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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP Francisco Antonio Marques Viana A UTOPIA CONCRETA E O AINDA-NÃO-CONSCIENTE NA OBRA DE ERNST BLOCH DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP

Francisco Antonio Marques Viana

A UTOPIA CONCRETA E O AINDA-NÃO-CONSCIENTE

NA OBRA DE ERNST BLOCH

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2015

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Francisco Antonio Marques Viana

A UTOPIA CONCRETA E O AINDA-NÃO-CONSCIENTE

NA OBRA DE ERNST BLOCH

DOUTORANDO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título

de Doutor em Filosofia, sob a orientação do Prof.

Dr. Antonio José Romera Valverde.

SÃO PAULO

2015

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ERRATASUMÁRIOO SONHO ACORDADO, AS TESES SOBRE FEUERBACH E A EMANCIPAÇÃO HUMANA

APRESENTAÇÃO

Destacam-se os estudos de Antonio Rufino Vieira (2007), Princípio

Esperança e a “herança” intacta do marxismo e Ernst Bloch, Marxismo e

Libertação: estudos sobre Ernst Bloch e Enrique Dussel (VIEIRA, 2010); O Enigma

da Esperança: Ernst Bloch e as margens da história do espírito e Ética e Utopia:

ensaio sobre Ernst Bloch, ambos de Suzana Albornoz (2006), Ernst Bloch: marxismo

e liberdade de Luiz Bicca (1982) e Utopia e Direito: Ernst Bloch e a ontologia

jurídica da utopia de Alysson Leandro Mascaro, além de artigos como Ernst Bloch e o

sonho de uma coisa de Carlos Eduardo Jordão Machado. (p. 15)

CAPÍTULO I

A mudança aconteceu com Avicenna que, na Idade Média, opunha-se ao aristotelismo

conservador da Igreja. (p. 57)

CAPÍTULO II

57 Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon (1760-1825), nasceu em Paris, e morreu cercado pela admiração dos discípulos. (p. 97)

Juntou-se a isso, na obra de Bloch, a defesa de um mundo sem corrupção em que a democracia significaria a dignidade humana (p. 136).

86Pelas páginas escritas por Bloch (1974) sobre a filosofia renascentista circulam Marsilio Ficino, autor das primeiras traduções de Platão e Plotino diretamente do grego, imprimindo vitalidade e beleza aos conceitos; (p. 141)

CAPÍTULO III

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3.2 A ABERTURA PARA O FUTURO, AS GERAÇÕES E OS ATRIBUTOS MAIS

ELEVADOS DO HOMEM

97Cf. BÍBLIA.Crônicas.Antigo Testamento.1:50.

CAPÍTULO V

INTÉRPRETES DA UTOPIA DE ERNST BLOCH

Bloch, em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), não se refere a nenhum dos

três – Buber, Landauer e Rosenzweig -, mantendoidenticosilêncio em O Princípio

Esperança. (p.226)

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FUTURO COMO ESPERANÇA

155,o homem mau, (p. 268)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SOBRE ERNST BLOCH

MASCARO, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2008

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V614

Viana, Francisco Antonio Marques.

A utopia concreta e o ainda-não-consciente na obra de Ernst Bloch / Francisco Antonio

Marques Viana– São Paulo: PUC / Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2015.

306 f.; 30 cm.

Referências: 275-306

Orientador: Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-

Graduação em Filosofia, 2015.

1. Bloch, Ernst, 1885-1977 – Crítica e interpretação. 2. Utopia. 3. Revolução.

I. Valverde, Antonio José Romera, orientador. II. Programa de Pós-Graduação em

Filosofia. III. Título.

CDD 100

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BANCA EXAMINADORA

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Para aqueles que sonham acordados com um mundo que jamais foi visto.

A Antonio José Romera Valverde, pela sabedoria e entusiasmo;

Ana Affonso, por iluminar a escuridão;

Maria Rita Kehl, pela crença na emancipação do homem.

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AGRADECIMENTOS

Acácio Moraes, Alberto Morelli, Alexandre Soriani, Alex Viana, Álvaro Muller,

André Curvello, Carlos José Silva, Cleópatra Viana, Dad Squarise, Denise Monteiro,

Eurico Lima Figueiredo, Francisco Valdério, Ivan Phiffer, Ipojucã Cabral Brito, Leda

Maria Abbês, José Carlos Bicev, Jéssica Silva, José Erivaldo de Oliveira, Leda Abbês,

Lúcia Viana, Maria Aparecida Viana, Marcelo Tognosi, Ney Figueiredo, Nélio Palheta,

Nereu Leme, Patrícia Blanco, Paulo Nassar, Pedro Ferreira de Araújo, Raul Sampaio,

Rita Soares, Rose Amanthéa, Rômulo Nagib Lasmar, Sonia Hass, Susana Serravale,

Tatiana Viana, Thiago Rosa, Ubiratã Muarrek e Verona Oliveira. Um agradecimento

especial aos professores doutores Marcelo Perine e Wolfgang Leo Maar pelos valiosos

ensinamentos e sugestões que clarearam a tentativa de entendimento do pensamento

revolucionário de Ernst Bloch.

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El propósito que lo guiaba no era impossible, aunque sí

sobrenatural. Queria soñar um hombre: queria sonãr-lo con

integridad minuciosa e imponerlo a la realidad.

Jorge Luis Borges, Las Ruinas Circulares (2014, p. 18)

Al principio, los sueños eran caóticos; poco después, fueran de

naturaleza dialéctica.

Jorge Luis Borges, Las Ruinas Circulares (2014, p. 18)

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RESUMO

VIANA, Francisco Antonio Marques. A utopia concreta e o ainda-não-consciente na

obra de Ernst Bloch. 2015. 306 f. Tese (Doutorado em Filosofia)– Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, 2015.

O pensamento de Ernst Bloch é complexo, sua obra é extensa e, em geral, tem sido

analisado pelas suas feições messiânicas, utópicas, místicas ou ainda pela sua possível

repercussão na América Latina e pelo ângulo da esperança. Esta tese, investiga a

filosofia blochiana como fonte de renovação e extensão do marxismo, em dois

momentos interligados a uma mesma ideia: a revolução socialista, iluminada pela

libertação do homem do modo de produção capitalista e a construção da vida melhor. O

primeiro momento encontra-se na utopia concreta: uma sociedade igualitária,

humanística, sem a má consciência da divisão de classes e o egoísmo da expropriação

da mais-valia, tendo como sujeito o homem e a sua integração com a natureza. O

segundo momento, consequência do primeiro, tem o seu núcleo no conceito do ainda-

não-consciente e se adensa no homem a partir do sonho acordado com a transformação

da sociedade. Dialeticamente, o caminho para a utopia concreta encontra-se na

conjugação da “corrente fria” do marxismo, a lucidez em realçar a realidade quanto à

submissão ao capital, com a “corrente quente”, o entusiasmo revolucionário com o

ainda-não-consciente. Há, contudo, um ponto de partida para a filosofia utópica que é o

sonhar acordado com a saída da obscuridade em que vive o homem, na procura de

encontrar a si mesmo, na luminosidade do entrelaçamento da teoria e da prática. Nesse

processo dialético-materialista, mediado pela vontade antecipadora, encontra-se a

necessidade de rever os caminhos da filosofia e da psicanálise. Rever significa pensar e

transpor as dificuldades para transformar o socialismo no regime de escolha da

sociedade de massas e que, diante dos imperativos do cotidiano, o homem não deixe de

agir e sonhar, jamais abdique, principalmente, dos valores da igualdade, da fraternidade

e da felicidade na Terra. Com seu início em Aristóteles e no chamado aristotelismo de

esquerda, no pensamento gótico do medievo e na filosofia do Renascimento, a

esperança em Bloch concentra-se no acordar do homem rebelde e na construção da

ordem fundada na liberdade, na convergência da superestrutura com a estrutura e que,

dessa forma, passe-se a viver a verdadeira história, sem que o “estranhamento” da vida

se torne repetição permanente. Se assim ocorrer, a filosofia e a psicanálise irão adquirir

novos saberes, inclusive redescobrindo ensinamentos antecipatórios do futuro na

filosofia anterior a Marx. A utopia concreta e o ainda-não-consciente, nesse ambiente,

terão possibilidades de superar a ilusão dos valores do capitalismo, criando horizontes

de esperança para a construção daquilo que o homem jamais viveu, a sociedade em que

ele será, a um só tempo, sujeito e objeto da construção. O que distingue Bloch do

“marxismo ortodoxo” é o sistema filosófico aberto, de elucidação da essência humana,

sem ideologismo, de mediação com a realidade, sem vínculos com o jogo ilusório do

fetiche das mercadorias, identificado com o homem que transforma as relações entre os

homens e com a natureza, despertando para uma vida melhor. Bloch sonha acordado

com a filosofia da sociedade sem classes em oposição à filosofia da sociedade de

classes.

Palavras-chave: Ainda-não-consciente. Utopia concreta. Sonho. Liberdade.

Capitalismo.

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ABSTRACT

VIANA, Francisco Antonio Marques. The concrete utopia and the not-yet-conscious in

the work of Ernst Bloch. 2015. 306 f. Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, 2015.

Ernst Bloch‟s thought is quite broad, and it is usually analyzed in its messianic, utopian,

mystical, features; or yet, due to its possible repercussion in Latin America and its

hopeful point of view. This Dissertation investigates Bloch‟s philosophy as a source for

the renovation of Marxism, in two moments which are interconnected to one sole

idea: the Socialist revolution, enlightened by the liberation of man from Capitalism, and

the building of a better life. The first moment is to be found in concrete utopia: an

equalitarian, humanistic society, without the ill-consciousness of the division of classes

and the egotism of profit, having man and his integration with nature as its subject. The

second moment, consequence of the first, has its nucleus in the not-yet-conscious

concept and it increases in density in man after he has (been) awakened with the

transformation of society. Dialectically, the road to concrete utopia is to be found in the

conjugation of the cold current of Marxism - the lucidity regarding reality -, with its

warm current - revolutionary enthusiasm. There is, however, a starting point for Utopian

philosophy, which is the Materialist Dialectics of historical man, the incompleteness of

his trajectory, and the exit from obscurity wherein he lives, in search of himself, in the

luminosity of the interlacing of theory and praxis. In such process, mediated by the

anticipating will, one finds the need to review the ways of philosophy and

psychoanalysis. Reviewing means thinking and overcoming difficulties so as to make

Socialism the political regime mass-society chooses so that, faced with the imperatives

of reality, man does not give up acting and dreaming, he does not, especially, relinquish

the values of equality, friendship, and happiness on Earth. With its beginning in

Aristotle and in the Aristotelism of the Left, in the Gothic thought of the Middle Ages,

and in the philosophy of Renaissance, Bloch‟s hope concentrates in the awakening of

rebellious man and in the building upon order starting from liberty, in the convergence

of the superstructure with the structure, thus making it possible for one to live true

history, so that the „estrangement‟ of life does not become permanent repetition. If this

happens, if philosophy and psychoanalysis acquire new knowledge, including the

rediscovery of fore-knowledge [of the future] in Classical Philosophy, concrete utopia

and the not-yet-conscious have the chance to overcome the capitalist illusion, thus

generating horizons of hope for the construction of that which man has never

experienced, a society wherein he is, at once, subject and object of its construction.

What distinguishes Bloch from "Orthodox Marxism" is the open philosophical system,

without ideologism, far from the delusive fetish of merchandise, next to the man who

transforms and awakens to a better life. He dreams awake with a philosophy of a

classless society in opposition to the philosophy of a class society.

Key-words: Not-yet-conscious. Concrete utopia. Day-dreaming. Liberty. Capitalism.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 11

INTRODUÇÃO: ERNST BLOCH E O ILUMINISMO MARXISTA 19

O SONHO CORDADO, AS TESES SOBRE FEUERBACH E A EMANCIPAÇÃO

HUMANA 22

O PRINCÍPIO DA AÇÃO: A UTOPIA CONCRETA 26

DAS POSSIBILIDADES E DO MATERIALISMO DIALÉTICO 33

O MÉTODO E A ÉTICA PARA FRENTE 36

HUMANISMO E FILOSOFIA REVOLUCIONÁRIA 46

O SOCIALISMO COMO SISTEMA PREFERIDO DO HOMEM 48

CAPÍTULO I

DIALÉTICA DA UTOPIA CONCRETA: O HOMEM COMO SUJEITO DA

PRÁTICA TEÓRICA E MEDIADOR DA VIDA MELHOR 52

1.1 ARISTOTELISMO DE ESQUERDA, O CÉU NA TERRA, A MATÉRIA EM

MOVIMENTO, O HOMEM COMO POSSIBILIDADE 56

1.2 DIONISO-APOLO, INCÓGNITA AINDA INSOLÚVEL NA INCOMPLETUDE

HUMANA E NA CURA DA DOENÇA DO CAPITALISMO 62

1.3 DO APOCALIPSE CAPITALISTA À DIALÉTICA DO PROCESSO 65

1.4 FILOSOFIA E UTOPIA: CONSCIÊNCIA E PRÁXIS, UMA MESMA

UNIDADE NA BUSCA DO NOVUM 71

1.5 EM LUGAR DA FILOSOFIA DA SOCIEDADE DE CLASSES, A FILOSOFIA

DA SOCIEDADE SEM CLASSES 76

1.6 “NÓS” ANTES DO “EU” E AS RAÍZES DO FUTURO NOVO 80

1.7 UTOPIA, CONSTRUÇÃO COLETIVA 82

1.8 CIÊNCIA AUTORITÁRIA, CIÊNCIA HUMANISTA 91

CAPÍTULO II

SONHOS DE REFORMAS E OS NOVOS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS

DO TRABALHO NA MEDIAÇÃO UTÓPICA 97

2.1 OWEN, FOURIER E SAINT-SIMON: COMUNISMO FILANTRÓPICO,

PAIXÕES E SOCIALISMO INDUSTRIAL COMO REFORMAS PARA A

VALORIZAÇÃO DO TRABALHO 99

2.2 A UTOPIA SOCIAL CONQUISTA O TRABALHADOR: O IGUALITARISMO

ANARQUISTA PERDE TERRENO PARA A DIALÉTICA MATERIALISTA 105

2.3 SUJEITOS DA MEDIAÇÃO UTÓPICA 111

2.4 COLOMBO, O ÉDEN E OS DESCOBRIMENTOS: A UTOPIA DO NOVO

MUNDO 118

2.5 TRABALHO E ROMANTISMO, PRESSUPOSTOS PARA CONHECIMENTO

E TRANSFORMAÇÃO DA VIDA 121

2.6 LIBERDADE NA ORDEM, A ORDEM NA LIBERDADE 129

2.7 ESPERANÇA PELA MUDANÇA DE VALORES, O HOMEM SEM MEDO DO

HOMEM 135

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CAPÍTULO III

SABER DA FILOSOFIA E AS PULSÕES HISTÓRICAS: A PERCEPÇÃO DO

AINDA-NÃO-CONSCIENTE 145

3.1 “DEMORA ETERNAMENTE! ÉS TÃO LINDO !” 151

3.2 A ABERTURA PARA O FUTURO, AS GERAÇÕES E OS ATRIBUTOS MAIS

ELEVADOS DO HOMEM 157

3.3 MONTANHAS DO FUTURO, A FILOSOFIA NA LINHA DE FRENTE 160

3.4 UM OLHAR AGUÇADO SOBRE O INCONSCIENTE 164

3.5 DA TRAGÉDIA AO INTERESSE HUMANO, A FAMILIARIDADE COM O

REAL E O PENSAR LIVREMENTE 168

3.6 PULSÕES, O CONFLITO ENTRE O HOMEM BURGUÊS E O HOMEM

HISTÓRICO 173

3.7 PULSÕES NÃO HOMOGÊNEAS NA SOCIEDADE DE CLASSES 177

3.8 FOME, DESEJOS E VONTADE 183

CAPÍTULO IV

SONHOS DE DESPERTAR: DILEMAS DA INTERIORIDADE E DA

EXTERIORIDADE DO HOMEM REVOLUCIONÁRIO 189

4.1 OBSCURIDADE E LUZ NA CORRENTEZA DO INSTANTE VIVIDO 192

4.2 A DIMENSÃO DO PRESENTE, O ALCANCE DOS TEMPOS DE MUDANÇA 196

4.3 A TRAGÉDIA DA MORTE E A UNIDADE INDIVIDUAL COLETIVA

CHAMADA CONTINUIDADE 203

4.4 UTOPIA DA VIDA E DO FUTURO SEM NEGAR O INEVITÁVEL DA

MORTE COMO RETORNO À NATUREZA 206

4.5 DIÁLOGOS DOS SONHOS E A CRÍTICA À PSICANÁLISE 209

4.6 LIMITES E POSSIBILIDADES DO SONHAR ACORDADO 213

4.7 O HOMEM, MAIS DO QUE UM SER NATURAL, UM SER HISTÓRICO 215

4.8 O DESINTOXICAR DO MUNDO, IMPULSO DA CONCIÊNCIA

SOCIALISTA 219

CAPÍTULO V

INTÉRPRETES DA UTOPIA DE ERNST BLOCH 223

5.1 OS IDEAIS, O REALISMO SOCIALISTA E A LUTA DE CLASSES 229

5.2 FIM DA UTOPIA E O MARXISMO ROMÂNTICO 232

5.3 NA UTOPIA NADA SE PERDE, APENAS A ILUSÃO SE TRANSFORMA 237

5.4 PARA ALÉM DA LUTA DE CLASSES, A HUMANIZAÇÃO DA DIALÉTICA

E O HOMEM SEM DEUS 245

5.5 A METAFÍSICA DO COTIDIANO E ECOSOCIALISMO 254

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FUTURO COMO ESPERANÇA 268

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 275

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APRESENTAÇÃO

“A utopia é, na sua forma concreta, a vontade testada rumo ao ser do

tudo.”

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 307)

Esta tese objetiva expor e discutir a filosofia de Ernst Bloch sob o prisma da utopia

concreta e do ainda-não-consciente. A pergunta essencial se caracteriza como: por que o

homem, em lugar de antecipar o futuro socialista e a sua emancipação histórica dos meios de

produção, se perde tentando reformar um sistema repetitivo, o capitalismo, que só organiza,

universalmente, a sua própria continuação?

Inicialmente, pensamos que o problema a ser superado se concentrava na imensa

dificuldade de a filosofia transitar de uma visão contemplativa para a prática revolucionária,

como defende Bloch, a partir da tese 11 sobre Feuerbach de Karl Marx. Essa concepção se

revelou incompleta: a dificuldade existe, estende-se ao processo de clarificação de uma

consciência nova e da opção do homem por valores coletivos, o que passa a ser desafio

também da psicanálise em harmonia com o materialismo dialético. Seriam essas as razões de

o socialismo não ser universalmente o sistema preferido pelo homem?

Bloch não se recusa a ver que o homem se encontra limitado no seu despertar, não

apenas pela força do capital, mas, sobretudo, pela teia de valores em que o capitalismo o

envolve, controla e reproduz a sua forma de pensar e agir. Contudo, se nega a aceitar que o

homem seja impotente diante das barreiras que se erguem no caminho da sua emancipação e,

por isso, das possibilidades do acordar para o ainda-não-consciente. Despertar que Bloch

considera, pela sua formação hegeliana, como se fosse o de um escravo que deixa de temer a

morte e se rebela contra o senhor.

Duas obras-chave servem de referência na procura pela elucidação dessa esperança,

que Bloch resume na palavra utopia, tão antiga quanto irrealizada: The Spirit of Utopia (Geist

der Utopie) (BLOCH, 2000) e a trilogia O Princípio Esperança (Das Prinzip Hoffnung)

(BLOCH, 2005; 2006a; 2006b). Em torno delas, giram os conceitos de utopia concreta e do

ainda-não-consciente que, com maior ou menor intensidade, perpassam a obra de Bloch e

fundamentam a dialética materialista de construção, pelo homem, de uma sociedade

igualitária, historicamente, jamais vista.

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Não se trata, portanto, de um retorno às utopias do passado, mas do avançar para uma

Idade de Ouro a ser conquistada. A filosofia blochiana procura um novo mundo, um espaço

onde a produção possa ser sem a finalidade egoística do lucro e com liberdade, sem conflitos

não repetitivos, nem a ordem ilusória, como no capitalismo. Socialista, se manifesta como

uma filosofia de emancipação na forma de uma sociedade fraternal, de igualdade, com

homens e mulheres vivendo e trabalhando sem as condições alienantes do capitalismo. Bloch

assimila, em paralelo, a ideia de anexar a psicanálise ao marxismo. Vendo a dificuldade do

homem acordar para o socialismo, divisou que o sonho psicanalista era regressivo, enquanto o

sonho socialista estava voltado para o futuro. Havia necessidade de criar uma coincidência

entre os dois movimentos dos sonhos, ambos acordados, para que o homem buscasse a

consciência do que jamais existiu. Não voltar atrás como se a Idade de Ouro da existência

fosse algo a se buscar no passado.

Esse é o alicerce da filosofia blochiana. Despertar não apenas para os males do

capitalismo, mas para os males a que o homem resiste em tomar consciência e resolver, a

começar pela mudança dos valores da sociedade burguesa. No início, seus traços, como na

filosofia marxista, se concentravam nas relações do ainda-não-consciente com o proletariado.

Com o passar do tempo, avançou na direção da Tese 11 sobre Feuerbach, o filósofo como

construtor do mundo, mas com a ideia de ampliar o sujeito revolucionário da classe operária

para todos aqueles que se opõem ao capitalismo. A ideia chave é a ação revolucionária

teórico-prática no devir do mundo. Mas um devir que vá além da revolução social: um devir

que pressupõe, também, uma revolução filosófica do modo de pensar, viver e se relacionar.

Como filosofia política, irrompe no último capítulo de The Sprit of Utopia (Geist der

Utopie), quando Bloch se volta para Marx e o marxismo e critica a política alemã de 1918,

pós a abolição da monarquia e proclamação da república. Na ocasião, a Revolução social, nos

moldes da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, não se concretizou como era esperado1.

Em seu lugar, além da frustração e do fracasso da esquerda, o que aconteceu foi rápida e

sangrenta recomposição de classes, com a juventude privilegiada se revelando com arrogância

sem paralelo na história, as universidades silenciando o senso crítico e os camponeses,

usurários, juntos com a pequena burguesia, se curvando perante a grande burguesia que

ocupou o poder (MÜNSTER, 2001, p. 78-9).

Há uma restauração do antigo regime e Bloch (2000, 267-73) a denuncia invocando a

revolução como alvo da luta de classes. As imagens da filosofia revolucionária de Bloch se

1 Cf. A Revolução Alemã (1918-1923), de Isabel Loureiro (2005).

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prolongam por toda a sua obra, mas são mais visíveis em O Princípio Esperança. O

propósito, que Bloch reafirma e amplia em Experimentum Mundi, é mostrar a filosofia

materialista-dialética como oposta ao egoísmo e à exploração capitalista. Há dois mundos,

segundo a filosofia de Bloch. Um é o mundo repetitivo das mercadorias. O outro, o mundo

dialético, é o futuro socialista, não repetitivo, para ser semeado pelo homem sem alienação,

com vistas a construção do paraíso na terra. Um mundo futuro.

Mas o futuro não deixa de ser uma incógnita, como vem sendo há mais de dois mil

anos na história da utopia. A novidade é que a utopia concreta possui um novo sujeito

histórico, o homem, que aspira à vida voltada para o bem comum. E envolve o despertar para

as pequenas coisas do dia a dia, no quadro da dialética da existência. A premissa básica é se o

homem apenas aspira a –, tem ou poderia ter vontade de modelar – uma vida nova. Nesse

sentido, Bloch (2005, p. 432) admite que o ―inimigo mais renitente do socialismo‖ não é o

grande capital, mas o próprio homem devido ao temor de superar os valores conhecidos do

capitalismo e inclusive do pensamento ortodoxo do marxismo, infenso à abertura para a

experiência humanística prática. Haveria possibilidades de os valores do homem mudarem?

As premissas secundárias, interligadas à premissa básica, relacionam-se com a

filosofia da esperança no que tange à sua convivência com a ciência marxista e ao espírito

revolucionário no que se refere à juventude dos tempos. A teoria de superação da realidade

vigente estaria correta ou a sua aplicação é que foi incorreta? O homem poderia vir,

efetivamente, a sonhar acordado com um mundo novo não capitalista? Haveria como

controlar as pulsões negativas em favor das pulsões voltadas à vida futura?

São aspectos como esses que justificam a escolha do pensamento de Ernst Bloch como

tema de estudos, em particular num momento de aguda crise do socialismo e da emergência

de uma sociedade seduzida pelo consumo, inclinada a secularizar as ideias marxistas e a

utopia concreta. Não é mistério que, apesar de confrontar um capitalismo cínico, a ideia

comunista perdeu terreno no plano real, simbólico e imaginário. Embora as desigualdades

sociais sejam ―monstruosas e crescentes‖2 (tradução nossa), mesmos nos países mais

desenvolvidos, os revolucionários são ―desunidos e fracamente organizados, largos setores da

juventude popular são seduzidos pelo niilismo, a grande maioria dos intelectuais são servis‖3

(BADIOU, 2010, p. 25, tradução nossa).

2 ―monstrueuses et croissantes‖.

3 ―Les révolutionnaire sont désunis et faiblement organisés, de large secteurs de la jeunesse populaire sont

gagnés par un désespoir nihiliste, la grand majorité des intellectuels son serviles‖.

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14

O desafio da filosofia de Bloch, passados 170 anos que Karl Marx escreveu as Teses

sobre Feuerbach e outros 167 de O Manifesto Comunista parece definido: ao combinar a

construção da consciência e delinear a alternativa da utopia concreta, recuperar a ideia

socialista e, como desdobramento, o sentido do comunismo. Talvez, não mais o comunismo

do partido, mas da vontade do homem prometeico e coletivo. Mas é evidente que para que

isso aconteça se terá, antes, de resgatar o pensamento do próprio Bloch.

Os movimentos cambiantes da história contribuíram para que suas ideias não

circulassem universalmente, como aconteceu com Karl Marx e expoentes do Instituto de

Pesquisas Sociais de Frankfurt, como Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Walter Benjamim,

ou da filósofa Hannah Arendt, ela também alemã, mas que não foi marxista. Dado ao escasso

interesse, suas obras hoje são difíceis de ser encontradas nas livrarias de Paris, Roma e Nova

York, além do Brasil.

Não seria exagero dizer que são quase raridades. E não são raridades ainda maiores,

porque, nos anos 1960, a editora alemã Suhrkamp passou a publicar as obras completas de

Ernst Bloch, motivando traduções em inglês, italiano, francês e espanhol. Certamente, o

esquecimento acontece porque o comunismo, na década final de vida de Bloch, estava sendo

tragado pela crítica conservadora e, também, pela esquerda. O marco histórico do período,

além da dissolução da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas -, pode ser a

dissolução em 1991 do Partido Comunista Italiano, que chegou a ser o maior partido de

esquerda do Ocidente, fundado por Antonio Gramsci em 1921.4 Isto sem mencionar o

ostracismo a que foi relegado o tema candente do humanismo, essencial para Bloch, como foi

para Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844.5

No Brasil, seria um quase anônimo ou um ilustre desconhecido não fosse a obra de

Arno Münster e a tradução de O Princípio Esperança quase vinte anos depois da morte de

Bloch. De Münster, pode-se enumerar Ernst Bloch: filosofia da práxis e utopia concreta,

nascido de um curso (1990) no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, além de conferência na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob o

título Ernst Bloch – um Schelling marxista. Há, também, a tradução de Utopia, Messianismo e

Apocalipse na obra de Ernst Bloch.

O começo foi promissor, coincidindo com o momento em que o Brasil, no particular, e

a América Latina, no conjunto, despertavam para a Teologia da Libertação e para a utopia

4 Cf. O Alfaiate de Ulm, de Lucio Magri (2014).

5 Cf. A Crise do Movimento Comunista, de Fernando Claudin (2013); e Tempo Nublado, de Octavio Paz

(1986).

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socialista, movimentos que iriam recuar, no decorrer das décadas de 1960-1970, por força de

sucessivos golpes militares e sangrenta perseguição à esquerda. Reprimida com feroz

violência, a utopia deixou as ruas e as ideias democráticas de governo para refugiar-se na

clandestinidade. Em lugar da juventude dos tempos, o atavismo de uma época de obscuridade.

Ainda no contexto de liberdade e de ascensão das forças populares, os primeiros

escritos de Bloch chegam ao Brasil na década de 1960, ao mesmo tempo em que havia uma

renovação teórica da esquerda brasileira, com publicações de obras de György Lukács,

Antonio Gramsci, Karl Korsch, Jean-Paul Sartre, Henri Lefebvre, Lucien Goldmann, Walter

Benjamin e Theodor Adorno. O precursor foi o franco-suíço Pierre Furter, com o livro

Dialética da Esperança e, em 1972, a publicação, ambos pela Paz e Terra, de Thomas

Münzer, Teólogo da Revolução de Ernst Bloch.

Mas a dura realidade é que a maioria dos trabalhos de Bloch é desconhecida do grande

público e não foi traduzida no Brasil. Não é preciso ir muito longe para constatar o óbvio: a

obra testamento de Bloch, Experimentum Mundi, foi publicada pela Suhrkamp em 1975. Lá se

vão quatro décadas. Nunca foi traduzida no país. Mesmo a produção acadêmica é tímida.

Destacam-se os estudos de Antonio Rufino Vieira (2007), Princípio Esperança e a

“herança” intacta do marxismo e Ernst Bloch, Marxismo e Libertação: estudos sobre Ernst

Bloch e Enrique Dussel (VIEIRA, 2010); O Enigma da Esperança: Ernst Bloch e as margens

da história do espírito e Ética e Utopia: ensaio sobre Ernst Bloch, ambos de Suzana Albornoz

(2006), além de artigos como Ernst Bloch e o sonho de uma coisa de Carlos Eduardo Jordão

Machado.

De qualquer forma, é comum situar-se a obra de Ernst Bloch, em seu sentido parcial,

evocando, por exemplo, as suas características messiânicas, a rica biografia do autor ou

mesmo pela aparente dubiedade de sua utopia, como faz Habermas (1987) ao definir Bloch

como o ―Schelling Marxista‖. Assim, a sua filosofia polìtica revolucionária, aberta ao

pensamento de Marx e Freud, herdeira de Aristóteles e Hegel, portadora de prático

humanismo e ética real, perde-se no imenso estuário de suas ideias, como assevera, com

propriedade, Stefano Zecchi (1978) em Ernst Bloch: utopia y esperanza en el comunismo.

Martin Jay (1984b) e Pierre Furter (1974), com respectivamente Marxism & Totality e

Dialética da Esperança, assim como Pierre Bouretz, Manuel Ureña Pastor e o próprio Arno

Münster avançam nesta direção, mas não chegam a separar com precisão o rio caudaloso do

pensamento revolucionário do filósofo dos afluentes das suas muitas reflexões e erudição. O

significado desse exercício está na contribuição de Bloch para dar novo conteúdo ao

pensamento marxista contemporâneo e seus desdobramentos futuros.

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As teses de Bloch (2006a), sobre o humanismo socialista e a necessidade do

socialismo ser a escolha da grande maioria da sociedade como sistema de vida, tornam-se

cada vez mais atuais, porque trabalham a filosofia a partir do homem, das suas experiências,

aproximando-se do concreto, do mundo imanente, e do utópico, o mundo transcendente. Não

que vislumbrem, no socialismo, um mundo perfeito e acabado, mas, um socialismo em

processo de construção. Não como um retorno à antiga Arcádia homérica, mas num avanço

obstinado para construir a Arcádia com as próprias mãos.

Bloch (2006b) alertou, sem rodeios, para os impasses e significados dessa caminhada

no decorrer da sua vida, que podem ser condensados em complexos e agitados capítulos: o

embate contra o fascismo na Alemanha, o longo e duro exílio na Europa e nos Estados

Unidos, o retorno, cercado de grande prestígio, para a Alemanha Oriental, novamente o exílio,

desta vez, na Alemanha Ocidental. Nesse sentido, passou a ser, assim, um permanente rebelde

contra as normas da filosofia marxista oficial. Um filósofo que sonhava com o futuro, mas

que esteve sempre reconciliado com o presente. Sua vida foi a experiência da busca da luz na

obscuridade. Eis, assim, em grandes linhas, as razões e o tema desta tese.

Está dividida em cinco partes, além da Apresentação, Introdução, Ernst Bloch e o

Iluminismo Marxista, e das Considerações Finais, O Futuro como Esperança. A primeira

parte, Dialética da Utopia Concreta: o Homem como Sujeito da Prática Teórica e

Mediador da Vida Melhor, ocupa-se do ―pensamento para a frente‖. Concentra-se nos

fundamentos da utopia concreta, como conquista coletiva, que começa com The Spirit of

utopia (Geist der Utopia) (2000) e culmina com a trilogia O Princípio Esperança (2005;

2006a; 2006b), sempre permeada pela ideia do ainda-não-consciente e a discussão do sujeito

revolucionário e seu alvo. O propósito é traçar o itinerário da filosofia blochiana que, a

despeito da sua extensão e obstáculos, converge sempre para a esperança de mudança. E para

a ideia da utopia como processo dialético.

A segunda parte, Sonhos de Reformas e os Novos Fundamentos Econômicos do

Trabalho na Mediação Utópica da Sociedade Futura, detém-se em investigar aquilo que

distingue o homem transformador da realidade vigente daquele que a ela se acomoda ou

apenas a contempla. Destaca a natureza e os impactos das utopias sociais e da oposição entre

ordem e liberdade. As Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007) emergem como

referenciais teóricas, nas quais onde predominava a contemplação, a filosofia passa a ter, na

práxis e no homem trabalhador, o efetivo sujeito da utopia, os elemento vitais da

transformação do mundo. Enfatiza-se as relações entre o romantismo revolucionário e o

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trabalho como sujeitos da mediação utópica, além do seu significado em relação ao marxismo

e o processo industrial.

A terceira parte, Saber da Filosofia e as Pulsões Históricas: A Percepção do Ainda-

não-consciente, a partir da utopia marxista, retoma os fios traçados com The Spirit of Utopia

(Geist der Utopie) (2000) até O Princípio Esperança (2005; 2006a; 2006b), tendo como

finalidade levar a filosofia e a psicanálise a se revolucionarem, criarem novos saberes sobre

os sonhos humanos e a despertarem para a realidade do mundo da produção e do capitalismo.

Daí, a necessidade de recorrer a horizontes abrangentes de ideias e alcançar os pressupostos –

o homem rebelde e consciente dos seus desejos – que tornariam possíveis a utopia socialista.

Esses horizontes são sugeridos pela redescoberta do pensamento utópico dos grandes

filósofos e pelo conceito freudiano de pulsões.

Na quarta parte, Sonhos de Despertar: Dilemas da Interioridade e da

Exterioridade no Homem, o tema central é o sonho acordado. Tal como aparece em Bloch

(2005), procura-se discutir o papel da psicanálise na vontade antecipatória humana. Dessa

forma, o sonho dormindo passa a ser como um sonho para trás, enquanto o sonho para a

frente ganha o papel transformador das realidades interior e exterior ao homem. Esse seria o

autêntico sonho revolucionário que Bloch semeia em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie)

(2000) e discute com amplitude O Princípio Esperança como alternativa para que o homem

socialista abandone seus medos de mudança, e os novos valores do marxismo revolucionário

ganhem o cotidiano.

A quinta parte, Intérpretes da Utopia de Ernst Bloch, finalmente, discute a utopia de

Ernst Bloch na visão, entre outros, de Arno Münster, György Lukács, Hans Jonas, Henri

Maler, Herbert Marcuse, Ivan Boldyrev, Jünger Habermas, Martin Jay, Manoel Ureña Pastor,

Theodor Adorno, Pierre Bouretz, Pierre Furter, Stefano Zecchi e Walter Benjamin, além de

Antonio Rufino Vieira e Suzana Albornoz. O propósito é discutir a ideia de uma consciência

nova para o homem com a argumentação de que o ―espanto‖ não se encontra apenas na luta

de classes, mas nos valores de uma sociedade que nega a ―humanização da dialética‖ e resiste

em acordar para a necessidade de antecipar o futuro socialista. Discute-se o sentido de Deus,

da integração do homem com os homens e com a natureza e a visão socialista da ecologia.

No conjunto, a ideia é que o capital não é o grande inimigo do homem, mas sim, o

medo do homem de encarar o futuro, abandonando as ilusões quanto à reforma ou o

aperfeiçoamento do capitalismo. Com essa distinção, Bloch renova o marxismo e expressa

confiança no homem e no materialismo histórico que, na sua análise, identifica o homem

como divino demiurgo da consciência utópica de que a infraestrutura e a superestrutura da

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sociedade possam vir a coincidir. É essa crença na sociedade, que o faz Bloch virar às costas

ao niilismo e à má consciência capitalista, voltando-se para o bem comum, a utopia da boa

consciência.

Nas Considerações Finais, sob o título de O Futuro como Esperança, é discutido o

alvo essencial do pensamento de Ernst Bloch, com base nas questões que perpassam sua obra:

há possibilidade de realizar a utopia concreta ou o mais importante é a crítica à sociedade

vigente? O homem estaria disposto a despertar para o ainda-não-consciente e abraçar o novo?

Quem são os sujeitos revolucionários? Nas páginas que se seguem, as tendências, a latência e

as contradições das respostas convivem, dialogam e se confrontam em processo que coloca

frente a frente a sociedade vigente e a utopia socialista a ser construída. Talvez, ao final, o que

Bloch entenda como sendo o princípio da esperança utópica, só o homem possa responder, se

vier a se identificar com a utopia revolucionária e transformadora da vida.

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INTRODUÇÃO: ERNST BLOCH E O ILUMINISMO MARXISTA

O elemento genuinamente humanista da revolução social acabará tirando

de cima da humanidade inteira a coberta da autoalienação.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 444)

―Schelling marxista‖: assim Habermas (1987) definiu Ernst Bloch, em ensaio escrito

em 1960. E, para reforçar a sua tese, repetia um aforismo que acreditava sintetizar o

pensamento blochiano: ―A razão não pode florescer sem esperança; a esperança não pode

falar sem a razão, ambas na unidade marxista – nenhuma outra ciência tem futuro, nem outro

futuro tem ciência‖ (HABERMAS, 1987, p. 61). Pensador singular no panorama filosófico do

século XX, por construir um sistema marxista aberto, Bloch, com The Spirit of utopia (Geist

der Utopie) (2000), foi entronizado no universo da utopia, em 1918, um ano depois da

Revolução de Outubro ganhar contornos de realidade na Rússia. Em 1919, em caráter

informal, ele aderiu ao marxismo por influência do seu amigo e militante comunista, György

Lukács.6

Oficialmente, o marco dessa decisão deu-se em 1921, com a publicação de Thomas

Münzer, Teólogo da Revolução (1973), mas, na vida desse estudioso de Hegel, de ética

kantiana e materialista, o marxismo só passaria a existir mais tarde. Foi no alvorecer dos anos

1930, antes de se exilar na Suíça, pela segunda vez, quando passou a se dedicar por inteiro à

frente popular antinazista. Estava com 45 anos. A partir de então, procurou clarear a ideia

socialista com a chama do humanismo iluminista, mas jamais se filiou ao Partido Comunista e

se, de um lado admirou Lênin ao longo da vida, de 92 anos, jamais admirou os bolcheviques.7

6 Lukács tornou-se comunista em dezembro de 1918, no mesmo ano da publicação de Geist der Utopie. Com a

morte de Lênin, escreveu, um opúsculo sobre o líder bolchevique, comparando-o a Marx pelo pensamento

teórico revolucionário e pela compreensão da teoria econômica do imperialismo monopolista. Lembra que

Lênin comentava, de maneira prosaica: ―Inteligente não é quem não comete erros. Esses homens não existem

e não podem existir. Inteligente é quem não comete nenhum erro fundamental e sabe corrigir seus erros com

rapidez, com leveza‖ (LUKÁCS, 2012, p. 107-8).

7 ―O filósofo é um militante especializado na interpretação dos sinais do nosso tempo. Tem como tarefa

específica distinguir onde está a esperança dos homens e para onde estes conduzem nosso tempo. Posição

penosa por ser crìtica e arriscada; função necessária, para impedir qualquer ilusão mecanicista‖ (FURTER,

1974, p. 27).

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Diferentemente de Lukács,8 entendia que o intelectual deve ter um engajamento

radical, mas não pertencer à burocracia partidária. Admirador das ideias de Rosa Luxemburgo

e de Karl Liebknecht, que acondicionavam liberdade ao socialismo, jamais deixou de

sublinhar o legado de Hegel para o pensamento marxista, como nunca ocultou a sua

admiração por Hegel e o reconhecimento pelo papel de Ludwig Feuerbach na desmistificação

da religião. A admiração por Hegel, que está na origem da formação de Marx, valeu-lhe

―feroz‖ crìtica da filosofia ortodoxa da Alemanha Oriental, que o acusava de ser hegeliano,

não marxista, com a característica de que não se refugiava no passado, mas no futuro.9

Depois da II Grande Guerra, Bloch voltou dos Estados Unidos para ensinar filosofia

na Alemanha Oriental, na Universidade Karl Marx, por entender que, nos países da União

Soviética, estava o futuro do socialismo. Contudo, nunca admitiu ―submissão intelectual à

censura da ortodoxia partidária‖ e fez de sua cátedra fonte de ―perpétua inquietação e

renovação‖ (FURTER, 1974, p. 24).

Sua visão dialética, graças a Hegel, repousava sobre a afinidade ontológica entre

sujeito e objeto. O saber estava fora do ser, mas também no seu interior. Encontrava-se no ser

(o absoluto) e no saber absoluto (a apreensão da realidade). Na Fenomelogia do Espírito

(1993), o relacionamento entre o ―Absoluto‖ e a tomada de consciência do ser é que torna o

―Absoluto‖ acessìvel e permite o conhecimento de si mesmo, não em termos de interioridade,

mas de um ser em-si e para-si.

Esse salto significaria a desalienação do ser, eliminando a contingência e situando-o

diante da realidade de situações específicas. O principio ontológico fundamental seria a

humanização total do homem. É uma tese que Bloch evoca ao longo de O Princípio

Esperança, se alimentando da seiva dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844

(MARX, 2007) e das Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007). Preconiza que a

sociedade socialista, com a preponderância da qualidade sobre a quantidade, o inverso da

8 Bloch conheceu o filósofo e teórico da literatura húngara György Lukàcs nos colóquios organizados, em

Berlim (1908), pelo filósofo Georg Simmel. A amizade com Lukàcs, que se prolongou por dez anos, é o

início de um rico período de discussões. Desencadeia reflexões que Bloch aprofundaria em O Princípio

Esperança: o pensamento escatológico da cabala, a oposição entre a democracia místico-herética e as

relações entre a juventude hegeliana e Marx, a tipologia da totalidade e do total, a totalidade psíquica do

indivíduo, a metodologia do materialismo dialético. Bloch, que odiava polêmicas, defenderia posições

antirreformistas e, como Lukács, criticou Bernstein e Kautsky, mas evitou tomar partido na discussão entre

Lênin e Rosa Luxemburgo a respeito da democracia operária. Com o passar do tempo, ficou claro que era

partidário de Luxemburgo, ao contrário de Lukàcs, leninista. Foi ferrenho opositor da social-democracia. À

época, Bloch não tinha lido Karl Marx. A filosofia da práxis só irá descobrir com a aproximação com György

Lukács, mas foi fator importante, senão determinante, na redação de The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e

na reformulação das Teses de Marx sobre Feuerbach, quando defende a consciência emancipadora das

massas e critica a economia política de Marx (KARADI, 1986a, p. 72).

9 Cf. Dialética da Esperança, de Pierre Furter, 1974.

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sociedade capitalista, com a conversão de todos os homens em mercadorias e a sua incipiente

defesa da individualidade, libertaria os conteúdos humanos com efeitos construtivos sobre

toda a sociedade.

Filósofo ateu, não via no saber a procura do perfeito entendimento de Deus, nem o

caráter receptivo-contemplativo, fruto de elaborada concepção mental, mas a compreensão do

homem e de sua realidade universal, suas condições reais e metafísicas, suas relações com a

produção e seus sonhos de mudança. Não procurava somente saber ―quem sou‖, mas quem

―somos‖. Kojève (2002, p. 275-6), na sua Introdução à Leitura de Hegel, partindo da

pergunta de ―quem sou‖, que considera a essência do pensamento de Hegel, chega a duas

percepções: que para alcançar o saber absoluto e, portanto, ser, precisa-se fazer parte de um

estado perfeito, o único que pode realizar o saber absoluto; e, ainda, supõe que todo homem é

filósofo, feito para tomar consciência daquilo que ele é. Bloch (2006b) concebe a sabedoria

do Estado como construção humana, coletiva, mas assimila a concepção hegeliana de que

todo homem pode tomar consciência da filosofia revolucionária e edificar um mundo que

ainda não existe.

Por conseguinte, nasceria um mundo em que o Estado não iria existir, pois perderia a

razão de ser, e a dimensão antecipadora levaria o homem a afirmar permanente interação

superestrutura-infraestrutura. A teoria de produção burguesa passaria a ser puro reflexo de

uma época, da sociedade de classes, e, desse modo, o trabalhador seria alçado ao centro da

produção. Nessa dimensão das possibilidades, a visão de Pierre Furter (1974, p. 28) é

esclarecedora: ―Bloch pertenceu a uma geração que via a revolução como Revolução

‗permanente‘, escaparia aos ‗problemas da institucionalização‘, pelo menos até que o

socialismo estivesse ‗completa e definitivamente‘ instalado no planeta‖.

A realidade confirmou a hipótese de Furter (1974), pois Bloch nunca abandonou o

sonho revolucionário e não se curvou ao burocratismo e à ortodoxia da geração posterior à

linhagem revolucionária de 1917. Quer dizer, não se curvava à impossibilidade do saber se

afirmar sobre as sombras da ignorância, o que, por extensão, significaria negar a própria

filosofia revolucionária. Não se tratava de uma atitude individual, mas da crença na realização

da sabedoria.

Na sua iconoclasta condenação à doutrina burocrática, Furter (1974, p. 49)

demonstrou que a ―[...] esperança não é natural, mas ‗uma insurreição humana contra o

natural‘, um protesto organizado e sistemático contra o deixar ser, contra o conformismo,

contra a evolução normal: que conduzem ao nada do niilismo‖. Por isso, Bloch (2006a)

interessava-se pela determinação do alvo, do ―para quê‖, ―para onde‖ e da práxis. No entanto,

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não se ateve à gnose marxista das estruturas de transição na antiga URSS para o socialismo e

à renovação do espírito bolchevique.

O SONHO ACORDADO, AS TESES SOBRE FEUERBACH E A EMANCIPAÇÃO

HUMANA

Em Marx, um pensamento não é verdadeiro por ser proveitoso, mas

proveitoso por ser verdadeiro.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 273)

Bloch (2000) projetou sua obra para o campo da tradição hermenêutica, manifestando

preocupação em revelar o que está oculto, em realçar o que pode estar camuflado na

banalidade cotidiana, fazendo surgir esperança onde raramente se poderia garimpá-la. O seu

território de conhecimento estava na percepção do real, no desvendar das pequenas coisas

cotidianas, no ambiente da ilusão ou do que aparentava ser religioso, místico ou messiânico.

A sua totalidade brota de fragmentos, que quando somados significam a abertura para o Noch-

nicht (ainda-não), o que realmente importa, como negação do passado, mas sem que o novo

implique em falta de consciência quanto ao passado.

O Noch-nicht brotaria do fim da incompletude da história humana e da negação da

filosofia do passado, que coloca a história na perspectiva do eterno novo e supera a repetição

do que já existiu com as categorias do ―futuro‖, ―frente‖ e ―novum‖. Diante de um

pensamento que não consegue ―libertar-se de um processo regressivo que, portanto, é incapaz

de superar o imediato do momento sensìvel‖, Bloch, segundo Zecchi (1978, p. 83) define as

estruturas teóricas da ―superação‖ e da ―negação‖ do ―já-conhecido‖. Essa superação-negação

ultrapassa a fenomenologia hegeliana pela ação e também o inconsciente regressivo

freudiano, situando a filosofia moderna no plano das ―ideias claras‖ do dever-ser e condenado

as ―ideias confusas‖ da ―inércia‖, da ―racionalização extrema‖ e das tradicionais relações

entre consciente e inconsciente (ZECCHI, 1978, p. 84-5).

A julgar pela distinção operada por Bloch (2005) o sonho para a frente assinalaria a

fundação de uma nova época, com o sonho acordado determinando o que o homem

utopicamente quer realizar, e a construção de um mundo sem exploração e sem ideologia, um

mundo não mais vazio e em que os afetos seriam objetivos. Nas palavras de Bloch (2005, p.

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304), o ―ainda-não é tanto mais definido, sua tendência em direção à realização plena é tanto

mais forte, quanto mais objetivamente solucionável tiverem se tornado as tarefas a que se

propôs‖. E o que o ainda-não se propõe é fazer ―fenecer‖ a pré-história humana, projetar o

futuro com imaginação e a criar uma nova estrutura fincada no processo histórico real,

declarar ―guerra‖ ao provisório, elevar o processo-experimento ao âmbito da totalidade, fazer

a utopia avançar (BLOCH, 2005, p. 305-6).

A alternativa contrária seria, paulatinamente, sucumbir à barbárie, não só os

trabalhadores, mas também a burguesia. Sem que a utopia concreta se manifeste, não há

negação, nem antecipação, apenas a crise destrutiva da verdade oficial e institucionalizada.

Uma crise tolerada, sem perspectivas de mudança. A proposta de Bloch é radicalmente

diversa e procura criticar a relação repetitiva entre os homens e os valores capitalistas.

A coincidência sujeito-objeto-sujeito, destacada em O Princípio Esperança (BLOCH,

2005), é igualmente esclarecedora. Com a ideia de separar a ilusão do real, procura alcançar a

gênese de uma filosofia emancipadora e a metafísica de um sujeito ético universal. O sonho

acordado é reflexo desse empenho em elaborar as expectativas da vida cotidiana. Evidencia o

confronto dialético entre o desejo que se choca com o muro da realidade e o desejo almejado

como necessidade utópica.

Como a filosofia blochiana está estruturada no conceito do ainda-não-consciente, sem

a prática não poderia existir o socialismo como ciência e nem a visão humanística real de

Marx. O elemento estruturante de sua obra, apesar do inventário de sucessivas influências, foi

o pensamento de Hegel. Em especial, a categoria das possibilidades abriu-lhe as portas para o

entendimento de Karl Marx e de Sigmund Freud.

A matéria-prima do despertar da consciência encontra-se na superação da dominação e

absorve o sentido do ainda-não-sendo. Concebe a dinâmica revolucionária no reagrupamento

das Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007). Não apenas como mera interpretação

da realidade, mas, sobretudo, como forma filosófica de ação. Certamente, não escolheu O

Manifesto Comunista (MARX; ENGELS, 1998a) por ser este mais uma peça didática,

destinada a difundir conceitos que seriam repetidos pelos trabalhadores, fossem ou não

politizados, tivessem ou não consciência de si e do seu trabalho.

Enquanto, nas Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007), a lógica é a

construção da vida sob o socialismo, em O Manifesto Comunista (1998a), a lógica parece ser

aquela do determinismo histórico. O socialismo era inevitável e viria com o passar do tempo.

Pura ilusão. Pura aparência, frágil diante da realidade em que Bloch viria a considerar o

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tempo. Pode recuar, mesmo parar, mas que retoma sempre o seu fluxo para a frente

(MÜNSTER, 2001b, p. 362-3).

Como processo de emancipação, as Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007)

parecem convergir conscientemente – e não doutrinariamente – para a superação do edifício

da produção capitalista, que sempre foi protegido pela burguesia. Transportam o homem para

a reflexão contra o capitalismo. Manifesta-se com clareza quanto à disposição para se evitar o

―viçoso, o vindouro‖, ―a negação do possìvel‖, temor comum aos sofistas, aos eleatas, aos

estoicos e, inclusive, Leibniz, que ainda conhecia a ―possibilidade‖ como ―disposição natural‖

(BLOCH, 2005, p. 240). Embora sua concepção das percepções mínimas se aproxime da ideia

de inconsciente, Bloch entende essas substâncias pensantes – que existiram na mente, mas

seriam pequenas demais para serem percebidas isoladamente – como sinais da possibilidade

de descoberta, pelo homem revolucionário, do ainda-não-consciente.

As Teses rompem com limitações da consciência da mudança e introduzem, em

definitivo, a possibilidade na história, prosseguindo a linha traçada por Aristóteles e ampliada

por Kant, se bem que cautelosamente, e defendida com veemência por Fichte (―Tu podes,

pois tu deves)‖, este como capacidade e como potência, e Schelling (BLOCH, 2005, p. 241).

As Teses, com concisão, tornam inescapável qualquer tentação romântica quanto às intenções

do capitalismo. Não importa se destruir ou profanar o que for sagrado. O determinante, na

produção capitalista, é ter a mercadoria como ―fetiche‖ – termo derivado dos ritos africanos

de encantamento e magia – e iludir o homem.

Nas Teses, Bloch (2005) encontrou o caminho para romper com o fetiche e,

consequentemente, com a ideia de que o capital é o grande estrategista da sociedade. Dizendo

não ao fetiche, o homem estaria amputando o capitalismo daquele componente mais precioso,

justamente a sua capacidade de se reproduzir em condições aparentemente encantadas. Sem o

ardor do encantamento, o capitalismo seria apenas o imediato e, portanto, sem meios para se

reproduzir.

Na utopia concreta, Bloch (2006b) aspira que a reflexão seja o prólogo da ação. O

homem e a significação do seu futuro, aquele que não se deixa iludir nem ilude, está no centro

das suas atenções. Tanto é assim que, na primeira linha de The Spirit of Utopia (Geist der

Utopie), Bloch (2000, p. 7, tradução nossa) escreve: ―Eu estou por mim mesmo‖.10

Amplia a

questão em O Princípio Esperança: (BLOCH, 2005, p. 13) ―Quem somos? De onde viemos?

Para onde vamos? Que esperamos? O que nos espera?‖ E no autobiográfico Traces (Spuren),

10

―I am by my self‖.

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também nas linhas iniciais‖, assinala: ―Eu sou. Mas eu não estou em possessão de mim

mesmo. Tal é a origem do nosso futuro‖ (BLOCH, 1968, p. 7, tradução nossa).11

Todas as referências ao futuro, em Bloch (2005), mesmo antes de ser marxista, têm

como propósito básico libertar a humanidade do espartilho da dominação capitalista e

burguesa. A chave da sua filosofia da história e das distinções entre a utopia concreta e as

utopias abstratas, segundo Raulet (1986, p. 270), estava na recriação do sistema produtivo,

reconhecendo, a partir da teoria de Marx, a contradição entre o desejo do homem e a sua

prática. Assim, justificava suas críticas ao capitalismo liberal, a toda e qualquer tentativa de

secularização de Marx e do seu próprio pensamento utópico, o que equivale dizer que

entendia o mundo de forma diversa de Habermas, Deleuze, Guattari e Baudrillard.12

Münster

(1993, p. 82), que é um dos mais conhecidos biógrafos de Bloch, retrata a ―intenção primeira

e fundamental‖ da filosofia blochiana:

Revelar e descobrir a dialética que existe entre uma subjetividade criadora

que ultrapassa seus limites interiores e um elemento exterior, um ‗ao-redor-

de nós‘, que está se aproximando do ‗Eu sou‘. O ‗Eu solitário‘ do mundo da

alienação, do mundo burguês, transformar-se em ‗nós‘, no sujeito coletivo

de uma humanidade liberada, emancipada, voltada à sua própria identidade.

Bloch compreendia, no sentido marxista, o significado da emancipação humana e essa

foi a solução teórica de interpretação do mundo encontrada nas Teses sobre Feuerbach

(MARX; ENGELS, 2007). Para Marx, (1982, p. 243-5), a emancipação humana dependia da

crìtica ―inclemente‖ da sociedade vigente e na procura ―humanista‖ de abolir o interesse

privado em favor do comunismo. O motivo seria uma exigência da razão que sempre existiu:

fazer surgir ―o homem verdadeiro‖, mensageiro da ―verdade social‖ em oposição ao homem

do Estado político e da religião.

11

―Je suis. Mais je ne suis pas en possession de moi-même. Telle est l'origine de notre devenir‖.

12

Jürgen Habermas, crítico tenaz do positivismo, do tecnicismo e cientificismo, renunciou ao marxismo e

fundamenta sua obra na defesa da existência de uma esfera pública, na qual os cidadãos, livres de domínio

político, podem expor idéias e discutí-las. Dedica especial atenção ao Direito e às ações comunicativas, O que

seria o mesmo que associá-lo à hermenêutica jurídica, parte da ciência jurídica que diz respeito ao sistema de

regras para a interpretação das leis (ou normas em geral). A princípio pode-se dizer que a ação comunicativa

é a expressão da validade e eficácia do Direito. Gilles Deleuze e Félix Guattari, escreveram um livro, O que é

filosofia? em que a filosofia revolucionária de Marx e Bloch é esquecida, fixando-se na identidade do

indivíduo para pensar e formular questões, conhecer a realidade, enfim, no diálogo entre a filosofia, a ciência,

as artes e a literatura. Um dos fundadores da revista Utopie, tradutor de Brecht, com formação na cultura

germânica, Jean Baudrillard ganhou evidência pela sua incisiva crítica à sociedade de consumo, à ciência

tradicional e concentrou sua filosofia no conceito de virtualidade do mundo aparente. O filme matriz tem

inspiração em uma das suas obras máximas, Simulacros e Simulação (1981).

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A emancipação para Marx (1982, p. 345) seria o despertar de ―um sonho em relação a

si mesmo‖ que impede o homem de viver a sua própria ―filosofia crìtica‖ e concretizar suas

próprias ideias de futuro. A emancipação política se concretizaria no momento em que o

Estado e a religião deixassem de mediar as relações do homem e da sua liberdade. Quanto

menciona emancipação política, Bloch (2005) refere-se à elevação do homem, não apenas em

relação à propriedade privada, mas aos liames culturais que possam inibir a sua

universalização.

Mas o sistema filosófico de Bloch ganha dimensões também psicanalíticas com a

categoria do ainda-não-consciente e, antes de chegar a Freud, reuniu vasto elenco de filósofos

que dialogaram com a história no decorrer do tempo. Entre eles, pode-se citar Platão,

Aristóteles, Agostinho, Avicenna, Gioacchino di Fiori, Münzer, Leibniz, Kant, Schelling,

Hegel, Marx, Lukács e, sem rodeios, pode-se acrescentar Benjamin e Marcuse. Isto sem

deixar de citar os utopistas Thomas More, Campanella e Bacon a Owen, Fourier e Saint-

Simon.

O PRINCÍPIO DA AÇÃO: A UTOPIA CONCRETA

A palavra não serve apenas à arte verbal, mas também à comunicação em

consonância com a verdade.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 208)

Avesso ao pensamento ossificado das classes médias, em que a palavra reflete mais

uma bela aparência do que a verdade, Bloch encarnava o estilo erudito, característico do

Bildungsbürgertum, refinada geração de intelectuais de formação clássica e liberal. Com a

mesma agudeza com que se refere a Shakespeare, Nietzsche, Hölderlin, Goethe e Brecht, para

alicerçar reflexões, buscava fontes de inspiração nos contos dos irmãos Grimm, nos romances

de Sinclair Lewis, Upton Sinclair, Edgar Allan Poe, nos contos nada infantis de Hans

Christian Andersen, e remonta à Antiguidade grega e romana, para propagar o sentimento de

antecipação utópica.

Se Marx procurou apreender o homem pela raiz do trabalho, Bloch procurou, sem

negligenciar Marx, apreender o homem pela raiz da utopia concreta e das suas dificuldades de

levá-las à prática. Se Marx concebeu a filosofia social da sociedade industrial, Bloch, a partir

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de Marx, concebeu a filosofia social do futuro, ambas, também, de difícil realização por

envolver a identificação da verdade como processo dialético. Essas dificuldades foram

rompidas, pela primeira vez, com a Revolução Russa, que trouxe a filosofia de esquerda da

penumbra do fracasso contínuo, para as luzes do êxito e teve o mérito de dar liberdade ao

pensamento de negação do capitalismo. Uma possibilidade, vincada por muitos reveses, como

aconteceu com a esquerda na Alemanha, mas que deu origem à pluralidade dos tempos

modernos.

A comparação com Schelling, feita por Habermas (1987), ocorreu quando Bloch

recomeçava a vida na Alemanha Ocidental, depois de enfrentar os dramas das duas guerras

mundiais e escrever O Princípio Esperança, ponto culminante da sua obra. Elaborado durante

os anos de exílio, nos Estados Unidos, entre 1938 e 1947, e revisto entre 1953 e 1959, o

primeiro volume circulou na Alemanha Oriental, em 1954, com tiragem reduzida. Os dois

últimos volumes foram publicados quando o autor já vivia na antiga Alemanha Ocidental.

Os três livros reúnem 1.372 páginas, 55 capítulos, sendo a divisão em três volumes

uma recriação do método hegeliano de se interrogar quanto à subjetividade, à objetividade e

ao espírito absoluto. Bloch revela-se aberto ao entendimento do homem e a suas contradições,

fosse no mundo capitalista ou no mundo socialista, mas com a esperança de que o homem

seja capaz de negar a imobilidade.

Schelling (2012, p. 227-8), como Bloch, foi um filosofo de múltiplos saberes e que

considerava o homem como ―fundamento imortal da vida‖, ―princìpio da natureza divina‖ e

da ―vontade divina‖, em cuja crença estava não apenas a ―força‖ e ―poder‖ da eternidade, mas

o ―começo da sabedoria‖. A peculiaridade objetiva e enigmática do seu pensamento, que

Bloch absorveu e atualizou, pode ser expressa nesta frase: ―O que é passado é sabido, o que é

presente é conhecido, o que está por vir é pressentido‖ (SCHELLING, 2012, p. 23, tradução

nossa).13

Mas o ponto maior de identidade é que Schelling, em toda a sua obra, de Ideias para

uma Filosofia da Natureza (que começa com a frase ―A filosofia é, do começo ao fim, uma

obra de liberdade‖), ao Sistema de Idealismo Transcendental (―A liberdade é o princìpio que

sustenta todas as coisas‖), Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana

e As Eras do Mundo, está sempre buscando a ―liberdade e a estrutura em convincente filosofia

13

―Ce qui est passé est su, ce qui est présent est connu, ce qui est a venir est pressenti‖.

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do pós-iluminismo‖.14

Em Les Âges du Monde (2012), Schelling compara a liberdade a Deus

e se pergunta: se não for assim, de onde vem a liberdade?

Por trás da concepção do ―Schelling Marxista‖, formulada não sem refinada ironia

(pelo que Habermas considerava como excessivo utopismo de Bloch), encontram-se o

reconhecimento da persistente atividade filosófica de Bloch em defesa da liberdade, também,

das vastas críticas e incompreensões que acompanharam o seu pensamento. Se deixarmos de

lado o aspecto irônico da comparação, Schelling (2012, p. 170), aquele de Les Âges du Mundo

(Die Weltalter), empolgou Bloch pelo empenho com que se dedicou à integração do homem

com a natureza e pela ideia de ―eterna liberdade‖ que seria o fundamento da própria

necessidade.

Bloch considera o homem, como resume Schelling citado por Münster (1993, p. 82),

―o ápice da natureza e da história‖, embora seja esse mesmo homem ―a coisa mais

incompreensìvel da história‖. No terreno da comparação de Habermas (1987), Schelling

percebia, na natureza, o elo original da vontade dialética do homem no rumo do progresso,

enquanto Bloch teria percorrido a mesma estrada pela visão da utopia como medida de

potência e potencialidades criadoras.

Tanto Schelling como Bloch revalorizaram o ―fundo escuro‖ ou o ―fundo tenebroso‖

da natureza e do homem, respectivamente, para alcançar impulso de potências imanentes,

com a diferença de que Bloch encontra, no conceito de processo, a luz para a ontologia do

ainda-não-ser a procura do aperfeiçoamento do homem. Na análise de Münster, Schelling

inspira-se no conceito aristotélico de potência como dynameion, um horizonte em aberto, e

Bloch converte, para as categorias de possibilidade, ―o ser-em-possibilidade‖, que comporta,

em si mesmo, a antecipação de um futuro, ―ser-para-o-futuro‖ (MÜNSTER, 1993, p. 83).

Foi Schelling, junto com Leibniz, inspirador dos conceitos blochianos do ―mundo em

processo‖ e ―tendência‖, além do conceito do ―ainda-não-ser‖, que fazem parte do Capìtulo I

de O Princípio Esperança (BLOCH, 2005). Segundo Münster (1997, p. 149), o mérito de

Schelling foi ―reatualizar a dimensão mìstica‖ da filosofia da Idade Média, em relação à

potência da natureza e do ser, mas a sua influência na obra de Bloch jamais teve o mesmo

peso que Hegel e Marx. É possível, a julgar pela interpretação de Münster (1997), que a

associação de Bloch a Schelling, por Habermas, tenha suas razões na ontologia blochiana do

ainda-não-ser, guiada pela hipótese do ser-em-possibilidade. Corresponde, guardadas as

proporções, à filosofia schellieana da natureza.

14

Cf. As Origens do Inconsciente: – De Schelling a Freud – o Nascimento da Psique Moderna, de Matt Ffytche

(2014).

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Contudo, foi graças ao estudo de Schelling que Bloch pôde se defender das acusações

de dirigentes da antiga República Democrática Alemã de que sua filosofia era mística. Essas

acusações, como as de ser ―revisionista‖, surgiram porque Bloch se tornou dissidente da então

RDA. O que ele procurou foi reativar a compreensão dos vínculos entre marxismo e a religião

e lançar nova interpretação sobre o papel de Thomas Münzer na revolução alemã.15

Isto

ganhou nitidez quando Bloch recorreu a Schelling para argumentar que a natureza é um valor

e que conteria ―modelos que ninguém ainda interpretou, ao passo que os da revelação escrita

há muito já foram consumados e interpretados‖ (BLOCH, 2006b, p. 427-8).

O homem estaria entre os modelos da natureza carentes de interpretação. Schelling

(2012) argumenta que não conhecemos outro Deus senão o deus vivente, o homem, e se

perguntava quem seria o homem, quais as conexões entre sua vida espiritual, a vida natural e

o mistério original da sua individualidade. Exatamente, como, por outras palavras, Bloch

(2005) se questiona sobre o sentido da vida e de suas contradições sob o capitalismo.

Schelling foi ao lado de Aristóteles, Leibniz, Kant, Hegel, Marx e Engels um dos

pensadores, além de Goethe, que influenciaram decisivamente a filosofia de Bloch. Deixando

Schelling à parte, Bloch, logo após a Revolução de Outubro, tomou o partido da criticada

filosofia de Hegel graças às suas afinidades como o marxismo e comparou a Fenomenologia

do Espírito (HEGEL, 1993), pelos seus ―horizontes amplos‖ ao Fausto de Goethe.

Naquela ocasião, Lênin também defendia Hegel e a atitude de Bloch foi considerada

uma tentativa de tirar da burguesia a herança de Hegel e trazê-la para o socialismo (PASTOR,

1986, p. 76). Com Schelling, foi diferente. O que estava em questão não eram os fundamentos

metafísicos, mas o próprio sistema filosófico de Bloch. Portanto, de nada adiantou Bloch

tentar associar o pensamento de Schelling às raízes do conteúdo material do mundo, como

não adiantou questionar o sentido natural do bem supremo e discutir filósofos, como

Paracelso e Jakob Böhme, entendendo que as forças religiosas e místicas impulsionam a

consciência revolucionária contra a desumanização capitalista.

15

Cf. Utopia, Messianismo e Apocalipse nas Primeiras Obras de Ernst Bloch, de Arno Münster. O autor

explica que mergulhou nas águas da Idade Média para encontrar a mística do igualitarismo no cristianismo

primitivo: ―Essa herança não pode ser comprimida em fórmulas históricas ou sociológicas, pois, no quadro

de um marxismo corretamente compreendido, marxistas e socialistas não deveriam ter presentes apenas as

leis mais simples do movimento do capital, de sua acumulação e de sua circulação, mas também os velhos

sonhos da humanidade que antecipam anseios autênticos de emancipação enraizados na história popular, os

‗sonhos para a frente‘, que, em certas circunstâncias, podem vir carregados com teor mìstico e religioso. Para

Bloch, a figura de Münzer marca um ponto de cruzamento, no qual confluem a expectativa messiânica

moderna, o anabatismo, o utopismo inspirado no comunismo da comunidade primitiva e um movimento de

sublevação social radical, que assumiu a forma material de violência‖ (MÜNSTER, 1997, p. 194-5).

