principio da dignidade

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  • DIREITOS FUNDAMENTAIS: PRINCPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA FRENTE AUTONOMIA

    PRIVADA NAS RELAES ENTRE PARTICULARES1

    Hamilton Pessota Nicolao2

    RESUMO: O objetivo deste estudo promover uma reflexo acerca da aplicao da dignidade da pessoa humana frente autonomia privada nas relaes entre particulares. Como forma de alicerce para o estudo, foi feita uma anlise histrico-conceitual dos direitos fundamentais. Por ser um dos temas centrais da pesquisa, buscou-se um conceito que demonstre de forma mais fidedigna o princpio da dignidade da pessoa humana, demonstrando assim as mincias que envolvem sua aplicao e seu entendimento. A partir da premissa que esta dignidade deve balizar a ordem jurdica, tambm buscou-se encontrar seu fundamento de forma a caracterizar o que de mais importante deve-se proteger nela, para que desta forma se tenha a sua real dimenso. Assim, encontrou-se como fundamento da dignidade da pessoa humana a autonomia privada, ou seja, a liberdade que o particular tem de conduzir sua vida segundo seus planos. Desta forma, apenas o indivduo autnomo livre, e apenas assim ir alcanar sua dignidade. Diante disso, procurou-se encontrar as formas e as medidas em que se d a eficcia (vinculativa) dos direitos fundamentais nas relaes privadas. Por fim, aps breves contornos acerca do poder de polcia do Estado (poder pblico) chegou-se a estas concluses.

    Palavras-chave: Direitos fundamentais. Dignidade da pessoa humana. Autonomia privada.

    1 INTRODUO O estudo dos direitos fundamentais fascinante, e devido s constantes modificaes

    que ocorrem no seu entendimento, devem ser constantemente alvo de pesquisas que visam aprimorar sua interpretao. Com o passar dos tempos, a sociedade muda e cria novas exigncias, com a evoluo desta sociedade, os direitos fundamentais precisam se moldar de forma compreender todas as necessidades que deles so exigidas.

    Ainda no incio da faculdade, mais precisamente no primeiro semestre, foi apresentado como um exemplo de aula a fatdica situao do ano que pretendia ser arremessado como atrao de um bar, no exemplo dado ele teve sua inteno proibida com as principais alegaes de que afrontaria a dignidade da pessoa humana e a ordem pblica. Apesar de ser seu nico meio de sobrevivncia, no ser aprofundado, nessa pesquisa, questes trabalhistas que por ventura possam ser aplicadas ao caso. Este exemplo esdrxulo, para no dizer cmico, mas envolve questes que transcendem o que percebemos num primeiro momento.

    Trata-se de uma situao que mais intensa do que parece, pois alm de estarmos falando do nico meio de sobrevivncia de uma pessoa, a autonomia privada tambm foi ignorada pelas autoridades sob o argumento de que afrontava a dignidade da pessoa humana do ano. Este fato ocorreu na cidade de Morsang-sur-Orge na Frana, onde a prefeitura munida do poder de polcia, a ela conferida, interditou o espetculo. Ocorre que o prprio

    1 Artigo extrado do trabalho de concluso apresentado banca examinadora, composta pelo Orientador, Professor Plnio Saraiva Melgar, pelo Professor Wremyr Scliar e pelo Professor Francisco Jos Moesch, como requisito obteno do grau de Bacharel em Cincias Jurdicas e Sociais na Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Aprovado com grau mximo em 08 de novembro de 2010. 2 Acadmico do curso de Cincias Jurdicas e Sociais - Faculdade de Direito - da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Contato: [email protected]

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    ano (Sr. Wackenheim), junto com o dono do bar entraram na justia pugnando pelos seus direitos, ou seja, liberao do espetculo e o direito de ser arremessado.

    A Corte Suprema da Frana manteve a deciso do prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge de interditar a atrao, mesmo sob os argumentos do ano de que seria sua nica forma de sustento e de que com base na sua autonomia, tinha o direito de decidir como ganhar sua vida. Porm, o direito de ser arremessado no foi concedido e fora mantida a deciso.

    O ano ainda inconformado com a deciso tida como justa pelo judicirio francs, ingressou perante o Comit de Direitos Humanos da ONU. Mas o Comit tambm entendeu que o arremesso de ano era atentatrio dignidade da pessoa humana e pugnou pela proibio do ato.

    Este tema mostra-se atual simplesmente pelas datas em que foram proferidas tais decises, a deciso da Corte mxima da Frana foi proferida em 1995. J a deciso do Comit de Direitos Humanos da ONU data de 2002. Um dos casos mais recentes de briga judicial se deu nos Estados Unidos, chegou a ser tema da programao do SBT, onde o principal argumento para a proibio era mdica, onde argumentou-se que a estrutura ssea ofereceria risco sade.

    O problema que envolve o caso do arremesso de ano mostra-se presente em outros casos tambm. Um exemplo era o peep-show, no qual uma mulher dana nua atrs de um pano, projetando apenas sua sombra. Este caso tambm fora probido na Alemanha sob os mesmos argumentos do arremesso de ano, pelo simples fato de se esconder atrs do pano, sendo que outras atividades semelhantes so aceitas. Outro bom exemplo, encontrado no nosso cotidiano, pois no programa Pnico na TV que expe suas danarinas a situaes que, sob a tica que foi empregada em Morsang-sur-Orge, deveria igualmente ser proibido aqui no Brasil.

    Pretendemos ao final desta pesquisa demonstrar que por trs deste fato exdrxulo, se apresenta um intrigante jogo de supremacia de um princpio constitucional sobre o outro. Entendemos que a autonomia privada pressupe outras especificidades que parece no terem sido levadas em conta nas decises j proferidas, o que poderia levar a situao para outra interpretao, de forma a demonstrar no ser exequvel a supremacia da dignidade da pessoa humana sobre a autonomia privada nas relaes entre particulares.

    Por fim, de se registrar que a discusso sob temas constitucionais est longe de encerrar, pois encontra-se em constante desenvolvimento. Com o passar dos tempos, os direitos constitucionais necessitam ser reinterpretados de forma a atender melhor os anseios da sociedade, o que torna o assunto sempre atual. Assim, este trabalho no tem qualquer pretenso de demonstrar que o entendimento sobre os direitos fundamentais est equivocado, mas ousa contribuir com ideias inovadoras que possibilitem fazer uma interpretao sobre o caso concreto a partir de outro ngulo.

    2 DIREITOS FUNDAMENTAIS

    Neste trabalho de concluso no tem-se a audcia de esgotar o tema referente aos

    Direitos Fundamentais. Pretende-se apenas situar o leitor acerca de aspectos relevantes e necessrios para uma melhor compreenso do objetivo do estudo e do enfrentamento da problemtica da aplicao da dignidade da pessoa humana em frente autonomia privada nas relaes entre particulares.

    Direitos Fundamentais um tema muito abrangente, e que demanda tempo de estudo, sendo este alvo de diversos doutrinadores. Desta forma, existem vrias terminologias com o mesmo significado, como bem anota o professor Ingo Wolfgang Sarlet: ... outras expresses, tais como direitos humanos, direitos do homem, direitos subjetivos pblicos, liberdades pblicas, direitos individuais, liberdades fundamentais e direitos humanos fundamentais

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    ...,3 sendo que algumas destas podem ser encontradas na prpria Constituio Federal, como terminologias largamente utilizadas. Neste trabalho, assim como vrios doutrinadores (como o prprio professor Ingo Wolfgang Sarlet), optou-se pela terminologia (Direitos Fundamentais), utilizada pela nossa Constituio Federal no Ttulo II.

    2.1 ABORDAGEM HISTRICA

    Existe uma gama de autores (como Fbio Konder Comparato, Joo Baptista

    Herkenhoff, dentre outros defensores de que o fato de no existirem freios ao Poder, no quer dizer que no existiram as ideias) que sustentam que os direitos fundamentais perfazem um longo caminho histrico, tendo posies que acreditam ser de meados de 2000 a.c., as primeiras manifestaes, no direito da Babilnia, outras posies os reconhecem na Grcia Antiga e na Roma Republicana. Estas opinies carecem de fundamentos histricos.

    Neste contexto, lembram-se os ensinamentos do Professor Ricardo Aronne, que, durante a graduao, passou a impossibilidade de se diferenciar o pblico do privado, no que se refere posse e propriedade em Roma, sendo assim como se falar em direitos fundamentais. Ressaltando que alguns consideram existir no Cdigo de Hamurabi direitos humanos, ou pelo menos um humanitarismo, mas o prprio Cdigo que prev a lei do Talio.

    De forma a se somar convico do professor Aronne, o professor Ingo Wolfgang Sarlet entende como pacfico que os direitos fundamentais no surgiram na antiguidade, porm notria a influncia do mundo antigo nos direitos fundamentais por meio da religio e da filosofia, que colaboraram na concepo jusnaturalista de que o ser humano, pelo simples fato de existir, j detentor de direitos fundamentais; esta fase costuma ser denominada pela doutrina como pr-histria dos direitos fundamentais.4

    Prez Luo (1995 citado por Sarlet, 2007) chama de antecedentes dos direitos fundamentais, os documentos que, de alguma forma, colaboraram para a elaborao das primeiras ideias dos direitos humanos presentes nas declaraes do sculo XVIII, talvez o principal documento a ser referenciado seja a Magna Charta Libertum, pacto firmado em 1215 pelo Rei Joo Sem-Terra.5 Cabe ressaltar que esse pacto no passou de mero referencial para as futuras elaboraes dos direitos humanos, pois, neste pacto, apenas os nobres receberam prerrogativas, deixando a populao em segundo plano.

    Assim, em pleno sculo XVIII, que se pode encontrar a primeira apario de reais direitos fundamentais, apesar do dissdio levantado pelo professor Ingo Wolfgang Sarlet diante da paternidade dos direitos fundamentais, que seria disputada entre a Declarao de Direitos do povo da Virgnea, de 1776, e a Declarao Francesa, de 1789,6 estas declaraes seriam os primeiros documentos a representar os direitos fundamentais.

