defesa da soberania do Estado, definindo a prática da intervenção

humanitária como uma forma contemporânea de colonialismo; de outro lado, aqueles que

sustentam um maior ativismo das organizações internacionais na defesa dos direitos humanos,

notadamente em casos de genocídio e de crise humanitária grave, não obstante ainda

manifestem sua posição de forma comedida em face da percepção generalizada de um certo

arrefecimento do multilateralismo neste início de século, expresso em intervenções militares

das potências ocidentais que parecem revelar, antes, uma conduta unilateral na solução dos

conflitos intraestatais.

Era uma necessidade imperiosa redefinir o discurso intervencionista em face das

novas nuances dos conflitos internos, a fim de se buscar, com maior precisão, critérios

objetivos de legalidade e de legitimidade para as intervenções que, de alguma forma,

encerrassem propósitos humanitários. Nesse sentido, digno de nota o apelo do Secretário-

Geral das Nações Unidas à Assembleia-Geral, em 1999 e em 2000, ao considerar um

rematado contrassenso admitir-se, de um lado, que as intervenções humanitárias sejam

tomadas como um assalto à soberania dos Estados e, de outro, que haja certa complacência

com as brutais e sistemáticas violações de direitos humanos que afetam a comunidade humana

como um todo, citando os exemplos de Ruanda e Srebrenica21

. Instados a se manifestar sobre

essa demanda do Secretário-Geral, metade dos Estados da Assembleia-Geral da ONU

mobilizou-se, tendo sido o governo do Canadá o mais eficiente em estabelecer uma comissão

para estudar o assunto: a International Commission on Intervention and State Sovereignty22

.

A referida Comissão terminou seu relatório em agosto de 2001 e o apresentou em outubro de

2001, propondo uma alteração da doutrina de intervenção humanitária para a doutrina da

“responsabilidade de proteger”, sugerindo que em se adotando tal mudança, a comunidade

internacional eliminaria os dilemas envolvendo as intervenções de caráter humanitário

(JUBILUT, 2012, p.161).

Observa, ainda, Liliana Jubilut que a responsabilidade de proteger proposta pela

ICISS objetiva estabelecer diretrizes para o uso da força para proteger vidas humanas e

direitos humanos por meio, principalmente, da promoção de duas alterações na retórica das

intervenções humanitárias. A primeira e mais importante alteração é a do conceito de

soberania como um direito absoluto para soberania como responsabilidade. Essa mudança

21

INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. The

responsibility to protect. Report of the International Commission on Intervention and State Sovereignty. Canadá:

International Development Research Centre, p., V II, dez. 2001, 22

ICISS; em português, Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania de Estado (CIISE).

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116

baseia-se no conceito de soberania do indivíduo em vez de apenas soberania estatal e coloca

seu foco nos limites do exercício da soberania. A segunda alteração se relaciona à dicotomia

entre direitos e deveres. Por algum tempo a defesa de intervenções humanitárias era feita com

base em um “direito de ingerência”, a partir da concepção de uma ideia de soberania do

indivíduo. Usava-se, então, a retórica da proteção dos direitos humanos para se flexibilizar o

conceito de soberania estatal, de sorte que Estados passariam a intervir em outros Estados

para acudir crises humanitárias, e assim o fazendo, difundiam a imagem de que estavam no

exercício de um direito (JUBILUT, 2012).

O móvel que exerceu considerável influência na elaboração do Relatório da

referida Comissão foi o de se conceber um novo conceito de soberania, cujo foco passa do

controle para a responsabilidade. Cabe, neste passo, uma alusão às ponderações de Ana Maria

Bierrenbach:

O Estado passa a ser considerado responsável pela vida, pela segurança e

pelo bem-estar dos cidadãos. As autoridades nacionais teriam a

responsabilidade primária de proteger os direitos fundamentais da população

que se encontra em seu território. Aos três elementos básicos de um Estado

soberano, desde Vestfália – autoridade, território e população –, seria

acrescido um quarto: o respeito aos direitos fundamentais. O exercício dessa

responsabilidade passa a ser, justamente, o fundamento maior da soberania.

(BIERRENBACH, 2011, p. 129-130)

Esclarece Gisele Ricobom que o Relatório da aludida Comissão:

Estabelece necessária precisão terminológica, definindo que existem várias

ações que podem ser caracterizadas como intervenção, tendo o estudo se

limitado a ‘acción emprendida contra un Estado o sus dirigentes, sin su

consentimiento, por motivos humanitarios o de protección. La forma más

controvertida de esta clase de intervención es la militar y gran parte

de nuestro informe hay de centrarse necesariamente en ella’23

. Por sua

vez, o termo ‘intervenção humanitária’ pode ser interpretado

pejorativamente, o que é condenado principalmente pelas organizações de

assistência humanitária, razão pela qual se optou pelo termo

‘responsabilidade de proteger’, que diante da relativização da soberania,

passa a ser um princípio reitor das Nações Unidas. (RICOBOM, 2010, p.

223)

O Relatório da ICISS declara que:

The emerging principle in question is that intervention for human protection

purposes, including military intervention in extreme cases, is supportable

when major harm to civilians is occurring or imminently apprehended, and

the state in question is unable orunwilling to end the harm, or is itself the

23

“Ação empreendida contra um Estado ou seus dirigentes, sem seu consentimento, por motivos

humanitários ou de proteção. A forma mais controvertida desta classe de intervenção é a militar e grande

parte de nosso relatório deve centrar-se necessariamente nela”. (Tradução nossa)

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117

perpetrator24

. […].The traditional language of the sovereignty–intervention

debate – in terms of “the right of humanitarian intervention” or the “right to

intervene” – is unhelpful in at least three key respects. First, it necessarily

focuses attention on the claims, rights and prerogatives of the potentially

intervening states much more so than on the urgent needs of the potential

beneficiaries of the action. Secondly, by focusing narrowly on the act of

intervention, the traditional language does not adequately take into account

the need for either prior reventive effort or subsequent follow-up assistance,

both of which have been too often neglected in practice. And thirdly,

although this point should not be overstated, the familiar language does

effectively operate to trump sovereignty with intervention at the outset of the

debate: it loads the dice in favour of intervention before the argument has

even begun, tending to label and delegitimize dissent as anti-humanitarian.25

Na opinião de Gisele Ricobom, a intervenção, dentro da concepção que deflui da

Responsabilidade de Proteger, derroga a norma proibitiva do uso da força, visto que a

relativização da soberania e a supressão do princípio da não intervenção estão plenamente

justificadas pela emergência da proteção dos direitos humanos. Portanto, o dever de proteger

cabe essencialmente ao Estado, mas também constitui um dever subsidiário da comunidade

internacional em caso de omissão estatal, momento em que a comunidade internacional

deverá observar três responsabilidades específicas: 1) a responsabilidade de prevenir; 2) a

responsabilidade de reagir; 3) a responsabilidade de reconstruir (RICOBOM, 2010).

Tendo em vista que a análise pormenorizada das três responsabilidades revelar-se-

ia praticamente inexequível, dada a extensão dos itens constantes do Relatório da aludida

Comissão (p. 19-47), passa-se a adotar, no que concerne à matéria ora examinada, o estudo

realizado por três estudiosas dos temas da intervenção humanitária e da responsabilidade de

proteger, Ana Maria Bierrenbach, Liliana Jubilut e Gisele Ricobom, cujas análises primam

pela clareza e pela concisão.

24

Assim, o significado do princípio é o de que a intervenção com fins humanitários, incluída a intervenção

militar em casos extremos, somente seria admissível na hipótese de a população civil estar submetida a grande

sofrimento ou diante de um perigo iminente e o Estado não poder ou não querer pôr fim nessa situação, ou na

hipótese de o próprio Estado ser o responsável. (Tradução nossa). INTERNATIONAL COMMISSION ON

INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, p. 16. 25

O Relatório da ICISS declara que a alteração de um “direito de ingerência” para uma “responsabilidade de

proteger” traz três benefícios: Em primeiro lugar, o foco da ação estaria nos interesses dos beneficiários e não no

dos Estados realizando ou conduzindo a ação. Em segundo lugar, haveria uma ampliação nos tipos de ações

destinadas a solucionar as crises, não apenas as já existentes, mas também contemplando ações preventivas e

após conflitos, como relevantes para resolver situações humanitárias complexas. Em terceiro lugar, tal alteração

preveniria que a discussão sobre situações específicas se iniciasse com o argumento contrário a ações, se se

considerar que a regra geral da Carta da ONU é a não intervenção e a prática de intervenções, ainda que

mostrassem um caráter humanitário, poderia ser vista como anti-humanitária. (Tradução nossa). Ibid.

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118

Retornando às responsabilidades compreendidas na Responsabilidade de Proteger,

inicia-se pela análise da responsabilidade de prevenir, a qual diz respeito às causas dos

conflitos armados e a outras crises que colocam em risco as populações. A prevenção é

considerada a dimensão mais importante da responsabilidade de proteger e suas opções

devem ser esgotadas antes que se contemple a intervenção. O relatório aborda também as

causas dos conflitos armados, v. g., situações de pobreza, repressão política e distribuição

desigual de recursos. A prevenção, nesse sentido, deve compreender medidas de natureza

política, como a consolidação das instituições democráticas, a construção da confiança mútua

entre governo e sociedade, a liberdade de imprensa e a participação da sociedade civil

(BIERRENBACH, 2011).

A responsabilidade de reagir consiste no uso de medidas intervencionistas quando

houver uma imperiosa necessidade de proteção humana e quando as medidas preventivas não

foram suficientes para resolver o problema. Essa reação pode ocorrer pela comunidade

internacional em caso de omissão do Estado e só se adotará a ação militar se fracassados

outros tipos de sanções coercitivas, como econômicas (sanções financeiras, restrição das

atividades econômicas), políticas (ruptura das relações diplomáticas, suspensão e exclusão em

organizações, entre outros) e militares (embargos de armas). (RICOBOM, 2010).

A responsabilidade de reconstruir diz respeito à assistência necessária após a

intervenção, de modo a recuperar, reconstruir e reconciliar a sociedade atingida. Aqueles que

participam das forças de intervenção devem permanecer no terreno e contribuir para a

reconstrução, em esforço conjunto com a população local e com fundos e recursos fornecidos

pela comunidade internacional (BIERRENBACH, 2011). Assim, a comunidade internacional

deve buscar a consolidação da paz duradoura, tendo como base três aspectos essenciais: a

segurança, a justiça e o desenvolvimento econômico, podendo, dependendo do caso, contar

com uma administração sob a autoridade das Nações Unidas (RICOBOM, 2010).