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O próprio espírito humanitário é o inimigo nato da desumanização: sim, do

fato do marxismo nada mais ser que a luta contra a desumanização, que

culmina no capitalismo até à sua completa anulação, resulta também e

contrário que o marxismo autêntico de acordo com a sua motivação, sua luta

de classes e seu teor final, nada é, nada pode ser e nada será além do espírito

humanitário. Sobretudo todas as turvações e todos os desvios ocorridos pelo

caminho só podem ser realmente criticados e até mesmo revolvidos dentro

do marxismo; pois ele é o único herdeiro daquilo que, na antiga burguesia

revolucionária, era intencionado em termos de humanidade. E através do

reconhecimento de que a sociedade de classes, em grau extremo a

capitalista, provoca todo o tipo de autoalienação, ele foi o único que avançou

até à raiz eliminável (BLOCH, 2006b, p. 444).

O que colocou Bloch na mira de muitas críticas, por parte da Alemanha Oriental e de

muitas tentativas de compreensão das suas teses até os dias atuais, foi a visão humanística do

marxismo, com ênfase ao elemento humano da revolução social, independente da ortodoxia

bolchevique. Bloch, segundo Pastor (1986, p. 81-5) foi criticado tanto pelo capitalismo, que

tentou secularizar sua doutrina marxista, como pelos países do Leste Europeu, que tentaram

atrelá-lo a uma leitura laica de visões religiosas e místicas anteriores a Marx, como se não

prestasse suficiente atenção aos Manuscritos Econômico-filosóficos de Marx e às bases

hermenêuticas das Teses sobre Feuerbach. Foi característico de Bloch ressaltar o primado da

prática sobre a teoria, diferentemente do ―Espìrito Absoluto‖ de Hegel que se revela sempre

idêntico a si mesmo.

Tanto havia dissonâncias que a ortodoxia bolchevique, além de persegui-lo antes dele

buscar exílio na Alemanha Ocidental, não dava atenção necessária às suas ideias e, ele, por

sua vez, desdenhava das ideias bolcheviques. Bloch (2005) revelava-se hostil ao pragmatismo

e ao praticismo socialista e criticava os bolcheviques por desejar aplicar a filosofia de Marx

sem superá-la. Considerava alienantes as coisas que se institucionalizavam e se tornavam

artificiais e encontrava a alienação não só no capitalismo – o dinheiro, o comércio e a

propriedade privada, o egoísmo –, mas igualmente na obscuridade do ―socialismo de Estado‖.

Quando, no alvorecer dos anos 1930, criticou a propaganda comunista por ser abstrata

e sem fundamento na realidade de operários, soldados e quanto à idealização do sujeito pelos

comunistas alemães, nos anos de ascensão do nazismo, não foi ouvido.16

Otimista quanto à

16

Cf. BLOCH, Ernst. On the Original History of the Third Reich. In: ______. Heritage of Our Times, 1991. p.

117-37. Nesse capítulo, Bloch trata da grande dificuldade de desalienação da esquerda alemã, que alimentou

entusiasmo ilusório quanto ao ―utópico‖ paraìso socialista da República de Weimar e não se deu conta da

força da propaganda nazista que reviveu, na figura da ―Grande Alemanha‖ (Gross Deutschland), o mítico

Frederico II, tido popularmente como o ―imperador perfeito‖. Hitler ocupou o espaço como reconstrutor da

Alemanha, e a esquerda perdeu-se na tarefa de organizar a frente popular, de laboriosa unificação - o que

demandava um tempo inexistente para educação dos militantes -, deixando espaço livre aos nazistas aliarem

o tempo mítico com ilusórias promessas sociais.

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renovação do marxismo e disposto a defender a inter-relação entre o falar e o pensar para dar

corpo à realidade e aos conceitos de mudança, tentava mostrar que faltava contemporaneidade

à linguagem socialista. Ser contemporâneo seria motivar o povo a pensar para a frente, não

voltar-se para os velhos tempos, nem cultuar a hierarquia e a burocracia. A linguagem não se

tratava de simples uso de palavras ou de discursos, nem de fórmulas matemáticas, mas da

procura da expressão de ideias concretas, filosoficamente realistas.

A defesa do eclético movimento expressionista é um bom exemplo do sentido da

linguagem em Bloch e a percepção do novo em oposição à crise do mundo burguês que, para

ele, tinha sua maior evidência no fascismo. Não negava que o movimento, desde 1922,

contivesse ―sombras objetivamente arcaicas‖ de um anticapitalismo imaturo, mas, ao

contrário de Lukács, entendia que, no expressionismo como reação ao academicismo e uma

arte do tempo de crise, ―o sonho primordial‖ de mudança e a ―luz do futuro se fundem‖

(MÜNSTER, 1997, p. 173). Se abria aos desejos, dava voz ao sujeito que se movimenta na

realidade e continha ―uma carga altamente subjetiva, crìtica e revolucionária‖ (PASTOR,

1986, p. 55).

E, por mais contradições que o expressionismo pudesse ter, não ensombreciam a

dimensão utópica de expoentes como Klee, Kandisky e Chagal (BLOCH, 1991, p. 242). A

valorização do expressionismo por Bloch era explicada pelo seu interesse pelo moderno: a

pintura, o teatro, a técnica artística, a relação dialética entre a decadência e o surgimento do

novo, definição de um conceito revolucionário autenticamente materialista e revolucionário, à

margem da ortodoxia academicista (ZECCHI, 1978, p. 231-9). Foi procurá-lo nos

movimentos sociais revolucionários, representados pelo líder camponês Thomas Münzer.

Os mortos retornam, como num novo gesto, assim em significativo contexto,

portador de novas descobertas, e a compreendida História, formada sob o

influxo impulsionador das idéias revolucionárias, transformada e iluminada

em lenda, tornando-se uma função que não se perde, na plenitude dos seus

testemunhos, anunciados pela Revolução e o Apocalipse (BLOCH, 1973, p.

7).

Na interpretação de Pastor (1986, p. 57), Münzer é a tensão no rumo da sociedade sem

classes, rota dura e espinhosa, mas promissora quanto ao futuro. Representa o expressionismo

social na obra de Bloch e aponta para os debates, de 1935, em defesa da cultura, reação à

ascensão de Hitler. Luckás (que criticou a falta de conexão do movimento expressionista com

o povo e a falta de raízes históricas) e Bloch ficaram em lados opostos; Bloch interpreta o

movimento como busca do encontro com o ―eu‖, da autotranscendência, alimentando-se do

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espírito do passado, em particular a arte gótica, a fé cristã e o socialismo marxista (PASTOR,

1986, p. 55).

A discussão foi emblemática por demarcar a distância entre o marxismo fechado e o

marxismo aberto ao novo e às mudanças determinadas pela juventude das diferentes épocas.

Movendo-se no terreno do materialismo dialético, Bloch recusava-se a vincular a realidade ao

pensamento puro e não se prendia ao que, aparentemente, possa parecer real. Investigava o

homem e seus conceitos, juízos e modos de pensar com as lentes da história e da natureza,

mas a essência de sua percepção estava em ultrapassar a realidade.

Em Das Materialismus-problem (1972), Bloch define o materialismo como a ―grande

filosofia‖ por encontrar a solução nas contradições, sem que o mundo seja visto como estático

(BLOCH, 1972, p. 134). Em Experimentum Mundi (1975), recorda o exemplo de César ao

atravessar o rio Rubicão para conquistar Roma, tal como registra a história, como exemplo da

incerteza quanto ao futuro de alguém que tinha rompido com o seu passado (BLOCH, 1975,

p. 11). Com isso, propunha-se a superar a lógica do juízo tradicional e analisá-lo como

processo imerso num sujeito que depende não do destino, mas da ação, que não depende de

um juízo, mas que virá a ser a mediação dialética de um juízo e de uma identidade nova.

A discussão em torno do expressionismo demonstra que o pensamento blochiano

transcende a realidade cotidiana. Supera o racionalismo e o idealismo. É teleológico e

dialético. Não é imanente apenas da consciência, mas de algo exterior a ela, traduzida pela

superestrutura e pela a tendência-latência dos acontecimentos. Não admite a passividade, mas

a dialética da atividade. Ante um acontecimento novo, como foi o expressionismo, Bloch não

aceitava as interpretações de que o espìrito do movimento era aquele de ser ―filho do

fascismo‖ (BLOCH, 1991, p. 246).

O tempo, a força mais antiga que se conhece e que preside a existência de todas as

coisas, para ele, é que determinaria a natureza do expressionismo, e este estava apenas

começando. O princípio da ação encontrou referência política na vigorosa oposição de Bloch

ao fascismo, à ―ortodoxia comunista‖ e na não coincidência entre os sonhos de ser do homem

e a superestrutura capitalista.

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Formulado em outras palavras: todo possível que transcende o meramente

possível de ser pensado representa uma abertura em decorrência de uma base

condicionante ainda não completamente suficiente, ou seja, mais ou menos

insuficiente. Dispondo-se apenas de algumas, mas não de todas as

condicionantes, ainda não é possível deduzir do possível assim constituído o

real, razão pela qual é válido o antigo princípio escolástico: a posse ad esse

non valet consequentia (do poder-ser não decorre necessariamente o ser).

Mas, retornando ao próprio possível factual, de que se trata aqui, ele é

igualmente condicionalidade parcial, mais precisamente, contudo, apenas

conhecimento-reconhecimento parcialmente factual da condicionalidade

(BLOCH, 2005, p. 223).

Assim, Bloch demonstrava a distância que separa as premissas condicionantes do

conhecimento dedutivo, esquematicamente fechado, ―alheio ao mundo‖, do conhecimento

possível, aberto para a investigação e o reconhecimento da incompletude das manifestações

conhecidas (BLOCH, 2005, p. 226). Internas e externas, essas manifestações entrelaçam-se no

tempo e na história e indicam o que pode ser feito e o que pode ser transformado, isto é ―o

possìvel objetivo real‖ (BLOCH, 2005, p. 226).

DAS POSSIBILIDADES E DO MATERIALISMO DIALÉTICO

O homem é a possibilidade real de tudo o que ele tem sido na sua história e

principalmente de tudo o que ainda pode vir a ser no caso de um progresso

sem entraves.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 230)

A expressão ―possìvel real‖ supõe diferentes visões: uma, expressa por Heráclito, é a

contradição dentro das próprias coisas ou dentro do próprio sistema; outra, é a filosofia da

esperança de transformação do mundo que perpassa as expectativas das religiões, permeia

toda a Bíblia, abrange uma reação mista de ―temor, proteção, confiança‖, fundamenta o

―novum da felicidade‖ e se faz presente na metafìsica da ―vitalidade‖ (BLOCH, 2000, p. 198-

9). A sua origem, e também o seu agente realizador, segundo Bloch (2005), é a dialética da

inquietação, aquilo que Aristóteles, citado por Bloch (2005, p. 204), definiu como

―possibilidade real-objetiva da matéria‖ ou a matéria pelo ―sendo-conforme-a possibilidade‖

ou pelo ―sendo-na-medida-do-possível.

Hegel, também citado por Bloch (2005, p. 206-8) referia-se à ―dialética do processo‖ e

Marx definia como a teoria-práxis do desenvolvimento do mundo na ―direção à não-

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alienação‖. O possìvel real, no dizer de Marx (1982, p. 776) é a ―expressão teórica de um

movimento‖ ou na interpretação de Goethe, ainda na citação de Bloch (2005, p. 220-1), ―a

atmosfera que envolve‖ tudo o que vive, tudo o que é real, um horizonte interior e exterior

que tem como pano de fundo a utopia. ―A possibilidade real envolve até o fim as tendências-

latências dialéticas abertas‖, é, na ―expressão profunda‖ de Aristóteles, ―enteléquia não

planificada‖ (BLOCH, 2005, p. 221).

Nessa concepção, estaria a oposição do materialismo marxista de Bloch do

materialismo anterior a Marx. A diferença entre a possibilidade de o homem construir a

sociedade sem classes da permanência da sociedade de classe estaria na dimensão da

atividade: se a ―Coruja de Minerva‖ voa à noite depois que a história se realiza, o homem

deveria agir durante o dia, à luz do sol, e ser ele o sujeito da própria história e das relações

sociais mais perfeitas. Pois, como ressalta Bloch (2005, p. 221) ―onde não se pode mais nada

e onde nada mais é possìvel, a vida parou‖.

A crítica ao pensamento de Bloch se repetiu com maior ou menor intensidade a

depender das posições que ele assumiu. Em 1938, quando se exilou nos Estados Unidos, em

Nova York, e enfrentou período de grande isolamento e dificuldades financeiras, sobreviveu

graças ao trabalho da sua mulher, Karola.17

Comunista, ela fazia serviços como garçonete em

bares e como assistente nos escritórios de arquitetura, enquanto o marido escrevia.

O cenário agravou-se, porque o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt

discriminou Bloch. Por considerar o filósofo partidário de Stalin, recusou-lhe trabalho e

confiança.18

Karola conquistou a cidadania americana, mas nunca se desvinculou da filiação

17

Bloch casou-se três vezes. A primeira, foi com Else von Stritzky (1883-1921). Escultora, segunda de 12

filhos de uma família rica da cidade russa de Riga, Bloch a conheceu em 1911 e se encantou pela sua

independência, não tendo ela exigido do jovem filósofo qualquer compromisso ou ―reciprocidade erótica‖

(BLOCH, 2011, p. 5). Casara-se em 1913 e, em carta a Lukács, a quem escrevia com ―brutal franqueza‖,

assegurava viver ―felicidade sem limites‖. Nos anos seguintes à morte de Else, Bloch escreveu um pequeno

diário sobre a vida do casal, comparando-a a uma melodia de Schubert, e sobre o sorriso de Else, que ―não

era desse mundo‖, a iluminar seus olhos azuis, abertos (BLOCH, 2011, p. 567). Além de Else, Bloch casou

mais duas vezes. A segunda mulher chamava-se Linda Oppenheimer. O terceiro casamento foi com Karola

Piotrkowska, com quem viveu até ao fim da vida. Arquiteta, engajou-se nas lutas antifascistas e,

posteriormente, nas brigadas internacionais durante a Guerra Civil Espanhola.

18

A atitude de Bloch ante o stalinismo não foi sempre clara: antes de se tornar crítico de Stalin, defendeu os

processos de Moscou nos anos 1936-7, não compreendeu a oposição trotskista na União Soviética contra

Stalin, nem o terror policial, além de ter sofrido críticas pela sua submissão ao Partido Comunista e à

República Democrática Alemã, nos primeiros anos, como professor da Universidade Karl Marx. A

insurreição húngara de outubro de 1956, com a prisão e deportação de Lukács o qual, durante uma semana,

fora ministro da educação do governo provisório, revela um novo Bloch: junto com intelectuais de esquerda

de toda a Europa protestou publicamente, manifestando seu ―desacordo com a repressão sangrenta aprovada

pela República Democrática Alemã e pelos dirigentes em Moscou‖ (MÜNSTER, 1993, p. 88). Em defesa de

Bloch, Furter (1974) argumenta que as ambiguidades do curso da história são tais que, muitas vezes, ―é

difìcil seguir o fio de Ariadne da autenticidade e da verdade‖, o que não impediu o filósofo de discernir, na

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ao Partido Comunista Alemão, embora a militância fosse proibida na América para

estrangeiros. Aglutinava companheiros, fazia política antinazista e pró-comunista, com nome

falso, num país anticomunista. Bloch também conquistou a cidadania norte-americana, mas

nunca assimilou a cultura americana e a rejeitou com desdém.

As hostilidades contra Bloch recrudesceram, em escalas muito maiores, quando, em

1961, ele iniciou o último exílio na Alemanha Ocidental. De repente, aquele, que era

considerado o grande filósofo da Alemanha Oriental, passou a ser apontado como

revisionista. Vendo seus amigos serem presos, e as pessoas, temerosas da polícia secreta,

voltar-lhe as costas nas ruas, vendo-se impedido de ensinar por imposição da aposentadoria

que lhe proibiu a entrada na universidade e mesmo na biblioteca, descobriu-se sem futuro na

RDA. Estava em Bayreuth, na Alemanha Ocidental, quando decidiu escrever carta ao

presidente da Academia de Ciências da RDA, informando da sua decisão de não retornar.

Tinha 76 anos. A decisão de passar para o Ocidente começou a ser tomada nos dias

que se seguiram à revolta do operariado de Berlim, em 15 de junho de 1953, logo após a

morte de Stalin. Bloch limitou-se, ao contrário de Bertolt Brecht e da esposa Karola, a

defender a renovação do Partido Comunista. Brecht desafiou publicamente o partido. Karola

escreveu carta aos editores do jornal Neues Deutschland, condenando a ―falsa polìtica‖ dos

dirigentes partidários e defendendo a apuração das causas da revolta operária, que se devia

aos erros do Partido Comunista e não à ingerência da Alemanha Ocidental nos negócios

políticos da Alemanha Oriental, na tentativa de desestabilizar o regime.

Novos acontecimentos políticos viriam a ampliar a distância entre Bloch e o Partido

Comunista, precedidos pelas discussões em torno dos vínculos entre as liberdades públicas e

individuais e a filosofia marxista. Essa posição era claramente defendida por Bloch desde os

primeiros cursos de história da filosofia e pareceu reforçar-se com o Relatório Khrushchov,

com a publicação datada de fevereiro de 1956, após o XX Congresso do PCUS.

Foi decisiva também a insurreição húngara de outubro daquele mesmo ano, sufocada

pela República Democrática Alemã e por Moscou. Em Budapeste, 20 mil pessoas morreram.

Bloch protestou publicamente (MÜNSTER, 1993, p. 90). As mudanças no plano da liberdade,

apesar de tímidas, viriam de fato a ocorrer, mas muito adiante com Gorbachev e ao preço da

destruição do socialismo na União Soviética.19

―realidade bruta‖, os sinais que esclarecessem o presente mais profundo e significativo da sua época e

anunciassem o futuro (FURTER, 1974, p. 27-9).

19

Mikhail Gorbachev chegou ao poder, em 1985, como secretário-geral do Partido Comunista. Sua política de

abertura, a perestroika desintegrou a enorme URSS, com 15 repúblicas e 290 milhões de pessoas. A queda

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A situação deteriorou-se. O nome de Bloch passou a figurar na lista negra da polícia

secreta, a Stasi, sob suspeita de atividades contrarrevolucionárias. Acusações: desvio

ideológico e revisionismo do materialismo histórico e dialético que logo passariam a ser

criticado, publicamente, pelos dirigentes do partido e do Estado (MÜNSTER, 2001b, p. 236-

52). A campanha difamatória culminaria com uma carta aberta dos dirigentes do Partido, em

18 de janeiro de 1957, dirigida a Bloch. Acusação: pretender ensinar a filosofia marxista e

formar pesquisadores com base em princípios não marxistas e não leninistas, a exemplo do

direito natural.

Quando obteve, com sua mulher, um visto de saída para assistir às apresentações de O

anel dos Nibelungos de Wagner, em Bayreuth, resolveu exilar-se. Soube pelos jornais, em 14

de agosto de 1961, que seria construído um muro de 155 quilômetros em Berlim, separando

as Alemanhas. No mesmo dia, seu filho, Jan Robert, ligou de Londres, confirmando sua

decisão de ―desconectar-se‖ da RDA.

Seu próximo destino foi ensinar em Tübingen, cidade universitária com 50 mil

habitantes, situada a 40 quilômetros ao sul de Stuttgart. O Ministério da Educação e Cultura

emitiu-lhe permissão especial para que ensinasse. Assim, admitido como professor visitante

por tempo indeterminado, tornou-se o exilado mais célebre da Alemanha Ocidental. Entre os

estudantes, que lotavam os seus cursos, passou a ser conhecido como o ―profeta marxista

desarmado‖ (MÜNSTER, 2001b, p. 277).

O MÉTODO E A ÉTICA PARA FRENTE

É a privação que concede força ao homem; quem tem de ajudar-se, ajuda.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 273)

Ernst Simon Bloch nasceu em 8 de junho de 1885, em Ludwigshafen, cidade industrial

com um grande porto, de onde ele saiu logo depois que deixou o Liceu, em julho de 1905, e

do Muro de Berlim e a reunificação alemã fizeram parte do ciclo de mudanças e levaram o jornal Der

Spiegel, duas décadas depois, a indagar: ―Mikhail Gorbachev foi o maior reformador do século 20? Ou ele

subiu ao cargo de líder do Partido Comunista, mais ou menos por acaso, apenas para causar o colapso da

União Soviética através de indecisão e medo?‖ (NEEF; SCHEPP, 2011). Disponível em:

<http://www.spiegel.de/international/world/the-mystery-of-mikhail-gorbachev-s-ambiguous-legacy-a-

781043-2.html>.

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foi estudar filosofia na Universidade de Munique com o professor Theódor Lipps.20

Filho

único de um casal judeu, estreitamente pequeno-burguês, na infância, para fugir do pai, rígido

e sem ambições intelectuais, que rejeitava sua vocação para a filosofia, Bloch atravessava o

rio Reno para ler na biblioteca de Mannheim – cidade vizinha, sofisticada no cultivo da

elegância e da pureza aristocrática, de forte tradição cultural, que ficava na margem esquerda.

Bloch viveu até ao dia 4 de agosto de 1977. Sobrevivente de uma época trágica, que

desafiou o conceito iluminista de racionalidade humana, os funerais de Bloch foram

organizados na cidade de Tübingen, na Alemanha Ocidental, onde vivia exilado, com o

cortejo acompanhado por duas mil pessoas, em sua maioria, estudantes, cujo representante

destacou: ―Ernst Bloch continua a viver, não no balanço da indústria da consciência, não na

hipocrisia dos governantes, não na esperança pessoal, mas na esperança revolucionária‖

(MÜNSTER, 2001b, p. 369). Morreu o homem, ficou a herança genuinamente marxista da

utopia da totalidade humana.21

O seu método é a dialética materialista da transformação revolucionária, mas Bloch o

ampliou ao anexar o estilo do antigo colporteur, o vendedor de livros que ia de porta em porta

como uma biblioteca ambulante. Vivamente interessado pela metafísica, a música, a

psicologia e a teoria do conhecimento, concebe sua ―peculiar concepção filosófica do ainda-

não-consciente‖ em 1907, um ano antes de defender sua tese de doutoramento (PASTOR,

1986, p. 27).

A ênfase do conceito recai sobre a ampliação sucessiva dos temas, como faz com o

ainda-não-consciente: coloca o impulso (Trieb) na primeira linha das características do

20

Em setembro de 1906, mudou-se para a Universidade da pequena cidade de Würzbourg e inscreveu-se no

curso do professor Oswald Külpe, da escola neokantiana. Embora nutrisse admiração pela coragem ética e

política de Lipps, fundador da escola psicológica neokantiana, que protestou publicamente contra a cruel

repressão do regime czarista contra os revolucionários russos no ano de 1905, sentiu que a solidão de uma

cidade menor era mais propícia aos estudos do que em Munique, com seus teatros, cafés e cabarés, uma

espécie de Quartier Latin da Alemanha.

21

Totalidade foi um conceito persistente nas discussões teóricas das primeiras gerações de marxistas do

Ocidente, mobilizando Lukács, Karl Korsch, Antonio Gramsci, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno,

Herbert Marcuse, Leo Lowenthal, Walter Benjamin, Henri Lefebvre, Maurice Merleau-Ponty, Louis

Althusser e, evidentemente, Ernst Bloch. Envolveu marxistas ortodoxos e heterodoxos, leninistas, stalinistas,

trotskistas, idealistas e vicejou pela Europa, tendo como epicentro da comunicação, a New Left Review. No

centro do debate, encontravam-se os fundamentos filosóficos que determinam as relações entre a natureza e a

história. Mas, igualmente, a resiliência do capitalismo, o advento do fascismo, o impacto da psicanálise e de

Freud, além da Gestalt do estruturalismo. Convergiu para uma visão holística, não radical, mas sua influência

política tem sido escassa e pouco contribuiu para frear a desilusão com o comunismo. Como um pêndulo na

cultura marxista, a história do conceito, que tem Bloch como um dos seus fundadores, a partir da experiência

acumulada, projetar-se-á para o futuro e ―ainda não terminou‖ (JAY, 1984b, p. 20). Inclusive porque a

totalidade é parte recorrente e forte do discurso do Ocidente, estando associada aos conceitos de coerência e

ordem, mudança e fragmentação, consenso e comunidade, conflito e contradição. Com o marxismo, o

conceito discutido desde Aristóteles até à sociedade capitalista avançada, ganha nova dimensão social e

prática (JAY, 1984b, p. 21-80).

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homem, salta para o não-ter (Nicht-Haben), referente a áreas da realidade que permanecem

inacessíveis, e chega ao não (Nicht), que não é o vazio, mas expressão da recriação. Fazia

frente ao processo regressivo com estrutura teórica que negava o que era já conhecido e se

situasse em dimensão mais radical e mais original que aquela de Hegel com o Espírito

Absoluto.

Com relação a Freud, rompeu limites na análise do inconsciente: considerava seus

ensinamentos relevantes, da mesma maneira do que ocorria com Hegel, mas desejava

investigar o inconsciente humano para a frente, não para trás. O ponto de referência era o

sonho acordado e o que nele se podia depreender quanto ao futuro. Sua proposta, segundo

Furter (1974, p. 90) era de que o homem lograsse transformar a ―agitação‖ dinâmica dos

impulsos em ―tendência‖ e identificasse a consciência com o processo, orientando o homem

para o trabalho dialético de crítica construtiva.

A imaginação, como no sonho acordado, teria o papel de abrir brechas na realidade,

explorar as possibilidades de mudança, introduzir o possível dialético no cotidiano. Assim, no

pensamento de Furter (1974, p. 116) é que a consciência antecipadora multiplicaria suas

frentes e o ainda-não iria se tornando realidade e, logo, outro ainda-não, e mais outro e mais

outros, no sentido contrário do niilismo que só atravessa do não ao nada. Dentro dessa

postura, é fundamental o papel do sonho acordado com relação ao sonho dormindo. Freud

defendia a preponderância do sonho dormindo, Bloch se posicionava de maneira inversa.

Na visão de Bloch (2005), um fio categorial puxa o outro, caracterizando a realidade

da matéria como processo e mediação, vendo o não como o ainda-não e o ser não como

tendente à aniquilação, mas como promessa e possibilidade. Para Bloch, o pensamento

utópico não se restringia a simples negação. Era a negação dialética do mundo existente, mas

o ainda-não-consciente que se projetava para o futuro. Nascia das contradições da verdade

oficial, institucionalizada.

A origem do homem existe formalmente, mas ainda não saltou para fora de si. É essa

incompletude que determina os processos históricos, mas que ainda não se situaram no ―ano

zero do inìcio do mundo‖ (BLOCH, 2005, p. 301-29). Bloch sente necessidade de ir além da

esperança na vontade de mudança e se volta para a investigação do que o homem tem dentro

dele e que pode implicar em ação objetiva quando tal dinamismo deixar de ser cego. Imagina

que, nas circunstâncias do despertar, os movimentos irão depender da consciência de si

mesmo, do homem individual e coletivo.

Por isso, Bloch (2006a) trilharia pela análise da utopia desde a Antiguidade e procurou

pensar para além do círculo do imediato das contingências. Referia-se à tirania inconsciente

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dos valores somada à ideologia capitalista, que mesmo o homem revolucionário não as

percebia. Como agudamente percebe Pastor (1986), Bloch era um ―expressionista‖ que rompe

com o pensamento tradicional, volta-se para o sujeito que constrói a realidade e desenvolve

―aberto e prospectivo‖ sistema em que nada é considerado estranho na procura de levar o

homem a encontrar o seu ―eu‖ profundo (Selbsbegegnung).

Como colporteur, Bloch conta histórias. Histórias mágicas, como os contos de Grimm,

Mesinha-se-arruma, O asno de ouro e Porrete dentro do saco, em que a fantasia muda a

realidade e os fracos se tornam fortes, porque a mesa se arruma sozinha, o burro expele peças

de ouro e o porrete se torna uma arma mágica, serve para que o pobre, que se tornou rico,

sobreviva no mundo.

Conta histórias de Andersen, de Edgar Allan Poe e Kipling, também com a mágica

modelando a felicidade e a vida ideal nas lâmpadas de Aladim, nas suas terras imaginárias,

seus paìses das maravilhas, suas cidades misericordiosas ―onde o pobre descarrega o seu fardo

e o doente esquece o que é chorar‖. Mas sem que os personagens deixem de ser utópico-

sonhadores (BLOCH, 2006a, p. 346-53).

Remonta a tempos bem mais antigos que a Idade Média. Visita a arte do circo, com

tudo acontecendo à luz da iluminação, espetáculo que diverte, mas que não deixa de ser a

utopia popular da alegria; e conta histórias do romance popular, a colportagem, que denuncia

a ―velhacaria burguesa‖, mas que não deixa de falar de libertação. Eram castelos de ar, mas

castelos de ar sonhadores.

Conta histórias de sonhadores ambiciosos, de Ícaro a César, de Circe, Midas, Ceres a

Leonardo da Vinci. Histórias de jovens gênios, talentosos, que contam experiências luminosas

e criam os recipientes plenos de futuro, expressões de inquietação, de intuição e de incubação

da capacidade humana de realizá-las. Critica, e critica com veemência, os discursos que

desacreditam o homem. Condena o ceticismo, a doença conservadora, clarifica a possibilidade

de acesso ao futuro pela ação, celebra o agora do existente, o que se está realizando.

Viver significa de fato estar presente; não quer dizer apenas antes ou depois,

antegosto ou totalidade ―pós-gosto‖. Significa colher o dia, no sentido mais

simples e mais fundamental; significa assumir uma atitude concreta em

relação ao agora. Porém, pelo fato de nosso estar-presente mais próximo,

mais próprio, incessante, não ser tal coisa, nenhum homem vive realmente,

justamente por esse lado não (BLOCH, 2005, p. 288).

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Bloch seguirá as pegadas de Goethe para chegar ao coração do mito de Pandora22

e de

Ulisses de Dante para se opor à repetição não dialética da volta a Ítaca de Ulisses de Homero.

Seguirá Marx, em particular as Teses sobre Feuerbach os Manuscritos Econômico-

Filosóficos de 1844 para anunciar: ―A humanidade socializada, aliada a uma natureza

mediada por ela, significa a reconstrução do mundo como pátria e como lar‖ (BLOCH, 2005,

p. 282). Impossível separar o método narrativo de Bloch do método marxista de clarificação

da luta de classes. Eles se influenciam e se interpenetram. São sujeito e objeto da confiança de

Bloch no homem revolucionário.

A estrada blochiana rumo ao materialismo dialético começa aos 15 anos, em 1900,

como ele registra em Traces (Spuren): ―O que se chama de Deus nada mais é do que a soma

infinita da matéria, da força e da razão (inconsciente)‖23

(BLOCH, 1968, p. 58, tradução

nossa). A consciência, a seus olhos, não passaria de uma iluminação do espaço vazio, como a

luz na noite, tendo atrás de si um dínamo obscuro.

As iluminações originais são aristotélicas e da esquerda aristotélica e têm sustentação

no conceito do ser-em-possibilidade. Surgem do interesse de Bloch pela teoria do

conhecimento na contraposição entre a sua forma passiva (Abbildlehre), que supera o

princípio de que a identidade é igual à consciência; e a forma ativa (Erzeugungstherie), que se

efetiva na teoria da produção. Ao reagrupar as Teses de número 5, 1 e 3 de Marx sobre

Feuerbach, concebe que o conceito de atividade, acentuado por Marx, na Tese 1, origina-se da

teoria idealista do conhecimento e, foi desenvolvida na era moderna burguesa, mas que isso

ocorre por exigência da mais-valia. Demócrito, o primeiro grande materialista, que deu o tom

da teoria do conhecimento até Marx, foi influenciado pela sociedade escravista que, na Grécia

Antiga, desconhecia o conceito de trabalho (BLOCH, 2005, p. 252).

Antes de Marx, Hegel, na Fenomenologia do Espírito, tratou seriamente a questão.

Segundo Marx, foi Hegel quem primeiro conseguiu captar o conceito epistemológico do

trabalho (BLOCH, 2005, p. 252). Mas o confronto entre o conhecimento realista e passivo

com o conhecimento ativo, idealista ou não, em Bloch, parte do aristotelismo e de sua

22

Cf. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (s/d). No Capítulo VII, O delírio(p. 31-7), o

personagem sonha que é levado por Pandora a uma viagem e, fascinado, percorre os flagelos da história,

inclusive o cativeiro dos hebreus, questiona o egoísmo humano e assiste ao desfilar dos séculos, num

―turbilhão‖, cada um trazendo a sua ―porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de

erro‖, na decifração da eternidade. Um cortejo que retrata o passo da vida e se transforma com a

regularidadecom a qual o calendário faz a história, mas que é sinônimo de esperança e mudança, como em

Bloch. A diferença é que Pandora surge no sonho dormindo, não no sonho acordado.

23

―Ce qu‘on appelait Dieu n‘était plus que la somme infinie de la matière, de la force et de la raison

(inconsciente)‖.

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esquerda, com o conceito de matéria e o duplo sentido da dinâmica passivo-ativo, concebendo

ser simultaneamente ―possibilidade e potência‖ (BLOCH, 2008, p. 55; MÜNSTER, 2001a, p.

190).

Para Bloch (2006a), esse encontro inicial com o materialismo é parte da aproximação

de pensadores ativos, a exemplo de Avicenna e Münzer. Assim, a esquerda aristotélica é um

processo que chega a Marx e Lênin. Alimenta um comportamento não contemplativo e

fundamenta o elemento factual e estrutural dos acontecimentos. Converge, como Bloch

(2006b) chama a atenção, constantemente, para a interação entre a infraestrutura e a

superestrutura da sociedade, com a superestrutura criando condições para o modo de

produção dominante e mascarando contradições tanto na produção como na política e na

filosofia.

Colocada a filosofia blochiana na perspectiva de uma superestrutura nova, em que se

encontre um equilíbrio entre as forças de produção e as relações de produção e entre os

homens, pode-se compreender, como ressalta Bloch (2005, p. 290), porque o ―socialismo

necessita de teóricos para ativar o movimento de mudança e sair da zona de silêncio‖, surda à

música do existir incógnito, o aparentemente oculto, que ―impulsiona o conteúdo do próprio

existente‖. O ―existir incógnito‖ e o ―oculto‖ correspondem a coincidência, no mundo

burguês, da superestrutura com a ideologia da classe dominante que aspira ao poder, não à

valorização do trabalho e do homem.

Bloch (2005) argumenta que Aristóteles, mais do que o precursor do materialismo e da

esperança, foi o filósofo que primeiro pensou o homem como processo dinâmico e

possibilidade prática. Embora não pensasse na sua emancipação, em relação à sua autonomia

da sociedade de classes da Antiguidade, procurou dar substância à harmonia entre as

necessidades e a liberdade humana. Portanto, trouxe a filosofia para a realidade humana e a

reflexão em torno do mundo real. À semelhança de Marx, Aristóteles teria visto o homem

como a raiz do homem, mesmo tendo possuído escravos e visto a escravidão como necessária

ao mundo grego.

O próximo passo, na estrada do materialismo dialético, deu-se por meio da visão

anticapitalista do inìcio do século XX. Nasce da ―morte de Deus‖, ideia nietzschiana de livre

circulação à época da formação de Bloch. Essa crise metafísica, corolário do abandono do

mundo por Deus, esse ―desencantamento do mundo‖, empurrou Bloch para um ―misticismo

intelectual‖ influenciado por pensadores da Idade Média, como Eckhart, Böhme, Gioacchino

di Fiori, além da cabala (DESPOIX, 1986, p. 25).

Buscava preencher a lacuna entre o homem e Deus, sendo Deus a consciência interior

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do homem que havia se dissipado e que deveria estar presente na ―experiência vivida‖, na

―filosofia‖, na experiência individual do encontro de si e do coletivo, no ―espìrito‖ e na

escatologia histórica (RAULET, 1986, p. 272-8). No ainda-não-consciente coexistem o

espírito renovador do marxismo e da psicanálise.

São múltiplos os liames conceituais que derivam desta conjugação: tendência latência,

pensar é ultrapassar, práxis, antecipação, função utópica, e a pátria humana. Em Hegel,24

Bloch encontra a essência da dialética e os postulados da unidade do homem com a natureza,

o que irá levá-lo aos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e às Teses sobre

Feuerbach.

Em Kant, Bloch depara-se com o paradigma ético, parte inerente da atividade humana

total e do casamento da humanidade, se vier a acontecer, com o futuro socialista. Sente-se

atraído, a ponto de citar Kant cerca de 37 vezes em O Princípio Esperança (outras 16 vezes

em The Spirit of Utopia e 17 vezes em Experimentum Mundi), pelo discurso moral da

igualdade, da dignidade da vida moral e pela desconfiança com que Kant trata a benevolência

e em oposição à boa vontade que estaria para o kantismo como a amizade esteve para o

aristotelismo. Mas a sua ética está longe de ser kantiana.

Bloch não é um defensor do iluminismo liberal, como foi Kant, e questiona os ideais

românticos da burguesia, considerando-os conformistas e sem vínculos com os ideais

comunitários. Ele considera o ―imperativo categórico‖ algo ―puro‖, mas coberto por uma

máscara ―inamistosa‖ que faz ―um rosto tão bonito‖ assumir uma ―aparência tão sevara‖

(BLOCH, 2006a, p. 421-2). Referia-se à formalidade do dever, sem o conteúdo da prática:

―Por causa da miséria alemã, a razão prática de Kant carece de prática verdadeira, contudo,

por princìpio, ele aciona o alarme contra a espoliação‖ (BLOCH, 2006a, p. 421-2).

Não se concentra apenas na crítica ao imperativo categórico, mas não nega o valor de

Kant ao considerar o homem como fim, não como meio, o que para Bloch só pode ser

24

No livro Sujet-Objet: éclaircissements sur Hegel (Subjekt-Objekt: Erläuterungen zur Hegel), escrito nos

Estados Unidos, Bloch discute Hegel em profundidade. Considera-o construtor de um ―palácio bem

decorado‖ pela ciência e vasto saber, com a ―universalidade‖ impressa pela filosofia e não apenas ―uma vila

imperial‖ do conhecimento. Desde Aristóteles, no domìnio do espìrito, ninguém tinha escrito um conjunto de

obras tão abrangente, embora boa parte delas tivesse sido publicada pelos seus discípulos e amigos. Isso

impediu a clara compreensão da sua filosofia e colocou, inclusive, em questão, a autenticidade de seus

escritos. Interessa a Bloch o método dialético hegeliano revelador das contradições entre a burguesia com a

Restauração e a sua imobilidade. Critica Hegel por considerar que o logos vem do coração, da experiência e

da alma. Conhece-te a ti mesmo – a fórmula socrática expressa por Hegel como dimensões cósmicas, em

lugar de considerá-la como processo – é para Hegel o retrato da ação. Bloch não se alinha com o pensamento

da Restauração, quer dizer o ―eu‖ reacionário, expressão do individualismo burguês, esquivo ao ―eu

revolucionário, e proporcionou a relativa vitória das forças do antigo regime sobre os jacobinos de 1893 e

sobre o que a filosofia das luzes via com aversão na tradição aristocrático-burguesa‖ (BLOCH, 1977a, p. 36-

8).

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alcançado na sociedade sem classes, porque, na sociedade burguesa, é cultivada a relação

senhor-servo: ―[...] nenhum proletário pode querer que a máxima do seu agir possa ser

pensada como princípio de uma legislação geral, que também inclua os capitalistas. Isso não

seria moralidade, mas traição a seus irmãos‖ (BLOCH, 2006a, p. 425).

Foi, porém, Kant, nos idos da formação de Bloch, que o despertou para a atitude

crítica e o motivou a condenar o neokantismo pela tentativa de excluir da filosofia as

tendências materialistas, as quais Bismark, no seu ódio ao comunismo, proibiu nas

universidades alemãs. A desconfiança intrínseca com relação à prática das ideias de Kant, fez

de Bloch, ao analisar as contradições do imperativo categórico, precursor daquilo que deve

presidir as relações humanas, a ética prática. Inviabiliza-se num mundo dominado pelo

capital, pela ilusão, pela falsificação e pela ―defraudação‖, que Hegel chamou de ―reino

animal intelectual‖, mas é viável num mundo de solidariedade das forças sociais (BLOCH,

2006a, p. 426).

Certamente, a condenação dos valores capitalistas deriva dessa rejeição ao kantismo

doutrinário que ele definia como ―fantasia objetiva‖ à época em que, aos 22 anos, formulou o

conceito de ―ainda-não-consciente‖ e, também, conceitos como ―ainda-não‖, ―latência‖,

―tendência‖ e ―utopia‖ (MÜNSTER, 1997, p. 59-60). Foi um processo crítico ao neokantismo

iniciado nas duas primeiras décadas do século 20, mas que, por meio de Kant, abriu-lhe os

olhos para a tese da antecipação do futuro.

Se a doutrinação do neokantismo fomentava o embate autoritário contra a

compreensão da história, Kant acendeu a fagulha do pensamento ético que une a consciência

contra a opressão. A esse respeito era necessária, para Bloch, uma ação prática, ampliando o

tema da ética para todos os homens, fazendo do amanhã e do mundo a medida a modelar pela

experiência.

Também supera a ética iluminista que conduz ao cognitivismo, o individualismo e o

universalismo (ROUANET, 1992, p. 149). Sim, a ética blochiana é cognitivista, porque

prescinde da religião como guia moral e, igualmente, é universalista, por entender que o

respeito à humanidade é um valor universal, mas não é individualista no que se relaciona a

colocar o homem acima da coletividade e das suas obrigações com relação à pólis. O homem

ético, além das obrigações comuns, não orientadas para a centralidade da autorrealização do

indivíduo, o hedonismo e o egoísmo, é aquele que sonha com o futuro.

Em Bloch, o indivíduo não é um átomo isolado, um ser soberano capaz de se sobrepor

às leis e estabelecer critérios soberanos do bem e do mal. O homem é o universal, mas o

procedimento de universalidade começa pela organização social. O processo não mais

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conduziria à dicotomia entre a natureza e o costume, mas para um mundo em que o

eudemonismo fosse comum a todos e a eticidade fosse a consciência moral solidária.

Contra o individualismo, a ética discursiva, a ética normativa e a ética do

individualismo absoluto, a ética socialista da igualdade e do progresso coletivo, levada à

prática para criar uma sociedade humana. Uma filosofia ética de liberdade, com o propósito

de criar uma sociedade sem classes e criar condições para a existência do humano-universal.

Em Bloch (2006b), nada existe de ingênuo ou meramente sonhador na defesa desse caminho.

A começar que ele não é eurocêntrico, isto é, não pensa o mundo a partir da Europa, mas com

o horizonte universal. Conhecimento, compreensão e engajamento do filósofo na libertação

humana estão inter-relacionados, sendo mobilizador para a reflexão dialética sobre ―o ainda-

não-ser, sobre o Novo‖.25

Nada converge para a restauração repetitiva do mesmo. Tudo se

volta para a revolução e à construção do mundo sob o signo da liberdade, igualdade e

fraternidade.

Em The Spirit of Utopia (2000), em Traces (1968) e em O Princípio Esperança (2005;

2006a e 2006b), há persistente fascínio pela ética kantiana. Mas a ética blochiana inclina-se

para o que favorece a libertação do homem. É uma ética da ―ação desinteressada‖. Permeia a

ideia do apocalipse, que varreria do mundo o capitalismo e faria o homem despertar para a

―mediocridade‖ imposta por ―medìocre‖, que é o pensar apenas em si mesmo (BLOCH, 2000,

p. 235).

Em Traces, Bloch (1968), ao demarcar as fronteiras do seu pensamento da ética de

Kant, compara o homem a uma criança que, no ventre da mãe, possui seus órgãos formados,

mas que ainda não desenvolveu habilidades morais. Volta ao tema em O Princípio Esperança

ao sublinhar que, no homem, ―o conteúdo da esperança ainda é menor que o anseio‖

(BLOCH, 2006b, p. 462).

A sua utopia amplifica o limite da realidade até o ser possível. Os homens não são o

que são, mas o que podem ser. A práxis e a ética não são zonas autônomas. Estão interligadas

pela vontade de mudança. Altera-se, então, por completo, o princípio ético burguês: ética é

transformação. Seu paradigma inicial pode se assentar na ética da responsabilidade kantiana,

mas se desenvolve na ética de um mundo novo, um homem novo. É uma ética que alargaria o

mundo humano para a luz e faria a vida coincidir com a imanência humanística no sentido

25

Cf. Marxismo e Libertação de Antonio Rufino Vieira (2010, p. 112), no que se refere aos vínculos do

pensamento blochiano e à Filosofia de Libertação latino-americana. ―A superação da alienação é base real

para que o homem se realize enquanto liberdade. Como o conceito de homem não é abstrato, mas concreto,

ele aplica-se diretamente às classes sociais, de modo especial àquelas que têm o seu ser negado, subsumido

pelo capital dependente. A Filosofia, nos países dominados, portanto, é chamada para outro compromisso,

exigindo de si um novo estatuto epistemológico, uma nova atitude polìtica, um novo conceito de homem‖.

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―radicalmente progressista‖, tornando ―o desenvolvimento da riqueza da natureza humana

como fim em si mesmo‖ (BLOCH, 2006b, p. 372).

A sua reorganização das Teses de Marx sobre Feuerbach tem essa perspectiva. Na

Tese 2, o pensamento escapa da ―generalidade‖ e da ―abstração‖ para se fixar nas relações

entre teoria e prática, o que lembra, como ressalta Bloch, os estoicos, que tinham a lógica

como ―mero muro, a fìsica como mera árvore e a ética como fruta‖ (BLOCH, 2005, p. 265).

O ato de pensar e agir incentiva o homem a transformar o mundo (Tese 2) e fazer da ética o

cerne dessa transformação.

Além da riqueza interior do homem como fim, não como meio, a descoberta de Kant,

por Bloch, ocorre na Universidade de Würzbourg, onde, por dois anos, Bloch estudou

profundamente Kant e a epistemologia pós e neokantiana.26

Isto o impulsionou à ‖esperança

ativa, distinta de toda a confiança cega e passiva no futuro‖ (MÜNSTER, 2001b, p. 278).

É com a disposição de intervir no mundo que Bloch propõe uma ética revolucionária,

tema que, por estranho que possa parecer, encontra-se ―ausente do pensamento filosófico

contemporâneo e também do marxismo‖ (tradução nossa)27

mas presente na ―dimensão ética

dos anos 1920‖ e nos ―últimos escritos de Rosa Luxemburgo‖, em que se encontram

colocadas as palavras ―ideal‖ e ―socialismo‖ (PALMIER, 1986, p. 262).

A ética, em Bloch (2006a), é a ética do repensar da religião, da tecnologia, das

relações de produção e do repensar do próprio homem. Não comporta ilusões. Não é uma

ética normativa. Desenrola-se nas categorias do ainda-não-consciente, da totalidade do ser e

no pressuposto filosófico do mundo como processo. É a ética que associa a negação de Deus e

do destino à autodeterminação humana e ao futuro. Floresce na ―corrente quente‖ do espìrito

revolucionário. É uma escolha, tendo como objetivo final a felicidade humana e a convivência

coletiva. Fundamenta-se na categoria da possibilidade. Envolve a dialética do ainda-não e o

entusiasmo do dever-ser. Explica a simpatia de Bloch pelo romantismo revolucionário e pelo

poder dialético da Utopia de More. Completa-se com a totalidade do ser e a conexão entre

todas as coisas.

26

Nas universidades alemãs, entre 1870 e 1914, predominava o neokantismo e o pensamento oficial

representado por Hegel. Também predominava a influência de Nietzsche, além da mística alemã de Jacob

Boehme e Eckhart de Hochheim, mais conhecido como mestre Eckhart (MÜNSTER, 1993, p. 55-6). Na

Universidade, o tema da tese de Bloch, defendida em 1908, foi Heinrich Rickert e o problema da

epistemologia moderna – Estudos Críticos sobre Rickert e o Problema da Teoria Moderna do Conhecimento

(Kritische Erläutern Geb über Rickert und das Problem der Modernen Erkenntnis).

27

―Il est étrange de constater que ce thème est aujourd‘hui a peu présent de la philosophie contemporaine aussi

bien que du marxisme.‖

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HUMANISMO E FILOSOFIA REVOLUCIONÁRIA

A filosofia marxista é a do futuro.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 19)

Foi pela estrada do materialismo dialético que Bloch chegou a Marx e à crítica da

metafísica do materialismo passivo. Ele é herdeiro de um tempo em que o socialismo era a

vanguarda. Na Europa, os revolucionários mantinham vivo, na lembrança, o massacre da

Comuna de Paris em 1871,28

ocorrido 14 anos antes do nascimento de Bloch e sete anos antes

da proibição por Bismark, de organizações socialdemocratas e revolucionárias. Lenin, por

influência da Comuna, ao formar o governo provisório de 1905, anunciou que pretendia

chegar ao poder e construir uma sociedade socialista moderna, de massas, pós-burguesa, pós-

capitalista. E não somente fazer uma aliança com a social-democracia russa.29

Nos seus anos de formação, o que era revolucionário, nas artes e na literatura, deveria

ser também na política, e a juventude escolhia deliberadamente a insegurança da pobreza à

segurança burguesa. A intelectualidade tomava partido do movimento operário, em ascensão,

e abriam-se horizontes para a esquerda, antes relativamente marginal, de tendência anarquista

ou sindicalista. Foi nessa atmosfera em que Bloch abraçou a filosofia da esperança.

Nas décadas seguintes, não se deixaria abater pelos reveses do socialismo. Também,

escapou da tentação original do messianismo e do misticismo. Sua utopia tornou-se

materialista. Nada desprezou do humano, com exceção da total recusa do niilismo. Recorreria

às utopias, assim como ao estoicismo e ao cristianismo, para discutir o sentido da vida e

projetar uma nova ordem em que a liberdade e a juventude dos tempos dialoguem, se

encontrem na ontologia humana. Localizava, no materialismo dialético, o eixo da

compreensão e da antecipação do mundo a partir de si mesmo. Considerava-o como o zênite

da filosofia política alemã, mas se perguntava: se o homem é uma incógnita, como poderia

prevalecer a objetividade?

28

A comuna prolongou-se de 2 de setembro de 1870 a 28 de maio de 1871. Ao menos 40 mil pessoas, entre

homens, mulheres e crianças, ao final, foram detidos e jogados em prisões e fortes parisienses. Houve 13.450

condenações. Na ―Semana Sangrenta‖, a última da revolução, Paris foi incendiada, 20 mil parisienses

morreram, entre eles, 17 mil executados. A feroz repressão foi ordenada pelo presidente Adolphe Thiers

(LÖWY, 2009b, p. 24-35).

29

Fundado em 1898, o Partido Operário Social Democrata Russo, baseado na teoria revolucionária de Marx e

Engels, dividiu-se nas facções inconciliáveis Bolcheviques (maioria) e Mencheviques (minoria). Lenin, que

em 1902 publicou suas teses em Que Fazer? estava no centro da divisão. Almejava ir além de reivindicações

salariais e jornadas de trabalho, com a revolução operária.

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A essa questão, ele responde com a esperança no homem. Bloch (2006b) divide os

pensadores em duas grandes famílias: perecíveis e imperecíveis. Os pensadores perecíveis,

com suas ideias coercitivas e disfarçadas com o falso véu da universalidade, decalcam a face

bolorenta da morte e dos interesses de classe, recorrendo ao medo. Os pensadores

imperecìveis ―indicaram para o maravilhoso‖ (BLOCH, 2006b, p. 496). Não julgam a utopia

pelo seu grau de irrealismo, mas pela sua capacidade de negar a realidade e despertar

entusiasmo. Os pensadores imperecíveis diferem da ideologia, porque não constroem ilusões,

mas a esperança de futuro.

A antecipação utópico-concreta não se encontra, portanto, na reforma do capitalismo,

nem na aceitação sem crítica da ideia marxista. Está na noção de processo e mediação, no

controle das pulsões humanas negativas e na orientação para o desabrochar do espírito, está

no sonhar acordado no fim de uma era, a capitalista, e o início de outra, socialista despida de

mistificações, manipulações e dominação.

O futuro é enigmático? Sim. Mas a tendência-latência do despertar socialista também

é real. Ao contrário dos marxistas tradicionais, Bloch (2005) resgata o pensamento utópico e

vê em Marx um pensamento aberto à crítica e à práxis renovadora. Utopia, práxis e renovação

fazem parte, para Bloch, de uma mesma dialética hegeliana-marxista, de um princípio de

antecipação do futuro.

Como assinala Münster (1997, p. 150), o caminho de Bloch para a filosofia marxista é

o mesmo percorrido por Lukács, Lefebvre ou Althusser, ―apesar do desgaste do dogmatismo e

do estatismo‖, o caminho que conduz aos fundamentos filosóficos, a bases teóricas novas,

quer dizer: ao homem que tem esperança, que quer transformar o mundo, com as

potencialidades imanentes da natureza, em um planeta habitável.

Sob o prisma do marxismo humanista e dialético, o prefácio de O Princípio Esperança

é explicativo: Bloch (2005) critica o ―marxismo ortodoxo‖, critica a filosofia por não se

interessar pela utopia e critica, ainda, a ausência de futuro que separa o plano do pensamento

do plano da prática. Se o homem contém obscuridade, é necessário, na teoria filosófica de

Bloch, tentar compreender o porque das suas ações e o porque dessa obscuridade permanecer

a permeá-lo.

Isso explicaria o sentido da filosofia marxista e a emergência de Marx como precursor

do futuro a ser resgatado: ―A filosofia terá consciência do amanhã, tomará partido do futuro,

terá ciência da esperança. Do contrário, não terá mais saber‖ (BLOCH, 2005, p. 17). Como

não há verdades eternas sobre os homens e suas ações, como as ideias e as atitudes não são

isoladas da superestrutura, fica evidente que a filosofia precisa mudar. Se a filosofia muda,

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muda também a superestrutura, a ideologia dominante e a institucionalização da vida que é a

própria alienação.

O SOCIALISMO COMO SISTEMA PREFERIDO DO HOMEM

Toda meta, atingível, atingível ou não atingível, delirante ou subjetivamente

sensata, precisa nascer primeiro no espírito.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 164)

O Princípio Esperança, na interpretação de Furter (1974), nasce da necessidade de

aperfeiçoar o saber revolucionário. Foi o ―fio de Ariadne‖ que Bloch encontrou para alertar

quanto à possibilidade do ressurgimento do fascismo e do percurso a vencer para evitar sua

repetição, não como ―simples petição de princìpio‖, mas como ―mola‖ ou ―espiral‖ que possa

reanimar o passado e orientar o presente (FURTER, 1974, p. 66-7). Seria como chamar os

vivos para uma nova vida. O que ontem não foi concretizado, a exemplo da revolta

camponesa, liderada por Münzer, hoje poderia acontecer, na sociedade de massa, se os

homens mobilizarem todas as suas forças (FURTER, 1974, p. 194-5).

A procura desse saber, por Ernst Bloch (2005), estendeu-se à psicanálise pela

necessidade de despertar o homem para o socialismo. Separando os sonhos diurnos das

pequenas fantasias cotidianas e das ilusões, fossem elas tuteladas pela burguesia ou nascidas

no interior do próprio homem, confiava na possibilidade do homem vir a sonhar com uma

vida melhor e com a rebeldia prometeica. ―Que os sonhos diurnos se tornem ainda mais

plenos, o que significa que eles se enriquecem justamente com o olhar sóbrio – não no sentido

da obstinação, mas sim no de se tornar lúcido‖ (BLOCH, 2005, p. 14).

Bloch também descobriu Freud e desenvolveu os conceitos de ―inconsciente‖ e

―ainda-não-consciente‖ nos primeiros tempos da amizade com Lukács e os colóquios de

Georg Simmel. Conhecia o conceito de ―presente vivido‖, originário dos textos filosófico-

religiosos, de Kierkegaard, que em O Princípio Esperança alcançariam a maturidade com a

dialética da ―obscuridade‖ e ―luminosidade‖ humanas.

Aqui, também, é total a recusa em aceitar soluções parciais. Condena a psicanálise,

limitada ao universo burguês, por não contribuir com o despertar da rebeldia. Relaciona os

bens, inclusive o bem comum, à critica ao materialismo passivo ―por excluir de si mesmo a

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história humana‖, ao passo que o materialismo histórico assim é denominado por não

descartar ―a finalidade da vontade‖ (BLOCH, 2006b, p. 412).

Bloch (2006b, p. 418) argumenta que a única coisa importante para o fim da alienação

―é a matéria latente-utópica do sujeito descoberto do mundo‖. Com a psicanálise, a tese

blochiana é similar: não é possível discutir o homem fora da sociedade e das relações de

produção. Há, no homem, um tesouro interior a ser desvendado, e esse tesouro a classe

dominante ignora ao transmutar o homem em mercadoria e ao absolutizar a ―vitrine

iluminada‖ da ilusão (BLOCH, 2005, p. 331-3).

A questão da psicanálise é crucial para Bloch, porque está ligada a um tipo de sonho

peculiar, o sonho acordado, mas que é sufocado pelo sonho desejante das vitrines abarrotadas

de mercadorias, pelos ―chamarizes‖ da publicidade e pelo engodo que são a ―aparência de

abundância‖ e reduzir a felicidade à imagem ―sedutora‖ de mercadorias em exposição. Assim

como a filosofia precisa ser revolucionária, em Bloch, a psicanálise também, dado ao papel do

despertar ainda-não-consciente na utopia.

Essas seriam as interrogações quanto à via revolucionária em Bloch. Pelo papel que

reserva na utopia concreta para Münzer e More, a violência revolucionária estaria na

linhagem utópica blochiana. Inclusive, porque, como Marx,30

Bloch (2006b) não considera o

movimento socialista e comunista violento, mas sim o capitalismo, guiando-se por estas

palavras de Brecht: ―O comunismo não é radical: radical é o capitalismo; o comunismo é o

meio-termo‖ (BLOCH, 2006b, p. 307).

As críticas que faz ao anarquismo, aos bolcheviques e pela condenação ao

voluntarismo nos volumes II e III de O Princípio Esperança (2006a; 2006b) na mesma trilha

aberta por Marx e Rosa Luxemburgo, além da ideia de que a utopia não precisa ser imediata,

mas concreta, são indicativas, porém, de que Bloch (2006a) caminha em outra direção.

Considera prioridade a consciência coletiva e o encontro do homem com a consciência, não a

violência sem alvo ou a impaciência.

A mudança deu-se quando ele ultrapassa a visão mística, alinhada com a visão do

apocalipse em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) (2000) e do misticismo russo de

Dostoiévski (2008) e caminhou para a dialética materialista. O Vor-Schein blochiano, essa

preocupação de desvendar o pré-aparente, de ver o futuro nas pequenas coisas, de nada

descurar, é o que distingue Bloch e lhe imprime atualidade. Ele quer desvendar o ainda-não-

consciente, ―a paisagem do desejo‖ da sociedade sem classes e de uma cultura ―autêntica‖ a

30

Cf. O Capital de Karl Marx (2008).

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partir da cultura popular, sabedor de que a cultura capitalista é ―incapaz‖ de respeitar as

massas e de por limite às suas próprias ambições (ZIPES, 1986, p. 292-4).

É o que o leva a escrutinar os contos de fadas e o ―final feliz‖ como caminhos

dialéticos e afirmar contradições. São mediações concretas entre o que é ilusório e o que é

real, o que permite ao homem ter percepções diferentes já que o real e o ideal não coincidem.

São indicações de novas possibilidades de mudança dos costumes. Podem ser encontradas nas

ideias avançadas de Walter Benjamin (2006) (O Autor como Produtor) e na magia dos irmãos

Grimm, como em toda a herança cultural humanística, que precisa ser popularizada e inserida

na marcha do mundo. Aberta e de traços utópicos, às vezes, difíceis de ver, germinam no

ventre da cultura capitalista dominante.

As finalidades humanas estão, portanto, unidas numa mesma esperança, num mesmo

choque entre a obscuridade e a luminosidade e num mesmo despertar para a substância

prometeica. São afinidades da filosofia de Bloch com a filosofia de Marx, que se encontram

na disposição de dissipar as sombras que envolvem a vida do homem. E não se limitam a

diferenciar o homem da natureza pela sua capacidade de produzir ferramentas, mas por serem

igualados por meio do trabalho, da liberdade e do domínio do que diz respeito às necessidades

humanas, sem serem disfarçadas pelo desejo de lucro e pelas ideias ilusórias de que o

capitalismo é o efetivo sistema universal.

Foi a procura de uma nova visão do mundo, sem mitificações do homem, que fundiu a

trajetória pessoal de Bloch ao seu itinerário como singular filósofo marxista. Faltava, diante

das resistências do capitalismo, sempre a se repetir, a definição pelo homem consciente

daquilo que ele deve fazer para concretizá-la. Marx (1982) estabeleceu a relação entre a teoria

e a prática de um modo que uma se torna estéril sem a outra.

O pressuposto de Bloch (2006b) é favorecer esse movimento perpétuo, tendo como

alvo tornar o socialismo o sistema desejado pelos homens, ampliar sua prática, renovar sua

teoria. Romper com a relação formal e mecanicista entre sujeito e objeto, discutindo a

mediação histórica do homem e a realidade circundante. Tornar consciente a ontologia do

ainda-não-consciente e as categorias ontológicas do presente – sobretudo a tentação de voltar

ao passado, a totalidade humana e a possibilidade de olhar para a frente – são claramente

perceptíveis na utopia concreta.

Mas tornar a consciência socialista realidade, exige educar o homem para tornar-se

livre e, também, mobilizá-lo para mudar seus valores na prática. Como assinala Bloch (2005,

p. 28): ―O ser que condiciona a consciência, assim como a consciência que trabalha o ser,

compreendem-se em última instância somente a partir de onde e para onde tendem. A

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essência não é o que foi, ao contrário: a essência mesma do mundo situa-se na linha de

frente‖.

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CAPÍTULO I

DIALÉTICA DA UTOPIA CONCRETA: O HOMEM COMO SUJEITO DA

PRÁTICA TEÓRICA E MEDIADOR DA VIDA MELHOR

A verdadeira gênese não se situa no começo, mas no fim, e ela apenas

começará a acontecer quando a sociedade e a existência se tornarem

radicais, isto é, quando se apreenderem pela raiz. Porém, a raiz da história

é o ser humano trabalhador, produtor, que se remodela e ultrapassa as

condições dadas. Quando ele tiver apreendido a si mesmo e ao que é sem

alienação, surgirá, no mundo, algo que brilha para todos na infância e onde

ninguém ainda esteve: a pátria.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006, p. 462)

Em 1918, Ernst Bloch, em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie),31

situava o futuro

socialista como caminho para o pleno aperfeiçoamento do homem. Recorria à Idade Média, à

época gótica, para propagar o sentimento comunitário e despertar o homem à ação. No

capìtulo final, ―Karl Marx, Morte e Apocalipse”, concebe que as relações entre o interior e o

exterior do homem não encontrariam equilíbrio sem o apocalipse anticapitalista, símbolo do

fim do mundo burguês e nascimento do mundo socialista.

As noções de presente e futuro eram mediadas pelo conceito do ainda-não-consciente

(Noch-Nicht-Bewusste), destinado a despertar o homem para os desejos submersos da

consciência, as luzes do conhecimento real e aquilo que não estava claramente consciente nas

conexões entre a utopia concreta, pulsões, desejos, vontades, sonhos e, principalmente, os

sonhos despertos. Essa determinação de libertar o homem, fruto da face revolucionária da

filosofia alemã e do despertar de Bloch para a psicanálise o acompanharia por toda a vida e

influenciou toda a sua concepção utópica.

O que poderia emergir se o homem alcançasse o patamar de consciência jamais

conhecido e socialmente deixasse de adorar os falsos ídolos? Não se tratava de libertar-se dos

recalques, na terminologia freudiana, mas de resgatar um senso de realidade original, como,

por exemplo, a desalienação das pessoas procurando amar e ter amizade umas pelas outras em

31

O título é uma paródia de O Espírito das Leis de Montesquieu. Inicialmente, seria Musik und Apokalypse. A

música ocupa um terço do livro, republicado em versão revisada por Bloch em 1923. Em 1960, Herbert

Marcuse lembraria que Bloch influenciou sua geração pelo realismo dos conceitos. Adorno leu Geist der

Utopie no último ano escolar, ficou encantado pela ―fórmula mágica e proposição teórica‖ do trabalho

(GEOGHEGAN, 1996, p. 15-6).

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lugar de adorar a Deus e o fetiche das mercadorias. O ainda-não-consciente confluiria para a

transformação humanística, sem empobrecimento quanto à antecipação utópica.

Em 1954, 36 anos depois do The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), em O Princípio

Esperança, Bloch voltou ao conceito do ainda-não-consciente, porém de maneira diferente.

Trazia agora observações minuciosas a respeito da consciência, da pré-consciência e da

realização humana, com a possibilidade definida como ―tudo o que encontra as condições

dadas em proporções suficientes‖ e a realidade atrelada ao ―tótum utópico‖, às conquistas

parciais e às condições de existência dominante (BLOCH, 2005, p. 203-4). Colocá-las na

mesma sincronia, pressupunha a não resignação à obscuridade. Nos desejos a serem

despertos, circulavam os sonhos acordados a serem exteriorizados.

O que caracteriza o amplo espaço de vida ainda aberta e incerta do ser

humano é a possibilidade do assim velejar em sonhos, que são possíveis

sonhos diurnos, muitas vezes, do tipo totalmente sem base na realidade. O

ser humano fabula desejos: é capaz disso e em si mesmo encontra material

suficiente, mesmo que nem sempre seja do melhor, do mais durável

(BLOCH, 2005, p. 194).

O homem, em Bloch, não se basta porque oculta sonhos não decifrados, que deveriam

ser objetos coletivos em direção ao futuro. Interpretando as correntes ―quente‖ e ―fria‖ da

análise marxista, entendia serem indispensáveis para a compreensão da engrenagem

capitalista, mas seria necessário tomar a dianteira. Se o mundo estava inconcluso era porque a

compreensão do homem também estava inconclusa. O marxismo desvendou as ideologias,

revelando as categorias superestruturais inerentes a diferentes épocas, tornando evidente que,

por ser também uma ideologia, no futuro, iria desaparecer.

A concretização do marxismo será, portanto, a história do seu ocaso. A exigência para

concretizá-lo ultrapassa a análise fria da realidade visível e se relaciona às correntes do

marxismo com o que o homem guarda no seu inconsciente de horizonte possível. Torna-se

premente, porque a dimensão da superestrutura não é estática e põe em relevo a necessidade

de claridade quanto à consciência, exige o rastrear, no passado, a presença da utopia, sem que

se rejeite, mecanicamente, toda a superestrutura da sociedade de classes. É o exercício da

dúvida que poderá, sem ceder ao economicismo ou ao historicismo, separar o que são

características utópicas de tendência e latência do que são fantasias utópicas.

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Daí provém o forte recurso ao ser humano humilhado, escravizado,

abandonado, feito desprezível, daí provém o recurso ao proletariado como

ponto de transbordo para a emancipação. O alvo permanente sendo a

naturalização do ser humano, a humanização da natureza inerente a matérias

em desenvolvimento. A matéria derradeira ou o conteúdo do reino da

liberdade apenas se está acercando na construção do comunismo, que é o seu

único espaço, sendo que em lugar algum ela se faz presente. Isto é líquido e

certo. Todavia, igualmente líquido e certo é o fato de esse conteúdo se

encontrar no processo histórico e o marxismo representar a sua consciência

mais aguçada, a sua reflexão mais prática (BLOCH, 2005, p. 205).

Bloch (2005, p. 159) avaliava que a ideologia da classe dominante, embora não seja

referência na filosofia, nas ciências e nas artes, reproduz as ilusões e as aparências de maneira

continuada. Encoberta pelas ―névoas de uma má consciência interesseira‖, pode ser

identificada pelo idealismo revolucionário, mas sem o resfriamento dos ímpetos e

entusiasmos, o movimento revolucionário se voltaria ao jacobinismo, condenado por ele em

The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) (2000), sem unificar a totalidade das vontades pelo

método dialético (BLOCH, 2005, p. 152). Isso exigiria o aquecimento das análises em torno

do homem, mas sem se deixar enredar na cultura do interesse econômico ou da utopia

abstrata. Não se trata apenas das condições materiais de vida, mas da tendência ―humano-

materialista, materialista-humana‖ (BLOCH, 2005, p. 207).