    J para Paulo Bonavides, neste sentido que a Revoluo Francesa, fixando direitos civis e polticos para que gradativamente fossem alcanados os princpios universais do lema liberdade, igualdade e fraternidade (Libert, Egalit, Fraternit), fora a grande precursora dos direitos fundamentais caracterizados atravs da posio de resistncia ou de oposio frente ao Estado.7

    Assim, conclumos que, no tem sustentao defender a existncia de direitos fundamentais antes mesmo da existncia de um estado social. Percebe-se, que apenas com a

    3 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p.33. 4 SARLET, Op. Cit. 5 PREZ LUO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. 6. ed. Madrid : Tecnos, 1995. 6 SARLET, Op. Cit. 7 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. atual. So Paulo: Malheiros, 2005.

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    promulgao das declaraes, pode-se identificar a presena do que seria o incio dos direitos fundamentais.

    2.2 CLASSIFICAO

    Os trs princpios universais comeam a ser reconhecidos formalmente, aps intensas

    lutas entre a burguesia e o Estado absolutista, como direitos fundamentais. Os princpios acabaram por determinar uma ordem cronolgica de seus reconhecimentos. Estes direitos fundamentais tinham por finalidade garantir aos indivduos uma posio jurdica acerca dos direitos subjetivos.8

    Sendo assim, o princpio da Liberdade, antes de qualquer outro a constar em um ordenamento jurdico constitucional, trazia direitos (subjetivos) ao indivduo frente ao Estado com caractersticas de defesa, pois tinha o intuito de exigir uma atitude negativa do Estado no sentido de no intervir nos direitos individuais dos cidados,9 delimitando assim, o poder de interveno do Estado na autonomia individual dos cidados.

    No rol dos direitos fundamentais de primeira dimenso podemos salientar os seguintes: direito vida, liberdade, propriedade, igualdade perante a lei, nacionalidade, liberdade religiosa, liberdade de expresso, de participao poltica, garantias processuais, dentre outras ramificaes provenientes destes direitos, segundo Paulo Bonavides.10

    Seguindo a ideia de cronologia da formalizao dos princpios, os direitos fundamentais de segunda dimenso buscam a igualdade dos indivduos atravs de uma justia social. A partir do sculo XIX, com a industrializao, os decorrentes problemas sociais e econmicos, e o fato da liberdade e igualdade j no garantirem o pleno gozo de tais direitos, surgiram movimentos que buscavam um comportamento ativo do Estado no que se refere a garantir o bem-estar social.11

    Os direitos de segunda dimenso so chamados de direitos econmicos, sociais e culturais, nos quais no se exige apenas uma atitude de omisso por parte do Estado. Mas, uma ao positiva no sentido de auxiliar o indivduo, exigindo por parte do Estado uma ao que no esteja focada especialmente em direitos individuais, mas tambm em um carter social que tenha como objetivo fornecer melhores condies sociedade como um todo, tendo o indivduo como titular deste direito.12

    Existe ainda outra denominao (liberdades sociais) para os direitos de segunda dimenso, que deixa claro o fato de no apresentarem apenas direitos de cunho positivo, fornecendo tambm algumas liberdades como, por exemplo, a liberdade de sindicalizao. So prerrogativas dos direitos de segunda dimenso: proteo contra o desemprego, assistncia para invalidez, sade, educao, direito a greve, seguridade social, s frias, ao repouso semanal remunerado, a um salrio mnimo, limites na jornada de trabalho, estes so alguns dos direitos mais representativos. 13

    Fechando os trs princpios universais, preconizados na Revoluo Francesa, temos o princpio da fraternidade (ou solidariedade como tambm chamado). A percepo de que o

    8 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2 Triagem. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. 9 MACEDO, Amilcar Fagundes Freitas. A eficcia dos direitos fundamentais nas relaes entre particulares. 2008. 168f. Dissertao (Mestre em Direito) Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 10 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. atual. So Paulo: Malheiros, 2005. 11 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 12 GORCZEVSKI, Clvis (coord.). Direitos humanos: A primeira gerao em debate. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. 13 SARLET, Op. Cit.

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    mundo encontrava-se separado por vrias naes desenvolvidas e subdesenvolvidas, sendo que algumas destas em precrio desenvolvimento, fez-se necessria a busca por uma nova dimenso dos direitos fundamentais at ento desconhecida.

    Para Perez Luo (citado por Sarlet 2007), esta terceira dimenso pode ser uma resposta para o fenmeno da poluio das liberdades, que seria, para ele, o processo de degradao dos direitos e liberdades fundamentais, principalmente frente s novas tecnologias, assumindo assim a relevncia do direito ao meio ambiente.14 Nesta dimenso, tem-se que saudar o fato do destinatrio precpuo ser o gnero humano, afirmando de forma concreta a sua existncia como valor supremo, desprendendo-se assim da ideia de homem-indivduo e focando na proteo destes como grupos humanos.15 Diante do seu destinatrio que pode-se afirmar que os direitos de terceira dimenso so coletivos ou difusos.

    A posio que adota o professor Ingo Wolfgang Sarlet, ilustra bem o fato da simples necessidade de existncia de novas protees jurdicas no caracterizarem novas dimenses, e sim, novos direitos que se enquadram nas dimenses abordadas. Sendo que, dentre os direitos de terceira dimenso, pode-se destacar como mais relevantes os seguintes: direito ao desenvolvimento, paz, ao meio ambiente, qualidade de vida, propriedade sobre patrimnio comum da humanidade, comunicao, dentre outros.

    A partir deste momento, comeam as divergncias doutrinrias mais relevantes. Ganha relevo o fato de o professor Ingo Wolfgang Sarlet entender desnecessria a formulao de direitos de quarta e quinta dimenses. Porm, entende que a existncia da quarta dimenso como preconizado pelo celebre doutrinador Paulo Bonavides, que comparado com os direitos fundamentais (Manipulao gentica, mudana de sexo, etc.) que integram a quarta dimenso para outros doutrinadores (como o autor Dimoulis), oferece a vantagem de constituir, de fato, uma nova gama de direitos fundamentais qualitativamente diversas e que no se apresentam apenas como sendo uma nova roupagem dos direitos de liberdade.16

    Para Norberto Bobbio, a evoluo do processo cientfico e tecnolgico apresenta novas exigncias que devem ser interpretadas como direitos de quarta dimenso, tendo em vista que estas pesquisas biolgicas permitiro manipular o patrimnio gentico do indivduo, necessitando da devida proteo, ressalta, tambm, a necessidade de se atentar para o estudo da biotica. 17

    Sobre outro foco, mas defendendo a existncia da quarta dimenso dos direitos fundamentais, temos o j citado Paulo Bonavides. Esta dimenso dos direitos fundamentais seria o resultado da globalizao destes direitos, que equivale a universaliz-los no campo institucional, institucionalizando o Estado social. Para o notvel doutrinador, a quarta dimenso composta pela democracia direta, materialmente possvel graas aos avanos da tecnologia de comunicao e a legitimidade sustentvel, devido s aberturas pluralistas do sistema.18

    Fica aparente a divergncia de ideias quanto aos direitos que compreendem a quarta dimenso, o que de certa forma d respaldo para a indagao do professor Ingo Wolfgang Sarlet quanto existncia dos mesmos. Assim, estes direitos tm a necessidade de serem valorados como uma nova dimenso ou apenas devem ser interpretados como sendo uma nova perspectiva de direitos j existentes? Para Clvis Gorczevski, esta grande divergncia de ideias, referente aos direitos que compreendem a quarta dimenso, se deve ao fato de estarmos fazendo aluso sobre questionamentos muito recentes.

    14 PREZ LUO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1995. 15 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. atual. So Paulo: Malheiros, 2005. 16 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 17 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 18 BONAVIDES, Op. Cit.

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    Para falar nos possveis direitos de quinta dimenso, adotam-se os ensinamentos do professor Ingo Wolfgang Sarlet quanto ao seu entendimento de que os direitos de quarta dimenso ainda carecem de consagrao na esfera do direito internacional, sendo assim, no h como se falar de direitos de quinta dimenso se sequer alcana-se unanimidade quanto aos direitos de quarta dimenso. Porm, h de se ressaltar que os direitos de quinta dimenso tm defensores, que merecem o respeito e a devida ateno sobre o assunto neste trabalho, do porte de Paulo Bonavides.

    Alguns doutrinadores (como Augusto Zimmermann, Jos Alcebades Oliveira Junior, dentre outros) entendem que no fim do sculo XX e o incio do novo milnio teriam marcado a passagem de uma sociedade industrial para uma virtual, denominado certa feita de direitos da era digital. Entendem que os avanos tecnolgicos, possibilitam a existncia de novas relaes que possivelmente estejam fora do controle do Estado e da prpria sociedade, o que traria a necessidade que de forma clere fosse regulamentado os direitos de quinta dimenso que abordariam: ciberntica, rede de computadores, comrcio eletrnico, inteligncia artificial, realidade virtual, dentre outras ramificaes.19

    Uma segunda interpretao do que seriam direitos fundamentais de quinta dimenso nos remete paz, e que s atravs da positivao desta que poderemos alcanar a dignidade. Paulo Bonavides v a paz como forma de compreenso da democracia, pois entende que Karel Vasak (que foi o primeiro doutrinador a dividir os direitos fundamentais em geraes), ao colocar a paz nos direitos da fraternidade (direitos de terceira dimenso), o fez de modo incompleto. Entendendo Bonavides que como fora a caracterstica da liberdade para os direitos de primeira dimenso, a paz h de ser para os direitos de quinta dimenso, subindo assim para um patamar superior.20

    Tendo por base os pontos j mencionados que foram levantados pelo professor Ingo Wolfgang Sarlet neste e no ttulo anterior, no se percebe nos direitos de quinta dimenso a vantagem apresentada nos direitos fundamentais de quarta dimenso, pois aqui no existe uma nova gama de direitos, e sim, uma tentativa de valorao do direito paz como forma de se agregar uma importncia que deveras j existe, mas nunca alcanou este patamar. No entende-se que aqui se esteja dando uma nova roupagem para o direito paz, pois o direito em si permanece inalterado, ocorrendo apenas seu deslocamento de forma a se dar um foco especfico e individual.