A decisão de intervenção armada só poderá ocorrer em casos extremos e

excepcionais, e como resposta à existência e à iminência de um dano grave e irreparável. Para

o Relatório, devem ser observados seis critérios para que tenha lugar a intervenção armada:

1) justa causa; 2) autoridade competente; 3) intenção correta; 4) último recurso; 5) meios

proporcionais; 6) possibilidades razoáveis. (RICOBOM, 2010)

O critério basilar é a justa causa para a ação. Tal critério relaciona-se ao vínculo entre

direito e moral e a avaliação da guerra com base em seus motivos – a doutrina do jus ad

bellum (o direito de ir à guerra) – tentando limitar as possibilidades de recurso à força ao

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determinar a justiça dos motivos invocados para justificar tal uso. (JUBILUT, 2010). A ICISS

estabeleceu que justas causas para a intervenção na “responsabilidade de proteger” são:

Large scale loss of life, actual or apprehended, with genocidal intent

or not, which is the product either of deliberate state action, or state

neglect or inability to act, or a failed state situation; or large scale

“ethnic cleansing,” actual or apprehended, whether carried out by

killing, forced expulsion, acts of terror or rape.26

O Relatório, em seguida, explicita esses atos:

-Those actions defined by the framework of the 1948 Genocide Convention

that involve large scale threatened or actual loss of life;

- the threat or occurrence of large scale loss of life, whether the product of

genocidal intent or not, and whether or not involving state action;

- different manifestations of "ethnic cleansing," including the systematic

killing of members of a particular group in order to diminish or eliminate

their presence in a particular area; the systematic physical removal of

members of a particular group

from a particular geographical area; acts of terror designed to force people

to flee; and the systematic rape for political purposes of women of a

particular group (either as another form of terrorism, or as a means of

changing the ethnic

composition of that group);

- those crimes against humanity and violations of the laws of war, as defined

in the Geneva Conventions and Additional Protocols and elsewhere, which

involve large scale killing or ethnic cleansing;

- situations of state collapse and the resultant exposure of the population to

mass starvation and/or civil war; and

- over whelming natural or environmental catastrophes, where the state

concerned is either unwilling or unable to cope, or call for assistance, and

significant loss of life is occurring or threatened.27

Ana Maria Bierrenbach nota que parecem estar excluídas das hipóteses da causa

justa certas violações aos direitos humanos que não cumprem os requisitos estabelecidos no

26

“Grandes perdas de vidas humanas, reais ou previsíveis, com ou sem intenção genocida, que sejam

consequência da ação deliberada de um Estado, ou de sua negligência ou incapacidade de atuar, ou de uma

situação de Estado fracassado; ou uma “limpeza étnica” em larga escala, real ou previsível, se levada a cabo

mediante assassinato, expulsão forçada, atos de terror ou de estupro. (Tradução nossa). INTERNATIONAL

COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, p. 32. 27

“- os atos definidos no marco da Convenção sobre o Genocídio de 1948, que impliquem grandes perdas de

vidas humanas, reais ou iminentes;

- perdas de vidas humanas que sejam produto de uma ação genocida, e impliquem ou não a ação de um Estado;

- diferentes tipos de “limpeza étnica” como o assassinato sistemático dos membros de um grupo concreto com o

fim de reduzir ou eliminar sua presença em uma zona determinada; os atos de terror tendentes a forçar a evasão

de certas pessoas e a violação sistemática de mulheres de um grupo determinado com objetivos políticos;

- os crimes de lesa-humanidade e as leis de guerra, tal como definidos nas Convenções de Genebra e em seus

Protocolos Adicionais;

- o colapso de um Estado, que exponha a população à inanição em massa ou à guerra civil; e

- as catástrofes naturais ou ecológicas de grandes proporções, em relação às quais o Estado não queira ou não

seja capaz de enfrentar tampouco solicitar assistência, e que provoquem ou possam provocar importantes perdas

humanas”. (Tradução nossa). INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE

SOVEREIGNTY, p. 33.

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aludido Relatório, como por exemplo, casos sistemáticos de discriminação racial,

aprisionamento ou formas de repressão política, ou mesmo episódios de governos

democráticos destituídos por golpes militares (BIERRENBACH, 2011).

No que respeita à autoridade competente, estabelece o Relatório que as Nações

Unidas são: “the principal institution for building, consolidating and using the authority of

the international community”28

. O Relatório da ICISS parece sugerir um código de conduta

sobre a utilização do direito de veto, prerrogativa dos membros permanentes do Conselho de

Segurança, para casos de intervenção humanitária. Cabe lembrar, neste particular, que cinco

Estados detêm o poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas – Estados

Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China. Assim, nenhuma resolução emanada do

Conselho de Segurança será aprovada se contar com o veto de qualquer desses países. A

proposta, contida no Relatório da ICISS é que: “A permanent member, in matters where it’s

vital national interests were not claimed to be involved, would not use its veto to obstruct the

passage of what woul do ther wise be a majority resolution 29

”.

O Relatório da ICISS contempla, também, a hipótese de o Conselho de Segurança

abster-se de atuar, apresentando, então, duas possibilidades:

One possible alternative, for which we found significant support in a

number of our consultations, would be to seek support for military

action from the General Assembly meeting in an Emergency Special

Session under the established “Uniting for Peace” procedures. These

were developed in 1950 specifically to address the situation where the

Security Council, because of lack of unanimity of the permanent

members, fails to exercise its primary responsibility for the

maintenance of international peace and security.30

Vale lembrar que a Resolução nº 377 da Assembleia-Geral das Nações Unidas,

denominada “Uniting for Peace” (Unidos pela Paz), foi adotada em 1950 na Guerra da Coreia,

28

“A principal instituição encarregada de estabelecer, consolidar e utilizar a autoridade da comunidade

internacional”. (Tradução nossa). INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE

SOVEREIGNTY, p. 48. 29

“Os membros permanentes , quando seus interesses vitais não se vêm comprometidos por determinado assunto,

não usarão do direito de veto para obstruir a aprovação de uma resolução respaldada pela maioria”. (Tradução

nossa). INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, p. 51. 30

“A atuação extraordinária da Assembleia-Geral da ONU e a realização da intervenção por parte de

organizações regionais, conforme prevê o art. 51 da Carta das Nações Unidas. No primeiro caso, a Assembleia-

Geral passaria a adotar a ação militar durante um período extraordinário de sessões de emergência, de acordo

com os procedimentos estabelecidos na resolução “Unidos pela Paz”, que teve aplicação em 1950 para resolver

as situações em que o Conselho de Segurança não pôde exercer sua responsabilidade primordial de manter a paz

e a segurança internacionais devido em virtude da falta de unanimidade entre seus membros permanentes.

(Tradução nossa). INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY,

p. 53.

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com o objetivo de contornar a paralisia do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a quem

competiria tomar as medidas necessárias à solução do conflito.

Segundo o Relatório da ICISS:

A further possibility would be for collective intervention to be pursued by a

regional or sub-regional organization acting within its defining boundaries

[…]. It has long been acknowledged that neighbouring states acting within

the framework of regional or sub-regional organizations are often (but not

always) better placed to act than the UN, and Article 52 of the Charter has

been interpreted as giving them considerable flexibility in this respect […].

It is generally the case that countries within the region are more sensitive to

the issues and context behind the conflict headlines, more familiar with the

actors and personalities involved in the conflict, and have a greater stake in

overseeing a return to peace and prosperity31

.

Cabe, aqui, reproduzir o conteúdo do art. 52 da Carta das Nações Unidas

acima referido:

ARTIGO 52 - 1. Nada na presente Carta impede a existência de acordos ou

de entidades regionais, destinadas a tratar dos assuntos relativos à

manutenção da paz e da segurança internacionais que forem suscetíveis de

uma ação regional, desde que tais acordos ou entidades regionais e suas

atividades sejam compatíveis com os Propósitos e Princípios das Nações

Unidas. (RANGEL, 2010, p. 38)

O terceiro critério exigido pelo Relatório da ICISS é a intenção correta, pois: “The primary

purpose of the intervention must be to halt or avert human suffering. Any use of military force

that aims from the outset, for example, for the alteration of borders or the advancement of a

particular combatant group’s claim to self-determination cannot be justified. Overthrow of

regimes is not, as such, a legitimate objective32

.

O quarto critério mencionado pelo aludido Relatório é o último recurso:

Meaning that all non-military and diplomatic means for the prevention or

peaceful resolution of humanitarian crises must be put into practice [...].

This does not necessarily mean that each and every option has been

31

“Outra possibilidade seria a intervenção coletiva a ser realizada por uma organização regional ou sub-regional

atuando dentro de suas fronteiras definidoras [...]. Há muito se reconhece que os estados vizinhos que atuam no

âmbito das organizações regionais ou sub-regionais estão frequentemente (mas nem sempre) mais bem

posicionados para agir do que a ONU, e o Artigo 52 da Carta foi interpretado como dando-lhes considerável

flexibilidade neste contexto […]. Geralmente, os países da região são mais sensíveis às questões e ao contexto

por trás das manchetes dos conflitos, mais familiarizados com os atores e personalidades envolvidas no conflito,

e têm maior interesse em supervisionar o retorno à paz e à prosperidade. (Tradução nossa). INTERNATIONAL

COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, p. 53-54). 32

“O propósito fundamental da intervenção deve ser conter ou evitar o sofrimento humano. Assim, o uso da

força militar que em princípio tenha como objetivo modificar as fronteiras, promover as reivindicações de um

grupo beligerante, ou mesmo a derrubada de um regime, carecem de justificação e não constituem objetivos

legítimos para que tenha lugar uma intervenção coletiva”. (Tradução nossa). INTERNATIONAL

COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, p. 35-36.

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attempted and that it has failed. But it does mean that there must have been

reasonable grounds to believe that under all circumstances, if this or that

measure had been attempted, it would have had no effect33

.

Gisele Ricobom, reportando-se ao Relatório da ICISS esclarece que os meios

proporcionais, quinto critério, diz que as intervenções devem observar o direito humanitário,

tendo em conta sempre que a escala, duração e intensidade de uma intervenção militar devem

ter o mínimo nível necessário para atingir o objetivo humanitário proposto. Os meios têm de

guardar proporção com os fins e ajustar-se à magnitude da provocação inicial (RICOBOM,

2010).

As possibilidades razoáveis, sexto e último critério, significa que: “Military

intervention is not justified if actual protection cannot be achieved, or if the consequences of

embarking upon the intervention are likely to be worse than if there is no action at all 34

.

Analisando em que medida a responsabilidade de proteger poderia trazer

mudanças para as intervenções humanitárias, Liliana Jubilut pondera que a doutrina da

responsabilidade de proteger trouxe alguma contribuição do ponto de vista retórico, pois,

permitiu a mudança conceitual de um “direito de intervir” para uma “responsabilidade de

proteger”, admitindo-se a subordinação da soberania aos direitos humanos, considerando-se

que a maioria das crises internacionais nos últimos anos tem sido de conflitos internos e não

internacionais. Observa, no entanto, a autora que, conquanto se reconheça aspectos positivos

na aludida doutrina, essas alterações retóricas podem não ser a solução ideal que aparentam

ser à primeira vista, pois, apesar de o “direito de ingerência” não ter sido nunca consensual no

Direito e nas Relações Internacionais, uma “responsabilidade de proteger”, o que implica um

“dever de agir”, pode conseguir ainda menos apoio. Ressalta a autora que parece ser na

perspectiva ética que a responsabilidade de proteger traz a sua maior contribuição na tentativa

de solucionar a crise de legitimidade da não intervenção. Portanto, ainda que contenha falhas,

por um lado, ela tenta criar uma maneira principiológica de se analisar e avaliar a tomada de

33

“Significando que todos os meios não militares e diplomáticos para a prevenção ou resolução pacífica das

crises humanitárias devem ser postos em prática [...]. Isto não significa necessariamente que se tenham tentado

todas e cada uma das opções e que as mesmas tenham fracassado. Mas significa que deve ter havido motivos

razoáveis para se acreditar que, em todas as circunstâncias, se se tivesse tentado esta ou aquela medida, não teria

surtido efeito”. (Tradução nossa). INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE

SOVEREIGNTY, p. 36. 34

“A intervenção militar só poderá ocorrer se for capaz de alcançar o fim proposto, pois a intervenção militar não

se justifica se não se consegue a proteção ou se teme que a intervenção poderia ser mais prejudicial que a inação

absoluta”. (Tradução nossa). INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE

SOVEREIGNTY, p. 37.

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decisões relativas a intervenções e, por outro lado, tenta equilibrar os valores dos direitos

humanos e da soberania estatal, mas, deixando claro que, em caso de choque, aqueles devem

prevalecer (JUBILUT, 2010).

Gareth Evans e Mohamed Sahnoun observam que:

There is a developing consensus around the idea that sovereignty must be

qualified by the responsability to protect. But until there is general

acceptance of the pratical commitments this involves, more tragedies

such as Rwanda will be all too likely […]. As events during the 1990s too

often demonstrated, even a decision by the Security Council to authorize

international action in humanitarian cases has been no guarantee that any

action would be taken, or taken effectively. The most compelling task now is

to work to ensure that when the call for action goes out to the community of

states, it will be answered. (EVANS and SAHNOUN, 2002, p. 99-110)35

O conceito de responsabilidade de proteger foi formalmente reconhecido pela

comunidade internacional durante a Cúpula Mundial de 2005 e seu Documento Final,

segundo Ana Maria Bierrenbach, representou a retomada dos debates, após alguns anos de

esvaziamento das discussões. Acrescenta, ainda, a autora que “o conceito de responsabilidade

de proteger segue cercado de muita polêmica, embora já não seja possível afirmar que ele se

encontra submetido a uma clivagem Norte-Sul, o que se comprova [...] pelo número de países

em desenvolvimento entre os apoiadores das resoluções aprovadas pela Assembleia-Geral das

Nações Unidas” (BIERRENBACH, 2011, p. 160-161).