Em vista disso, revestia-se de fundamental interesse que o marxismo ampliasse o

conceito de ser-em-possibilidade, limitado à classe operária, para envolver o sujeito

revolucionário, qualquer que fosse, que aspirasse à liberdade. Na medida em que a visão

totalizante se aperfeiçoasse, a coincidência entre utopia e ideal tenderia a ―nascer primeiro no

espìrito‖ da sociedade, despindo-a da ―má consciência‖ e do ―subconsciente arcaico‖. Não

regrediria ao passado, como a criança faz com o pai, mas se projetaria para a frente (BLOCH,

2005, p. 165). Seria o ―front da matéria, ou seja, da matéria para a frente‖, a mudança

evidente para o ―fim da autoalienação‖, a abertura materialista para a ―direção da liberdade‖

(BLOCH, 2005, p. 205).

Há ideais norteadores da vida correta fortemente contrastantes. Há uma

teoria de ponderação dos valores, uma teoria dos critérios do ideal,

ricamente nuançada, que vai dos sofistas e de Sócrates até Epicuro e o

estoicismo. Em Kant, o ideal aparece em todos os sentidos, tanto no da

pressão quanto no da unidade da orientação finalística e no da esperança.

Kant designa o próprio filósofo como um mestre do ideal e a filosofia como

uma instrução no ideal. Uma vez mais como pressão, como afronta, o ideal

aparece no imperativo categórico da lei moral: a dignidade do ser humano,

que exige respeito, nessa lei encontra-se em oposição a todas as pulsões

naturais (BLOCH, 2005, p. 166).

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Como o ideal surge como esperança, quer dizer, o bem supremo da razão prática,

poderia ser também o atalho para o ainda-não-consciente. Há duas faces do realmente

possìvel, resumindo: a matéria ―sendo-conforme-a-possibilidade e a matéria ―sendo-em-

possibilidade‖. Na história, a sua origem estaria na possibilidade de apreensão da necessidade

de mudança pelo ser humano trabalhador; e na natureza se configuraria na dinâmica da

mudança com a humanização da natureza. A base dialética se assentaria na explosão da

―inquietação‖ (BLOCH, 2005, p. 202-6).

Logo, a categoria objetal ―possibilidade‖ revela-se também

predominantemente como aquilo que ela não pode ser por si mesma, mas

sim pela intervenção promotora dos seres humanos naquilo que ainda pode

ser mudado: como possível conceito de salvação. Ela revelou-se, em parte,

todavia, igualmente como possível conceito de desgraça, e isso justamente

devido ao poder-fazer-diferente, mas também devido ao poder-tornar-se-

diferente contido nele, que abre espaço, na mesma medida, para uma

guinada para o pior, conforme a precariedade que pode residir justamente na

mutabilidade, nesse caso, na instabilidade de uma situação dada. Essa

precariedade, como constitutivo negativo da possibilidade objetal, abrange

desde o acidente que pode ocorrer até a irrupção do inferno fascista, que

residia e ainda reside como possibilidade no último estágio do capitalismo

(BLOCH, 2005, p. 230).

Uma vez mais encontra-se em Bloch a distinção entre o caráter ―salvìfico‖ da

esperança e o caráter ―funesto‖ da mudança que, para deixar de ser precária, exigiria que a

finalidade socialista começasse a se tornar realidade. A mudança, compreendida como

vontade de poder-ser-diferente chamada de possibilidade, opera quando há possibilidade do

novo, oposto à contingencia negativa. Esta é a exigência para que a possibilidade real seja

encarada como real, que ―abarque simultaneamente o ventre e a fecundação, a vida e o

espírito, unidos na matéria, sendo que o ventre permanece fértil, a tendência-latência do que

realiter pode vir a ser não está terminado no substrato material‖ (BLOCH, 2005, p. 233). Esse

é, no entender de Bloch (2005, p. 234) a definição correta do dynámei ôn aristotélico, passível

de constante mudança, que repercute no materialismo dialético.

O sonho diurno favorece as possibilidades de mudança a níveis sem paralelo no sonho

noturno. Se no sonho noturno o inconsciente fala, mas precisa ser interpretado, o sonho

acordado é o próprio pensamento em ação, podendo evitar que o alvo se mantenha distante.

Exatamente, o equilíbrio da análise das correntes ―quente‖ e ―fria‖ do marxismo. Desse modo,

o marxismo do ―calor‖ adquire as feições da teoria-práxis, podendo levar o mundo para a não-

mais-alienação das possibilidades da sociedade sem classe e do trabalho livre. Possibilidades

reais da totalidade de criar, a partir do calor do entusiasmo, ―um tipo humano mais elevado do

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que aquele que toma as coisas como são‖ (BLOCH, 2005, p. 219). Possibilidades que a

filosofia pode acolher como o ―rigor do conceito e a seriedade das associações‖ no sentido de

abrigar o homem e suas questões, mostrar a distância em que o homem se encontra do ser real

pleno, revelar as dimensões, sem relativismos, da imagem ativa da esperança (BLOCH, 2005,

p. 237-8).

1.1 ARISTOTELISMO DE ESQUERDA: O CÉU NA TERRA, A MATÉRIA EM

MOVIMENTO, O HOMEM COMO POSSIBILIDADE

Como poderiam ser diferentes as propriedades da matéria portadoras do

futuro? Não há verdadeiro realismo sem a verdadeira dimensão dessa

abertura.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 234)

As referências iniciais do materialismo, em Bloch (2008), estavam no diálogo com

Aristóteles e a esquerda aristotélica (Aristotelische Linke). Essa é essencialmente a abordagem

adotada em Avicenne et la gauche Aristotélicienne, obra em que Bloch discute a originalidade

do materialismo que viria a nascer na Idade Média, a partir do pensamento de Aristóteles e

converge para aquela que foi ―a convicção fundamental‖ do Iluminismo: se cultivar a razão, o

homem não precisaria de qualquer outra fé (BLOCH, 2008, p. 20).

A denominação de esquerda aristotélica nasce do fato de Avicena trazer o pensamento

materialista de Aristóteles para a Terra, contrariando a visão oficial da Igreja. A visão terrena

do ser-em-potência aristotélico, como forma (―causa final, forma final‖) é que, embora parece

ser uma expressão não contemporânea do medievo, fez, segundo Bloch (2008, p. 25), surgir a

ideia de esquerda. Concerne a ―influência da esquerda aristotélica sobre a anti-Igreja‖ no que

concerne à doutrina da criação, à teoria religiosa e ao espírito ativo do homem, que se

projetaria para os séculos XVII e XVIII (BLOCH, 2008, p. 43-53).

Foi Aristóteles quem definiu a ―matéria mecânica‖, inerte, resistente à transformação,

mas também foi quem elaborou o conceito de possibilidade-real-objetiva, que faz da

possibilidade de mudança uma ―tendência no seu percurso‖ (BLOCH, 2005, p. 204). Em

outros termos, Aristóteles considerou a matéria como ser-em-possiblidade (dynámei ôn), o ser

fecundo, origem das transformações do mundo. Mas Aristóteles definiu essa categoria

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principal da sua filosofia como elemento passivo, vindo da sua forma não do interior da

matéria.

A mudança aconteceu com Avicenna32

que, na Idade Média, opunha-se ao

aristotelismo conservador de Tomás de Aquino. Considerando a matéria como universal e

dinâmica, vendo a matéria em possibilidade como a vontade criadora, Bloch (2005) entendeu

que o movimento era interior à matéria e não apenas fruto das circunstâncias. Avicenna e a

esquerda aristotélica defendiam que a sociedade, os comerciantes que percorriam o mundo e a

liberdade de pensamento eram os termômetros para verificar a extensão do confronto entre o

bem e o mal, o confronto entre o povo, os religiosos e a aristocracia islâmica (BLOCH, 2008,

p. 11-13). Com isso, recusavam o pensamento estático, recusa essa que só ganharia grande

dimensão muito depois, com a dialética real de Hegel, e pregavam o conceito categorial

―possibilidade‖ ―quase inteiramente em terra virgem‖ (BLOCH, 2005, p. 239).

Fugindo à concepção de que o homem existia para servir a Deus, Avicenna

desenvolveu ―materialismo original e vivo ao extremo‖, à margem do cristianismo, que

serviria de fonte ao Iluminismo (BLOCH, 2008, p. 9). Com Aristóteles, que cita quase tão

frequentemente quanto Goethe e Marx em O Princípio Esperança, Bloch encontra,

igualmente, Averróes e Avicèbron, renovadores do pensamento aristotélico. Um, Averróes,

por considerar que o homem não precisava de deus algum; o outro, Avicèbron, por divisar, na

matéria, categoria universal.

Entendia Avicenna que ―a mais alta encarnação do espìrito humano‖ não era o profeta

Maomé, mas Aristóteles, sendo que a iluminação do profeta não significa a iluminação

original ou razão e se confundia com as formas iniciais de educação dos mitos e parábolas

(BLOCH, 2008, p. 14). Bloch, além de Avicenna, absorve Aristóteles também na ideia da

possibilidade, ―não como abstração vazia da reflexão-em-si, e igualmente como um

movimento-em-si da realidade‖, uma realidade real, totalmente envolvida pela ―realidade já

constituìda‖ (BLOCH, 2005, p. 242).

Avicenna desejava intervir na gênese do futuro. Na visão de Bloch, Aristóteles,

contudo, já considerava que a luz, como a matéria, ―muda de cores efetivamente‖ e via

também a matéria em possibilidade que se conformaria de acordo com as condições do

32

Avicenna é o nome em latim de Abu Ali al-Husayn ibn Abd Allah Ibn Sina. Rica, a família iniciou-o nos

estudos de aritmética, geometria, lógica e astronomia. Nascido em 980, em Afshana, perto de Bukhara,

frequentou a Universidade de Bagdá, onde estudou filosofia e medicina, começou a carreira, como médico,

aos dezoito anos. Escreveu noventa textos, sendo o principal, Kitab al-Shifa, o livro da cura, tratado de

lógica, psicologia, física, matemática e metafísica. Foi médico-filósofo, não monge; naturalista, não um

teólogo e absorveu a liberdade de que desfrutava a sociedade árabe que, à época, corria a Europa para trocar

mercadorias. Viveu até 1037. Lutou contra a ortodoxia do clero e frequentou a sociedade Irmãos da Pureza,

erudita, fundada em 950, para repelir o misticismo, o ―ópio do povo‖ (BLOCH, 2008, p. 16).

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percurso (BLOCH, 2008, p. 66). Não era passiva, mas o lugar de novas esperanças, pois era

determinada não pela ―matéria bruta‖ (a potencialidade), mas pela ―forma‖, a realidade (a

atualidade).

A transfusão feita pelo aristotelismo de esquerda foi a ativação dessa possibilidade,

que, mais tarde, influenciaria Leibniz (a matéria ―dotada de forte vitalidade‖), Schelling (a

matéria como natureza, ―força viva que se autoproduz‖) e Hegel (a natureza como o reino da

matéria, como objetivação da ―ideia perfeita e completa em si mesmo‖) (PASTOR, 1986, p.

168). No processo da história, a matéria foi também colhida por Marx, Engels e Lenin, tendo

o materialismo dialético como ponto mais elevado.

Assim, independente das nuanças que, teoricamente, possam separar Aristóteles da

esquerda aristotélica, surgiu uma matéria muito diferente da mecanicista, a matéria do

materialismo dialético, para a qual o ―frio‖ e o ―calor‖ são lados interligados da análise rìgida

e do entusiasmo. É nesse campo que germinam simultaneamente teoria e prática. Contra a

mera matéria, que tudo absorve, contra os sistemas fechados que oprimem o pensamento e a

ação, a possibilidade de ter a luz original e, esse sujeito, na visão do aristotelismo de

esquerda, encontrava-se no homem que toma o lugar de Deus e se transforma no criador.

Sob esse princípio, o aristotelismo de esquerda irá superar, no medievo, a escolástica

de Tomás de Aquino e se opor à sociedade feudal de classes e sua teologia. Aquino buscou

subordinar o homem às formas de um corpo e uma alma separadas do mundo, em função de

um céu onde estariam livres e de unidade dogmática entre Aristóteles, a Bíblia e o dogma

religioso (Agostinho não tinha lugar nessa conjugação).

Avicenna e os aristotelistas de esquerda pregavam o inverso, explicando o mundo pela

vida terrena e o tempo, recusando a doutrina de Criação (BLOCH, 2008, p. 36-45).

Argumentavam que se a matéria fosse mecânica, estática, como pretendia a escolástica, não

haveria metamorfoses. Daí, Bloch (2008, p. 57), considerar as formas primeiras da matéria

como ―formas essencialmente vivas‖. No fermentar da esquerda aristotélica, Bloch encontra a

utopia da matéria: se nela existem possibilidades reais de mudança, a matéria deixa, também,

de ser ―uma utopia abstrata‖ (BLOCH, 2008, p. 61). O trabalho do homem é feito dessa

mesma argamassa: é forma na aparência, mas criação em sua realidade.

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O realmente possível principia como germe em que foi disposto o vindouro.

O que nele está pré-formado procura desdobrar-se, todavia não como se

anteriormente não existisse, comprimido no espaço possível. O próprio

―germe‖ ainda se encontra diante de muitos saltos; no próprio

desdobramento, a ―disposição‖ desdobra-se em pontos de partida sempre

renovados e mais precisos de sua potentia-possibilitas. Logo o possível real

no germe e na disposição nunca é algo pronto de modo estanque, que, como

algo existente em forma diminuta, apenas tivesse de concluir o crescimento.

Ao contrário, ele preserva sua abertura como desdobramento que realmente

significa evolução, não como mero despejamento ou evacuação. A potentia-

possibilitas reiteradamente faz com que a raiz original e a origo, fenômeno

em processo permanente, tornem-se originárias num novo nível, com

conteúdo latente renovado (BLOCH, 2005, p. 235).

O ―ainda-não‖ é a medida blochiana da realidade e aponta para as possibilidades reais

do futuro. A epistemologia blochiana permitiria abandonar a perspectiva burguesa de reduzir

a superestrutura à infraestrutura para que se mantenham os privilégios de classe e superar a

fratura expressas pela produção capitalista. Bloch (2006b) relativiza a ideia romântica de que

a sociedade é determinada pelas ideias, destaca a autonomia da superestrutura que procura

fazer prevalecer os interesses da classe dominante, volta-se para as interações mediadoras que

promovem mudanças na superestrutura e possibilitam o surgimento de nova superestrutura,

tal como aconteceu com o ocaso do feudalismo e com a Revolução Francesa.

É fácil ver que muita página ainda pode ser virada. Um ainda-não existe em

toda a parte; tanta coisa ainda não está consciente para o homem, tanta coisa

ainda não chegou à existência do mundo. Mas não haveria nenhum dos dois,

se eles não pudessem mover-se e voltar-se para o caráter aberto (BLOCH,

2005, p. 238).

Desse modo, mais do que expressão de ideias, a filosofia entra frequentemente em

conflito com os modos de produção e as relações de produção, desmascarando contradições

reais e abrindo novas possibilidades para a existência. Como adverte Bloch (2006b, p. 102-3),

neste caso, ―o sujeito é como revestido com os elementos do prado, da mata, de montanhas

azuladas, das roças e dos povoados, da cidade rica em miniaturas, da correnteza e dos

tesouros remotos que traz consigo‖. Seu olhar sobre as coisas mudam e o ―eu‖ recomeça de

maneira renovada.

É no recomeço que Bloch deseja chegar com o conceito do ainda-não-consciente, o

eixo do seu pensamento. O ainda-não (Nicht-Noch) é imanente ao mundo. O ―não‖ (Nicht) é o

princípio do movimento em direção ao objeto, o fator de progresso mediante sua utilização

dialética – a história em movimento. Segundo Bloch (2005, p. 283), é por causa do ―não‖ que

se ―sente que se vive‖, o que corresponde ao conteúdo do recém-vivido, ainda não consciente,

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ainda não percebido. Se o ―não‖ constitui a origem, o ―ainda-não‖ prenuncia um grande

avanço, identifica o processo da história como opção do homem. Caracteriza a ―tendência no

processo material‖, mas esse espaço aberto ainda não cobra do homem o seu ser verdadeiro,

não se situa no ―ponto zero do inìcio do mundo‖ (BLOCH, 2005, p. 283).

O inìcio do mundo novo irá surgir na forma do ―ainda-não-consciente‖ que seria o

último degrau do novo, não como o tudo (Alles), mas como totalidade (All). Não como ―tudo‖

porque a libertação do homem não se dá em oposição ao nada, nem acena com a

concretização imediata dos sonhos acordados. Mas se reveste da superação das experiências,

abolindo a dicotomia trabalho-mercadoria, libertando-a, pela sua vontade, da ―mera fixação

onìrica romântica‖ (BLOCH, 2006a, p. 308-10). O tudo não é uma experimentação

temporária, uma ruptura permanente. Então se teria uma nova ontologia do ser, se teria a

similitude do ―homem que caiu em si com o seu mundo‖ e tornou-se exitoso com a utopia,

deixando o seu espaço transitório e passando a ter estado duradouro (BLOCH, 2005, p. 307).

Nada pode ocorrer no plano abstrato, mas no plano real. Quando o homem olha ao

redor, encontra sempre a possibilidade de transformar o conteúdo da sociedade, e esse limiar

pode ser traduzido pelo que já foi realizado em toda parte, o que Bloch (2006a, p. 23) chama

de esperança no despertar da ―consciência utópica afiada‖. Na órbita desse conceito, abre-se o

solo fértil para a mediação das categorias, tais como: práxis utópica, sonho acordado, sonho

dormindo, desejo, vontade utópica, felicidade, imanência, latência, mediação e processo. Ou,

no dizer de Bloch (2005, p. 238-9), a ―categoria do possìvel‖, tão falada quanto indefinida

pela filosofia, mas que, remontando ao aristotelismo de esquerda, não deixa de ser ―possìvel

real‖, uma ―possibilidade em aberto‖.

Bloch (2005), em O Princípio Esperança, passa a conceber a práxis como a ação, com

a finalidade da mudança da sociedade pela elevação da consciência revolucionária. Existe,

segundo ele, uma tendência histórica de relegar a ―categoria do possìvel‖ a um plano

secundário: ―O tempo todo parece que se quer evitar refletir sobre o viçoso, o vindouro. Até

mesmo os sofistas, para quem tudo o que era firme tornou-se intelectualmente oscilante, não

extraíram do possìvel, além do escárnio‖, de tal modo que poderia existir ―tanto o tudo‖

quanto o ―nada‖ (BLOCH, 2005, p. 240).

Mas a matéria é a própria possibilidade. Leibniz, segundo Belaval (2005, p. 281-5),

considerava a matéria "incompatível" com a "inércia", mas entendia que na sua forma e

substância necessitava de direção para que a alma e o corpo se unissem e se tornassem

realidade inteligível. Como a Dinâmica não poderia ser separada da Metafísica, lembra

Belaval (2005, p. 286-90), é preciso engendrar a ação, transformando-a em "impetuosidade ou

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força viva" da criação. Não que a matéria necessitasse dessa união para existir, mas sem esta

não teria a unidade da organização.

Para melhor se fazer entender, Belaval (2005, p. 314), cita um pensamento de Epicuro:

"Os pés não são feitos para marchar, mas os homens marcham por que têm pés". Por analogia,

Leibniz colhe na matéria a reserva de autodeterminação do homem que, pela ação, exprime

sua forma imanente de transformar a vida e da possibilidade de criar uma única humanidade.

Esse efeito não é alcançado porque o homem vive imerso na sensação de que o mundo é um

caos, ignorando suas forças, mas que, na visão de Leibniz, segundo Belaval (1996, p. 332): o

mundo é uma "grande ordem" cósmica, acondicionado em uma "pequena desordem".

Transposta para a vida, a ideia de Leibniz é que o homem pode "encontrar prazer" com

a "felicidade do outro" e encontrar "virtudes da filosofia" no ―direito‖ e no ―dever moral‖

(BELAVAL, 2005, p. 336). Para Schelling (2012, p. 86-7), a matéria, ―força original‖ do ser e

―hostil a limitações‖, era dotada de ―movimento eterno‖. Corpo e matéria eram conceitos

―confusos‖, mas ―vivos‖ e ―independentes‖ que caracterizavam, no homem, a ―mais alta

expressão vital (SCHELLING, 2012, p. 225).

Schelling, na análise de Markus Gabriel (2013, p. 36), que concebe o homem como

Deus, pertencente ao interior e não ao exterior de Deus, mas na qualidade de criador voltado

para o bem e não para o mal, "porque Deus é a vida e não somente um ser". A esperança da

utopia blochiana segue por esta rota: a ideia do futuro como poder-ser (Sein-Können) e

antecipação da eternidade.

Mas a visão da imobilidade da matéria teima em ser a regra. Pensadores como

Aristóteles e os aristotelistas de esquerda, bem como Leibniz, ―o único grande pensador do

possìvel desde Aristóteles‖, são exceções porque romperam com a concepção estática da

matéria (BLOCH, 2005, p. 240). Mudaram essa concepção com a ideia do ser em movimento,

com a interpretação do real como possibilidade de mudança, tal como faz Ovídio nas

Metamorfoses (BLOCH, 2005, p. 240).33

Mas na filosofia não deixou de existir temor e

cautela quanto às categorias possibilidade, realidade e necessidade do ideal histórico

(BLOCH, 2005, p. 241).

33

Ovídio, 43. a. C-17 ou 18 d. C.

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1.2 DIONISO-APOLO, INCÓGNITA AINDA INSOLÚVEL NA INCOMPLETUD E

HUMANA E NA CURA DA DOENÇA DO CAPITALISMO

No ato de imaginar, como no ato de pensar, há um ato de intencionar.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 73)

Para Bloch (2006a), quanto mais distante o homem estiver do prazer falsificador da

contemplação, mais próximo estará da experiência vivida, da realidade e do materialismo

histórico, da revolução. Onde termina o materialismo inerte, começa o materialismo dinâmico

e dialético. O materialismo utópico de Bloch (2006a) tem a sua origem e o seu topos nesse

ponto de mudança em que a força da matéria em movimento impeliria a utopia a se realizar.

A experiência vivida favorece a análise da realidade, sem exercício de profecias ou

utopias abstratas. Como a utopia concreta existe para ser realizada, inexiste conteúdo

científico na separação entre a contemplação e a ação. Como não há conteúdo humano na

dicotomia Apolo-Dioniso. São dualismos desprovidos de prática revolucionária.

Dioniso nada é além de procurador daquilo que, no ser humano, arde e não

está resolvido, continua sendo o fogo obscuro do abismo. Apolo nada é além

da definição progressiva do material em fermentação dionisiacamente,

caracterizado, como o abismo nas alturas, que foi levado às alturas. Ambos

estão inacabados como o conteúdo humano a que se referem e para o qual

estão a caminho; aqui, na vontade e na carne; lá, no espírito. O ser humano

ainda não foi encontrado nem como dionisíaco nem como apolíneo, sua

incógnita ainda é tão grande que tanto o canto dionisíaco como o apolíneo e

a respectiva imagem do desejo anterior a ele têm quanto não têm razão. A

vontade impulsiva e o espírito oscilam, e aquilo que eles formam

alternadamente, na totalidade dialética, terá apenas um único nome. Será o

último Apolo e o primeiro Dioniso, assim desaparecem as duas alternativas

(BLOCH, 2006b, p. 33-4).

O valor libertador da unidade Dioniso-Apolo e sua completude seriam como curar a

sociedade enferma de uma doença grave. Restaurando a vida nova em que a infância fosse

despreocupada, não houvesse a luta por moradia e alimentação saudável, o homem poderia

ser pleno. Sem curar as doenças do capitalismo, o homem não poderá andar ereto, porque ―a

própria sociedade está suja e doente, e precisa de atenção clìnica‖ (BLOCH, 2006a, p. 28).

A imagem da restauração da saúde Bloch trouxe da realidade histórica: no capitalismo

é a capacidade de trabalhar, enquanto, na Idade Média, a ausência de saúde foi pensada como

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fruto do pecado. Quem tinha boa saúde era visto como pessoa de poucos pecados. Na

Antiguidade, a visão era mais simples: saúde era a ausência de doença.

Construir a saúde é arte do modelar da vida e da sociedade. A enfermidade não é culpa

do indivíduo, mas do grupo. Quando Malthus atribui os males da sociedade aos males da

superpopulação e influenciou Darwin e o conceito da luta darwiniana pela sobrevivência,

dava a entender que o controle da natalidade era a salvação da humanidade. Não é o que

pensa Bloch. Na Terra existe lugar para todos, e a vida seria muito distinta se fosse

administrada pelo ―poder da satisfação das necessidades‖ e não pela administração das

―necessidades do poder‖ (BLOCH, 2006a, p. 29).

No capitalismo, a saúde significa lucro. A ideologia do poder é de que todos devem

ser saudáveis e desfrutar da liberdade para serem saudáveis se assim desejarem. Nada mais

ilusório. Bloch vai encontrar a necessidade da saúde sucessivamente no estoicismo e seus

hábitos da convivência saudável com a natureza, em La République de Platão (2007), na

Utopia de More (1999), na Cidade do Sol de Campanella (2001), na Nova Atlântida de Bacon

(2008), até Marx e Engels (2007) com as Teses sobre Feuerbach.

O itinerário para o homem é extenso, como antecipa Bloch (2006a, p. 28): ―[...] sem

dúvidas, não será percorrido no contexto da produtividade e no empreendimento capitalista,

pois a saúde visa a ser desfrutada e não consumida‖. É uma saúde que, como lembra O

Manifesto Comunista (MARX; ENGELS, 1998a), implica não na sucessão de

desenvolvimentos individuais, mas no ―desenvolvimento de todos‖ (BLOCH, 2006a, p. 31).

Por conseguinte, a saúde social depende do valor dado à vida, desintoxicada da cultura

do lucro, sem as circunstâncias tortuosas do nascimento à idade adulta, da velhice à morte.

Desembaraçar-se do magnetismo insalubre do lucro é tarefa acima da linha do horizonte

individual. Na vida historicamente material, a totalidade social e dos indivíduos evoca a

história da exploração do homem pelo homem. Daí, para o futuro, a sociedade não dialética

projetar apenas sombras: na sociedade capitalista, a pretensa ubiquidade da sua existência é a

negação do devir.

Com a sedução do lucro, vieram a devastação da natureza, o egoísmo, a inautencidade

da vida. Há muita praticidade, pouca humanidade: não há mediação entre o homo faber

burguês, medido na balança da produtividade, e o sujeito da história, o ser humano – o

trabalhador humanizado desalienado. A utopia concreta, com a metáfora da restauração da

saúde, resignifica o objetivo do marxismo e do processo utópico do homem humanizado: ―O

possível não sendo totalmente condicionado, é o não-consumado‖ (BLOCH, 2005, p. 244).

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Há medo na esperança e esperança no medo, mas o homem é capaz de fazer preponderar a

esperança.

A busca da esperança não comporta o egoísmo e se volta para as características

coletivas de uma sociedade nova. Bloch ensina que a utopia não pode existir sem romantismo

revolucionário, mas não pode igualmente prescindir da análise das possibilidades da ―corrente

fria‖ da realidade. O romantismo foi ―um hino à genialidade‖ em contraste com as regras, a

sanidade, a racionalidade iluminista, no dizer de Isaiah Berlin (2015, p. 89). Sua virtude

encontra-se no arrebatamento a que se dedica na construção de uma sociedade melhor.

Trata-se de visão sincera e profunda da realidade. Bloch rejeitava a destruição de uma

cultura pela outra. Fez desmoronar a ideia de uma vida perfeita e entendia que os ideais de

vida dos mais elevados podiam ser alcançados em todos os lugares ao mesmo tempo. O seu

postulado básico era a ação que abre espaço para outra ação, caso contrário, nada teria sentido

(BERLIN, 2015, p. 105-8). O Sturm und Drang foi emblemático. Sua conotação é múltipla.

Sturm é sinônimo de tempestade, dilúvio, confusão. Drang significa élan, desejo, paixão.

Bloch, na sua porção romântica, dispõe-se a ultrapassar as verdades estabelecidas.

Mas ensina que essa corrente quente do pensamento (Wärmerstrom), originária do estudo

filosófico da natureza, com raízes na esquerda aristotélica, na Idade Média, em Goethe e no

marxismo, não pode desprezar a corrente fria do pensamento marxista (Kälterstrom), essa

oriunda da física quantitativa de Galileu, Newton e Kepler, do materialismo francês do século

XVIII e do materialismo alemão do século XIX. São contrárias, mas complementares.

Bloch (2006b) ensina mais: a esperança utópica é integrada pela base filosófica da arte

de viver, do bem viver, pelo tempo livre, pelo otimismo militante e pelo desenvolvimento

saudável do homem, fios revolucionários no labirinto da vida. A cultura do lucro não finda

pela oposição abstrata. Há obstáculos imensos nas possibilidades de realização do futuro.

Talvez, o principal deles seja a possibilidade do ainda-não. Conceito, em termos filosóficos,

pouco ―rastreado ontologicamente‖, permanece no domìnio da lógica formal: pode ser dito,

mas não pensado, porque predomina a cultura contemplativa (BLOCH, 2005, p. 238). Não

seria o processo permanente da práxis humana o imperativo da vida?

O possível e, consequentemente o ainda-não, são interpretados como determinação do

conhecimento, não do objeto real. Não fosse assim, o homem e seu trabalho não seriam

separados da transformação do mundo e o homem trabalhador, ―pivô da história‖, não seria

―alienado, reificado e subjugado em prol do lucro de quem o explora‖ (BLOCH, 2005, p.

246).

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O homem, nessas condições, oscila entre a suposição, a irrealidade, o subjetivo, a

cautela, a abstração vazia, sem citar a distância que é levado a viver da infinidade de

possibilidades. Precisaria não ser fundado na ontologia supostamente acabada do ser

existente, mas do ser-ainda-não-existente. Essas ideias são cristalinas nas Teses sobre

Feuerbach analisadas por Bloch (2005), ao longo de 36 páginas, no livro I de O Princípio

Esperança.

É como se o possível e o impossível não representassem quase nada para a filosofia e

mesmo a mediação do vindouro fosse quase supérflua. Isso torna direta e transparente a

enorme distância entre o ainda-não-consciente e a possibilidade-realização do torná-lo

consciente. A visão blochiana, em nada pessimista, não elimina o alvo contemporâneo da

utopia: nascer e se realizar pela ação histórica não egoísta, alcançar um futuro em que o

homem, ao despertar para o ainda-não-consciente, possa conquistar.

1.3 DO APOCALIPSE CAPITALISTA À DIALÉTICA DO PROCESSO

A utopia concreta situa-se no horizonte de toda realidade.

A possibilidade real envolve até o fim as tendências–latências dialéticas

abertas.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 221)

Nos anos que separam The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) de O Princípio

Esperança, Bloch cultivou a revolta da esperança, no começo, com a união do marxismo e da

Bíblia. As razões estavam na dramaticidade da Primeira Grande Guerra, que sacrificou

milhões de vidas nos campos de batalha em benefício da burguesia. Terminada a guerra, as

portas estariam abertas para o começo da revolução por imposição do obsoletismo da velha

ordem e pela impossibilidade de qualquer Restauração nos moldes do que aconteceu no

passado com a Revolução Francesa.

A esperança estava na Rússia revolucionária, que superara o romantismo de Münzer e

purificara o marxismo do ―entusiasmo abstrato do mero jacobinismo‖ (BLOCH, 2000, p.

236). Apegar-se ao passado, para a Europa, significava a morte. A guerra emperrara as

engrenagens do Estado conservador e deveria apressar o seu ocaso. O princípio da igualdade

entre os homens correspondia, na proporção inversa, ao fundamento da superestrutura

capitalista do homem considerado rebanho.

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Bloch (2000, p. 242-3) entendia a revolução contra a ordem capitalista como processo

de libertação do operariado e realização da filosofia. Mas, à época de The Spirit of Utopia

(Geist der Utopie), tratava-se mais de apelo moral, menos do desenvolvimento revolucionário

contra a exploração e a brutalidade. Seria o imperativo da construção da fraternidade e do

paraíso terreno com o fim do capitalismo. Invertia-se o conceito de liberdade: a liberdade

seria anterior ao indivíduo e a sua manifestação estaria no encontro do homem consigo

mesmo. Resultaria na força coletiva.

Teoricamente, por aquela época, a resposta à problemática utópica estava no

Apocalipse, não na revolução. Bloch (2000, p. 271-8) condenava não só o capitalismo, mas se

posicionava contra o ―militarismo‖, o ―feudalismo‖ e o ―utopismo abstrato‖. E via, no

Apocalipse, um ―ato de não conformismo da natureza‖ com a ausência de razão para viver,

faltava-o ao homem alienado, ao homem que perdera o sentido da verdade. Pensava o mundo

pela reinterpretação do Apocalipse, pela revolução humana contra a natureza das coisas, pela

procura do que ainda ―não é‖, mas ―deve ser‖. Era uma epistemologia autêntica, mas que ele

só a desenvolveria em O Princípio Esperança, com o realinhamento das Teses sobre

Feuerbach.

Ele, já naquela época, desejava colocar o homem além da criação do real. A utopia

mais do que interpretação da realidade, era a invenção do futuro, um futuro em que o homem

tivesse a esperança de dizer, como numa inscrição antiga, que ele cita em The Spirit of Utopia

(Geist der Utopie): ―Eu estou surpreso por ser feliz como eu sou‖ (BLOCH, 2000, p. 276).

Não parecia ter dúvidas de quanto o homem poderia ser feliz se rompesse com os ―tabus‖ e os

―demônios‖ da ―teocracia‖ e do capitalismo (BLOCH, 2000, p. 133).

O telos não era o reino de Deus, mas o reino do homem que permitiria romper com a

estrutura metafìsica do Estado. O capìtulo ―Karl Marx, a Morte e o Apocalipse” (BLOCH,

2005) evoca o momento inaugural da mediação, que se encontraria no cristianismo primitivo,

no sentido de primeiro, com a travessia de Moisés, anterior a Cristo, para libertar os escravos

do jugo do faraó e erguer a Canaã revolucionária. Era a metáfora do encontro do homem com

a sua exuberância interior. Tornar o ainda-não-consciente em consciente era a incontornável

questão à espera de resposta (BLOCH, 2000, p. 229).

Se o homem não sabia para que vivia, se ele desejava entender o essencial da

realidade, o método filosófico apontava não para a sua ―benevolência‖ com a acumulação e a

mediocridade, nem para a ética metafísica ou a invenção lógica da alma, mas para a totalidade

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do despertar (BLOCH, 1988, p. 275-8). O movimento da história almejava não o messias,

mas a purificação do homem.34

Com o passar do tempo, o desafio utópico inicial ganhou amplitude na obra de Bloch.

A filosofia utópica tornou-se revolucionária. As relações sociais degradantes precisavam

transformar-se em relações dignificantes. As abstrações da ―ideia‖ e do ―espìrito‖, de origem

hegeliana, tornaram-se ―pensamento real‖, experiência vivida da realidade. A liberdade

interior cedeu lugar à força coletiva.

Moisés e a Canaã irrealizada remeteram Bloch à crueza da luta de classes e da divisão

de classes: passaram a ser demiurgos do conflito com o mundo passado, do Egito de Ptah a

Marduque, na Babilônia, com o mundo presente, porque a estrutura de dominação pela

religião clarificou-se (BLOCH, 2006b, p. 354). Nascente entre os agricultores, foi a luta de

classes que tornou o deus visível da igualdade, própria da travessia do deserto, no deus

invisível do judaísmo e do cristianismo, o deus da justiça e do reino. Mas de uma justiça e de

um reino nunca alcançável. Logo, a antiga dominação foi recriada e a igualdade entre os

homens, durante a travessia do deserto, dissolveu-se.

O ponto de partida e de chegada de Ernst Bloch, o homem humano, floresceu. O

homem é incognoscível, podendo ser tudo ou não ser nada, mas pela porta entreaberta da

esperança pode ser belo e humano. Não conhece limites, embora seu saber seja limitado e

carente de aperfeiçoamento. O tudo, em Bloch, é a vontade de fazer. Condensa os escritos

norteadores, a dimensão moral, imortalidade do criar, como fez Hölderlin que, doente,

concebeu o seu Empédocles eterno, porque associa os seres à metamorfose libertadora.35

A

latência, quando explode em realidade, é a sedimentação do princípio de mudança. As

estruturas modificam-se. A rebeldia ganha livre curso. O escravo se rebela contra o senhor. A

utopia concreta ganhou o significado de refletir que o homem não é pleno, deseja vir a ser.

Não é pleno porque as relações de produção impedem a transformação dos indivíduos,

o que só ocorrerá com a queda da classe dominante e a transformação do homem econômico

no homem comunitário. A categoria do vir-a-ser ganhou, então, sentido da práxis da vida

34

O sonho dos alquimistas era restaurar a condição paradisíaca original. Alquimistas e milenaristas procuravam

transformar metais em ouro, metáfora do novo ser humano. O sonho alquímico esteve disseminado por todas

as culturas desde 700 d.C., embora seja possível que remonte da Era do Bronze. Foi a utopia ―mais ousada e

mais mitológica‖ da tecnologia e perdurou até o século XVIII (BLOCH, 2006a, p. 198). A alquimia não

encontrou ouro, mas foi a estrada para a química moderna.

35

Friedrich Hölderlin (1770-1843), poeta de substancial conteúdo político, escreveu A Morte de

Empédocles.Filósofo, político e taumaturgo grego, lutou ativamente pela democratização da pólis e o

encontro com a natureza.

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revolucionária para superar, principalmente, a interseção entre a obscuridade do instante

vivido e a obscuridade do futuro.

A obscuridade torna-se mais intensa assim que não só nós, mas também a

outra página, a página virada permanece indefinida, logo, assim que nos

voltamos para o futuro, o qual, na medida em que ele se constituiu como o

novo, sobretudo em termos lógicos, nada representa além da nossa

obscuridade ampliada, da nossa obscuridade por ocasião do engendramento

do seu ventre, na ampliação da sua história seguinte; e ele igualmente se

fortalece em vista de Deus como o problema do radicalmente novo, que não

apenas deve tornar-se visível para nós para existir, de tal modo que o

processo do mundo como um todo se reduziria elasticamente a uma relação

de movimento entre duas realidades ―separadas‖, mas que está cônscio de si

mesmo apenas como esperança, como ser-não-para-si, que, igual a nós,

encontra-se no não acontecido obscuro, no ainda-não real (BLOCH, 2005, p.

293).

Bloch recorre a Deus no sentido metafórico. Para ele, o homem é Deus e, portanto,

não precisa de um Deus exterior a si mesmo. Coloca o problema da matéria36

que, iluminada,

associa-se ao novum e ao ultimum e ganha vida no ventre do tempo pela dinâmica do

movimento. A imagem invoca o despertar do homem para a enorme resiliência da cultura

capitalista. O processo de revelação dessa característica e compreensão da totalidade

socialista é acompanhado pela atividade humana, atitude ―revolucionária‖ ―prático-crìtica‖,

tal como escrito em as Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007). O despertar do

homem para o seu papel na história marca a fronteira entre movimento e repouso, entre o

pulso da vida de agora e a vida do devir, entre a alienação e a desalienação.

O ainda-não real ao qual Bloch (2005, p. 233) se refere não é objeto subjetivo, mas a

realidade objetiva que precisa ser clarificada, fecundada – a realidade do que pode vir a ser

determinada na matéria. Na filosofia da práxis revolucionária, os postulados mais conhecidos

são a penúria material, o conhecimento e a consciência, mas o campo efetivo a transformar-se

é aquele dos valores. Sem o culto aos valores revolucionários, à ética da transformação,

principalmente, não há contemporaneidade. Predomina a percepção não das luzes do tempo

vivido, mas do seu escuro. Pelo movimento revolucionário e pela elucidação dos mecanismos

de dominação é que ―Deus e a matéria tornam-se idênticos‖ (BLOCH, 2005, p. 233).

36

A matéria é fator determinante do nascimento da filosofia. Relaciona-se ao conceito de ―forma‖, de

―espìrito‖, de ―força‖, de ―energia‖ ou até de ―número‖. Em Marx, o materialismo histórico surge com A

Ideologia Alemã. ―O primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de

indivìduos vivos‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 41). Cai o império da religião, a produção humana ascende na

interpretação do mundo.

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A obscuridade é um ponto de passagem que, mediado pela iluminação, no entender de

Bloch (2006b), revela o acerto ou o erro do pensamento utópico. Pode impedir que o homem

fique cego ou ofuscado pelas luzes e possa perceber as trevas das diferentes épocas. Como

obscuridade, o risco de fracasso na revolução é irreversível. A construção do socialismo não é

alvo perfeito. Nem inexorável. Para Bloch (2006b), não existe determinismo histórico. Ele

encontra o alvo na busca do mundo novo, mas nada pode garantir que esse desejo seja

verdadeiro ou falso. Há sempre dúvidas quanto ao efetivo alvo da esperança.

Trata-se de ruptura do processo histórico. A ruptura transcende os graus a que possam

ser elevadas as previsões quanto à prática e, também, à teoria. As relações econômicas não

podem ser ignoradas, mas não se concentram no campo preponderante de batalha. Este situa-

se na superação da necessidade e, ao mesmo tempo, na construção da vida real. As utopias

antigas – a Ilha dos Feacos de Homero, o Jardim do Éden da Bíblia, a Terra Prometida dos

Santos na Índia – pressupunham terras da felicidade que precisariam ser descobertas. Na

utopia concreta, a Terra da felicidade precisa ser construída pelo homem.

A categoria do possível, ainda que tão bem conhecida e a toda hora utilizada,

constituía uma crux em termos da lógica. Dentre os conceitos que, no

decorrer dos séculos, foram elaborados e levados a um grau de precisão pela

filosofia, essa categoria é a que até agora permaneceu a mais indefinida.

Com certeza, é a que menos foi rastreada ontologicamente: por isso, ela

ocorreu tradicionalmente quase só na lógica formal. Mesmo quando a

doutrina das categorias se ocupa com o possível, este é considerado,

preponderantemente, apenas como determinação do conhecimento e não do

objeto (BLOCH, 2005, p. 238).

O pressuposto para transformar a latência da possibilidade em utopia concreta seria

fazer com que o homem rebelde tivesse maior influência que o homem conservador e o

homem em aperfeiçoamento. Como o mundo é planejado para que o homem não pense e, não

pensando, fique cada vez menos rebelde, o homem é cada vez menos intenso. Produz,

consome, mas se mantém distante do cuidado com a natureza e das inquietações.

A utopia concreta interdita, por outro lado, o niilismo. Não é a mesma coisa que o

conservadorismo, mas seu irmão gêmeo. Na concepção niilista,37

Deus abandonou o mundo e

nada mais existe para ser feito. ―Há mais alegria e coisa boa a se esperar de um nazista

convertido do que de todos os cìnicos niilistas‖ (BLOCH, 2005, p. 432). O niilista carece da

37

O niilismo é a ausência de sentido para os valores tradicionais, partindo do silogismo: se Deus – a verdade, o

princípio – morreu, então tudo é permitido. O termo, derivado do latim nihil, nada, aparece na Revolução

Francesa, com aqueles que teimavam em não tomar partido, não sendo a favor nem contra. Com Nietzsche e

a ―morte de Deus‖, alcança o seu mais alto grau. No século XX, o niilismo ganha conotação da grande

doença na civilização ocidental. Se as coisas não são vividas, onde estaria a lógica da vontade?

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vontade de ação. Não se movimenta. ―É um pessimista incondicional‖, mais nocivo do que o

otimista ―condicionado artificialmente‖, porque não acredita em nada (BLOCH, 2005, p.

432). O niilismo, para Bloch, é o vazio, ―transformando o mero nada do futuro capitalista

num nada absoluto-inevitável para que fosse totalmente impedido o olhar para um mundo

transformável, para o futuro socialista‖ (BLOCH, 2006b, p. 242).

Estrangeiros ao dever ser da utopia, a contemplação e o niilismo sabotam a práxis.38

Ao negar a mudança, fazem do desejar e da vontade potências passivas. Levam o homem a

estacionar nas relações sociais dilacerantes. O niilismo não implica o conhecimento. A

antinomia entre mudanças radicais, contemplação e niilismo encontra-se na raiz da

incompletude da vida humana.

Em meio a essa pletora de realidades, Bloch transitou da teoria do Apocalipse para a

teoria revolucionária, mas sem jamais considerá-la absoluta. Romantismo, idealismo,

humanismo abstrato e o concreto cedem lugar ao desejo de mudança para além das exigências

morais burguesas e do reformismo. Dentro desse contexto, virar as costas para a prática é se

curvar ao poder da estrutura capitalista de se repetir e se perpetuar.

A advertência feita por Bloch (2005), ao agrupar as Teses 2 e 8 de Marx e Engels

(2007) sobre Feuerbach, enfatiza: a teoria em função da práxis para adiante, coloca a filosofia

e o futuro em perspectiva, tendo a ética revolucionária como âmago. O tema já se fazia

presente em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), quando Bloch (2000) considera que o

período gótico, mais do que a antiga Grécia e o antigo Egito, devotou-se à descoberta da

maturidade do homem e acendeu a chama dos primeiros românticos alemães (BLOCH, 2000,

p. 22-31).

Foi uma época em que a utopia de Bloch estava carregada de linguagem mística e de

religiosidade, mas já se distinguia do romantismo conservador pela mensagem de que o

desafio utópico do socialismo consistia em procurar soluções racionais para problemas

racionais. Em O Princípio Esperança, seria ainda mais enfático. A utopia concreta exige

abandonar linhas salvacionistas: deixar de lado o altruísmo, o misticismo, a filantropia de

interesse capitalista, a nostalgia, a ―fé inventada‖, o ―amor inventado‖ e o ―idealismo

retrógrado‖.

38

Die Praxis, termo traduzido da palavra grega praxis significava, no século XVI, realizar uma ação. Kant irá

recorrer ao termo para opor teoria e prática, definindo a praktische como produto da razão. Fichte e Hegel

irão considerar a praxis como atividade moral-prática de transformação (moralisch-praktische), o que

corresponde à atividade. Marx interpreta a prática como a autotransformação material do homem na procura

da sua libertação, mesmo nas condições alienantes. A prática revolucionária (Revolutionären Praxis) é a

atividade prático-crítica voltada para a mudança das circunstâncias do trabalho humano.

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Em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), a ideia de mediação é clara: na Primeira

Grande Guerra, homens foram massacrados por ideais medíocres, mas a vida nova renasceu.

A textura dos sonhos vencia a obscuridade dos campos de batalha. O ainda-não-consciente

insinuava-se na memória daqueles tempos. A utopia concreta estava à procura do âmago do

homem. ―Não há pensamento sem privações, porém a constante estupefação com algo o faz

avançar‖ (BLOCH, 2006a, p. 426). Isso é o que distingue o homem revolucionário: ele não se

curva à ―estupefação‖, ele se rebela em profundidade, ele se expressa pela ação, pela busca de

relações humanas mais perfeitas.

1.4 FILOSOFIA E UTOPIA: CONSCIÊNCIA E PRÁXIS, UMA MESMA UNIDADE NA

BUSCA DO NOVUM

As velhas utopias eram doutrinárias porque aliaram seu modo de ser, rico

em fantasias, sim, fantástico, com o estilo de pensamento racionalista da

burguesia.

Ernst Bloch, O Principio Esperança (2006a, p.134)

Bloch concentra-se no não-alvo: a construção da sociedade nova não é feita com

indignação sentimental e abstrata. Enquanto as utopias abstratas dedicaram ―nove décimos de

seu espaço à descrição do Estado do futuro‖, Marx fez exatamente o contrário e, por isso,

escreveu O Capital e não ―Convocação para o Socialismo‖ (BLOCH, 2006a, p. 175).

Não pinta um paraíso na Terra, mas desvenda o mistério da obtenção de

lucros e o mistério, quase mais complicado, da distribuição dos lucros. Marx

aplica a lei do valor, enunciada por Ricardo, à mercadoria da força de

trabalho. Descobre a dialética da mercadoria pela via do valor de troca e

dentro dela. Compreende que o lucro é uma mais-valia extorquida e que a

curiosa taxa média de lucro constitui a base para a solidariedade de classe

dos capitalistas. Dessa maneira, fundamenta a dialética da história, que leva

a tensões, utopias, revoluções, sendo primeiramente dialética material

(BLOCH, 2006a, p. 175).

Esse pressuposto recria o papel da filosofia na sociedade de classes. Em vez da

investigação das causas primeiras ou dos primeiros princípios do espírito humano, Bloch

procura a transformação material da vida, a filosofia como expressão da necessidade da

prática, não mais como designou Feuerbach um ―empirismo especulativo e mìstico‖ (MARX,

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1982, p. 463). No lugar do estudo da sabedoria e de todas as coisas que o homem pode saber,

Marx enfatiza a filosofia de total revolução emancipadora, a filosofia que se identifica com a

ciência da revolução socialista,39

o princípio de construção de uma história nova.

Em vez de negar os nexos entre o marxismo e a filosofia, reduzindo-os a uma crítica

científica da sociedade, tal como fez o marxismo ortodoxo, Bloch examina ampliá-los,

tornando-os indissoluvelmente associados à prática. Entende como Marx (1982, p. 1537,

tradução nossa) que ―o mundo se tornará filosófico quando a filosofia se tornar terrestre,

interesse e paixão de cada um e de todos‖.40

Bloch procurou ampliar o sentido da ideia

marxista da filosofia como transformação do mundo, não só como intérprete: a coincidência

da consciência com a realidade e com o sonho revolucionário, considerando-a como

característica da dialética materialista. Marx (1982, p. 1537-82) considera a filosofia ética

como ―imperativo categórico‖ para a transformação do mundo, enfatizando que o filósofo não

deve se restringir ao pensamento, mas abraçar todas as atividades humanas, deixando de ser

―suprimida e conservada‖ numa ética vazia. Precisa mudar de papel, ser a filosofia da

revolução.

A transformação filosófica está associada a um saber incessante a respeito da

conjuntura; pois, mesmo que a filosofia não seja uma ciência própria acima

das demais ciências, ela é, isto sim, a ciência e a consciência próprias do

totum em todas as ciências. Ela é a consciência progressiva do totum

progressivo, já que este totum não está estabelecido, ele próprio, como

factum, mas lida com o que ainda não veio a existir unicamente no

gigantesco contexto do devir. A transformação filosófica é, assim, uma

transformação segundo a medida da situação analisada, tendências dialéticas,

das leis objetivas, da possibilidade real (BLOCH, 2005, p. 277).

A transformação filosófica está ao alcance do homem porque exige a unidade teórico-

prático, com a supressão do que é acentuadamente prático ou acentuadamente teórico. Não é

uma transformação impossível. Exige que se abandone a ideia de uma filosofia autárquica ou

contemplativa, o mesmo que uma filosofia meramente interpretativa, em que o alvo prioritário

seja a filosofia da revolução tendo no bem comum o seu alvo prioritário.

39

A expressão socialismo científico foi cunhada por Engels em série de artigos publicados no

Vorwärts(Adiante), órgão central da social-democracia alemã, de 1876 a 1878 e reunidos no livro Do

socialismo utópico ao socialismo científico, como resposta aos ataques de E. Dühring, docente da

Universidade de Berlim, que ao aderir ao socialismo em 1875, publicou um livro com coléricos ataques a

Karl Marx. Em três alentados volumes, Dühring compôs sistemas completos da filosofia, da economia

política e do socialismo, além de uma História Crítica da Ciência Política.

40

―Le monde deviant philosophique quand la philosophie deviant terrestre, affaire et passion de chacun et de

tout le monde.‖

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Na visão de Bloch (2005), que deixou de ser apocalíptica, a matéria passa a ocupar o

lugar do ―Espìrito‖ hegeliano e a dialética compreende a unidade sujeito-objeto da harmonia

teórico-prático da filosofia de transformação do mundo. Com essa percepção do valor da

prática, Bloch transfere o papel de mediador do partido para a experiência do homem

trabalhador e abre espaços à visão do todo social utópico. Faz da prática a própria expressão

direta da teoria.

A consciência torna-se um movimento, o ainda-não-consciente torna-se uma aspiração

revolucionária inseparável do processo revolucionário. Rompe com a noção mecanicista de

que a história possui suas próprias leis, reivindicando a função prática das Teses sobre

Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007). De maneira indireta, Bloch demonstra a

impossibilidade de construção do socialismo em um só país e, também, critica a idealização

da teoria como saber puro que bastaria ser aplicado para que a realidade se transformasse.

Foi assim que Bloch seguiu os passos de Marx e Engels, da utopia apocalíptica para a

ciência da história, mas estabelecendo os limites da ciência e os horizontes do aprendizado a

conquistar a partir da prática. Filosofia, conhecimento material da realidade e sonhos

revolucionários trilham a mesma rota, pois não se tratava de simplesmente descrever o

fenômeno utópico, e sim, construí-lo. O futuro emergiria não só da antecipatória sociedade

sem classes, na visão de Marx (1982), e do reino da liberdade, na concepção de Engels

(2005); mas da utopia social do ainda-não-consciente.

Assim como rechaçou os devaneios dos utopistas, Marx também renunciou aos

devaneios filosóficos e, nas palavras de Franz Mehring (2003, p. 21-5), ao superar ―o

diletantismo filosófico‖, abriu ―novos e amplos horizontes‖ para a consciência humana, dando

real conteúdo ao espìrito grego. Deixou de lado a abstração da ―autoconsciência‖ e da

filosofia da natureza, espelhada nos deuses e na religião, para mirar-se no materialismo e no

homem. Reinterpretou a perspectiva filosófica do epicurismo, do estoicismo, do ceticismo e

do hegelianismo, os primeiros como centro do sistema materialista da Antiguidade, o último

com a crítica ao direito (MARX, 1982, p. 785-808; 900-5). Negou, como acontece em A

Sagrada Família (MARX; ENGELS, 2003), a identidade mística do pensamento e do ser,

concentrando-se nos conceitos de ―comunismo de massa‖ e de ―proletariado de massa‖ como

movimento prático e material dos trabalhadores (LÖWY, 2002, p. 160-1).

Era na mediação entre a exploração e a revolução que Marx encontrava a capacidade

das massas operárias de desfrutar da ―liberdade‖, em sentido materialista, de fazer valer suas

necessidades ―não através do poder do indivìduo concreto, mas sim, através do poder da

sociedade‖, ou seja: ―Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as

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circunstâncias humanamente‖ (MARX; ENGELS, 2003, p. 150). Do socialismo utópico,

saltou para o comunismo materialista e com a continuidade, em âmbito filosófico, no

entendimento de Löwy (2002), do materialismo do século XVIII para a doutrina do

humanismo real.

Dessas premissas, Bloch (2005) extraiu a mais veemente das suas argumentações

quanto ao ainda-não-consciente – a evidência de que o homem precisa tornar consciente a

construção do socialismo. Na teoria marxista, a prática é mais do que uma demonstração de

crença no homem e na sociedade sem classes, mas uma coincidência sujeito-objeto. Agir é

acreditar, e acreditar é transformar. Nada é estanque, nada é dissociado do todo. Ser racional é

compreender a estrutura de classes e o relacionamento com ela. Ser racional é entender o

processo histórico, analisar situações e transformá-las. Isso exige mudança de valores e a

superação de tensões entre as forças produtivas e as forças da economia política.

O socialismo como ideologia do proletariado revolucionário é pura e

simplesmente boa consciência, relacionada com o movimento compreendido

e a captada tendência da realidade. Contudo, à relação dessa ideologia

verdadeira com o aspecto antecipador na má consciência da ideologia

anterior, aplica-se à seguinte sentença de Marx (a Ruge, 184341

): ‗Nosso

lema de campanha deve ser, portanto: reforma da não consciência não por

meio de dogmas, mas da análise da consciência mística, à qual ainda falta

clareza. Ficará evidenciado, então, que o mundo, há muito, possui o sonho

de uma coisa da qual ele só precisa da consciência para possuir realmente.

Ficará evidenciado que não se trata de um grande travessão entre o passado e

o futuro, mas da efetivação das ideias do passado (BLOCH, 2005, p. 154-5).

O escrito de Marx, datado da primeira metade do século XIX, quando o socialismo

tateava à procura de uma saída luminosa para a escuridão capitalista, parece pertencer aos

dias atuais. Que Bloch procure estabelecer uma linha de continuidade entre o passado e o

futuro, não é propriamente a novidade. Caracteriza o novum o entendimento de que o homem

necessita construir, uma sociedade livre e igual. Teria duplo aspecto: a mediação dentro do

capitalismo e a mediação dentro do socialismo, uma para superar o sistema, a outra para

41

Berlin (2007, p. 85-6) traça um retrato elogioso e cáustico de Arnold Ruge: jornalista talentoso, mas

pomposo e irritável, um radical hegeliano descontente, mas que, depois de 1848, tendeu gradualmente ao

nacionalismo reacionário. Perseguido pela censura na Alemanha, mudou-se para Paris e convidou Marx, a

quem admirava, embora fosse 16 anos mais velho, para editar o Jornal Deutsch-Französische Jahrbücher. Ao

contrário de Marx, que sempre cultivou ―soberana indiferença ao dinheiro‖, Ruge era excessivamente

apegado ao dinheiro, era avaro. Foi Ruge quem encomendou a Marx o ensaio para o seu jornal sobre a

Filosofia do Direito de Hegel (MEHRING, 2003, p. 62-99). Marx afastou-se de Ruge ainda no exílio nos

anos de Paris. Ruge era quem mediava o diálogo entre Marx e socialistas conhecidos, como Proudhon, Louis

Blanc, Cabet e fouerristas da Democracia Pacífica por intermédio de Victor Considerant (MARX, 1982, p.

1349).

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afastar-se dos traços da sua cultura. Acima do duelo entre a ―boa‖ e a ―má consciência‖, há

―uma cultura de efeito continuado‖ da sociedade de classes que carece ser rompida.

A má consciência por si só não seria suficiente nem mesmo para dourar o

invólucro ideológico do que ocorreu. Por si mesmo, ela não teria condições

de produzir uma característica mais importante da ideologia: a harmonização

prematura das condições sociais. Seria ainda menos possível compreendê-la

como meio do substrato cultural sem o seu encontro com a função utópica.

Tudo isso ultrapassa, notoriamente, tanto a má consciência quanto o

fortalecimento até apologético da respectiva infraestrutura social. Da mesma

forma, sem as funções utópicas ideológicas de classe teriam chegado a ser

meramente ilusões passageiras, e não modelos na arte, na ciência e na

filosofia. E é exatamente esse excedente que forma e mantém o substrato da

herança cultural, como sendo aquele amanhã que está contido não só nos

tempos primordiais, mas também, num nível mais elevado, em pleno dia a

dia de uma sociedade e, parcialmente, na penumbra da sua ruína (BLOCH,

2005, p. 155).

Contra a cultura capitalista, faz-se necessário afirmar nova consciência. Essa postura

exige uma transição dialética, que Bloch (2006b) não apenas reconhece, como admite exigir

ação transformadora contínua e a fé na capacidade humana de cultivar valores universais. Se

o braço longo do capitalismo alcança o homem na fábrica e na sensação de liberdade ao

dormir, nas férias e no esporte, no convívio com a família e nas relações de troca, nas guerras

e nos desejos, sem que o homem perceba, o socialismo precisa caminhar no sentido inverso e,

na sua práxis, mostrar que os homens não são mercadorias, que o ser humano não existe para

competir entre si, mas para ser a si mesmo, não alienado.

É fácil desejar transportar-se para longe de um lugar ruim. Mas a trilha para

sair dele é menos óbvia, ainda precisa ser aberta. O terreno plano que se

estende para todos os lados é tão difícil para o caminho certo quanto o

montanhoso, com flagrantes bloqueios. Daí o desgarrar-se, uma das

condições mais amargas, além de peculiar. Ela reside no prolongamento do

querer, ao qual falta, ou ainda falta o poder no prolongamento do broto que

nunca evolui realmente para a flor. O desgarrado encontra-se entre o desejo

permanente e o caminho não permanente ou que não se revela. Porém o

perigo a que o desgarrar-se expõe ao viandante, o perigo de perecer, perfaz

também o tributo ao novo (BLOCH, 2006a, p. 299).

O novo é o broto que se transforma em flor, o sonho que transforma em lugar de se

desgarrar da realidade. A função utópica é justamente esta: arrancar a cultura socialista da

mera contemplação e levá-la a galgar os cumes da esperança humana. Portanto, a via

inescapável para o socialismo seria essa: construir, na consciência humana, a imagem da boa

consciência voltada para o futuro. É nesse contexto que pode ser compreendido, como

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metáfora de moldura muito mais ampla, a citação da carta de Marx a Ruge. E a vontade

blochiana de concretizar o novo.

1.5 EM LUGAR DA FILOSOFIA DA SOCIEDADE DE CLASSES, A FILOSOFIA DA

SOCIEDADE SEM CLASSES

Um bom conteúdo não se enfraquece ao ser corrigido. Ao passo que os

autênticos ruminantes têm diante de si de forma cada vez mais insossa o que

certa vez fora um alimento melhor ou ao menos fresco.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 448)

Sem apologia da sociedade socialista, Bloch (2006a) enfatiza a esperança na dialética

das utopias antigas com a utopia marxista. A dialética é o prólogo e o alicerce do seu sistema

filosófico – no passado a revolução burguesa, no futuro a emancipação do homem. A

dialética, como definiu Marx (1982, p. 851), derruba as ―figuras autônomas e precipita tudo

no oceano da eternidade‖. Esse ìmpeto, para Bloch (2006b), situa-se no confronto entre as

possibilidades de transformação e a repetição. Segundo Bloch (2006b), a dialética, no seu

intercâmbio com o mundo prático, conciliaria o homem com a categoria da finalidade e

orienta na satisfação das necessidades.

Não há concessões ao que Bloch (2006b) define como ―empirismo raso‖ da ―ortodoxia

marxista‖, nem à reforma do capitalismo por desconhecer o significado das relações de

produção, da propriedade privada, da luta de classe e do processo histórico que modela as

diferentes formas de alienação. Também, não há concessões ao ―espìrito humanitário‖, que

não passaria de uma versão ―trivializada‖ da solidariedade operária ou uma versão ―kitsch‖ do

comunismo, pois a ―humanização‖, por muito tempo, tem sido ―malograda‖ ou ―impedida‖

pela sociedade de classes (BLOCH, 2006b, p. 448).

No final do Livro II, de O Princípio Esperança, Bloch (2006a) revela-se obstinado:

não aceita a possibilidade da terceira via para o socialismo, como não entende o socialismo de

Estado como socialismo autêntico. Pode acontecer a abolição da propriedade privada e da

economia de mercado, mas não haverá o definhar do Estado (BLOCH, 2006a, p. 456). Sem o

definhar do Estado, o aparelho de poder continuará a existir. E, o que é pior, a se reproduzir.

O Estado é onde reside o poder multiplicador da ideologia da classe dominante. Se o Estado

não desaparece, a emancipação humana é adiada.

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Ao lado do capitalismo, em Bloch (2006b), contracenam o socialismo de Estado e o

capitalismo de Estado. Não têm como objeto a utopia em seu conteúdo. No socialismo de

Estado, apenas se sonha com a utopia. Não há movimento para a frente. Grassa a aparência

coletivista, mas a economia, governada de cima, apenas pode alegar o crescimento do

capitalismo para ―dentro do socialismo‖ (BLOCH, 2006b, p. 452).

No capitalismo de Estado, o que persiste é a dominação autoritária. O que muda do

capitalismo de Estado para o socialismo de Estado é a relação com o mercado e a sensação de

liberdade. O homem, no socialismo de Estado, não se defronta com as relações de troca,

deixando este papel para o Estado. Embora a veia utópica reapareça constantemente no

decorrer do processo histórico, não foi por acaso que o socialismo utópico se desintegrou. No

capitalismo, as relações de troca são tarefas dos homens de negócios. A utopia é uma

miragem.

A filosofia, por meio da práxis, necessitaria romper as cadeias que a ligam à educação

burguesa para promover a aliança entre a teoria marxista e o movimento do homem

trabalhador. Não poderia existir filosofia revolucionária sem a abolição da pobreza e da

cultura capitalista. Foi esse o terreno de possibilidade que Bloch tornou fértil e a ideia da

utopia concreta. Exigia prática, não só teoria e propaganda. Sem a práxis, autopia não

consegue transpor os limites especulativos.

Bloch (2006a, p. 418), ao tratar da práxis, acolhe o conceito de Marx de que a

contemplação não passa de ―radiante repouso‖. Sem a prática, pode existir o conhecimento,

mas não a transformação. No entendimento da realidade e da prática transformadora, a

palavra-chave é processo. Onde está o ser humano, de acordo com Bloch (2006b), deveria

estar a filosofia do processo, não exclusivamente em pensamento, mas como práxis.

Processo, categoria basilar na filosofia blochiana, remete ao ambiente humano

mediado pelo homem pretendido – no início, o homem rebelde, aquele que não fundou

nenhuma religião e apenas trouxe o fogo para o homem. Trata-se de Prometeu que, na visão

de Ésquilo, almejou partilhar com ―os seres humanos todos os bens reservados aos deuses‖

(BLOCH, 2006a, p. 295). E ele simboliza a mistura do socialismo e da rebeldia romântica.

O raiar de uma aurora em que a epistemologia revolucionária é construída no espaço

entre o desejável e o possível, entre a utopia e a necessidade objetiva. Em todas as situações, a

linha da ética é aquela que determina a vida melhor. ―A âncora que submerge até ao fundo é,

ao mesmo tempo, a âncora da esperança‖ (BLOCH, 2005, p. 163). Equivale dizer que o ideal

norteador pode submergir, mas volta à superfície, mais revigorado, se o homem possuir alvo e

consciência.

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Bloch (2005) realça categorias processuais, reflexos gerais, em lugar de categorias de

transmissão, simples reflexos do ser, como destaca Kant (2010) na Crítica da Razão Pura

quantidade, qualidade, relação, modalidade. São categorias processuais, aquelas reveladoras

da objetividade real, da possibilidade do ―ser em utopia‖. Conceitos como ―matéria

processual‖, ―processo natural‖ e ―qualidade processual‖ aproximam Bloch (2005) de

Schelling (2012) do período romântico, das Eras do Mundo, muito cultivado quando do The

Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e do interesse pela doutrina schellinguiana das

potencialidades (MÜNSTER, 1997, p. 146-7).

O processo é multiforme e se desenvolve por etapas, podendo haver avanços e recuos,

concentrados nos movimentos da história. Não no horizonte do passado, como o ―Espìrito

Absoluto‖ de Hegel ou a matéria mecânica desde Demócrito, mas no horizonte do futuro. O

processo é, assim, o ser em possibilidade, aberto para o novo. O novo, em Bloch e em Marx,

está na inversão do papel da filosofia: em lugar da filosofia da sociedade de classes, a

filosofia da sociedade sem classes (BLOCH, 2005).

Segundo Marx (1982, p. 843), a filosofia é aquela que procurar desvendar os mistérios

por trás do ―mundo visìvel‖: desenvolve-se ao mostrar que o mundo é dividido em partes e

encontra a sua totalidade ao revelar o significado dessas partes no seu conjunto. Bloch

(2006b, p. 450) retoma essa ideia ao tratar, de maneira recorrente, do tema da ilusão e

argumenta que a filosofia, como a ciência, foi enriquecida por coisas ―jamais vistas, jamais

pensadas‖, a exemplo do par de conceitos ontológicos ―dynamis-entelequia‖ e matéria-forma,

concebidos por Aristóteles. É pelo impulso do novo que a filosofia não se seculariza.

A filosofia, nesse quadro, não é uma especulação individual, é a procura do possível

na totalidade do pensamento. É mais do que o amor pelo conhecimento e a sabedoria, mais do

que o homem em potência aristotélico. É o homem em movimento, característica imanente do

processo social, controlado pelo homem. Eis o objetivo supremo do processo na filosofia

blochiana: inaugurar uma nova sociedade.

Não é um modelo moral ou ideal, mas o retrato do amálgama teórico-prático em que

acondiciona a utopia concreta. Bloch (2005) discute as características do processo nas Teses

sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007) e também em O Capital (MARX, 1965),

entendendo a filosofia como revolucionária, porque a transformação do mundo concebe o

―desenvolvimento relativamente alto da força de trabalho‖ e a mudança da superestrutura: ―O

que se reconhece aqui é que, humanamente, sempre se deve partir da alienação‖ (BLOCH,

2005, p. 256).

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Considera que o homem rebelde, revolucionário, não deve estacionar onde

estacionaram a filosofia de Feuerbach e o materialismo mecânico: na autoalienação, em

relações sociais dilacerantes, no desencanto e na negação da dialética da história. Desfecho

pálido, sem força para ir adiante; ensaio que se perde na tentativa de decifração do homem,

que, sendo teoricamente não mediada, resume-se na ―coisa para nós‖, não na práxis

teoricamente conquistada (BLOCH, 2005, p. 264).