    3 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E AUTONOMIA PRIVADA 3.1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

    Assim como j expressado no ttulo anterior, no se pretende esgotar o assunto

    referente a direitos fundamentais e, por conseguinte no h como esgotar o assunto referente dignidade da pessoa humana. Trata-se de um tema largamente debatido e objeto de discusso doutrinria e jurisprudencial, sendo alvo de diversos doutrinadores de renome.

    A ligao entre dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais deixa clara a qualidade de sua pr-existncia intrnseca a todo ser humano, pelo menos o que pretende-se provar ao longo deste trabalho, portanto, devendo ser respeitada pela sociedade e pelo Estado.

    Cabe salientar que dentre outros (como Giovanni Pico de Mirandola), sero de suma importncia os ensinamentos do professor Ingo Wolfgang Sarlet e de Immanuel Kant. Este, que talvez seja o de maior importncia, devido as suas contribuies para a definio de

    19 GORCZEVSKI, Clovis (coord.). Direitos humanos: A primeira gerao em debate. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. 20 BONAVIDES, Paulo. A quinta gerao de direitos fundamentais. Direitos fundamentais & justia, Porto Alegre, v.2, n.3, p. 82-93, 2008.

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    dignidade da pessoa humana, principalmente por uma de suas afirmaes, talvez a mais conhecida delas, de que o homem seria um fim em si mesmo, no sendo algo para o Estado, e sim, o Estado tendo que se organizar de forma a dar benefcios para o indivduo.

    3.1.1 Aspectos histricos e a evoluo da ideia de dignidade da pessoa humana

    Os primrdios da ideia de dignidade da pessoa humana, como valor intrnseco a todo o

    ser humano, j podia ser observado no pensamento clssico e no iderio cristo, no se podendo atribuir qualquer exclusividade devido falta de dados que possam embasar tal afirmao. Pode-se, claramente, observar a ideia de dignidade quando, tanto no Velho como no Novo Testamento, o homem foi criado imagem e semelhana de Deus, por conseguinte dotado de um valor prprio que lhe intrnseco. Ressalta-se a afirmao do Papa Leo Magno, que asseverou que os seres humanos seriam dotados de dignidade por terem sido criados imagem e semelhana de Deus, posio tambm defendida por Toms de Aquino, mas que acrescenta o fato da autodeterminao.21

    No pensamento filosfico poltico do pensamento clssico, podia se verificar que a dignidade estava inerente a uma posio social que ocupava e com seu reconhecimento pela sociedade. J no pensamento estoico, a dignidade era ligada noo de liberdade pessoal e por ser inerente a todo o ser humano, era o que o distinguiria das demais criaturas.22

    Durante a Idade Mdia, as concepes crists e estoicas continuaram a ser observadas. J na renascena, Giovanni Pico de Mirandola, tendo a racionalidade como ponto de partida para sua compreenso, entende ser esta a qualidade que possibilita ao ser humano, de forma livre, traar seu destino, atravs da sua liberdade, que o seu prprio arbtrio, soberano e artfice, dotado de capacidade de ser o que deseja. Neste contexto, afirma Mirandola:

    O homem pode modificar a si mesmo. Liberdade um poder de ao. Caber, depois, ao desenvolvimento da filosofia, em reflexo conjunta com a cincia, aduzir outros elementos para completar essa noo de liberdade. Mas o fundamento est posto de maneira slida. 23

    Nesta pequena passagem do seu livro, Pico Della Mirandola expressa, de forma

    simples, praticamente todo seu entendimento do que seria o fundamento essencial para a dignidade humana, deixando claro que, para ele, a liberdade seria o elemento principal para se alcanar a dignidade. Cabe ressaltar, quanto ao termo liberdade, que se trata de uma interpretao aberta, pois entende o autor que, com o desenvolvimento, a noo de liberdade dever sofrer modificaes que venham a completar seu significado.

    O professor Ingo Wolfgang Sarlet considera especialmente importante, e, de fato, foi uma posio a ser considerada devido ao momento histrico em que ocorreu, a contribuio dada pelo espanhol Francisco de Vitoria. Que em plena expanso colonial espanhola sustentou, quanto ao processo de aniquilao, escravizao e explorao dos ndios, baseando-se no pensamento estoico e cristo, que estes, por serem de natureza humana (no pelo fato de serem cristos) e pelo direito natural, eram livres e iguais, ou seja, dotados de dignidade.24

    Em conformidade com o pensamento jusnaturalista dos sculos XVII e XVIII, a dignidade da pessoa humana passou por um processo de racionalizao, que manteve a ideia

    21 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988. 6. ed.rev.atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 22 SARLET, op.cit. 23 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. A dignidade do homem. So Paulo: GRD, 1988, P. 22. 24 VITORIA, Francisco de. Sobre el poder civil, sobre los indios sobre el derecho de la guerra. Madrid: Tecnos, 1998.

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    de igualdade entre todos os homens em dignidade. O professor Ingo Wolfgang Sarlet salienta a importncia neste perodo de Samuel Pufendorf, que dizia que mesmo os monarcas deveriam respeitar a dignidade humana, e Immanuel Kant, cuja concepo de dignidade humana parte da autonomia tica como fundamento da dignidade, teoria esta que ser mais bem analisada no decorrer do trabalho.25

    J John Locke, adepto da mesma escola de Hobbes, atingiu resultados totalmente opostos, justificando limites ao do prncipe. Defendia a ideia de que o estado de natureza j seria social, desta forma presente os direitos de liberdade, trabalho e propriedade, defendendo o direito natural como obra da razo e no mais do mstico, contrariando suas primeiras obras.26

    Para o professor Ingo Wolfgang Sarlet, Kant seria o representante mais ilustre no que se refere ao tema da dignidade da pessoa humana, dentre outros (como Toms de Aquino) de singular relevncia. Sendo assim, Kant merece uma ateno especial, pois partindo do pressuposto da racionalidade do ser humano, e diante disto dotado de dignidade e sendo um fim em si mesmo, no como meio, ele nos apresenta o que podemos interpretar como um conceito inicial de dignidade:

    No reino dos fins tudo tem ou um preo ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preo, pode-se pr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa est acima de todo preo, e, portanto, no permite equivalente, ento tem ela dignidade.27

    Notadamente este conceito de Kant foi extremamente bem elaborado, pois pode-se

    observar sua aplicabilidade nos dias atuais, alm do que, observa-se que, de forma pontual, Kant afirma que a dignidade no pode ser valorada, ou seja, todos os valores que hoje so pagos em virtude de algum fato que afete a dignidade de uma pessoa, no passa de uma tentativa de diminuir o dano ocorrido, mas de forma alguma ir eximir o ocorrido.

    H que se destacar a noo de dignidade da pessoa humana de Hegel, que para alguns doutrinadores, contrape a noo de Kant, o que entende-se ser incorreto afirmar, conforme pretendemos ilustrar a seguir. Um dos questionamentos levantados o fato de Hegel se afastar de Kant no que tange ao paradoxo da autodeterminao que, no encontrada no seu conceito de dignidade da pessoa humana. Sendo que, para Hegel, a dignidade no resultaria da autodeterminao, resultando na mxima de que, sendo pessoa, deve respeitar os outros como pessoa.28 Quem entende ser a autodeterminao como carter precpuo da dignidade da pessoa humana Toms de Aquino, ressaltando que a ideia de Kant diz respeito quanto ao povo em sociedade poder escolher e produzir suas leis.

    Outro questionamento levantado, que poderia ser interpretado como contraposio, o fato de Hegel no fundamentar ou vincular sua ideia de dignidade da pessoa humana em aspectos ou qualidades que, supostamente, seriam inerentes a todos os seres humanos, como a racionalidade. A racionalidade em Kant, parece ser o meio pelo qual o ser humano ter total liberdade sob suas aes, e, desta forma, alcanando sua dignidade, pois o fato de no ser racional no pressupe que no tenha dignidade a ser respeitada, e sim, que no tem condies de traar seu destino de forma completamente livre, desta forma, a racionalidade seria uma meio fundamental, mas no nico, de se alcanar o bem da vida (a dignidade).

    25 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988. 6. ed.rev.atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 26 NADER, Paulo. Filosofia do direito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 27 KANT, Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. Lisboa: 70, 1986, p. 77. 28 FUCHS, Mariane Kliemann. Igualdade ou indiferena? Qual o melhor caminho na busca pela dignidade?. 2008. 127f. Dissertao (Mestre em Direito) Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.

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    Desta forma, e pelo acima exposto, adotar-se- a corrente que entende ser a dignidade da pessoa humana inerente a qualquer ser humano desde seu nascimento, independente de qualquer caracterstica. Sendo assim, o ser humano poder desenvolver sua dignidade atravs da sua liberdade, que inerente ao conceito de dignidade, de forma a traar seu destino conforme se apresentarem as circunstncias da vida.

    3.1.2 Aproximao do conceito de dignidade da pessoa humana a contemporaneidade

    Diante das informaes j apresentadas a cerca do conceito de dignidade da pessoa

    humana, das quais possvel ter uma noo basilar acerca do significado desta dignidade, faz-se necessrio, para uma melhor compreenso, enfrentar rdua tarefa de encontrar um conceito que a represente da melhor forma, tendo em vista a necessidade de se dimensionar a sua rea de proteo.

    O professor Ingo Wolfgang Sarlet sustenta que, independente da doutrina entender que se trata de uma norma axiolgica aberta, ou seja, que no pode ser conceituada de maneira fixista e universal, tendo em vista que cada sociedade possui valores diferentes, e por se tratar de um conceito em constante construo e desenvolvimento. 29 Porm, isto no quer dizer, assim como tantos outros conceitos de contornos vagos e abertos, que no necessite de uma busca incessante pela fundamentao da dignidade da pessoa humana de forma a se manter o seu conceito em constante construo, para com isso alcanar o que, possivelmente, seria um conceito concreto.