Mónica Ferro, Professora da Universidade Técnica de Lisboa, referindo-se aos

desafios a serem enfrentados até que se chegue à afirmação de uma doutrina da

responsabilidade de proteger, aduz que:

A maioria dos Estados está, não obstante os problemas a serem enfrentados,

a apoiar este esforço de fazer com que a responsabilidade de proteger faça

parte do normativo das relações internacionais. Falta mais debate, falta

envolver as sociedades civis, falta uma comunidade internacional que

assuma o lugar que lhe está reservado. Caso contrário a responsabilidade de

proteger não passará de uma expressão que encerra uma promessa de algo,

mas que nunca protege ninguém.36

35

“Há um consenso crescente em torno da ideia de que a soberania deve ser qualificada pela responsabilidade de

proteger. Mas até haver a aceitação geral dos compromissos práticos que esse ato encerra, outras tragédias como

as de Ruanda, provavelmente, virão a ocorrer [...]. Como os acontecimentos dos anos 1990 demonstraram,

mesmo quando uma decisão emanou do Conselho de Segurança autorizando uma ação internacional em casos

humanitários, não houve garantia de que qualquer ação seria tomada, ou efetivamente tomada. A tarefa mais

premente agora é trabalhar no sentido de assegurar que quando um chamado para a ação parte da comunidade de

Estados, esse chamado seja respondido”. (Tradução nossa). 36

Disponível em:

<http://database.jornaldefesa.pt/organizacoes_internacionais/onu/A%20Responsabilidade%20de%20Proteger%2

0contributos%20para%20um%20debate.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2018.

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Cabe destacar, nesta oportunidade, a leitura desenvolvida pela diplomacia

brasileira acerca da responsabilidade de proteger, quando da realização de “Debate

Conceitual”, na sede da ONU, em 2012. Nesse evento, o então Ministro das Relações

Exteriores do Brasil, Antônio de Aguiar Patriota, propôs a consideração da responsabilidade

de proteger sob uma nova perspectiva, cunhando, então, a expressão “responsabilidade ao

proteger”. Citam-se, a seguir, alguns excertos do pronunciamento do Ministro Patriota:

Como a Organização das Nações Unidas pode autorizar o uso da força, ela

tem a obrigação de conscientizar-nos dos perigos envolvidos em sua

utilização e de criar mecanismos que possam fornecer avaliação objetiva e

detalhada de tais perigos, bem como formas e meios de evitar danos aos

civis [...]. A iniciativa do Brasil deve ser vista como convite a um debate

coletivo sobre a forma de garantir, quando o uso da força for cogitado como

alternativa justificável e estiver devidamente autorizado pelo Conselho de

Segurança, que seu emprego seja responsável e legítimo. Por essa razão, faz-

se necessário assegurar a prestação de contas daqueles autorizados a fazer o

uso da força. 37

O tema da intervenção humanitária ainda está longe de uma solução definitiva e

ensejará, ainda por algum tempo, candente controvérsia. A responsabilidade de proteger surge

no cenário internacional como resultado do esforço envidado pela comunidade internacional,

por intermédio da ONU, no sentido de se traçar uma moldura legal e legítima para as

intervenções humanitárias. Contudo, não há negar que os desafios que se colocam para a

consecução desse desiderato são imensos e complexos, diante da impossibilidade de se definir

quais as situações concretas que, efetivamente, comportarão uma intervenção humanitária e

dentro de que limites esta poderá ser levada a efeito. Por outro lado, os Estados não podem

continuar a assistir impassíveis às crises humanitárias que se vêm alastrando pelo mundo.

Destarte, a doutrina da responsabilidade de proteger, não obstante os inúmeros obstáculos que

venha a enfrentar, parece constituir uma alternativa promissora no sentido de oferecer alguma

contribuição para aplacar o sofrimento de todos aqueles que, de algum modo, têm sua

dignidade aviltada.

37

Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/8653-pronunciamento-do-ministro-das-

relacoes-exteriores-antonio-de-aguiar-patriota-em-debate-sobre-responsabilidade-ao-proteger-na-onu-nova-york-

21-de-fevereiro-de-2012>. Acesso em: 05 jul. 2018

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CAPÍTULO 5 - A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

COMO JUSTIFICATIVA PARA UMA INTERVENÇÃO

INTERNACIONAL INSTITUCIONAL

5.1 Carta das Nações Unidas: o princípio da abstenção do uso da força pelos Estados e

as exceções a tal princípio

Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, surge a Organização das

Nações Unidas (ONU), cuja finalidade primordial era promover a paz e estabilidade

mundiais, afastando definitivamente o espectro da guerra. A Carta das Nações Unidas, tratado

constitutivo da Organização das Nações Unidas (ONU), em seu Preâmbulo, enfatiza o

compromisso e o propósito dos Estados ali reunidos nos seguintes termos:

NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS

a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes,

no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a

reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, da dignidade e no valor

do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim

como das nações grandes e pequenas, [...] E PARA TAIS FINS praticar a

tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as

nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir,

pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada

não será usada a não ser no interesse comum, [...]. (MAROTA, 2010, p. 27)

Releva notar, a partir da leitura do texto acima citado, que os Estados expressaram

sua preocupação com duas questões fundamentais: 1) a proteção dos direitos fundamentais do

homem e de sua dignidade; 2) a manutenção da paz e da segurança internacionais e a garantia

de que a força armada não será utilizada, exceto no interesse comum dos Estados. Consoante

se verá mais adiante, a Carta das Nações Unidas estabelece que os Estados devem resolver

suas controvérsias, preferentemente, por meios pacíficos, ressalvando, no entanto, que diante

de situações que representem risco à paz e à segurança internacionais, a própria Organização

das Nações Unidas poderá levar a efeito a ação armada para reprimir a conduta ilícita do

Estado.

A Carta das Nações Unidas consagra, no art. 2º, parágrafo 3º, o dever de os

Estados resolverem suas controvérsias por meios pacíficos e, no parágrafo 4º, o princípio da

abstenção do uso da força pelos Estados, in verbis:

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Art. 2º. ...................

3. Todos os membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por

meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a

justiça internacionais.

4. Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a

ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência

política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os

Propósitos das Nações Unidas. (MAROTA, 2010, p. 27)

Interpretando o art. 2º, parágrafo 4º supracitado, observa Santiago Benevada que o

mesmo proíbe a ameaça e o uso da força nas relações internas. Prossegue o internacionalista

chileno sustentando que tal dispositivo proíbe não apenas a guerra, mas, também, toda ameaça

ou uso da força armada, qualquer que seja sua finalidade: violar uma fronteira internacional,

realizar conquistas ou alterações territoriais, impor a solução de uma controvérsia, executar

represálias armadas etc. (BENEVADA, 1989).

No que tange à proibição do uso ou ameaça da força, nas relações internacionais,

poucos problemas talvez tenham sido tão amplamente debatidos e tanta controvérsia tenham

gerado quanto o do próprio sentido a ser atribuído ao termo “força”. Todavia, a persistência

dos argumentos suscitados pelos Estados, em desenvolvimento, os quais passaram a deter

maior parcela de poder nas decisões da ONU, enfatizando a necessidade de que o sentido

atribuído ao termo “força” fosse estendido a fim de contemplar novas situações que não a

mera força armada, contribuíram para a mudança de postura daquela Organização. De fato, a

sedimentação de novos conceitos políticos veio alterar a fisionomia das relações

internacionais, trazendo em seu bojo a necessidade de uma reformulação no sistema de

regulamentação do emprego da força.

Não obstante o art. 2º.,§ 4º, da Carta da ONU espelhar as aspirações da

comunidade internacional, tendo sido erigido à condição de autêntico princípio do Direito

Internacional Contemporâneo, não há negar que eventos de grande vulto como a luta pela

autodeterminação dos povos, cujos exemplos eloquentes se pode buscar nas guerras de

libertação contra regimes racistas e colonialistas, nas pressões econômicas exercidas pelas

Potências contra os Estados do Terceiro Mundo e na incessante luta em prol das liberdades e

dos direitos humanos fundamentais, vêm abrir exceções ao aludido princípio, ao lado

daquelas que este prevê.

Cumpre notar que a Carta das Nações Unidas estabelece duas exceções à

abstenção do uso da força nas relações internacionais. A primeira delas é a legítima defesa,

aplicável aos Estados, e prevista no art. 51 da Carta, in verbis:

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Art. 51. Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima

defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra

um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha

tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança

internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse

direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho

de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a

responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito,

em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao

restabelecimento da paz e da segurança internacionais. (MAROTTA, 2010,

p.37-38)

Em 1969, Portugal foi condenado pela ONU, por ter recorrido a ações militares

nos territórios de Senegal e de Zâmbia. Portugal alegava legítima defesa contra os ataques de

rebeldes atingindo territórios de suas províncias Angola e Guiné Bissau. Tais ataques,

segundo as alegações portuguesas, haviam se originado dos territórios dos Estados

posteriormente atacados por Portugal, que dariam guarida àqueles rebeldes. A ONU, por meio

de seu órgão militar, condenou os ataques portugueses, não reconhecendo a situação de

legítima defesa (HUCK, 1996, p. 194).

A segunda exceção ao princípio da abstenção do uso da força, previsto no art. 2º,

parágrafo 4º supracitado, é aplicável à própria ONU. No que diz respeito à admissibilidade

do emprego da força armada pela Organização das Nações Unidas (ONU), convém citar os

artigos 2º, parágrafo 7º, e Capítulo VII, artigos 39, 40, 41 e 42 da Carta da ONU:

Artigo 2º. – .................

7. Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a

intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna

de qualquer Estado ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a

uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não

prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capítulo VII.

CAPÍTULO VII – AÇÃO RELATIVA A AMEAÇAS À PAZ, RUPTURA

DA PAZ E ATOS DE AGRESSÃO

Artigo 39 – O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer

ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou

decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os artigos 41 e 42,

a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.

Artigo 40 – A fim de evitar que a situação se agrave, o Conselho de

Segurança poderá, antes de fazer as recomendações ou decidir a respeito das

medidas previstas no art. 39, convidar as partes interessadas a que aceitem as

medidas provisórias que lhe pareçam necessárias ou aconselháveis. Tais

medidas provisórias não prejudicarão os direitos ou pretensões, nem a

situação das partes interessadas. O Conselho de Segurança tomará devida

nota do não cumprimento dessas medidas.

Artigo 41 – O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem

envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar

efetivas suas decisões e poderá convidar os membros das Nações Unidas a

aplicarem tais medidas. Estas poderão incluir a interrupção completa ou

parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários,

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marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer

espécie, e o rompimento das relações diplomáticas.

Artigo 42 – No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas

previstas no artigo 41 seriam ou demonstraram ser inadequadas, poderá levar

a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar

necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.

Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações,

por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações

Unidas. (MAROTTA, 2010, p. 28, 36)

A Organização das Nações Unidas possui seis órgãos principais: a Assembleia

Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela, a

Corte Internacional de Justiça e o Secretariado. Considerando que adotaremos como objeto

de estudo deste trabalho as situações de desrespeito à dignidade humana verificada no interior

dos Estados, a ensejar a admissibilidade de intervenção da organização internacional

intergovernamental visando à proteção das populações submetidas a tal violência, voltaremos

nossa atenção, especificamente, para a atuação do Conselho de Segurança, sem nos

descurarmos, no entanto, das principais atribuições da Assembleia Geral no que se refere à

temática objeto do presente estudo, visto que esse órgão da ONU constitui um grande fórum

internacional e é composto de todos os membros das Nações Unidas, apresentando, inter alia,

as seguintes funções e atribuições fundamentais: 1) fazer recomendações sobre princípios

gerais de cooperação na manutenção da paz e da segurança internacionais (artigo 11 da

Carta); 2) favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por

parte dos povos, sem distinção de raça, língua ou religião (art. 13, parágrafo 1, “b”, da Carta)

(MATTOS, 2002, p. 307).

O Conselho de Segurança é o principal órgão político-militar da ONU e, em

consequência, o principal responsável pela manutenção da paz e da segurança internacionais.