A práxis conquistada é a ontologia do homem criador, do homem sensual, do homem

da felicidade, no sentido prometeico, artista-arquiteto-construtor do belo, rival de Deus, mas

que se encontra em processo (BLOCH, 2006a, p. 364). Não significa que a noção do pode-ser

seja ―apenas lìquida‖, uma ―tolice‖, ―diáfana‖, ―contrassenso‖, não seja uma caracterìstica

humana, a exigir abordagem rigorosa no rumo da esperança (BLOCH, 2005, p. 222-3).

A utopia é, na sua forma concreta, a vontade testada rumo ao ser do tudo;

nela, atua, portanto, o páthos do ser, que, anteriormente, esteve voltado para

uma ordem do mundo, até uma ordem do supramundo, bem-sucedida,

supostamente já fundada de modo bem-acabado. Porém, esse páthos age

como um páthos do ainda-não-ser e da esperança do summum bonum que

está nele (BLOCH, 2005, p. 307).

A forma concreta da utopia procura o pensamento ―lìmpido‖, sem obscuridade,

fazendo do invólucro transitório dos acontecimentos o tecido permanente do futuro, sem

almejar o sistema perfeito, mas que é a chave transcendente do novum (BLOCH, 2005, p.

293). O homem, para Bloch (2005), é assim: o sol em movimento, sem que esse movimento

tenha necessariamente o conteúdo imaginado. Certamente, por causa da inclinação ilusória

para dizer ―eu‖ antes de dizer ―nós‖.

Em Bloch (2006b), nada se situa mais próximo do ―nós‖ do que a sociedade sem

classes e a libertação do ―legado titânico‖ do mal, que impede o homem de despertar para o

coração livre do puro Dioniso, deixar de camuflar o ―temìvel‖ por trás da ―máscara do belo‖,

acordar para o problema do ―para-onde‖ caminhar e do ―para-quê‖ existir, fundados na

vontade do ―para-diante‖ que retrata, em última análise, uma ―nova Terra‖, um ―utopicamente

proposto‖ (BLOCH, 2006b, p. 284-90).

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1.6 ―NÓS‖ ANTES DO ―EU‖ E AS RAÍZES DO FUTURO NOVO

O pensamento para frente já há muito está na ordem do dia e pode ser ouvido.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 246)

Antes, muito antes, de Thomas More, Owen, Fourier e Saint-Simon fazerem os

primeiros esboços da futura comunidade socialista, na Antiguidade, podia-se ouvir Aristóteles

dizer: ―Amigos têm tudo em comum‖ ou ―os bens dos amigos são comuns‖ (BLOCH, 2006a,

p. 44). Considerava que o círculo dos amigos é menor que a menor das polis, mas que

vislumbrava, na amizade, o liame da concórdia, dos direitos comuns e do Estado.

A amizade produz, sem coerção, o que a justiça só pode exigir, efetiva

aquela concórdia em que não ocorre mais a lesão dos direitos recíprocos,

portanto, em que não há mais razão alguma sequer para pensar em justiça.

Assim, uma vez mais, como já no caso do princípio do inter amicos omnia

communiaI, a utopia aristotélica da amizade precede a do Estado, a

concordância política, um bem indiscutível, que não podia ser apresentada

nem pela sociedade dos escravistas, encontrou, na amizade, seu refúgio

(BLOCH, 2006b, p. 45).

Embora fosse árduo harmonizar a amizade entre escravocratas, Aristóteles

considerava indispensáveis o bem-querer, a concórdia e o bem-fazer. Nas utopias anarquistas

e federativas, advêm, por iniciativa do homem, da amizade em pequenas comunidades e

seitas, além do princípio da colonização da América do Norte, como gérmen da dissolução da

ordem social tradicional. Entre os precursores, Aristóteles, com sua plêiade de amigos,

dialoga com gerações de pensadores e profusões de sonhos, os mais díspares e esplendorosos

que cresceram através dos séculos.

Havia, naquele tempo, La République de Platão (2007), a primeira grande utopia, e

que veio a influenciar Thomas More e Campanella, sendo frequentemente citada nos idos do

Renascimento, e As Ilhas do Sol de Jâmbulo, em número de sete, sem escravos, nem senhores.

O quadro completa-se com a utopia estoica, que tinha as figuras dos seus realizadores no

conquistador Alexandre, e no filósofo Zenão, este com a Politéia, e a concepção da

fraternidade universal, sob o império romano (BLOCH, 2006a).

Na ideia de filósofo da Antiguidade, predominava o ideal de vida não violenta,

comunal e racional, com o cultivo da interioridade e do senso fraternal. A Bíblia também

falava da utopia do reino do amor ao próximo, da ―felicidade e riqueza para todos,

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caracterizada como riqueza socialista‖ (BLOCH, 2006a, p. 54). Na economia capitalista,

como na escravista, a amizade tornou-se onírica, mas não efetiva. As utopias antigas soavam

vazias ou desimportantes, incompletas ou foram transformadas em forças originais para outras

utopias.

Bloch (2006a) não se descuida da variedade de utopias, mas não deixa de criticá-las.

Faz objeção à Antiguidade pela ambição da ―frugalidade‖, restrita ao desejo de fruição

compartilhada da felicidade, da convivência civilizada e da liberdade individual. ―A vida

social deve ser tão pouco imperativa quanto perambular pela praça‖ (BLOCH, 2006a, p. 49).

Em certa medida, repetia a máxima de Sólon: ―O desejável para nós não é a riqueza, mas a

virtude, e somente ela facilita a vida comunitária‖ (BLOCH, 2006a, p. 38).

Os tempos antigos com broa de centeio, leite e beterrabas eram os únicos

saudáveis, naturais, e pessoas que aderem abertamente a eles, convivem

entre si com a mesma facilidade que os saciados. Entre pessoas sem

necessidades também se torna supérfluo quase todo o trabalho, basta bater

um pouco de água para que o nadador despido se mantenha na superfície. E

uma cidade de tonéis, nos quais vivem as pessoas livres não requer muito

esforço para que se mantenha sem inveja. Acima de tudo, a pessoa, nessa

frugalidade, dorme sem sobressaltos à noite, anda ereto de dia, porque não se

demora na proximidade de acontecimentos sobre os quais não tem poder

(BLOCH, 2006a, p. 39).

Em Platão (2007), a utopia considera a particularidade antecipatória dos tempos

modernos, a ambição da ordem.42

O Estado, em La République, seria, no olhar de Bloch

(2006a), o centro organizador da vida e a encarnação da harmonia política. Seu modelo era o

de Esparta e a panaceia da autoridade, com homens austeros e uma casta superior, os

filósofos, e um conselho de anciões, a gerúsia, com leis construtivas, mas direcionadas a uma

hierarquização do homem.

A sua arquitetura corresponderia a um Estado-policial, ainda na interpretação de Bloch

(2006a). Em nome da sensatez e da virtude da obediência, teria se isolado do futuro: La

République esquece os desejos profundos, esquece as novas dúvidas, esquece a rebeldia. As

42

Na perspectiva do bem comum, Platão (2007) concebe o rei-filósofo ou o estadista, educado na filosofia,

capaz de levar o mundo das ideias para a realidade prática, dedicado a utilizar a inteligência para dar ordem

às coisas. Sábio em pensamento e ação, rígido de caráter, flexível na união da vontade enérgica e na

moderação, seria como um tecelão: usa o fio rígido e o fio flexível na trama para garantir a felicidade. A

educação era o elemento mediador. Tratava-se de uma espécie de comunismo inspirado na simplicidade de

hábitos. Emanação de um Estado ideal para tempos de crise, não um Estado absoluto. Como assinala o livro

VII de La République (PLATÃO, 2007), o surgimento do Estado perfeito dependeria deque a filosofia

descesse à caverna para iluminar os homens. A filosofia, a ciência e a justiça dariam sustentação ao bem, mas

este não dispõe de definição precisa, nem em La République, nem em qualquer outra obra escrita de Platão.

Em La République, possivelmente, é o ideal de justiça.

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atenções voltam-se para uma Constituição perfeita. Pintam-se os sonhos sociais com as tintas

da ―abstração e do amor‖, ―nada nela haveria de ser difìcil‖ (BLOCH, 2006a, p. 36).

Com a supressão de qualquer desejo libertacionista, a predominância do Estado,

regido pelas leis e a ordem, ditadas por uma estratificação social, continua a negar-se a

promover a liberdade. Desse modo, os filhos seguem a profissão dos pais e não há

possibilidades de ascensão social. Ignora-se o que Leibniz chamaria de ―possibilités

éternelles‖, com os sonhos sociais antecipadores (BLOCH, 2006a, p. 37).

A crítica de Bloch a Platão parece ser de rejeição total, mas não é. Bloch (2006a), ao

longo de O Princípio Esperança, cita referências utopizantes, cerca de meia centena de vezes,

e outras cinco vezes em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) (2000), colhidas de Platão.

Em Sócrates, que fala pela voz de Platão, Bloch encontra o argumento de que o homem é bom

e ninguém, voluntariamente, pratica injustiças, mas por causa das circunstâncias. Bloch

assinala, explicitamente: Sócrates ―não saberia dizer se a morte é um mal, mas sabia que

cometer uma injustiça é um mal‖ e, com isso, liberta o homem da sua origem ―obscura e,

muitas vezes, tosca‖ (BLOCH, 2006a, p. 420).

Bloch (2006a, p. 419) recorre ainda a Platão para argumentar: a virtude pode ser

ensinada e aprendida como saber do bem. Para Bloch, Sócrates, por meio de Platão, entendeu

a vocação histórica do homem: ―ensinar e aprender a virtude‖ (BLOCH, 2006a, p. 421). Ao

examinar o pensamento de Platão e os estamentos de La République – produtivo, defensivo e

docente, as três castas do Estado platônico –, o que Bloch não encontra sentido é que, a

despeito da ausência de conteúdos revolucionários, Platão não tenha cessado de influenciar

também as utopias de caráter comunista. Em particular, no Renascimento, quando ele foi

considerado precursor do socialismo e na revolta camponesa liderada por Münzer.

Em consequência, reconstruiu-se, no grande idealista, praticamente a ―ideia‖

da utopia social, como sendo sem classes e estamentos. Analisando de perto,

alimentava-se, no contexto de Esparta, o sonho desejante de um reino

eclesiástico medieval, sim, clerical e militar, em lugar de uma construção

socialista. E muito antes de a liberdade encontrar seu romance de Estado, A

República de Platão idealizou utopicamente a ordem. Uma ordem espartana

perfeita, com seres humanos como pedestais, muros, janelas, na qual todos

possuem apenas a liberdade de ser sustento, proteção e iluminação para o

edifício articulado segundo a hierarquia (BLOCH, 2006a, p. 44).

Certamente, Bloch interpretou a utopia de Platão pela dimensão da ordem e da

hierarquização dominante em La République e relegou a dimensão dialética do bem comum e

da justiça. Mas Bloch não passa por cima da imensa sabedoria platônica, nem se subtrai ao

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estudo de La République, porque seria se subtrair à própria filosofia. Critica-a, discute-a no

que existe de peculiar, toma posições que destacam a utopia concreta, como negar a

hipostasia, o Estado, a preponderância da ciência sobre o indivíduo e concebe o socialismo

como processo em que a ordem resulte da liberdade.

É possível que a crítica direta à utopia platônica seja uma forma indireta de criticar o

socialismo de Estado soviético por ter sido uma sociedade burocratizada. Dessa perspectiva,

pode ser assimilada a aversão à La République, àquela que Bloch considera a ―primeira e

célebre utopia‖ (BLOCH, 2006a, p. 34). A utopia platônica, no entender de Bloch, tornou-se o

símbolo da imposição da ordem.

Da crítica aos conceitos de Estado, hierarquia e ordem em Platão, Bloch passa à crítica

aos estoicos43

e ao reino do amor ao próximo, anunciado na Bíblia. Na utopia estoica, as

fragilidades do conceito do vir-a-ser encontram-se no caráter reformista e na concepção

fraterna do universo romano. A seguir, vem a utopia do reino de Deus. Nela, na versão

conservadora da Igreja, o vir-a-ser foi simbolizado pela De Civitate Dei agostiniana e estava

circunscrito ao céu. O Estado terreno pertencia ao mal e como a vida correta estava à deriva,

só encontraria recompensa na Cidade de Deus.

O sagrado almejado conviveu com o mal não sagrado. O mesmo Estado a que

Agostinho distinguiu é o Estado que ele despreza com a utopia intemporal de A Cidade de

Deus. Elevava a Igreja acima do Império, mas se rendia à reverência, acolhendo ―a tensão

entre a noite e a luz‖, como limitação polìtica (BLOCH, 2006a, p. 59). Chegava a admitir a

escravidão, rejeitada por quase todos os estoicos, na tentativa de conciliar as relações da

Igreja com o Estado, embora não deixasse de ser uma utopia da fraternidade, com os homens

utopizados como irmãos e a proposta de uma nova Terra regida por Deus.

43

Os estoicos difundiram o igualitarismo ainda no terceiro e no segundo séculos antes da era cristã, com a

descrição das sete ilhas da bem-aventurança. Seus habitantes desfrutavam de perfeita saúde, inteligência e

força. Viviam até à idade de 150 anos. Criado por Deus, o esplendor do sol era para desfrute por todos os

homens que, na Idade de Ouro, viveram em ―estado de igualdade‖ (COHN, 1970, p. 189). A Idade Média

assimilou a doutrina do igualitarismo, mas passou a identificar a sua não existência com o pecado original e a

corrupção humana. O homem rico deveria usar sua fortuna para restaurar o igualitarismo e a sociedade

natural. Criar homens livres e não promover a opressão, a escravidão e a pobreza.

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A Civitas Dei era literalmente concebida como um pedaço do céu na Terra,

tanto sob o aspecto da felicidade quanto, sobretudo da pureza que, embora

não transforme os seres humanos em anjos, faz deles santos, ou seja,

segundo a doutrina católica, transforma-os em algo mais. Ao sombrio

pessimismo de Agostinho quando contempla a vida do Estado mundano,

contrapõe-se uma espécie de otimismo clerical ardoroso, porém abridor de

espaços, e também secularizável na época posterior da Civitas Dei,

alicerçado sobre a existência de santos e seu crescimento na Igreja. Despir-se

das obras do velho Adão, revestir-se de Cristo, em suma, a esperança por

renascimento espiritual de um número sempre expressivo de pessoas,

tornou-se, assim, a questão política utópica do Estado de Deus de Agostinho

(BLOCH, 2006a, p. 62).

No momento em que aborda as utopias de Thomas More e Bacon, a noção da utopia

blochiana amplia-se com a preponderância do homem ante os desígnios dos deuses e se

multiplica nos efeitos da revolução científica. Em More, as raízes da utopia emergem como

forças do futuro na ideia de um novo ser e, com Bacon, segundo Bloch (2006a), fica evidente

que o pressuposto da perfeição deve ceder lugar à superação de fronteiras. É o que faz a

ciência e o que faz o conhecimento, inspirando progressos no ambiente social e natural.

A consciência da imperfeição do progresso é que aproxima o homem da perfeição. A

consciência revolucionária, no entender de Marx (1982, p. 463), promove a consciência que o

homem tem de si mesmo na igualdade da prática e a sua consciência da realidade. Provoca

mudanças nas relações de produção, revela o trabalhador, não o capitalista, como quem

produz mercadorias e delas deve colher os frutos. ―O rumo ao melhor é primordialmente um

caminho humano, e isso significa aqui um caminho ousado‖ (BLOCH, 2006b, p. 136). Não é

mágico, é o real em que o ―arco entre o eu e o nós só se fechará quando o modo de produção

coletivo tiver se revelado definitivamente contra o modo privado de apropriação e troca‖

(BLOCH, 2006b, p. 53).

O que poderá fechar o arco do modo produtivo ―é o alvo de conteúdo utópico, que,

tanto no ser-consigo-mesmo quanto no ser-em-conjunto chama-se elucidação da incógnita

humana, identificação do nosso si mesmo e do nosso nós‖ (BLOCH, 2006b, p. 54). Intrìnseco

ao tótum da sociedade sem classes, encontra-se o cuidado com o conteúdo humano ainda

incompleto na sociedade burguesa. É a sociedade, não mais o homem individualmente,

responsável pela sua própria perfeição. A alienação não mais se projetaria acima da

identificação dos indivíduos com seu mundo.

As utopias de More e de Bacon são demonstrações transparentes dessas

possibilidades. Onde antes havia a glória de Deus, materializou-se, pela visão da Utopia

(MORE, 1999) e da Nova Atlântida (BACON, 2008), a glória da comunidade dos homens e

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das possibilidades de igualdade e progresso. Florescia o totum da sociedade em que o

interesse individual e coletivo se encontravam.

Na sociedade sem classes, esse ―alvo‖ é o elemento vital da superestrutura

determinada pela estrutura básica, a constituição econômica, que rege as relações entre os

homens. A essa superestrutura, Marx (2007) dá o nome de ideologia, valores do sentido do

bem que podem ser racionalizados. A primeira ênfase, o princípio ético, encontrar-se-ia nos

fins humanos, as discordâncias, sem coerção, ficariam no plano dos meios. O Estado, como

preconiza Bloch, se extinguiria sob o socialismo por ausência de quem coagir ou dominar.

1.7 UTOPIA, CONSTRUÇÃO COLETIVA

A utopia só trabalha em prol do presente a ser alcançado.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 308)

Bloch (2006a) busca o ethos da utopia como emancipação do homem em Thomas

More,44

na transição da Idade Média para o Renascimento. E o ethos da revolução científica

em Bacon. Em More, personifica a liberdade, tão perseguida na Europa à época; em Bacon,

antevê a ciência e o humanismo como fundamentos de uma igualdade justa e antecipatória.

Contrariamente a More e a Bacon, Tommaso Campanella inscreve-se na antecipação da

44

A utopia é a ilha de Nenhum Lugar, Nehures, república protegida por altas montanhas, que o fictício

navegante-filósofo Rafhaël Hitlodeu, no longo diálogo que mantém com o ilustre Thomas More (1478-

1535), enaltece pelas virtudes da Constituição e afirma existir em alguma parte do Novo Mundo. São 54

cidades-estados, cada uma com 100 mil habitantes, regidas por poucas leis e escassas punições, pois não

existem mais incentivos ao crime. Em Nehures, predomina a união do humanismo cristão com o platonismo,

o aristotelismo, o estoicismo e o epicurismo. O cristianismo revela-se no culto ao divino, na partilha dos

bens, no respeito à vida e à natureza. A ilha evoca a perfectibilidade humana, mas não é um paraíso. Há

problemas como a fome e a desobediência. É construção dinâmica, ao longo do tempo. O platonismo surge

no interesse pelas boas leis e pela boa Constituição, pelo interesse na educação e pelo saber. A ordem e os

princípios normativos são a alternativa para a desordem e a dissolução. A classe dirigente, responsável pelo

estudo das ciências, não descende das famílias preeminentes, é escolhida pelos seus méritos. Na sua vertente

aristotélica, predominam o cuidado com o justo, a comunidade natural e a cidade ideal do livro VII da

Política. More é um filósofo cristão, mas a sua utopia é terrena. O centro da vida não é o mercado, como na

Inglaterra de Henrique VIII, com a acumulação capitalista em ascensão, mas o homem. A ética precisa ser

interiorizada e não apenas limitada à observância das leis. As reservas de metais e pedras preciosas são

abundantes, mas apenas utilizadas no comércio exterior. Preciosos são os metais de valor imanente, como o

ferro, e as colheitas, que, quando escassas, causam mortes pela fome. O estoicismo apresenta-se na

preponderância dos valores do ser sobre as coisas materiais. Os utopianos cultuam a sabedoria. A riqueza era

interior, não material. More revela-se convicto de que a finalidade da política é o bem comum (Cf. MORE et

al., 1987, p. 83-234).

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ciência, mas rejeita o protagonismo primordial do homem. A arquitetura é arrojada, mas o

homem é refém da imposição da ordem e da burocracia.

A Cidade do Sol (CAMPANELLA, 2008) não conhece a propriedade privada, nem

ricos e pobres, não há mais-valia, mas não contém a percepção da multiplicidade humana e

sua incompletude. Nela, a utopia cede lugar a um mundo dado, como ―o todo do movimento

que não se move‖ (BLOCH, 2005, p. 306). É um Estado papista, totalmente diferente da

utopia liberal-federativa de More (1999).

Bloch (2006a) desenvolve suas reflexões lançando pontes entre a utopia de More e a

de Marx, um, Marx, considerando a liberdade como valor fundamental, outro elegendo como

valor essencial à paz conservada pela ordem.45

More, vivendo na Inglaterra sacudida pela

oposição entre o humanismo republicano e monarquista, com sua obra, imprime e funda a

utopia moderna. Marx, que escreveu quando a Europa vivia os impactos da Revolução

Industrial inglesa e quando o operário sentia na pele o fato de não controlar os

acontecimentos, trabalha com o intento de que a sociedade industrial ultrapasse o antigo

conceito de natureza humana, exige nova consciência dos indivíduos em relação à

racionalidade produtiva, o que, inevitavelmente, acabaria conduzindo ao socialismo. Introduz,

na filosofia, a superioridade da revolução social sobre a política. Não encontra outra

possibilidade para superar os problemas sociais e conceber a alma humana universal. O

operário, em Marx (1982), e o elemento ativo, não passivo, da Revolução.

More, segundo Bloch (2006a), supera o platonismo de La République, o mito da Idade

de Ouro, os relatos bíblicos do paraíso e o simbolismo profético milenarista de Gioacchino di

Fiore. Apesar de limitar sua utopia às dimensões de uma ilha, acolhe a harmonia da

convivência entre os homens e destes com a produção, antes, considerada pouco relevante.

Olhava as idealizações do passado, não como utopias menores, mas tentando aceitar que os

sonhos do florescimento social só podem germinar no socialismo. Havia, na Utopia, um

sujeito ativo, os despossuídos da Inglaterra.

45

Em O Capital (MARX, 1965), Livro I, Marx citarà Utopia de More como fonte de referência efetiva e, de

Bacon, menciona The Essays or Counsels Civil and Moral e The Reign of Henry VII. More e Bacon

fundamentam a tese marxiana de que as ―leis atrozes‖ são feitas no surgimento do capitalismo para

expropriar os despossuídos, como as multidões sem trabalho, fugitivos ou ladrões, rotulados como

―vagabundos‖, que, em número de 72.000, foram executados na Inglaterra por Henrique XVIII. Ou

poderosos como o clero que, também na Inglaterra, tiveram grande parte de suas terras expropriadas na

transição da Idade Média para o Renascimento. No princípio da acumulação primitiva do modo de produção

capitalista, as leis foram feitas contra camponeses e assalariados, estes nascidos na última metade do século

XVI, obedecendo unicamente à lógica do capital. A espoliação, a pilhagem de terras comunais e a usurpação

das propriedades, inclusive da Igreja, que foi a maior proprietária de terras na Inglaterra, foram a regra, não a

exceção. Foi assim que o trabalhador transitou da sua ―idade de ouro‖ para a ―idade de ferro‖ (MARX, 1965,

p. 1174-1201).

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A visão marxista de emancipação é muito mais abrangente, mas é igualmente

fundamentada no mundo dos homens, tendo como sujeito o ser trabalhador.46

Derivava não da

natureza humana abstrata e, sim, moldada pelas relações de produção. Para que existisse a

emancipação do homem, a sociedade precisaria romper não só as barreiras do gênero ou de

raças,47

mas a barreira de classes. Foi o que fez Marx retomar e ampliar a força do conceito de

emancipação do homem vindo do Iluminismo. Não se tratava mais de abstração literária,

como em More, mas de sujeito real, de centralidade na vida produtiva (BLOCH, 2006a, p.

146).

A utopia marxista soava como apelo à construção da vida melhor. Nunca ao retorno ao

passado e, muito menos, à construção de uma guilda socialista. O capitalismo era o elemento

dominante, mas se acreditava que os dias de mudança estavam fermentando como resultado

das contradições da burguesia, se estas fossem eliminadas pela revolução proletária.

Na ilha da Utopia, More condena, a despeito de aceitar a escravidão, a ―liberdade

neofeudal dos prìncipes da indústria e dos monopólios‖, que reivindicavam liberdade para

explorar, expropriar e cerzir uma democracia capitalista plutocrática com escassas

congruências (BLOCH, 2006a, p. 83-4). Define a nova sociedade nos moldes do comunismo

primitivo, ―pista livre para o laborioso, fim das diferenças de estamentos‖, sem propriedade

privada e com o sonho da vida melhor envolto no postulado de que a ilha da utopia era ―o

lugar em que os seres humanos de fato se encontram‖ (BLOCH, 2006a, p. 70).

No traço eminentemente transformador da Utopia, Bloch (2006a, p. 71) condensa

nesta frase: ―A natureza talhou a todos nós da mesma madeira, para que um possa reconhecer

no outro sua semelhança, ou melhor: seu irmão‖. É uma percepção de matriz na comunidade

aristotélica de amigos e combina, pela primeira vez, ―liberdade pública e tolerância com a

economia coletiva‖ (BLOCH, 2006a, p. 74). Se os homens cultivassem a amizade, pregada na

Antiguidade por Aristóteles, haveria coesão e entendimento na vida cotidiana.

46

Bloch define a emancipação universal do trabalho e das relações de troca como condição essencial a todas as

emancipações parciais. ―Eu não sou nada e eu deveria ser tudo‖, escreve Marx (1982, p. 394) em Crítica da

Filosofia do Direito de Hegel. Ao emancipar-se, o homem deixa de ser um indivíduo egoísta e abstratamente

independente para ser parte da sociedade (MARX, 1982, p. 396-7). São as mesmas teses blochianas.

47

Para Bloch (2006a, p. 147), o feminismo e o sionismo só têm futuro na revolução social. Cita que More

demandava a ―equiparação total‖ entre mulheres e homens, tal como fariam a escritora George Sand e

Fourier, atrelando a emancipação feminina à emancipação da sociedade. Com o movimento sionista, não era

diferente: a Canaã do povo judeu passava pelo socialismo, alternativa capaz de sanar ódios, ressentimentos e

discriminações. A metáfora de Canaã é a comunidade dos indivìduos. ―O sionismo desemboca no socialismo

ou não desemboca em lugar algum‖ (BLOCH, 2006a, p. 166). Em A Questão Judaica, Marx (1982) critica os

judeus-alemães por desejarem igualdade no Estado cristão, sem pensar no futuro da humanidade e se

aferrando à convicção de ser o povo eleito. Em suma, é questão teológica, duplamente ―cìnica‖ por envolver

cristianismo e judaísmo, mas que não questiona o papel do Estado como mediador da liberdade e da

espontaneidade humana, nem a elevação do homem sobre todas as religiões (MARX, 1982, p. 352-5).

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Seu conteúdo expressa-se nesta pergunta formulada por More: se somente pela

privação os seres humanos são tornados maus, ―por que puni-los tão duramente?‖ (BLOCH,

2006a, p. 74). A pergunta desdobra-se em crìtica contundente às leis dominantes: ―Prepara-se

a forca para os ladrões quando se deveria, muito antes, providenciar que eles tivessem sua

subsistência para que ninguém caísse na cruel obrigação de primeiro ter de roubar e depois

morrer‖ (BLOCH, 2006a, p. 74). Na sequência, Bloch revela More como o juiz da nobreza e

advogado do socialismo:

Como é grande o número de nobres que vivem no ócio como zangões,

sustentados pelo trabalho dos outros, e que os explora até o sangue; além

disso, reúnem em redor de si um enxame de preguiçosos e parasitas [...].

Onde ainda existir a propriedade privada, onde todas as pessoas medirem os

valores pelo critério do dinheiro, dificilmente será possível um dia

empreender uma política justa e feliz (BLOCH, 2006a, p. 74-5).

Os utopianos de More atingiam o coração do Estado ao se oporem a qualquer luta ou

guerra de poder, ao não se arrogarem, por lei constitucional, a cultuar qualquer religião que

fosse prejudicial ao homem e ao prefigurarem o Iluminismo com a organização de uma

sociedade em que o homem era o ser humano para o ser humano, sem dominação e sem

exploração.

No seio de forças capitalistas apenas incipientes, antecipava-se um mundo

futuro e mais que futuro, tanto o da democracia formal, que desencadeia o

capitalismo, quanto o da democracia humana concreta e material que o

elimina. Pela primeira vez, combinou-se a democracia em sentido humano,

no sentido da liberdade pública e tolerância, como a economia (facilmente

ameaçada pela burocracia e mesmo pelo clericalismo). Diferentemente de

todos os sonhos coletivistas anteriores do Estado ideal, em Thomas Morus*,

a liberdade está inscrita no coletivo e a democracia autêntica, concreta,

humana torna-se seu conteúdo. Esse conteúdo faz da Utopia, em seções

substanciais, uma espécie de obra liberal de memória e reflexão do

socialismo e comunismo (BLOCH, 2006a, p. 74).48

More, no entendimento de Bloch, foi precursor do comunismo, entendimento

partilhado por Agnes Heller (1982, p. 288-9), que vislumbrava o Renascimento abandonar o

paraìso privado de Adão e Eva em favor do ―grande paraìso comum da humanidade‖, Ureña

Pastor (1986, p. 253), Ernst Bloch: un futuro sin dios?, recorre a palavras semelhantes para

lembrar que o comunismo primitivo, como ―forma suprema‖ do ordenamento polìtico-

econômico, é o ―valor fundamental‖ da utopia de More, a primeira descrição na Idade

48

Forma alatinada, literariamente conhecida Thomas More.

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Moderna do ―sonho democrático comunista‖, mas faz duas observações pertinentes: o amor

de More pela comunidade cristã primitiva e o ―feitiço‖ que o platonismo exerceu em todos os

autores renascentistas. Exatamente, a comunidades de bens e o sentimento de ordem. Ureña

Pastor encontra em Bloch (2006a) a descrição sìntese da liberdade: ―Um mìnimo de trabalho e

um máximo de alegria.‖

Na Utopia, More extingue a nobreza, estabelece a igualdade e suprime o Estado

autoritário na crença na liberdade, no culto ao mìnimo de ―trabalho e Estado, com um

máximo de alegria‖ e com conceitos pré-marxistas de consciência de classes e da mais-valia

(BLOCH, 2006a, p. 77). Desprendido do solo que alimentava novas relações de produção e,

assim, fomentava a expansão capitalista e o ocaso das cidades-estados renascentistas, More

(1999) condensou ―os sonhos de ideais democrático-comunistas‖ na abolição da propriedade

privada, da tolerância religiosa e da democracia coletiva, concreta, humana (BLOCH, 2006a,

p. 74-5). Esse conteúdo faz da Utopia, em questões substanciais, ―uma espécie de obra liberal

de memória e reflexão do socialismo e do comunismo‖ (BLOCH, 2006a, p. 74).

Nem mesmo o cristianismo parece conter, para os utopianos, um

―pensamento mais devoto‖. Aceitam, preferencialmente, a religião cristã

apenas ―porque ouviram que Cristo teria sancionado a organização

comunista dos seus discìpulos‖. No mais, todas as religiões são admitidas,

numa grandiosa tolerância unificadora, e também a adoração do sol, da luz,

da lua e dos planetas. Os utopianos concordam acerca de um culto comum,

que cada partido complementa segundo sua concepção e por meio de formas

culturais específicas. A Utopia é o eldorado da liberdade religiosa, para não

dizer: o panteão de todos os deuses (BLOCH, 2006a, p. 76).

Com a Utopia, o homem renascentista distanciou-se do teocentrismo e se aproximou

do humanismo socialista, passando a ser considerado como capaz de construir o próprio

destino com a argamassa da razão, do entusiasmo e da vontade. Esses aspectos conduzem à

evidência de que o homem vale por si próprio, independente das origens da classe social e dos

privilégios. O fundamento da utopia transforma-se do ―não lugar‖ ou ―lugar nenhum‖ na

ruptura com a sociedade vigente e a construção de uma sociedade nova.

Aos poucos, as utopias deixaram de ser uma ilha para se universalizarem e refletirem o

homem de princípios reais numa época em que os monarcas exigiam fidelidade total e os

dissidentes eram torturados ou decapitados. Simbólico o exemplo de More (1999): o

venerando chanceler foi condenado à morte e teve sua cabeça exposta em Londres, acusado

de traição, por não ter reconhecido o monarca Henrique VIII como chefe da Igreja Anglicana.

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Para Bloch (2006b), o essencial, naqueles momentos transformadores, estava na

identificação do homem com o olhar para a frente, o Lebenswelt, o mundo-da-vida. A vida

que existia antes da ciência – sem ilusões, sem reducionismos – sai da sombra para a luz. E já

então ganha sentido, não como pregava o Novo Testamento, humildade e atividade envoltas

na mìstica de ―estar liberto em Deus‖, mas na ―libertação em relação a Deus‖ (BLOCH,

2006b, p. 304-5). Não o olhar para o alto, o céu e sua infinitude. O olhar para a Terra.

Não parece significativo para Bloch o acontecimento histórico de que More morreu

defendendo a propriedade privada, alinhando-se com a igreja papal e a sociedade de classes.

Como não há relevância na hipótese de que a porção comunista da Utopia se deve à influência

de Erasmo de Rotterdam e a uma possível falta de sinceridade quanto às antecipações sociais.

Ao analisar a Utopia, Bloch comenta as contradições da obra e as discrepâncias entre a vida

do chanceler More e a sua visão da sociedade utópica comunista. Mas lhe chama atenção a

condenação da velha Europa e do Estado de classes (BLOCH, 2006a).

Há, porém, impurezas que não condizem com a narrativa utópica concreta – a

anomalia ou o padrão do escravismo desde a Antiguidade, guerras moralmente justas, a

renúncia monástica pelos prazeres da vida e o elogio ao prazer do trabalho doloroso, punição

ao adultério com a ―mais severa escravidão‖ (BLOCH, 2006a, p.76). São nevoeiros com

propensão a se dissipar quando comparados à luminosidade que, ―malgrado todas as suas

impurezas, a Utopia é, e continua sendo, o primeiro retrato mais recente de sonhos de ideais

democráticos-comunistas‖ (BLOCH, 2006a, p.74).

A Utopia antecipou o sonho blochiano do homem como sujeito histórico de um

mundo novo. Não deixou, também, de antecipar os dilemas futuros da sociedade comunista,

como os problemas econômicos. O que iria mudar, em síntese, é que a utopia da emancipação

marxista não se permite aprisionar num romance, nem numa ilha. Antevê ―reviravolta na

tomada de consciência de transpor o concreto‖ (BLOCH, 2005, p.15). Preenche esse espaço,

não só a esfera do humanismo revolucionário – a extensão do ―poder produtivo‖ à classe

trabalhadora, uma ―luz nova‖ do materialismo dialético (MARX, 1965, p. 1569)49

–, mas

encontra-se na força do antagonismo da ciência meramente autoritária contra a ciência

humanística, intimamente vinculada ao progresso real, não dogmático, da humanidade.

49

O humanismo revolucionário corresponde ao conceito expresso em O Capital de homem integral, totalmente

desenvolvido, com as máquinas ocupando o lugar dos homens na produção (MARX, 1965, p. 1675). Ao

reagrupar as Teses sobre Feuerbach (4, 6, 7, 9 e 10), Bloch (2005) define o humanismo revolucionário como

aquele que se propõe a anular completamente a alienação, incentivando o homem a descobrir a vida pela

prática e, na prática, ―a imanência do seu pensamento‖ (p. 261-5). Considera incipiente o conceito de

humanismo revolucionário como é ainda incipiente o conceito de ―filosofia da revolução‖, porque o homem

se sente ―impotente‖ para evitar que todo o pensamento se transforme em mercadoria (BLOCH, 2005, p.

279).

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1.8 CIÊNCIA AUTORITÁRIA, CIÊNCIA HUMANISTA

Ainda está muito distante o forno do qual surgem com sucesso as novas

coisas úteis.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 208)

Na luta constante contra as utopias abstratas e autoritárias, Bloch desloca o conceito

de utopia para a natureza das relações sociais e a realidade material do homem. Mas recorre

às antecipações subjetivas quando revelam ser tendências concretas da realidade. O propósito

é demonstrar que a filosofia marxista não nutre aversão pela utopia, como Marx sugere em O

Manifesto Comunista,50

mas que o pressuposto central é de que a utopia seja concreta. Nessa

relação entre a utopia concreta e a mera abstração se situam as utopias de Campanella e

Bacon.

Astrológica e antimaterialista, a utopia de Tommaso Campanella,51

com o progresso

amparado na ordem, transmite a ilusão de futuro sem tumultos e sem oposições, distante da

experiência democrática e sequer da acepção de conto de fadas. De feições absolutistas, suas

possibilidades escapam ao curso da história e ao conceito de futuro com a utopia se

50

O Manifesto Comunista, a obra mais crítica de Marx à utopia revela-se, ironicamente, a sua obra mais

utópica. Concebe a revolução burguesa na Alemanha, às vésperas de se concretizar, como ―o prelúdio

imediato de uma revolução proletária‖ (MARX; ENGELS, 1998a, p. 69). Subestima a capacidade de

renovação do capitalismo e a universalidade do operariado ao afirmar que ―a subjugação do operário ao

capital, tanto na Inglaterra como na França, na América como na Alemanha, despoja o proletário de todo o

caráter nacional‖ (MARX; ENGELS, 1998a, p. 49). E considera que a burguesia compromete a existência

dos pequenos comerciantes, pequenos fabricantes e camponeses como camadas médias, sendo evidente que

―é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante e de impor à sociedade, como lei

suprema, as condições de existência de sua classe‖ (MARX; ENGELS, 1998a, p. 50). A verdade da

burguesia é a contradição e essa contradição é que a levaria ao desastre: ―Tudo que era sólido e estável se

desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem

ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens‖ (MARX; ENGELS, 1998a, p. 43).

51

Escrita no cárcere, onde Campanella (1568-1639) viveu 27 anos e foi sete vezes vítima de torturas, A Cidade

do Sol foi revisada em 1613 e publicada, em latim, em 1623, com o título Civitas Solis. Corresponde ao

relato minucioso feito pelo viajado genovês, Gubernator Geneunsis, ao seu anfitrião. No imaginário de

Campanella, a cidade abaixo da linha do Equador, erguida numa colina, faz do Estado a imagem de Deus.

Dominada pelo templo do sol, reunia sete grandes círculos concêntricos, cada um com o nome de um dos

sete planetas, separados por sólidas muralhas que se comunicavam entre si por quatro vias e quatro portas

pesadas de ferro e orientadas por pontos cardeais. Surge num ambiente político em que a Igreja celebrava a

paz católica entre Espanha e França para enfrentar o inimigo comum: a reforma luterana. Duas datas capitais:

1542 – o Concílio de Trento se arrasta por três anos. A Itália, embora contra a Reforma, vinha se esforçando

para acabar com a dominação espanhola; 1559 – em 3 de abril, é celebrada a paz católica entre França e

Espanha para combater a Reforma luterana. Os jesuítas passam a ofensiva contra os reformistas na Itália

meridional, que corresponde praticamente a toda a Itália, grassa a opressão política. A ação da Igreja e das

grandes potências europeias caracteriza-se pela política de influência territorial. A Inquisição opõe-se à

expansão mercantil, econômica e financeira. Os jesuítas, empenhados em conter a Reforma, promoveram as

Missões do Paraguai. O sentido era realizar ações para manter as expectativas messiânicas.

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constituindo em sua base social e sendo ―a manifestação mais prática dos desejos humanos‖

(BLOCH, 2006a, p. 37). Sendo ―finito e limitado‖, o ser precisa de Deus para lhe dar amor,

força, saber e protegê-lo (BLOCH, 2006a, p. 62). A Cidade do Sol germinou quando a

produção artesanal transitava para a manufatura e corresponde à consonância entre o interesse

burguês e a monarquia.

Civitas Solis era a representação da concentração de poder em mãos do soberano e

procurava afirmar a filosofia natural e moral, subtraindo, do ser humano, ―a possibilidade de

escolha e a própria liberdade‖ (BLOCH, 2006a, p. 81). Campanella vai justificá-la com o

argumento de que o mundo era mau, que a sociedade não funcionava, que ninguém sabia o

seu lugar, que o sol era deus e que a ciência necessitava de um Estado-Sol. Abolia a liberdade,

incentivava a superstição (BLOCH, 2006a, p. 71-2).

Antes de tudo, Campanella acreditava que a Civitas Solis pudesse ganhar textura de

realidade. Diferentemente de More, o Estado utópico em Campanella representa a liberdade

como trunfo da ordem. Não um despertar social. Viver sem atrito significava que o ser

humano iria se contentar em viver escravizado. Regida no invólucro metafísico dos astros,

condenando qualquer ruptura com os espaços demarcados, associados à ordem autoritária e à

felicidade, A Cidade do Sol tangencia as ilhas dos estoicos pela ausência de conflito, mas o

sol da liberdade não refulge. Predominam a ―dramaticidade da hora certa, da localização

certa, da ordem correta de todas as coisas e pessoas‖ (BLOCH, 2006a, p. 79).

A Cidade do Sol traz o fardo da imobilidade do tempo: em Campanella, os seres

humanos, ontologicamente, existem para permanecer em seus lugares e, neles, ficarem

inertes. Não reivindicam a pulsão vital da expressão. A vida é ―utopizada em termos de

socialismo estatal‖, e os sonhos são os mesmos das grandes potências dominantes da época –

França, Espanha e Inglaterra –, tendo o Estado como a imagem de Deus (BLOCH, 2006a, p.

79).

Bloch (2006a) entende que Campanella foi uma exceção, ao lado de Bacon, ao

antecipar avanços técnicos na arquitetura ―ainda não existentes‖, como no desenvolvimento

da imprensa escrita, que preencheria a história do mundo com ―mais histórias do que o mundo

anteviu em quatro mil anos‖ (BLOCH, 2006a, p. 210). A diferença é que Campanella fundou

a tecnologia a serviço do Estado autoritário, concebendo o futuro como uma ―catedral

fortemente hierarquizada‖ que a tudo envolvia com seu manto de ordem (BLOCH, 2006a, p.

62).

Bacon nunca teve tal intenção. Ele, como a Inglaterra, absorveu o espírito desbravador

de Colombo, e sua filosofia estava fortemente influenciada pelo avanço do saber, que

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considerava a verdadeira fonte de poder (BLOCH, 2006a, p. 115). O conhecimento, segundo

Bacon (2008), deveria servir ao homem, ao aperfeiçoamento do mundo e à utilização da

natureza. Considerava a palavra ―técnica‖ como palavra mágica, mas não uma magia

supersticiosa. Uma magia de sonho, separada de toda a superstição.

Bacon foi o primeiro a falar do mitológico Prometeu como um rebelde da técnica, da

inventividade, multiplicador ao infinito do poder criativo do homem (BLOCH, 2006a, p.

146). É com esse olhar que Bloch (2006a) entende a utopia de Bacon. Preparava o terreno

para a futura Revolução Industrial. Não perseguia ilusões. Perseguia uma utopia totalmente

histórica.

Bloch (2006a) identifica a Nova Atlântida de Bacon52

com a possibilidade do

humanismo tecnológico. Seria o inverso da Atlântida platônica, metáfora da cidade injusta,

governada despoticamente, fundada por Posídon e destruída por castigo de Zeus.53

Na utópica

Bensalem, homem e técnica caminham lado a lado com refinado sentido de integração,

prosperidade e harmonia. Seus cidadãos são cientistas, tolerantes e igualitários. No livro II de

O Princípio Esperança, Bloch (2006a) reconhece a força prodigiosa da invenção que irrompe

dos subterrâneos da Idade Média e do Renascimento para modelar os laboratórios imaginários

da ―ilha inteligente‖, perdida na imensidão do Pacìfico.

Bacon cortou as amarras restritivas da natureza do seu tempo, da história humana,

―das diferentes Tróias em chamas‖ e da ―mitologia do destino‖ (BLOCH, 2006a, p. 210).

Sonhando com o equilíbrio entre a vida ativa e contemplativa, consciente de que a

humanidade deveria caminhar rumo à abundância, não se deixar prender pelas tragédias das

52

Na Nova Atlântida, ficção filosófica inacabada de Francis Bacon (1561-1626), o vir-a-ser se identifica com o

mundo da ciência. Bacon, nesta obra, publicada em 1627, 111 anos após a Utopia, de More, e apenas quatro

anos após A Cidade do Sol, de Campanella, propõe uma filosofia nova para um mundo novo. Nascido em

Londres, período em que a Inglaterra se firmou como potência marítima, acreditava que, no Renascimento, a

sociedade estava construindo uma nova história, que o homem estava destinado a afirmar a si mesmo e,

graças ao poder da imaginação, não retrocederia à Antiguidade. A liberdade do ―filósofo da técnica‖ ou da

―ciência aplicada à indústria‖, estava na ―substituição da velha filosofia por uma outra superior‖ (BACON,

2008, p. VIII).

53

O nome ―atlantes‖ evoca a arrebentação e o desfazer-se das espumas do mar. Eram os atlantes, na origem, os

filhos de Atlas. E Platão, ao concebê-los, filhos do Céu e da Terra, os humanos primeiros, filhos dos filhos do

Céu, não do Homo sapiens, de estatura grandiosa e feito nas mesmas proporções. Platão mantém-se fiel à

magia mítica e cria Atlântida parecida com La République (2007), mas habitada por guerreiros e guardiões,

famosos em toda a Europa e Ásia ―pela beleza dos seus corpos e por todas as virtudes de suas almas, e eram

os mais ilustres de todos os homens da época‖ (PLATÃO, 2009, p. 199). Não eram cientistas, como não

podiam ser, pois a ciência, em Platão, estava na ordenação do cosmo e de todo o existente (LABORDA,

2005, p. 120-1). Se pela episteme vemos o mundo, pela ciência, saberíamos como é este mesmo mundo.

Nessa maneira de ver, as invenções não estavam em questão. As preocupações estavam assentadas nas

soluções para os problemas primeiros, tendo o ―Bem comum‖, a ―alegoria do sol‖ e o ―mito da Caverna‖ no

epicentro das coisas inteligíveis e não inteligíveis, no coração daquilo que é e não é explicado pela

matemática. Eram, assim, os atlantes sacerdotes, pastores, caçadores, lavradores, criadores. Viviam em terras

absurdamente férteis e ricas em metais, ouro em abundância.

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epidemias e carestias, procurava um alvo para o saber, não o saber pelo saber. Uma Atlântida,

―em que tudo serve ao ser humano, serve-lhe para o melhor‖ (BLOCH, 2006a, p. 207).

O escrito de Bacon representa, mesmo nos tempos subsequentes, a única

utopia de nível clássico que atribui um valor decisivo às forças produtivas

técnicas da vida melhor. De qualquer modo, ao contrário da vida real, nas

utopias, nem sempre o mundo das máquinas e o mundo socioeconômico

aparecem relacionados. Nesse ponto, a Nova Atlântida de Bacon teria

merecido ser imitada, de modo a suscitar a elaboração de obras que

correspondessem seriamente à evolução técnica e suas possibilidades

imanentes (BLOCH, 2006a, p. 209).

Na Casa de Salomão, onde pulsa o coração da ilha, há recursos para produzir chuva

artificial, neve e o ar da montanha. São produzidas novas espécies de plantas, frutas, animais,

minerais artificiais, materiais de construção, remédios e cabos de longa distância. Na Casa de

Salomão, havia máquinas de voar, máquinas a vapor, turbinas de água. Os atlantes

imaginaram o telefone, o submarino, o microscópio e o microfone (BLOCH, 2006a, p. 208-

9). O que o rei Salomão imaginava fazer com o uso da magia, os cientistas da utopia de Bacon

fazem por meio da técnica.

Eles dedicavam-se a experimentos, não à magia, tronco ancestral da ciência. Bacon,

sabia que os contos de fadas podiam se tornar realidade não pela mudança das palavras ou da

forma narrativa, mas pela progressão do particular para o geral, pela observação da natureza e

pela fundamentação metodológica. A filosofia, na Nova Atlântida, projetava-se para além da

invenção em benefício do progresso humano. Com Bacon, o mítico Prometeu, no sentido do

conhecimento, torna-se humano. Com More, a utopia deixa de ser arcaica e se volta para o

futuro. Com Campanella, a utopia não sai do lugar e permanece imóvel, recua, volta-se para

trás.

A Cidade do Sol corresponde, na narrativa de Bloch (2006a), ao país das maravilhas.

Encontra-se na luta contra o dragão (São Jorge, Apolo, Siegfried), na libertação da donzela

presa pelo dragão (Perseu e Andrômeda), no arquétipo do apocalipse religioso ―vingador e

redentor‖ e nas irrupções, de caráter não libertador, não humanizador, do ―antigo chão mìtico

da fantasia‖, que não fazem sonhar com o futuro (BLOCH, 2005, p. 161-2). Os sonhos

emanados da Utopia de More e da Nova Atlântida de Bacon anunciam o encontro dos ideais

com a função utópica; e da dança em torno da árvore da Revolução Francesa, arquétipo novo,

vida latente no final do Fidélio:54

―Louvado o dia, louvada a hora‖ (BLOCH, 2006a, p. 462).

54

Fidélio (em alemão, Fidelio), única obra teatral de Beethoven, foi apresentada, pela primeira vez, em 20 de

novembro de 1805, em Viena, no momento em que tropas de Napoleão invadiam e ocupavam a cidade.

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Louvados o dia e a hora da liberdade, igualdade e fraternidade, permanentemente

presentes na utopia rejuvenescedora do socialismo. Como princípio, Bloch (2006a)

transforma a possibilidade em esperança. Busca acordar o homem para o significado de viver

uma época, como ele viveu, ―a primeira a possuir os pressupostos socioeconômicos para uma

teoria do ainda-não-consciente e do que está relacionado a ele no que-ainda-não-veio-a-ser do

mundo‖ (BLOCH, 2005),

O marxismo, sobretudo, foi o pioneiro em proporcionar ao mundo um

conceito de saber que não tem mais como referência essencial aquilo que foi

ou existiu, mas a tendência do que é ascendente. Ele introduz o futuro na

nossa abordagem teórica e prática da realidade. Esse conhecimento da

tendência é necessário para rememorar, interpretar e revelar as mensagens

que até o não-mais-consciente e o existente podem continuar nos enviando,

além de ser necessário para reafirmar sua eterna vigência. Dessa maneira, o

marxismo resgatou o núcleo racional da utopia e o da dialética na tendência

ainda de cunho idealista, trazendo-os para o concreto (p. 141).

Pela utopia concreta, Bloch separa o final feliz ilusório e o final feliz autêntico,

orientado pela postura crítica e pela luz das possibilidades (BLOCH, 2005, p. 432-3). Separa a

crença passiva no avanço automático das relações sociais e a fé no processo histórico, com ou

sem alienação, com avanços e recuos. Em Bloch, não há dialética petrificada, não há

purificação apenas pela técnica ou pela ciência. A alienação do homem, com relação à

natureza, reflete a alienação social do homem, produto de ―liberação extremada das forças

produtivas‖ (BLOCH, 2006a, p. 460).

Bloch (2006a) diagnostica que as utopias, além da interpretação das possibilidades

futuras, criam relações de vasos comunicantes entre o sentimento revolucionário e os heróis

trágicos, como Prometeu, o valoroso titã que na mitologia foi acorrentado por Zeus no

Cáucaso (onde todos os dias uma águia ou abutre devorava o seu fígado que, também todos os

dias, regenerava-se, permitindo suplício sem fim), mas, que não capitulam diante do medo, do

sofrimento e do chamado destino. Por isso, Prometeu Acorrentado de Ésquilo (1977)

encontra-se, na avaliação de Bloch (2006b, p. 295-6), no centro da tragédia grega, fazendo de

todas as demais ―variações‖ do drama do titã a raiz da rebelião de Dioniso e do homem.

O passo seguinte da revolta prometeica está na ambivalência crucial do homem de

abraçar e negar Deus: combina religião e ateísmo, sonha com o futuro, mas apaga-se à

repetição dos valores da sociedade existente, nega o mundo burguês das máquinas, mas o

Revisada em 1814, a ópera se passa em uma prisão durante a Revolução Francesa e celebra o vigor da

liberdade e da esperança (LOCKWOOD, 2005, p. 296-303).

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cultua como sinônimo de progresso; e se contradiz ao querer tomar nas mãos a realidade das

causas sociais, limitando-se, porém, a manter-se como uma ―esfinge encoberta‖ mudando

apenas pela metade a natureza da vida (BLOCH, 2006a, p. 250). Mas as ambivalências do

processo histórico não impediram que a partir das utopias de More e de Bacon, o homem

deixa de ser criação de Deus para nascer da dialética da história. As chamadas utopias sociais

irão confirmar tal evidência.

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CAPÍTULO II

SONHOS DE REFORMAS E OS NOVOS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DO

TRABALHO NA MEDIAÇÃO UTÓPICA

A Terra se tornou bastante conhecida, porém, o Eldorado, buscado por

Jasão como por Colombo, ainda não foi encontrado.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006, p. 305)

Se os sonhos de mudanças utópicas foram abundantes em fantasias, não faltou também

a abundância de ideias, com tentativas de antecipações, até o despertar para a sociedade sem

classes. Analisando sob esse prisma, as utopias sociais da Antiguidade e a pós-Utopia de

More tiveram seu desaguar natural nas utopias da era industrial, com Owen,55

Fourier56

e

Saint-Simon.57

À miséria dos camponeses dos séculos anteriores, somaram-se os operários

55

Os 87 anos de vida de Robert Owen (1771-1858) podem ser divididos em dois capítulos: no primeiro, foi

pioneiro na indústria escocesa de fios de lã, amealhando fortuna e prestígio até a idade de 46 anos; a seguir,

torna-se sinônimo de utopia social e socialismo. Leitor contumaz, piedoso ao extremo, dedicou-se ao estudo

dos estoicos, incluindo Sêneca, das condições de vida dos operários e das reformas sociais. Escreveu extensa

obra, com livros e artigos que somam mais de mil páginas. Era uma espécie de ―messias ateu‖, na definição

de Gregory Claeys (OWEN, 1993a, p. xxxi). Acreditava na educação coletiva das crianças, com ―forte senso

de comunidade‖ (OWEN, 1993a, p. iv). Era veementemente contrário ao trabalho infantil e à violência,

inclusive contra os animais. Foi o pai fundador do cooperativismo. Sua influência estendeu-se,

posteriormente, ao Partido Trabalhista, à responsabilidade social das elites europeias e a utopistas, como John

Ruskin e William Morris.

56

Charles Fourier (1772-1837), a exemplo de Saint-Simon, também viveu as frustrações da Revolução

Francesa. Dos anos de 1789 a 1794, extraiu os elementos fundamentais de seu pensamento: a ideia da utopia,

o desejo de ultrapassar soluções puramente políticas e a convicção de que tinha missão providencial a

cumprir. Seu mundo utópico concentrava-se na Harmonia, organização de comunidades em Phalanges, nome

que deriva de antigas unidades de combate gregas. Aos seus integrantes, era garantida alimentação, roupas,

assistência às crianças e educação. O trabalho era um divertimento e precisava refletir a paixão das pessoas.

A marcha da história fez Fourier despertar para os caminhos imprevisíveis da realidade e mostrou a

capacidade burguesa de impor sua ordem, de restabelecer um regime mais forte e mais centralizado que o

Ancien Régime, que se volatilizou com a execução de Luís XVI. A exemplo de Saint-Simon, Fourier fez

parte de um punhado de descontentes que não se rendeu à retórica da demagogia e à acomodação da política.

Em 1799, percebeu que a civilização não é o destino do homem? e que a sociedade feliz e harmoniosa

poderia existir.

57

Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon (1760-1825), nasceu em Paris, em 1760, dez anos antes de

Fourier, e morreu dez anos depois dele, cercado pela admiração dos discípulos. Saint-Simon postulava elevar

a dignidade humana. Apaixonou-se pela Antiguidade nos anos de formação escolar e, aos 19 anos, como

capitão, partiu para a América, onde desde o primeiro momento anteviu o nascimento de uma ―república de

trabalhadores, sem rei nem castas‖ (BELAVAL, 1973, p. 124, v. 1). Lutou pela independência americana,

viajou pelo México, foi prisioneiro dos ingleses e retornou à França aos 23 anos, com a patente de coronel.

Sua vida foi a metáfora do fim e do começo de uma era. Durante a Revolução Francesa, financiava, com

recursos próprios, cursos públicos para populares. Fez fortuna com especulação de terras e financeira,

intermediando a venda de propriedades expropriadas da Igreja pela Revolução. Caiu em desgraça por ser de

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que sonharam com a libertação nos idos da Revolução Francesa e, de repente, viram-se

abandonados pela burguesia vitoriosa.

O camponês servo da gleba tinha uma vida bastante dura, o cálice do

sofrimento parecia estar cheio. Mas mesmo a pior época da camponesa

medieval é suplantada pelos primeiros operários de fábrica. As antigas

fábricas eram a mesma coisa que as galés. Um proletariado faminto, sem

repouso e desesperado era acorrentado às máquinas. O lucro do empresário

não conhecia controle nem pausa. Dezoito horas ou mais durava a jornada

diária de trabalho, uma sujeira sem igual (BLOCH, 2006a, p. 111).

O movimento para mudar esse quadro começou com um médico britânico, socialista

ricardiano, de nome Charles Hall que, em 1805, lançou o livro The Effects of Civilization.

Pregava o retroceder da civilização industrial e a volta da economia agrária, mas com a

divisão das terras em partes iguais para os camponeses. O propósito, do ponto de vista de Hall

era neutralizar as formações de monopólios que fazia os ricos cada vez mais ricos e os pobres

cada vez mais pobres. Não mereceu atenção nem dos ricos, nem dos pobres (BLOCH, 2006a).

Com o empresário Robert Owen, foi diferente. Vendo a miséria do trabalhador

crescer, ele, que se tornou um dos primeiros utopistas do século XIX, argumentava que ―um

trabalhador bem nutrido e satisfeito precisa da metade do tempo para produzir a mesma

quantia de trabalho e coisa melhor do que escravo de galé‖ (BLOCH, 2006a, p. 111). Não

defendia a destruição das máquinas, mas a partilha dos bens produzidos, eliminando-se os

lucros advindos do trabalho não remunerado.

O exemplo prático estava na sua fábrica modelo de New Lanark, na Escócia, onde

Owen elevou a vida dos operários e introduziu padrões morais por meio da educação,

organizou a produção com participação coletiva, aumentou salários e diminuiu a jornada de

trabalho. Iniciou, assim, o que considerava o reino da felicidade e da virtude, espaço paralelo

aos liberais, alinhados com a tese da rápida expansão da economia, e aos radicais,

organizados para defender a reforma da constituição com o estabelecimento do sufrágio

universal, a supressão do protecionismo e das leis de exceção que proibiam as coalizões

operárias.

origem aristocrática e foi preso. Libertado, passou a investir no comércio e na indústria. Em 1798, sonhou em

organizar uma casa bancária. Faliu. Naquele mesmo ano, abandonou os negócios para dedicar-se à filosofia.

―Filósofo inventivo‖, pensava uma nova concepção filosófica, um novo sistema social, uma nova religião

(MUSSO, 2006, p. 19).

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2.1 OWEN, FOURIER E SAINT-SIMON: COMUNISMO FILANTRÓPICO, PAIXÕES E

SOCIALISMO INDUSTRIAL COMO REFORMAS PARA VALORIZAÇÃO DO

TRABALHO

A obra dos autênticos sonhadores sociais foi diferente, honesta e grandiosa.

Assim precisa ser entendida e guardada no coração, com todas as

debilidades de sua abstração e de seu otimismo demasiado expedito, mas

também com sua incessante insistência em paz, liberdade, pão. E a história

das utopias evidência: o socialismo é tão antigo quanto o Ocidente, sim,

bem mais antigo no arquétipo que sempre o acompanha: o período áureo.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 138)

Owen (1993a, p. 66) acreditava que o homem não era livre porque o meio em que

vivia não lhe proporcionava liberdade. Se fosse educado, e essa era a primeira tarefa da

sociedade, agiria racionalmente, não praticaria injustiça ou maldade e desenvolveria sua

capacidade física e mental a favor da comunidade. O segundo ponto: no livro The Social

System (1993b), Owen volta-se da previdência social para o socialismo; em The Book of the

New Moral World (1993c), caminha para a solução reformista, mas condena as greves e a luta

pelas liberdades políticas.

Não pregava a revolução, mas a conciliação: que os industriais, parlamentares,

ministros e governantes renegassem o capitalismo por reconhecimento das suas mazelas e

amor humanitário. E que a aristocracia e os governos combatessem as leis que incentivavam a

pobreza, a desigualdade e, igualmente, patrocinassem a felicidade da raça humana. As

instituições eram responsáveis pela formação do caráter dos homens desde a infância.

Definia-se, publicamente, como ―amigo dos pobres e da classe trabalhadora‖ (OWEN, 1993d,

p. 187).

A alquimia dos projetos e atitudes fez dele um ―comunista filantrópico‖ e um lìder

reformista que procurou organizar a sociedade a partir da distribuição dos lucros, não da

produção e da mais-valia (BLOCH, 2006a, p. 112). Pensava organizar a sociedade em

cooperativas, sem propriedade privada, mas esbarrou nas limitações das escalas de produção.

Suas referências maiores eram o economista David Ricardo58

e a sua teoria do valor

do trabalho, além de Thomas More e a unidade grega entre o poder da mente e o poder do

58

David Ricardo (1772-1823), economista clássico inglês, inspirou-se na doutrina utilitarista, muito apreciada

por Owen e, com seu método analítico, lançou as bases da moderna economia. Marx foi largamente

influenciado por Ricardo, em particular na teoria do valor. Owen o considerava Ricardo um liberal, de ideias

sólidas, com quem manteve múltiplas divergências (OWEN, 1993a, p. 157).

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corpo, que nenhum outro povo da Antiguidade logrou conquistar, algo que os romanos, nos

dias de glória do regime republicano, tentaram imitar, mas que nenhuma nação moderna

jamais alcançou. A degeneração a esse respeito repercutiu na ―imperfeição fìsica de uma

porção da população‖ e na ―imperfeição intelectual de outra porção‖, gerando ignorância,

doença, miséria e decadência moral (OWEN, 1993c, p. 62). Acreditava superar a imperfeição

física, intelectual e moral, removendo as suas causas, com o exercício das faculdades naturais

do homem.

O seu objetivo maior era aperfeiçoar o homem, ―soerguê-lo purificado da sujeira das

fábricas‖, e construir uma ―nova humanidade‖, tendo como filosofia social a neutralidade

ética do trabalhador que seria ―alegre e bom‖ se as condições de produção fossem humanas

(BLOCH, 2006a, p. 113). Os paradigmas mais evidentes estavam nas tentativas de construção

de grupos federativos de trezentas a duas mil pessoas, que só existiram em New Harmony, no

estado norte-americano de Indiana. Fundada em 1824, a colônia instalou-se em regiões

desérticas, desfrutando de liberdade total: não havia propriedade individual, nem religião,

nem laços legais nas relações sexuais. Embora estivesse partindo do zero para construir as

relações de produção, fracassou.

Como também fracassou a condenação de Owen ao matrimônio que, junto com a

propriedade privada e a religião positiva, formariam, segundo ele, a ―trindade do mal‖

(BLOCH, 2006a, p. 113). Nada traziam de positivo para o ser humano, a exemplo do

matrimônio que representaria, como qualificou, ―a escravidão vitalìcia sexual‖ (BLOCH,

2006a, p. 113). Diferentemente de Bloch, Owen acreditava na reforma do capitalismo e na

possibilidade do trabalhador organizar-se independentemente do Estado, comprometido com

o capital. O perfil que Bloch (2006a) traça de Owen é de um utopista a-histórico: ele

considerava que, se as circunstâncias estivessem em ordem, o homem também estaria em

ordem. Recusava-se a enxergar que as estruturas estavam acima das circunstâncias.

Essa era a forma de cura diagnosticada por Owen para a sociedade: pequenos grupos

reunidos em unidades federadas, sem divisão do trabalho, sem separação da economia rural e

urbana, sem burocracia. Seria o reino pedagógico de uma humanidade futura, contrapondo ―a

longa noite imóvel‖ da vida interior ao raiar de um novo dia. Era, como admite Bloch

(2006a), uma utopia ingênua, mas já prefigurava o valor do trabalho e a supressão do livre

mercado.

Fourier, como Owen, pouco voltado para a defesa dos interesses de classe, revelou-se

dialético: na sua utopia, demonstrou não acreditar na mudança do mundo como obra da

burguesia, nem pelas conquistas ou pela força. E, embora não tivesse conhecido Hegel e fosse

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mais de uma geração anterior a Marx, percebeu que a miséria nascia da abundância, e esta era

o ―reverso dialeticamente necessário do esplendor capitalista, instituìda por ele, inseparável

dele, crescente com ele‖ (BLOCH, 2006a, p. 114).

A percepção levou Fourier a antever o fim da livre concorrência e a formação de

grandes monopólios. As barreiras das guildas estavam ruindo, e Fourier alimentava a

esperança de que a organização cooperativista da sociedade pudesse pressionar por estágios

posteriores aos monopólios para produção e distribuição de bens. Daí, ter projetado, como

Owen, pequenas comunidades, os phalanstères (falanstérios), sem abolição completa da

propriedade privada.59

Em lugar de reformar o homem, como pretendia Owen, Fourier

aspirava transformar a sociedade para satisfazer as paixões humanas e combater a hipocrisia.

Não concordava com a exploração do homem pelo homem, mas entendia ser

necessária a constituição de ―fortunas módicas‖ para a preservação do equilìbrio entre a

individualidade e o coletivo (BLOCH, 2006a, p. 115). Do choque entre as comunidades e a

propriedade privada, a ilusão burguesa seria expulsa e, gradativamente, haveria

transformações reais no mundo.

A utopia de Fourier encarregou-se de antecipar o futuro: o trabalho, não mais do que

duas horas, movido pela paixão, a indústria harmonizando o mundo material, o mundo moral-

afetivo harmonizando o mundo social e o mundo intelectual harmonizando as leis da ordem

universal. ―Sem pobreza e sem aquela subdivisão que seleciona o próprio ser humano‖, a

comuna era o retrato da construção da felicidade, ―semelhante à jovem América de Walt

Whitman, mas sem capitalismo‖ (BLOCH, 2006a, p. 116).

Na direção oposta do a-histórico Owen e do dialético Fourier, com ambos procurando

equilibrar a vida individual com a coletiva, Saint-Simon, com suas construções lógicas e o

culto ao industrialismo, com suas jornadas de trabalho reguladas, como as de Campanella e

com engenheiros e técnicos controlando o mundo, envolveu-se com a utopia centralista. Era

um utopista normativo, também não dialético, que considerava o proletariado de então

―totalmente passivo e não emancipado‖, devendo ser liderado pelos industriais. E, em

particular, pelos banqueiros capazes de privar ―reis e parasitas feudais do dinheiro‖, podendo,

pela sua capacidade administrativa e pelo papel de representantes centrais da moderna

economia, prestar ―auxìlio ao povo‖ na ―comunidade industrial do povo‖ (BLOCH, 2006a, p.

119).

59

―O falanstério era para Fourier uma verdadeira alucinação. Ele o via por toda parte, na civilização e na

natureza‖ (BENJAMIN, 2007, p. 673).

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Saint-Simon ―utopizou" o trabalhador, o industrial e o banqueiro: desprovido da

consciência de Fourier, não olhou em torno para ver o rastro de miséria deixado, na Europa,

pelo capital. Acreditava na Revolução Industrial com a mesma convicção que acreditava no

socialismo industrial. Odiava e amava o feudalismo. Seu projeto industrialista era antifeudal,

mas sua oposição ao liberalismo era fonte de veneração duradoura à Idade Média e à

instauração de uma nova ordem hierárquica que abolisse o caos e a anarquia. Em sua opinião,

o homem, para ser feliz, necessitava de ordem social, mais do que qualquer outra coisa, e a

prosperidade produzida pela indústria devolveria à humanidade um padrão de ordem só

encontrado na Idade Média.

Não tinha em vista um objetivo reacionário, na análise de Bloch (2006a, p. 121), mas

―visava a reprogramar o liberalismo, a fim de alcançar, através dele, o valor humano dos laços

sociais‖. Estava convicto de que épocas passadas, no caso a Idade Média, não se restauram,

mas que o lugar do feudalismo e o da igreja podiam ser ocupado pela indústria e pela ciência.

Pregava o retorno da unidade europeia.