    A Declarao Universal da ONU talvez seja o documento que, de forma concreta, nos fornea as ideias bases para a formulao do conceito de dignidade da pessoa humana em seu artigo 1: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. So dotados de razo e conscincia e devem agir em relao uns aos outros com esprito de fraternidade.30. Liane Maria Busnello Thom talvez, sem a pretenso de formular um conceito, mas em total consonncia com o que prev o artigo 1 da Declarao referida, traz, em um singelo pargrafo, alguns itens que so indispensveis para qualquer conceito de dignidade da pessoa humana. Vejamos:

    Cada ser humano merecedor de respeito e considerao, independente da crena, nvel social, intelectual, opo sexual e maneira de enfrentar a vida. O simples fato de ser humano basta para que sua dignidade seja garantida.31

    Parece-nos claro que no fora pretendido formular um conceito de dignidade da pessoa

    humana, at porque alguns itens que so imprescindveis para este conceito no foram mencionados. Um deles, se no o mais importante, a liberdade (entendida tambm por autonomia), que sob a perspectiva kantiana, elemento fundamental para este conceito.

    Cabe salientar que para a pessoa encontrar-se em pleno gozo de sua dignidade, o Estado deve atentar para com o respeito pelos demais direitos fundamentais anteriormente abordados neste trabalho, pois a dignidade da pessoa humana tem ampla ligao com estes direitos. Como demonstra Peter Hberle: 29 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimenses da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreenso jurdico-constitucional necessria e possvel. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimenses da Dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 30 NAES UNIDAS NO BRASIL. Declarao dos Direitos Humanos. Disponvel em: http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php. Acesso em: 06 de agosto de 2010. 31 THOM, Liane Maria Busnello. Princpio da dignidade da pessoa humana e mediao como instrumento de potencializao da dignidade nas rupturas dos casais em famlia. 2007. 149f. dissertao (Mestre em Direito) Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.

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    A maioria dos direitos fundamentais individualmente considerados marcada por uma diferenciada amplitude e intensidade no que diz com sua conexo com a dignidade humana. Os direitos fundamentais (individualmente considerados) subseqentes, assim como os objetivos estatais e as variantes das formas estatais, tm a dignidade como premissa e encontram-se a seu servio.32

    Para o professor Ingo Wolfgang Sarlet, esta dignidade assume uma condio dplice,

    sendo ao mesmo tempo limite (defensiva) e tarefa (prestacional) dos poderes estatais e da comunidade em geral. Adalbert Podlech (citado por Sarlet 2008), ao lecionar quanto condio dplice da dignidade da pessoa humana, tambm apresenta alguns itens que devero integrar seu conceito. Para ele a dignidade seria algo pertencente a cada ser humano e no poderia lhe ser retirada ou alienada (sendo este um elemento imutvel), sendo assim um limite para as atividades estatais. Em contrapartida, o Estado teria a tarefa de preservar a dignidade existente, bem como de dar condies para seu pleno exerccio e desfrute.33

    O professor Ingo Wolfgang Sarlet se manifesta contrrio concepo de Luhmann, que tido como principal representante da corrente que v a dignidade da pessoa humana como prestao, onde a pessoa alcanaria a dignidade atravs de suas condutas. O que ocorre que, a dimenso dplice da dignidade sustenta-se na autonomia (o poder do indivduo de autodeterminao da sua prpria existncia), e na necessidade de haver uma assistncia (proteo) do estado e da comunidade para com as pessoas que no possuem a capacidade de autodeterminao (Ex.: incapacidade mental). Sendo assim, possvel imaginar a situao em que o carter assistencial ir sobrepor autodeterminao, o que em hiptese alguma faria com que essa pessoa perdesse o direito de ser tratado com dignidade.34

    A ideia de Luhmann vai de encontro a tudo que foi dito anteriormente neste trabalho, assim tem-se como corretssima a opinio do professor Ingo Wolfgang Sarlet neste nterim, pois desta forma poderia-se pensar que, dependendo da atitude que a pessoa tomasse, poderia correr o risco de perder ou sequer adquirir sua dignidade, situao que completamente rechaada pela maioria da doutrina e impensvel sob a tica kantiana.

    Semelhante a dimenso dplice abordada anteriormente, tem-se a opinio do renomado doutrinador Ronald Dworkin, que entende ter a dignidade da pessoa humana uma voz ativa e passiva, sendo respectivamente a santidade e a inviolabilidade do seu direito.35 Devendo ser assistido e protegido pelo Estado e pela comunidade.

    Immanuel Kant ainda traz uma contribuio essencial para a formulao do conceito de dignidade da pessoa humana, pois est inerente a qualquer ser humano, e por isso no possvel descaracterizar a dimenso comunitria da dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas (intercomunicao com todas as pessoas). Sendo o prprio Kant a afirmar o carter intersubjetivo desta dignidade, diante do fato de todos os seres humanos serem iguais em dignidade, necessrio existir o respeito mtuo na comunidade.36

    32 HBERLE, Peter. "A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal". In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimenses da Dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 129. 33 PODLECH, Adalbert. Anmerkungen zu Art. I Abs I Grundgesetz, in: R. Wasserman (Org.), Kommentar zum Grundgesezt fr die Bundesrepublik Deutschland (Alternativkommentar), vol. II, 2 ed. Neuwied: Luchterhand, 1989. 34 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988. 6. ed.rev.atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 35 DWORKIN, Ronald. Domnio da vida: aborto, eutansia e liberdades individuais. So Paulo: Martins Fontes, 2003. 36 KANT, Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. Lisboa: 70, 1986.

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    O professor Ingo Wolfgang Sarlet salienta tambm a existncia do carter cultural desta dignidade, que nada mais que, sua construo (concepo) ter por base as experincias vividas pelas comunidades e pelas mais diversas geraes da humanidade.37

    O professor Sarlet, ousando formular um conceito de dignidade da pessoa humana que contenha a dupla perspectiva ontolgica e instrumental, sua caracterstica intersubjetiva e a sua dimenso dplice (negativa e positiva) assevera, tendo-a como:

    A qualidade intrnseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e considerao por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condies existenciais mnimas para uma vida saudvel,38 alm de propiciar e promover sua participao ativa e co-responsvel nos destinos da prpria existncia e da vida em comunho com os demais seres humanos.39

    Diante do magnfico conceito acima descrito, necessrio fazer a ressalva proposta pela Liane Maria Busnello Thom de que, apesar da dignidade ser igual para todos os seres humanos, os mesmos possuem diferenas substanciais que precisam ser reconhecidas e protegidas para que estes alcancem a plenitude da sua dignidade.40

    A promulgao da Constituio Brasileira tambm nos traz a afirmao, atravs do seu Art. 1, III,4142 que a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do Estado Democrtico. Desta forma tambm podemos afirmar que este Art. demonstra o dever do Estado para com o seu povo, no sentido de propiciar condies para que estes alcancem sua dignidade.

    Beatrice Maurer suscita que a existncia de um conceito de dignidade da pessoa humana incontestvel pode trazer efeitos deveras prejudiciais, pois alguns direitos defendidos por um determinado nmero de pessoas podero estar em desacordo com os direitos almejados por outra gama da sociedade, sendo um conceito completamente subjetivo e cada um defendendo seu direito.43 Como anteriormente foi mencionado, isso se deve construo do conceito de dignidade que em cada comunidade se dar de uma forma diferente e preconizar direitos diferentes. Diante disto, o professor Ingo Wolfgang Sarlet mencionou que a dignidade da pessoa humana se trata de um conceito aberto e em constante reformulao.

    37 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988. 6. ed.rev.atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 38 Como critrio aferidor do que seja uma vida saudvel, parece-nos apropriado utilizar os parmetros estabelecidos pela Organizao Mundial da Sade, quando se refere a um completo bem-estar fsico, mental e social, parmetro este que, pelo seu reconhecimento amplo no mbito da comunidade internacional, poderia igualmente servir como diretriz mnima a ser assegurada pelos Estados. 39 SARLET, Op. Cit., p63. 40 THOM, Liane Maria Busnello. Princpio da dignidade da pessoa humana e mediao como instrumento de potencializao da dignidade nas rupturas dos casais em famlia. 2007. 149f. Dissertao (Mestre em Direito) Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. 41 Art. 1 A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; 42 PRESIDNCIA DA REPBLICA. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurdicos. Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 01 de Agosto de 2010. 43 MAURER, Batrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In: Dimenses da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

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    A par destas mudanas, que devem ocorrer com a interpretao do que dignidade da pessoa humana, entende o professor Ingo Wolfgang Sarlet, que esta dignidade no deve ser considerada apenas inerente a natureza do ser humano, pois possui um sentido cultural na medida em que fruto de muito trabalho atravs de vrias geraes. Desta forma, a dignidade da pessoa humana no tem um conceito universal e fixo, e dificilmente existir uma frmula que a represente de forma universal, pois ser alvo permanente de reconstrues e repactuaes quanto ao seu significado e contedo.44

    3.1.3 Dignidade da pessoa humana como valor

    A dignidade da pessoa humana, conforme demonstrado anteriormente, caracteriza-se

    por ser um dos valores fundamentais do Estado Democrtico de Direito, valor este que tambm est presente nos princpios e regras. Porm, existem distines destes de valores que precisam ser esclarecidas, existindo tambm pontos de conexo entre os mesmos, onde um precisar do outro para uma melhor interpretao. Pretende-se, neste captulo, demonstrar a principal peculiaridade da dignidade como valor.

    Neste ponto do trabalho, tem-se o celebre doutrinador Robert Alexy como um dos principais doutrinadores a falar de forma contundente do tema, optando por dividir a norma em dois ramos, sendo as normas deontolgicas e axiolgicas. Aquelas se subdividem em regra e princpio os quais devem ser (dever-ser) aplicados sem a mensurao se bom ou ruim, apenas devendo ser cumpridas. 45 Voltar-se- abordar este tema em momento oportuno, preocupando-se neste momento em esclarecer o que dignidade da pessoa humana como valor (norma axiolgica), pois ser necessrio compreend-la para melhor compreender a dignidade como regra e princpio.