É composto, atualmente, de quinze membros, dos quais cinco são permanentes (EUA, Reino

Unido, França, Rússia e China) e dez não permanentes. O quorum das decisões é de nove

favoráveis, entre os quinze existentes. No entanto, apenas os membros permanentes têm poder

de veto, o que significa que todas as resoluções do Conselho devem ser aprovadas por todos

os membros permanentes. Se um deles se opuser, a resolução não será adotada (VARELLA,

2012, p. 317).

Ainda, reportando-se ao Conselho de Segurança, pondera o referido autor que

durante a Guerra Fria, tratava-se principalmente de um foro de embates entre os Estados

alinhados com os Estados Unidos, de um lado, e a União Soviética, de outro. Qualquer

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ingerência da ONU em um Estado de um dos blocos era vetada pelos Estados Unidos ou pela

União Soviética. Com a dissolução do império soviético, as ações da ONU intensificaram-se e

constituíram uma de suas principais funções (VARELLA, 2012, p. 318).

Ronaldo Mota Sardenberg, considerando que o ideal de constituição de um

sistema de segurança coletiva, baseado na igualdade de Estados soberanos, que, inicialmente,

inspirara a criação da ONU, pondera que com o passar dos tempos tal sistema veio a ser

desvirtuado em razão da disparidade de poder entre os Estados-membros, assim se

expressando:

As Nações Unidas foram concebidas como a pedra de toque da

macroestrutura internacional. Na origem, sua Carta pôde ser interpretada –

tendo em vista os propósitos e princípios que consagra – como um pacto

‘horizontal’ entre os Estados igualmente soberanos (embora díspares em

poder). A Carta deveria ter papel verdadeiramente constitutivo da ordem

internacional, com base no princípio da responsabilidade coletiva pela paz

[...]. Em São Francisco, contudo, a entronização da faculdade do veto

reduziu essa concepção a certas realidades emblematizadas pela

preponderância dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Na

falta de acordo entre os grandes, paralisava-se o Conselho de Segurança, e,

ainda mais grave, a repetida utilização do veto atribuía, na prática, aos

membros permanentes uma imunidade político-jurídica em relação à

operação do mecanismo coletivo. (SARDENBERG, 1996, p. 9-18)

Por outro lado, James Mayall, examinado a atuação da ONU no período da

Guerra Fria, observa:

É certo que a Organização não entrou em colapso durante a Guerra Fria. Ao

contrário, presidiu à descolonização dos impérios europeus e proporcionou

aos Estados emergentes uma tribuna para reafirmar sua soberania em um

mundo ainda dominado pelas grandes potências [...]. Não obstante, não foi,

como previa a Carta, o Conselho de Segurança que preservou a ordem

internacional, mas o equilíbrio bipolar do terror entre as duas superpotências.

(MAYALL, 1995, p. 229-241)

Não obstante haja alguns autores que sustentem a inoperância e a inação da ONU

no tocante a questões de relevo surgidas no período da Guerra Fria voltadas para a segurança

internacional, é de se considerar, de outra parte, que o embate ideológico entre as duas

superpotências, que se expressou de modo eloquente em algumas oportunidades, v. g., as

crises do Congo, da Coreia e do Oriente Médio, encontrou na própria Organização uma

instância de contenção, o que contribuiu, certamente, para evitar uma nova conflagração

mundial. Nas palavras de José Carlos de Magalhães:

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Nestes 50 anos de existência, a ONU cresceu de importância, sem deixar de

sofrer de permanente crise. A influência ocidental, sob a liderança dos

Estados Unidos, jamais foi abalada no período da Guerra Fria, pela pressão

da União Soviética e dos países que gravitavam em sua órbita. Certos

eventos ilustram a preponderância americana, a começar pelo episódio da

guerra da Coréia e pela paralisação do Conselho de Segurança, pela URSS,

forçada a usar de seu poder de veto sucessivas vezes, para evitar ações

relativas a ameaças à paz, ruptura da paz ou atos de agressão, aprovação de

resoluções contrárias a seus interesses políticos. (MAGALHÃES, 1995, p.

149-159)

Cumpre salientar que o Capítulo VII da Carta da ONU (ações relativas a ameaças

à paz, ruptura da paz ou atos de agressão) antes referido, atravessou duas fases no tocante a

seu funcionamento. A primeira fase foi marcada pela paralisação quase total do Conselho de

Segurança, em decorrência do confronto Leste-Oeste e do panorama sombrio da Guerra Fria

que passava a envolver a ONU, materializando-se no “poder de veto” das Grandes Potências.

A inoperância do Conselho de Segurança, no período da Guerra Fria, gerou a

aprovação, pela Assembleia Geral, da Resolução “Unidos pela Paz” (Uniting for Peace

Resolution), que veio a ser aplicada na Guerra da Coreia, em 1950. Procurou-se, dessa forma,

valorizar a Assembleia Geral, segundo Marcos Azambuja, em face da incapacidade,

demonstrada pelo Conselho de Segurança. A atuação da Assembleia Geral, nessa hipótese,

correspondia às aspirações de se encontrar capacidade supletiva de agir em situações que

requeriam um tipo de ação de peacekeeping e outras que pertenciam, a rigor, ao âmbito

privilegiado do Capítulo VII da Carta, que trata de ações relativas a ameaças à paz, ruptura da

paz ou atos de agressão (AZAMBUJA, 1995).

O fim da Guerra Fria e a desagregação da União Soviética vieram alterar

sobremaneira o quadro político internacional. Do ponto de vista da segurança coletiva houve

dois momentos bem delineados no comportamento do Conselho de Segurança. Na primeira

fase, o ambiente da Guerra Fria, marcado pela bipolaridade, influenciava o funcionamento das

Nações Unidas. O segundo momento é marcado pela cooperação, porém, com o predomínio

dos Estados Unidos, os quais acabaram por interferir diretamente na tomada de Resoluções do

Conselho de Segurança, como no caso da guerra do Golfo em 1990.

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5.2 A controvérsia a respeito da intervenção da ONU nos conflitos que envolvem

situações de violação da dignidade da pessoa humana

Releva notar que nos primeiros quarenta anos da ONU o princípio da não-

intervenção constituiu sério obstáculo à aceitação da intervenção destinada a proteger os

direitos humanos, prevalecendo o entendimento segundo o qual o Estado detinha a soberania

absoluta, não se admitindo, portanto, a possibilidade de violação desse poder supremo do

Estado em nome da defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana. Cabe, neste passo,

mencionar dois episódios que vêm ilustrar esse entendimento: 1) a intervenção da Iugoslávia

na Guerra Civil da Grécia, em 1947; 2) a intervenção armada vietnamita no Camboja, em

1979. No primeiro caso, a Iugoslávia interveio na Guerra Civil da Grécia, invocando como

justificativa a proteção de minorias eslavo-macedônias, o que levou a Comissão de

Investigação da ONU a responsabilizar a Iugoslávia pela violação do princípio de não-

intervenção previsto na Carta da Organização. No segundo caso, uma intervenção armada

vietnamita no Camboja depôs o governo de PolPot, ditador sanguinário responsável pelo

extermínio em massa da população cambojana. Embora as situações de graves violações de

direitos humanos nesse país fossem sobejamente conhecidas pela sociedade internacional, a

Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio de resolução, condenou a intervenção levada

a efeito pelo Vietnã, por afronta aos princípios da Carta da ONU.

Convém ressaltar que, paralelamente, ao fortalecimento do princípio da não-

intervenção antes referido, desenvolviam-se, no seio das Nações Unidas, normas de proteção

dos direitos humanos, ganhando corpo a tese de que no domínio internacional estão incluídos

os direitos humanos e as liberdades fundamentais como um tema de interesse global. Nesse

sentido, de todo procedente, segue a ponderação de Simone Rodrigues: “Diferente do período

da Guerra Fria, a nova dimensão que tem surgido implica na aceitação da idéia de que o

sofrimento humano em larga escala representa uma ameaça à paz e à segurança internacional

e por isso direitos humanos têm se tornado uma questão de segurança coletiva”

(RODRIGUES, 2000, p. 110).

A grande questão que surge quando considerados alguns episódios em que se

verificou violação de direitos humanos em larga escala, sobretudo a partir da década de 1990,

é o enquadramento ou não dessas ocorrências no quadro amplo da segurança coletiva, nos

moldes da estrutura fixada pela ONU. Nesse sentido, há que se estabelecer uma conexão entre

direitos humanos e segurança internacional. Sendo assim, observa Simone Rodrigues que

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partindo-se do pressuposto de que a intervenção humanitária é uma prática legítima nas

relações internacionais através do processo de articulação entre direitos humanos e segurança

internacional dentro do sistema da ONU:

A aplicação do Capítulo VII da Carta, como exceção às proibições ao uso da

força e ao desrespeito à jurisdição interna dos Estados, com o intuito de

solucionar ou amenizar crises humanitárias dentro de determinado país,

também serve como elemento definidor da intervenção humanitária. Para

que seja considerada uma ação resultante da associação entre direitos

humanos e segurança internacional, a resolução que a autorizou deve fazer

menção ao Capítulo VII, declarando a situação humanitária uma ameaça à

paz internacional. (RODRIGUES, 2000, p. 98)

Em 1990, ocorre a invasão do território do Kuwait pelo Iraque, ensejando a

condenação e subsequente decretação, pelo Conselho de Segurança da ONU, do uso da força

para retomada dos territórios invadidos em nome do restabelecimento da paz e da segurança

internacionais. Cumpre notar que a referida decisão do Conselho de Segurança decorreu da

aprovação da Resolução 678, a qual mencionou expressamente que a ação daquele Conselho

estava respaldada no Capítulo VII da Carta da ONU, que define as ações de ameaças à paz,

ruptura da paz e atos de agressão (RODRIGUES, 2000, p.120).

Destarte, no quadro do delineamento de uma nova configuração da ordem

mundial, é de se considerar a mudança de postura da ONU, sobretudo no que tange às ações

do Conselho de Segurança após o término da Guerra Fria. Portanto, se no decurso do período

da Guerra Fria pôde se constatar a paralisação e o imobilismo do Conselho de Segurança,

inserindo-se este na bipolarização que marcou essa quadra, esse órgão das Nações Unidas tem

mostrado, no pós-Guerra Fria, sinais de uma ação mais efetiva em situações de conflito

envolvendo os direitos humanos no plano intraestatal, não obstante ainda haja, entre alguns

analistas, certo descrédito quanto à eficiência das ações levadas a efeito pela ONU nessa

matéria. Três episódios evidenciam essa associação, pelo Conselho de Segurança, da violação

dos direitos humanos à problemática da segurança internacional: a questão da etnia curda, no

norte do Iraque, a guerra civil na Somália e o genocídio em Ruanda. No que concerne à

população curda do Iraque, foi aprovada pelo Conselho de Segurança a Resolução 688, de 5

de abril de 1991, determinando que o governo iraquiano deveria cessar com a opressão de seu

povo e permitir às agências de ajuda acesso livre dentro de suas fronteiras. Essa operação,

denominada “Provide Comfort”, teve como objetivo mobilizar tropas dos EUA, da França e

da Grã-Bretanha, com o apoio de outros países, com o objetivo de criar condições para a

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realização do transporte de alimentos e medicamentos, bem como para a instalação de centros

de ajuda humanitária à população curda do Iraque.

Cumpre notar que a adoção da aludida Resolução ocorre em um momento de

afirmação das potências ocidentais, quando, na Guerra do Golfo, aquelas impuseram a derrota

ao Iraque, difundindo-se, a partir daí, as teses do “direito à intervenção por motivos

humanitários”, apregoada pelo então presidente George W. Bush, e do “direito de ingerência”,

sustentada pela França. Contudo, essa crença no sentido de que uma possível propagação das

teorias de intervenção por motivo de humanidade não se fez sentir de modo absoluto no seio

da comunidade internacional, o que ficou bem caracterizado quando do processo de votação

da Resolução 688, do Conselho de Segurança acima citada. Cabe aqui, a propósito, uma

referência à observação de Olga Pellicer, embaixadora do México na ONU:

De entrada, la votación sobre la resolución 688 fue la más baja obtenida

en la serie de resoluciones sobre Irak iniciada en agosto de 1990. Cuba,

Yemen y Zimbabue votaron en contra; China e India se abstuvieron. Por lo

demás, en diversos niveles comenzaron a surgir voces de repudio al

pretendido derecho de injerencia. (PELLICER, 1995, p. 482-502)38

Em outra oportunidade, desta vez na guerra civil da Somália, o Conselho de

Segurança interveio no conflito após intensa pressão da comunidade internacional aprovando

a Resolução 794, de 3 de dezembro de 1992, que estabeleceu a “Operação Restaurar a Paz”,

aprovada unanimemente pelos membros daquele Conselho, o qual aceitou uma oferta dos

EUA para liderar uma operação militar a fim de permitir a distribuição de ajuda humanitária.