Saint-Simon apenas acreditava que a extorsão total do fraco não era

essencial ao ―sistema industrial‖: por isso, sendo abolido o direito de herança

e outras formas senhoriais de auferir renda sem trabalhar, as bênçãos do

industrialismo poderiam começar de imediato (BLOCH, 2006a, p. 120).

Ele dividia a sociedade em dois grandes grupos: os banqueiros e os ociosos. Os

banqueiros marchariam unidos pelo trabalho aos industriais, agricultores, cientistas e

operários e se distinguiriam daqueles que não trabalham – os militares e o clero – pela

capacidade de produção. Sintetizou sua visão de mundo em três obras marcantes:

Reorganização da Sociedade Europeia (1814), Sistema Industrial (1821) e O Novo

Cristianismo (1825).

As qualidades de Saint-Simon esvaziam-se por ele ser contrário à revolução social e

conceber, no Estado industrial, a ―Igreja da inteligência‖, rejuvenescida pelo espìrito do

cristianismo (BLOCH, 2006a, p. 120). Dessa forma, tendeu mais para o lado de Campanella

do que de More. Arrebatado pelo conceito de ordem, limitou-se a mascarar ou reformar os

vícios da sociedade burguesa.

Em Saint-Simon, a revolução seria a revolução na indústria. O vir-a-ser da liberdade

foi unicamente social, orientada para o alvo comum da produção, que, acreditava, não viveria

crises tìpicas do capitalismo. Admirava a ―capacidade administrativa‖ dos banqueiros,

acreditava que o poder da riqueza advinda do trabalho era ―mais progressista que a riqueza do

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poder baseado na tradição feudal‖ e entendia que a ―organização‖ dos grandes

empreendimentos se revelava mais socialista do que a associação de pequenos produtores.

Essa posição, Bloch (2006b, p. 120-1) interpretou como sendo uma crítica a Fourier, além de

evidência do ―romantismo liberal‖ saintsimoniano, sem perceber o que essa atitude continha

de reacionária. Assim, agia porque visava, por meio do liberalismo, a restaurar os laços

sociais.

Saint-Simon acrescentou, na era das fábricas e do romantismo, o papa

industrial e determinadas correspondências nos laços sociais que

continuariam atuando e que, antes, não existiam: as correspondências entre

socialismo e a organização eclesiástica. Independente disso, reina aqui o

páthos da organização social, que ainda significa: uma indústria estatal

social, formulada de maneira esplendidamente liberal. A utopia de Saint-

Simon está significativamente mais próxima de Campanella que Morus e

apresenta todas as vantagens, e também todos os perigos, de uma ideia

coletiva, que, na organização centralizada, não vem equipada de elementos

federativos e democráticos, sim, que não constrói solidariamente com eles a

rigorosidade da própria organização (BLOCH, 2006b, p. 123).

O papa industrial é uma referência direta ao forte centralismo de Saint-Simon. Guiado

por um ―sumo sacerdote social‖, a inteligência dos mais capazes, que colocaria o ―páthos da

ordem mistificada‖ no lugar da liberdade manchesteriana de empreender (laissez-faire,

laissez-aller), e pelo casamento ―altamente paradoxal‖ entre o reacionarismo e o socialismo, a

utopia de Saint-Simon submetia a produção a um controle e supervisão únicos, procurando se

manter imune aos supostos ―caos e anarquia‖ (BLOCH, 2006a, p. 121).

Nesse passo, o governo e a indústria seriam como uma religião, com seus dogmas,

seus mistérios e seus sacerdotes. A prática da exploração, com Saint-Simon, saía da órbita da

superestrutura industrial para ter a sua origem no hábito feudal do senhor de explorar o servo.

A nova ―igreja industrial‖ não mais permitiria que isso acontecesse. Não foi o que fez o

liberalismo, na análise de Bloch: no início, convergiu para o oposto ao feudalismo, mas logo

se colocou em seu lugar e adotou meios ―igualmente impiedosos de opressão‖ (BLOCH,

2006a, p. 120).

À linhagem dos utopistas sociais, claramente centralista, Bloch (2006a) adiciona ainda

Cabet60

e Louis Blanc. Cabet, com seu ideário de ordem, mas acreditando também na força

60

Cabet era um igualitário, avesso à violência e às revoluções, defensor de um comunismo de inspiração em

Cristo. Na sociedade de Cabet, não deveria existir nem propriedade privada, nem sistema monetário. De

origem jacobina, converteu-se ao comunismo pela leitura da Utopia de Tomas More. Considerava a

democracia burguesa um estágio de transição necessária. Seu livro Viagem a Icária, publicado em 1842, na

França, alcançou grande êxito popular. Era inspirado nas sagradas escrituras cristãs. Mehring considera-o a

expressão do ―moralismo utopista‖ (MEHRING, 2003, p. 77-85). Viagem a Icária é um romance filosófico

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das tensões sociais entre ricos e pobres, e suas Icárias, ―edifìcio unitário altamente industrial,

sustentado por uma poderosa nação de trabalhadores‖ (BLOCH, 2006a, p. 116-7). Cabet, em

1840, utilizou a palavra communiste, em oposição às communités partialles.61

No seu

programa, enaltecia a indústria e a sua força revolucionária.

Louis Blanc, da escola de Saint-Simon, confiava em poder trocar as instituições

capitalistas, inclusive os bancos, por instituições do Estado, instituições socialistas,

eliminando a concorrência e fazendo do Estado o senhor da produção. Blanc, jornalista e

polìtico, que influenciou Proudhon e Bakunin, autor do aforismo ―De cada um segundo sua

capacidade, a cada um segundo suas necessidades‖ (Organization du Travail, 1839),62

contribuiu para a descoberta da vida operária na França e a organização dos trabalhadores em

cooperativas, sindicatos e comitês. Procurava influenciar a alta burguesia na melhoria das

condições de trabalho e o operariado na defesa da organização de um sistema parlamentar

democrático, por meio do sufrágio universal. Tentava pensar a República o Estado e a

interdependência com o trabalho.

Na Revolução de 1848, ano da publicação de O Manifesto Comunista, ano que

demarcou a separação histórica entre operários e burgueses, Blanc interrogou a sociedade a

respeito do sentido das palavras Liberdade, Igualdade e Fraternidade, herdada da Revolução

Francesa, num ambiente em que grassava o desemprego e no qual os direitos do trabalhador

precisavam ser reconhecidos e ampliados, o que lhe valeu longo exílio na Inglaterra e

ambientado na imaginária Icária, pais desenvolvido com mais de um milhão de habitantes, organizado em

torno de quatro princìpios: ―viver‖, ―trabalhar‖, ―a cada um segundo suas necessidades‖, ―a cada um segundo

seus talentos‖. Expressa a convicção de que a futura sociedade socialista não poderá vir pela revolução e,

sim, pela vontade da maioria, a exemplo do que aconteceu em Esparta, com Licurgo, 549 anos a.C, quando

os ricos abandonaram voluntariamente suas terras, dividindo-as igualmente entre a população. Eram 39.000

cidadãos que possuíam 39.000 porções de terra, sem direito de aliená-las (MEHRING, 2003, p. 470-474).

Esse é o ideal que Cabet traz para o século XIX, recorrendo, além das ideias de Louis Blanc, também as

teorias de Fourier, Owen e Saint-Simon e a reconstrução do pensamento filosófico, desde Platão. A tese é a

mesma de Marx: a propriedade privada é a fonte da desigualdade e precisa ser suprimida para que a

humanidade progrida. A diferença está na escolha da via para o socialismo. No final da viagem, a conclusão

é que Icaria progride porque é sob todos os aspectos um pais comunista: conta com uma ciência, uma

doutrina, uma teoria e um sistema (MEHRING, 2003, p. 556).

61

A invenção da palavra socialismo é atribuída a Pierre Leroux, seguidor de Saint-Simon. Teria sido usada,

pela primeira vez, no jornal Le Globe em 1832 e, na mesma década, pelos discípulos de Owen, na Inglaterra.

Seus partidários buscaram inspiração, num primeiro momento, em A república de Platão, no comunismo das

seitas da Idade Média e nos utopistas do Renascimento, em especial Thomas More e Campanella. A Utopia

de More mereceu mais atenção por denunciar os primeiros sintomas da acumulação capitalista e por pregar a

abolição da propriedade privada, o significado universal do trabalho, a igualdade de direitos e riqueza, a

organização da produção pelo Estado e a erradicação da pobreza e da exploração (KOLAKOWSKI, 1990, p.

187-8). Leroux nasceu em 1797, foi tipógrafo e fundador do jornal Le Globe, porta-voz do sansimonismo

(LEROUX, 2009, p. 13).

62

―De chacun selon ses facultés à chacun selon ses besoins‖.

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condenação à deportação. Blanc reagiu negativamente ao O Manifesto Comunista de Marx e

Engels.

A revolução da classe operária era estrangeira ao seu pensamento. Como ao sentido da

palavra ―organização‖ era estrangeira a planificação da economia. ―Organização‖ era a união

dos trabalhadores para pressionar e participar da República. Defendia o socialismo de um

Estado servidor.63

Remetia ao impasse ainda presente: reforma ou revolução? Em 1870, se

opôs ao levante da Comuna de Paris, mas condenou a violência da repressão e, já de volta, à

politica francesa defendeu a anistia dos integrantes do movimento.

Louis Blanc viveu 71 anos. Criticava Saint-Simon, segundo Bloch (2006a) por querer

construir um capitalismo de Estado, não um socialismo de Estado. Seu itinerário não passou

de um ―mascaramento do capitalismo de Estado como socialismo de Estado‖, porque não se

fundamentava na revolução social. Era como o mestre Saint-Simon, um centralista. Como

aconteceu com o mestre, sua obra se deteriorou.

2.2 A UTOPIA SOCIAL CONQUISTA O TRABALHADOR: O IGUALITARISMO

ANARQUISTA PERDE TERRENO PARA A DIALÉTICA MATERIALISTA

Fato é que o utópico, em última análise, não é nada se não aponta para o

agora e não busca o seu presente derramado. Como um presente autêntico,

não mais um como um presente composto do agora, do recém-decorrido e

do simultâneo do espaço envolvente. Com certeza, o agora meramente

imediato, transitório, é muito pouco; ele desaparece e dá lugar ao próximo,

porque nada nele chegou a ser bem-sucedido.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 307)

Na contraluz da história, o realismo de Bloch faz refletir utopias dialéticas e não

dialéticas. As utopias não dialéticas recorrem ao discurso de transformações profundas, mas

de conteúdo incipiente. Além de Owen, Saint-Simon, Cabet e Louis Blanc, Bloch analisa

outros utopistas, de diferentes estaturas, mas que não lograram avançar ou avançaram por um

momento e foram relegados a plano secundário. Não lhes faltava talento para pensar, mas

possibilitavam a ilusão de reformar o capitalismo.

63

Cf. Louis Blanc Un Socialiste en République, de Charruad Benoît (2008).

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É o caso de Weitling,64

auxiliar de artesão, que Bloch (2006a) define como ―uma das

últimas cabeças utópicas puras‖, que, no dizer de Franz Mehring, ―lançou por terra a barreira

que separava os utopistas ocidentais da classe trabalhadora‖ (BLOCH, 2006a, p. 130), mas

que, como Proudhon, também irrealista, era não dialético. Nele, a ―amargura e a esperança‖

brotavam da experiência pessoal. Viveu na Alemanha quando a classe trabalhadora ensaiava a

organização e, como o francês Babeuf,65

lembrava a antiga voz proletária em defesa da

igualdade real. Nunca foi anarquista. Era um puro que ―avistou a Terra Prometida‖ quando

Marx e Engels apenas começavam a torná-la acessível às grandes massas (BLOCH, 2006a, p.

133).

Weitling pregava, como Babeuf, uma república de iguais, imensa família de irmãos.

Sofreu influências de Saint-Simon e Proudhon, e o seu lema, ―Todos os homens são irmãos‖,

traía um socialismo lírico, diverso do socialismo militante de Marx, com a expressão

―Proletários de todas as nações, uni-vos‖, extraìda do Manifesto Comunista (BLOCH, 2006a,

p. 131).

Weitling vislumbrava um paraíso de trabalhadores jamais alcançável. Proudhon,66

um

utopista individual, anarquista, tornou-se famoso na França pelo escrito O Que É a

Propriedade? E ele próprio respondia: um roubo. A seguir, amenizou o conceito e concedeu à

propriedade ―uma origem mais simpática‖, como registra Bloch, ao explicar a visão de

Proudhon: ―A propriedade tem sua raiz na natureza do ser humano e na necessidade das

coisas‖ (BLOCH, 2006a, p. 124). Proudhon ligou-se à ideia da partilha coletiva da

64

Wilhelm Weitling foi um ―comunista primitivo de caráter evangélico‖, na definição de Kolakowski, ―cético

quanto às chances de revoluções não violentas‖, que mistura lúcida crìtica à Bìblia com ―mórbida pretensão

messiânica‖, no dizer de Rubel (MARX, 1982, p. CIX); é mais um cristão primitivo, um reformista, que

apresentava Cristo como um comunista, contrário à opressão e à injustiça. Repudiava a propriedade privada.

65

François Noël Gracchus Babeuf (1760-1797), jornalista, mais conhecido como Gracchus Babeuf, foi

condenado à morte em 27 de maio de 1797, pela guilhotina, acusado de liderar a Conspiração dos Iguais. O

movimento procurou mobilizar o povo francês em prol da continuidade da Revolução, até que se tornasse

uma revolução popular. Em maio de 1796, o movimento foi reprimido, e Babeuf preso, acusado de

conspiração. Julgado, não renegou a sociedade igualitária, mas negou o complô. Não houve protestos quanto

à sua execução. Babeuf morreu ―envolto pelo silêncio‖ (MOLON, 2002, p. 87). Marx (1982) considera

Babeuf um pioneiro na compreensão de que o socialismo exigia a superação da propriedade privada, mas

definia os babovistas como ―materialistas incultos, pouco civilizados‖ (MARX, 1982, p. 572). Na

historiografia da Revolução, ocupa ―um lugar desproporcional‖ ao papel que nela desempenhou: apareceu

em cena tardiamente, sem participar de momentos decisivos nas assembleias revolucionárias, tendo a sua

conspiração destinada a derrubar o regime burguês, sendo facilmente descoberta e tendo despertado

―indiferença do público‖ (FURET; OZOUF, 1988, p. 191).

66

Contra Proudhon, Marx escreveu Miséria da Filosofia. Condenava-o por limitar-se a ―imagens poéticas‖

quando abordava as contradições do capitalismo. E o definia como ―filósofo e economista da pequena

burguesia da cabeça aos pés‖, acusando-o de estar abaixo dos comunistas, ―porque não possui nem coragem

nem luzes para se elevar, sequer especulativamente, acima do homem burguês‖. Contrário ao Estado polìtico,

como Fourier e Owen, foi criticado por Marx pela sua resistência ao comunismo, que Proudhon considerava

uma espécie de escravidão (MARX, 1982, p. 93).

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propriedade, com a ressalva de que esta deveria ser pequena para não se transformar em

instrumento de opressão. De certa forma, implicava a extinção gradativa do socialismo. O

ímpeto revolucionário inicial dissipou-se, cedendo lugar à preservação da lógica de produção

burguesa.

Contudo, Proudhon atinha-se aos princípios do anarquismo – a recusa ao direito

burguês, o respeito à individualidade, à coerção e às leis do Estado e à ajuda mútua, embora

deixasse de pé o contrato livre entre produtores independentes ou supostamente

independentes –, incompatível com qualquer desigualdade entre as pessoas, derivado do

liberalismo abstrato do século XVIII. Confundia a palavra de ordem com o fundamento real:

ignorava o fundamento econômico da sociedade com o fermento das contradições, mas

aspirava à propriedade, com os desdobramentos do valor, crédito e poder.

Ao pregar a autonomia individual, Proudhon inaugurou o sistema social com núcleo

nas classes médias, na ilusão de poder suprimir, de uma vez, o capitalismo e o proletariado,

sendo primeiro o capitalismo pela ação do proletariado e, depois, o proletariado pela

autoeliminação da sociedade sem classes. Puro equívoco, porque, como compreendeu Marx, é

impossível suprimir a sociedade de classes sem superar a propriedade privada, o que impede a

existência de qualquer princípio filosófico de coletividade (BLOCH, 2006b, p. 125).

Quase que, na mesma linhagem de Proudhon, Bloch trata de Mikhail Bakunin,

também anarquista. Não por ele ter sido o ―terror da burguesia‖, propagando a ação violenta

como rumo para destruir o Estado. Não por ter sonhado com uma organização livre de

trabalhadores. Não por nada ter conseguido como o seu prazer pela destruição, salvo o

fortalecimento do Estado conservador, que ele considerava opressor político. Sim, por ele ter

sido um utopista não dialético, alimentado pelo ódio abstrato ao poder, que se caracterizou

pelo isolamento das massas e pela ilusão de colocar o direito burguês a seu favor. Acreditava

que a simples supressão da autoridade era suficiente para instaurar a fraternidade e a

igualdade de classes.

Foi parte de um igualitarismo que caducou na sociedade industrial por não acordar

para os fundamentos econômicos do Estado. As palavras de Bakunin, impregnadas por

divagações idealistas-vitalistas de poder individual, dissolvem-se no conformismo e na

mediocridade de uma democracia de classe média, em que a ―mazela principal‖ não era o

capital, mas o Estado (BLOCH, 2006a, p. 128).

A dialética materialista trilhou a direção contrária: o sujeito revolucionário seria a

massa de trabalhadores. Em Bloch, não seria o único sujeito, mas de base predominante. A

coluna do utopismo estava partida, na interpretação blochiana, e o materialismo dialético

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ocupava-se exatamente do ponto da fratura, sem ódio abstrato pelo poder, nem o culto à

ideologia individualista, nem o lirismo político.

O encontro com a contemporaneidade dos meios de produção exigiu o despertar, como

defendeu Marx, do proletariado para a crueza da realidade (BLOCH, 2006a, p. 129).

A fome força ao trabalho, mas este nos esgota da mesma maneira como a

fome. O empresário, ávido por obter lucro, não sabe o que é esse tipo de

trabalho, o do servo. Os artistas e pesquisadores tampouco o sabem por

outras razões. Porque ele é corveia imposta à força, imposta para fins

alheios. Conhecem essa corveia em toda sua árida extensão somente o

proletariado e o empregado (BLOCH, 2006a, p. 438).

Ao lembrar a difícil experiência do operário e do empregado, Bloch (2005) procurou

reafirmar a clareza do alvo a alcançar. O alvo instiga, traz o ―otimismo militante‖ para as

categorias do ―front‖, do ―novum‖ e do ―ultimum‖, redobrando a ―coragem e o saber‖, mesmo

quando este é cego para o futuro, foi derrotado ou vê o futuro como algo ―fechado em si

mesmo‖, inacessível (BLOCH, 2005, p. 196). O alvo serve, acrescentava Bloch (2005), como

antídoto contra o otimismo falso e o otimismo não-utópico, o qual favorece a indecisão, não a

ação concreta, desligando-se da realidade e pendendo mais para o golpismo e o isolamento do

que para a mudança efetiva da realidade.

Nem tudo o que é sabido é igualmente reconhecido, muito menos quando se

trata de algo recente. Assim, o conceito de novidade, tão estreitamente

ligado ao front, tampouco se encontra numa boa situação. O novo se

movimenta psiquicamente no âmbito do primeiro amor, e também, no da

sensação de primavera. Apesar disso, este último praticamente não

encontrou um pensador. Ele preenche repetidamente esquecido, as vésperas

de grandes acontecimentos, abrangendo uma reação mista altamente

característica de temor, proteção, confiança. Fundamenta, no prometido

novum da felicidade, a consciência do advento. Perpassa as expectativas de

quase todas as religiões, na medida em que de fato é possível entender

corretamente a consciência de futuro primitiva, inclusive do antigo Oriente.

Permeia toda a Bíblia, desde a bênção de Jacó até o Filho do Homem que

renova tudo, e até o novo céu e a nova terra. Apesar disso, a categoria novum

nem de longe foi caracterizada de maneira adequada, e não encontrou espaço

em nenhuma cosmovisão pré-marxista (BLOCH, 2005, p. 198-9).

Bloch não se voltava para a luta apenas contra o imobilismo, mas, contra a anti-

possibilidade do ―novum como um todo‖, que desloca os vìnculos entre o inìcio e o ultimum

como se não fizessem parte de um mesmo ciclo de mediação (BLOCH, 2005, p. 200). O seu

argumento decisivo era quanto a permanência do vazio, mesmo a teoria metafísica da

vitalidade podia chegar à vertigem, mas não ao desfecho do processo do novum (BLOCH,

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2005, p. 199). Consequentemente, se inexiste o novum, a dialética torna-se estéril, e a origem

das coisas deixa de ser o agente realizador. Sem a definição do alvo, os percursos sempre

levam e levarão a nenhum lugar. Mas o novum genuíno é o horizonte da utopia. Ele é o

elemento que destrói as estruturas que o aprisionam, que impede que o ultimum, que

sobrevive em religiões que marcam um prazo para que as coisas aconteçam, se repita e cria

possibilidade reais de mudança.

A partir de Marx, superou-se o caráter abstrato das utopias; a melhoria do

mundo acontece como trabalho em e com a correlação dialética das leis do

mundo objetivo, com a dialética material de uma história compreendida e

conscientemente produzida (BLOCH, 2006a, p. 138).

Com Marx, a utopia ―ganha chão, algo como pés e mãos‖, incorpora a unidade da

esperança: ―Tanto mais inconfundivelmente se torna consistente e vigente o sonho concreto, e

tanto mais eficazmente funcionou seu conteúdo realizado e opera seu conteúdo não realizado

na realidade‖ (BLOCH, 2006a, p. 177). A frase expressa a postulação de Marx quanto a

unidade da esperança, da noção de processo, do realismo e do entusiasmo. Os pés e as mãos

relacionam-se com o caminhar da metamorfose histórica. Simbolizam a universalidade do

homem e a sua conformidade com o mundo, a liberdade a sua totalidade. O conteúdo

realizado é o trabalho, o conteúdo não realizado encontra-se na permanência da sociedade de

classes. O novum encontra-se na origem da nova sociedade sem classes.

Contudo, o que ninguém pode fazer é tirar o mérito dos sonhadores, em qualquer

época. Bloch (2006a) lembra que os utopistas sociais, apesar do fraco relacionamento com o

proletariado, empenhavam-se na ação de mudar. Foram incessantes na perseverança por paz,

liberdade e pão. Não existisse o ingrediente do sonho, a ideia socialista não seria tão antiga

quanto o Ocidente, e a história das utopias não o acompanhariam no tempestuoso horizonte de

possibilidades (BLOCH, 2006a, p. 138).

Forem eles, os sonhadores, que tiraram a Idade de Ouro das páginas da mitologia e das

narrativas históricas para a realidade. O mito da Idade de Ouro – abundância, beleza,

juventude, saúde, despreocupação, lazer, prazeres físicos e intelectuais – é uma representação

pagã ou judaica da felicidade que, ao longo da história, alterna a procura do paraíso no céu e

na terra (MINOIS, 2011, p. 3). Originalmente, nasce com Hesíodo no século VII a.C., com o

poema épico Teogonia Trabalho e Dias, que fala de uma ―raça de ouro‖ que vivia feliz longos

anos de juventude devido à ausência de doença. Foi no reinado de Cronos, deus ambíguo que

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devorava os filhos, mas distinguia os homens com a generosidade dos frutos da terra,

inexistindo, portanto, necessidade de trabalhar.

A ―raça de ouro‖ teria desaparecido graças à Pandora (todos, pan, dons, dôron ou dom

de todos os deus) que, com ciúmes da felicidade dos homens, trouxe para a terra todos os

males, inclusive a esperança. Mas, desde Hesíodo e Ovídio, na Antiguidade, do Renascimento

às utopias sociais do século XVIII, o mito da Idade de Ouro se mistura com o sonho de

sociedades livres e pode representar um momento que passou, como um momento ainda por

acontecer. Sonho que se traduz na procura do éden nas Américas (riquezas e liberdade, mas

ambas conquistadas pela concorrência incruenta), na revolução das Luzes (a ideia de

progresso, a busca da felicidade como direito inalienável), na felicidade burguesa, tão

―denegrida‖ quanto ―cobiçada‖ e na revolução dos ―sans-culottes‖ que entrelaça o sonho da

igualdade aos sonhos de liberdade e fraternidade (MINOIS, 2013, p. 313).

No socialismo blochiano, a felicidade está no futuro e é simbolizada pela libertação do

homem dos meios de produção. Mas quando olha para trás e reflete sobre os riscos do

caminho percorrido, Bloch encontra as marcas de uma mesma imagem: os utopistas

procurando caminhos para trazer o futuro para a terra. Pandora de Hesíodo como dotada do

mal da esperança, se perdeu no imaginário humano, cedendo lugar à figura da transformação,

da completude do homem com muitas fechaduras, mas com a possibilidade de construir as

chaves para abri-las ou simplesmente arrebentá-las. Estamos diante, assim, da Pandora de

Goethe, mito que encontra coesão na possibilidade, ligado quanto a isso, ao entusiasmo e à

vontade.

Esse, apesar de todas as incompletudes ou incoerências, é o alvo, pós Marx, dos

utopistas. O salto dialético, se comparado ao alvo dos utopistas do passado, estaria na utopia

concreta: incorpora valores das utopias abstratas e delas se distingue não por concentrar-se na

substância da sociedade futura, mas por analisar a estrutura. Combina razão e esperança, ação

ativa do sujeito revolucionário e consciência, processo concreto e antecipação real do bem

comum. É polimorfo, mas a sua unidade está no olhar para o infinito futuro.

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2.3 SUJEITOS DA MEDIAÇÃO UTÓPICA

O real é processo e processo é mediação vastamente ramificada entre o

presente, o passado pendente, sobretudo, o futuro possível.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 194)

A realidade das utopias é a realidade objetiva da mediação ao longo das épocas. O

possível, no pensamento filosófico de Bloch, divide-se em objetivamente-possível e o

possível-real: o primeiro corresponde aquilo cuja ocorrência possa ser cientificamente

esperada, como o movimento do ser; o possível real, em contrapartida, significa, tudo o que

ainda não está concluído no âmbito do objeto, mas pode ser concluído, como a mudança

revolucionária.

O tema da mediação emerge em termos dialético-materiais no sentido de que a cada

transformação da realidade os limites das possibilidades de mudança se ampliam. E, com ele,

novos fermentos de antecipação passam a compor a realidade, resultam em novo elã para a

utopia. Como evidência do possível-real, Bloch cita o caso da Rússia que não esperou tornar-

se capitalista para fazer a Revolução socialista. O caminho para o alvo foi dado pela

combinação do frio e do calor antecipatório, com forte sentimento da categoria das

possibilidades.

No princípio, era a ilusão. Não foi Pandora de Hesíodo a primeira mensageira mítica

da falsa esperança da Idade de Ouro?67

Prometeu também não foi visto, na Antiguidade, como

rebelde fracassado e incapaz de trazer para a humanidade toda a riqueza dos céus como

pretendia? Os deuses tornavam-se o arquétipo da ordem, enquanto a esperança e a rebeldia,

mediadoras da mudança revolucionária, seriam condenadas até encontrarem a antítese da

narrativa de Hesíodo em Pandora e em Prometeu ambos de Goethe.

Na paisagem que foi se adensando, os sujeitos da mediação utópica sucederam-se.

Encontram-se na simbologia de Ulisses, de Homero e de Dante, Moisés e Aristóteles,

Avicenna e os aristotelistas de esquerda, em Gioacchino di Fiore e o teólogo Thomaz Münzer,

67

Na Antiguidade, a julgar pelo relato de Hesíodo, o homem seria aquele ser sem forças e sem independência

com relação aos deuses. A revelação brota da caixa de Pandora e surge, entre os gregos, como presente

mortal de Zeus à humanidade para puni-la por ter acolhido o titã Prometeu, insubordinando-se contra a

ordem divina. Trazida à terra pela sedutora Pandora, quando a caixa é aberta pelo ingênuo Epimeteu, dela

voam os males da fome às preocupações, das doenças às deformidades, da angústia ao medo; mas Zeus,

aparentemente compassivo, fecha a tampa antes que a esperança escape, talvez por entendê-la frágil, um mal

igual a todos os outros. Por trás dessa visão, o homem é joguete sem forças para empunhar as rédeas do

próprio destino. Ser sem autonomia, sem arbítrio da sua existência.

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em Colombo e na esquerda hegeliana, em Marx e no valor do trabalho, em Lenin e nos

bolcheviques.

Ulisses é a metáfora da vida na Antiguidade e na Idade Média. Encontra-se na origem

do homem concreto. O fundo humanista, que palpita em Homero e Dante, transpõe o homem

do conformismo com o desígnio dos deuses à paixão pela liberdade. No volume III de O

Princípio Esperança, o Ulisses homérico volta ao lar após vinte anos fora de Ítaca, para ir

lutar na guerra de Tróia, mas é o Ulisses de Dante que parte da mesma Ítaca para conquistar

novos mundos.68

Ulisses de Homero simboliza o homem ainda não consciente, a imagem do crepúsculo

grego; Ulisses de Dante é esperança autêntica do homem novo, de consciência revolucionária,

a imagem do homem inconformado, o totum da universalidade. É o homem que não se

encontra no passado, mas que se projeta para o futuro.

Um, Ulisses homérico, o homem individual, o herói ardiloso conhecedor de mundos,

navegou no sul do corpo de Circe, Calipso e Nausícaa, enfrentou a fúria dos titãs, de Posídon,

lutou com a própria hybris, desceu ao mundo da morte, o Hades, fez a viagem de circum-

navegação em torno de si próprio. O outro, o Ulisses de Dante, filho do período gótico,

homem propenso a se libertar das relações de produção, afloraria em Marx e vai sendo

plasmado paulatinamente.

Em Dante, Ulisses é mais do que o viajante singular e antecipa o humano real:

Colombo e os navegadores do século XVI. Ultrapassa o homem que, fatigado de batalhas,

retorna ao lar para encontrar a paz com a espada e o elmo pendurados na parede, por trás do

fogão como adereços, para se transformar no homem que ousa transgredir seus limites. Vai

além do navegante, como o Ulisses histórico, que sai em viagem para cumprir a profecia do

vidente Tirésias – que, no Hades, incumbe-lhe da tarefa de fazer sacrifícios a Posídon, em

grego clássico Poseidōn – para realçar o homem seguidor da própria vontade (HOMERO,

2003b, p. 119 et seq.).

Fascinantes Ulisses de Homero e de Dante corporificarem o bem comum: ilusório, em

Homero, por curvar-se ao desejo dos deuses, e verdadeiro, em Dante, por nascer da

68

Dante Alighieri conta que Ulisses, já envelhecido, reuniu antigos companheiros, deixou o filho e a Penélope

dileta. Lançou-se ao mar para ―conhecer o mundo, e dos homens os vìcios e o valor‖. Transpôs as colunas de

Hércules, alcançou o centro do hemisfério austral, avistando, na noite, uma ilha na forma de uma única

montanha e foi tragado pelo mar: ―Cinco vezes reaceso e cancelado fora o lume que a lua de baixo banha,

depois do fundo passo ultrapassado/ quando surgiu-nos diante uma montanha, pela distância, escura, e alta

tanto que nunca eu conhecera outra tamanha/ Nossa alegria logo volveu-se em pranto, que um remoinho dela

levantou, e feriu o lenho numa fronteira canto/ Três vezes, co‘a água toda, ele rodou; na quarta, erguida a

popa, fui arrojado proa abaixo, como a alguém agradou/ até que o mar foi sobre nós fechado‖ (ALIGHIERI,

1998, p. 181-6).

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consciência. Destacam-se como opostos, mas complementares por significarem a classe

detentora do poder e a emancipação da classe dominante por não ter mais que representar

papéis. Serão protagonistas da dialética do consciente finito e do consciente infinito, a

repetição do mesmo e a construção do futuro.

Colombo não é mítico, mas de carne e osso. Ele explora a Terra, não planetas e

estrelas. Ele pertence a um tempo em que a Terra ainda era tida como o centro do universo,

era pré-Copérnico. Mas era, igualmente, pós-Copérnico, ao fecundar a conquista de novos

horizontes. Fez realidade os sonhos da utopia do éden perdida em algum lugar da Índia. Não

se moveu apenas por desejos econômicos, pelo sonho do ―paraìso terrenal‖.

A metáfora do homem rebelde, revolucionário, pode ser concebida a partir do conflito

entre o Ulisses de Homero e o de Dante. Mas seria uma modelagem incompleta. Vico confere

ao sábio Ulisses, o sujeito da Odisseia, a capacidade de entrever os limites da sua existência:

ele é prudente, tolerante, mas é também dissimulado, enganador, implacavelmente violento.

Dois tipos de caráter, uma indagação: quem é o homem? Seria Ulisses o emblema da concreta

experiência da história? Para onde, em o Ulisses de Homero, apontaria a seta do tempo, o

passado ou o futuro? Ou, como parece aflorar do próprio Vico, Ulisses como retrato-síntese

do homem caminharia para ―frente‖ e para ―trás‖, tornando, assim, inconstante a sua

mediação utópica (VICO, 2005, p. 597-657).

Há outros sujeitos da utopia a se misturarem com as diversas visões de Ulisses e a

conceberem relações do homem com o mundo, a reclamarem a crítica da filosofia e o

despertar da fantasmagoria da individualidade em contraste com a construção do homem

coletivo. A tarefa da utopia blochiana é destruir o mundo ilusório e propor que o homem crie

uma forma de vida social em que sejam excluídas as injustiças e as contradições econômicas e

sociais. As dimensões desse sonho exigem não que a utopia seja projetada para o amanhã,

mas que se realize na superação cotidiana da cultura. Não é outro o intento de Bloch ao

inventariar a história das utopias.

Aristóteles foi redescoberto na Europa na mesma ocasião em que Lutero, na

Alemanha, realizava com sucesso a Reforma da Igreja, mas rejeitava a filosofia aristotélica de

que o homem podia ser justo e trazia, no seu interior, o sentimento ético de práticas virtuosas.

Entendia que o homem não poderia ser ―autossuficiente‖ na vida temporal e que dependia de

Deus para existir (KNIGHT, 2007, p. 698-702). A revolta camponesa liderada por Münzer e o

questionamento quanto à possibilidade da salvação no céu, contribuíram para que, nos séculos

seguintes, o aristotelismo se expandisse na Alemanha.

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O interesse deriva da efetiva relação entre a teoria e a prática na filosofia aristotélica –

que Aristóteles foi originalmente buscar em Platão e Sócrates, além de Heráclito, Parmênides,

Empédocles, Anaxágoras e Demócrito – e que viria a influenciar não apenas Marx, mas

Hegel, a esquerda hegeliana, o kantismo de esquerda (KNIGHT, 2007, p. 49-50). Com

Aristóteles, a filosofia grega tornou-se prática, e o homem é reabilitado como criador das

relações com o mundo (KNIGHT, 2007, p. 1044).

Segundo Bloch (2008), Aristóteles e o aristotelismo de esquerda são essenciais para a

compreensão dos sujeitos históricos da utopia, não somente das utopias sociais desde Thomas

More até William Morris, mas o conjunto de sonhos históricos que se projetam de Platão,

com La République, à Bíblia e A Cidade de Deus de Agostinho. Avicenna e o pensamento

aristotélico de esquerda proclamavam que o homem era matéria e que sua inteligência

provinha de matéria superior, tornando-se universal, não particular (BLOCH, 2008, p. 28-33).

Bloch movimenta-se até Aristóteles atraído pela forma que pode imprimir a potência

indeterminada à matéria. Ao buscar a transformação, o homem deixaria de ser um escravo da

natureza, que aprendeu a copiar e deixaria de ver a natureza também como sua inimiga a ser

dominada e destruída. A nova visão repercutiu na filosofia da natureza da Idade Média e do

Renascimento. A mediação pelo movimento da matéria estaria na transformação daquilo que

a natureza oferece ao homem de acordo com suas necessidades e criatividade, mas sendo o

homem modelador qualitativo das formas, sem mecanicismo.

A utopia concreta inscreve sua práxis no solo promissor da possibilidade. Não é o

―carpe diem, esse estar-aì meramente aparente e superficial‖, expresso no desfrute da

eternidade do momento e que, ―aterrissa, na melhor das hipóteses, em resignação‖ (BLOCH,

2006b, p. 406). O momento é imperfeito. Traz, no seu interior, a infusão das contradições

burguesas e as impurezas do mecanicismo e do senso comum, em conflito com a cultura da

elevação e da liberdade.

Para o aristotelismo de esquerda, a crítica ao irrealismo tornou-se inevitável. A

felicidade, apontada para o céu, tornou-se o seu alvo. Defendia a ativa presença humana,

exigia o utopismo da felicidade na Terra. Sua mediação influenciou o comunismo quiliasta

nos últimos séculos da Idade Média. O prior calabrês Gioacchino di Fiore foi o rebelde

prometeico do alvorecer desse tempo de esperanças. Encorajava os homens a se emanciparem

pelo amor à liberdade e ao próximo, pela concretização de uma sociedade humana, não pela

espera do Juízo Final. Condenava a corrupção da Igreja, considerando o zelo evangélico como

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indispensável para o surgimento de uma nova era espiritual.69

Não se confinou na pregação

contra as desigualdades econômicas. Tocou o sentimento de amor ao próximo da comunidade

e os vínculos fraternos entre os homens, e que influenciaram o espírito revolucionário

bolchevique.

Gioacchino di Fiore preconizava a extinção da Igreja e do Estado e sonhava trazer a

De Civitate Dei agostiniana para a Terra, a comunidade ética, conhecida como a utopia do

terceiro reino. O primeiro foi o reino do Pai, do Antigo Testamento, sulcado pelo temor e pela

lei. O segundo foi o reino do Filho, do Novo Testamento, do amor e da Igreja dividida entre

clérigos e leigos. O terceiro reino, que estava para acontecer, seria aquele do Espírito Santo ou

da iluminação coletiva, ―numa democracia mìstica sem senhores e nem igreja‖ (BLOCH,

2006a, p. 64).

O reino dos pobres foi o elemento mediador. Rompia com o conformismo estoico e

transpunha, da filosofia para a prática, o sonho da Terra Prometida e do amor ao próximo

ensinado pela Bíblia. Da mesma maneira, condenava o luxo, os espoliadores e a escravidão.

Evocava, em Jesus, o fundador de uma nova comunidade social, sem dar trégua aos inimigos

e sem hesitar em usar o chicote. Não aceitava a pregação da Igreja tradicional de que a vida

podia ser contemplada, jamais conquistada.

Esses princípios opunham a vida comunal ao reino dos príncipes e dos reis, da igreja e

da burguesia comercial, mas continham uma lógica. Estavam acondicionados no sentimento

fraternal e na coesão das pessoas, tornavam arcaicos os laços de sangue e família, os vínculos

da época. A base econômica, para que a sociedade viesse a se desenvolver, estava vinculada à

abolição da pobreza. Desmascarava o caráter contraditório do capitalismo nascente e da Igreja

na sua propensão para humilhar e oprimir o homem. ―Enfeitam os altares e o pobre sofre

amarga fome‖ (BLOCH, 2006a, p. 53).

A utopia de Gioacchino di Fiore era a riqueza igualitária para todos. Sonhava com a

história, não com a transcendência no céu. ―Destituiu a teologia do Pai, relegou-a a era do

medo e da escravidão, mas dissolveu Cristo em uma comuna‖ (BLOCH, 2006a, p. 67). A luta

joachimnista era pelos princípios sociais cristãos. Alinhava-se contra as contemporizações da

Igreja, e as suas alianças com a sociedade de classes, aì incluìdo o ―suposto direito natural da

propriedade e mesmo a ‗santidade‘ da propriedade privada‖, um princìpio social central da

Igreja, que pregava a salvação no céu (BLOCH, 2006a, p. 67).

69

Cf. A Perfectibilidade do Homem, de John Passmore, 2005.

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A diferença entre a De Civitate Dei de Agostinho e o terceiro reino de Gioacchino di

Fiore estava na concretude: a utopia agostiniana pregava a transcendência, a utopia de

Gioacchino era terrena, e ele sonhava em levá-la ―ao paraìso com o corpo vivo, não apenas

como espìrito‖ (BLOCH, 2006a, p. 65). Não era acidental para a filosofia de Gioacchino di

Fiore que a sociedade não segregasse o pecado e não houve, na sua pregação, nenhuma fuga

para o céu e para o além.

A sociedade cultuava o pecado por oprimir o homem e, por isso, para purificar o corpo

precisar voltar ao estado original paradisíaco. Universal, a utopia joachimnista estava fundada

na abolição da riqueza e da pobreza, na ―percepção do espìrito fraterno‖ nos diferentes credos

(BLOCH, 2006a, p. 66). Seu comunismo dissolveria a liderança de Jesus, o messias de uma

nova Terra, na comuna.

Como continuador de Gioacchino di Fiore, Thomas Münzer70

também se apoiou nas

Sagradas Escrituras e entendeu que os camponeses alemães, rebelados contra os príncipes,

pretendiam o reino de Deus na Terra. ―Deveis saber‖, lembra Bloch referindo-se às palavras

de Münzer no escrito Da Fé Fingida – que enaltece o testemunho do cristão autêntico –, ―que

eles atribuem essa doutrina ao prior Gioacchino e o chamam de Evangelho eterno com grande

escárnio‖ (BLOCH. 2006a, p. 66-7). O escárnio viria incendiar a rebelião na Alemanha e

também os Diggers, agrocomunistas ingleses.

Como em Gioacchino di Fiore, o elemento mediador em Münzer foi a harmonia social

cristã, originária dos primeiros tempos do cristianismo. Mas havia uma diferença: para

Münzer, antes da nova era de igualdade e justiça, as autoridades existente precisavam ser

exterminadas. Foi o que disse aos príncipes, era o que pregava nos seus sermões. Veio a

guerra. Dai em diante, Münzer surgiria como ―um comunista revolucionário‖, na definição de

BLOCH (1973, p. 17). Na Idade Média e no Renascimento, Gioacchino e Münzer, pelas

70

O Renascimento é geralmente visto como uma época de criatividade, poesia e ―renovação da humanidade

como jamais tinha acontecido antes‖ (BLOCH, 2006a, p. 9). A sua outra face, a rebeldia milenarista, vive

prisioneira do esquecimento. Thomas Münzer é, certamente, o personagem mais visível desse período. Filho

único, nasceu em 1488 ou 1490 em Stolberg, na Thuringia. Seu pai parece ter sido enforcado, vítima da

arbitrariedade de um senhor feudal. Sua mãe, por estar na miséria, foi hostilizada: os habitantes da cidade

queriam expulsá-la. ―Para ele, tudo foi difìcil, desde o inìcio. Quase abandonado, cresceu o sombrio jovem‖

(BLOCH, 1973, p. 9). Mestre em Teologia, profundamente versado em grego e hebraico, sentia-se atraído

pelas leituras filosóficas. Aderiu à causa de Lutero, antes de conhecê-lo, ao ler, em 1517, as famosas teses

contra as indulgências fixadas na igreja de Wittenberg. Considerava Cristo um mortal, profeta e mestre, que

pregava um panteísmo próximo do ateísmo e negava a infalibilidade e o caráter revelador da Bíblia. Feito

prisioneiro pelos príncipes, após uma batalha em que liderou 8.000 homens, foi torturado e decapitado.

Estava com 38 anos. Dos seus comandados, 5.000 morreram (ENGELS, 1977, p. 101-10). As revoltas

camponesas se desenvolveram em ondas sucessivas nos anos de 1424-1425, envolvendo, no início, em 1424,

os montanheses da Floresta Negra e os planaltos da Suábia. No ano seguinte, propagou-se pela Alsácia e

Áustria. Estima-se que 130.000 camponeses foram mortos enforcados, decapitados, passados no fio da

espada, apunhalados ou sob tortura (ENGELS, 1977, p. 111).

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vicissitudes decorrentes das utopias fracassadas e pelo alcance das suas ideias, abrem opções

para o conceito de utopia concreta. Ambos se inspiraram em Deus, mas um deus

condicionado pela noção de matéria, não hipostasiado.71

O pressuposto objetivo em Münzer é a exploração dos camponeses alemães pelos

príncipes e a opressão do povo pelo Estado eclesiástico. O pressuposto subjacente localiza-se

na exploração que persiste e se amplia com o sistema capitalista. Münzer era revolucionário,

porque rejeitava o servilismo e ―não tratava o proletariado como canalha‖ (BLOCH, 2006a, p.

79). O proletariado era, então, força nascente.

O espírito de homens liderando homens contra os senhores não predominou somente

nas guerras camponesas. Foi o mensageiro da boa nova da revolução bolchevique, o momento

da nova mediação dialética.72

Não mais dentro do capitalismo, mas no socialismo, repetindo,

assim, no plano metafórico, o momento inicial da Utopia de More em que uma revolução põe

fim à ordem antiga e começa uma nova era. No ciclo histórico que se iniciava, as relações de

produção, com a abolição da economia política, tornam-se símbolo definitivo da possibilidade

humana de não alienação.

A indicação da possível realidade futura estava nas Teses sobre Feuerbach, com esta

observação: ―[...] a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivìduo isolado. É,

em sua realidade, o conjunto das relações sociais‖ (BLOCH, 2005, p. 259). A incompletude

persistiu, mas, nos passos da utopia concreta, a mediação do trabalho imprimiu sua marca,

enriqueceu e renovou os horizontes de mediação no domínio do possível-real. Permitiu pensar

a sua contemporaneidade e a sua universalização. Pandora, como Prometeu, se converteriam

nos demiurgos da futura Idade de Ouro.

71

Bloch refere-se à hipóstase como ilusão do Deus ―onipotente‖, ―salvador‖, situada na ―mitologia de Deus‖ e

da irrealidade de um mundo sem salvação condenado a ser uma ―máquina para produzir deuses‖ (BLOCH,

2006b, p. 373-4). O conceito de hipóstase é de complexa explicação. Era uma emanação, e o emanado

concebido por meio da analogia como o ―refletido‖, os platonistas multiplicam o seu número, embora

conservem, na maior parte dos casos, a estrutura triádica que se fundamentava na suposta sucessão da

unidade, da processão e da conversão. Platônicos e cristãos aproximam-se no paralelismo das trindades do

Uno, da Inteligência e da Alma do Mundo e a do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No cristianismo,

corresponde ao que existe na pessoa divina. Chama-se a união da natureza divina de Cristo com a Sua

natureza humana. Os neoplatonistas introduziram as hipóstases subordinadas a cada uma das hipóstases

inteligíveis. Inteligência gera, assim, as hipóstases: o ser, a vida, o intelecto ou a inteligência (MORA, 2004,

p. 1345-6).

72

Segundo Passmore (2005, p. 438-9) Gioacchino di Fiori antecipou muitos problemas da filosofia com a sua

visão tripartite da história e a análise das profecias de perfeição humana, influenciando, além de Münzer,

Schelling e Auguste Comte.

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2.4 COLOMBO, O ÉDEN E OS DESCOBRIMENTOS: A UTOPIA DO NOVO

MUNDO

É fácil desejar transportar-se para longe de um lugar ruim. Mas a trilha

para sair dele é menos óbvia, ainda precisa ser descoberta.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 299)

A Utopia de More coincide com a descoberta do Novo Mundo. Com as descobertas

geográficas, abria-se um novo ciclo de esperança. Se o descobridor personificou a avidez por

lucro, a ambição de ir sempre mais longe e a transposição de uma antiga cultura para novas

terras, de fantástica dimensão, foi igualmente o arauto das possibilidades de concretização da

utopia edênica, do renascimento do sonho com o velo de ouro e do paraìso terrestre. ―Quando

Colombo zarpou para as Índias, tinha em mente até um éden real. Não causa surpresa, a partir

dessa perspectiva, que descobertas trouxessem consigo tanto sonhos quanto transformações‖

(BLOCH, 2006a, p. 302).

As terras que viria a descobrir, apareciam como lugares que escondiam por trás das

florestas ―algo incógnito‖, o Eldorado procurado no passado por Jasão, repleto de tesouros,

serpentes, dragões, fadas e frutos mágicos (BLOCH, 2006a, p. 304-5). Colombo conhecia as

fantasias em torno do Éden-Eldorado, entre elas, a lenda da fonte de juventude, mas por elas

se deixava embalar pelos exageros do novo céu e da nova Terra, como se deixava embalar

pelo sonho com os reinos mágicos que, à época, estariam nas Índias como em qualquer parte

da Ásia, da África e da costa do Atlântico. E os geógrafos ajudavam movendo a localização

do Éden de um lugar para outro, fazendo do paraíso na terra a essência dos relatos utópicos e

a própria confirmação do Éden bíblico.

Colombo sonhava com as concepções correntes desde a Idade Média de que o Éden

existia e se encontrava em algum lugar da terra. Em carta aos reis da Espanha, escrita no

Haiti, em outubro de 1498, chegou a admitir encontrar-se no lugar onde se situava o paraíso

terrestre e que ―estaria muito próximo do céu‖ (BLOCH, 2006a, p. 326-7). Alimentando

―ideias mágicas‖ comuns à literatura filosófico-teológica, pelo menos até Campanella, ele se

inseriu na linha da descoberta do ―Paraìso Terreal‖, o Éden, na definição de Sérgio Buarque

de Holanda em Visão do Paraíso (2010). As possibilidades das novas rotas marítimas, a

realização efetiva da utopia das descobertas, são representadas pelo Novo Mundo que se

estendeu da América espanhola ao Brasil português. Atingiu-se, graças aos sonhos dos

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descobridores, os confins do interior do rio São Francisco e da Amazônia, do Peru, do Haiti e

das Américas.

Os sonhos eram guiados pelas luzes das utopias do Éden e as utopias geográficas

descritas por Bloch (2006a, p. 304-5) no livro II de O Princípio Esperança, e que deram suas

contribuições para as utopias sociais, embora o paraíso procurado desde Alexandre, na

Antiguidade, jamais tivesse sido encontrado. É nesse ponto que se concentra a tensão dialética

entre o real e a fantasia.

Contava-se que mares de lama e trevas inundavam o Atlântico, como na Antiguidade

as lendas gregas cercavam os lugares de ―lendária despreocupação‖ com monstros e águas

perigosas em torno da ilha dos Feacos e dos Bem-aventurados, e o mar coagulado que

cercaria as colunas de Hércules (BLOCH, 2006a, p. 308). No Atlântico, proliferariam os

mares fétidos, de recifes invisíveis e ilhas demoníacas, armadilhas da geografia do inferno. O

Éden estaria atrás de um ―cinturão de terror‖ (BLOCH, 2006a, p. 311).

Às lendas sinistras, Bloch contrapõe, com fulgor paradisíaco, o sonho tangível da terra

prometida. Contrapõe o paraíso do Antigo Testamento e a fragrância do jardim encantado do

Éden que ultrapassa suas fronteiras e dissipa as brumas da ilusão por inexistirem monstros na

espreita em ―aromáticos bosques‖ ou ―águas perigosas‖ cercando o paraìso, mas o que existia

era o trabalho dos homens, erguendo Canaã como ponto de atração (BLOCH, 2006a, p. 309-

12).

O utópico social não ficava, assim, à margem desse fluxo incessante de fantasias.

Revelou-se dialético pela grandeza das expedições e pelas utopias políticas que se sucederam

aos descobrimentos. Revelou-se concreto pelas paisagens arquitetônicas, a ocupação dos

espaços do continente americano, a pintura, a música, a literatura. No século XVI, o arquiteto

foi considerado ―rival de deus‖ e o poeta definido não como o narrador de algo aparentemente

inexistente como faz o pintor, mas como alguém que ―cria e funda como um outro deus‖

(BLOCH, 2006a, p. 364).

As novas terras faziam sonhar com uma paisagem terrena do futuro. Encontravam no

espírito criador a infinitude humana. Colombo demonstrou que o paraíso não estava restrito a

montanhas inacessíveis, como imaginava Dante, nem se encontrava cercado de mares de

algas, nas Índias. Não era feito de ilhas santas, como se imaginava na Antiguidade, nem

ficava para além das colunas de Hércules, também como pregavam as lendas da Antiguidade.

Eram paraísos terrenos que todos podiam alcançar.

As descobertas absorviam múltiplas utopias: das utopias médicas às utopias técnicas,

arquitetônicas e sociais. O horizonte da terra foi ―imensuravelmente ampliado‖ e com ele

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prolongou-se a linha da ―Terra humanizável‖ (BLOCH, 2006a, p. 325). Mas o mundo

permaneceu dividido em classes e a ideia de um novo céu e uma nova Terra foi adiada,

aguardando o pleno futuro. ―A intenção do paraìso terrestre, portanto, dirigiu-se a um espaço

áureo ainda a ser aguardado no mundo que desemboca no delta do mundo‖ (BLOCH, 2006a,

p. 345).

Quanto mais distante do irrealismo da ilusão, do sedativo da inércia, do mero prazer

da contemplação, quanto mais distante do terror infundido pelos mitos, mais o homem se

aproxima da plenitude do real (BLOCH, 2006a, p. 363-4). Embora a geografia dos

descobrimentos não tenha resultado no paraíso da Terra humanizada, no Novo Mundo,

revelou-se ―o livro da Natureza‖, que teria sido ―escrito por Deus‖. Inclusive os mais

realistas, no entendimento de Buarque de Holanda, consideram que as descobertas trazem no

seu bojo ―um sentimento vivo de simpatia cósmica‖ (HOLANDA, 2010, p. 118).

O eco desse pensamento converteu terras antes incógnitas em ―visão premonitória e

futurista‖ que ganharam fundamento na geografia ―fantástica‖ do Brasil e das Américas

(HOLANDA, 2010, p. 118-9). A utopia do ―Paraìso Terreal‖ estava transformando o mundo e

o mundo se transformando com a utopia do ―Paraìso Terreal‖. Nos séculos seguintes, os

ideais limítrofes do sonho do paraíso terrestre de Colombo com a sua negação pela realidade

se transformaram em janelas abertas para o futuro, principalmente no embate pela valorização

do ser humano.

O niilismo da burguesia em declínio, ao desvalorizar o homem, deixa a vida sem

alternativas, mas ao contrário, a utopia, mantém o lastro da possibilidade objetiva como

prolongamento das terras a desbravar. Essas terras se materializavam no trabalho e o seu Éden

estaria na conquista de uma sociedade em que as ilusões se dissipassem e a superestrutura e a

infraestrutura social fossem uma coisa só.

Já em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), Bloch mencionava o socialismo como

indissociável desse grande plano civilizatório. A sua unidade mais significativa como utopia

social da iluminação estava na ―antecipação‖, seja em ―conformidade com as forças de

produção, seja primordialmente também como consideração das radical-totais séries de

propósitos humanos e de sua posição em relação a um universo mediado‖ (BLOCH, 2006b, p.

476). Mas uma antecipação no âmbito do possível novum, concernente ao espaço

dialeticamente aberto: a práxis.

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2.5 TRABALHO E ROMANTISMO: PRESSUPOSTOS PARA CONHECIMENTO E

TRANSFORMAÇÃO DA VIDA

Nas coisas há uma atividade, em que nossos interesses ainda podem ser

tratados, uma linha de frente, em que nosso futuro, justamente este, pode ser

decidido.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 284)

Eis duas nascentes do pensamento universal para a frente: o trabalho humano e o

romantismo revolucionário. O trabalho é o elemento objetivo, relativiza a incerteza quanto ao

futuro e encontra, na sociedade, o reflexo luminoso do mundo futuro. Não é a primeira luz,

mas a luz persistente, aquela que resgatou o ―núcleo racional da utopia e da dialética‖,

trazendo-o para o concreto (BLOCH, 2005, p. 141). O romantismo revolucionário é a via de

acesso do presente no rumo do futuro ou, na definição de Löwy, ―a descoberta do futuro nas

aspirações do passado‖ (LÖWY, 2009a, p. 11-27). A Revolução Francesa e a Revolução

Industrial são essenciais para o entendimento do conceito: na primeira, pelo ―grande

idealismo‖ e a perspectiva de ―um milênio de fraternidade‖; na segunda, pelo espìrito criticou

que despertou quanto a ―era do maquinismo‖ e ao ―apequenamento‖ do trabalhador industrial

(LÖWY; SAYRE, 2015, p. 151-85). Nas duas, a palavra chave é idealismo.

A trajetória de Bloch até o romantismo revolucionário suscita ambiguidades. Löwy

(2015, p. 244), reconhece a grandeza de O Princípio Esperança por amalgamar num mesmo

―alento filosófico os pré-socráticos e Hegel, a alquimia da Renascença e as sinfonias de

Brahms, a heresia ofita e o messianismo de Sabbatai Zevi,73

a filosofia da arte de Schelling e

a política marxista, as óperas de Mozart e as utopias de Fourier‖. Mas um dos paradoxos que

aponta – o primeiro é que o livro fala pouco do futuro, embora o texto seja voltado

inteiramente para o futuro – é o tratamento dado ao romantismo.

73

Sabbatai Zevi (1626-1676), rabino cabalista do século XVII, que se apresentava como messias. Um ―semi-

enganador‖, na definição de Bloch (2006b, p. 268), que assinava decretos em tom ―altamente blasfemos‖:

Ich (eu, tradução nossa), o Senhor vosso Deus Sabbatai Zevi, que vos conduziu para fora do Egito‖.

Pressentindo que perdia seguidores, sentindo-se em perigo, aderiu ao islamismo e morreu como porteiro de

um harém. Bloch trata de Sabbatai Zevi no contexto de denúncias de falsos messias: a passadeira inglesa

Anna Lee, que se fazia passar por Cristo; o cocheiro italiani David Lazaretti, para quem agricultores

construíram uma igreja; Joseph Smith, fundador dos mórmons, que teria, com ajuda de Deus, como

proclamava, desvendado os sinais misteriosos que escondiam a única e autêntica Bíblia. O contexto é a falsa

visionaridade, o ocultismo, a clarividência e as ditas ―aptidões mediúnicas‖ que envolvem os aspectos os

mundos subterrâneos das religiões (BLOCH, 2006b, p. 266-76).

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Para Löwy (2015), Bloch não desvenda o lado revolucionário do romantismo alemão e

não o faz porque se atem a ―crìtica – feroz! – a Zivilization‖. O inventário de obra de Bloch,

certamente, se enriquece com essa crítica – e ele não deixa de assestar seu arsenal crítico

contra a maquinaria, a submissão da natureza pelo capitalismo e a técnica, características

próprias do romantismo –, mas não parece ser esse o alvo fundamental. O que sugere atenção

é que Bloch tende a subordinar a ―corrente quente do marxismo‖, o Romantismo

Revolucionário, à corrente fria, a racionalidade, e isso não parece um erro, mas uma atitude

prudente.

O romantismo não entende a utopia, nem mesmo a sua própria, mas a utopia

que se tornou concreta entende o romantismo e se inclui nele, enquanto e na

medida em que o arcaico e a história contêm, nos seus arquétipos e obras,

algo cuja voz ainda não se fez ouvir algo que ainda está em vigor. Assim,

seja no processo da rememoração ou no processo do esquecimento, a

consciência mais avançada não opera num espaço submerso, mas no espaço

aberto, no do processo e de seu front. Esse espaço, porém, é preenchido

exclusivamente com a aurora para a frente, inclusive, nos seus exemplos

provindos do passado e seu significado permanente: ele está preenchido pela

vitalidade de um ainda-não-ser possível de consciência e de ciência

(BLOCH, 2005, p. 141-2).

Talvez por isso, Bloch, como assinala Löwy, mantenha ―distância crìtica‖ com relação

a Ruskin e Morris, pensadores românticos, anticapitalistas e, sem dúvidas, geniais, mas cujas

utopias estariam voltadas para trás. Bloch não condena o progresso, nos moldes do

romantismo tradicional, com os olhos voltados para o passado que sempre volta. Ele olha para

o progresso o futuro, planejado, de face humana. O mundo com a qual sonho é, sem nenhuma

dúvida, a pátria (Heimat), também como lembra Löwy. Mas não é a pátria tradicional, a pátria

pangermanista, tal como impôs Bismarck ou a pátria que encarne qualquer dominação

econômica ou da natureza. Sim, a pátria humana, que ele assim descreve:

[...] a raiz da história é o ser humano trabalhador, produtor, que remodela e

ultrapassa as condições dadas. Quando ele tiver apreendido a si mesmo e ao

que é seu sem alienação, surgirá no mundo algo que brilhe para todos na

infância e onde ninguém esteve ainda: a pátria (BLOCH, 2006b, p. 462).

Deslocada do contexto, a palavra ―pátria‖ flutua. Perde o seu vìnculo primordial com a

riqueza da existência humana. O futuro, igualmente, não precisa ser referido a cada estante.

Dispensa a palavra específica. Bloch sonho não com o Zukunft, mas com o Zukunft in der

Gegenwart. Não é um exercício futurista, como fizeram John Ruskin e William Morris, mas

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um futuro que brota no dia a dia do homem. O novum, como a sociedade sem classes de

Marx, não deixa de ser um sonho romântico, mas é um sonho romântico possível, um sonho

real. Como foi o sonho do aristotelismo de esquerda ao trazer a utopia do céu para terra e

inverter o sentido da vida: não mais para servir a Deus, mas para servir ao homem. Na obra de

Bloch, o futuro e o novum são como o sangue que circula no corpo humano, pode não ser

visível, mas é o sol da vida.

É possível que críticas como a de Löwy, contribuam para a visão de que Bloch seja

um filósofo messiânico ou, na melhor das hipóteses, ambiguamente marxista. Lima Vaz

(1983, p. 150) ao estudar as correntes fundadoras do marxismo colhe em Kolakowski duas

informações preciosas: que para o pensamento de Marx contribuíram a visão do

aproveitamento das conquistas da ciência e o romantismo revolucionário. Em socorro de

Lima Vaz, Kolakowski (1978, p. 115- 32) critica as utopias normativas da história, a realidade

estritamente racional e reconhece que Marx, assim como Hegel, aboliu a distinção entre a

previsão do futuro e o desejo de criá-lo.

Prever o futuro não é como prever um ―eclipse solar‖,74

mas exige prever o espírito da

história. E isso não acontece com base apenas racional. Quando aborda o tema, recorda que

Lukács, interpreta, sem desejar, que Marx ao delinear sua obra, talvez estivesse falando

propriamente da ―consciência mitológica, profética e utópica‖75

que não se confundia com o

materialismo dialético (KOLAKOWSKI, 1978, p. 129). A característica da consciência

utópica estaria no conteúdo, não na forma; a previsão do futuro seria enganadora por causa da

tradição mítica-profética da identidade divina sujeito e objeto, não como uma expressão do

conhecimento. E o conhecimento implica no reconhecimento das forças e das fragilidades.

Essa é a realidade: Bloch não ganha evidência apenas pela erudição. Em Bloch, o

romantismo e o romantismo revolucionário são eventos singularmente vivos em conteúdo.

Münzer foi a primeira estrela no firmamento do romantismo revolucionário e, graças a ele,

houve reviravoltas de grandes dimensões na forma de enfrentamento das classes dominantes.

Antecipou-se em dois séculos do romantismo do século XVIII e tornou-se o prenúncio de um

movimento que transformaria a ética e a política moderna. O conceito do mundo como

atividade criativa, central no romantismo, faz eco na admiração romântica pelos mártires e

aqueles que se sacrificam em nome de um ideal. Bloch não os menospreza pela virtude

74

―éclipse de soleil‖.

75

―[...] à proprement parler la consciência mytologique, prophétique et utopique chez Marx‖.

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espiritual, sincera e intensa, considerando a motivação atributo necessário ao espírito

revolucionário.

Essa atitude renova os valores de liberdade e felicidade, opondo-se ao individualismo

e à passividade niilista. Löwy (1985) em Le Romantisme Revólutionnaire de Bloch et Lukács

destaca os traços mais vivos do romantismo revolucionário: a crítica à civilização industrial

burguesa, a reflexão sobre o passado, mas com o pensamento voltado para um mundo novo,

de conteúdo anticapitalista, a valorização da ética e notadamente o sonho utópico. Em Revolta

e Melancolia, Löwy (2015), volta ao tema com visão muito mais ampla. Refaz os caminhos

de Marx, Rosa Luxemburgo e Lukács na controversa rota do romantismo. Marx, em O

Manifesto Comunista, rompe com o ―romantismo juvenil‖ dos tempos em que foi

influenciado pelo hegelianismo de esquerda e pela Naturphilosophie (Filosofia da Natureza)

de Schelling, mas não perdeu a marca da crítica romântica ao capitalismo. Não era um

romântico, mas foi graças ao romantismo, explica Löwy (2015, p. 130) que pôde melhor

perceber a sua dívida intelectual para com a filosofia das Luzes e com a economia política

clássica nos seus ―limites e contradições‖. Essa peculiaridades ficam muito nìtidas em os

Manuscritos de 1844 e em O Capital nas acusações quanto ao caráter ―desumanizante‖ do

capitalismo.

Em Rosa Luxemburgo, que como Marx é, na aparência, o oposto do Romantismo,

Löwy (2015, p. 136) identifica nas suas obras ―componente românticos inegável‖ que se

manifesta no ―interesse apaixonado‖ pelas comunidades pré-capitalista, que ela designa como

―sociedade comunista primitiva‖, presente em seu pensamento econômico. ―Para ela,

portanto, trata-se de encontrar e ―salvar‖, no passado primitivo, tudo o que possa, ao menos

até certo ponto, prefigurar no socialismo moderno em atitude típica da visão romântica

(revolucionária)‖ (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 132).

Os escritos de Rosa Luxemburgo sobre esse tema são muito mais do que um

vislumbre erudito de história econômica: sugerem uma maneira diferente de

conceber o passado e o presente, a historicidade social, o progresso e a

modernidade, cuja afinidade com certos aspectos do romantismo

revolucionário é significativa. Ao confrontar a civilização industrial

capitalista com o passado comunitário da humanidade, Rosa Luxemburgo

rompe com o evolucionismo linear, o ―progressismo‖ positivista e todas as

interpretações insipidamente ―modernizadoras‖ do marxismo que

predominava em sua época (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 137).

Lukács escolhe o caminho não do comunismo primitivo, mas do universo grego

homérico, o Renascimento, a espiritualidade literária e a religiosidade russa, o misticismo

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cristão, hindu ou judeu, elementos que, na visão de Löwy (2015, p. 137-8) revelam, de

maneira ―flagrante‖, a sua atitude romântico-revolucionária. Em História e consciência de

classe, Lukács parece, na interpretação de Löwy (2015, p. 139), se afastar do romantismo,

mas é só na aparência: o romantismo se faz presente, sobretudo, quando compara ―a

submissão capitalista de todas as forma de vida à mecanização e ao cálculo racional com ‗o

processo orgânico da vida de uma comunidade‘ com a aldeia tradicional‖. Na realidade,

entende que o livro ―é inspirado em ampla medida pela sociologia alemã de matriz

romântica‖.

Esse percurso atormentado e contraditório, do qual ainda não temos todas as

chaves, revela o pensamento de Lukács, assim como Hans Castorp, o herói

do seu romance favorito – A montanha mágica -, que oscila constantemente

entre dois polos: o de um ―Settembrini progressista‖ e o de um ―Naphta

revolucionário‖.76

Não foi dado a Lukács superar as antinomias de seu

próprio pensamento por uma síntese dialética que superasse a contradição

entre romantismo e capitalismo (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 149).

Bloch fez parte dessa corrente de pensamento, sobretudo nas suas obras primeiras. Na

reedição nos anos 60 de Thomas Münzer, Teólogo da Revolução apresenta Marx e Münzer

como ―romantiques révolutionnaires‖ e defende a tese de que entre ambos existe uma linha de

continuidade revolucionária (LÖWY, 1985, p. 108-9).

Thomas Münzer é analisado por Löwy como uma obra romântica em que Bloch vai

encontrar a comunidade cristã em meio aos camponeses alemães e se afasta do período gótico

por passar a considerar que na época gótica o povo era oprimido pelo Estado eclesiástico.

A articulação entre romantismo e marxismo, persistente também em Lukács, segundo

Löwy (1985), não é contraditório com o pensamento de Marx e surgiu na obra de Bloch entre

1917 e 1923. A corrente do romantismo revolucionário foi inaugurada, prossegue Löwy

(1985) por Rousseau com a nostalgia do passado – incentivando o romantismo

revolucionário, mas com um olhar para a frente, o que contrastou com o crescimento de uma

vertente reacionária do romantismo tendo como palavra de ordem a luta contra a superação do

capitalismo.

Socialmente, o Romantismo pode ser inócuo, mas, em termos revolucionários, irradia

a negação do que é obsoleto e ultrapassado, com a instigação ao conflito e à mudança.