    J nas normas axiolgicas, encontram-se a dignidade como valor, que ao contrrio das regras e dos princpios, tem como seu pressuposto o conceito de bom, que poder ter diversas interpretaes para qualificar algo como bom. Assim como as normas deontolgicas se subdividem em regras e princpios, entende Robert Alexy que as normas axiolgicas se subdividem em regras de valorao e critrios de valorao,46 estes no sero aprofundados no nosso trabalho tendo em vista que a subdiviso no altera o contedo precpuo da dignidade como valor, sendo extremamente relevante para esta pesquisa apenas o fato da dignidade assumir tambm uma caracterstica valorativa, pois alm do carter jurdico normativo devemos atentar que, como fundamento do Estado Democrtico de Direito, a dignidade deve ser interpretada pela tica do que bom para a comunidade.

    O professor Ingo Wolfgang Sarlet entende que, pelo fato da dignidade da pessoa humana estar qualificada no Art. 1 da Constituio Federal, como princpio fundamental (em texto legal), transparece no conter apenas um carter tico e moral, constituindo uma norma jurdico-normativa que possui claramente um valor jurdico fundamental da sociedade.47 Desta forma, pode-se evidenciar um ponto de contato da norma deontolgica e axiolgica, diante desta intercomunicao, pretende-se demonstrar a seguir que, possivelmente, no seja o mais correto se fazer a proteo da dignidade da pessoa humana apenas pelas normas jurdico-normativas, devendo sempre atentar-se para as normas valorativas.

    Mariane Kliemann Fuchs entende ser importante destacar a dignidade como valor, observando seu carter hermenutico, pois no tem como se fazer uma interpretao da Constituio sem atentar para os valores por ela protegidos. Desta a forma, a dignidade no

    44 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988. 6. ed.rev.atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 45 ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. 46 ALEXY, Op. Cit. 47 SARLET, Op. Cit.

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    deve apenas ser protegida pelas regras e princpios normatizados na Constituio, devendo-se ter a devida ateno para o seu carter axiolgico, este que revela ser o mais apropriado para avaliar as aes ou omisses contra a dignidade, no apenas pelo que devido, permitido ou proibido (dever-ser, normas deontolgicas), mas sim pelo que bom.48

    No incio deste tpico menciona-se que as normas deontolgicas e axiolgicas possuem suas peculiaridades que as diferenciam, mas tambm possuem semelhanas, ou seja, diante do que foi exposto, pode-se claramente identificar que as regras e os princpios primeiramente foram valores que, para posteriormente, serem jurdico-normatizados (texto legal), passando a serem consideradas normas deontolgicas detentoras da principal caracterstica da norma axiolgica (o que bom), porm no so todas as normas axiolgicas (ou seja, os valores) que ostentam um carter normativo.

    3.1.4 Dignidade da pessoa humana como regra e princpio

    Como j foi dito acima, as normas deontolgicas (regras e princpios), diferente das

    normas axiolgicas (valores), encontram-se no campo das normas jurdico-normativas e concentram sua efetividade no dever ser, ou seja, a simples aplicao ou no da norma. Robert Alexy entende haver distines entre regras e princpio quanto a suas qualidades. As diferenas apontadas por Alexy so:

    O ponto decisivo para a distino entre regras e princpios que os princpios so normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possvel, dentro das possibilidades jurdicas e reais existentes. Portanto, os princpios so comandos de otimizao, que esto caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida adequada de seu cumprimento no s depende das possibilidades reais, mas tambm das jurdicas. O mbito das possibilidades jurdicas determinado pelos princpios e regras.49

    Pode-se identificar pelo acima exposto que os princpios no possuem uma extenso determinada, devendo ser levados em considerao e aplicados na maior medida possvel, de acordo com o caso concreto. Podendo, tambm, ser aplicado em graus diferenciados para obter um grau de excelncia maior, ou seja, poder ter sua aplicao de forma menos incidente, tendo como limite para esta aplicao os princpios e as regras (colidentes). Assim, pode-se observar que os princpios apresentam um carter de relativizao alto, podendo, desta forma, se adequar frente a um caso concreto.

    Robert Alexy, ao estabelecer a diferena das regras para com os princpios, estabelece: As regras so normas que s podem ser cumpridas ou no. Se uma regra vlida, em seguida, faz-se exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contem determinaes no mbito ftico e juridicamente

    48 FUCHS, Mariane Kliemann. Igualdade ou indiferena? Qual o melhor caminho na busca pela dignidade? 2008. 127f. Dissertao (Mestre em Direito) Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 49 ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p86. No original: El punto decisivo para la distincin entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurdicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimizacin, que estn caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no slo depende de las posibilidades reales sino tambim de las jurdicas. El mbito de las posibilidades jurdicas es determinado por los principios y reglas.

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    possvel. Isto significa que a diferena entre regras e princpios qualitativa e no gradual. Toda a norma ou uma regra ou um princpio.50

    Diante do acima exposto, pode-se dizer que a regra ser ou no aplicada no caso concreto, pois sendo esta vlida, no h que se falar em haver outra mais adequada. Robert Alexy finaliza afirmando que toda a norma ser uma regra ou um princpio, afirmao esta que entendemos ser adequada.

    Robert Alexy, com o objetivo de diferenciar normas de princpios, estabeleceu o critrio de conflitos para diferenci-los. Para resolver um conflito de regras ser necessria a incluso de uma clusula que ir eliminar o conflito, declarando pelos menos uma ou mais regras invlidas. Quando no for possvel a incluso de uma clusula, pelo menos uma ou mais regras devero ser declaradas invlidas e eliminadas do ordenamento jurdico (a regra vale ou no vale). Este problema pode ser solucionado com uma regra posterior (que invalida a anterior) ou uma regra especial (que sobrepe regra geral), podendo ser tambm solucionado de acordo com a importncia das regras. J a coliso dos princpios ter uma soluo totalmente diferente, quando um princpio entrar em coliso com outro, um deles ter que ceder perante o outro. Porm, isso no quer dizer que o princpio que teve que ceder ir tornar-se invlido ou mesmo ser acrescentado alguma clusula de exceo. Ressalvando que, dependendo do caso concreto, o princpio que cedeu poder, de forma inversa, se sobrepor ao outro, ou seja, conforme o caso concreto o princpio ter sua valorao diferenciada. 51 Desta forma, o conflito de regras leva uma delas a invalidez; j os princpios, como s entram em coliso os vlidos, ser considerado o de maior peso diante do fato concreto.

    Diante do que est disposto no Art. 1, inciso III, da Constituio Federal Brasileira de 1988, entende o professor Ingo Wolfgang Sarlet necessrio ressaltar que este dispositivo no esta aqui concedendo o direito dignidade da pessoa humana, estando apenas reconhecendo um direito pr-existente, pois como j fora mencionado em outras oportunidades, esta dignidade no poder ser concedida e sim reconhecida, da mesma forma que, sob hiptese nenhuma, poder o ser humano perder sua dignidade, mesmo que o fato que tenha provocado seja o mais indigno possvel, porm poder ser violada. Assim, entende o professor Ingo que a utilizao do termo direito dignidade equivocado, no sentido estrito da concesso de direito, pois desta forma poderia ser sustentada a sua inexistncia.52

    3.1.5 Autonomia como fundamento da dignidade da pessoa humana

    Este ttulo de suma importncia para que seja alcanado o objetivo deste trabalho,

    pois como pde-se observar, a autonomia, sendo fundamento para a dignidade da pessoa humana, faz com que as atitudes das pessoas prescindam interveno do Estado, sob uma tica de proteo da dignidade, ressaltando novamente que extremamente difcil se defender a ideia de um carter absoluto como j fora mencionado anteriormente.

    Em diversas passagens deste trabalho, suscitou-se a autonomia como imprescindvel para o tema ora abordado, o que vem a demonstrar sua importncia ao se falar em dignidade da pessoa humana. Immanuel Kant se mostra, mais uma vez, como um dos doutrinadores que mais colabora com o tema ao tratar a relao da autonomia e da liberdade como forma de

    50 ALEXY, Robert. Robert. Teora de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. No original: En cambio, las reglas son normas que slo puedem ser cumplidas o no. Si un regla es vlida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni ms ni menos. Po lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el mbito de lo fctica y jurdicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y princpios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio. 51 ALEXY, Op. Cit. 52 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988. 6. ed.rev.atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

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    alcanar-se a moralidade. Assim, Leonardo Agostini, em outras palavras, entende que para afirmar que o ser humano tem dignidade, preciso mostrar que autnomo, o que implica, necessariamente, ser livre..53

    J que para alcanar a dignidade o ser humano precisa ser livre, Immanuel Kant considera o conceito de liberdade a chave para explicar a autonomia (autonomia da vontade), entendendo ser este um atributo de todo o ser racional dotado de vontade. Desta forma afirma Kant:

    A vontade uma espcie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem; assim como necessidade natural a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de serem determinados atividade de influncia de causas estranhas.54

    Diante desta afirmao, entende-se ser a liberdade o meio pelo qual o ser humano coloca em prtica sua autonomia de vontade, sendo esta a forma pela qual poder agir e almejar alcanar sua dignidade. Por outro lado, nesta afirmao est demonstrada a ntima e imprescindvel ligao entre a liberdade e a autonomia, pois sem aquela no poder o ser humano exercer esta, ou seja, se para alcanar a dignidade o ser humano precisa ser livre, logo ser necessrio que ele tambm seja autnomo.