Mark Hutchinson observa que:

Moreover, it ilustrates the increasing prominence and power of the Security

Council in the post-Cold War era. Traditionally, unable to reach consensus

on the use of force under the U. N. Charter, the United States, Russia, e

China were able to agree upon a humanitarian justification for the use of

force in Somalia, enabling the Security Council to act. (HUTCHINSON,

1993, p. 624-640) 39

Releva notar que a ação empreendida pelo Conselho de Segurança na guerra civil

da Somália foi questionada, sob vários aspectos, por muitos analistas internacionais, dentre

38

De início, a votação sobre a resolução 688 foi a mais baixa obtida em uma série de resoluções sobre o Iraque

iniciada em agosto de 1990. Cuba, Iêmen e Zimbábue votaram contra; China e Índia se abstiveram. Além disso,

em diversos níveis começaram a surgir vozes de repúdio ao pretendido direito de ingerência (Tradução nossa). 39

Aquela Resolução ilustra as crescentes proeminência e poder do Conselho de Segurança na era pós Guerra

Fria. Tradicionalmente incapaz de obter consenso sobre o uso da força de acordo com a Carta das Nações

Unidas, os Estados Unidos, Rússia e China foram capazes de acordar a respeito de uma justificação humanitária

para o uso da força na Somália, habilitando o Conselho de Segurança a agir. (Tradução nossa).

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eles cabe mencionar as ponderações de Olga Pellicer, a qual considerou, no que diz respeito à

Somália, que:

La resolución 794, según la cual el Consejo de Seguridad actuó con

base en el capítulo VII de la Carta de la ONU, levantó un gran

desconcierto por tres motivos. El primero fue que, si bien La situación

en Somalia era desesperada, no podía hablarse propiamente de una

amenaza a la paz y La seguridad internacionales. El segundo radica en que

el mandato otorgado a lo que se llamó ‘operación para restaurar La

esperanza’ fue muy ambiguo, tanto por lo que tocaba a La respuesta

frente a los clanes armados que operaban en Somalia como a las medidas

que se podían tomar para restablecer el orden público. Finalmente, al igual

que en caso de Irak, la tarea de utilizar a fuerza recayó en Estados Unidos,

lo que creó incertidumbres sobre la naturaleza ‘colectiva’ de la acción

que se había autorizado. (PELLICER, 1995, p. 486)40

Mais uma intervenção do Conselho de Segurança que suscitou acesa controvérsia

foi a que se deu em Ruanda com o objetivo de conter a grave crise humanitária decorrente do

conflito entre as etnias hutu e tutsi, cabendo aqui, a propósito, algumas breves considerações

sobre a evolução dos acontecimentos que culminaram com o recrudescimento da violência

entre as referidas etnias. Ruanda foi protetorado da Alemanha a partir de 1889, porém, com a

derrota daquele país na Primeira Guerra Mundial, novo protetorado foi concedido pela ONU,

desta vez para a Bélgica. Esta conferiu a um grupo da etnia tutsi os poderes político,

econômico e militar na colônia e, na década de 1950, com o propósito de estabelecer uma

política de “dividir para governar”, a Bélgica favoreceu a formação de um grupo hutu forte, o

qual se rebelou contra o governo tutsi em 1959. Em 1961, um plebiscito supervisionado pela

ONU deu autonomia ao país, que se tornou independente em 1962. Quando ocorreu a

descolonização, a elite política hutu substituiu os belgas em violenta competição política que

gerou centenas de mortes de tutsis levando à dispersão de milhares de refugiados pelos países

vizinhos (RODRIGUES, 2000).

No início da década de 1990, a Frente Patriótica Ruandesa (FPR), que se formou a

partir dos refugiados tutsi em Uganda, invadiu o país e foi contida com a ajuda da França, mas

deu início a uma guerra civil sem precedentes. Em 1993, os lados em oposição na guerra civil,

40

“A adoção da resolução 794, do Conselho de Segurança das Nações Unidas com base no Capítulo VII da

Carta da ONU, acabou gerando certo desacordo entre os países por três razões: A primeira, em virtude de, a

despeito da gravidade dos acontecimentos verificados naquele país, parecia não se estar diante de uma situação

clara de ameaça à paz e à segurança internacionais; a segunda razão, o mandato outorgado para aquele fim, que

se denominou ‘operação para restaurar a esperança’ resultou ambíguo, tanto no que se referia à resposta à

agressão dos clãs armados, como no que respeitava às medidas destinadas a restabelecer a ordem pública; a

terceira razão, o fato de se ter deixado a cargo o uso da força pelos Estados Unidos, como no caso do Iraque, o

que gerou incertezas quanto à natureza ‘coletiva’ da ação que se havia autorizado”. (Tradução nossa).

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assinam a Declaração de Arusha, sob a mediação de França, Bélgica, Estados Unidos e

Alemanha, pondo fim ao conflito que se iniciara em 1990, instaurando um governo de

transição com a participação da FPR acima citada e uma operação de manutenção de paz da

ONU, a UNAMIR (United Nations Assistance Mission for Rwanda) foi enviada a Ruanda em

outubro de 1993 para monitorar o frágil cessar-fogo e acompanhar o processo de

desmilitarização. Um acidente de avião matou os presidentes de Ruanda e de Burundi, quando

retornavam das negociações sobre o processo de implementação do aludido acordo,

desencadeando uma torrente de violência e mortes com conotações políticas e étnicas

(RODRIGUES, 2000). Em 17 de maio de 1994, o Conselho de Segurança declarou que a

situação constituía uma ameaça à paz e à segurança internacionais e impôs um embargo de

armamentos, aprovando a Resolução 918, autorizando um aumento de forças em Ruanda – a

UNAMIR II, cuja tarefa era proteger os civis em risco e prover segurança e suporte para

operações de ajuda humanitária (RODRIGUES, 2000). Em agosto de 1994, a FPR assume

definitivamente o poder, realizando um governo de união nacional. É instituído, sob os

auspícios da ONU, o Tribunal Internacional para Ruanda, com sede na Tanzânia, para julgar

os crimes de guerra então praticados durante o conflito.

O conflito na Bósnia-Herzegovina insere-se no quadro amplo da desintegração da

antiga Iugoslávia. Após a dissolução do Império Austro-Húngaro, organiza-se a federação

iugoslava, que passa a constituir-se de seis repúblicas – Sérvia, Croácia, Bósnia-Herzegovina,

Eslovênia, Montenegro e Macedônia – e duas províncias autônomas, Voivodina e Kosovo.

Paralelamente ao processo de desintegração da Iugoslávia e consequente formação de países

independentes, a Bósnia-Herzegovina requereu seu reconhecimento como Estado, solicitando,

em vão, à ONU o envio de uma força de paz para prevenir conflitos durante o processo de

emancipação. Milícias sérvias iniciaram ataques à comunidade bósnia, praticando autêntica

limpeza étnica. Têm lugar os Acordos de Dayton (1995), patrocinados pelos EUA e, por esse

acordo, a Bósnia-Herzegovina era dividida em duas áreas semiautônomas, 51% do território

controlado pela federação muçulmano-croata e 49% pelos sérvios. O Conselho de Segurança

adotou cerca de cinquenta resoluções a respeito do conflito, considerando a questão

humanitária uma ameaça à paz e à segurança internacionais e autorizando o uso da força sob a

autoridade do capítulo VII da Carta da ONU. Entretanto, segundo Simone Rodrigues, “apesar

de todos os problemas e inadequações que envolveram a operação na antiga Iugoslávia, é

inegável a articulação entre direitos humanos e segurança internacional, que aparece mais

uma vez nas decisões do Conselho de Segurança” (RODRIGUES, 2000, p.150-163).

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Evidentemente, a nobreza de intenções que inspira as ações de cunho humanitário

empreendidas pela ONU nem sempre é reconhecida por alguns analistas internacionais, os

quais, não raro, veem essa instituição como representante dos interesses das potências

ocidentais. É o caso de Philippe Leymarie e Anne-Cécile Robert, que expressam a seguinte

opinião:

Pois há um ‘jogo por baixo dos panos’: nenhuma operação, mesmo

paramentada com o azul da ONU e aparentemente destinada a salvar vidas

inocentes, é quimicamente pura. As segundas intenções estratégicas,

econômicas e geopolíticas permanecem. A Organização das Nações Unidas

não existiria, sem dúvida, sem os grandes Estados que a financiam, que

controlam o Conselho de Segurança e que não se esquecem nunca de velar

por seus próprios interesses, mesmo quando parecem estar a serviço de uma

‘comunidade internacional’ que eles manobram segundo sua vontade.

(LEYMARIE; ROBERT, 2012, p. 6-7)

Não há negar que, muitas vezes, sob o manto da ajuda humanitária, os governos

de Estados poderosos empreendem intervenções militares em outros Estados na busca de

satisfazer interesses geopolíticos e econômicos. Nesse sentido, compete à ONU, como

instância representativa da comunidade de Estados, exercer fiscalização e controle efetivos da

maneira como são conduzidas essas intervenções, para que seus fins sejam atingidos a tempo

e modo, afastando-se, assim, eventuais desvirtuamentos em sua prática. É o que observam os

estudiosos da Organização Não-Governamental “Médicos Sem Fronteiras”, cuja sigla original

em francês é Médecins Sans Frontières, adotando os autores apenas a “MSF”:

Dessa forma, a MSF vem acompanhando como os governos têm atribuído

diferentes papéis à ajuda humanitária, desde álibi para a inação política até

transformá-la em um instrumento político propriamente dito. Outra questão

percebida pela MSF diz respeito à fachada humanitária adotada pelos

exércitos para conquistar hearts and minds de populações civis em meio a

conflitos, em busca de informação de inteligência ou da chamada force

protection, ou seja, proteção para suas tropas. A MSF também segue de

perto como a ONU tem respondido, nas últimas décadas, aos desígnios de

seus membros mais potentes, recorrendo ao capítulo VII da Carta da ONU,

para a aprovação de ‘intervenções humanitárias’ armadas, baseadas em um

suposto direito de ingerência, e à imposição de mudanças no sistema de

ajuda humanitária internacional, vista por alguns governos como

desorganizada, incompetente e incapaz de responder adequadamente às

‘emergências complexas’, como a que assolou a região dos Grandes Lagos,

na África, e os Bálcans, na Europa, em meados da década de 1990.

(STOBBAERTS; ROCHA; DERDERIAN; SINGH; MELODY, 2012, p.

121-138)

Retornando ao episódio do Kosovo, que marcou a intervenção da aliança militar

ocidental – a OTAN – na Iugoslávia, sob a justificativa de fazer cessar a “limpeza étnica” dos

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137

kosovares albaneses, há um fato que ganhou destaque entre alguns analistas internacionais

referindo-se à declaração do então Primeiro-Ministro do Reino Unido, Tony Blair, o qual,

colocando-se na condição de leal defensor da OTAN, sustentou que “a significant reason for

this was the simplicity of the moral dilemma as he presented it: this was, he said, a

case where the world had to do something or do nothing”41

(CHESTERMAN, 2002, p.

220).