Conduz para fora das circunstâncias inatas, bem como para fora daquelas que estão postadas

76 Pacifista, Setembrini, é o adepto fiel do progresso, da civilização e do humanismo. Naphta, o jesuíta de

família judaica, é um personagem fortíssimo: nacionalista que advoga o valor da guerra, anuncia o conflito

mundial que se aproximava. As longas mas profundas discussões entre Naphta e Setembrini concretizam

também a oposição entre o tradicional e o moderno, o conservador e o progressista.

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em torno da vida (BLOCH, 2006b, p. 137). Mas o romantismo não é, como se possa imaginar

uma corrente estética ou literária, se tratando, na definição de Löwy (1985), de um

―verdadeiro Weltanschauung (Visão de Mundo), com manifestações em todos os campos da

vida.

O romantismo revolucionário, portanto, é arauto da metamorfose humana. Originário

de causas econômicas principalmente, une-se, numa mesma ―linha de fogo‖, com a utopia

concreta de rebeldia e transgressão. ―Sofrimentos amargurados‖ ―felicidade impedida‖ e

―sonhos acordados‖ adiados pela insuficiência do mundo, não acontecem apenas no ―mundo

do amor‖, como no Jovem Werther de Goethe, mas pertencem à ―embriaguez‖ revolucionária

da juventude, como foi o ―tumulto reivindicatório‖ do Sturm und Drang alemão. Os ventos

libertários pareciam anunciar a Revolução burguesa, que não aconteceu por falta de uma

burguesia, na Alemanha, para apoiá-la, mas confluiu para o ―transbordamento utópico‖ e o

despertar para o interesse humano (BLOCH, 2006b, p. 57-9). Havia ―a força iniludìvel da

empolgação‖, havia a sinceridade do novo e havia identidade da juventude com a

―metamorfose‖ (BLOCH, 2006b, p. 68).

O romantismo burguês, como foi o Sturm und Drang, se esvai. Precisa ir além do ideal

de transformar a sociedade e fundar-se na afinidade com a vida visível, mas, nesse ir além,

termina por se conformar à ordem estabelecida e fracassa. O romantismo revolucionário

também fracassa, mas o seu legado é diferente, porque não se funda no indivíduo perfeito e,

sim, na idealização: tem ânsia de ação, é ―otimismo militante‖ da sociedade humanizada, é a

própria filosofia desse otimismo, a esperança, culminando por renovar a razão revolucionária

(BLOCH, 2005, p. 197).

A linha divisória dos antagonismos entre o romantismo e o romantismo revolucionário

tenderia, na visão de Bloch (2006b), a volatilizar-se à medida que os horizontes da nova

sociedade se concretizassem, como topos da humanidade e como espaço de superação da luta

de classes. A significação do romantismo e da transformação da sociedade crescem juntas e se

interpenetram ao diálogo com a utopia. Nessa escalada, o trabalho emancipador, como

expressão do espírito humano, emerge como o mediador universal.

As gerações transmitem umas para às outras o sentido do trabalho, não somente com

relação às forças de produção, mas nas relações dos homens uns com os outros. Nunca pelo

conhecimento sensorial, que é limitado. A produção desenrola-se mesmo sem a compreensão

do significado social do trabalho, em particular, o trabalho árduo, o Ergon, que Hesíodo

considerava uma contingência humana, e Marx como uma necessidade a ser vencida.

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Bloch (2006b, p. 411), como Marx, entende que, sem o trabalho, nada pode ser

compreendido na história: ―O trabalho, mais que a matéria-prima e seu teor substancial, é que

gera todos os valores‖. Fourier no seu léxico – que incluiu definições do amor à felicidade, da

morte à música –, ao falar do valor do trabalho, considerava-o ―insuportável‖ e sugeria torná-

lo tão ―atraente como os bailes e espetáculos‖ (SAMPAIO, 1996, p. 37).

Sem o valor do trabalho, a história favorece o ilusionismo, com incidência em

compartimentos individuais e atos heróicos, sendo responsável pelo esmaecimento da

realidade. ―Para Marx, o ser humano trabalhador, essa relação sujeito-objeto existente em

todas as circunstâncias, é parte determinante da base material‖ (BLOCH, 2005, p. 259).

Explica: ―O trabalho é certamente o objeto mais importante existente no mundo que envolve

os homens‖ (BLOCH, 2005, p. 255).

O meio da primeira humanização foi o trabalho, o solo da segunda é a

sociedade sem classes, sua moldura é uma cultura cujo horizonte é

circundado exclusivamente por conteúdos de esperança bem fundada, como

sendo o ser-em-possibilidade mais importante, o ser-possibilidade positivo

(BLOCH, 2005, p. 208).

Diante do valor do trabalho, erguem-se os pressupostos para que o ser humano comece

a conhecer a fundo a vida que o cerca. E tome consciência de que a sua mediação não pode

ser anulada, porque a produção é cada vez mais central na construção da liberdade e na crítica

ao conceito capitalista de ordem. Prevalece, nitidamente, o conceito da ―pura coerção e da

restrição‖ quando a ordem deveria ser o ―suporte imanente‖ da sociedade (BLOCH, 2006a, p.

86).

O homem e seu trabalho tornam-se, desse modo, elementos decisivos no

processo do mundo, sendo o trabalho um instrumento de humanização

mesma; sendo as revoluções parteiras da sociedade vindoura, da qual a atual

está grávida; sendo a coisa para nós, ou seja, o mundo, a pátria mediada, em

função da qual a natureza se apresenta como possibilidade que mal foi

tocada, que apenas foi franqueada. O fator subjetivo disso foi a potência não

encerrada de mudar as coisas, o fator objetivo é a potencialidade não

encerrada da alterabilidade do mundo no quadro das suas leis, de suas leis

que, no entanto, também podem variar regularmente sob novas condições.

Os dois fatores estão constantemente entrelaçados, em interação dialética

(BLOCH, 2005, p. 244-5).

Fatores objetivo e subjetivo ocupam os espaços de possibilidades reais da história. A

potencialidade subjetiva é o elemento transformador e realizador; a potencialidadeobjetiva

significa o que é transformável e também realizável. Juntas, explica Bloch (2005, p. 245),

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condensam a ―potência-potencialidade‖ da matéria em processo, o que tornaria visìvel a

produção consciente da história. Assim, é possível ter consciência de que as riquezas não são

medidas pela quantidade e sofisticação das mercadorias, mas pela capacidade dos homens de

asproduzirem. Se o comunismo resultaria da socialização do capital, é porque este é uma

ficção, um valor abstrato, enquanto o trabalho humano é o construtor da produção. Reúne a

subjetividade e objetividade da realização, o possível real e o novum.

Por isso, é o trabalho vivo, cimento da união dos que produzem. Impulsiona o homem,

no seu processo de desalienação, de se aproximar daquilo que produz. Essa é uma das críticas

do marxismo ao capitalismo: o homem é impedido de se aproximar daquilo que produz,

reduzido ao valor de troca. O ―fetichismo‖ encarrega-se de anular o significado do trabalho

coletivo, fazendo o homem imaginar que a riqueza é igual às mercadorias.

Na extensa galeria de mediação, o romantismo revolucionário torna-se imprescindível,

pois guarda a esperança. Aparece, de um lado, em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie),

com a época gótica, a época de ouro da Idade Média, e em Thomas Münzer, Teólogo da

Revolução, com sua herética espiritualidade milenarista. O romantismo revolucionário

encontra-se, de outro lado, em O Princípio Esperança com a identificação de Bloch com a

causa dos pobres e escravizados, além da inabalável confiança no futuro.

Em Bloch, o comunismo agrário e camponês, religioso, herético e popular, leninista e

bolchevique, aurora dos novos tempos no passado, cede lugar à utopia revolucionária da

sociedade industrial e de massas, juventude dos novos tempos. Nas diferentes épocas, a

mediação do trabalho mantém-se desafiadora nas suas linhas de força. A comunidade

tradicional torna-se, com O Princípio Esperança, a sociedade moderna. Ganhou novo alcance

o protagonismo rebelde das massas. Cerrava-se o ciclo do trabalho sem voz, dominado, quase

imóvel. Ao despertar para a sociedade burguesa, se abria cotidianamente à mudança. A

desesperança escapa da inércia, o homem sente-se propenso a abrir os olhos para o arquétipo

utópico do bem supremo.

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2.6 LIBERDADE NA ORDEM, A ORDEM NA LIBERDADE

A essência da liberdade é carregada pela vontade, pelo elemento intensivo-

emocional que visa a irromper e se realizar irrestritamente. A essência da

ordem, por sua vez, tem a seu favor o elemento lógico perfeito, a

compreensibilidade do que se tornou bom ou foi bem-sucedido.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 87)

A liberdade pode ser esquecida pela ―miopia da luta diária e os mìseros triunfos nessa

luta‖, mas não corresponde a uma caricatura desenhada pela ordem (BLOCH, 2005, p. 432).

Na tensão entre a liberdade e a ordem, o realismo está em questão. Se o homem despertar para

a verdade ilusória, o capitalismo não poderá manter escondida a sua personalidade obscura, a

sua personalidade falsa, a ordem como argumento para negar a liberdade.

Na utopia blochiana, a liberdade flui da juventude dos tempos, em regiões utópicas,

como foi o ímpeto de revolta que a Revolução Francesa levou para dentro das massas e as

impeliu para derrubar a aristocracia de maneira ―especialmente contundente‖, que não

aconteceu na Alemanha: ―[...] economicamente atrasada, politicamente não treinada, os

sentimentos não se ligaram sem mais nem menos ao Iluminismo burguês oficiail‖ e logo o

que se viu foi o rosto do Estado policial (BLOCH, 2006b, p. 58). O engajamento da França à

Revolução trouxe, como desafio, a prática da liberdade, igualdade e fraternidade, de

conteúdos reais, que jamais se concretizoupor inteiro, porque a Revolução não aboliu a

propriedade privada. Na Alemanha faltou mediação utópica e o romantismo revolucionário do

Sturm und Drang se esgotou, como se dilaceradopela águia (ou abutre) de Zeus – que torturou

Prometeu no rochedo –, reativando esse mitológico símbolo da repressãono encarceramento

da liberdade pela ordem.

Seria nesse momento, se aqueles conceitos não se transformassem em lei, mas não em

prática libertadora, que deveria entrar em cena o conceito de libertar-se de ―algo‖ (Freiheit zu

Etwas). Englobaria a liberdade psíquica, a liberdade ética, a liberdade de ação e a liberdade de

olhar o mundo para a frente. Como ideias, liberdade, igualdade e fraternidade, são de fácil

compreensão e podem ser entendidas como o desejo humano de construir sua identidade.

Estavam presentes no cristianismo primitivo e na aliança entre burgueses e operários para

derrubar a aristocracia. A barreira da dificuldade encontra-se na prática de libertar-se da

herança cultural burguesa, como assinala Marx em O 18 Brumário de Luiz Bonaparte ao

referir-se às ―ilusões‖ de Cromwell e Robespierre. Protagonizaram revoluções vitoriosas, mas

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ocultaram de si mesmos a herança burguesa que limitava suas lutas (MARX, 2011, p. 118-

26).

Esse fio histórico enreda o homem e seus valores. Pode ser visto como um direito

natural, tanto como um corpo estranho à sociedade burguesa e da sua superestrutura jurídica,

mas na filosofia blochiana, a liberdade, a igualdade e a fraternidade são conquistas da

sociedade. Exigem luta permanente pela dignidade humana e da amplitude do conceito de

liberdade. Encerram o contraste entre o desejo do ideal burguês e a sua concretização.

Preludiam, para Bloch (2006b), que o nascimento da verdadeira história do homem

ainda não aconteceu, mas que as filosofias voltadas para o passado e o niilismo não resultam

em pressões dialéticas. A história, em processo, abre-se para o ainda-não que pode alcançar a

plenitude (a totalidade final) como desembocar no nada. Esse desfecho preocupa Bloch. Ele

se interessa em construir o futuro com os saltos de qualidade da vida presente. O sistema

filosófico blochiano faz parte desse propósito, objetiva o tempo-espaço e o inscreve nas

categorias de causalidade, processo e finalidade.

Não é por coincidência, que Bloch (2005) se refere à práxis revolucionária e ao ainda-

não-consciente ou que Hegel lembrava que o ―Espìrito‖ precisava superar a natureza e que

Marx destacava a ―humanização da natureza‖. Estão tratando de que a natureza parece ser

sinônimo de equidade, mas é a história humana que precisa caminhar nessa direção. A

diferença é que Bloch supõe ser possível influenciar o processo histórico se transformar o

conhecimento imperfeito das coisas e se converter o ―poder ser‖ em ―poder ser‖. Isso depende

da vontade humana, mas pode ser pensada como ―o possìvel objetivo real‖ (das objektiv-real

Mögliche).

Esse conceito não é inviável. ―O realmente possìvel principia com o germe em que foi

disposto o vindouro‖ (BLOCH, 2005, p. 235). Daì, o homem e seu trabalho serem ―elementos

decisivos‖ no processo histórico do mundo, sendo o trabalho ―um instrumento de

humanização‖ (BLOCH, 2005, p. 244). Esse processo não se completou, mas existe como

tendência histórica. Pode, portanto, ser mediado, desde que não fique prisioneiro de

construções abstratas. O sentimento de liberdade surpreendeu, por exemplo, Tocqueville ao

descobrir que, na América do Norte, nos idos de 1835-40, quando escreveu De la Démocratie

en Amérique, existia um coletivo burguês que, em nome da liberdade, equilibrava a balança

da individualidade e dos negócios (BLOCH, 2006b, p. 49).

No socialismo, o coletivo sem classes busca a liberdade por meio do utópico aberto de

modo que possa existir a equivalência do ―nós‖ com o indivìduo, no lugar da alienação

(BLOCH, 2006b, p. 55). A ordem exige, como disse Sócrates, a ―habilidade da parteira para

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trazer a criança à luz‖ (BLOCH, 2006a, p. 86). Assim que deixa de ser um jogo e preserva sua

caracterìstica de organização do ―reino da liberdade e da liberdade como reino‖ (BLOCH,

2006a, p. 87). Contrapõe-se à ordem burguesa que se sustenta em uma série de

eventualidades, tais como felicidade do lucro e destino, natureza humana e vocação humana,

direito natural e propriedade privada. A liberdade e a ordem concreta, pela ligação dialética,

procuram fazer da vontade humana o seu conteúdo. É isso que submeteria a ordem à

liberdade.

Em Marx, a liberdade faz-se presente no centralismo democrático, como lembra

Bloch, a ―organização conjunta de processos produtivos, é o plano comunitário unificado de

informação e do cultivo humano‖, nos moldes da Utopia de More (BLOCH, 2006a, p. 88).

Inexistindo a liberdade isolada da superação do domínio do capital, a desordem mascarada na

aparência de ordem ergue sucessivas barreiras à solidariedade e amizade social.77

Mas existiria, teoricamente, a liberdade concreta, a começar pela liberdade dos

homens socializados, transformados em produtores e que utilizariam a razão para realizar suas

trocas com a natureza e com outros homens em condições dignas (MARX; ENGELS, 2007, p.

93-106). Sem correlatos com a ilusão, sem que a realidade exiba a máscara da representação,

a liberdade conduzirá o homem para a causa do futuro. Transcender o abismo da

inconsciência, do sonho de perfeição e funde o querer humano com ―montanha‖ a ser

conquistada como expressão da realidade coletiva-individual (BLOCH, 2005, p. 433).

A busca dessa atmosfera de liberdade não pode se limitar à negação da estrutura

dominante, senão se perderia no labirinto da determinação do esclarecimento particular, não

na construção do universal. Deslizaria para uma comunidade ética, situando-se mais para o

―decreto do que constatação‖, tal como fizeram Fourier e Owen ou convergindo para as

construções lógicas no estilo de Saint-Simon, desejosas de substituir a emperrada máquina

social da burguesia por uma máquina perfeita, portanto, impossível de existir (BLOCH,

2006a, p. 134).

Inverter a sociedade da ordem pela sociedade da liberdade é uma exigência prática. A

subordinação da ordem à liberdade só se concretizará, porém, se a dialética materialista tomar

para si a transformação do homem real para que este transforme a sociedade, colhendo os

77

Em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie), Marx

defende a tese de que, na sociedade burguesa, a liberdade é ilusão, enquanto a ordem traduz a vontade

do Estado. Abstrata na forma, de conteúdo real na dominação, é elemento da existência, da conciliação e

permite camuflar os conflitos reais (MARX, 1982, p. 864-79). Além de tornar a filosofia dependente da

classe dominante, deixando-a entregue aos ―favores do poder governamental‖, esconde, sob o manto do

estado político, a barbárie da propriedade privada, que faz do direito, exceção e, do privilégio, a regra

(MARX, 1982, p. 879-97). De ―espìrito romano‖ e ―alma germânica‖, faz do Estado a propriedade privada,

faz da confiança o formalismo (MARX, 1982, p. 996-1018).

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frutos não só da libertação da sociedade burguesa, mas de si mesmo. Dessa forma, o conceito

de liberdade-ordem, em Bloch, aparece como um espaço de transformação superestrutural.

Como conceito transformador, não fala a linguagem dos heróis salvadores. É o desafio

dos fundadores do futuro. Nasceu e se aperfeiçoou do choque entre as forças econômicas que

brotam da Revolução Francesa e o antigo sistema de trocas. A sociedade ainda feudal recuou

e, em seu lugar, o comércio em larga escala e a manufatura se desenvolveram modelando a

liberdade individual.

A rebeldia foi condenada com sua exigência de submissão do homem ao Estado na

ordem temporal e, também, pela sua concepção do homem como ser decaído (BLOCH,

2006a, p. 239-4). Em nome da ordem, a Revolução Francesa viria a separar o direito da

moral, emancipando as leis das convicções interiores e opondo a sociedade solidária e a

felicidade de ser cidadão, o que Sócrates definia como ―a grande felicidade‖ à sociedade em

que o homem é o lobo do homem por direito (BLOCH, 2002, p. 60-9).

Bloch (2006b) pensa no mundo sem a semeadura das ilusões, com a liberdade

prometeica renovando a existência. Vislumbra um mundo sem confrontos entre ordem e

liberdade, sem que o sentido da antecipação seja algo irrelevante. Rejeita o entendimento de

que o homem, para ser livre, precisa ser um homem de negócios, dispor de privilégios e da

segurança burguesa. O homem de negócios considera o Estado como se fosse seu, e sua

ordem só pode ser rompida em uma hipótese: se o interesse individual estiver ameaçado. Essa

é a gênese da ordem no sistema burguês. A sua lógica volta-se para a produção e o lucro, não

para os direitos do homem.

No mundo da ordem, o homem é excluído. A ordem tornou-se um positivismo, invade

todas as instâncias da vida, da sistematização da filosofia à arquitetura, da limpeza,

pontualidade à opressão e às diferenciações de classe. Para além da justificativa de ter sido

construída, acondiciona seu valor no propósito de excluir da vida manifestações de emoção.

Caracterizam a ordem, a aparência e, supostamente, a eliminação do acaso.

O ponto comum de todas as manifestações da liberdade é a vontade de não

serem determinadas por algo alheio ou alienante à vontade, mas o ponto

comum das manifestações da ordem é o valor de esta ter sido construída, de

se ter desembaraçado de qualquer situação em que a emoção ainda se

justificava. É esse elemento, alçado e chegado a seu lugar, sim, é essa

característica de reino que explicita, em mundos menos problemáticos que o

político, que jazem menos no maligno, o melhor repouso e que o explicita

como a melhor coisa (BLOCH, 2006a, p. 87).

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A liberdade, além de valorizar a emoção, tende a ser coincidente com a ordem

concreta e não mera representação que escapa à realidade e ao sonhar com o futuro: a vontade

manifesta da sociedade determina o êxito social, não as aparências. Uma coisa é ter o direito

de ser egoísta, de pertencer à sociedade burguesa, outra são os direitos do cidadão.78

Essa

identificação não é tácita. Nela, a ordem chega pelo entendimento entre os homens, não pela

imposição: ―Apenas a vontade de liberdade tem conteúdo, o termo ordem não possui

conteúdo próprio‖ (BLOCH, 2006a, p. 88-9).

Desse modo, o percurso do processo consciente da realidade é, de modo

crescente, o da perda do ser estático, fixado e até hipostasiado, o processo de

um nada crescentemente percebido, então certamente da utopia. Esta, então,

abrange totalmente o ainda-não, bem como a dialetização do nada do

mundo: ela, no entanto, tampouco escamoteia, no possível-real, a alternativa

aberta entre o nada absoluto e o tudo absoluto. A utopia é, na forma

concreta, a vontade testada rumo ao ser do tudo: nela, atua, portanto, o

páthos do ser que, anteriormente, esteve voltado para uma ordem do mundo,

até uma ordem do supramundo, bem-sucedida, supostamente fundada no

mundo já acabado (BLOCH, 2005, p. 307).

Bloch (2005) acrescenta que a chave para o reino da liberdade situa-se na consciência

não alienada de fazer da ordem a melhor sociedade possível para o Homo homini homo (o

homem ser humano para ser humano). Não é a ordem estática, nem a ordem daqueles que

temem as mudanças do mundo. Seria uma ordem empolgante, não uma ordem voltada apenas

para os interesses do pragmatismo comercial ou a uma sociedade despida de senso

humanístico.

Talvez, por isso, Marx escreveu, de forma ―concisa e antitética‖, a Tese 11 sobre

Feuerbach: ―Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de diferentes formas;

trata-se, porém, de transformá-lo‖ (BLOCH, 2005, p. 271). A frase é crucial. Designa a

diferença radical da filosofia marxista das suas antecessoras. Não significa que todos os

filósofos tivessem sido, até então, contemplativos. Quer dizer que o suporte da transformação

do mundo encontra-se na filosofia materialista, de Demócrito e Epicuro aos materialistas

franceses do século XVIII (La Mettrie, D'Holbach e Diderot) aos materialistas alemães,

anteriores a Marx e Engels, tal como Feuerbach. A Tese 11 significa que a filosofia deixava

78

Bloch refere-se a essas questões Droit Naturel et Dignité Humanine (Narurrecht und menschliche Würde),

citando A Questão Judaica e A Sagrada Família de Marx. Destaca que as mudanças acontecerão quando o

cidadão se descobrir como força política e portador da liberdade socialista (BLOCH, 2002, p. 212-4).

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de ser condenada à não realização para se realizar. Essa concepção rompe as muralhas do

idealismo e abre as portas para a criatividade.79

Com as Teses sobre Feuerbach, Marx, segundo Bloch (2005), trouxe para a filosofia a

primeira grande dimensão da potência-possibilidade humana de andar ereto ao ver, no ser

humano trabalhador, a raiz concreta da transformação. O que antes era possibilidade em

latência, tornou-se realidade possível, imagem do desejo (Wunschbild), ideal humano

concreto.

Pelas Teses, o homem não seria mais explicado por si mesmo, mas pelas relações da

sociedade de classe. E a liberdade seria erguida a um novo patamar de compreensão: seria a

liberdade para criticar a propriedade privada e o egoísmo do lucro que isola o homem da

totalidade social e o degrada por torna-lo solitário. Não só a liberdade para o indivíduo

egoísta, mas para todos os homens. Não o direito natural do homem, mas a comuna de

liberdade.80

Nessa linha, assinala o rejuvenescimento do direito natural com o direito materialista e

utópico. O parâmetro do direito natural rousseauniano instalou o conceito de razão nas

relações sociais, mas Bloch (2006a) o critica não tanto pela falta de horizonte revolucionário

para conciliar a ordem social com a liberdade e dignidade do homem, mas pela sua visão ser

anterior ao proletariado da grande indústria. Abarcou a filosofia do seu tempo, mas não podia

conter a luz utópica dos tempos futuros. Não deixou de ser uma porta de entrada para a

dignidade humana, uma porta que rompe com a imobilidade que envolvia o tema desde os

antigos gregos e que, na visão de Bloch (2002, p. 231), se transforma numa vontade eterna

quando, com Marx, fica evidente de que o homem não é naturalmente bom ou mau.

A visão de que o homem é bom não foi monopólio de Rousseau, mas envolveu

também os anarquistas. Para eles, todo o mau provinha da Igreja e do Estado, dogma inverso

79

O Idealismo Alemão data de 1871 com a publicação da Crítica da Razão Pura e se prolonga por meio

século até à morte de Hegel. Entre seus principais pensadores estão também Fichte e Schelling. Em seu

conjunto, abriram passagem para Marx, a fenomenologia, o existencialismo, a teoria crítica e o pós-

estruturalismo, influenciando, ainda, a filosofia analítica e a tradição filosófica europeia e americana. Nasceu

da reação de Kant ao ceticismo de David Hume (1711-1776). Pretendia, na visão de Kant, suplantar o

dogmatismo com ―uma filosofia verdadeiramente moderna que estabeleceria e asseguraria os limites da

cognição racional e da ação‖, de conteúdo ―radicalmente‖ igualitário e libertador (DUDLEY, 2013 p. 13-26).

Schelling, na sua crìtica ao Idealismo alemão, deu ―impulso e direção‖ à filosofia pós-hegeliana, ao

considerar que a filosofia de Hegel era ―incapaz de oferecer valores que possam guiar a vida humana‖

(DUDLEY, 2013, p. 2).

80

Bloch trata do direito natural também em livro específico, Naturrecht und menschliche Würde

(Direito natural e Dignidade Humana, tradução nossa). O livro foi publicado em 1961. A luminosidade do

tema emana da sua obra. Faz-se presente com intensidade em O Princípio Esperança, com a defesa da

destruição de todas as relações em que o homem seja degradado, escravizado ou desprezado, prática que será

banida da Terra quando o homem for senhor da sua vida.

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ao pecado original. No marxismo, não haveria o sentimento especulativo, sim o não-existente

utópico a ser conquistado com a prática. Falta, alerta Bloch (2002), erradicar a ilusão de que a

burguesia possa aspirar que o homem seja livre e que tenha uma vida fora do trabalho, que a

burguesia tenha o mais vago interesse numa filosofia da natureza que não seja vazia de

conteúdo real. A realidade se encontra no terreno da desalienação humana e só a esperança de

mudança é que pode acender as luzes utópicas do amanhã.

2.7 ESPERANÇA PELA MUDANÇA DE VALORES, O HOMEM SEM MEDO DO

HOMEM

Os homens, assim como o mundo, carregam dentro de si a quantidade

suficiente de futuro bom; nenhum plano é propriamente bom se não contiver

essa fé basilar.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 433)

Se os homens são iguais perante a natureza, por que não o seriam perante os homens?

O problema da natureza merece protagonismo especial na obra de Bloch. Em Droit Naturel et

Dignité Humanine (Narurrecht und menschliche Würde), as reminicencias mitológicasda

comuna primitiva , sem Estado, sem guerras, onde imperavam as normas não escritas, estão

no direito natural de epicuriano e dos estoicos – que destacavam a dignidade da eudemonia –

e chegam a Roma com a tese embalada nas ideia, herdadas do estoicismo, de generosidade,

igualdade e aliança fraternal de classes (BLOCH, 2002, p. 22-31). Em O Princípio

Esperança, simboliza a incompletude da ―casa humana‖, onde a parte concluìdaombreia com

a parte inconclusa, mas com flagrante disposição do homem de dominar a natureza. Homem e

natureza se misturam em meio a um mesmo desafio de navegar nos rios do futuro e situar, no

caso do homem, a vontade de mudar no lugar do simples desejo ou da imobilidade.

Se de um lado Bloch descreve o homem como um ser sozinho, mas próximo de si

mesmo ou que, dialeticamente, assume sua alienação e pode ver através dela, de outro lado, a

natureza aparece como o sìmbolo do sentido ―natural‖ do bem supremo na vida humana.

Bloch fundamenta-se em observações de Pitágoras, Platão, Galileu, Paracelso, Jakob Böheme,

Leibniz, Kant, Schelling e Marx ou ainda em Vasari, Cézanne e Picasso. Mas não se afasta

dessa necessidade humana de ser igual aos outros homens, mesmo que disso não tenha

consciência. E de viver integrado à natureza, o que nos dias atuais se denominaria de

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ecosocialismo, a integrar socialismo e ecologia contra o caráter destrutivo (e niilista) do

capitalismo.

E em O Princípio Esperança, Bloch (2006b, p. 433) procura uma análise ampla: ―A

natureza fala a nós figuradamente nas suas belas formas e o dom da interpretação de sua

escrita cifrada nos foi concedido no senso moral‖. E, depois, cita Galileu:

O verdadeiro livro da filosofia é o livro da natureza, que está sempre aberto

diante dos nossos olhos. Ele, no entanto, está escrito com letras diferentes

daquelas do alfabeto; as letras são triângulos, quadrados, círculos, esferas,

cones, pirâmides e outras figuras geométricas (BLOCH, 2006b, p. 434).

Esses pensamentos têm suas raízes em Pitágoras e Platão, com suas investigações em

torno de uma escrita da natureza composta de números, mas foi quem Paracelso estudou

sobretudo sob a perspectiva da natureza do ser humano, ainda segundo Bloch.

Paracelso diz no livro Paramirum: ―O que na Terra é ferro, no ser humano é

a bìlis, no céu é Marte‖: essa correspondência astrológica proporcionou,

neste caso, a coesão aos arquetípicos-coisas, de cima para baixo, de baixo

para cima, perpassando o cosmos, ou melhor, proveu o fundamento para a

sua analogia supostamente objetal. Entretanto, da mesma forma, cada

―natureza‖ mantém a sua autonomia, a da sua assinatura, que para Paracelso

designava o aspecto morfológico ora do gênero, ora do ―caráter‖ individual.

Jakob Böhme, seu discípulo em muitos aspectos, escreve no livro De

signatura rérum o seguinte sobre esse caráter bem delineado: E não há coisa

nenhuma na natureza das que foram criadas, que não revele também

exteriormente a sua forma interior. É assim que reconhecemos, na força e na

conformação deste mundo, como a essência se revela na parição de uma

metáfora, de modo que vemos tal coisa nas estrelas e nos elementos, tanto

em criaturas como em árvores e ervas (BLOCH, 2006b, p. 434-5).

As assinaturas reveladoras do interior e do exterior do homem, como acontece na

natureza, é o que Bloch procura ao voltar-se para Paracelso e o legado pitagórico. De sorte a

estabelecer correspondência na morfologia da natureza com a necessidade do bem comum, o

chão primeiro do homem, de ―sua essência, de longinquidades profundas‖ (BLOCH, 2006b,

p. 439). Os argumentos são utilizados para assinalar um acontecimento histórico carregado de

futuro bom: embora jamais tenha alcançado a igualdade real entre os homens, o direito natural

clássico, na sua integração com as utopias, cumpriu parte do seu papel transformador. No

longo curso da história, iluminou a queda do despotismo dos príncipes, do despotismo

patriarcal e do despotismo esclarecido.

Juntou-se a isso a defesa de um mundo sem corrupção em que a democracia

significaria a dignidade humana. Aquilo que havia de racional no conceito irradiou-se nas

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forças políticas da Revolução Francesa, imbricou-se com os bens materiais e foi absorvido

pelo Estado burguês como proteção da propriedade. Mas causou impactos em meio ao

trabalhador e sua organização e se tornou parcial, porque não avançou do direito individual

para o universal. Misturou-se com o direito à propriedade privada dos meios de produção,

com o direito à livre concorrência, aos monopólios, porém não tomou partido dos humilhados

e se tornou a matriz do direito da sociedade burguesa. Essa foi a sua limitação, como de resto

da própria Revolução Francesa.

Ao tratar dessas realizações incompletas, Bloch argumenta que, na sociedade

socialista, o direito positivo irá desaparecer, por força da abolição da sociedade de classes.

Seria um pensamento utópico concreto. A beleza humana deixaria a caverna dos artifícios

para se apresentar ao sol da existência. No ambiente de dignidade, a boa alimentação, a

moradia e a educação fariam parte de uma ―infância despreocupada‖ (BLOCH, 2006a, p. 17).

Da Revolução Francesa, o direito natural herdou aquilo que Bloch define como

―museu dos postulados jurìdicos‖ (BLOCH, 2002, p. 223). Limitou-se, na sua versão clássica,

ao direito positivo. A fórmula consagrada na consigna jacobina de Liberdade, Igualdade,

Fraternidade tornou-se abstrata. Reduziu-se a um direito intangível da vida humana,

individual.

Marx (1982) condenou essa limitação e reivindicava da Escola Histórica do Direito81

tributária do direito alemão medieval da servidão e do Estado, não um relativismo, mas um

direito efetivo, comum a todos os homens, com o Estado cedendo lugar à ―comunidade de

interesses‖ (MARX, 1982, p. 1661).82

Nesse particular, distinguia o direito natural do ancien

régime, do direito natural de Kant, que era a autêntica contribuição da filosofia alemã à

Revolução Francesa, produzida pelo sentimento de ―uma dignidade nova‖ (BLOCH, 2002, p.

225). Mas essa não chegou a existir.

O elemento decisivo para o futuro – a mudança de valores pela práxis – não foi

alcançado. Vejamos um exemplo ilustrativo, citado por Bloch (2006a, p. 106-16), Fichte, no

81

Surgida no início do século XIX, na Alemanha, sob a influência do romantismo que influencia a

preponderância da razão história sobre a razão abstrata, a Escola Histórica do Direito foi precursora do

positivismo normativista. Nas palavras de Ureña Pastor, simbolizou a renúncia da burguesia, a ―todo intento

de construção jurídica nacional, o que trouxe consigo a acomodação ao que estava dado e inconcluso‖

(PASTOR, 1986, p. 360).

82

Na sua crítica à Escola Histórica do Direito, Marx argumenta que nada na natureza autoriza o homem a

explorar outros homens e que a propriedade privada dá base à servidão (MARX, 1982, p. 225-9). Em A

Sagrada Família, considera os direitos inerentes aos homens e o Estado, portanto, não pode ser confundido

com a humanidade, como não se pode confundir emancipação política com emancipação humana. O homem

é essencial e base de todas as atividades e condições humanas, não permitindo a confusão de meios humanos

com meios políticos para a sua emancipação (MARX, 1982, p. 519-28).

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escrito O Estado Comercial Fechado (Das Geschlossene Handelstaat), elaborou uma utopia

social confinada num estado fechado, de felicidade socialista, em que o direito natural se

resume no lema ―viver e deixar viver‖. Não individualista, o Estado não defendia a

propriedade privada e, para ter o domínio da terra, o camponês precisa cultivá-la. O homem

poderia dispor do seu corpo, da propriedade, desde que a torne produtiva, e da liberdade,

sendo esta limitada pelos próprios indivíduos. A terra tem que ser concedida pelo Estado, e o

direito à produção regeria as relações entre os homens.

Era como se fosse um retorno às antigas guildas, uma utopia anticapitalista regressiva,

o que não se encontrava totalmente ausente na nostalgia do medievo de Saint-Simon

(BLOCH, 2006a, p. 106). Pensamento equivocado, segundo Bloch (2006a), não deixou de ter

seu lado positivo pelo sentimento humanista. E por ―desmascarar‖ a ―harmonia de interesses‖

da oferta e da procura, pressuposta por Adam Smith na livre concorrência – em lugar da ―livre

luta de interesses" –, além do fato de Fichte, em sua utopia, pregar a extinção do exército, da

nobreza feudal e a organização dos trabalhadores.

Fichte reduzia drasticamente os lucros do comércio e, em seu socialismo de Estado,

considerava o ―Estado absoluto‖, incentivava a ―arte da razão‖ e a ―harmonia de indivìduos

educados, moralmente emancipados como reino das belas almas‖ e do socialismo num único

país, a saber a Alemanha (BLOCH, 2006b, p. 109). Sonhava em criar uma ―comunidade de

eruditos‖ cooperativas de produção de trabalhadores, lastreando a transição futura para o

socialismo.

Diferentemente da utopia de Fichte, os valores da burguesia continuam a se impor e,

entre outras razões, existiu o fato da juventude continuar sendo educada nos moldes da Escola

Histórica do Direito, que ensinava a aceitação da realidade tal como ela é considerando-a

como a fonte do exercício da razão. Não se alcançou a liberdade, pretendida por Lenin, de que

a cozinheira fosse capaz de ―Governar o Estado‖ (BLOCH, 2006a, p. 109). Fichte carecia de

premissas políticas para tal, mas não a consideraria impossível: concebia a gestão do Estado

como decorrente de um plano racional.

É entre esses dois polos – a aceitação da realidade como ela é e o engajamento na

transformação da realidade – que o pensamento de Bloch se instaura como força de

expressão. Exprimir não significa apenas constatar, compreender, mas anunciar ativamente a

consciência da dicotomia da necessidade de liberdade e transformação ou da ordem e da

resignação. O que Bloch desejava exprimir era: o socialismo não pode se resumir à nação

germânica. Afinal, a utopia concreta acredita ou não acredita no progresso humano? A base

da esperança de Fichte poderia ser o homem alemão, que ele acreditava conter o ―gérmen‖ do

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aperfeiçoamento humano, mas a utopia de Bloch era universal: entre o individuo e a

humanidade, ficava com a humanidade (BLOCH, 2006a, p. 109).

Bloch (2006b) debruça-se também sobre utopias de futuro pós-marxista como News

from Nowhere (2002) de William Morris.83

O autor repudiava o capital, por considerá-lo

imoral e sem estética humana, como era contra toda forma de mecanização da existência.

Considerava o capitalismo ―feio‖, ―destrutivo‖, ―não natural‖ e defendia um ―socialismo

artesão, um socialismo de produção caseira‖, partindo da percepção de que as fábricas eram

―a totalidade da peste da Idade Moderna‖ e teriam que ser afastadas (BLOCH, 2006b, p. 168-

9).

Morris prega nada mais que a radical mudança de valores, mas Bloch (2006a) o

interpreta, como um utopista ―voltado para trás‖, que visava ao progresso por meio do retorno

ao campo, sem ―intenção polìtica revolucionária‖ (BLOCH, 2006a, p. 169). Era um

romântico, mas regressivo. Como John Ruskin, seu amigo e referência, não era reacionário,

segundo Bloch (2006b, p. 169), mas visava ―o progresso a partir de um posto abandonado: a

reação agrária e artesã em prol de um recomeço revolucionário‖.

Bloch (2006a) cita, também, o americano Edward Bellamy.84

Em Looking Backward:

2000-1887 (traduzido como Daqui a Cem Anos: revendo o futuro), narra a história de um rico

homem de Boston que é soterrado, mergulha em sonho magnético e, ao despertar, no ano

2000, encontra uma América igualitária, sem favelas, bancos, bolsas de valores, tribunais e

sem a circulação de dinheiro. Bloch considera Morris parte da intelectualidade ―ingênua e

sentimental, de cunho neogótico e revolucionário a um cìrculo restrito‖, que deseja um

―capitalismo retificado‖ em lugar de superá-lo; com Bellamy, quase a mesma acidez: não há

intenção reacionária no romancista, mas a utopia é a versão do socialismo centralista limitado

aos ―desejos tìpicos do pequeno burguês bitolado‖ (BLOCH, 2006a, p. 167-9).

83

William Morris (1834-1896), escritor de muitas habilidades, nascido na Inglaterra, era arquiteto, desenhista e

artesão inovador. Ativista político, estava interessado em saber como a sociedade iria mudar, título do

capítulo XVII de News from Nowhere (Notícias de lugar nenhum), seguindo as indagações formuladas por

Thomas More e William Blake. Como seu mestre, John Ruskin, estava comprometido a criticar o mundo à

sua volta. Ao contrário de Ruskin, procurava criticar o socialismo no interior do socialismo. Foi um

revolucionário político, um dos socialistas mais conhecidos da Inglaterra. Rejeitava a guerra e a violência.

Era cético quanto aos modelos de progresso gradual. Seus personagens eram inocentes, mas ambivalentes

quanto aos visitantes. Talvez, por não esquecerem as lições da história (MORRIS, 2002, p. 11-49).

84

Edward Bellamy (1850-1898) foi educado nos Estados Unidos e na Alemanha. Estudou direito, economia e

foi jornalista. Começou a publicar ficção em 1879 e foi inspirador de um movimento socialista que prometia

justiça econômica, inovação tecnológica, trabalho universal e igualdade social. Considerava a tecnologia o

antídoto contra o darwinismo capitalista (BELLAMY, 1996, p. V-VI). Procurou comparar o século XIX ao

século XXI, abrindo-se ao novo: a Idade do Ouro estava no futuro, não no passado.

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Enquanto criticava Morris e Bellamy, Bloch também não podia deixar de reconhecer o

inconformismo que os diferenciava daquilo que na Alemanha foi denominado do

―romantismo resignado‖ ou ―Kathedersozialismus” (―socialismo de cátedra‖). Löwy (2015)

o identifica na virada do século XIX para o século XX nos cìrculos do ―mandarinato

universitário‖, caracterìsticos de uma época em que as relações industriais apareciam como

irreversíveis, sem possiblidade de retorno à época pré-capitalista. A partir e então o embate

romântico se daria entre cultura e civilização (Kultur e Zivilisation). A ideia de Gemeinschaft

como organismo vivo e preponderante tinha se volatilizado. Bloch percebeu a mudança dos

tempos. Como percebeu a emergência do romantismo liberal (reformista) e do romantismo

conservador (que ambicionava a imobilidade do mundo).

Bloch (2006a) não se deixa iludir pelas palavras, nem pelos sonhos. As duas utopias

românticas – Morris e Bellamy – diferem, é verdade, das utopias conservadoras de Carlyle,85

partidário do neofeudalismo individualista que, apesar da ―rejeição ao mundo industrial‖,

apelava à filantropia dos exploradores, comuns a todos os planos pré-marxistas de melhoria

do mundo (BLOCH, 2006a, p. 170-1). Carlyle, para Bloch, sofria com a expansão das

fábricas, mas como Saint-Simon considerava o operariado frágil na sua organização, embora

vivesse em outra época, justamente quando o operariado despertava e entrava em choque com

a burguesia.

Morris e Bellamy ainda se diferenciavam de utopias futuristas como aquela de H. G.

Wells, no século XX, com a idealização de uma Arcádia em que socialistas burgueses,

democráticos, assumiam o poder e, seguindo a escola liberal-burguesa, faziam os homens

viverem como deuses (BLOCH, 2006a, p. 171-2). É um idílio futurista, Man like Gods, mas

como as utopias burguesas terminam em ―disparates‖, resume-se a um capìtulo ―exótico‖ na

história das utopias sem o germinar da utopia social. Teoricamente, segue a utopia de

Proudhon e o socialismo se limita aos meios de pagamento, já que o capital é abolido e não

produz mais-valia ou juros.

Há outras utopias reformistas, como o livro Progress and Poverty de Henry George

que pregava o confisco da terra sem prejudicar os ganhos do capital industrial e comercial.

Bloch (2006a) não os considera alquimistas do novum. Não via neles o esplendor da terra dos

85

Thomas Carlyle (1795-1881), tradutor de Wilhelm Meister de Goethe, escreveu a História da Revolução

Francesa, que marca o inìcio da sua trajetória como escritor. Bloch o considera ―muito moral‖, no princìpio,

―patriarcalista‖, mais tarde, tendo influenciado com seu pensamento o ―culto ao Führer‖, sendo o primeiro a

estabelecer a relação líder-seguidor na sua utopia reacionária e tardia do neofeudalismo industrial (BLOCH,

2006a, p. 170). Concebia o liberalismo como a ―raiz de todo o mal‖, imaginando ―aguçada‖ consciência de

classe do proletariado.

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fracos, de Canãa ou do jardim do éden, mas um graal rodeado por antigos tabus. Paliativos

―ridicularizados‖, como aconteceu com o ―socialismo do coração‖ de Bellamy, nada mais do

que a indisposição para admitir as ―contradições‖ entre capital e trabalho a que se referiu

Marx (BLOCH, 2006a, p. 173).

Na reverberação das utopias, Bloch (2006a) condena os que se ―esquivam‖ de

localizar o duelo entre o capital e o trabalho, entre a era do ―pequeno cidadão‖ e dos ―grandes

lucros‖, entre a ―superprodução‖ e o ―emprego garantido‖ e a ―utopia social sem brincadeira e

descaminho‖, que seria a utopia concreta da revolução resultado das utopias antes e depois de

Marx (BLOCH, 2006a, p. 163-4). Distingue a voz da dialética materialista no mundo em

ebulição e em movimento antecipatório, visível ou não. Ouvi-las, visualizá-las, torná-las

realidade exige o abraçar do espírito do novum e das luzes no que se refere ao valor humano.

O esclarecimento que falta nessas vozes é ―a rejeição do homem à tutela que ele

próprio se impõe‖ (BLOCH, 2002, p. 9). Desdobra-se no despertar da percepção do homem

para a realidade de que o capitalismo é restrito, há muito exaurido, sem vínculos com o

conceito filosófico da antecipação e da realidade, mas é dessa não antecipação que a

sociedade burguesa se nutre.

A filosofia marxista é a do futuro, portanto também a do futuro no passado.

Ela, assim, nessa consciência de linhas de frente unidas, teoria-práxis viva

tendência compreendida, teoria-práxis afeita ao evento, conjurada com o

novum. E permanece sendo decisivo o seguinte: a luz em cujo brilho o todo

como processo inconcluso e retratado e promovido chama-se docta spes,

esperança compreendida em termos dialético-materialistas. O tema

fundamental da filosofia, de uma filosofia que permanece e é enquanto vem

a ser, é a pátria que ainda não veio a ser, ainda não alcançada, assim como

ela está se formando, construindo-se na luta dialético-materialista do novo

com o velho (BLOCH, 2005, p. 19-20).

A filosofia do vir a ser não se encontra vigorosamente em curso, porém existe para

aqueles que têm o novum diante de si. Essa tendência é identificável facilmente em Bloch

(2006a) quando encontra na filosofia da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento

elementos da mediação utópica. No Renascimento,86

o trabalho perdeu o caráter degradante

86

Pelas páginas escritas por Bloch (1974) sobre a filosofia renascentista, circulam Marsilio Ficino, autor

das primeiras traduções de Platão e Plotino diretamente do grego, antes feitas a partir do árabe,

imprimindo vitalidade e beleza aos conceitos; Tommaso Campanella, autor de A Cidade do Sol em cuja

filosofia une os conceitos de poder, sabedoria e amor, além da doutrina do Estado baseado na ordem que

influenciou o centralismo político espanhol; Paracelso, nascido Theophrastus Bombastus Paracelsus von

Hohenjeiom e Jakob Böheme: um médico e filósofo itinerante, o outro sapateiro culto, ambos dedicados a

estudar o homem e suas relações com a natureza, ambos confiantes do que o homem conduzirá o mundo à

sua essência autêntica; o filósofo Francis Bacon, autor de Nova Atlântica e Novum Organum, que Bloch

definiria como o renascentista dos novos tempos; e, ainda, Giambattista Vico, mesmo não pertencendo

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que ostentava nas sociedades escravistas da Grécia e da Roma Antiga, o que ele não nega,

deve-se à burguesia e ao capitalismo. Dos avanços, os mais expressivos seriam as mudanças

das bases do comércio e a ascensão da indústria e, como consequência, o amadurecimento do

valor do indivíduo.

O fenômeno renovador acontece no teatro, na pintura, na música, nas descobertas de

Cristóvão Colombo e Fernando de Magalhães, nos avanços da ciência e na vitória do

postulado heliocentrista. Ao descobrir as novas dimensões do homem e valorizá-las, o

Renascimento desafia os céus a trazer o paraíso para a terra, na forma da revolução

camponesa liderada na Alemanha por Münzer e nas viagens de circunavegação à procura do

antigo Éden.

A ponta de lança do princípio da esperança em Bloch (2006b) é a crença de que a

utopia vive no mundo: ―À distância, as coisas já acontecidas tornam-se menores, as esperadas

tornam-se maiores. Elas se alimentam da necessidade que se tem delas e crescem pelo fato de

encontrarem um ponto final‖ (BLOCH, 2006b, p. 367). Isto, filosoficamente, corresponderia à

proximidade da utopia, só que sem o ponto final dada à infinitude dos sonhos humanos.

A palavra utopia expandiu-se e foi banalizada no curso do tempo, tendendo a perder o

sentido e ser relegada a um plano inferior pela tecnologia e pela vigorosa ofensiva

conservadora e niilista. No passado, quando Bloch (2005) cunhou a expressão ―utopia

concreta‖, significava o nascimento de um mundo novo. Ao contrário da distinção entre

socialismo utópico e socialismo cientifico, na clássica definição de Friedrich Engels,

procurava unir as duas vertentes. A procura convicta de desenvolvê-la em The Spirit of

Utopia (Geist der Utopie), Thomas Münzer, Teólogo da Revolução e em O Princípio

Esperança, motivou Bloch a beber das teorias revolucionárias de Gustav Landauer (La

Révolution) e das experiências de Thomaz Münzer, da cultura romântica alemã e de certas

tradições culturais judaicas, como o profetismo e o messianismo (LÖWY, 2007, p. 165-7).

Com a dissolução da URSS, tornou-se sinônimo da impossibilidade, do irrealizável, de

algo sem base na realidade. Tornou-se, fonte da corrente filosófica da distopia, um mundo

estagnado pelas pesadas cortinas do autoritarismo, do totalitarismo, da ausência de liberdade,

do poder elitizado e da violência banalizada. Mas essas são situações provisórias, não

definitivas, decorrentes dos impasses do socialismo. Talvez, não uma secularização, nem um

cronologicamente ao Renascimento, que com sua obra maior, a Ciência Nova, influenciou Hegel e Marx,

com a tese de que ao homem é dado apenas o conhecimento da história feita pelo próprio homem. Em

consequência, apenas a história como ciência pode ser conhecida como exata. O painel filosófico

renascentista completa-se com os pensamentos de Galileu Galilei, Thomas Hobbes e Nicolo Machiavel (Cf.

La Philosophie de la Renaissance, de Ernst Bloch, 1974).

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retorno repetitivo, mas, sim, um questionamento criativo e renovador. Para que essa

renovação se efetive, a liberdade não pode ser esquecida, o que se entrega ao olhar sobre Rosa

Luxemburgo nesta citação de Bloch: ―Não há democracia sem socialismo, não há socialismo

sem democracia‖ (BLOCH, 2002, p. 240). Havendo democracia e socialismo, haveria,

naturalmente, liberdade e ordem.

Em Bloch, o homem é o criador da própria história. E na ascensão da burguesia,

encontram-se os germes sua negação do sistema que impõe, tais como o direito natural à

igualdade e à riqueza do poder baseada no trabalho. A utopia concreta torna-se, desse modo,

convite imperecìvel à visão da ―realidade como realidade‖ (BLOCH, 2006b, p. 462). ―O

amanhã‖, entende Bloch (2006b, p. 461), ―vive no hoje e sempre se está perguntando por ele‖.

A pergunta repete-se e ganha formas diferentes em diferentes épocas. Das utopias da

Antiguidade e da Idade Média ao confronto entre a Utopia de More e a Civitas Solis de

Campanella, as utopias sociais do amanhecer do século XIX e a filosofia marxista. Como

retrato da antecipação da história humanizada, fica o espaço da possibilidade de que ―o

homem se sentirá em casa‖ ao estar no mundo (BLOCH, 2006a, p. 477).

Estar no mundo significa despertar, não se deixar levar pela corrente alienante do

niilismo e da distopia. Significa mais, como escreve Bloch (2006b): não suspender a ―antìtese

congelada lucidez-entusiasmo‖, colocando ambos no ―mesmo patamar e permitindo que

cooperem, em prol da antecipação exata da utopia concreta‖ (BLOCH, 2006b, p. 454).

Lucidez e entusiasmo se somam.

A liberdade humana se desenvolve como horizonte permanente da utopia concreta e

do romantismo revolucionário. Só assim, com essa união, a história do socialismo irá avançar

e se revelar rica em conteúdo, libertando-se do servilismo, da divisão do trabalho, tornando-se

ele mesmo, o socialismo, ―necessidade vital‖ (BLOCH, 2006b, p. 455). O aprendizado

prático-teórico da conjugação lucidez-entusiasmo, expulsa o elemento irracional da vida que

não pode persistir: a estrada inexplorada do ―para quê‖. Como não há questionamento do que

se faz, o que exigiria o homem perguntar para quê, para onde e por que, torna-se mais fácil

sonhar que se é humano sem ser, ensinar o marxismo sem praticá-lo, falar de ter fé sem que a

fé exista. E se torna cômodo considerar que o destino é inevitável, desconhecer que o novo é

uma possibilidade. Retira-se o futuro da realidade, deixa-se o não-mais-ser, a inação.

Transitará o homem da imobilidade para o movimento?

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O inimigo mais renitente do socialismo não é apenas, como é compreensível,

o grande capital, mas igualmente a quantidade de indiferença, a ausência de

esperança; se não fosse assim, o grande capital estaria isolado. Senão não

haveria, apesar de todas as falhas na propaganda, essa delonga para que o

socialismo inflame a esmagadora maioria, cujos interesses estão do seu lado

sem que ela o saiba. Portanto, o pessimismo é a paralisia pura e simples, ao

passo que o otimismo mais degenerado até pode ser a anestesia da qual ainda

se pode acordar (BLOCH, 2005, p. 422).

Bloch (2006b) se propõe a ampliar o conceito de consciência revolucionária, a rever

os vínculos entre a filosofia marxista, a psicanálise e o sentido do sonhar com uma vida

melhor. Sugere que existem opções para ignorar a realidade, tão eficientes quanto aquelas que

se dispõem a revelá-la. Nesse jogo de luz e sombra, ambiciona construir uma sociedade nova

a partir da livre e consciente vontade dos homens. Sua esperança é promover o encontro

dialético entre a utopia concreta, o romantismo revolucionário e a liberdade na construção da

ordem.

A gênese, como avalia, se situa no fim e não no princípio, porque a gênese é o

despertar da consciência para o que antes nunca existiu. Transita da treva interior do

inconsciente para a luz do conhecimento. É possível que, ao despertar para a realidade, o

homem descubra, como propõe Bloch (2006b), que o inimigo mais renitente do socialismo

não é o capital, mas a liberdade. O homem teme o despertar para a própria liberdade. Esse

ainda é o epicentro dos desejos ainda-não-conscientes, alvo da utopia blochiana. Uma utopia

que se propõe a uma ruptura total com a sociedade de classes e que, além da filosofia,

ambiciona mudar também a psicanálise e a entronizar o sonho acordado na vida do homem

rebelde.

Por isso, a nova gênese está no fim. Para o capitalismo a gêneseé o grande instante do

começo porque define as certezas absolutas, a desigualdade entre os homens, as verdades

estabelecidas, a ficção do final feliz, o otimismo indolente, o zombar do novo e a realidade da

ilusão que se recorta, desaparece e rescussita em outra ilusão, e mais autra, num ciclo

repetitivo. Na utopia concreta é justamente o inverso: a realidade se reveste de vontade

totalizadora e se propõe a destruir as ilusões, denunciar as imposturas do poder capitalista e

criar o mundo real. Há lugar para o romantismo, o idealismo, o sonho acordado, mas são as

imagens das ações do presente que escrevem a história da sociedade do porvir.

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CAPÍTULO III

SABER DA FILOSOFIA E AS PULSÕES HISTÓRICAS:

A PERCEPCÃO DO AINDA-NÃO-CONSCIENTE

O futuro não virá como fatalidade sobre o ser humano, mas o ser humano

virá sobre o futuro e ingressará nele como o que é seu.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 196)

A partir da filosofia marxista de transformação do mundo, condensada nas Teses sobre

Feuerbach, Bloch situa o futuro da filosofia num contexto em que inexistem rotas

alternativas. Se o passado foi caracterizado pela ausência de conceito que definisse o

horizonte da utopia, agora, a filosofia necessitaria explorar a antecipação do futuro, fronteira a

ser desbravada e que separa o homem da sua plena potencialidade. Um dos contextos

apresentados em defesa dessa ideia é a questão formulada em The Spirit of Utopia (Geist der

Utopie) quanto ao lugar onde genuinamente o homem se encontra.

Bloch (2000, p. 168-73) recorda que desde a guerra dos gregos contra os persas, desde

a destruição de Cartago pelos romanos, desde as cruzadas e os campeões do Santo Sepulcro,

desde a época gótica e a escolástica, a história intelectual (Geistesgeschichte) do ocidente,

encontra-se tingida de sangue sempre que trata da utopia e que a filosofia nada pode fazer

porque não consegue ainda superar a incompletude do mundo. Desde Marx, o povo e a

filosofia não são mais termos isolados, o socialismo deixou de ser uma ideia pura, nascida em

meio à filosofia materialista, para ser um processo, uma práxis, e há um sujeito revolucionário

definido, o operário, mas há uma incógnita a ser decifrada e esta não é apenas teórica, Se

encontra no choque entre o ―eu‖ e o ―nós‖, entre os valores da sociedade vigente e os valores

da sociedade futura, podendo ser identificada na necessidade de expansão da consciência.

Marx, ao encaminhar-se para a emancipação proletária, rompeu com o idealismo

jovem-hegeliano e fundamentou-se no materialismo francês do século XVIII, segundo Löwy

(2012, p. 136), tendo como horizonte o socialismo e o comunismo de massa. Encontrou

dificuldades para estabelecer a unidade teoria e prática, alvo que teria alcançado nas Teses

sobre Feuerbach. Uma das ideias-força, baseada na Tese 3, é a educação do proletariado para

a prática da revolução. Contudo, a realidade teima em resistir à teoria e o dilema da unidade

não mìstica entre a ―cabeça‖ e o ―coração‖ persiste, sobretudo por incentivo da ideia da

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transição pacífica para o socialismo que foi o que pregou Robert Owen. Bloch, com o ainda-

não-consciente, se propõe a superar o dilema e amplia, às dimensões do mundo, o sujeito

revolucionário.

A Bloch (2005, p. 118-9), interessa escrutinar a questão. Seguindo o curso da

elaboração da consciência para ele, a juventude merece lugar ativo: ―A boa juventude acredita

que tem asas e que tudo o que é direito aguarda a sua chegada ruidosa, e até é constituído por

ela [...] Os anos verdes estão repletos de alvoreceres para a frente‖. Se a época for

revolucionária, a juventude se alimenta da fome de vida plena e as asas permitem voar para a

transgressão polìtica, com ―fermento utópico especialmente forte‖ e para a liberdade que toma

nas mãos as causas sociais (BLOCH, 2006b, p. 143). Como a vontade se torna mais aguçada

quanto mais claramente o homem se torna consciente, o embrião da vida futura se desenvolve

em meio à vida presente e, nesse processo, os sonhos para a frente vão se tornando mais

nítidos.

Resta saber se os sonhos se dirigem para metas imaginárias ideais ou metas habituais,

separadas pelo maior ou menor grau de perfeição ou pela ilusão quanto ao caráter que possam

exibir e venham a ser corrigidos ou não. Ou se subsiste o olhar sobre o que ainda não está

claro. Por isso, o ideal é formulado de modo mais preciso que a ideologia (pela sua natureza

tende ao ―ocultamento‖) e os arquétipos que, frequentemente, mostram a ―esperança no

abismo, no ―abismo do arcaico‖ (BLOCH, 2005, p. 166-71).

Os ideais não são de forma alguma, segundo Bloch (2005, p. 168-9), indiferentes ao

real, mas exigem mediação concreta para que depurem as tendências de almejar a perfeição

do mundo, para que sejam arrancados do imobilismo, da abstração e do formalismo do seu

conteúdo. Fora disso, o que resta é ausência de vida no interior – e ainda mais exteriormente –

ao homem. Oportunismo e hipocrisia se somam para produzir apenas grandes palavras: dever-

fazer, o verdadeiro bem, e o belo, exigência e pressão pertencem ao ideal como fascínio, além

da ―mentira‖. Mas são ingredientes de farsa quando desconhecem o limite dos fatos. Como

em A Casa de Bonecas e Fantasmas de Ibsen, como cita Bloch, são palavras ocas de um tema

que apaixona a burguesia: ideal.

Quanto ao ainda-não-claro, Bloch (2005, p. 173) apresenta uma apreciação crítica

crucial: ―Se ele aparece em linguagem poética, as palavras desta linguagem até podem ser

plenamente sensitivas e atuais, mas reverberam como se fossem ditas num salão‖. As próprias

palavras são afetadas pelo ainda-não-claro do objeto. Pode-se dizer, escreve Bloch (2005, p.

173), lembrando palavras de Goethe, metaforicamente: ―Poesias são vidraças pintadas‖. A

alegoria dissipa o claro-escuro? Possui uma comparação simbólica, mas não é uma resposta

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em linha reta. Em sua avaliação, no Capítulo 15 de O Princípio Esperança, Bloch demonstra

que o anseio de antecipação ainda se mistura com o distanciamento e ocultamento exigindo

iluminação gradativa do que neles ainda não se encontra definida. Porém, permanece a

consciência em latência. O ainda-não-claro, diferentemente do ideal, é uma incógnita. Mas a

antecipação revolucionária teria algo a dizer.

O que ela tem a dizer é simultaneamente algo velado que se revela e algo

revelando-se, abrindo-se, mas que ainda se fecha, porque – também no

símbolo – o tempo ainda não está maduro, o processo ainda não está ganho,

a coisa (o significado) acrescentada a ele ainda não foi definitivamente

produzida e decidida. Há, portanto, um encontro da função utópica tanto

com a alegoria quanto com o símbolo fundado na própria matéria dos

mesmos. Trata-se aqui do próprio significar objetivo, no qual a função

utópica se encontra (BLOCH, 2005, p. 175).

A expansão e os entraves da consciência atenuam o choque entre a Revolução e a

transição pacìfica para o socialismo? Entre o ―eu‖ e o nós? Em que condições? Se em Spirit of

Utopia (Geist der Utopie) Bloch, assinala que a marcha da utopia tem sido manchada de

sangue pelos seus opositores, Schelling (2012) em Les Âges du Monde encontra na

inconsciência as origens de mistérios que produziram a separação entre o mundo do Olimpo e

o abismo do Hades, a identificação das religiões com camadas de cultura arcaica e a dialética

da liberdade e necessidade.

Para ele, participar do que a natureza continha de cega, obscura e de sofrimento, exigia

que o homem se elevasse ―à mais alta consciência‖ (SCHELLING, 2012, p. 214).87

Assimilasse ―iluminações do espìrito‖88

que correspondessem ao inteligível e ordenável no

―edifìcio do mundo‖.89

A loucura, que desagrega, assim como o idealismo e o espírito das

épocas novas foram surgindo pouco a pouco sem que o homem tivesse foras para evitá-las ou

as percebesse imediatamente (SCHELLING, 2012, p. 224). Os elementos mais graves da vida

primeira teriam sido Força e Poder e foram esses princípios irracionais da origem que

aprisionaram Prometeu, amigo dos homens, num rochedo e o sacrificaram (SCHELLING,

2012, p. 227). Reconhecer esse princípio, seria para Schelling, tão importante como

reconhecer o fundamento irracional da vida, a personalidade e o ser em si e para si mesmo.

Explicaria as reações, sangrentas, ao socialismo?

87

―l‘elever à la plus haute conscience‖.

88

―illuminations d ‗l esprit‖.

89

―l‘édifice du monde‖.

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As fontes de choque entre a individualidade e a coletividade, Bloch vai investigar de

maneiras diferentes. Em The Spirit of Utopia trará à tona a simbologia da morte de Cristo, a

subjetividade ética de Kant, a riqueza da filosofia da história de Hegel, em contraste com a

prática dialética da anamnese, os labirinto em que a crença no homem se perdem e se

recuperam para voltar sempre ao ponto de partida, o ainda-não-consciente. Pois o conflito do

homem entre o ser e o vir-a-ser é real, exige que a filosofia se expanda, que envolva a ruptura

com a escuridão. Outra faceta é que em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) Bloch trata da

psicanálise e do inconsciente freudiano. O ainda-não-consciente, como mostrou Leibniz, pode

estar ―armazenado‖ no homem, pode ter suas ―raìzes espirituais‖, tal qual delineia Freud, mas

permanece sendo um ―segredo primordial‖, um conhecimento possìvel, ainda não visto

(BLOCH, 2000, p. 187-96).

Mais do que um ―armazenamento‖ ou ―raìzes espirituais‖, uma ―inadequação‖ à

realidade, como argumenta Bloch (2000), o ainda-não-consciente seria uma questão: por que

permanece oculto em sombras? Questões que Bloch formula em The Spirit of Utopia: por que

o homem pensa sempre no agora e não no processo? Por que o conceito de Deus é separado

da vida? E por que a esperança vive nas sombras, sem que o homem sonhe com a Pandora de

Goethe? (BLOCH, 2000, p. 198-202).

Essas questões são retomadas em O Princípio Esperança e irão nutrir, em parte, o

conceito de ―boa nova‖ e a promessa de Canaã, por Moisés que seria, na definição de Bloch

(2006b, p. 318), ―a consciência da utopia na religião, da religião na utopia‖. Nesse caso, o

mundo surge como construção humana e a revolução do êxodo não surge do céu, que é alto,

mas da terra. Como Canãa, em seu ―esplendor inexplorado‖, a religião é a utopia que permite

comunicar o ―totalmente-outro‖, com o Egito do faraó escravista, sendo Canãa, o ―polo

positivo‖ da boa nova da libertação do povo judeu.

Com Moisés, assim como Zoroastro (que viveu por volta de 600 a.C. na antiga Pérsia)

e o fidalgo Buda, Bloch procura exemplos de homens que tentaram terminar com o

sofrimento de outros homens. Mas é Moisés que desponta como o fundador originário da boa

nova e da utopia do reino. Jesus e o cristianismo viriam a encarnar a o ―centro da humanidade

ideal‖, mais do que Zoroastro e Buda, não por olhar para o homem existente, mas pela ―utopia

de um ser humano possìvel‖, tendo vivido ―exemplarmente‖ a fraternidade escatológica e se

dedicado voluntariamente à pobreza (BLOCH, 2006b, p. 343-4). Contudo, Jesus, que morreu

na cruz, foi um rebelde, mártir e a liberdade que pregou tem ponto de referência com Moisés

na filosofia do reino que será a mesma Gioacchino di Fiori e sua doutrina do terceiro reino.

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149

A verdade ideal de Deus é constituída unicamente pela utopia do reino, e o

pressuposto para esta é exatamente que não permaneça nenhum Deus nas

alturas, já que de qualquer modo não há nenhum lá nem nunca houve [...]

Mas como eram poderosas as forças que estabeleceram um lado de lá. Por

muito, muito tempo, pareceu bem natural que o mundo fosse perpassado por

espíritos vindos de baixo e de cima. Com que tenacidade conservou-se, nas

pessoas que tiveram uma educação conservadora e assim permaneceram, a

imagem do entronizado além. Muito hábito e falta de seriedade concorriam

para isso, mas justamente o hábito doa algo de sensações vagas, de modo a

pareceram mais volumosas do que seriam se seriamente consideradas. De

fato hoje ninguém mais, nem mesmo a pessoa mais piedosa, acredita em

Deus com a mesma intensidade que há duzentos anos até o mais tíbio, sim,

até o cético acreditou nele (BLOCH, 2006b, p. 374-5).

A rigor, o despotismo do além-terra prolongou-se até o Iluminismo do século XVIII.

Mas, o conteúdo da esperança semeado pela religião persistiu mesmo após as críticas de

Feuerbach à religião, embora o ateísmo, como reino da liberdade, tenha se tornado parte da

utopia humana concreta e o problema tenha deixado de se chamar ―Deus e, sim, reino‖

(BLOCH, 2006b, p. 377). A consciência do significado profundo do ateísmo se deu de

maneira gradual. Modernamente, esse rumo da consciência não poderia ser trilhado sem o

conhecimento do que passou e, nesse sentido, Bloch (1973, p. 190) recorre ao flagelo de

Münzer e a sua relação com a revolução: ―Uma noite transmite o saber à outra‖, como ele

lembra, e isso significa que o sol depois de longa noite surge na sua origem verdadeira: ―a

palavra correta no dia claro‖.

Foi o que Münzer buscou ao pregar e rezar em alemão para que o povo compreendesse

as mensagens e não atribuísse poderes mágicos às palavras em latim, outrora usadas nas

pregações. É o que Bloch procura fazer ao defender que somente os homens sejam capazes de

encontrar e chave da utopia e do porvir, procurando erguer, com suas mãos, o paraíso

terrestre. Não deseja nada hermético no novo. Olha para o futuro, mas quer antes ver o agora,

pois o agora não é o meramente ―imediato‖, ―transitório‖, seria muito pouco; o agora, é mais

do que a arte verbal, do que a narração de uma Ilíada, uma Odisséia, um paraíso de Milton90

perdido e reencontrado, é mais do que o instante vivido, é a ―eternização da utopia‖ (BLOCH,

2006b).