    Desta forma, entende Immanuel Kant que, se a moralidade (ou seja, liberdade/autonomia) deve servir como lei enquanto produto do agir de um ser racional, deveria tambm ser interpretada desta forma a todos os seres racionais. Assim, a todo ser humano racional devemos atribuir liberdade, tendo em vista que esta a forma sob a qual poder agir segundo suas prprias vontades. O que torna possvel esta autonomia de vontade o imperativo categrico que diz: Age apenas segundo uma mxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.55

    Este imperativo categrico, mesmo sendo sucinto, nos mostra que esta linha de atitude sendo seguida pelas pessoas tornaria o produto da sua autonomia respeitado por toda a comunidade e pelo Estado, pois dela decorreria uma atitude exigvel e possivelmente aplicvel por todos. Assim, agindo apenas de forma a querer que todas as pessoas tambm o faam, o ser humano estaria fazendo com que o produto da sua autonomia fosse interpretado como lei para todos.

    Ainda neste sentido, Immanuel Kant, entendendo que a autonomia da vontade deve ser interpretada como a faculdade do agir presente no ser racional e, sendo esta, por conseguinte produto da sua razo fim, e sendo assim, deve valer para todos os seres racionais. Vejamos:

    Ora digo eu: - O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, no s como meio para o uso arbitrrio desta ou daquela vontade. Pelo contrrio, em todas as suas aes, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim.56

    53 AGOSTINI, Leonardo. Autonomia: Fundamento da dignidade humana em Kant. 2009. 101f. Dissertao (Mestre em Filosofia) Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. p54. 54 KANT, Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. Lisboa: 70, 1986. p93. Nesta mesma pgina Kant faz referncia liberdade constante nesta afirmao como sendo negativa, e que dela decorre um conceito de liberdade positiva. Estes conceitos de liberdade positiva e negativa no sero abordados neste trabalho devido a no serem alvos e por no influenciarem no objetivo desta pesquisa. 55 KANT, Op. Cit. p59. 56 KANT, Op. Cit. p68.

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    Considerando a ideia do ser humano ser um fim em si mesmo, ou seja, as suas atitudes

    so produtos da sua razo (quando for um ser humano racional) e, desta forma devendo ser interpretado pelo Estado e pela sociedade como produto da autonomia da vontade desta pessoa, ou seja, devendo ser considerada lei para as outras pessoas, desde que no esteja interferindo na dignidade da pessoa humana alheia, at porque estas tambm devem ser consideradas como um fim em si mesma. O produto desta autonomia de vontade tem que ter um valor considervel frente s outras pessoas, pois expressa a mais digna e legtima vontade do ser humano. E, desta forma, deve ser respeitada e aceita por parte da sociedade e pelo Estado.

    Entendendo a autonomia da vontade como lei quando proveniente de seres humanos racionais, Leonardo Agostini, ao tratar das pessoas com algum tipo de alienao mental (portanto desprovidos de racionalidade), trata a dignidade da pessoa humana como absoluta pelo simples fato da pessoa ser um fim e si mesma, no podendo ter sua dignidade perdida ou graduada, pois, desta forma, perderia seu valor absoluto. Assim, algum que, por alguma patologia, no puder desfrutar de sua autonomia plena, deve ser considerado por aqueles que estiverem em pleno gozo de suas autonomias como fim em si mesmo, o que faria isso ser possvel o respeito.57

    bem verdade que Immanuel Kant no fala sobre as pessoas detentoras de alguma alienao mental em sua obra Fundamentao da Metafsica dos Costumes, entretanto como, j fora mencionado anteriormente, no se trata da pessoa ter dignidade em tendo autonomia, e sim, da pessoa ser um fim em si mesma e, portanto, devendo ser respeitado seu direito a dignidade da pessoa humana.

    Assim, conclu-se que, para o ser humano alcanar sua dignidade, necessrio que ele seja autnomo, e como a autonomia subentende a liberdade atravs do agir, s assim o ser humano alcanar a moralidade e, por conseguinte, a dignidade da pessoa humana.

    3.2 AUTONOMIA PRIVADA

    O entendimento de autonomia privada que pretende-se demonstrar neste ttulo tem

    ntima ligao e o seu pice com Immanuel Kant. At porque, foi ele quem interpretou a autonomia da vontade como um fim, devendo ser respeitada pela comunidade e pelo Estado.

    Observou-se no ttulo anterior a importncia da autonomia para se alcanar dignidade e sua ntima relao com a liberdade, ou seja, ela faz parte do princpio da dignidade da pessoa humana, e assim como esta tambm foi interpretada inicialmente como um direito indisponvel e de carter absoluto. Entretanto, como j demonstrou-se anteriormente, assim como a dignidade da pessoa humana, a autonomia privada, apesar de ser um direito indisponvel frente ao caso concreto, ter uma parcela de disponibilidade.Tem-se que ter como caracterstica destes direitos, a possibilidade de relativizao.

    Diante das possibilidades de relativizao da autonomia, preciso encontrar um entendimento atual acerca da autonomia privada, para que dela possa-se encontrar e delimitar seu carter de disposio. Assim, nesta parte da pesquisa, tem-se a inteno de encontrar os contornos atuais da autonomia privada e suas limitaes.

    57 AGOSTINI, Leonardo. Autonomia: Fundamento da dignidade humana em Kant. 2009. 101f. Dissertao (Mestre em Filosofia) Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.

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    3.2.1 Contornos atuais acerca da autonomia privada Com certeza trata-se de uma tarefa rdua definir autonomia privada frente s vrias

    definies que dela possam surgir. Por diversas vezes, comentou-se neste trabalho acerca da autonomia e a autodeterminao (capacidade de decidir ou ter racionalidade plena), que nada mais que a faculdade do ser humano em agir segundo seus interesses e projetos de vida, pois estes mostram-se de suma importncia para que o ser humano alcance sua dignidade.

    Luiz Edson Fachin entende que a concepo civilstica clssica tinha como estrutura principal a autonomia e a liberdade, alm da propriedade. A autonomia reconhecida aos indivduos se traduzia na liberdade como valor individual. A propriedade exercia o papel de senhoria dos bens, sendo a autonomia privada entendida como faculdade de autorregulamentao dos prprios interesses.58 Ressaltando que, nesta concepo clssica, a autonomia tinha um enfoque maior para as questes que envolviam bens, ou seja, grande parte das normas que regulavam as relaes privadas tratava de questes puramente patrimoniais. Neste mesmo sentido, entende Daniel Sarmento: antes, prevalecia o ter sobre o ser, mas agora vai operar-se uma inverso, e o ser converter-se- no elemento mais importante do binmio.59

    Roxana Cardoso Brasileiro Borges entende que o ser humano, titular do direito de autonomia e no exerccio da mesma, visa disciplinar as relaes fticas e concretas do seu cotidiano, criando, modificando e extinguindo situaes jurdicas. Desta forma, disciplina as regras que iro regular as situaes especficas da sua vida, regras estas que devero estar em consonncia com o ordenamento jurdico para serem vlidas, no devendo atingir direitos de terceiros e no configurando um ato ilcito.60

    Alm disto, Daniel Sarmento entende que, pelo fato do direito privado centrar-se na pessoa humana e nos seus valores existenciais, o individualismo foi superado. Entende tambm que esta personalizao no incompatvel com o direito privado, pois da mesma forma que este concede direitos, tambm elenca deveres para com seus semelhantes, at porque, agora, esta pessoa concebida como um ser social.61

    O prprio Daniel Sarmento explica que esta socializao do direito privado faz referencia incluso de valores solidrios, pois, diante das desigualdades que por ventura venham a existir, ocorre a necessidade de proteo das partes mais fracas nas relaes intersubjetivas. Ressaltando que no se est dando menos ateno liberdade, porm ela enriquece com o surgimento da necessidade de atentar-se para a igualdade material e solidariedade.62

    Pelo que foi exposto at este momento, pode-se observar que a autonomia privada ampliou seus horizontes, e desta forma existem alguns autores (como Giovanni Ettore Nanni) que entendem que a autonomia da vontade (que daria a impresso de no haver limite) foi superada pela autonomia privada, e esta por si s no capaz de criar direito, necessitando tambm que a atitude esteja legitimada pela ordem pblica (interesses fundamentais que o nosso sistema jurdico procura tutelar), ou seja, havendo certos limites que necessitam estar em consonncia com os valores fundamentais. Entretanto, entende-se como sendo apenas uma questo didtica a mudana da nomenclatura de autonomia de vontade para privada, pois no

    58 FACHIN, Luiz Edson. Questes de Direito Civil Brasileiro Contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 59 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p 91. 60 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2. ed. rev. So Paulo: Saraiva, 2007. 61 SARMENTO, Op. Cit. 62 SARMENTO, Op. Cit.

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    nos parece que tenha havido uma superao de um pelo outro, e sim, que, nos dias atuais, se faz uma reinterpretao do seu sentido e da sua aplicao prtica.

    A concepo da autonomia privada entendida pelo doutrinador Luiz Edson Fachin como uma certa liberdade, pois trata da relao dos seres, uns com os outros, numa perspectiva relacional. Este fato no a leva para sua destruio ou diminuio, acabando apenas por superar uma compreenso ultrapassada, ocasionando um desprendimento da compreenso histrica do individualismo exagerado e passando a adotar a teoria da coexistencialidade.63Assim, pode-se perceber que a interpretao contempornea de autonomia privada deve atentar para as relaes interpessoais, onde vo estar, frente a frente, direitos fundamentais protegidos pelo ordenamento jurdico.

    Neste mesmo sentido, o professor Ingo Wolfgang Sarlet, entendendo ser esta uma situao peculiar, sustenta que:

    A natureza peculiar desta configurao decorre justamente da circunstncia de que os particulares envolvidos na relao jurdica so, em princpio, ambos (ou todos) os titulares de direitos fundamentais, de tal sorte que se impe a proteo dos respectivos direitos, bem como a necessidade de se estabelecer restries recprocas, estabelecendo-se uma relao de cunho conflituoso (...).64

    Diante da situao em que se encontrem duas ou mais pessoas detentoras dos mesmos direitos, at porque todos so iguais em dignidade, necessrio ponderar qual deve prevalecer perante o outro, o que demonstra a impossibilidade do carter absoluto. Referente opinio do professor Ingo Wolfgang Sarlet, da necessidade de se estabelecer restries a autonomia privada, este tema ser mais bem abordado no ttulo seguinte, onde iremos falar da autonomia privada e suas limitaes, mas extremamente necessrio.