Nesse sentido, pertinente a observação de Gabriel Galice, Presidente do Institut

International de Recherches pour la Paix (Genebra):

Sob vários aspectos, afastamo-nos das ambições da Carta da ONU. O

recurso à força, justificado por uma ética instrumentalizada, provoca a

multiplicação e a imbricação das causas em conflito [...] Terminada a Guerra

Fria, a OTAN transformou sua função de defesa regional em garantia

coletiva, autoinstituída, do mundo inteiro. Avançando cada vez mais para o

Leste, ela não cessou de açambarcar as prerrogativas da ONU. (GALICE,

I2015, p. 32-33)

Os fatos acima referidos mostram, com toda clareza, que o tema da

admissibilidade da intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU) em conflitos

intraestatais visando a preservar a dignidade da pessoa humana ainda suscita grande

controvérsia. É de se ressaltar, desde logo, que o ceticismo de alguns analistas internacionais

quanto a uma atuação equidistante e imparcial da ONU nos conflitos envolvendo a dignidade

e os direitos do homem residem, em grande parte, no fato de o Conselho de Segurança, órgão

responsável pela manutenção da paz e da segurança internacionais, ser dotado de uma

estrutura que não reflete uma distribuição equitativa do poder entre os Estados que o

compõem. Com efeito, o poder de veto de que dispõem as grandes potências, afastando cada

vez mais a possibilidade de tomada de decisões democráticas no âmbito do Conselho de

Segurança, acaba contribuindo para a crença de que a solução para as graves questões

internacionais ainda se mostre inviável.

Contudo, a despeito de a atuação da ONU, em determinados momentos e

situações, revelar certa ambiguidade e reticência, forçoso é convir que, em outras

circunstâncias, atuou aquela instituição decisivamente em sua missão precípua de promover a

paz e a estabilidade internacionais. O conceito de segurança coletiva, desenvolvido a partir de

1945 e fundado na prevenção de guerras entre Estados soberanos, dá lugar a um novo

41

“A ação interventiva daquela Organização equiparava-se a uma ação ditada por interesses do mundo todo,

apresentando a questão do conflito no Kosovo como um dilema moral diante do qual o mundo deveria fazer

alguma coisa ou não fazer nada”.(Tradução nossa). (CHESTERMAN, 2002, p. 220)

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138

conceito – o de segurança humana – que se traduz na necessidade de se promover a defesa e a

proteção da dignidade da pessoa humana, em toda sua plenitude. Esta passa a ser a

responsabilidade primordial conjunta do Estado e da comunidade internacional e a ONU deve

estar preparada para enfrentar esse imenso desafio.

5.3 A proteção da dignidade da pessoa humana como justificativa para uma intervenção

internacional institucional

Embora ainda ocorram casos de intervenção armada unilateral, por parte de

Estados ou grupos de Estados, em territórios de outros Estados, sob o argumento da prestação

de ajuda humanitária, fato é que essa prática vem tendendo a se tornar menos frequente em

virtude de uma organização cada vez mais legal e institucional da sociedade internacional.

Essa realidade se torna mais presente na proliferação de tratados voltados à defesa e proteção

da dignidade e dos direitos da pessoa humana, bem como na atuação das Organizações

Internacionais Intergovernamentais, cujo exemplo mais ilustrativo é a Organização das

Nações Unidas (ONU). Há um entendimento mais ou menos generalizado no sentido de que a

busca pela concretização de uma ordem internacional que leve ao ideal de uma governança

global é o resultado da ação conjunta dos Estados e das Organizações Internacionais deles

decorrentes, quando, em realidade, há outros atores que contribuem, significativamente, para

a obtenção dessa finalidade.

Tomando-se por base o Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, lê-se o seguinte

nos excertos adiante transcritos: “NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, [...]

RESOLVEMOS CONJUGAR NOSSOS ESFORÇOS PARA A CONSECUÇÃO DESSES

OBJETIVOS [...]” (RANGEL, 2010, p. 27). Comentando essas frases que constam do

Preâmbulo da Carta da ONU, Vicente Marotta Rangel observa que “embora ‘povos’ não

sejam admitidos como partes de tratado internacional, quiseram os redatores da Carta

assinalar ser ela resultante da vontade não apenas de governos senão também dos povos que

se supõe devam os governos representar” (RANGEL, 2010, p. 27).

A concepção de que a sociedade internacional tende a se organizar em bases

institucionais, remete à busca do significado e alcance do termo “instituição” e, para tanto, há

que se recorrer à influência que exercem os estudos da Sociologia no campo do Direito. As

normas e padrões de conduta, desde que sedimentados, podem dar origem a instituições, as

quais são definidas por Paulo Dourado de Gusmão da seguinte forma:

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139

As instituições são modelos de ações sociais básicas, estratificados

historicamente, destinados a satisfazer necessidades vitais do homem e a

desempenhar funções sociais essenciais, perpetuados pela lei, pelo costume e

pela educação. Quando vitais e socialmente básicas as necessidades

atendidas pelas instituições, o direito delas se ocupa. Assim, a Constituição

dá forma jurídica às instituições políticas fundamentais, como o Estado, o

governo, o Judiciário etc. [...]; a família, o casamento etc. são disciplinados

pelo direito civil, enquanto o direito internacional dá forma jurídica às

instituições internacionais, como a ONU, a Corte Internacional de Justiça,

[...]. (GUSMÃO, 1996, p. 40-41)

Prossegue Paulo Dourado de Gusmão, citando a Escola do Sociologismo Jurídico,

corrente do pensamento jurídico que, em função do fato social, explica o direito. Define o

direito como fenômeno social, independente do Estado, não caracterizando o direito como

norma ou lei, mas como fato social. Desvincula o direito do Estado, definindo-o como

fenômeno social, provocado por fatores sociais. (GUSMÃO, 1996).

Maurice Hauriou (1856-19290), jurista-sociólogo francês e principal representante

da Escola do Sociologismo Jurídico, concebeu, em 1925, “A Teoria da Instituição e das

Fundações”42

. Adota-se, neste trabalho, a versão em italiano, citando-se, a seguir, alguns

excertos da aludida obra:

Una istituzione è una idea di opera o di intrapresa, che si

realizza e dura giuridicamente in un ambiente sociale [...]. Vi

sono due tipi d’istituzioni, quelle che si personificano e quelle che

non si personificano. Nelle prime, che formano la categoria delle

istituzioni-persone o corpi costituiti (Stato, associazioni, sindicati,

ecc.) il potere organizzato e le manifestazioni comunitarie tra i

membri del gruppo s’interiorizzano nel quadro dell’idea dell’opera

[...]. Nelle istituzioni della seconda categoria, che possono chiamarsi

istituzione-cose, il potere organizzato e le manifestazioni comunitarie

dei membri del gruppo non sono più interiorizzati nel quadro dell’idea

dell’opera: esistono nel ambiente sociale, ma restano esterni all’idea.

La regola giuridica stabilita socialmente è una istituzione di questo

secondo tipo: è una istituzione perché come idea si propaga e vive

nell’ambiente sociale, ma non genera una corporazione che le sia

propria. (HAURIOU, 1967, p. 12-13)43

42

Título original em francês: La Théorie de L’Institution et de Fondations. 43

“Uma instituição é uma ideia de obra ou de empresa, que se realiza e dura juridicamente em uma ambiente

social [...]. Há dois tipos de instituições: aquelas que se personificam e aquelas que não se personificam. Nas

primeiras, que formam a categoria das instituições-pessoas ou corpos constituídos (Estado, associações,

sindicatos, etc.), o poder organizado e as manifestações comunitárias entre os membros do grupo inserem-se no

quadro da ideia de obra [...]. Nas instituições da segunda categoria, que podem ser chamadas de instituições-

coisas, o poder organizado e as manifestações comunitárias dos membros do grupo não estão mais inseridas na

ideia de obra: existem no ambiente social, mas permanecem fora daquela ideia de obra. A regra jurídica

estabelecida socialmente é uma instituição do segundo tipo: é uma instituição porque como ideia propaga-se e

vive no ambiente social, mas não gera uma corporação que lhe seja própria”.

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140

Nessa mesma linha de raciocínio, Paulo Dourado de Gusmão cita Georges

Renard, outro representante do institucionalismo francês, para quem a instituição é a

comunhão dos homens em uma ideia. Assim, a ideia é, na instituição, o ponto de

convergência da vontade inicial do fundador ou dos fundadores e das adesões sucessivas que

virão a aglutinar-se; a instituição é uma ideia que tem o efeito de bola de neve. A instituição

serviria para explicar tanto o Estado como a organização interna de instituições de direito

privado e até as organizações internacionais (GUSMÃO, 1996).

Portanto, é na acepção de instituição internacional como a convergência de

vontades, não apenas dos Estados, mas também de outras entidades que atuam na vida

internacional, que será considerada, neste trabalho, a organização internacional de caráter

universal – ONU – como fórum apropriado para a discussão e encaminhamento de soluções

para os graves problemas decorrentes do desrespeito à dignidade e aos direitos da pessoa

humana. Nesse sentido, a Teoria das Relações Internacionais oferece contribuição fecunda

para uma compreensão mais clara sobre o significado da participação de outros atores, além

de Estados e Organizações Internacionais, na estruturação de uma ordem internacional

institucionalizada. Não se pretende, evidentemente, examinar com profundidade todas as

formulações teóricas das Relações Internacionais, mas apenas focalizar nesse campo do

conhecimento duas principais concepções doutrinárias, identificando suas características para,

em momento posterior, adotar-se uma delas como corrente mais consonante com o tema

objeto do presente trabalho.

Cristina Pecequilo sustenta que as Teorias das Relações Internacionais dividem-

se, fundamentalmente, em duas correntes de opinião: o Realismo e o Liberalismo.

Reportando-se à Teoria Realista ou Realismo, enumera a autora suas principais

características: 1) os Estados soberanos, únicos atores do sistema internacional, interagem

sem controle ou lei superior, buscando satisfazer os interesses nacionais; 2) prevalecendo a

anarquia, no sistema internacional, há a possibilidade latente de guerra entre os Estados; 3) os

limites e constrangimentos entre os Estados são determinados por dois processos: a

socialização e a competição. No caso da socialização, os Estados comprometem-se com certas

regras de conduta estabelecidas dentro do sistema e, no que se refere à competição, a ordem é

produzida pelo equilíbrio de poder, cuja única condição necessária é que haja dois ou mais

Estados coexistindo em um sistema de autoajuda, no qual cada Estado só conta consigo

mesmo para garantir sua sobrevivência. A Teoria Liberal ou Liberalismo, segundo Pecequilo,

apresenta as seguintes conclusões: 1) embora o sistema internacional seja anárquico na

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141

origem, a desordem pode ser controlada por meio de leis e de certos mecanismos que podem

produzir uma cooperação latente; 2) a guerra, ao contrário do que sustentam os realistas, não é

necessária ou inevitável; 3) os Estados ainda permanecem como os principais atores

internacionais, porém, são acompanhados pela crescente importância de outros atores, como

as Organizações Internacionais Intergovernamentais (OIGs) e as Forças Transnacionais, que

compreendem as Organizações Não-Governamentais (ONGs), os grupos diversos da

sociedade civil e a opinião pública internacional; 3) a ordem, no sistema internacional, para os

liberais, nasce da cooperação organizada por meio da lei e da relação pacífica e controlada de

todos esses atores internacionais, de sorte que o aumento da cooperação levará à governança

global (PECEQUILO, 2004, p. 155-156).

Considerando-se as duas Teorias das Relações Internacionais supracitadas, a

Teoria Liberal parece oferecer uma alternativa mais viável para o encaminhamento de

possível regulamentação das questões relativas à violação de direitos humanos, pois, partindo-

se do entendimento de que restam afastadas as hipóteses de intervenção unilateral por parte de

Estados ou grupos de Estados, somente a organização internacional intergovernamental de

vocação universal, concebida como instituição, espelhando a vontade comum dos Estados que

a compõem, poderia ser considerada uma instância legal, legítima e democrática no sentido

da tomada de decisões envolvendo a ação militar visando a reprimir as situações de desabrida

afronta à dignidade e aos direitos da pessoa humana.