90

John Milton, autor de O Paraíso Perdido, era humanista, expoente do classicismo, político que se alinhou

com Oliver Cromwell durante o período republicano inglês. Fluente em latim e grego, destacou-se como

libertário, intelectual de vastos talentos. Nasceu em Londres em 1608. Viveu 66 anos. Por duas décadas

dedicou-se à vida pública. Completamente cego, ditou a sua obra prima, O Paraíso Perdido, poema épico em

dez cânticos, considerado no mesmo patamar de Homero, Virgílio, Dante Alighieri e Camões. Inicialmente,

pensou em narrar a lenda do Rei Artur, mas terminou a escrever uma obra universal que envolve a tentação e

queda do primeiro homem. Escreveu também o livro Areopagítica, precursor da liberdade de imprensa,

publicado sem licença prévia, em desafio à lei e à censura na Inglaterra.

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Em termos gerais, Bloch poderia sintetizar o real nesta reflexão: ―O mundo ainda não

atingiu sua meta nem mesmo nas suas estruturas pretendidas como ideais e que fazem parte

da linha para frente; assim, cada ideal, ainda possui um mais elevado acima dele, uma escala

até chegar no bem supremo‖ (BLOCH, 2006b, p. 401). Como cada passo precisa olhar para o

amanhã que potencialmente contém, a razão, de acordo com Bloch (2006b, p. 309) estaria

contida na visão do escritor Jean Paul91

, ao lado de Goethe, o grande mestre da literatura

alemã: ―O presente está algemado ao passado como de resto os presos a cadáveres, e o futuro

puxa numa outra ponta; um dia, porém, ele será livre.‖

Há, em consequência, imensa e dissimulada barreira a vencer no interior da própria

filosofia, que não age imediatamente sobre aquilo que o homem pode fazer – a potência

transformadora –, mas antes sobre a impotência, o que não teria capacidade para fazer.

Predomina a renovação para dentro de si mesmo, não para o novum. Na filosofia de Bloch, o

exemplo clássico dessa hegemonia é a fênix que se queima e se renova, mas ao estilo

tradicional: ―Ela retoma o ensino heraclitiano e estoico do incêndio do mundo, segundo o qual

o fogo de Zeus resgata o mundo para dentro de si mesmo‖ (BLOCH, 2005, p. 201).

O exemplo dialético: o Fausto de Goethe revolve o mundo exterior e atravessa ―tanto

o mundo quanto o céu‖ para livrar-se dos demônios da servidão (BLOCH, 2006b, p. 96-7).92

Fausto, ―o transgressor de limites por excelência‖, enriquecido pelo ―experimentado‖, é a

progressão prometeica do homem. É a simbologia do homem que nasceu para ver, não para

tatear na cegueira da escuridão, do homem que não se deixa encantar pela ilusão de Mefisto,

do homem que encontra nas ―cores da diversidade‖ o nascedouro das ―leis harmoniosos da

mediação‖ (LACOSTE, 2007a, p. 409).

Nesse perfil, Goethe misturou as sombras e as luzes, engendrando a ideia de

―construção pelo homem do equilìbrio entre as suas forças internas e externas (LACOSTE,

2007a, p. 410). Uma frase, reproduzida por Jean Lacoste (2007a), em Goethe la Nostalgie de

la Lumière, explica porque Bloch (2006b) considerava Fausto o princípio esperança da

91

Jean Paul (1763-1825), batizado como Johann Paul Friedrich Richter, escritor romântico alemão, escreveu o

livro Rede des Toten Christus von Weltgebaïdehereb, dass kein Gott sei (Discurso do Cristo Morto, desde o

cume do mundo, sobre a não existência de Deus). No livro, o escritor, muito admirado por Bloch, sonha que

se encontrar num cemitério, à meia noite, e os mortos, dos caixões abertos, vêm a figura soberana de Cristo

no céu, provavelmente à espera da ressurreição, e perguntam: ―Cristo, não há Deus?‖Cristo, responde: ―Não,

não há Deus.‖ (BORGES, 1993, p. 403-26).

92

―Terra, também nesta noite foste constante/ E respira revigorada sob os meus pés/ Já começas a envolver-me

de desejo/ Agitas e revolves uma forte resolução/ A de almejar sem cessar o existir supremo‖ (BLOCH,

2006b, p. 97). Bloch cita o trecho do poeta no contexto de que não existe autoaperfeiçoamento, subjetivo,

mas um abrir de olhos, proveniente do ―perfeito olhar exterior no olhar interior, ou mesmo no ser-interior do

sujeito faustiano‖ (BLOCH, 2006b, p. 97).

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utopia: ―No princìpio era a ação‖,93

o que revela o interesse de Goethe em privilegiar a

atividade. Aquilo que considerava a ―exigência do dia‖94

em contraste com a atividade

especulativa e que opunha ao ―prazer da vida‖95

(LACOSTE, 2007a, p. 227-68, tradução

nossa). Foi o que levou Goethe a dedicar parte da sua vida a reflexões econômicas e técnicas,

além de evoca-las em o Fausto. Bloch, considerava Goethe um indivíduo coletivo, que se

interrogava a respeito da ambivalência humana e que não foi apenas um cidadão da sua época.

Desempenhou o papel de educador para a democracia igualitária. O educador é ao mesmo

tempo uma necessidade e uma metáfora do despertar do ainda-não-consciente.

3.1 ―DEMORA ETERNAMENTE! ÉS TÃO LINDO !‖

A esperança apenas transcende o horizonte, ao passo que o conhecimento

do real mediante a práxis o desloca de maneira sólida; ainda assim, é

exclusivamente a esperança que conduz à compreensão de mundo

estimulante e consoladora e permite obtê-la, ao mesmo tempo como a

compreensão mais sólida e mais tendencialmente concreta.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 453)

A vitalidade de Fausto torna-se visível no movimento de maneira que a libertação é,

também, a nova ontologia utópica concreta: ―Fausto se modifica junto com seu mundo, o

mundo modifica-se junto com Fausto, um teste e uma essencialização em camadas sempre

renovadas, até que o eu e a outra coisa pudessem consoar‖ (BLOCH, 2006b, p. 98). Bloch

interpreta Fausto como sìmbolo dialético em que cada ―desfrute alcançado é riscado por um

novo desejo de bem próprio despertado por ele‖ e, ao mesmo tempo, em que cada ―ponto de

chegada atingido é refutado por um movimento novo que o contradiz, pois algo está faltando,

o instante lindo ainda não alcançado‖. É ilustrativo observar que Bloch (2006b, p. 97)

considera o mero desfrute ―vulgar‖ e considera que existe em Doutor Fausto um movimento

rumo à liberdade.

Não há em Doutor Fausto o ―subjetivismo‖ do ―autoaperfeiçoamento‖, mas ―um abrir

de olhos do mundo experimentando‖, o que provém do olhar exterior no mundo interior, uma

93

―Au commencement était l‘action‖.

94

― l‘exigence du jour‖.

95

―Jouissance de la vie‖.

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aproximação do humano-utópico em que Goethe caracteriza o instante como o enigma do ser

(BLOCH, 2006b, p. 97-8). A frase ―Demora eternamente! És tão lindo!‖ soa como o

―paradigma metafìsico da existência plena e sem qualquer além-mundo‖, segundo Bloch

(2006b, p. 99-104), projeta-se para além do instante vivido, transformando valores e fazendo

do saber, ―o absoluto no si mesmo e no mundo‖. Nessa comunicação entre a eternidade e o

instante, ―a ideia do bem torna todas as ações boas e todas as concepções verdadeiras, desde

que no final tenham parte na ideia do bem‖ (BLOCH, 2006b, p. 404).

Fausto vive o real e o transcende. Suspende, de acordo com essa visão, o eterno

caráter de distanciamento do inconsciente. Segundo Bloch (2006b, p. 104), para ele, ―a ação

não se encontra só no início, mas no fim, sendo a mais forte delas a ação da identidade

promovida‖. Nesse particular, preserva o conceito hegeliano de consciência, do espírito que

―seja para si, seja em si, que se associe consigo mesmo‖, que na Fenomenologia do Espírito,

lembrada por Bloch (2006b, p. 104), estaria no desbravar da verdadeira consciência, ―no

atingir a um ponto em que se despojará da sua aparência‖ e em que a ―aparência se torna igual

à existência‖.

A poesia da vida chamada Fausto move-se, antes, na direção de uma ideia

muito concreta que nem se trata mais de uma ideia, e sim de um

experimento, ainda que seja um bem direcionado, um experimento

direcionado para aquilo que planifica. Quem procura isso é um ser humano

entre seres humano, justamente iniciado na Adega de Auerbach e indo até o

povo livre em terra livre e mais além; no entanto, para que não haja dúvidas

sobre seu caráter igualmente extramundano, tanto o almejar quanto a

resolução de rumar para a existência suprema detêm o mesmo significado

que os da natureza, sobretudo com sua manhã, sua manhã cheia de

significado [...]. Assim, para Fausto não há mais subjetivismo no

autoaperfeiçoamento, o que ocorre é um abrir de olhos para o mundo

experimentado; daí provém o perfeito olhar exterior no olhar interior, ou

mesmo no interior do sujeito faustiano (BLOCH, 2006b, p. 96-7).

Na obra de Goethe, Fausto amplia o si-mesmo no que se relaciona com sua existência

e a existência de todos os homens. Esse plano de reflexão, que se configuraria na coincidência

do sujeito-objeto-sujeito, modelo basilar do sistema utópico-dialético de Bloch, liga a

inquietação, a vastidão do mundo, o instante verdadeiramente vivido e a eternidade. Para

Bloch (2006b, p. 195-6), simboliza o retorno do homem a ―Ítaca real‖, um sonho acordado

sem ilusões. Não se trataria mais de um diálogo puramente interior, mas de um diálogo que se

torna também exterior – e por essa razão é chamado de dialética – e não mais contém

aparência vazia. Ele ultrapassa as coisas conhecidas, pertence à ―inquietação impulsionante e

possibilidade nascente‖ (BLOCH, 2006b, p. 163).

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Em lugar de virar pó ao morrer, como reza a Bíblia, o homem goethiano, com Doutor

Fausto, descobre no coletivo a obra humana, diferente da antiga fixidez ôntica do tempo

circular (BLOCH, 2006b, p. 224-9). Nada tem em comum com um ressuscitar. A imortalidade

de Fausto encontra-se na compreensão de que o sujeito moderno está ―condenado‖ a

encontrar o sentido da sua própria vida (LACOSTE, 2007a, p. 413-4).

Nas suas ―autocontemplações‖, Marco Aurélio ainda observava que um

homem de quarenta anos de idade, tendo à mente aberta e encontrando-se

numa posição social suficientemente elevada, terá visto tudo o que

aconteceu antes do seu tempo e que acontecerá depois dele, pois seria a

mesma coisa que ele está vivenciando. Hoje, o fluxo dos eventos é tão mais

longo que nossa vida, o curso da história rumo ao novo é tanto geométrica

quanto dinamicamente tão diverso do arco da nossa vida que naturalmente se

inclina para baixo, que nenhum ser humano valente consegui mais morrer

farto de dias no sentido histórico (BLOCH, 2006b, p. 189).

Mas não existe nada comparável à morte ou ao medo de morrer, mesmo se como

ocorria no Egito o lugar para onde iam os mortos fosse tido como ―amigável‖, não destituìdo

de luz ou distante do próprio sol como era expressa na imagem do Hades. (BLOCH, 2006b, p.

206). O hieróglifo da vida sempre foi o preferido e o homem escolhe a angústia da existência

ao mais calmo dos nirvanas. Essa mediação entre o temor da morte e o prazer da vida, se

projeta também para o vindouro e se associa à rejeição e à procura da utopia.

A morte é vista como parte do processo, mas não do sujeito ambíguo e contraditório

desse mesmo processo. Dessa maneira os sonhos desejantes – médicos, sociais, técnicos e

mesmo os voltados para a melhoria do mundo – se mesclam com as ilusões em épocas ou

países superficiais, a exemplo do que aconteceu na América do Norte no século XIX onde a

―falsa visionaridade‖ vicejou e, com ela, a ideologia autoritária (BLOCH, 2006b, p. 269).

É persistente a dualidade blochiana em expor a face obscura e a face luminosa do

homem, advertindo que este tanto pode acumular experiências e transformá-las em atitudes

revolucionárias, como se manter em possibilidade e nada fazer para mudar a existência. O

papel da fênix é prender a vida no tempo cíclico: o ultimum não é o novum, mas o retorno ao

primum. Não há intenção libertadora, nem o materialismo para o futuro. O ainda-não-

consciente é obstruído e o nada a tudo caracteriza. Volta-se ao ponto de partida, ao ponto

zero, ao início do mundo. É como se o novum não fosse possível.

Esse elemento repetitivo teria ensombrecido a função utópica mais elevada das

grandes obras, mas não significa que, nelas, não existam funções utópicas autênticas e que

não se distingam pelo ―olhar de grande alcance para dentro do vindouro, do essencial‖, de

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―eterna juventude‖, que ―contém perspectivas sempre novas‖ (BLOCH, 2005, p. 154). Platão

é um exemplo desse descobrir das qualidades utópicas das obras clássicas: Bloch vai resgatá-

lo no Filebo, com o bem comum como sendo ―todas as ações boas‖ e o uso da razão; essa

unidade – coisas boas e razão.

Bloch irá encontrá-lo, igualmente, em Agostinho, com o bem comum transposto para

Deus, que regeu os ―ideais da Idade Média‖; e o encontra em Tomás de Aquino para quem

―Deus é, em primeira linha, o entendimento do bem, ao qual a vontade de Deus está

amarrada‖. Também vai buscá-la em Kant para quem o bem supremo ―é conteúdo da

esperança de um mundo em que a virtude e a bem aventurança estão unidas‖ e possam

apresentar dignidade (BLOCH, 2006b, p. 404-5).

Além do mais, pode-se falar que o sentimento de vitalidade não é mais do que reflexo

da eliminação dos ornamentos da ilusão e da vontade de escalar montanhas luminosas dos

ideais norteadores da vida correta, sem reduzi-los a preceitos morais. Se não se sobe as

montanhas, ação e consciência não se conjugam. Tem-se a bondade fingida, a luz que não

ilumina da filantropia e da filosofia da decadência que se instaura tornando a imagem do nada

inevitável.

A fome e a necessidade, que constituem o nervo da história, não deixam de fustigar o

homem e a vida, concebidas apenas como subjetividade, revelam-se vazias. Nelas, não

prevalecem o espírito da filosofia do otimismo, esperança concebida em termos materialistas

para ser utopicamente aberta e, nesse sentido, afirmar a liberdade. Para Leibniz (2004),

correspondia a elevar a consciência de uma época à consciência de si mesma. Bloch (2005)

projetou essa consciência filosófica para a construção do futuro.

É o bastante sobre o que permanece em aberto, que é assim porque não está

fixado ou não está rigidamente fixado. Dessa forma, o pode-ser desse tipo

reflete uma cautela factual por ocasião de juízos, geralmente no modo de

uma pergunta que continua repercutindo, no modo de uma reserva factual.

Porém, de constituição diferente desse possível factual é o possível objetal

que agora emerge, a saber, na medida em que não diz respeito ao nosso

conhecimento de algo, mas a esse algo propriamente, como algo que pode

vir a ser de outro modo (BLOCH, 2005, p. 226).

É sobre essa face do que pode vir a ser que Bloch procura o insuficientemente

manifestado. Nesse processo, a manifestação precisaria de uma indução mais completa e

abrangente e, assim, o ―pode-ser habitual‖ daria lugar ao ―dever-ser factual‖ (BLOCH, 2005,

p. 225). As águas da teoria não se dividiriam para não cair num esquematismo fechado: o

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―factualmente necessário‖ se manifestaria como ―factualmente possìvel‖, sem ser mais

completo do que o objeto inacabado, no caso a possibilidade de construção do futuro.

A ―conclusão perfeita‖, como sugere Aristóteles, torna-se a ―conclusão necessária‖: o

possível não pode ser separado da situação do objeto (BLOCH, 2005, p. 225). Registre-se que

a teoria do objeto é menos ambiciosa que a teoria do conhecimento e, por isso, Bloch prefere

referir-se à teoria do objeto do conhecimento, sem que esta contenha qualquer idealismo

porque a própria investigação materialista se encarrega de dissipá-lo.

À guisa de exemplo: a definição real socialista de nação, à parte de todos

aqueles bigodes nacionalistas trazidos do estrangeiro ou ainda das Grandes

Chicagos cosmopolitas, dos molhos de hotel, dos atuais nivelamentos por

baixo, constitui exatamente o aspecto objetal conciso do real, o que significa

justamente que ela dá a conhecer no objeto (Objekt) a sua estrutura

constitutiva. A doutrina do objeto (Gegenstand) é, assim, lugar de encontro

das categorias como modos ou formas de existências mais gerais e, assim,

típico-características (BLOCH, 2005, p. 228).

Se a função da dialética materialista é corrigir as configurações do idealismo, é

importante para o conhecimento diferenciar o objeto do conhecimento do objeto real. É por

esse caminho que se pode alcançará os contextos sociais e o conhecimento das possibilidades

de mudança. Pois a possibilidade serve para identificar o poder (Können) interno e ativo,

como o poder-ser-feito (Getanwerdenkönnen) externo e passivo. São dois significados, ambos

entrelaçados pelo caráter das possibilidades. Ou seja, a possibilidade de transformação

dialeticamente mediada.

Em Bloch, a categoria da ―possibilidade‖, ela própria antecipadora da possibilidade

real, constitui ―primordialmente‖ dimensões da linha de frente. Encontra-se na raiz das

transformações da história, passa pelas revoluções, é símbolo dos ideais. Quando analisa

Experimentum Mundi, Arno Münster (2001), trata de duas novas categorias incluídas por

Bloch em sua obra: comunicação e práxis. Num mundo de realidade em transformação,

comunicação e práxis funcionariam como instâncias mediadoras do real e se unem à categoria

tempo, que avança para o futuro e não para de surpreender, a exigir compreensão intermitente

das pequenas coisas. É um tempo novo, de inquietudes, que se expressa no próprio espaço da

história. Segundo Münster (2001, p. 362, tradução nossa), ao assim conceber o tempo, Bloch

o inscreve no espaço do ―progresso‖ na direção do bem comum possìvel que é,

―incontestavelmente, aquele da esperança de acontecimentos de um tempo melhor‖.96

96

―en l‘inscrivant, celui de l‘espérance de l‘évènement d‘un temps meilleur‖.

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156

O inconsciente, na interpretação de Belaval (2005, p. 256), no seu estudo sobre

Leibniz, "é inerente a toda a substância criada" e, no universo, envolve todos os degraus da

percepção": existem aqueles degraus que são "espelhos do universo" e aqueles degraus de

"imitação", pertencentes aos espíritos dotados de reflexão que, pela inteligência, transformam

a substância bruta em conhecimento reflexivo. Bloch (2005) volta-se para Leibniz ao associar

a percepção reflexiva do homem à ação, tal como ocorre em Os Novos Ensaios sobre o

Entendimento Humano (2004).

Nessa obra, escrita entre 1701 e 1704, Leibniz (2004) professa que o espírito "é

essencialmente inquieto" e se movimenta a partir de "pequenas percepções" que são

guardadas na memória, sensíveis ao conhecimento, e à razão. Não sendo a alma passiva, as

ideias existem no espírito e se atualizam, em linguagem prática, de acordo com as ocasiões. A

consciência da fome, como percepção referida por Bloch (2005) não surge por acaso, sendo

indicativo de que o homem é um ser que ―não só padece de necessidades, mas tem

consciência de ter necessidades‖ (FURTER, 1974, p. 80).

Assim, a consciência pode ser entendida como parte do entendimento dialético da

necessidade e da ação para superá-la em suas muitas dimensões. Entre elas, destaca a

consciência ilusória de que como o capitalismo paga salários injustos seria necessário criar

uma sociedade nova em que fossem pagos salários justos. Isto, relata Bloch (2006b, p. 174-5)

foi apregoado por Owen, Proudhon, jamais por Marx, e existe no âmago da própria sociedade

capitalista e fará com que ela entre em colapso.

Mas o que Marx combateu foi o capitalismo e a sociedade de classes, cuja extinção,

esta sim, seria capaz de remover a espoliação. Uma vertente real da consciência seria a visão

do homem como sujeito da natureza (natureza geradora de natureza) na procura da força

interior da vontade, elemento até então só claramente reconhecido em povos beligerantes, de

traços espartanos, no fanatismo ou nas relações amigo-inimigo, propulsora dos nacionalismos,

mas que poderia ser mobilizado para a transformação do mundo (BLOCH, 2006a, p. 229).

Para Bloch (2006b) a solução teórica para a consciência já existe e encontra-se na

incompatibilidade das forças produtivas, que há muito assumiram personalidade privada de

apropriação capitalista, com o homem. Falta a prática para remover as contradições e fazer o

mundo ingressar em condições mais perfeitas na sociedade sem classes. Como falta plenitude

vital do sujeito revolucionário, aquilo que, aos olhos de Bloch, Leibniz definiu como

―inquietude pulsante‖, e Aristóteles como ―enteléquias‖ para que o homem revolva a raiz da

existência e deixe ―o mundo chegar aos seus sentidos (BLOCH, 2006a, p. 236-43).

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A natureza não é fato passado, mas o canteiro de obras ainda não

desocupado, o material de construção ainda não adequadamente existente

destinado a edificar a casa humana ainda não adequadamente existente. A

capacidade do sujeito problemático da natureza de cooperar na construção

dessa casa constitui precisamente o correlativo utópico-objetivo da fantasia

utópica humanitária, como fantasia concreta. Por essa razão, é certo que a

casa humana não apenas está situada na história e sobre o chão da atividade

humana, como também se encontra sobretudo sobre o chão de um sujeito

mediado da natureza e sobre o canteiro de obras da natureza (BLOCH,

2006a, p. 144-5).

Com essa compreensão da natureza, Bloch (2006a), escudado em Schelling e Hegel,

considera que o homem trata a natureza com uma visão de passado, não a visão do horizonte

de futuro, do vir-a-ser. Há, segundo ele, a opção por uma ―técnica de violação‖, relacionada

com a Revolução Industrial e seus desdobramentos, não o despertar de uma ―liberdade

técnica‖ que promova a cooperação homem-natureza, não mais fazendo da natureza um

―gigante algemado‖, uma ―esfinge encoberta‖ (BLOCH, 2006a, p. 145-50). A mudança só

aconteceria quando desaparecerem os fundamentos da economia de exploração e, por

consequência, na sociedade sem classe não existir mais a separação entre direito natural e

direito moral.

3.2 A ABERTURA PARA O FUTURO, AS GERAÇÕES E OS ATRIBUTOS MAIS

ELEVADOS DO HOMEM

As coisas continuam em movimento enquanto o seu cerne apenas existe, mas

ainda não está presente.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005b, p. 406)

A ideia de vislumbrar as grandes obras filosóficas não pela repetição da ideologia de

classe, mas pelo que manifestam quanto ao futuro, aparece em Bloch como relação entre o

que a humanidade deseja e o que se propõe a realizar. Em torno dessa dualidade Bloch (2005,

p. 405) situa Tomás de Aquino na definição do bem supremo como a ―felicidade mais

potente‖ no conteúdo da esperança de um mundo em que ―a virtude e a bem aventurança‖

estejam unidades para proporcionar dignidade ao homem.

Em Kant, apesar de bem supremo estar tão ―solto e distante‖ quanto o ser humano

ideal, seria o que para o navegador é a estrela polar, a concordância perfeita; Fichte seguiria

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por essa mesma linha, alçando o bem supremo ao ―ápice dos ideais‖, uma espécie de ―para-

quê absoluto‖, o ―sentido da vida‖, mas essas manifestações da experiência dialética exigem o

novum (BLOCH, 2006b, p. 405-6). E o novum deriva de uma intenção consciente, remonta a

uma vontade.

Todos os bens, incluindo o mais elevado, o bem supremo, no qual coincidem

inteiramente o bem e o valor mais universalmente válido, estão relacionados

com a vontade que os quer, e cuja condução, enfim, saciação (felicidade),

eles servem. É a necessidade citação sentida pela vontade que desperta o

potencial dos bens e valores que se encontram fora da vontade, assim como é

o trabalho voltado para a satisfação que extrai dos materiais e objetos

trabalhados seu valor material objetivo (BLOCH, 2006b, p. 412).

O bem supremo seria o problema metafísico de latência na natureza (BLOCH, 2006b,

p. 407). Uma tendência em processo, dependente da vontade objetiva, daquilo que Sócrates

denominou de ―virtude‖ e que Kant, simplesmente, definiu como ―boa vontade‖ (BLOCH,

2006b, p. 411). Esse inter-relacionamento envolve não só a dimensão histórica da utopia, mas

toda a práxis cotidiana e a objetivação processual da utopia. Envolve a conexão dos valores

com o mundo real, envolve que as coisas sejam nobres na mente e em si mesma, envolve

aliança ―entre os movimentos produtivos e finais humanos e natural, unidos no mesmo

materialismo dialético‖ (BLOCH, 2006b, p. 416-7).

Uma velha pergunta é a que e a que finalidade o palco de fato se dispõe. Ele

trabalha com cosméticos e ademais também predominantemente com

recursos e luzes que iludem deliberadamente. O palco é, por isso, mais

aparência do que qualquer outro gênero de arte e justamente porque ele torna

essa aparência vivenciável na realidade, apesar da moldura divisória. Isso de

fato confere ao teatro seu poder simultaneamente fascinante e ilusionístico,

mas também dá à aparência uma ênfase como nenhuma outra arte pura. Sim,

a aparência do palco, para um olhar não amigável – e ela frequentemente o

tem encontrado, e não só entre hipócritas –, pode estar mais próxima da

aparência extremamente ignóbil de uma figura de cera do que da de uma

imagem que aparenta distinção e não tem nada de vivenciável na realidade

(BLOCH, 2006b, p. 409-10).

A imagem do palco é coerente. Bloch sugere, como Brecht, que o teatro não seja puro

entretenimento, mas formador de consciência. Desse argumento, seminal para a moral

revolucionária, Bloch volta-se para a integridade da relação com a realidade, não uma

realidade trivial, mas como realidade teimosa de esperança. O que objetivamente importa é a

abertura para o amanhã, o que pode ser feito para mudar a realidade, não é o que está

determinado.

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Objetivação não engendra a aceitação irrefletida das manifestações, mas o ―assombro‖

filosófico que é o princípio da reflexão. Significa abrir os olhos e ver que o mundo contém

apenas ―um potencial aliado dentro da matéria do valor, nada mais, mas também nada menos

que isso‖, o que quer dizer mediação ―entre natureza e a história humana e humanizá-la‖

(BLOCH, 2006b, p. 418).

É um duro golpe para a consciência ingênua constatar que cor, calor e bom

possuem uma existência apenas subjetiva. É muito mais fácil para ela,

porém, supor que o bem, o mau e suas diversas variações ocorrem apenas

subjetiva, e não objetivamente. Em conformidade com isso, portanto, algo só

pode ser chamado de bom porque é apetecido, assentido pela vontade,

manifestando-se por essa razão como um bem. O que contribuiu muito para

essa visão subjetivista foi, sem dúvida, a multiplicidade e com ela a

diversidade dos respectivos assentimentos. O que para este é uma coruja,

para aquele é um rouxinol, ou, como diz um outro ditado, um que não

precisou esperar a chegada dos céticos: gosto não se discute. Assim, todo

chamado juízo de valor, ao menos no que diz respeito ao agradável,

prazenteiro ou a esse tipo de coisa boa, é considerado como subjetivo desde

há muito também pela opinião popular (BLOCH, 2006b, p. 409-10).

Bloch almeja que a sociedade encontre no conteúdo real-objetivo da utopia socialista a

eternidade do ―bom‖, como, talvez, no Antigo Testamente a sucessão de gerações asseguraria

a eternidade do homem na Terra.97

Se no passado, como recorda Berlin (2015, p. 26-7), o

―amor‖, ―o senso de dever‖ o ―perdão‖, garantia a fraternidade entre os homens‖, só que com

a vida voltada para o servir a Deus, no socialismo, a fraternidade e a liberdade seriam voltadas

para o homem servir ao homem.

Esse seria o salto da teoria para a prática da filosofia do ainda-não-ser e do ainda-não-

consciente. Bloch chega a esse ponto culminante entendendo que a sociedade burguesa

apresentou formações ideais tão veementes que passaram a ser vistas como eternas. Uma das

mais ilustrativas é aquela do sujeito capitalista que se põe em marcha sempre que as

condições de vida se revelam ―estreitas‖ e procura ―lugares mais amplos‖ (BLOCH, 2006b, p.

100).

Pelo seu espírito desbravador, o empreendedor coloca-se como o ser humano entre os

seres humanos, a raiz humana dos deuses, talhada com material divino. Essa mitologia fez

com que o homem burguês, pela sua suposta obstinação associada à ―centelha de luz

prometeica‖, sobrepujasse o citoyen (cidadão) e passasse a ser visto como o homem idealista.

Não se limita a anunciar descobertas, mas se propõe a elucidá-las e integrá-las à sociedade.

97 Cf. Bíblia Sagrada. Antigo Testamento – Crônicas (2003, p. 410-50).

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As coisas continuam em movimento, enquanto o seu cerne apenas existe,

mas ainda não está presente. Pois esse cerne, sendo o quê (Daß) a partir do

qual e rumo ao qual tudo acontece, ainda se encontra em fermentação e na

obscuridade. Ele ainda é pontual e não dilatado, apenas está vagando recluso

e não externado, em lugar nenhum progrediu até à manifestação certeira sua

essência (BLOCH, 2006b, p. 406).

Nada do que é previsto pelo capitalismo acontece. O homem acorda e percebe que a

sociedade continua inacabada e que a sua atividade não gera valor e, o que é pior, não

encontra sentido para a existência. Consequentemente, há uma ―desobjetivação‖ dos demais

valores, porque fica no ar a finalidade da vida (BLOCH, 2006b, p. 413). Existem aí, portanto,

dois mundos em confronto: o mundo apresentado, objetivo, que se compõe de mercadorias e

ilusões, e o mundo de finalidade humana, prometeico, unido no materialismo dialético e na

consciência da necessidade de ação. São argumentos que se moldam na necessidade de

manter a consciência permanentemente desperta como sendo o sujeito latente do mundo.

Cabe à filosofia a mediação entre os mundos em choque, contribuindo para que prevaleçam

os atributos mais elevados do homem.

3.3 MONTANHAS DO FUTURO, A FILOSOFIA NA LINHA DE FRENTE

O que é valioso quer ser consumido e só o melhor abafa inteiramente a

fome. Porém, para se chegar a esse melhor, o exterior auxilia e coopera,

proporcionando-lhe a imagem, tanto a fluída quanto a concreta.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 420)

Há exigência, pois, de camadas de transição da filosofia para que o alvo do sonho

acordado se alargue e que a fênix deixe de ser o renascimento do mesmo. A descoberta dos

atributos mais elevados do homem, que Bloch associa à psicanálise, é assim, parte de um

quebra-cabeça muito maior. Em Bloch (2006b) é preciso, que além da teoria marxista da

mudança, exista a ação de um princípio interno que permita a distinção entre o que é falso e o

que é verdadeiro.

Nas palavras de Kierkegaard, Bloch (2006b, p. 421) encontra uma forma de explicar

esse conceito: é algo compreendido pela metade, a maneira ―da semi-transparência da névoa

noturna‖, mas que precisa ser algo em que o supérfluo se esvai e que se encaminha para o

encontro consigo mesmo, o ―entender-a-si-mesmo-em existência‖. Não mais como o mundo

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interior, mas como também o mundo exterior, sem hostilidade, sem que seja inóspito e não

passível de mediação.

Assim como em Kierkegaard, Bloch (2006b, p. 423) lembra que o retorno à ―Ítaca

real‖ designa ―o ponto fixo‖, o alvo, em meio ao flutuante, a incompletude da vida, e não se

perde de vista o ideal de plenitude. Outro conceito do encontro do mundo interior e exterior

são as descrições contidas em Goethe, Schelling e Hegel da maneira como a filosofia da

natureza se espalha pelo homem e é impelida para uma galeria de valores ocultos (BLOCH,

2006b, p. 427-8). Esses pensadores simbolizam a lucidez e o entusiasmo, assim como a

unidade do sonho para diante, sonho que para Bloch (2006b, p. 451) pode representar o

despertar da ―consciência revolucionária‖, o ―embarcar no carro da história, sem que o lado

bom do sonhar necessite ser deixado para trás‖.

Para que a filosofia acompanhe o carro da história, se faz necessário, segundo Bloch

(2005; 2006b), não renunciar à contemporaneidade e realizar as transições necessárias. A

primeira transição é a rejeição da ilusão de classes, da ideologia de classes, da má consciência

burguesa e de uma cultura em que o homem é relegado à posição decorativa. A manifestação,

nesse rumo, é o sair de si do homem das relações de dominação para estar-presente na

eternidade das boas relações sociais.

A segunda transição encontra-se na ruptura da noção de provisoriedade do momento.

É o arrancar a utopia do ―leito pútrido‖ da simples contemplação para galgar os cumes

―ideologicamente desimpedidos do conteúdo da esperança humana‖ (BLOCH, 2005, p. 157).

A partir daí, o ideal passaria a ser o futuro não realizado, a grandeza humana voltada para a

categoria da finalidade, com um tipo de subjetividade nova, seria incentivada pelas

necessidades e pelo trabalho humano.

O tema fundamental da filosofia, de uma filosofia que permanece e é

enquanto vem a ser, ainda não alcançado, é a pátria que ainda não veio a ser,

ainda não alcançada, assim como ela está se formando, construindo-se na

luta dialética-materialista do novo com o velho (BLOCH, 2005, p. 20).

E há ainda uma terceira transição. Ao voltar sua filosofia para o futuro, Bloch não está

fugindo do presente. É justamente o inverso: os obstáculos do presente devem ser vistos como

alavancas para a consciência dos dramas que o mundo impõe ao homem. Os fatores objetivos,

como lembra Bloch (2005, p. 147), não são suficientes para isso: são parte da tomada de

consciência, mas tendem a elevar a subjetividade, exigindo, assim, o sonho ativo a influenciar

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a utopia. Assim, o socialismo não mais faria como a fênix e absorveria o novo, examinando a

possibilidade da mudança de tudo.

Acrescente-se o espírito romântico revolucionário do otimismo: a dialética é um

método imanente à realidade, parte da teoria do conhecimento, não um recurso que elimine o

princípio do entusiasmo e da idealização da razão. Assim, o desejo de mudança precisa ser

sempre o desejo de mudança e voltar-se para o romantismo pode significar melhor

compreensão do conceito de cultura – religião, política e história, morte, sonho e amor – a sua

associação à produção. Bloch (2005) procura repensar a unidade da vida e da história a

procura de uma nova síntese da filosofia com a psicanálise. Um amalgama que não pode

prescindir do ser humano ―livre, inquisidor, incondicional‖ caracterizado pelo prostestantismo

de Lutero e pelo burguesia antiutópica, que encontra em Fausto o momento inaugural de outro

ponto de vista (BLOCH, 2006b, p. 95). Como em Pandora, Goethe move-se para a poesia do

ainda-não-existente, mas que pode existir.

Tomadas em conjunto, essas percepções podem explicar por que ninguém é

assassinado, preso ou torturado por ser hegeliano, platônico, aristotélico, existencialista ou

filiado a qualquer outra escola filosófica, mas é perseguido e sofre todas as penalidades da

sociedade burguesa, inclusive prisão, tortura e morte, se for marxista. Voltar-se para Marx é

voltar-se para a recriação do mundo. Por não se tratar apenas de construir uma filosofia da

história, mas de torná-la aberta e construí-la.

Como a explicação do mundo está no mundo, o olhar para a frente torna-se o veio

dinâmico da consciência. Ele mantém os limites entre o passado e o futuro ao mencionar o

velho e o novo, fundados na antecipação. Não se trata de impaciência, mas das relações entre

o tempo e a alma rebelde do homem, a relação entre o tempo e o que se denomina de

consciência. O fenômeno do que existe e do que pode vir a ser liberta o homem da ilusão

subjetiva, torna realidade o amanhecer da utopia.

A explicação de Bloch é expressa em poucas palavras: a filosofia precisa estar na linha

de frente e tornar consciente o que ainda-não-é-consciente. A expressão ainda-não-consciente

é empregada no sentido de que o homem precisa olhar profundamente para si mesmo e que

esse é um papel da filosofia, retomando o fio tecido por Leibniz e suas ―petites perceptions” e

o encontro com si próprio desejado por Bloch (2005, p. 127) em The Spirit of Utopia (Geist

der Utopie). Seria, a continuidade do espírito presente na boa consciência utópica e a ruptura

com os arquétipos da rememoração, a anamnesis ou regressão.

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As águas do esquecimento correm no mundo inferior, mas a fonte Castália

da produtividade brota no Parnaso, que é uma montanha. Assim, a

produtividade, embora venha das profundezas, só começa a trabalhar à luz e

estabelece constantemente a uma origem nova, ou seja, no ponto mais alto

da consciência. Saber esse ponto elevado se entende o azul, a cor oposta à do

orco98

escuro e ainda assim transparente que envolve toda a verdadeira

explicação. Esse azul, como a cor que está distante, deságua de modo

igualmente ilustrativo e simbólico no teor futuro, o ainda-não-sendo na

realidade, ao qual se referem, em ultima instância, os enunciados

significativos e antecipadores. Uma obscuridade para a frente, que vai se

tornando clara enquanto se anuncia que também está associada àquela

consciência mais esclarecida, na qual o dia não renunciou ao alvorecer, mas

se constrói justamente a partir dele (BLOCH, 2005, p. 127).

Montanhas, segundo Bloch (BLOCH, 2006b, p. 378), refletem, como o sol, que Dante

equipara às virtudes da sabedoria, os sonhos de elevação. Como em Pandora e no Fausto de

Goethe, o desafio é transgredir os limites, vislumbrar as ―montanhas no futuro e todas as

montanhas sempre combinam bem com a luz matinal, com o novo dia‖ (BLOCH, 2006a, p.

82-3). As ―montanhas do futuro‖ não mudam se o itinerário for descendente ou ascendente,

mas encontrá-las, presenciá-las no clarear do dia, exige esforço, exige descobrir a força da

vida.

Sua linhagem é lendária e, no paraíso de Dante, simbolicamente, a cognição encontra-

se na parte mais alta, justamente porque se trata de uma prática mais complexa que a visão.

Mas em Doutor Fausto a conexão terrena é mais vigorosa. Nas palavras de Bloch (2006a, p.

375), ―uma catedral de montanhas elevando-se de abismos extáticos até o éter, esta a visão de

Goethe, e precisamente como cordilheira que se estende consecutivamente, com sempre

novas esferas nas alturas‖. No simbolismo das imagens, se separam épocas: a feudal em

Dante, a protestante-capitalista em Goethe. Nas montanhas de Fausto, uma atrás da outra,

como se desejassem tocar o azul do céu, o mistério, para Bloch (2006b, p. 379) encontram-se

―a solução existente, já a solução é o mistério remanescente‖ – a vontade utópica?

As cordilheiras faustianas, contêm o ―azul mais profundo da consciência utópica‖,

centrífuga, que dissolve a sociedade burguesa nas suas contradições (BLOCH, 2006a, p. 378).

São o azul de um dia que ainda não chegou, mas não deixam de ser montanhas-cordilheiras de

azul terreno, visíveis a olho nu, de efeito dominante. Fazem parte do reino inteligível.

A filosofia, para Bloch, com Marx e os desafios do desertar do ainda-não-consciente,

necessita escalar o Parnaso e beber da fonte Castália de onde brotam os impulsos,

suficientemente fortes, do novum para que se tornarem conscientes. A intenção é que a

98

Na mitologia romana, o Orco é o espírito da morte, o deus do submundo, aquele que punia quem não

respeitava os juramentos.

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filosofia desperte para o ser humano particular e o situe como universal. O alvo não é o tempo

circular, mas as cordilheiras com montanhas atrás de montanhas, o humano-transcendente.

3.4 UM OLHAR AGUÇADO SOBRE O INCONSCIENTE

[...] os sonhos não são bolhas de sabão.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 80)

Bloch não poderia ser mais claro: o ainda-não-consciente -, não pré-consciente como o

inconsciente reprimido ou esquecido, mas exatamente por isso - se abre como campo novo de

investigação. Bloch (2005, p. 80) chama a atenção: os sonhos não são a eliminação dos

estímulos psíquicos perturbadores do sono pela via da satisfação alucinatória, como ensinou

Freud, nem são ―bolhas de sabão‖ ou ―oráculos proféticos‖. Ficam no meio termo entre a

―realização alucinatória dos desejos‖ e a ―realização de fantasias inconscientes‖, mas a

finalidade maior dos sonhos é a vida melhor, o que não exclui os sonhos noturnos, parte do

―gigantesco campo da consciência utópica (BLOCH, 2005, p. 80-1).

Por isso é consequente que, antes de um arquiteto – em todas as áreas da

vida – conhecer seu plano, ele tenha elaborado esse plano, que ele tenha

percebido a realização desse plano como um sonho brilhante, que

impulsiona decisivamente para a frente. Isto, em termos ideais, é tanto mais

necessário, mais ousado, sobretudo quanto mais impraticável for no

momento o plano para o qual o ser humano, diferentemente da aranha ou da

abelha, dirige seu olhar, antevendo-o. E exatamente nesse ponto se forma

aquilo que aviva o aspecto desejante nos afetos expectantes que sempre que

sempre se originam da fome, desejante esse que ocasionalmente distraí e

amolece, mas ocasionalmente também ativa e se estende até ao alvo de uma

vida melhor: formam-se sonhos diurnos (BLOCH, 2005, p. 78-9).

Bloch parte da ideia de que ―o desejo de ver as coisas melhorarem não adormece‖,

sofre privações e não desiste, ―não submerge na névoa‖ (BLOCH, 2005, p. 79-80). Entende

que o sonho noturno transforma ideais desejantes em alucinações porque o sonhador adulto se

encontra enfraquecido, praticamente todos os sonhos são, por isso, ―desfigurados‖,

―mascarados‖ e se mostram ―simbolicamente disfarçados‖. Acrescenta: ―Apenas os sonhos da

criança estão livres da desfiguração onírica, já que a criança não conhece qualquer eu

censurador‖ (BLOCH, 2005, p. 81).

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Na filosofia Ocidental, a frase de Sócrates ―Conhece-te a ti mesmo‖, gravada no

frontispício do oráculo de Delfos, na Antiguidade, foi a porta de entrada para o conceito de

inconsciente que seria tema comum na filosofia como referência ao conhecimento e à

sabedoria. Às vezes, como indicativo da separação entre corpo e espírito e da consciência

seletiva (Descartes), outras vezes como indicativo das percepções refletidas, das quais

teríamos consciência, e das pequenas percepções, das quais não temos consciência (Leibniz).

Sendo o pensamento de Sócrates (e, consequentemente, o platonismo), fundamental na

discussão do inconsciente, o primeiro desdobramento do novo conceito se dá com as noções

de bem e de verdade, além das postulações de formas transcendentes e racionais como critério

da ordem no mundo. Foi um momento em que as antigas cidades gregas se viam ameaçadas

pela desordem e o caos e que preparou o terreno para que o conhecimento se tornasse

essencial no Renascimento. Germinaria, posteriormente, com o idealismo racionalista de

Hegel e nos princípios metafísicos morais de Schopenhauer, Nietzsche e Freud.

Schelling, um dos filósofos que mais influenciaram Bloch, entende que há uma

unidade entre inconsciente e consciente, entre o homem e a natureza, e que ―toda criação

consciente pressupõe uma criação inconsciente‖, dai considerar o homem portador de forças

―cegas‖, comumente relativas à nostalgia de uma vontade imemorial (SCHELLING, 2015, p.

207). Mas foi o mesmo Schelling que deu origem a um sistema elaborado de dialética e uniu

―liberdade e necessidade‖ à ―heteronomia e a identidade‖, advogando que a liberdade ao

alcançar uma posição central possibilita ―o surgimento de uma nova sìntese, e a estabilização

de novas formas de existência‖ (FFYTCHE, 2014, p. 110-1). Com isso, condenou o princípio

do predomínio da razão: os seres se unificam não em cadeia, mas pelos modos de existência e

não há, portanto, uma concatenação mecânica de causa e efeito. Há, sim, ambiguidades e

liberdade.

Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche (2014) critica a valorização excessiva da

razão como forma de expansão do conhecimento e, voltando-se para o paradigma socrático,

defende que o homem seja menos apolíneo e mais dionisíaco. Bloch (2005) herdou de

Schelling e de Nietzsche a percepção de que o homem não é constituído apenas do "efeito

supremo da civilização apolínea". Ele é modelado pelas duas forças antagônicas e necessita

promover essa reencontro desde a ascensão do capitalismo monopolista quando o homem se

viu cercado pelo ―mundo da mercadoria e sua ideologia‖ (BLOCH, 2005, p. 56). Schelling, na

interpretação de Matt Ffytche (2014, p. 200-3), considera o homem como um ―estranho‖

porque não se permite reconhecer tudo que permanece ―secreto, oculto, latente‖, mas que vem

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à tona. A rejeição dessa parte envolve um ―princìpio de cegueira‖ quanto à sua própria base, o

que Freud descobriu e introduziu na ciência da psicanálise.

Essa faceta, que retrocede às primeiras ideias da filosofia da natureza de Schelling

(2015), no entendimento de Ffytche (2014, p. 201-2), é coerente como o significado de uma

vida mais ampla e com os conceitos de ―mudança‖ e ―autocriação‖ que ―subvertem a filosofia

do mecanicismo‖. Contribuem para conciliar a liberdade individual e o universal,

subordinando os ideais à natureza e à história, o que Schelling em Les Âges du Monde situa

como eras ―perdidas ou reprimidas‖, mas que podem representar ―o combustìvel da alma‖ e

revelar ―totalidades mais amplas‖ e ―interioridades profundas‖? (FFYTCHE, 2014, p. 204-7).

Talvez, essa repressão marque o princípio do conflito do homem trágico e permita

uma melhor compreensão das relações que Bloch estabelece entre o inconsciente, o ainda-

não-consciente, as pulsões e as épocas. Bloch não luta contra a tragédia, luta contra o

niilismo: contra o pessimismo niilista que prega o ―desespero‖, que ―desiste de tudo‖ em

lugar de despertar para o esgotamento da sociedade de classes (BLOCH, 2006b, p. 450).

O trágico Bloch procura renovar. A tragédia encontra-se na visão não dialética da

vida. O homem não apenas prática o mal, mas prática o mal e o bem. Não é apenas Apolo ou

Dioniso, é Dioniso-Apolo. Não é apenas ambiguidade, mas também finalidade. Não é apenas

desumanidade e inconsciência, mas humanidade e consciência. Não é apenas o ―eu‖, mas é

também o ―nós‖. Não é só o romantismo abstrato, mas é também otimismo militante.

Tudo isso, encontra-se nos capítulos finais de suas obras cardeais The Siprit of Utopia

(Geist der Utopie) e O Princípio Esperança (Das Prinzip Hoffnung), ambos dedicados a

discutir as ideias de Karl Marx. Por que no final do volume III de O Princípio Esperança

Bloch (2006b) atribui ao marxismo predicados como a ―lucidez autêntica‖, tão diferente do

―senso comum‖, ―tipicamente não dialético, tão marcado por ―preconceitos pequenos

burgueses‖? Por que Bloch (2006b) atribui tamanho significado ao entusiasmo e enfatiza que

o marxismo não trata a ação como uma fantasia e não se volta apenas para ―coisas absolutas‖

como se o ―romantismo revolucionário fosse o mesmo que quixotismo‖? Por quê Bloch

assinala que o direito jamais poderá estar acima da estruturação econômica da sociedade e do

desenvolvimento cultural por ela condicionado?

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Numa fase mais adiantada da sociedade comunista, depois que tiver

desaparecido a subordinação servil do indivíduo à divisão do trabalho, e com

isso também à contraposição de trabalho corporal e mental, depois que o

trabalho tiver deixado de ser apenas meio de vida e tiver se tornando, ele

mesmo, a primeira necessidade vital; depois que o desenvolvimento do

indivíduo em todos os seus aspectos tiver levado ao crescimento das forças

produtivas e todas as fontes de riqueza cooperativa fluírem mais

profusamente – somente então o horizonte estreito do direito burguês poderá

ser totalmente ultrapassado e a sociedade poderá escrever em suas bandeiras:

cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades

(BLOCH, 2006b, p. 455-6).

Reflexões como essas podem ser encontradas, de maneira indireta, ao longo do último

capítulo da trilogia O Princípio Esperança. Pensamentos de Marx são intercalados com

interpretações de Bloch que não se restringem a criticar a incompatibilidade entre as forças

produtivas, que há muito se tornaram forças sociais, e a apropriação capitalista, o que

representa uma ―contradição básica‖ da sociedade capitalista desenvolvida. Ele define o

marxismo como o ―mais frio dos detetives em todas as suas análises‖, mas que ainda assim

considera na prática o ―sonho da Idade de Ouro‖ (BLOCH, 2006b, p. 456).

O novum, a Idade de Ouro, só se concretizaria na argumentação de Bloch, quando a

filosofia descobrir que já transcendeu, com Marx, os ―idealismos metafìsicos‖, as ―regiões

remotas dos céus‖, as ―hipóstases fáticas de pura invisibilidade mitológica‖ e se ―comprova

como expedição com e no processo profundamente ramificado e inconcluso, como coragem

para aquela não-asseguração que posta a esperança exatamente na linha de frente‖ (BLOCH,

2006b, p. 450-60). Bloch desenvolvia a ideia de que o mundo estava inconcluso não como

destino, mas por processo em andamento e que poderia ser acabado.

O propriamente dito ou a essência não é algo já existente em sua forma

acabada, como água, ar, fogo ou até mesmo como ideia universal invisível

ou como quer que se chamem esses elementos fixos e reais absolutizados ou

hipostasiados. O propriamente-dito ou essência é aquilo que ainda não

existe, que anda em busca de si mesmo no cerne das coisas, que espera sua

gênese na tendência-latência do processo; ele próprio nada mais é que

esperança fundada real-objetiva. E, em última análise, o seu nome tangencia

o ―sendo-em-possibilidade‖ do sistema aristotélico e do sentido que vai

muito além de Aristóteles, logo, o elemento aparentemente mais predefinido

que existe; a matéria (BLOCH, 2006b, p. 460).

Não há nesse salto dialético para dentro do novum nenhuma concepção teleológica

antiga, prossegue Bloch (2006b), nada que lembre a ―Providência‖ divina, nem o caráter

contemplativo da maioria das filosofias pré-marxistas. Se pairava alguma dúvida quanto à não

secularização do processo revolucionário do sonho para diante, Bloch (1975) se encarrega de

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dissipá-las em Experimentum Mundi. Não apenas reviu as categorias aristotélicas e kantianas,

clássicas, como o espírito utópico da práxis humanistica-revolucionaria condensadas na visão

do processo humano, mantendo-se irredutível ao conceber no niilismo a grande ameaça à

sociedade.

Nesse atualizar dos pilares do seu sistema filosófico aberto, Bloch mantém a

perspectiva marxista de que o tempo é o espaço da história e, assim, vincula a concretização

da perspectiva socialista à naturalização do homem e humanização da natureza. O homem e

tão somente o homem, de acordo com Bloch, tem o poder de ser o sujeito da sua emancipação

e liberdade em relação ao sistema produtivo. No final, sublinha, a humanidade tende a tornar,

como palavra de ordem, o ainda-não-consciente socialista em consciente, o que conduziria o

homem à coincidência do sujeito-objeto das suas aspirações a uma vida melhor.

3.5 DA TRAGÉDIA AO INTERESSE HUMANO, A FAMILIARIDADE COM O

REAL E O PENSAR LIVREMENTE

Os sonhos de um mundo melhor como um todo buscam a exterioridade de

sua interioridade.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 93)

Entre os gregos, a tragédia era o nome para a coexistência entre o destino, a

necessidade e a natureza dos deuses. Segundo Williams (1974), não se referia à morte ou

acidente, mas ao entendimento entre as contradições e a dignidade humana. Envolvia a

mudança da sorte, mas da sorte do herói e, sim, demarcava os limites da ação e reação da

experiência dos homens. No Renascimento, irá significar a queda do homem poderoso, mas

no decorrer da história a tragédia encontraria o seu sentido na discussão da dignidade humana.

Dignidade que revela a visão profunda do mundo, pela transitoriedade e inconsistência

do homem, que Nietzsche (2014) comparava às ―folhas‖. Contém as dimensões trágicas do

mundo, com a nostalgia dos seus titãs, heróis, ingenuidades, ilusões e o "embevecimento do

estado dionisíaco" que aniquila fronteiras e impossibilidades (NIETZSCHE, 2014, p. 24).

Dioniso, na sua tragédia, aparece como pluralidade de máscaras, inclusive com a máscara de

Prometeu, e se assemelha ao indivíduo que erra, sofre, se esforça.

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Em Nietzsche (2014) o homem trágico é o oposto da racionalidade socrática, encontra

a sua continuidade em Goethe, Schopenhauer e Wagner com a ideia de renascimento do

homem trágico grego, tendo como chave mágica a linguagem universal da música – Bach,

Beethoven e Wagner – e o espírito da cultura alemã. Em Bloch (2005), o homem trágico é

aquele que não se adapta à racionalidade capitalista ou aquele que sonha em se adaptar ao

capitalismo, mas que se choca com a estrutura da produção e da mais-valia. O homem trágico

seria, por analogia, o homem prometeico.

A base da ambiguidade é o conflito do homem com seus instintos. Embora ambicione

destruir Dioniso, o homem não deveria render-se à aceitação incondicional da vida e, sim,

valorizar o conflito que a ela é inerente em virtude do inconsciente e das pulsões. Se houvesse

um retorno ao pensamento grego antigo, o homem descobriria que o inconsciente e as

pulsões, na desmesura e impetuosidade, estavam integradas às forças vitais, não sendo

excludentes (NIETZSCHE, 1992, p. 38).

Concentrar-se exclusivamente na beleza apolínea, seria como se o homem esquecesse

Prometeu e a sua tragédia. Como se abdicasse da rebeldia. Nietzsche inaugurou uma nova

fase de conhecimento do inconsciente e das pulsões. Com Freud e a psicanálise, o conceito de

inconsciente ganhou fundamentação científica, não com base na razão e no consciente, mas a

partir do inconsciente e das pulsões. Se tornaram o lugar de onde as forças obscuras

governariam o homem, são recalcadas e alienam a consciência. Com Bloch (2005), o

inconsciente cedeu lugar ao ainda-não-consciente, do que jamais foi visto.

A exemplo do que aconteceu com o Prometeu de Goethe (2012b), o inconsciente e as

pulsões deixaram de ser um mal para serem a expressão das ambiguidades humanas. E fonte

de aliança da filosofia com a ciência. As tentativas de seguir as pegadas do inconsciente

compõem um panorama multifacetado, mas que se encontrariam na essência do pensamento

latente (gewisse Gedanken). Freud analisaria o inconsciente em duas dimensões: aquele que

forma um conjunto de pulsões e que são recalcadas para não ascender à consciência e aquelas

que estão alojadas na pré-consciência e se tornam conscientes. Ambas fazem parte da

realidade (JOUSSET, 2007, p. 110). Bloch, analisaria o ainda-não-consciente na perspectiva

do sonho acordado.

Escreveu Freud (1973, p. 2061), em Lo Inconsciente: ―A psicanálise nos tem revelado

que a essência do processo de repressão não consiste em suprimir e destruir uma ideia que

representa o instinto, senão em impedi-la de tornar-se consciente‖. Mas, prossegue Freud

(1973, p. 2061), o inconsciente tem um ―alcance mais amplo‖ e só é conhecido quando se

torna consciente. Nesta ambiguidade, está contida uma questão relevante: teria o homem

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condições de conhecer e mudar a si mesmo de acordo com o que ensina o paradigma socrático

– ―Conhece-te a ti mesmo‖?

Bloch (2005) não se esquiva das dúvidas, mas prefere realçar as possibilidades. Pensa

o inconsciente não só no sentido do que pensou a filosofia anterior a Marx e a psicanálise de

Freud, mas no horizonte de que o homem não está consciente (dasUnbewusstein) de que a

vida melhor encontra-se no socialismo, não no capitalismo. Encontra no aflorar da

consciência (Bewusstsein) revolucionária a superação de um romantismo inconsciente, já

presente no Renascimento com Paracelso, mas que traz em si a objetividade e subjetividade

do sonho acordado, a unificação da vitalidade com a vontade do novum.

A vida futura seria superior à consciência da vida atual. O que significaria, para

alcançá-la, pensar para além dos fatores objetivos das contradições da realidade, em

permanente conflito com os fatores subjetivos. Segundo Bloch, a união Dioniso-Apolo em

lugar de domesticar o homem e fazê-lo refém da moral da sociedade de classes, contribuirá,

como imaginou Nietzsche, para iluminá-lo e libertá-lo. Fazê-lo pensar na oposição entre o

coletivo e o altruísmo, entre a ilusão e o belo, pensar no ideal de amizade sem nenhuma

filantropia (BLOCH, 1975, p. 191-3).

O que significaria pensar para além dos fatores objetivos das contradições da

realidade, em permanente conflito com os fatores subjetivos. Não basta que estejam em

constante diálogo. É preciso que ambos sejam indivisíveis e inseparáveis. E que o ainda-não-

consciente tenha o olhar voltado para o que são concepções imanentes da classe dominante de

cada época e o que é transformação revolucionária.

A dificuldade é explicar por que o ainda-não-consciente passou ―tanto tempo

desapercebido‖ e continua a permanecer na ―obscuridade‖ (BLOCH, 2005, p. 132). Nem

mesmo as antecipações utópicas de More e Bacon e, posteriormente, as utopias sociais ou as

utopias do mundo dominado pela técnica desenvolveram uma epistemologia que rompesse

com o imobilismo do futuro. Olhava-se para a frente, como na Nova Atlântida de Bacon, nos

camponeses que seguiram Münzer e nas massas que se rebelaram na Revolução Francesa,

mas era mais uma percepção da realidade objetiva das épocas. A função utópica carecia de

conteúdo e de ―sujeito sólido‖ (BLOCH, 2005, p. 144). Não havia uma visão teleológica do

futuro.

O girar em círculos e a rememoração se repetiram com a Revolução Francesa que

ficou incompleta e se distanciou do trabalhador. A decadência da burguesia, somada ao

Romantismo de feição reacionária, prisioneiro do atavismo místico, selaram o processo. Mais

tarde, o ego transcendental do idealismo alemão pregou a virtude do orgulho baseada na

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razão. Com Kant e Fichte, colheu postulados éticos de ―um mundo da espontaneidade da

vontade que não naufragou na experiência mecanicista do já existente‖ (BLOCH, 2005, p.

147). E houve a concepção do ―elã vital‖ de Bergson, que pregava a imutabilidade incessante

do novo, mas numa visão geral, o ainda-não-existente passou desapercebido ante o que já

existia e, assim, permanece (BLOCH, 2005, p. 140). Nada se rompeu com a barreira na

evocação do passado, mas o olhar para o futuro persistiu.

Esses estágios são fundamentais para que a consciência da utopia concreta encontre a

sua totalidade. Mas isso requer a ruptura com o pensamento puramente mecanicista – o

homem que sonha acordado com o futuro, mas que não se desprende da realidade presente

(BLOCH, 2005, p. 181-4). O homem que chega a um novo conceito de realidade, não cede ao

―otimismo automático‖ e ―falso‖, não recusa a ―frieza crìtica‖, que é a personificação do

―otimismo militante‖, que procura a ação concretamente mediada pelo econômico-material e

pelo sonho revolucionário (BLOCH, 2005, p. 197). É o homem da primeira Tese de Marx

sobre Feuerbach que não se isola da realidade e participa da transformação do mundo. Ele é a

expressão dialética das categorias blochianas do front, do novum e do ultimum.

A questão é saber como encontrar a fusão do que o pensamento clássico contém de

olhar para o futuro com a construção do mundo em Marx e iluminar o que transcende à visão

de superfície. E separar o que, na formação ideológica das sociedades, existe de

superestrutura intelectual preparatória para o futuro em contraposição à superestrutura

decadente ou apodrecida, com a má consciência preponderando sobre a boa fé.

Um olhar aguçado não se faz comprovar apenas pelo fato de discernir, mas

também por seu jeito de não ver tudo tão claro como água. E isso justamente

pelo fato de nem tudo estar tão claramente pronto e, às vezes, estar

ocorrendo em fermenta, um formar-se ao qual exatamente o olhar aguçado

faz jus. Esse aspecto inacabado aparece de modo mais amplo, embaralhado

na ideologia, na medida em que ela não se esgota na relação com o seu

tempo, o qual acompanhou todas as culturas precedentes. Com certeza, a

própria ideologia se origina da divisão do trabalho e da divisão, ocorrida

após as primeiras comunas, entre o trabalho material e intelectual. Só a partir

disso, um grupo suficientemente ocioso para criar representações pôde iludir

a si e principalmente a outros por meio delas. Portanto, já que desde a sua

origem as ideologias são da classe dominante, elas justificam a condição

social existente, negando a sua raiz econômica, ocultando a exploração

(BLOCH, 2005, p. 152).

Por mais que existam diferenças entre Platão, Aristóteles, Hegel e Freud, do ponto de

vista filosófico, todos contêm porções de olhar para a frente, de discernimento daquilo que é

interesse da classe dominante, daquilo que é interesse humano. ―Não existe e nunca existiu

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pensamento originado em si mesmo. O pensamento começou com o propósito de reconhecer

uma situação para se familiarizar com ela‖ (BLOCH, 2006a, p. 390). Em Freud, por exemplo,

Bloch encontra advertências quanto às tendências para os prazeres negativos, ou seja, o

impulso negativo, de destruição e agressão, que é libidinal, e deve ser evitado. Não constrói.

Mas, o que interessa a Bloch é a negação da vida imperfeita.

A familiaridade com o real encontra-se na possibilidade, segundo Bloch (2005), de

pensar livremente, como faziam os gregos e, assim, penetrar no país dos sonhos, nos

labirintos da vida, procurando, como disse Empédocles, reconhecer seu semelhante em cada

semelhante, de maneira a conhecer o mundo e transformá-lo. O enigma da consciência e seus

desdobramentos futuros, para Bloch (2005), começam a desvendar-se a partir do conceito

aristotélico da pulsão (hormê) da matéria e sua forma, acoplado com o correlato compromisso

do homem com a vida feliz e com a valoração da sua máxima potencialidade. Não teria força

de lei, mas da interiorização de um conjunto mínimo de atitudes que permitiria ao homem

conciliar a vida em sociedade com a vida em comunidade e individual (KEHL, 1992, p. 261-

2).

É por isso que Bloch (2006a) resgata Platão, no Filebo, diálogo em que trata da

dialética e da ontologia, quando esse considera o bem como ―o que é desejável para todos e

(concretamente) perfeito em si‖ (BLOCH, 2006a, p. 399). Conceito que Bloch considera em

consonância com Aristóteles, Leibniz e Hegel e que permite o conhecimento ―muito além de

Demócrito e do democratismo‖, quer dizer, olhar simultaneamente para a matéria e para fora,

pela infinitude da matéria sob a forma do ser humano e da natureza, como pulsão e

movimento vital (BLOCH, 2006a, p. 340).

São elementos clássicos que unem e inspiram o romantismo revolucionário em

diferentes épocas e que delimitam o sentido da boa consciência do proletariado, pelo aspecto

antecipador, e o significado da ideologia da má consciência, sem função utópica. A definição

blochiana de romantismo revolucionário se desenvolve em torno do entusiasmo. O espelho

em que o termo se olhou na Idade Média, época de forte hierarquia social, era feito, segundo

André Stanguennec (2013, p. 9-10), da matéria prima do romance, que no século XVIII cedeu

lugar ao adjetivo ―romanesco‖, ―romântico‖.

Foi utilizado, no início, para definir jardins ricamente elaborados; depois tornou-se a

exaltação de qualidades poéticas e, a seguir, se associou à filosofia e movimentos políticos.

Teoricamente, no entender de Stanguennec (2013) não existe uma movimento romântico, mas

vários: o romantismo inglês, francês, italiano e alemão. Bloch se fixa nesse último, mas sob a

ótica da genealogia de uma filosofia idealista, que se propaga com o romance de educação

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Wilhelm Meister de Goethe. E o propósito de compreensão da crise alemã e a vontade de

reconstituir a linguagem mítica e poética para o entendimento do tempo atual. Ou, naquilo em

que a filosofia alemã procura ultrapassar o que é religioso ou idealista especulativo.

A partir dessas considerações, Bloch demonstra que as grandes obras da cultura têm

―pano de fundo utópico‖, ainda que nem sempre explìcito como no Fausto de Goethe ou na

obra de Marx, e nem estabeleçam a harmonia revolucionária entre a cultura humana e o ainda-

não-consciente (BLOCH, 2005, p. 154-5). Mas não é tudo: o retorno a Marx nos últimos

capítulos das obras cardeais de Bloch – Geist der Utopie, Das Prinzip Hoffnung, além de

Experimentum Mundi – significa que a vida é problemática, mas a mudança para a vida

melhor é possível e se encontra em processo.

3.6 PULSÕES, O CONFLITO ENTRE O HOMEM BURGUÊS E O HOMEM

HISTÓRICO

Quem nos impulsiona? Nós nos movemos, somos ardentes e incisivos. O que

vive é estimulado – em primeiro lugar por si mesmo.

Ernst Bloch, O princípio Esperança (2005, p. 48)

Pelas pulsões,99

o ainda-não-consciente ganha dinâmica nos escritos de Bloch e inicia

a sua articulação com os desejos (assim poderia ser, mas de modo passivo, parecido com o

ansiar), o querer (o desejar somado a uma escolha, um alvo a alcançar), a vontade (como

gênese do ainda-não-consciente) e os sonhos acordados (o desejo de ver as coisas mudarem,

que não adormecem). Um dos seus pressupostos é que o controle das pulsões corresponde ao

momento de expansão do pensamento consciente e que, nele, contracena o sentido de

realidade interior e exterior. Para aproximar-se do mecanismo das pulsões, tema tão vasto

99

O uso do termo pulsão surgiu em 1625 na França, derivado do latim pulsio, como sinônimo do ato de

impulsionar. A palavra usada por Freud, em alemão, é Trieb e aparece pela primeira vez no Projeto para uma

Teoria Científica, de 1895, e, posteriormente nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sensualidade em 1905. O

conceito freudiano de pulsão está acondicionado em duas vertentes: as pulsões de conservação do eu e as

pulsões sexuais. A partir de 1920, com Além do Princípio do Prazer, Freud introduz os conceitos de pulsão

de vida e pulsão de morte, o que não significou o abandono dos conceitos anteriores, mas um desdobramento

dos mesmos. Fazem parte do universo das pulsões, a pulsão sádica e de domínio. Freud não confunde pulsão

com instinto (Instinkt). A confusão não se deve a Freud, mas a James Strachey, que traduziu o termo Trieb

como instinto cujo significado corrente é mais próximo de impulso do que de instinto (GARCIA-ROSA,

1985, p. 114).

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quanto o ser humano, Bloch cita o estado de urgência que acompanha o homem desde o

nascimento:

Ninguém escolheu para si esse estado de urgência: ele está conosco desde

que existimos e pelo fato de existirmos. No nosso ser imediato, tudo se dá de

modo vazio e por ávido, almejante e por isso inquieto. Mas nada disso se

sente. Primeiro, é preciso que isso saia de si mesmo. Então é percebido como

uma urgência muito vaga e indefinida. Nenhum vivente se livra do quê dessa

urgência, por mais que esse quê tenha lhe cansado. Essa sede se manifesta

constantemente e não se identifica (BLOCH, 2005, p. 49).

A urgência é interior, mas ela ganha o exterior e pode ser uma avidez qualquer, voltar-

se para um alvo meramente individual – o pão, o desejo sexual, o poder, a servidão, a idolatria

–, como pode direcionar-se para um alvo, um desejo maior, a exemplo de um avançar ativo,

um desejar possível, com rumo definido, a posse de si mesmo.