    O doutrinador Luiz Edson Fachin, ao abordar o princpio da autonomia da vontade, entende que esta autonomia est vinculada s relaes humanas voluntrias que representam o carter de autorregulamentao diante do interesse privado. Sendo assim:

    O princpio da autonomia da vontade significa exatamente que os sujeitos, ao entabularem as suas relaes jurdicas, o fazem atravs das aes humanas voluntrias, quer seja no negcio no patrimonial, quer no contrato, quer nos atos jurdicos em sentido estrito. Notadamente a autonomia da vontade dedicada ao patamar dos negcios jurdicos, o que se entende por espao de auto-regulamentao dos interesses privados.65

    Entende-se, assim, que o doutrinador Luiz Edson Fachin conceituou a autonomia privada (da vontade) como sendo a capacidade de autorregulamentao do interesse privado presente nas relaes humanas voluntrias. Cabe ressaltar, ousando complementar este conceito, que a autonomia privada se trata de um princpio geral do ordenamento, pois subtende a dignidade da pessoa humana, e, desta forma, deve ser observada para alm dos negcios jurdicos, ou seja, dedicada obteno da dignidade atravs da liberdade no agir, e como j fora dito antes, a torna um valor basilar para o ordenamento jurdico.

    63 FACHIN, Luiz Edson. Questes de Direito Civil Brasileiro Contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 64 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas consideraes em torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A constituio concretizada: construindo pontes com o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p112. 65 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crtica do Direito Civil. 2.ed.rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p71.

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    Assim, conclui-se, ressalvando que a dignidade da pessoa humana que garante a autonomia privada, mas tambm esta que apresenta limitaes prpria liberdade de agir. Diante disto, apenas frente do caso concreto que poder se avaliar a relevncia da autonomia (vontade) e, para isso, faz-se necessrio ter uma melhor compreenso acerca das suas limitaes.

    3.2.2 Autonomia privada e suas limitaes

    Como dito anteriormente, a compreenso contempornea de autonomia privada gera

    direitos, mas tambm gera deveres. Alguns desses deveres passam pelos limites condizentes desta liberdade concedida.

    Parece claro que a ordem pblica um limite para a autonomia, at porque as atitudes no podem ser contra os interesses tutelados pelo sistema jurdico. Outra limitao que no d margem para interpretaes dbias a lei, pois a pessoa que, atravs da sua liberdade, venha contrariar uma norma jurdica, estar incorrendo em um ilcito civil ou penal. E por fim, aparecem como derradeiros limites a moral e os bons costumes, estes que do margem para discusso, devido as suas vrias interpretaes.

    Vrias so as definies de ordem pblica, mas em sua maioria remetem para os interesses ou princpios gerais do ordenamento jurdico. Os limites autonomia privada recaem principalmente sobre as leis, pois como j visto, o prprio ordenamento jurdico que reconhece a autonomia dos seres humanos, faculdade de deciso que s ser reconhecida se for operada dentro dos limites que a norma jurdica estabelece, ou seja, a simples faculdade do ser humano decidir o que melhor para si no ser o suficiente para ultrapassar estas barreiras, necessitando que o seu agir esteja em conformidade com os preceitos legais.

    Entrar-se- agora numa seara dos limites da autonomia privada que suscita muitas discusses, devido ao fato de possibilitarem interpretaes diversas. Est-se falando, num primeiro momento da moralidade ou imoralidade dos atos cometidos como limite para a liberdade do indivduo.

    Parte da doutrina (como Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp e Giuseppe Stolfi dentre outros), ao tentar desenvolver a moral como limites da autonomia privada, vinculam o seu conceito aos bons costumes. Alegam que o ato seria imoral, quando atentatrio aos bons costumes, ou quando fosse considerado imoral pelo pblico. Assim, mostra-se visvel a miscigenao de ideias nas quais os conceitos so plenamente convergentes, at porque se o ato imoral atentar contra os bons costumes, o que est ocorrendo a inobservncia dos bons costumes.

    Diante disto, sero tratados apenas dos bons costumes e consequentemente da moral, pois parte integrante deste (no separadamente). Trata-se de um conceito bastante subjetivo, diante de uma sociedade diversificada e multicultural.

    Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Sousa entende que bons costumes a base sociolgica que se traduz nos usos e costumes que a sociedade, com base no seu conjunto de regras morais, valora como bons. Diante da dificuldade em se estabelecer um conceito plenamente aceito por todos, o doutrinador afirma que se deve ter uma cautela rigorosa para se limitar a atuao, sob o argumento de que estaria violando os bons costumes.66

    O doutrinador acima citado colabora com um conceito impreciso, pois como j foi dito anteriormente, ocorrer uma variao do que so bons costumes, de acordo com a sociedade que estiver inserida. Porm, colabora com a afirmao preciosa de que deve ser levada em considerao sempre quando bons costumes for o argumento. At porque est-se tratando de um conceito impreciso e de difcil delimitao. 66 SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Ed, 1995. 703 p.

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    Portanto, entende-se que a limitao da autonomia privada deve passar por preceitos constitucionais, principalmente por esta autonomia decorrer da dignidade da pessoa humana. Cabe ressaltar que necessrio ter a devida ateno e observao, com clareza, para com as peculiaridades do caso concreto. Diante disto, tem-se como mais correto afastarmos os bons costumes como critrio de limitao da autonomia, devido a sua impreciso. Assim, parece apropriado a utilizao da ordem pblica e das leis, bem como dos preceitos constitucionais para limitarmos a autonomia privada.

    4 EFICCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E ATUAO DO ESTADO

    Nesta derradeira parte da pesquisa, sero identificadas as formas de atuao que o

    Estado disponibiliza para intervir nas relaes privadas, bem como identificar de que forma se d a eficcia dos direitos fundamentais nas relaes privadas. Trata-se de um tema de grande relevncia pesquisa, pois quanto eficcia (vinculativa) dos particulares aos direitos fundamentais, a doutrina pacfica, mas necessria a compreenso de que forma se d essa vinculao, para ento entrar-se na seara das formas de atuao do Estado nestas relaes.

    Como j referiu o artigo 5, 1 da Constituio Federal de 1988: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata (direta).67 Mas, como de conhecimento geral, a constituio precipuamente foi concebida para defender os particulares frente ao Estado, desta forma, tem-se que aprofundar esta situao de forma a verificar se esta aplicao a mais correta para as relaes privadas.

    Diante disso, analisar-se- a atuao do Estado nas relaes privadas, pois atravs do seu poder de polcia, poder e dever atuar nas relaes que afrontem princpios constitucionais. Porm, assim como j foi visto nos limites da autonomia privada, o Estado tambm tem limites para sua atuao, devendo respeitar os preceitos legais.

    4.1 EFICCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAES ENTRE

    PARTICULARES Resta evidente, diante do que foi at o presente momento abordado, que os direitos

    fundamentais exprimem valores que o Estado deve respeitar, bem como promover e proteger. Inevitavelmente estes valores atingem o pblico e privado, ou seja, vinculando tambm as relaes privadas aos direitos fundamentais. Desta forma, os direitos fundamentais visam proteger o indivduo perante possveis intervenes extremadas do Estado, como tambm compete a este intervir nas relaes privadas, quando houver algum ato atentatrio aos preceitos constitucionais partindo de outro ente privado.

    Diante dos ensinamentos de Juan Maria Bilbao Ubillos (citado por Sarmento 2006), e que segundo o doutrinador Daniel Sarmento, seria um dos estudos mais completos acerca do assunto ora abordado, passar o sujeito privado para a posio de sujeito passivo dos direitos fundamentais, posio esta ocupada precipuamente pelo Estado (poderes pblicos em geral), no seria a forma mais correta de se proceder. Ocorre que no h como comparar o regime jurdico dos poderes pblicos com o indivduo, que detentor de direitos fundamentais.68

    Denominar-se- eficcia vertical dos direitos fundamentais no mbito privado, quando envolver a vinculao do ente pblico (entidades estatais) aos direitos fundamentais. Esta eficcia (que envolve o as relaes particular-Estado), , perante a doutrina, a dimenso

    67 PRESIDNCIA DA REPBLICA. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurdicos. Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 01 de Agosto de 2010. 68 UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La Eficacia de los Derechos Fundamantales frente a Particulares. Madri: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, 1997.

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    menos controversa, tendo em vista que, virtualmente, foi superada a teoria que negava a vinculao de forma direta do legislador privado aos direitos fundamentais.69

    A eficcia vertical, por se tratar de uma forma de fcil compreenso e aceita por parte majoritria da doutrina, para no dizer por toda, no receber maior ateno. Assim, de forma mais aprofundada, abordar-se- as mincias da eficcia dita horizontal, que, segundo o professor Ingo Wolfgang Sarlet, continua gerando controvrsia. Esta eficcia preocupa-se especificamente com a vinculao das relaes entre particulares, em relao aos direitos fundamentais. Resta evidente que a denominao horizontal pretende representar a ideia dos particulares estarem em um grau de paridade nas suas relaes, mas como ser visto a seguir, no se trata de uma terminologia incontroversa.

    Segundo o professor Ingo Wolfgang Sarlet, este aspecto de eficcia j obteve diversas denominaes, tanto na doutrina como na jurisprudncia. Os mais utilizados a denominavam como eficcia privada, eficcia em relao a terceiros e eficcia horizontal. O professor elenca alguns motivos para no serem adotadas tais determinaes, dentre elas ressalta-se o fato de terem nomenclaturas muito genricas e que no abordam o problema central, e o mais complexo aborda uma possvel existncia de desigualdade mesmo na terminologia eficcia horizontal, que pressupem uma igualdade, pois se tratando de uma relao em que se encontre o particular frente a um poder social (tambm um ente privado), depara-se com uma desigualdade semelhante ao que ocorre quando o particular est frente ao Estado, desta forma, estaramos diante de uma natureza vertical.70

    Assim como fez o professor Sarlet, optamos pela terminologia eficcia dos direitos fundamentais nas relaes entre particulares, em detrimento de outras expresses mais utilizadas, tendo em vista a generalidade com que representam o tema. Trata-se de uma expresso mais fidedigna aos propsitos da pesquisa e do que se est pretendendo representar.