É inegável, no entanto, que as ações unilaterais por parte dos Estados Unidos e de

outras potências ocidentais, no que se refere aos conflitos envolvendo terrorismo e direitos

humanos, ainda constitui um sério obstáculo a uma tomada de consciência dos povos em

torno de uma futura institucionalização internacional. Exemplo que vem ilustrar essa conduta

à margem da lei internacional foi a intervenção militar americana no Iraque em 2003,

operação esta que ficou conhecida como “guerra preventiva”, sob a alegação do governo

americano de que o Iraque estaria produzindo armas de destruição em massa. Segundo Fredys

Orlando Sorto:

A guerra preventiva significa simplesmente o emprego arbitrário da força

contra inimigo potencial qualificado como tal pelo governo estadunidense,

mesmo que esse ato de força viole o Direito Internacional, [...] a afirmação

da supremacia militar dos Estados Unidos e sua disposição de usar a força

armada aniquila a principal função do sistema das Nações Unidas que é a

preservação da paz mundial. (SORTO, 2005, p. 130-160)

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142

Discorrendo sobre as intervenções humanitárias e assinalando os limites a elas

estabelecidos, o ex-Secretário-Geral das Nações Unidas expressa a convicção de que embora

a intervenção humanitária seja um imperativo moral e estratégico quando a alternativa é o

genocídio ou as violações em massa dos direitos humanos, a ação militar empreendida por

propósitos mesquinhos, sem legitimidade global, como no caso do Iraque, pode ser tão

destrutiva quanto os males que ela se dispõe a combater. “O conceito global emergente de

‘responsabilidade de proteger’ foi criado como um princípio universal de resguardo aos

direitos humanos fundamentais e não como uma autorização para fazer a guerra em nome da

paz” (ANNAN, 2013, p. 15).

Cumpre notar que a atuação unilateral de Estados ou grupos de Estados, patentes

nos casos do Iraque em 2003 e da OTAN em 1999 já mencionados, guarda estreita relação

com uma questão de suma relevância nas relações internacionais e que está a merecer urgente

solução. Há décadas, discute-se no âmbito da ONU a reforma de sua Carta constitutiva no que

diz respeito à forma de composição do Conselho de Segurança, o principal órgão responsável

pela paz mundial. Nesse sentido, observa Manuel de Almeida Ribeiro que:

A lógica inicial do sistema de segurança coletiva instituído pela Carta

assentava no pressuposto de que as potências vencedoras da II Guerra

Mundial constituiriam uma parceria empenhada na preservação da paz

mundial. Mas pressupunha, também, que a paz mundial não seria possível

contra a vontade de qualquer destas potências. A concepção do Conselho de

Segurança, com os seus cinco membros permanentes, cedo demonstrou que

não correspondia à realidade do mundo bipolar que se revelou logo após o

termo do conflito (RIBEIRO, 1998, p. 246).

Focalizando a composição do Conselho de Segurança, bem como o papel

desempenhado por esse órgão da ONU na área da segurança internacional, pondera Ronaldo

Mota Sardenberg:

Essa situação no plano do direcionamento dos trabalhos do Conselho reflete,

em última análise, a contradição entre os anseios por maior democratização e

as necessidades de maior efetividade na composição desse órgão. Se de um

lado, é lícito defender que todos os países têm iguais direitos de acesso a um

assento no Conselho, é igualmente forçoso reconhecer que a ausência de

países em desenvolvimento com real capacidade de influir em deliberações

de questões cruciais sobre a paz e a segurança compromete o equilíbrio

político que deveria embasar a avaliação e a atuação das Nações Unidas.

(SARDENBERG, 1996, p. 9-18)

Cabe, neste passo, reproduzir a reflexão de José Carlos de Magalhães a respeito de

uma premente reforma do Conselho de Segurança de modo que esse importante órgão da

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ONU possa espelhar as profundas transformações das relações internacionais operadas desde

a fundação da aludida Organização:

Essa reorganização do Conselho de Segurança é indispensável, ante a

importância de suas atribuições, dentre as quais se destaca a de definir uma

situação de ameaça à paz, que justifica a intervenção da organização e o

emprego da força [...]. De fato, a dinâmica das relações internacionais impõe

que, em cada momento, sejam identificados atos que possam colocar em

perigo a segurança coletiva. Cabendo ao Conselho de Segurança essa

definição, e diante do caráter multicultural do mundo, é indispensável que

aquele órgão reflita não mais apenas a realidade do momento em que foi

concebido, mas a atual, na qual a ordem internacional se apresenta

profundamente alterada, com a atuação no cenário internacional de novos

atores como a multiplicidade de organizações regionais, a União Européia,

os Estados novos, oriundos do processo de descolonização que a própria

ONU empreendeu, as organizações não-governamentais, os grupos de

pressão política e militar, as empresas privadas multinacionais, ou

transnacionais, com o poder econômico e político próprios e desvinculados

dos Estados de onde provêm. (MAGALHÃES, 1995, p. 149-159)

Ernesto J. Rey Caro, Professor da Universidade Nacional de Córdoba, tecendo

considerações sobre a possibilidade de a reforma do Conselho de Segurança vir a se

concretizar, ressalva, no entanto, que haverá obstáculos para que esse objetivo seja alcançado,

conforme se depreende de suas palavras:

En suma, la reforma del Consejo de Seguridad es una necesidad

incuestionable e impostergable. No obstante, no puede ignorarse que se

trata de un objetivo que ofrece marcadas dificultades, por el fuerte

predominio de los intereses estatales. No participamos de la opinión de

que la reforma a la Carta a la vez que necesaria, resulta imposible.

Estimamos que será una tarea ardua, que depende de la naturaleza de las

modificaciones que se pretenden introducir y para las cuales no se pueden

aventurar plazos. (REY CARO, 2005, p. 275-282)44

É evidente que qualquer projeto em torno de uma reformulação ampla da ONU de

modo a torná-la uma instituição plural e democrática, no que diz respeito a uma representação

mais igualitária dos Estados que a compõem, não poderia prescindir da consideração de que

os dois principais órgãos da aludida Organização – Conselho de Segurança e Assembleia

Geral – devem exercer atividades integradas e coordenadas. Releva notar que a expressão

“Nações Unidas”, cunhada pelos países vencedores da Segunda Guerra Mundial, mantém-se

44

“Em suma, a reforma do Conselho de Seguridade é uma necessidade inquestionável e impostergável. Não

obstante, não se pode ignorar que se trata de um objetivo que oferece marcadas dificuldades, pelo forte

predomínio dos interesses estatais. Não compartilhamos da opinião de que a reforma à Carta, que é necessária,

resulta impossível. Estimamos que será uma tarefa árdua, que depende da natureza das modificações que se

pretendam introduzir e para as mesmas não se pode dar prazos”. (Tradução nossa).

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até hoje, expressando uma configuração de poder que não mais reflete a multiplicidade de

interesses que caracteriza a realidade atual. Nesse sentido, observa Thiago Rodrigues:

A presença do Conselho de Segurança, com os cinco Estados com poder de

veto (originalmente Estados Unidos, Reino Unido, França, URSS e China),

contrastaria com a Assembleia Geral, seção a congregar todos os Estados-

membros, com mesmo poder de votar resoluções e demais instrumentos.

Mas será que o Conselho de Segurança e a Assembleia-Geral são de fato

excludentes e paradoxais? (RODRIGUES, 2016, p. 9-16)

Com efeito, a atuação desses dois órgãos principais da ONU vem sendo objeto de

intenso debate, tanto no âmbito da própria Organização, como entre organizações não-

governamentais e outros fóruns internacionais, ponderando Thiago Rodrigues, quanto à ONU,

que:

Na esteira de sua formação despontaram inúmeras organizações, normativas,

protocolos, processos de concertação entre Estados, encontros internacionais

que denunciam a existência de uma dimensão transnacional a enredar

Estados e não-Estados, atores públicos e agentes privados (econômicos e

conflituosos), regiões do globo e o planeta como um todo – fronteira última

de um projeto universal. Construída como uma coligação de Estados visando

a paz e a segurança internacionais, como atesta o preâmbulo do seu

documento de criação, a ONU enfrenta questões derivadas exatamente do

espaço de forças em que se constitui: uma organização constrangida,

moldada e impulsionada pelos Estados que a conformam e pelas forças não-

estatais que têm, gradativamente, conseguido lugar como fontes de pressão e

observação. (RODRIGUES, 2016, p. 9-16)

Clóvis Brigagão aponta uma contradição presente na Carta das Nações Unidas, no

que se refere ao uso, por esse documento, do termo “povos” e da expressão “Estados-

membros”, consoante se vê do texto adiante transcrito:

Enquanto no preâmbulo da Carta proclama-se ‘nós, os povos das nações

unidas’, a ONU é fundamentalmente constituída por Estados nacionais

soberanos [...]. E é exatamente essa a dificuldade de adequação da

Organização nos dias atuais: ser uma entidade representativa de povos e

Estados-membros e, assim, poder representar o edificante papel de manter o

equilíbrio internacional na desigualdade política e econômica desses Estados

[...]. A Organização das Nações Unidas cresceu, ampliou suas

responsabilidades e funções nevrálgicas na política internacional, mas a

contradição entre decisões na esfera dos Estados nacionais e os povos

(sociedade civil) continua, tendo o parâmetro da hegemonia ainda como

fator de distúrbio em termos de um programa sustentável de paz e segurança

internacional. (BRIGAGÃO, 2006, p. 17-27)

Levando-se em consideração as observações de Thiago Rodrigues e de Clóvis

Brigagão acima expostas, é de se ponderar, com a devida vênia, que a participação da ONU

em diversos episódios nos quais a entidade é chamada a intervir, tanto a Assembleia-Geral

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como o Conselho de Segurança, vem cumprindo a contento suas funções de acordo com suas

atribuições fixadas na Carta. Ocorre que as resoluções emanadas da Assembleia-Geral têm

apenas caráter de aconselhamento e recomendação, enquanto que as resoluções do Conselho

de Segurança são dotadas de força coercitiva e obrigatória. Assim, parece que as decisões

desses dois órgãos, antes de se excluírem, ao contrário, apresentam entre si coerência e

sintonia, de acordo com a estrutura atual da Organização. Do mesmo modo, o fato de se

constatar a existência de forças não-estatais atuando na cena internacional parece não

constituir um empecilho ao desempenho das relevantes atribuições da ONU, pois, segundo o

ponto de vista exposto neste trabalho, a referida Organização deve representar não só os

interesses dos Estados, mas de toda a comunidade internacional, nas suas mais variadas

formas de manifestação. Clóvis Brigagão nota que existe uma contradição e um descompasso

entre as decisões dos Estados e as aspirações dos povos (sociedade civil). A ONU é o

resultado da conjugação de vontades dos Estados. Ainda não existe uma organização ou

associação que congregue e represente todos os povos do planeta. Logo, quer parecer que a

referência a “Nós, os Povos das Nações Unidas” contida no Preâmbulo da Carta da ONU

significa que a Carta seja resultante da aspiração não apenas de governos, mas também dos

povos que esses governos acabam por representar.

Reportando-se à mudança na natureza das atividades da ONU no que diz respeito

à paz e à segurança, em geral, e à intervenção em conflitos civis, James Mayall pontua:

É claro que um recuo total para uma sociedade de Estados soberanos, todos

dedicados a sustentar o princípio da não-intervenção, seria impossível,

mesmo que isso fosse considerado desejável [...]. A razão principal desse

crescente envolvimento em conflitos civis parece ser o fato de que, libertos

do temor de uma escalada da Guerra Fria, os governos das democracias

ocidentais não têm conseguido resistir às pressões públicas no sentido de que

eles devem procurar minorar o sofrimento das vítimas inocentes das

violências cometidas por certos grupos. A incidência dessa violência de

caráter étnico e/ ou religioso aumentou acentuadamente com o colapso ou

quase-colapso das estruturas dos Estados em muitas partes do mundo [...]. Se

as pressões da interdependência estão gradualmente fazendo esmaecer a

tradicional distinção entre política interna e política externa, o regionalismo

tornará uma organização como a ONU mais, e não menos, importante,

fazendo dela um tipo de tribunal de última instância no qual os interesses e

atitudes regionais conflitantes possam ser conciliados. (MAYALL, 1995, p.

229-241)

Na esteira do raciocínio exposto por Mayall, notadamente no que se refere à

contribuição do regionalismo para uma atuação mais efetiva da ONU como organização

universal, mister se faz recorrer às palavras de Mireille Delmas-Marty:

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Todo o interesse dos instrumentos regionais está na possibilidade de agrupar

os Estados mais próximos, não apenas geograficamente, mais ainda política

e culturalmente, o que aumenta as chances de obter a ratificação e fixar o

‘limiar de compatibilidade’ em níveis mais elevados. Concretamente, isso

significa adotar princípios comuns de elaboração jurídica mais sofisticados e

organizar um verdadeiro mecanismo de controle. Todavia, sempre com

diferenças marcantes de uma região a outra. (DELMAS-MARTY, 1995, p.