    Na esteira do que leciona Robert Alexy, que entende ser de suma importncia abordar a forma como e em que medida (alcance) se d a vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. Ambas as situaes apresentam peculiaridades, por tratarem de uma relao, onde ambos os plos sero titulares de direitos fundamentais, diverso do que ocorre quando estamos diante do particular e o Estado.71

    Aps estas breves consideraes acerca da eficcia dos direitos fundamentais nas relaes entre particulares, est formado o alicerce para que, possa-se, ento, desenvolver as diversas teorias que abordam a aplicao desta eficcia de forma direta, indireta ou sequer aplic-la.

    4.1.1 Teoria da negao da eficcia dos direitos fundamentais nas relaes privadas, a

    state action e a convergncia estadista A teoria da negao j foi superada pela doutrina e pela jurisprudncia, que,

    praticamente, de forma unnime, entendem que os direitos fundamentais devem ser aplicados nas relaes entre particulares. Porm, como se trata de uma teoria que obteve uma importncia considervel, merece que seja abordada e clarificada. Assim, como a maioria dos ensinamentos em direito constitucional, esta teoria tambm teve seu bero no direito alemo.

    Um dos argumentos de quem adotava a teoria da negao dava conta que a eficcia horizontal dos direitos fundamentais acabaria com a autonomia privada. O direito privado seria absorvido pelo constitucional, conferindo um poder extremado aos juzes, em detrimento

    69 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas consideraes em torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A constituio concretizada: construindo pontes com o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 70 SARLET, Op Cit.. 71 ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

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    do legislador. Na Alemanha, a corrente que negava a vinculao dos particulares aos direitos fundamentais praticamente desapareceu aps o Tribunal Constitucional Federal alemo, em diversas decises (proferidas na dcada de 50), reconhecer a eficcia horizontal.72

    no direito americano (EUA) que esta teoria foi largamente difundida, praticamente aceita por toda a doutrina e jurisprudncia. Entendem que os direitos fundamentais previstos na sua Carta de Declarao dos Direitos do Cidado, impem restries apenas contra o Estado (poderes pblicos), no se fazendo valer nas relaes entre particulares. Assim, estabeleceram duas premissas: que a Constituio vincula apenas o Estado (poderes pblicos), permanecendo inalterada at hoje; e que a competncia para legislar estas situaes de competncia do legislador estadual (Estado no federativo). Esta premissa recebeu alteraes no sentido do Estado (Unio) ter a competncia para legislar sobre os direitos humanos.73

    Ressalvando a 13 Emenda, que probe a escravido, os defensores estadunidenses se amparam na literalidade do texto, que no prev a vinculao os particulares. Porm, de saber comum que, por vezes, a pura interpretao literal, apesar de fornecer uma segurana jurdica maior, no a mais apropriada quando se fala em normas jurdicas.

    Cabe ressaltar que na prpria state action, quando o indivduo estivesse atuando tipicamente como ser estatal ou em outras situaes especficas, estariam sujeitos s limitaes constitucionais. Semelhante desigualdade que apresentou-se anteriormente quando falou-se da eficcia horizontal.

    A teoria da convergncia estadista, desenvolvida por Jrgen Schwabe, na Alemanha, praticamente sustenta que a autonomia privada produto de uma autorizao estatal, e por isso, as ofensas produzidas por ela seriam de autoria do Estado. Tem como base o fato que o prprio Estado teria o dever de proteger os direitos fundamentais. Ocorre que o legislador privado quem tem uma vinculao direta aos direitos fundamentais, precisando, assim, fundamentar suas leis, e desta forma, desnecessria a vinculao dos direitos fundamentais nas relaes entre particulares, partindo da teoria objetiva dos valores constitucionais presentes nas concepes indiretas e diretas que sero vistos a seguir.74

    No d para considerar a teoria da convergncia estadista uma negao total vinculao dos particulares aos direitos fundamentais, pois, no nosso entendimento, ocorre uma vinculao camuflada. Observa-se que, para Schwabe, os particulares no esto diretamente vinculados, mas o direito privado a quem esto diretamente ligados, na sua concepo, estariam vinculados aos direitos fundamentais, desta forma, os particulares, de uma forma camuflada, estariam vinculados aos direitos fundamentais de qualquer forma.

    Resta claro que ambas as teorias buscam proteger ao mximo a autonomia privada, ligadas interpretao clssica dos direitos fundamentais, na qual estes no se comunicavam com os particulares. Pregam a ideologia da separao total do pblico do privado.

    A teoria da negao vinculao dos particulares no tem expresso entre ns e, como observa-se, esto sofrendo modificaes de forma a se adequarem aos dias atuais. A teoria da convergncia estadista alem perdeu sua fora quando o judicirio reconheceu a eficcia horizontal. J a teoria da state action vem sofrendo alteraes, de forma a expandir o poder pblico para abarcar o particular quando estiver atuando em atividades tipicamente estatais. Diante do exposto, nos parece claro que no so as teorias mais adequadas a se seguir.

    72 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 73 SARMENTO, Op. Cit. 74 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas consideraes em torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A constituio concretizada: construindo pontes com o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

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    4.1.2 Teoria da eficcia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relaes particulares Como dito anteriormente, esta teoria tambm tem seu bero no direito alemo. Foi

    desenvolvida e sustentada por Hans Carl Nipperdey, que defende uma aplicao direta dos direitos fundamentais nas relaes privadas, sem a necessidade de que o legislador proceda alguma intermediao entre o direito pblico e privado.

    A vinculao direta encontra respaldo para sua aplicao nas relaes entre particulares, pelo fato da constituio possuir fora normativa no se poderia aceitar que o direito privado agisse s margens da Constituio, no se admitindo a vinculao nica e exclusiva do poder pblico.75 O professor Ingo Wolfgang Sarlet defende sua aplicao sem nenhuma adaptao.

    O doutrinador Daniel Sarmento diz que Hans Carl Nipperdey justifica sua teoria tendo em vista que os riscos que rondam os direitos fundamentais do indivduo no provem apenas do Estado. Entendendo que, a opo pelo Estado Social acabaria por reconhecer que na contemporaneidade, os poderes sociais e os prprios particulares (terceiros) apresentam riscos, desta forma, os direitos fundamentais tambm atuariam nas relaes privadas.76

    A teoria da eficcia direta entende que a vontade da Lei Fundamental proteger a liberdade ampla. Assim, os direitos fundamentais, que precipuamente visavam proteger o particular do Estado, assumem a funo tambm de proteger o particular de seu semelhante ou at mesmo de poderes sociais, acarretando uma proibio de qualquer de seus direitos fundamentais. Diante desta funo, os direitos fundamentais no careceriam de qualquer modificao para serem aplicados nas relaes entre particulares.77 Posio que tambm defendida pela ministra Ellen Gracie do Supremo Tribunal Federal:

    EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSO DE SCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITRIO. EFICCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAES PRIVADAS. As violaes a direitos fundamentais no ocorrem somente no mbito das relaes entre o cidado e o Estado, mas igualmente nas relaes travadas entre pessoas fsicas e jurdicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituio vinculam diretamente no apenas os poderes pblicos, estando direcionados tambm proteo dos particulares em face dos poderes privados. (...)78

    Por esta tica, os direitos fundamentais, que historicamente foram criados para proteger o particular do Estado, assumiriam um novo papel. A evoluo da sociedade exige que o Estado proteja seus direitos fundamentais, e desta forma, a funo que era apenas protetiva frente ao Estado, se transformou e tornou efetiva tambm nas relaes entre particulares, pois estes representam, agora, um risco potencial aos direitos fundamentais.

    No entanto, como leciona o prprio Robert Alexy, os adeptos desta teoria no renegam a existncia de especificidades quanto a sua aplicao. Uma delas, se no a mais importante,

    75 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas consideraes em torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A constituio concretizada: construindo pontes com o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 76 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 77 SARLET, Op. Cit. 78 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinrio n.201819. Relatora: Ellen Gracie. Julgado em: 11/10/2005, Publicado no DJ de 27/10/2005, PP-00064. Acessado em: 13/10/2010. Disponvel em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=eficcia%20horizontal&base=baseAcordaos

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    que Alexy entende que deve ser levada em conta a ponderao do suposto direito fundamental atingido, com a autonomia privada do particular envolvido no caso concreto.79

    Assim, conclui-se que a teoria direta ou imediata, apesar de no prevalecer na Alemanha que foi seu bero, foi adotada em outros pases tambm (como Itlia, Espanha, dentre outros). Mas deve ser concebida com algumas alteraes, para que possa atuar de forma efetiva nas relaes entre particulares, at porque ser necessrio relativiz-la de forma a ponderar os direitos fundamentais atingidos com a autonomia privada. Desta forma, no podendo ser aplicada da forma que fora concebida, devendo atentar para algumas especificidades.

    4.1.3 Teoria da eficcia indireta ou mediata dos direitos fundamentais nas relaes

    particulares Trata-se de mais uma teoria que, tem seu bero no direito alemo, foi desenvolvida por

    Gnter Drig. Tornou-se a eficcia dominante no sistema jurdico da Alemanha, sendo, nos dias, atuais a doutrina mais adotada pela Corte Constitucional. Representa uma construo intermediria, dentre a teoria que nega a eficcia e a que defende a eficcia direta.

    Segundo o professor Ingo Wolfgang Sarlet, o doutrinador Drig, ao advogar que os direitos fundamentais representam uma ordem de valores, faz com que estes devam repercutir em todo o ordenamento jurdico (entre privados ou no), porm contesta a eficcia direta dos direitos fundamentais nas relaes privadas. Entendendo que com sua aplicao direta, ocorreria um esvaziamento virtual da autonomia privada.80

    Neste sentido, Daniel Sarmento entende que os