11-33).

Releva notar que, além dos Estados, existem outros atores internacionais, como as

Organizações Internacionais Intergovernamentais e as organizações regionais, de que são

exemplos a ONU, a OEA, a Organização da Unidade Africana (OUA), entre outras, bem

como as denominadas “Forças Transnacionais”, que compreendem as Organizações Não-

Governamentais (ONGs), os diversos grupos da sociedade civil e a opinião pública

internacional, os quais passam a exercer poder de pressão e considerável influência nas

decisões dos Estados e das Organizações Internacionais Intergovernamentais. Do ponto de

vista dos direitos humanos, cabe destacar a atuação de ONGs como o Human Rights Watch, a

Anistia Internacional e o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, este, especificamente,

ocupando-se do conflito na Síria, que já se estende por mais de sete anos.

No que diz respeito à Síria, a complexidade do conflito e a imprevisibilidade de

suas consequências mostra um cenário sombrio em que não se vislumbra a possibilidade, ao

menos a curto prazo, do encaminhamento de soluções viáveis para aplacar o flagelo de sua

população. A singularidade de tal conflito é explicada pelo fato de as partes envolvidas

expressarem as mais diversas aspirações e interesses. Samuel Feldberg observa que o conflito

tornou-se uma disputa sectária regional, tendo de um lado o campo sunita reunindo grupos

islâmicos, a Irmandade Muçulmana síria, os principados do Golfo e a Turquia, enquanto o

governo de Assad é apoiado pelo Irã e pelo Hizballah, pelos xiitas iraquianos com o respaldo

diplomático da Rússia (FELDBERG, 2014).

Ilustra bem a realidade dramática vivida pelo povo sírio o pronunciamento, em

junho de 2014, do Presidente da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a

República Árabe da Síria no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, consoante se

verifica dos excertos a seguir transcritos:

O conflito na Síria chegou a um ponto crítico, ameaçando toda a região [...].

Alguns Estados continuam a fornecer armas, peças de artilharia e aviões ao

governo sírio, ou a contribuir com assistência logística e estratégica. Outros

Estados e indivíduos dão apoio a grupos armados oferecendo armamentos e

auxílio financeiro. Ao fazê-lo, estão alimentando uma guerra por procuração

dentro da Síria. As armas que transferem para as partes beligerantes na Síria

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são usadas para perpetrar crimes de guerra e violações aos direitos humanos

[...]. A responsabilização deve ser parte de qualquer acordo futuro, se

quisermos que ele resulte em paz duradoura. Percorremos uma distância

histórica em busca da justiça na antiga Iugoslávia, em Serra Leoa e em

Ruanda, para citar alguns. Mas a comunidade internacional tem fracassado

em sua tentativa de oferecer justiça e proteção ao povo sírio. Na Síria, a

maior parte da população foi vítima do conflito armado. Eles têm o direito

de esperar que, apesar de tudo o que sofreram, a justiça não lhes será negada.

(PINHEIRO, 2014, p. 261-264)

Fábio Comparato, vaticinando a constituição de uma futura sociedade política

mundial e refletindo sobre a refundação da ONU como seu órgão de cúpula, afirma que o

princípio fundamental de toda organização política é o permanente controle do poder, o

controle das leis e não dos homens, que vem a ser o Estado de Direito, e acrescenta: “No

quadro de uma sociedade política mundial, esse princípio implica o reconhecimento de que

todas as normas internacionais – resoluções de organizações internacionais, tratados e

convenções – devem submeter-se ao sistema universal de direitos humanos, e que deve ser

instituído um sistema de freios e contrapesos entre os órgãos de poder” (COMPARATO,

2010, p. 113-141).

O entendimento de Fábio Comparato procede, sob certo aspecto, pois seria

impossível admitir-se o exercício difuso e desmedido do poder pelos atores da sociedade

internacional sem um arcabouço normativo que impusesse balizas e condicionamentos a esse

poder, sob pena de se retroceder ao estado de natureza de Hobbes. Entretanto, embora se parta

do entendimento de que não haveria outra forma de representação dos interesses da sociedade

internacional senão por meio de uma organização internacional como a ONU, por outro lado,

há que se reconhecer que tal Organização, para que possa responder satisfatoriamente a essas

exigências, deve passar por um amplo processo de renovação, que inclui a premente revisão

do poder de veto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. O atual

Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, admite:

Os fracassos e limitações da ONU, mas, por outro lado, alerta que “teríamos

mais conflitos no mundo se a ONU não existisse, mais sofrimento.

Precisamos de uma mudança de cultura para resgatar a credibilidade da

instituição”. Seu plano para os próximos cinco anos será o de “ser mais

eficiente para lidar com a multiplicação dos conflitos”45

.

Convém notar, a propósito, que as crises humanitárias verificadas nos pós-Guerra

Fria foram, em sua maioria, resultado de conflitos armados dentro dos Estados. Além disso,

nesses conflitos, ao invés de duas partes combatentes, a quantidade se multiplicou, como nos

45

Jornal “O Estado de S. Paulo”, 19 jan. 2017, p. A11.

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casos da Somália e da Bósnia e, atualmente, da Síria, o que requer um maior empenho, tanto

por parte dos respectivos Estados, como por parte da comunidade internacional, observando-

se, assim, as disposições da “Responsabilidade de Proteger”. Simone Rodrigues ressalta “o

papel dos pensadores e teóricos na formação de uma cultura internacional a favor do uso de

meios coercitivos para a garantia da assistência humanitária das vítimas de conflitos

intraestatais, principalmente quando as circunstâncias implicam em extremo sofrimento das

populações” (RODRIGUES, 2000, p. 96).

Em suma, não há, no atual estágio da humanidade, qualquer razão ponderável para

a persistência de uma atitude de menoscabo e indiferença em relação às situações de

vilipêndio à dignidade da pessoa humana. Urge uma tomada de consciência por parte da

comunidade internacional no sentido de se buscar mecanismos tendentes a fazer cessar as

brutalidades perpetradas contra a integridade física de populações inteiras em regiões

assoladas pelos mais diversos conflitos. Nesse sentido, parece de todo razoável que as

medidas visando à defesa e proteção da dignidade humana requeiram um esforço conjunto dos

Estados, das Organizações Internacionais Intergovernamentais e das Forças Transnacionais

para a consecução desse desiderato. Entretanto, para que tais medidas sejam consistentes e

exequíveis, devem elas ser levadas a efeito pela Organização das Nações Unidas, entendida

esta como uma instituição por meio da qual a comunidade internacional organizada expressa

sua opinião. Dessa forma, somente uma intervenção internacional institucional, vale dizer,

por meio da ONU, será legítima para promover a defesa e proteção da dignidade humana

onde quer que ela venha a ser afrontada. Acreditamos que uma intervenção verdadeiramente

institucional constitui um imperativo da segurança internacional.

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CONCLUSÃO

Não há notícia, até a presente quadra, de que a guerra teria desaparecido do

cotidiano das pessoas. A célebre frase latina Si vis pacem, para bellum parece ter sido

apropriada com muita competência pelos líderes políticos que, em um passado não muito

longínquo, dominavam a cena internacional, expressando a convicção de que a condição para

se conseguir a paz era se ter um Estado dotado de poderio bélico e militar. Antecipava-se a

qualquer eventual ação do suposto inimigo, desfechando contra ele um ataque brutal e

devastador. O diálogo e as negociações diplomáticas para a solução de controvérsias não se

revelavam tão eficazes como se lançar à guerra.

Durante largo tempo, a lógica que presidiu a política internacional foi a do

confronto bélico. A Segunda Guerra Mundial exibiu ao mundo um quadro dantesco de

atrocidades contra a dignidade do ser humano, provocando o mais veemente repúdio por parte

da comunidade internacional, que ansiava por paz e segurança. É criada, assim, a Organização

das Nações Unidas (ONU) cujos principais propósitos eram a paz e a estabilidade mundiais,

dando ao mundo uma expectativa promissora de pacificação e normalização das relações

internacionais, que decorria, em grande parte, da organização de um sistema de segurança

coletiva composto de normas que regulariam as relações entre os Estados. Portanto, se o

objetivo era afastar o risco de uma nova guerra mundial, a ONU parece tê-lo cumprido de

alguma forma, não obstante ainda ocorressem alguns conflitos regionais de menor proporção,

muitos deles inseridos na bipolaridade da Guerra Fria.

Entretanto, percebeu-se que não bastava a estruturação de um sistema de

segurança coletiva voltado exclusivamente para os Estados, visto que o ser humano, grande

vítima das guerras, também deveria ser contemplado por essa reorganização do sistema

internacional. Destarte, ao lado da segurança coletiva, foi se desenvolvendo pari passu, no

âmbito da ONU, a elaboração de uma infinidade de tratados internacionais de proteção aos

direitos do homem, cuja expressão maior foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de

1948, a qual conferiu um alcance universal aos direitos da pessoa humana. Contudo, os fatos

da vida internacional vêm demonstrando que, conquanto consagrados nos documentos

internacionais, os direitos da pessoa humana ainda carecem de efetiva proteção, haja vista a

grande diversidade de conflitos que se desenvolvem no interior dos Estados, expondo as

condições mais aviltantes de sobrevivência a que pode ser relegado o ser humano.

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Hoje, as atenções se voltam para os conflitos cruentos que ocorrem dentro das

fronteiras do Estado e que, por se revestirem de tamanha gravidade, acabam adquirindo

repercussão internacional, o que leva à discussão de uma das questões mais controvertidas da

política e do direito internacional – a intervenção humanitária. A expressão “intervenção

humanitária” ressente-se de imprecisão e de ambiguidade e, exatamente, por ser um conceito

vago, continua a ser invocada, frequentemente, pelos Estados poderosos para legitimar

propósitos inconfessáveis, os quais, segundo seu alvedrio e dentro de um critério seletivo,

determinam quais os pontos de conflito em que seria conveniente empreender uma

intervenção.

Por outro lado, disseminam-se os conflitos intraestatais expondo a fragilidade do

sistema internacional em estabelecer, de forma efetiva, mecanismos que conduzam à proteção

da população desses Estados, as únicas vítimas de todo esse teatro tétrico armado por

governos incapazes de proteger sua população e por Estados estrangeiros ávidos de poder.

A questão humanitária constitui hoje um dos temas mais relevantes na agenda

internacional e, nesse sentido, admitir-se a possibilidade de uma intervenção internacional

com fins humanitários implicaria uma avaliação criteriosa e equilibrada sobre as questões da

legalidade e da legitimidade dessa intervenção. O sistema de segurança coletiva instituído

pela ONU proíbe expressamente a intervenção de um Estado nos assuntos internos de outro

Estado, sujeitando o Estado infrator a sanções. Portanto, nenhum Estado, ainda que alegue

propósitos humanitários, ao intervir em outro Estado, estaria cometendo um ilícito

internacional. Portanto, revelar-se-ia ilegal e ilegítima toda e qualquer intervenção levada a

efeito por um Estado no território de outro Estado.

Contudo, a proibição, pelo sistema legal internacional, de intervenção de um

Estado no território de outro Estado, não faz cessar a discussão em torno da necessidade de

uma intervenção em conflitos intraestatais nos quais haja flagrante e desabrida ofensa à

dignidade e aos direitos humanos fundamentais. De fato, avulta nessa discussão considerar-se

o valor fundamental da dignidade humana, concebida como a essência do ser humano, de

sorte que repugna à consciência média admitir-se que possa haver qualquer limitação ao

direito à vida ou à integridade física do homem. Logo, uma vez verificadas situações de

violência contra a dignidade da pessoa humana nos limites territoriais de um Estado, seja pelo

próprio governo, seja por grupos extremistas, esse Estado não poderá escudar-se em sua

soberania para impedir uma intervenção por parte da comunidade internacional.

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Destarte, somente se pode cogitar da legalidade e da legitimidade da intervenção

com propósito humanitário se a mesma for levada a efeito por uma instituição que

corresponda à expressão da vontade da comunidade internacional organizada. Nesse sentido,

ainda que a Carta da ONU requeira urgente reforma, essa instituição parece ser, no momento

atual, a mais apropriada para cumprir a nobre tarefa de proteger e defender a dignidade e os

direitos da pessoa humana.

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