Em Traces, Bloch recorre a dois exemplos ilustrativos. Um menciona a pobreza: uma

mulher que economiza luz, porque é mais fácil do que economizar comida, mas, seja o que

for que economize, o seu propósito é estar a serviço do seu senhor, mesmo na solidão da sua

privação (BLOCH, 1968, p. 15). O outro trata da filosofia: não é papel da filosofia fazer o

lobo sair da floresta, mas não se poderá fazer o lobo sair da floresta sem a filosofia. Não se

pode transformar o mundo sem o pensamento. Não se deve agir sem pensar. O pensamento é

que abre as janelas do mundo, é que deixa o mundo mais claro (BLOCH, 1968, p. 175).

Esses exemplos servem para mostrar que Bloch não trata de uma realidade estática,

tragada pela alienação de um certo tipo de vida, mas de realidade dinâmica, que, como

pensamento concreto, ―entrega-se à correnteza, não ao repouso‖, e isso de uma forma não

alienante (BLOCH, 2006a, p. 405). Ele aborda o ainda-não-consciente com o sol humano, o

símbolo da luz e, é possível, da busca dessa mesma luz. O pobre, se vier a pensar

dinamicamente na perspectiva da luz da rebeldia, reuniria forças para insurgir-se contra o

senhor, assim como a filosofia pode renovar-se a partir da própria essência, sem mais

interditar o futuro.

Não é diferente do domínio que as pulsões exercem sobre o homem. Na hipótese de se

tornar consciente, o homem é capaz de compreender o mecanismo de alienação a que se deixa

submeter. A desalienação é, nesse sentido, uma nuança sutil que pode significar o despertar

para uma realidade no tempo, tal como entenderam Heráclito, o filósofo da correnteza,

Empédocles e Agostinho, pode recair no eterno retorno do tempo circular, mas aponta

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igualmente para a mutabilidade do mundo. As pulsões estão cheias dessas possibilidades. O

enigma é como decifrá-las e transformá-las em fontes de mudanças.

O pulso necessita de alguém atrás de si. Porém, quem é o estimulável que

busca? Quem se move no movimento vivo? Quem dá o impulso no animal?

Quem deseja no ser humano? Aqui, nem tudo gira em torno do eu, pois uma

pulsão nos sobrevém. Todavia, isto não significa que não exista qualquer ser

individual, completo em si mesmo quem carrega as pulsões, sente-as e,

mediante a sua satisfação, desfaz-se de todo sentimento de desgosto. Ao

contrário, esse ser é, em primeiro lugar, o corpo vivo individual: sendo

movido por estímulos e transbordando deles, possui ele os impulsos que não

pairam de modo genérico. Se o animal come, é o seu corpo que fica saciado,

e nada além disso (BLOCH, 2005, p. 51-2).

Pulso e pulsão são rigorosamente a mesma coisa na linguagem blochiana. Revelam

aquela que é o embrião da antropologia filosófica de Bloch, a ―obscuridade do instante

vivido‖. Enraizado no vazio, obscuro no seu conteúdo e duração, mas parte inerente ao

homem, o ―pulso da obscuridade vivida‖ consegue enganar a vida e torna as coisas

inconclusas (BLOCH, 2005, p. 284). Como um ―ponto cego‖ dos sentidos, o instante vivido

permanece invisìvel na sua ―imediatez‖ e submerge a consciência sempre que o pulso lateja e

desperta. Passa do repouso ao movimento sem aviso.

Ninguém sabe, segundo Bloch (2005), exatamente o que acontece, embora o ―pulso‖

seja a coisa mais experimentada que existe. Como latência, o nada pode ser o nada, mas

também pode ser o tudo, porque se algo existe pode mudar, situar-se no ponto zero de um

―ativo-utópico. Uma realidade parece efetiva, ainda no entendimento de Bloch (2005, p. 288):

é o ―pulso‖ que, em última análise, também proporciona o modelo de caráter. Em Bloch, a

―imediatez‖ é que significa ―não-ter-a-si-mesmo‖ no tempo e no processo manifesto da

realidade. É o que justifica a atenção de Bloch para o conceito do ainda-não-consciente e pela

possibilidade da consciência antecipadora por meio dos sonhos acordados. A qualidade

essencial do futuro – que ele afirma e reafirma em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e

em O Princípio Esperança – dependem da superação da obscuridade.

Por não se restringirem ao egoìsmo capitalista do si mesmo, as ―pulsões‖ ou o ―pulso‖

constituem fenômeno em aberto com possibilidade de desdobrar-se em solidariedade

transformadora. O acontecimento pode não deixar a obscuridade imediata, tal como Bloch

(1968, p. 26- 37) menciona em Traces (Spuren) ao se referir às dificuldades que o homem

enfrenta para perceber que a inevitabilidade do destino não passa de uma ilusão ou ao prazer

que os ricos têm de jogar com os pobres, mas no decorrer do processo a realidade é percebida

e captada como agora. Não se trata de uma abstração, mas da dialética do real que, como

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lembra Bloch (2005, p. 288) surge como ―elemento intenso‖ em ―correspondência com o

corpo‖. Confunde-se com os afetos, geralmente não associadas às condições econômicas dos

indivíduos e à sociedade de classes, à autopreservação ou à fome, embora perpassem as

sociedades e mudem de acordo com as épocas históricas (BLOCH, 2005, p. 68-70).

Se nenhuma pulsão persiste imutável, o mesmo se dá com aquilo que a

sustenta. Nada está estabelecido de uma vez por todas desde o início e

justamente o nosso si mesmo não nos é predeterminado. Havendo uma

mudança histórica das paixões, surgindo novas paixões com objetivos

renovados, modifica-se também a fogueira subjetiva na qual todas elas estão

cozinhando. Não há mais uma pulsão ―original‖, tampouco há um ser

humano primordial ou até um ―velho Adão‖. A pretensa ―natureza humana‖,

nos termos de uma investigação rígida da pulsão fundamental, foi recriada e

derrubada cem vezes no decorrer da história (BLOCH, 2005, p.70).

A metamorfose no sentido de suplantar a obscuridade pode ser percebida como

necessária, mas não se concretizará na sociedade de classes. O cenário de mudanças é dado

pelo processo histórico. Por insuficiência da metamorfose, a intuição criativa ficou embotada,

e a utopia, prisioneira do atavismo, confundiu-se com fantasia quimérica. Tratou-se, para

Bloch (2005), de submissão às pulsões do homem burguês, em Freud,100

e do homem

mitológico, em Jung, não a visão do homem histórico.

Esse paradoxo tem a função de legitimar diferentes tipos de homem: para Rousseau e

o Iluminismo, o ―homem natural‖, ―arcádio e racional‖; para Nietzsche, o homem era avesso

à ―razão‖, o que servia aos interesses capitalistas, e o idealista Schiller reconhecia que o

homem era movido ―pela fome e pelo amor‖, colocando a fome em primeiro lugar (BLOCH,

2005, p. 70-1). As diferentes classificações do homem camuflam o alvo principal: abstraído o

páthos revolucionário do homem como ser social, a superação do capitalismo é adiada ou

100

Distância e aproximação são ingredientes decisivos na relação de Freud com a filosofia. Considerava-se um

―filósofo da psicanálise‖ e referiu-se à filosofia com respeito e, em mais de duas dezenas de vezes, aborda,

nas suas principais obras, a filosofia e filósofos. Refere-se a Bacon e Schiller (FREUD, 1995, p. 892, 1245,

1304). Ou à filosofia, como a filosofia do misticismo e filosofia da vida (FREUD, 1995, p. 3646, 5681).

Entretanto, não camuflava sua desconfiança quanto ao discurso filosófico por não se circunscrever a um

objeto específico, como é a psicanálise, e por procurar explicar o homem e o real na sua totalidade. Em

Totem e Tabu, de 1933, considera o homem da pré-história, em certo sentido, ―nosso contemporâneo‖, refém

das neuroses pelo respeito aos soberanos, pela necessidade de líderes e pelo temor da morte (FREUD, 1973,

p. 1747-85). ―Diante da Revolução Russa, Freud não manifestava entusiasmo. Perguntava-se, em 1930, o que

fariam os soviéticos depois que tivessem exterminado todos os burgueses (FREUD, 1973, p. 3647-8).

Entendia que a questão era muito maior, sendo indispensável combater, em cada ser humano, as tendências

antagônicas de vida e de morte, de felicidade individual e de união humana, de enfrentamento entre o

indivíduo e a cultura, no sentido da liberdade, da felicidade e da concepção da própria história. Argumentava:

o instinto de agressividade decorrente da propriedade privada, mas das restrições existentes desde as

sociedades primitivas, quando a propriedade privada era escassa (FREUD, 1973, p. 3048-65).

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mesmo ignorada. Consequentemente, o mundo é duplicado em imaginário e real, com o

mundo imaginário tendendo a preponderar sobre o mundo real.

3.7 PULSÕES NÃO HOMOGÊNEAS NA SOCIEDADE DE CLASSES

A última instância da estrutura das pulsões, ao longo da história, é

representada pelo interesse econômico, mas mesmo ela e exatamente ela

tem, como se sabe, suas formas históricas variáveis, suas modificações no

modo de produção e de troca. Sim, inclusive o próprio si-mesmo dos homens

que quer se conservar, que se reproduz mediante o consumo de alimentos,

que é produzido pelo respectivo modelo econômico e pela respectiva relação

com a natureza, é o ente historicamente mais variável.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 71-2)

Nem mesmo a fome, que é uma categoria relativamente estável no mundo, é

permanentemente imune às mutações da história, na visão de Ernst Bloch. A história a tudo

abarca, por ser construção do homem, a ela não escapando sequer a pulsão da

autopreservação, tida como a ―pulsão básica mais confiável‖ (BLOCH, 2005, p. 68). É

importante assinalar que Bloch não se refere às pulsões (Trieb) no sentido clínico, nem

biológico, mas no campo das relações sociais.

A exemplo de Freud, ele considera as pulsões no limiar do psíquico e do somático,

mas diferente de Freud, entende que as pulsões se misturam com os instintos e a vontade

humana de controlá-los. Transmitem a impressão de terem ―vida própria, dominam o corpo‖

e, por vezes, aparentemente, ―transformando o ser humano em sua presa‖ (BLOCH, 2005, p.

52). Nada, porém, garante que as pulsões são portadoras de si mesmo, além do corpo que

procura se manter vivo e do ―eu‖, o qual torna o homem mais sensìvel às suas carências do

que qualquer outro animal.

Por isso, existem várias molas propulsoras, dependendo do caso, e não uma

única, que movimenta tudo. Só existe continuamente o corpo que quer se

manter e por isso come, bebe, ama, domina. É somente ele que age nas

pulsões por mais diversificadas que elas sejam, mesmo as que foram

transformadas pelo eu que surgiu e por suas relações (BLOCH, 2005, p. 53).

Esse aspecto sugere a pergunta: poderia o homem ter o controle de si mesmo? Poderia

ele apreender o momento presente e superar a experiência do instante vivido, sempre que este

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fosse apenas a fugacidade incógnita do momento? Poderia ele distanciar-se do presente e só

tentar apreendê-lo quanto este se transformasse em passado? A alternativa proposta por Bloch

é que o homem se projete para o futuro e que controle a insatisfação, o impulso animal, e que

procure diferenciar o que faz apenas por impulso do que faz com um objetivo delineado. Cita

como exemplo de possibilidade, Ulisses de Homero que ao voltar para Ítaca estava tão

determinado a agir para livrar sua casa de indesejáveis pretendentes, que deu um ―salto para

dentro do ainda-não-consciente‖, ―salto que não tem volta‖ (BLOCH, 2005, p. 299). E matou

brutalmente os nobres que tinham acampado em sua casa e dilapidavam seus bens.

Foi um salto regressivo, uma volta ao passado. Todavia, como metáfora, poderia ter

escolhido outro caminho. Isto porque a obscuridade não remonta à origem do homem, mas ao

ser imediato. Desse modo, para Bloch (2005, p. 303) cada instante vivido, seria ―se tivesse

olhos, testemunha do início do mundo, que nele ocorre constantemente: cada instante, como

não manifestado, situa-se no ponto zero do inìcio do mundo‖. A criação do devir é constante.

O novo é sempre possível. O presente-futuro pode libertar-se do agora-não e transformá-lo na

vontade não repetitiva voltada para o presente. Epistemologicamente, segundo Bloch, a

pulsão torna-se perceptível quando o homem constata que não tem domínio de si porque as

―pulsões‖ estão ―soterradas nas profundezas do seu ―eu‖ e precisam deixar a sua

―indiferença‖ para atingirem a superfìcie (PASTOR, 1986, p. 388).

No homem, simultaneamente, as pulsões originadas pela história são geradoras de

novas pulsões, como aquela do tédio, que atinge normalmente os ―ricos e supernutridos‖; a

pulsão de aquisição, que ―alcançou amplitude totalmente desconhecida em épocas pré-

capitalistas‖; e obsessões abstratas tipicamente capitalistas como os recordes, o tecnicismo, a

velocidade, o lucro máximo, o instinto fascista e imperialista para a morte, a religiosidade, o

pendor para a construção da felicidade, o instinto sentimental da época de Werther, pelo culto

à aparência em lugar do ser efetivo e a sedução pela orgia (BLOCH, 2005, p. 53).101

101

No fim da Idade Média, as festas promovidas pela classe dominante eram ―a grande máscara‖, a flagrante

aparência. Na Alemanha, as festas organizadas pelo déspota Karl Eugen von Württemberg, que fazia ―ouro

do suor dos seus súditos‖, prolongavam-se por 15 dias sem interrupção e se revelavam mais feéricas que as

festas de Versalhes. Pelo prazer da ostentação, pela magia onírica dos cenários, a imitar cenas míticas, como

a felicidade das ilhas dos feacos narrada por Homero, e pela aliança entre o arquiteto e o maître de plaisir

(mestre do prazer), projetava a varinha mágica das ilusões por todo o universo da nobreza europeia. Por todo

o renascimento sobrepunha fantasias de orgias à razão (BLOCH, 2006a, p. 255-7).

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O ser humano consciente é o animal mais difícil de saciar: é ele o animal

que, para satisfação dos seus desejos, não vai direto ao ponto. Se lhe falta o

necessário à vida, ele sente essa carência como nenhum outro ser: visões da

fome emergem. Se ele tem o necessário, com o desfrute, emergem novos

apetites, que molestam de outra maneira e não menos do que antes o fazia a

pura carência. Os ricos supernutridos (porém não só eles), eventualmente, dá

singular comichão do não-sei-bem-o-quê. Sobretudo o luxo (que

aparentemente preenche tudo) é um impulsionador insaciável (BLOCH,

2005, p. 53).

Para Bloch, essas características, mais fortes ou mais fracas a depender das épocas, às

vezes simultaneamente fortes, ora simultaneamente fracas, significam que as pulsões, ao

contrário do que pensou Freud, podem ser tornadas conscientes como se fosse uma

Vorstellung, termo consagrado pela filosofia alemã, significando aquilo que está presente no

espírito ou é representação em oposição ao afeto (Affekt).

Igualmente, na sociedade de classes, as pulsões não se desenvolvem homogeneamente

no homem e não encontram, no diagnóstico de Bloch (2005), seu cerne no impulso sexual e

no conflito com as tensões do ego, no seu impulso de negar e censurar pulsões.

Objetivamente, na concepção dos impulsos, ele se ocupa de três autores Freud, Alfred Adler e

Jung.

Na sua perspectiva, a concepção freudiana é adaptativa e o burguês vive não em

conflito apenas com o seu ego, mas com o choque da realidade imposta pelo mundo da

mercadoria e sua ideologia. A libido seria o ―reino inconsciente da pulsão‖ que arrebata o

corpo com poderes ―desconhecidos e incontroláveis‖, mas Bloch o critica por considerar que

―camuflar a sexualidade‖ envolve ―espessa trama de discrição, hipocrisia e mentira‖

(BLOCH, 2005, p. 57). Não nega que a libido esteja envolvida por uma ―censura

moralizante‖, deseja trazer o problema para o âmbito da dialética da história e da sociedade

burguesa. Não concebe o homem como cativo dos seus desejos e da sublimação dos seus

instintos sexuais.

Na discussão sobre Freud, conjuga duas dimensões da psicanálise que considera

equivocadas: o caráter regressivo, que interditaria o ainda-não-consciente de se tornar

consciente e o conceito da libido como causa primeira das pulsões, com pontos de contato

com a filosofia de Schopenhauer que considerava os órgãos sexuais como ―pontos focais da

vontade‖ (BLOCH, 2005, p. 61-2). Criava-se o que Bloch define como ―superestrutura de

pulsões‖, desconstruìda, em grande parte, pela psicanálise e a sua proposta de reduzir o ―mofo

hipócrita e também neurotizante‖ da vida burguesa, mas a ―claridade do dia‖ se dá para dentro

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de uma ―libido privada‖ e do ―mal estar‖, distante do fim do mal estar da sociedade (BLOCH,

2005, p. 57).

Na procura das causas primeiras das pulsões, quem exprimiria com acerto a negação

da libido como mola propulsada, segundo Bloch, seria um ex-discípulo de Freud, Alfred

Adler, que julgava ser ―vontade de potência‖ a pulsão fundamental do homem. Seu objetivo,

antes de tudo, estava em: ―dominar e derrotar‖, ―confirmar-se individualmente como

vencedor‖ (BLOCH, 2005, p. 60).

A crítica de Bloch (2005) se desenvolve em ondas. Adler não explica a fonte

originária do seu pensamento. Não vincula as neuroses às causas econômicas, como também

não o fazem Freud e Jung. E a vontade de vida, expressa por meio do poder, se configuraria

mais uma compensação pela falta de tempo para exercitar a sexualidade do que por qualquer

outra razão. Assim, o desejo individual de potência perde sentido, se torna próximo da

linhagem capitalista, e foi relegado a uma repetição da libido sexual freudiana.

Jung, a quem Bloch define como ―fascista psicanalìtico‖, é criticado com absoluta

veemência por querer reduzir a libido e seus conteúdos inconscientes a um fenômeno pré-

histórico (BLOCH, 2005, p. 59). Considera Jung fascista pela sua relação com o que

conceitua como ―libido pânica‖, o ódio à inteligência dos nazistas (―o único meio para

compensar os danos da sociedade atual‖, como Jung teria dito segundo Bloch), pelo culto aos

mortos que obstrui o futuro e pelo empenho de Jung de ―confinar‖ inconsciente nas pulsões

mais primitivas do homem, conexão arcaica que empurra a libido para o ―ventre da natureza‖

(BLOCH, 2005, p. 65-7).

―Mistérios atávicos‖ que são refutados pelo platônico Plotino, citado na argumentação

de Bloch, uma única frase: ―a alma do mundo é a energia do intelecto‖; e que Descartes, nas

Meditações (2004), também lembradas por Bloch, definiu como o ato de pensar que consiste

em ―toda a natureza do espìrito (BLOCH, 2005, p. 67-74). Em suma, é o pensamento que

impulsiona o homem para a frente e alcança as ―áreas mais extensas da privação negada, ou

seja, da esperança (BLOCH, 2005, p. 79). Por essa percepção o homem irá determinar o seu

modo de agir, de transformar o real e, possivelmente, trocar os sonhos escapistas, noturnos ou

diurnos, pelos sonhos acordados de mudança.

Se Freud entende a libido como fruto das repressões desde a infância, Jung vai

procurar as razões nos desejos contidos ao longo de toda a história. O inconsciente, em Freud,

é individual, fruto das repressões aos indivíduos, em Jung é coletivo. Na ironia de Bloch

(2005, p. 65-6), Jung trocou a claridade pela obscuridade: nunca se livrou do ―diletantismo

romântico não estruturado‖ dos seus anos de formação, tratou os arquétipos de forma

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regressiva e vinculou o homem moderno com ―Gaia ou Cibele‖,102

com aquela ―entidade

arcaica‖ que está na origem, em igual medida, no mito reacionário das raças e no imaginário

das ―pulsões do animal humano primitivo‖. Arquétipo fantasioso, continua Bloch (2005),

povoado de figuras míticas – fogo, serpentes, mãe-terra e velho sábio, sem nenhuma menção

ao empreendimento capitalista ou à consciência das suas ―vìtimas atordoadas durante seu

tempo livre‖.

Jung retomou o conceito de uma ―memória da matéria orgânica como um todo e dos

vestìgios dessa memória‖, que permaneceriam vivas na libido, anulando qualquer

possibilidade do inconsciente se tornar consciente (BLOCH, 2005, p. 63). Seria um arcaísmo

contrário a Freud, que voltava aos elementos tribais do inconsciente para curar seus pacientes.

Jung, no conceito de Freud, era ―completamente genérico, primitivo e coletivo‖ e tornava o

inconsciente desejando regredir aos ―500 mil anos‖, o que tornava qualquer mudança

impraticável. Um segundo momento da crítica a Jung é o conceito de inconsciente coletivo, o

qual Bloch considera ―mais impregnado da loucura da bruxaria do que da razão pura‖

(BLOCH, 2005, p. 64).

Entre outras coisas, o que resulta é que o inconsciente é tomado do corpo. A

libido é até totalmente expulsa para as trevas, para o inconsciente como alvo.

Em Freud, o doente era lembrado do inconsciente apenas para que se

libertasse dele. Em C. G. Jung, no entanto, ele é lembrado do inconsciente

para que mergulhe completamente nele, mais precisamente em camadas cada

vez mais remotas do passado. A libido torna-se arcaica, sangue e solo,

homem de Neandertal e período terciário se lançam ao mesmo tempo, ao seu

encontro (BLOCH, 2005, p. 64).

O pensamento blochiano remete-se para a impossibilidade de o homem histórico

voltar aos tempos primitivos, como entende nos conceitos de Jung que, como ele lembra,

fundados no romantismo nunca renunciou à ―baboseira mágica (comandada pelo capital

monopolista)‖ que obstruiria o futuro, ―mistificado por uma medicina moral‖ (BLOCH, 2005,

p. 66). Na perspectiva blochiana, o homem pode tornar-se um bárbaro decadente, um

neurótico pulsional, como foram Nero, Calígula e Hitler, mas jamais voltará a ser um homem

de Neandertal. Como não há volta nas utopias passadas, não há volta na história do homem.

Há repetições não dialéticas, mas as pulsões mudam até pelo instinto de preservação. Pois,

para que a pulsão exista, é preciso de um corpo, instinto e paixões cambiantes.

102

Na mitologia grega, Gaia é a mãe Terra; Cibele, a mãe dos deuses, a deusa dos mortos, a grande mãe

primordial.

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Também muitos dos chamados primitivos de hoje, como se sabe, de forma alguma,

são a criatura humana mais antiga. Representam, antes, os produtos da decadência das

grandes culturas. Não são a velha physis, mas há muito já se tornaram a nova physis em

virtude de terem herdado qualidades historicamente construìdas. O ―pagão‖, batizado pelo

missionário; o ―velho Adão‖, despido pelo cristão, são novamente eles mesmos, os ―Cristãos‖

de uma tradição e uma religião anterior, isto é, de uma anterior reviravolta da criatura. Desse

modo, o chamado homem movido pela pulsão original, situado abaixo do homem histórico e

do homem moderno, não pode ser encontrado e nem existe cientificamente. O que assim se

chama é (em Freud) o homem burguês, movido por pulsões, desfigurado e sepultado sob a

linguagem dissimulada da era vitoriana, ou mesmo (em Jung) uma fantasmagoria extraída dos

―frascos mitológicos‖ (BLOCH, 2005, p. 71).

As pulsões sempre se manifestam, mas não podem ser absolutizadas, como teria feito

Freud, e menos ainda excluídas da classe social a que o homem pertence. Vê-las como

constantes ao homem, independente de classes, e dissociadas do egoísmo capitalista, do

desenrolar da história e das possibilidades do vir-a-ser mediante o trabalho e a solidariedade,

é desfavorável ao acordar humano para o ainda-não-consciente.

O pensamento blochiano é marcado pela procura do sentimento real do homem e seus

desdobramentos no terreno das emoções ou afetos que podem vir do coração ou dos

interesses, ter suas raízes nas vivências ou no idealismo, mas não deixam de ser reflexo do ser

no seu tempo. Seu propósito é separar – ou superar – os sentimentos voltados para o futuro,

como a esperança, antídoto contra o medo e a angústia, a mais humana das emoções, dos

sentimentos temporais, superficiais ou inautênticos, tais como a ganância e a cobiça.

Bloch quer alcançar o que significativamente ainda não se encontrou, para ele, no

estudo das pulsões, aquilo que sobrepujaria o consciente presente e envolve os sonhos

diurnos, mesmo os mais simples, para a frente. Refere-se às pulsões que ativam a consciência,

que ultrapassam ―imaginariamente aquilo que está ao alcance da mão‖, o agir das pulsões

criativas da vida melhor, as quais se encontram à meia luz (BLOCH, 2005, p. 78-9). Trata-se

de uma discussão filosófica, não de uma discussão médica. Assim, o problema não é

questionar a pulsão de natureza biológica, mas aquelas que têm a marca da história impressa

na sua existência e expansão.

Mas o cerne da crítica blochiana é contra a rememoração. A discussão procura mostrar

o inconsciente na psicanálise como elemento de regressão, ―nunca é um ainda-consciente, um

elemento de progressão‖ (BLOCH, 2005, p. 59). Ao criticar a rememoração e a ausência do

novo, Bloch almeja voltar à questão inicial: o que move o corpo e as pulsões? Logo depois de

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criticar Freud, Adler e Jung, o primeiro com certa reverência, Bloch passa a expor a sua

própria percepção quanto às pulsões: a autopreservação, por exemplo, pouco discutida por

Freud, Jung e Adler, seria capaz de colocar em movimento as outras pulsões. Mas a pulsão

das pulsões, para Bloch, é a fome, esta foi ―cuspida da psicanálise da mesma maneira que o

linguajar dissimulado dos salões cospe a libido‖ (BLOCH, 2005, p. 63). Se há fome, não há

futuro possível.

3.8 FOME, DESEJOS E VONTADE

O instante vivido agora mesmo, como tal, produz turvação: ele tem uma

calidez demasiado obscura e sua proximidade desfaz as formas.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 179)

Ao ―aqui e agora‖, o instante vivido, falta o distanciamento que produz ―estranheza‖,

mas torna a realidade mais clara e compreensível. Por isso, o mundo burguês serve aos ideais

de liberdade, igualdade e fraternidade, mas ―apenas da boca para fora‖, e a fome, como

tomada de consciência antecipadora, perde lugar para o desejo sexual (BLOCH, 2005, p.

181). A filosofia narra os afetos como sendo ―estados de si mesmo‖ e ―as emoções mais

ativas‖ (BLOCH, 2005, p. 74). Agostinho, Kierkegaard, Descartes, Espinoza e Hegel, com

variações, concebem o pensamento subjetivo como determinante, o que seria superficial, aos

olhos de Bloch, porque eliminaria a doutrina dos afetos a partir de fora. Assim como as

épocas e as relações dos homens com o mundo intervêm repetidas vezes na narrativa das

pulsões, pode-se constatar que os sentimentos impulsivos sempre foram tratados de forma

insuficiente.

O choque dos mundos, interior e exterior, é que faz do si-mesmo algo que transcende a

preservação: ―torna-se explosivo‖ tornando a ―autopreservação‖ em ―autoexpansão‖, ―ativa a

consciência como consciência‖ e impulsiona o homem para a frente (BLOCH, 2005, p. 78). A

visão de Bloch procede da incompletude do quadro teórico que ele considera comum à

psicanálise e à filosofia, impedindo, na sua trama individualista, que dialoguem e favoreçam a

consciência do homem solidário. Entende que as pulsões precisam ser orientadas para um

alvo (BLOCH, 2005, p. 49). Sem alvo, movimentam-se cegamente, transmitem a impressão

de ter vida própria, dominam o corpo, fazem do ser humano uma presa.

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O ―ser imediato‖ busca algo exterior para preencher o vazio. Uma vez preenchido,

pode se tornar menos ávido, mas permanece insaciável. É o que explica o desejo e o apetite

humanos, sendo o desejar mais amplo e o apetite mais antigo: ―O animal dirige-se para o alvo

conforme lhe dita o apetite, o ser humano retrata-o por antecipação‖ (BLOCH, 2005, p. 50).

O estômago é a primeira lâmpada na qual deve ser derramado o óleo. Seu

anseio é preciso, sua pulsão é tão inevitável que nem mesmo pode ser

recalcada por muito tempo. Todavia, por mais alto que a fome grite,

raramente ela é tratada do ponto de vista médico. Essa omissão mostra que a

psicanálise tratou apenas de sofredores privilegiados. A preocupação de

procurar alimentos era para Freud e seus pacientes a mais sem fundamento.

Não obstante as modificações temporais e de classe, a expressão real da

questão é o interesse econômico: não é o único, mas o fundamental e

universal (BLOCH, 2005, p. 68-9).

A palavra fome contém pulsões múltiplas, como Bloch ilustra: sentimentos passionais

(triebefühle), as emoções (Gemütsbewsbewegungen) ou afetos, as paixões, a disposição, o

ânimo, o interesse, a melancolia, o ato de imaginar, pensar, e, inclusive, a esperança. Ou

vingança, volúpia, ganância, afetos do desejo ou do não desejo, que se abrem para um ordem

autêntica dos sentimentos, um futuro afetivo novo na imagem do ―afeto mais importante, o

afeto do anseio, portanto, o autoafeto por excelência‖ (BLOCH, 2005, p. 72-3),

A fome que deve poder acompanhar todos os afetos, irrompe do modo mais

evidente no grupo da libido e da agressão. E quase todos os afetos podem ser

associados aos polos da vontade, negação ou afirmação, insatisfação ou

satisfação consigo e com seu objeto, sendo que por um lado os afetos de

repulsão – angústia, inveja, ira, desprezo e ódio – e, por outro, os afetos de

atração – agrado, magnitude, confiança, veneração e amor – coincidem,

majoritariamente, com a velha dualidade entre desprazer e prazer (BLOCH,

2005, p. 75-6).

O que é impossível conseguir é um resultado exato. De que adiantam a utopia ou a

liberdade para um ser com fome? A fome pode ser literal, como pode ser a fome de progredir,

de ver o socialismo na alma do mundo, a fome de escapar das fendas da solidão. Pode ser a

fome que, anexada às preocupações financeiras, limita a libido das classes pobres, como pode

ser a fome de sexo, que fomenta o ―complexo do dinheiro‖ nas classes ricas ou a fome como

―expressão mais evidente‖ do homem nas suas relações econômicas, com os nacionalismos ou

da individualização da concorrência capitalista (BLOCH, 2005, p. 70). Mas, a questão maior é

que a fome simboliza a capacidade humana de acordar para a realidade, desejar alimentar-se e

reagir se a realidade for adversa.

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O poder desse desejo não é um poder efetivo: o homem pode desejar, mas ser passivo

ou irracional; pode deixar o desejo esgotar-se na imaginação ou nas impossibilidades

impostas pelo cotidiano. Pode reduzir-se ao mero apetite e se limitar ao que se encontra ao

alcance. Como também pode ficar guardado, constituir-se na semente a ser cultivada. Mas não

há trabalho no apenas desejar. O desejar é uma potência passiva. Falta a práxis. E essa só

surge quando o desejar se transforma em querer, potencialidade ativa. Daí, a metáfora da

fome. Se há fome, não há como se manter passivo.

O desejar pode ser indeciso, apesar de uma bem determinada imaginação do

alvo para o qual se estende. O querer, ao contrário, é necessariamente um

alcançar ativo rumo a esse alvo, dirige-se para fora, tem de se medir

unicamente com coisas realmente dadas. Sendo que o caminho trilhado pelo

desejar, acrescido e assim solidificado pelo querer, pode até ser

propriamente indesejado, áspero ou amargo. Entretanto, em última análise,

nada se pode querer além do desejado (BLOCH, 2005, p. 51).

Existe a alternativa do desejo de construir a consciência. O consciente-ciente se

manifesta pela vontade de ultrapassar a ―legalidade econômica objetiva‖ que, como

demonstrou Mandeville na sua fábula das abelhas, não há altruísmo na engrenagem

capitalista, o que a paralisaria, mas o predomìnio da ―pulsão egoìsta‖ (BLOCH, 2005, p. 150).

A contrapartida é que desde Mandeville há progressiva consciência de que o interesse pessoal

não pode estar desatrelado do interesse coletivo e que o cidadão, mesmo em termos da

sociedade capitalista, não vive inteiramente para a economia privada. A mentalidade social,

outrora chamada virtude, se faz presente e a pulsão, como progresso, se projeta para além do

momento, arranca a ―ilusão‖ da utopia e se revela favorável à vida melhor (BLOCH, 2005, p.

152).

O desejo, em Bloch, não está associado ao desencantamento do mundo, mas à beleza

da origem grega associada ao verbo desidero. Surge do substantivo sidus ou sidera, uma

constelação de estrelas. A ambiguidade do desejo exibe características desafiadoras, no

sentido de carência, vazio, ausência, exigência, mas o que ocupa o espaço de atenção é a luta

do desejo com a consciência e com a razão, o oposto do instinto cego.

O homem, se há um vácuo entre o fantasma do obsoleto e o desejo pela luz, não pode

se aperfeiçoar no sentido socialista se não for mediado pela ética, pela grandeza tácita, pela

rejeição à ruína. O desejar mediado tampouco cede, tampouco renuncia. Ele não se perde de

vista, por mais que seja dificultado. Ele não fica preso à realidade dada, e sim, considera

apropriado não crer inteiramente no que vê ao deparar com o visível existente. Em

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contrapartida, a esperança subjetiva, está certa e segura de si mesma, mesmo que aquilo que é

designado por ela, a esperança objetiva, chegue a ser apenas provável (BLOCH, 2006b, p.

458).

Há, nessa oposição, o duelo entre a natureza e a história, o impulso e a excitação, o

sentimento interior e a exterioridade; a luta de morte entre o desejo da acomodação capitalista

e o desejo da transformação socialista também se opõem dialeticamente, espelhando a

ambiguidade da palavra grega apptitus, que tanto pode ser agressão, ataque, choque, assalto,

como também pode ser solicitação, demanda, movimento.

A irracionalidade e a racionalidade estão presentes na ordem do comportamento

humano, o mesmo acontecendo com a dicotomia corpo e alma, consciência e transformação

da realidade. Mas isso acontece porque o homem tem naufragado na ―experiência

mecanicista‖ do já existente e pelo relacionamento das mudanças às abstrações da

autoconsciência (estoicismo) e do idealismo (BLOCH, 2005, p. 149). Segundo Bloch (2005),

o ainda-não-consciente tem como princípio o controle das pulsões. O princípio é fazer o

homem acordar para a historicidade das pulsões e a função utópica da vontade. Sem a

vontade, não há esperança.

Na esperança consciente-ciente, não há debilidade, mas uma vontade que

determina: é assim que tem que ser, assim há de ser. Nela o traço do desejo e

da vontade irrompe energicamente, o intensivo na superação e nas

transcendências. Seu pressuposto é um caminho firme, uma vontade que não

se deixa preterir por nada já existente; essa firmeza é seu privilégio

(BLOCH, 2005, p. 146).

Esse ponto distinto não é para ser visto como privilégio, como foi a virtude estoica, o

orgulho da razão no romantismo alemão, o automatismo liberal ou a imaginada

inevitabilidade do socialismo, mas como a interação de condições objetivas e subjetivas pelas

quais o homem pode acordar. É um processo. Bloch cita Marx ao lembrar que as ideias de

uma época são as ideias da classe dominante, alienada de si mesma, agarrada à ideologia do

seu próprio bem estar. Não há sonhos, não há utopias. Não há boa consciência. Há interesses.

Caberia uma pergunta: as pulsões seriam manifestações da ideologia dominante? Seriam fruto

da mentalidade burguesa? Poderiam as pulsões ser moralmente herdadas? Seja quais forem as

respostas, o que Bloch chama a atenção é que as pulsões vêm em socorro da superestrutura

dominante. São heranças culturais que o capitalismo transmite de uma geração a outras sem

função utópica, mas com ideologia de classes.

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O ambiente histórico das pulsões, que fortalece a tese do ainda-não-consciente, cria

imperativos para a renovação da filosofia. Junto com a psicanálise, precisam deixar a periferia

da vida para andar lado a lado com o homem comum. Seriam, nas palavras de Bloch (2005, p.

77-9), ―expansões para a frente‖, luzes que podem envolver os sonhos acordados. Traduzindo

para o universo de Bloch, as pulsões, como impulsos básicos, não se caracterizam

primordialmente pela libido, pela vontade de poder, nem pelo inconsciente coletivo com raiz

nos primórdios da existência do homem na terra.

São pulsões que se apresentam à vontade e de preservação e nos problemas da fome,

mas sobretudo na vontade de conquistar a vida sem o egoísmo capitalista. Assim, a

―autopreservação‖ encontra-se, como fenômeno, sempre em aberto, para proporcionar o

encontro do homem com o próprio homem e construir, a partir do ainda-não-consciente a

―solidariedade enquanto solidariedade‖ (BLOCH, 2005, p. 72). E o que prevalece é o desejo

de fazer a história avançar.

Se a história avança, a qualidade comum aos homens é crescer, desenvolver o espírito

e, com versatilidade e talento, produzir o novum. Da mesma forma o que é ainda-não-

consciente, que é o ainda-não-sendo tende, igualmente, a vencer a barreira da consciência

existente e dar novo curso à história. ―Nesse campo, tudo é difìcil, tanto mais porque

justamente o novo no qual o pioneirismo produtivo ingressa também é essencialmente o novo

da coisa que surge em si e para si‖ (BLOCH, 2005, p. 129). O ―pioneiro produtivo‖, como

ação, é a instância da realização, a fonte castália que brota no Parnaso, a consciência que

nasce das profundezas do ser para atingir pontos elevados.

O produtivo não é nenhum xamã, tampouco algum resíduo psicológico dos

tempos primitivos; não é num fogo vindo desse abismo, tampouco um arreio

(Mundstück) de poderes superiores como Nietzsche nos teria lembrado

atrevidamente. Essa mistificação transcende da inspiração, como se ela

despencasse sobre nós, é completamente irrelevante: ela é superior à

mágico-arcaica apenas na medida em que quer fazer jus pelo menos ao

transcendere, quer dizer, ao aspecto expansivo, sobrepujador da criação

intelectual, e não a falsifica como uma submersão, como uma linguagem

noturna. De fato, a constante experiência luminosa que está vinculada à

inspiração mostra que no ato da produtividade não ocorre nenhuma

regressão arcaica (BLOCH, 2005, p. 123).

Criar é desvendar os mistérios do mundo. É tornar consciente, com as faíscas da

criatividade, o polo oposto das pulsões negativas, o espírito de sonhar para a frente. Ideias

convivem em harmonia enquanto não passam dos esboços para a prática. Quando isso

acontece, vêm as resistências. O caminho se torna difìcil porque o ―limiar superior da

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consciência tem seus próprios guardiões‖ e procuram obstruir novas ideias, novos

conhecimentos, mas são vencidos (BLOH, 2005, p. 129). Não fosse assim, o conceito de

trabalho teria permanecido estranho à sociedade grega e, como lembrou Marx, a humanidade

não se atribuiria apenas tarefas que pode cumprir. Como admite Bloch (2005, p. 130), a

resistência ao novo não faz parte da natureza fundamental do homem, mas é, sim, uma

resistência apenas temporária. Se o caráter do novum é hermético, não falta ao homem olhos

para descobrir sua riqueza e profundidade.

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CAPÍTULO IV

SONHOS DE DESPERTAR: DILEMAS DA INTERIORIDADE E DA

EXTERIORIDADE DO HOMEM REVOLUCIONÁRIO

Para acertar o ponteiro das horas, é preciso girar o ponteiro dos minutos e,

igualmente, ao inverso, é preciso que o tótum de um grande navio que se

encontra numa longa viagem possa ser iluminado em cada trabalho

revolucionário minucioso.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 454)

Iluminar o grande navio revolucionário e acertar os ponteiros dos minutos e das horas

englobam a força dos sonhos em dois lados: como negação da dicotomia sujeito-objeto e

como procura da unidade sujeito-objeto-sujeito. Soma-se a alegoria do tempo e do espaço, já

que o passar das horas é inexorável, podendo o relógio estar em qualquer lugar e em todos ao

mesmo tempo. Sobre o primeiro aspecto, Bloch argumenta que os sonhos humanos de

mudança não dependem apenas da vontade individual, mas de mudança sistêmica da

superestrutura da sociedade, desejo disfarçado pela inércia.

Por mais que o seu interior ainda não tenha se exteriorizado, ele se

exterioriza neste fato: ele não possui o que é seu, antes o procura e o

imaginado lado de fora, portanto, ele tem fome. E o exterior, que o subjetivo

procura agarrar, ao menos tem de estar postado de tal maneira que seja

possível tentar agarrá-lo. Se o urgir aquilo que lhe falta não fosse senão um

muro estreito, sufocante, enrijecido, nem mesmo haveria qualquer urgir. Mas

assim ainda lhe resta algo em aberto; o seu urgir, desejar, fazer têm espaço.

O que não é ainda pode vir a ser; o que é realizado pressupõe coisas

possíveis na sua matéria. Há, no homem, esse elemento aberto, e ele é

habitado por sonhos, planos. O elemento aberto existe igualmente nas coisas,

na sua extremidade mais avançada onde o devir é possível (BLOCH, 2005,

p. 283-4).

Em virtude disso, a transformação é feita no terreno da boa consciência. No âmbito do

indivíduo, a ação é incompleta, mas se torna completa quanto maior for o senso coletivo,

quanto maior for desenvolvido o hábito para o vindouro. A atmosfera coletiva fica nublada

porque o vindouro, em diferentes épocas, se afasta do pensamento e o hábito da repetição se

sobrepõe à vontade de tornar manifestas as coisas inconclusas.

Mesmo os pioneiros científicos da sociedade burguesa, que não se comparam com os

grandes e puros ideólogos dos séculos XVII e XVIII, que com certeza estavam atentos à

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relação com o presente e o futuro, defrontaram-se com o emergente de sua própria classe

revolucionária, sempre com ilusões ou ideais mirabolantes e sem concreticidade; isso foi

assim não só por causa da respectiva barreira de classe, mas igualmente por causa da barreira

diante do futuro, que até Marx estava dada, de ponta a ponta, pela barreira de classe.

Quanto mais o tempo passa, tanto mais tudo isso se une exatamente com a anamnesis

ou a barreira estático-contemplativa do saber erguida contra o realmente imanente, o

emergente. E da mesma forma está completamente decidido que, onde a relação ―saber-

passado‖ vê no presente apenas um embaraço e no futuro, palha, vento, amorfismo, ali a

relação saber-tendência apreende o para-quê de seu saber como tal: como a nova construção

mediada do mundo (BLOCH, 2005, p. 280-1).

A mediadora do marxismo é a realidade das relações sociais. É indispensável para

elucidar a validez do método e o poder criativo da dialética marxista. Aqui também se impôs

uma diferença: sentir que se vive e que se é passível de transformação, não é a mesma coisa

que viver no passado com a repetição mecânica da pura realidade. Porque o instante vivido

exige atenção para que não empurre a consciência para a obscuridade e nela se permaneça.

Assim como o olho não vê no ponto cego, no local em que o nervo ótico penetra na retina,

tampouco qualquer dos sentidos é capaz de perceber o recém-vivenciado. Em vista disso tudo, esse

ponto cego na alma, essa obscuridade do instante recém-vivido deve ser diligentemente diferenciado

da obscuridade de processos esquecidos ou passados. O que passou vai sendo gradativamente

encoberto pela noite, mas isto é remediável, a memória auxilia, fontes e achados podem ser

desenterrados, sim, o passado histórico está à disposição justamente da consciência contempladora de

modo especialmente objetável, ainda que com lacunas. A obscuridade do instante vivido, em

contrapartida, permanece no seu quarto de dormir; uma consciência atual existe justamente só em

relação a uma vivência recém passada ou em função de uma vivência esperada que se aproxima e de

seu conteúdo (BLOCH, 2006b, p. 286).

Descrevendo a experiência, Bloch (2006b, p. 286-7) revela que o instante vivido é

―essencialmente invisìvel‖ e que a correnteza da consciência permanece estática, sem

―aparentar ter nascente ou foz‖. É um momento de transição, de repouso, podendo ser um

momento de perfeição. É comum que o pensamento que olha para a frente ―passe ao largo das

coisas‖ (BLOCH, 2006a, p. 406).

É preciso tempo e processo para separar o que é temporal do que é transitório.

Heráclito, o pensador da correnteza, segundo Bloch (2006a, p. 405), chamou o tempo de

―primeiro corpo‖ e, também, Agostinho e Joacchim di Fiori sentiram o homem ―acorrentado‖

quanto à ―imagem da ampulheta que simplesmente escorre‖ (BLOCH, 2006b, p. 408). O

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tempo no processo de depuração do acontecimento é a própria categoria da finalidade. ―Um

pensamento que está carregado de tempo em geral se mostra também carregado

humanamente‖ (BLOCH, 2006a, p. 409). Nada surge da imediatez e o que vai importar é o

conteúdo daquilo que está mais próximo, mas que não se pode ter, não se pode perceber, o

―não-ter-a-si-mesmo‖ (Sich-nicht-haben), próprio do tempo e do processo.

Nessa diferença, explica Bloch, está ―o nó do enigma da existência‖ pois exige que o

homem esteja atento ao ―aqui e o agora‖, que se vá além do habitual, que se tenha capacidade

de viver o instante com ―força concentrada‖ (BLOCH, 2005, p. 288-9). É essa ação que vai

permitir que o instante vivido seja o propulsor de novas épocas na história, tal como fez Marx

ao escrever o Dezoito Brumário a partir da percepção de pequenos instantes vividos pela

sociedade francesa e de Lenin com a Revolução Socialista de Outubro. A percepção real do

instante é que poderá transformar o ainda-não-consciente em consciente.

A obscuridade vivida é tão forte que não fica restrita nem mesmo à sua

proximidade mais imediata. Ela tem efeito também sobre o seu contexto,

sobre o tempo que se segue ao justo-agora, e então também sobre o espaço

contíguo ao justo-aqui. Esse efeito impede que a proximidade da vivencia

real, especialmente como proximidade acontecendo, ganhe distância

suficiente e tranquilizadora, ou seja, possa ser contemplada de modo

habitual. Através disso, surge a penumbra peculiar do respectivo primeiro

plano atual, que não é facilmente contemplável, mas tampouco facilmente

captável e sabível (BLOCH, 2006b, p. 290).

Bloch, mais uma vez, está se referindo aos erros de avaliação e entendimento da

realidade. Não há uma relação de causa e efeito entre a proximidade do momento vivido e a

sua percepção. É um testemunho do que a visão falsificadora da parcialidade burguesa e dos

interesses de classe podem proporcionar. Que os homens possam ler os acontecimentos, e eles

mesmos analisá-los, que possam antecipar o teor do futuro contido no agora e função do

aperfeiçoamento da consciência da ―conexão entre a obscuridade do instante e a obscuridade

do futuro‖, que encontra-se no ―ainda-não-acontecido-obscuro‖, no ―ainda-não-real‖

(BLOCH, 2005, p. 293). O seja, o que virá a ser o novum.

Sobre o tempo e o espaço, Bloch projeta suas esperanças para o terreno pouco

desbravado da revolução da consciência – o tempo e o espaço de grandes mudanças –, aquele

círculo aberto, ainda não preenchido, terreno onde disputam o antifuturo e o futuro. A

proposta teórico-prática de Bloch equivale ao caminhar entre a nascente e a foz: ―A nascente

é caracterizada pela obscuridade do agora, na qual origina-se o realizar; a foz, pelo caráter

aberto de pano de fundo objetal, para onde a esperança ruma‖ (BLOCH, 2005, p. 284).

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A exigência premente da filosofia blochiana é contribuir para que a superestrutura e a

infraestrutura coincidam, para que a nascente e a foz da corrente revolucionária tenham

continuidade. É o que Bloch procura investigar para dentro da obscuridade humana, com o

propósito de libertação da filosofia do objetivismo dogmático. Um exemplo desse cuidado

encontra-se na imagem da correnteza da consciência que deixa de conter a substância da

correnteza. Isto aconteceu com o materialismo vulgar e suas implicações para a história do

século XX e a dinâmica humanística do marxismo: dificultou o casamento da utopia com o

materialismo dialético e fez se volatilizar o espírito revolucionário em favor do

economicismo.

4.1 OBSCURIDADE E LUZ NA CORRENTEZA DO INSTANTE VIVIDO

E na nascente está implantada uma foz; se esta será alcançada, é uma outra

questão.

Ernst Bloch, O Principio Esperança (2005, p. 298)

O que Bloch quer dizer? A vida acontece no agora, em silêncio como Ulisses que

chegou de volta à Ítaca dormente, como as carências de algo que não são percebidas, como o

novum libertador que nem sempre se imagina possível. O instante é o cerne da latência, do

real, é o ―princìpio do mundo‖ (BLOCH, 2005, p. 298). Além do ―ainda-não-dominado‖, o

futuro contém o ―ainda-não-franqueado‖ (BLOCH, 2005, p. 292).

Nesse desvendar do mundo oculto, segundo Bloch (2005), o marxismo se propõe a

indicar o caminho para a compreensão do alcance da consciência orientada para a ação: que o

passado é fechado apenas aparentemente, que a latência se sustenta em tendências reais, que o

ponto cego, ―esse ainda-não-ver do agora e aqui imediatamente ocorrido‖, manifesta-se a cada

momento, independente da duração do instante. Pode ser o real muito mais obscuro do que se

poderia imaginar anteriormente.

Essas incógnitas exigem que o sujeito eduque a sua consciência humanista no

processo. Que acorde para a evidência que, seja qual for a escuridão, sejam quais forem os

fantasmas e angústias atávicas, o realmente primordial é o bem comum. Esse é o simbolismo

do instante, o simbolismo do início que se reproduz a cada instante e que vai além do que já

se tornou evidente. Desse modo, ―o não como o ainda-não-processual transforma a utopia na

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condição real da incompletude, da natureza apenas como fragmentária em todos os objetos‖

(BLOCH, 2005, p. 303).

Quando não existe dogmatismo, mas o sentimento da correnteza real, nascente e foz se

tornam uma unidade, uma mesma visão da correnteza da consciência. Não mais o fluxo da

correnteza da consciência de acordo com o tempo, o ―não-ter-a-si-mesmo‖, mas a correnteza

no tempo, ou o ―estar-presente‖ incessantemente, o ―olho atento‖ para o eterno (BLOCH,

2005, p. 288). Uma nova época de olhar histórico, sem ―zonas de silêncio‖, sem ―latejar‖ de

instantes a serem ouvidos, sem átrio de ―presença ainda não consciente, ainda não existente‖

(BLOCH, 2005, p. 290).

[...] a obscuridade vivida é tão forte que não fica restrita nem mesmo à sua

proximidade imediata. Ela tem efeito também sobre o seu contexto, sobre o

tempo que segue ao justo-agora, e então também sobre o espaço contíguo ao

justo-aqui. Esse efeito impede que a proximidade da vivência real,

especialmente como proximidade acontecendo, ganhe distância suficiente e

tranquilizadora, ou seja, possa ser contemplada de modo habitual. Através

disso, surge a penumbra peculiar do respectivo primeiro plano atual, que não

é facilmente completável, mas tampouco facilmente captável e sabível.

Alguns provérbios estão melhor informados sobre isso do que a maioria dos

pensadores pregressos, como, por exemplo: ―Nenhum tecelão sabe o que

tece‖, ou: ―Ao pé do farol não há luz‖. E não terá sido por estar, ele próprio,

na luz, que Édipo foi o último a perceber que havia casado com a própria

mãe (BLOCH, 2005, p. 291).

Obscuridade e luz são, aparentemente, antíteses em Bloch. Mas só o são

aparentemente porque dialogam, como dialogam a fome e o instinto de preservação, o

romantismo e os afetos, e os sonhos acordados e a esperança. A obscuridade seria o sonhar

apenas dormindo e, ao abrir os olhos, como Ulisses de Homero que volta à sua Ítaca, nada

encontra, a não ser o objeto do seu desejo e da própria decadência de viver acondicionado no

passado heróico. A obscuridade é viver apenas o instante. Ou o curvar-se aos arquétipos

velhos, os arroubos quixotescos do tornar-se solitário, desferir golpes freneticamente, o que

acaba no vazio, dependente do correr atrás do que passou ou nunca existiu.

É tornar a vida uma ficção, fugir do presente objetivo para presentes imaginários,

perseguir sonhos desejantes cavalheirescos, repletos de ―cavalos alados, mares em chamas,

ilhas flutuantes e palácios de cristal‖ (BLOCH, 2006b, p. 121). Fazer como Quixote de

―poderosa imaginação, mas sem poder para a ação‖ (BLOCH, 1988, p. 172). Obscuridade é

paralisia: quanto mais colorido, mais o sonho é ilusório, quanto mais parece vislumbrar o

futuro, mais esse é ―utópico-arcaico‖, uma categoria superior ao anacronismo social

(BLOCH, 2006b, p. 121).

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Ou, a obscuridade é ainda o homem, sem rebeldia, tendente a voltar ao passado, a se

repetir cotidianamente e, a prevalecer, como a visão de Hegel, defrontar-se com o tribunal da

história. Um ser crepuscular, mais objeto do que sujeito ativo da história. Um ser condenado à

autodestruição, tanto pela obscuridade da sua servidão ao senhor, como em ―consequência de

sua avidez por bens exteriores e seu desfrute‖ (BLOCH, 2006b, p. 297). Um ser que, ao

contrário de Prometeu, não é Deus (BLOCH, 2006b, p. 298).

O homem-Deus é a luz, o sol. Para Bloch, o sol é como a contemporaneidade, como a

metafísica e a matéria, como a casa humana e o mundo para os humanos, como a alquimia e

os recortes da existência humana, como a música e a esperança. ―O sol ilumina a vida na

Terra e a lua à noite‖ (BLOCH, 2009a, p. 208-9). A construção do mundo exige o sol

humano. ―Onde há sol, vê-se gente‖ (BLOCH, 2006a, p. 10). A esperança utópica é o sol que

irradia o mundo do não consciente para o imanente mundo do consciente (BLOCH, 1968, p.

160-2). Esse sol irradia a própria luz e leva o homem a questionar o que pode ou não fazer,

como agir e como subordinar suas ações à vida. É o sol da totalidade da vida, a luz do telos.

A distinção entre a obscuridade e a luminosidade é o tema que Bloch começa a

discutir ainda nos idos das lutas antinazistas na Alemanha. Encontra-se nos primeiros anos da

década de 1930, quando passa a pensar a temporalidade e, com ela, a pluralidade dos tempos

e as imensas dificuldades da desalienação. Datam dessa época os conceitos de tempos

míticos, relativos às crenças arcaicas no ressurgir do nacionalismo alemão e no futuro de uma

ilusória raça pura, forte e dinâmica, que Hitler tentou vincular ao III Reich; os tempos sociais,

com o choque entre as aspirações da pequena burguesia, ciosa da sua ideologia pré-industrial

e do proletariado socialista à procura de humanização que se projetasse para além do trabalho

e da tecnologia; e a não sincronia entre esses dois tempos que, por não ter sido compreendida

pela esquerda, culminou na ascensão do fascismo. E adiou, mais uma vez, a esperança e a

educação das massas para o socialismo.

O tempo é imperativo e a tudo transforma. O papel do revolucionário seria colocar o

tempo a seu favor, fazendo dele o guia dinâmico para o futuro, ajudando, por meio da

filosofia, o homem a compreender a si mesmo, a sair da obscuridade. No livro Heritage of our

Times (Erbschaft dieser Zeit), Bloch (1991) desenvolve a teoria conceitual da ―não-

contemporaneidade‖, que ele tinha esboçado em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie)

quando aborda o cotidiano capitalista. Na sua perspectiva, não são contemporâneas todas as

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expressões do pensamento e do modo de vida de conteúdo atávico, atrelado à sociedade

burguesa.103

O fenômeno da não contemporaneidade, apoiado na tecnologia e na burocratização,

foi o que teria levado o nacional-socialismo ao poder, pelo voto, depois, evidentemente, da

esquerda (socialista e comunista) ter sido dizimada. Ele entendia que os comunistas

ignoraram a força conservadora do homem do campo, assim como das classes médias,

fixando-se no operariado industrial. Esse erro e suas repercussões, ―um pseudo-iluminismo do

marxismo vulgar‖, é que não deveria se repetir, retirando o espaço conservador de recorrer

aos mitos antigos – A Idade Média incluída – para anunciar a redenção que jamais ocorrerá

(BLOCH, 1991, p. 62).104

Sendo verdadeira a hipótese de que O Princípio Esperança é uma resposta ao fracasso

da esquerda em impedir a ascensão do nazismo, o sonho acordado manifesta-se pela

necessidade de tornar realidade o socialismo contemporâneo. Desemboca na

complementaridade dialética do sonho dormindo e do sonho de olhos abertos, unificados na

consciência antecipadora, nos sonhos que estão ao alcance da razão e do entusiasmo.

Se o homem vê que não existe luz ao pé do farol, é porque se sente atraído pela

ausência de luz e sente medo do que não lhe é familiar. Começou, ainda referindo-se ao

homem que tem medo, o percurso da vida melhor, mas teme concluí-lo. É como se o temor de

viver e a própria finitude da vida, em lugar de indicar sua transitoriedade, reforçasse a ilusão

do fetichismo da mercadoria e das relações de produção, noções que, na teoria social

marxista, refletem o alcance da alienação.

A relação entre a realidade estabelecida e a realidade não conhecida transita entre

esses polos – sonho dormindo, sonho acordado e desalienação. Reflete a tarefa da filosofia e

da psicanálise de desalienar o homem e libertá-lo das significações da alienação. Abriga,

igualmente, o temor conservador de viver e o temor de que a vida acaba com a extinção do

próprio homem, sem chances de continuidade.

103

Cf. BLOCH, Ernst. Heritage of our Times. Polity Press, Cambridge, UK, 1991, p. 153-78.

104

A expressão III Reino esteve presente na maioria das insurreições da Idade Média como sinônimo do

Terceiro Evangelho: ao Antigo Evangelho se sucederiam o Evangelho do Filho e o Terceiro Evangelho,

aquele do Espìrito Santo. O Terceiro Reino seria, nos seus ―nobres propósitos‖, a conciliação entre a

Antiguidade e o Cristianismo. O nacional-socialismo roubou a ideia, romantizou-a perante os olhos da

―estupidez‖ pequeno-burguesa e a transformou em ―cheiro de sangue‖, ―corrupção‖ e ―brutalidade‖ nazista,

―obscuro fanatismo‖ (BLOCH, 1991, p. 56-63).

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Há sonhos diurnos em número suficiente, só não foram satisfatoriamente

observados. Mesmo de olhos abertos, no seu íntimo, a pessoa pode ver tudo

colorido ou em forma de sonho. Se a propensão para melhorar aquilo em que

nos tornamos não adormece nem durante o sono, como poderia durante a

vigília? Pouco são os desejos que não estão carregados de sonho, justamente

quando eles tomam consciência de si. Mas, então, quem sonha durante o dia

é visivelmente diferente de quem sonha durante a noite. Muitas vezes, quem

devaneia segue um fogo-fátuo, desvia-se do caminho. Mas ele não dorme e

não submerge na névoa (BLOCH, 2005, p. 80).

O sonhar acordado, por ser uma forma contrária à rememoração, explicitaria a

necessidade de ação prática. A partir do sonho à luz do dia, desejos e vontades permitiriam ao

espírito da utopia se tornar consciência. E permitiriam que o homem se encontre consigo

mesmo e com seus semelhantes.

Foz e nascente, luz e obscuridade, sol poente e sol nascente, fluem por todos os lados

do ser humano e do mundo, um ao encontro do outro, com o navio e o relógio da revolução,

sendo visto na sua totalidade, metafisicamente, como o encontro não supérfluo e caloroso

entre o infinito e aquele, o homem, que volta para casa, que é a sua própria humanidade

(BLOCH, 2006b, p. 421). Negar a própria humanidade é como se fosse uma forma de morte.

Porém, essa morte não ameaça os que voltam ao estado da natureza, mas aos que não sonham,

aos que não se sentem comprometidos com a consciência desperta, com o renascimento da

vida.

4.2 A DIMENSÃO DO PRESENTE, O ALCANCE DOS TEMPOS DE MUDANÇA

A partir do sonho diurno, a arte contém essa natureza utópica, não para

tudo dourar, levianamente e sim para ter dentro de si também a privação,

que com certeza será superada apenas pela arte, mas não será esquecida

por ela, sendo envolvida pela alegria como uma forma vindoura. O sonho

diurno entra na música e ecoa na sua casa invisível, mas uma casa que faz

parte da expressão do mundo, e agora ele está nela, como sonho dinâmico e

expressivo.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 96)

A palavra sonho advém do noturno e, no sono noturno, é que se começa o desejar.

Mas é no sonho desperto que o homem sonha, utopicamente, com o que gostaria de ser e

tornar-se. Mas, ao assim proceder, parece fadado a escolhas medíocres: É talvez significativo

que no livro I de O Princípio Esperança Bloch (2005, p. 92-3) registre que o sonho desperto

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mais comum é habitado sem escrúpulos por Circe, que ―transforma os seres humanos em

porcos‖; pelo Rei Midas, que ―transforma o mundo em ouro – sempre ignorando as regras de

comportamento‖.

Mas esses não parecem ser o problema dos sonhos despertos, porque quando

amadurecem, quando atingem compromissos mais elevados, o plano da ―sabedoria e da

experiência deixam de lado as ―quimeras‖ de Circe e Midas e se volvem para o que envolve a

sociedade: a construção de um mundo melhor. Não há nada em Bloch que possa explicar com

nitidez, as razões dessa transição, salvo a oposição empírica entre a ausência de alvo dos

devaneios íntimos, geralmente rudes, e os sonhos que se apresentam com planos detalhados

ou se orientem para o futuro, mas o que persiste é o perfectibilismo do sonho desperto.

Nele, o ego pode se expandir a ponto de representar outros egos, nele não existe

qualquer censura sobre os conteúdos não convencionais dos desejos, nele o ―ego competente

tem músculos retesados e cabeça fria, é imbuído de uma vontade de expansão inabalável e se

mantém atento a tudo‖ (BLOCH, 2005, p. 93). Nele, não faltam a paranóia, a má consciência,

como não faltam a realidade e todos os mistérios que o homem possa conter, mas há uma

peculiaridade: é a fantasia de melhoria do mundo que tende a ser levada até ao ―limite das

suas possibilidades, com todas as situações esgotadas e detalhadas em suas formas‖ (BLOCH,

2005, p. 99).

Ao definir assim os sonhos, como uma latência do vindouro, como se fosse uma obra

de arte caracterizada pela terna juventude, como um sonho desejante com alvo e que vai em

sua direção, Bloch (2005) tende a considerar que a filosofia pode, a partir das utopias oníricas,

adquirir novos conhecimentos e influenciar progressivamente a vida. A psicanálise também

pode alcançar novos horizontes, pois a esperança enraíza-se nos sonhos acordados.

Os sonhos noturnos trazem a ideia da morte, da ―paz eterna‖, como existiu em Leibniz

e nas ―danças macabras‖ da Idade Média, no culto patriarcal da ordem que via, na morte, a

―ascensão para as estrelas‖, mas que foi sobrepujado, no seu imobilismo, pela ação de homens

como Spartacus e Münzer, portadores da substância social da vida (BLOCH, 2006b, p. 235-

53). Ao evocar esse duelo entre o sentido dos sonhos, Bloch não quer transformar a

psicanálise individual, aquela que diz respeito ao analisa e o analisado, mas criticar a sedução

pela regressão ao passado105

, segundo ele, obsessiva em Jung.106

105

Na década de 70, temendo que as ditaduras da América Latina acabassem com a psicanálise como

fizeram os nazistas, psicanalistas do continente, liderados pela Argentina, defenderam a psicanálise de

massa, propondo ruptura com os movimentos tradicionais dos Estados Unidos e da Europa

(ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 457-797).

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Quer dissolver a onda de paradoxismo de êxtase do supramundo e transformá-lo em

êxtase criativo, terreno, dando perspectiva também à fantasia, sem a qual o homem além de

não conseguir viver, não consegue ser socialista. Pois é como Bloch (2006b, p. 453) ressalva:

―A razão não consegue florescer sem esperança, a esperança não pode florescer sem razão,

ambas associadas numa unidade marxista – qualquer outra ciência é sem futuro, qualquer

outro futuro é sem ciência‖. Em outros termos, o homem não é apenas objetividade e ciência.

Precisa sonhar, precisa ter seu espírito elevado a um alvo proeminente.

Bloch deseja ir além da realidade convencional. Não se contenta com a lucidez.

Precisa do entusiasmo. Precisa da dialética econômica, mas precisa da esperança ganhando

―chão, pés e mãos‖ no valor simbólico da dialética do novum, da linha de frente e da matéria,

pressupondo a sincera qualidade da esperança (BLOCH, 2006b, p. 456-7). Quer que o sonho

acordado envolva ―desde o sonho desperto do tipo cômodo, trivial, rude, fugaz,

despropositado e paralisante, até o tipo responsável, engajado na causa com ações precisas e

do tipo modelador da arte‖ (BLOCH, 2005, p. 89). A arte como antevisão do realizável, da

claridade real da humanização.

Pode-se argumentar que o sonho acordado pode ser ―opressivo‖. Bloch (2005, p. 90)

contrapõe: ―A casa do sonho desperto é mobiliada com representações autoescolhidas, ao

passo que, quem dorme, nunca sabe o que o espera além do limiar do subconsciente‖. Essa é a

diferença: no sonho diurno, o ego não fica tão vulnerável quanto no sonho noturno, o ego está

livre de censuras, os desejos ganham livre curso, a vontade de expansão do ego torna-se

―inabalável‖ (BLOCH, 2005, p. 93).

O que Bloch deseja é trazer os sonhos de mudança para o cotidiano e minar a teoria

burguesa de que os sonhos diurnos não passam de ―manobras apenas para o infantilismo e

arcaìsmo de uma bela brincadeira‖ (BLOCH, 2005, p. 98). Fundamentalmente, a mesma

desqualificação que a sociedade burguesa tenta fazer com a estigmatização da utopia. Ao

distinguir o sonho acordado da lembrança e ao vê-lo buscar antecipar a distância entre o

presente e o futuro, deseja iluminá-lo como ―verdadeira fome psìquica‖ da consciência

antecipatória (FURTER, 1974, p. 83).

Assim, Bloch procura se contrapor ao pessimismo, por ele identificado na psicanálise,

quanto ao homem a uma visão otimista, esperançosa. É uma crítica filosófica à busca de

106

Bloch não apenas leu A interpretação dos Sonhos de Freud, como os escritos de C. G. Jung, estes sem o

mesmo entusiasmo, considerando que, no caso de Freud, os sonhos são a catarse sublimada do inconsciente e

seus conteúdos recalcados. Compreendia a psicanálise como ―a ciência da regressão e nada mais‖, sendo que

, à diferença de Jung, definia Freud, como ―homem das luzes‖ que percebia a existência de um inconsciente

coletivo a conduzir o homem do nascimento à morte e que este inconsciente poderia ser o lugar para o

nascimento do novo (MÜNSTER, 2001a, p. 328-9).

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soluções individuais para os problemas da civilização – leia-se Ocidental –, que ele considera

conservadora, não ao método terapêutico. A distância entre o homem que sonha desperto e o

que não sonha está não só na questão dos interesses da sociedade, mas na facilidade com que

o homem se deixa enganar ou que pensa poder enganar.

Bloch valoriza a imaginação humana e a capacidade de se desprender do presente

imediato, condição do êxito e do fracasso das utopias. O simbolismo dos sonhos é como que

parâmetro a partir do qual fatores irracionais e inconscientes na experiência individual e

coletiva se articulam e se tornam indispensáveis à experiência prática socialista.

A matriz do valor dos sonhos repousa no binômio sonho acordado-sonho dormindo.

Extraído da percepção de que os sonhos, principalmente diurnos e livres de regras, são os que

precisam se tornar lúcidos, ―mais claros, menos caprichosos, mais conhecidos, mais

compreendidos e mais em comunicação com o ocorrer das coisas‖ (BLOCH, 2005, p. 14). O

modelo binário avança para um modelo aberto, na medida em que sonhar, como pensar,

significa transpor e, partindo disso, Bloch procura captar o novo na existência em movimento

e conhecer a dialética instalada na história. O novo chama-se esperança autêntica, a esperança

sabedora do concreto, o velho é a esperança fraudulenta, leviana, corrompida pela força do

medo, pela ausência de alvo.

Enquanto o ser humano se encontrar em maus lençóis, a sua existência tanto

privada quanto pública será perpassada por sonhos diurnos, por sonhos de

uma vida melhor que a que lhe coube até àquele momento. No inautêntico e

ainda mais no autêntico toda a intenção humana é erigida sobre esse

fundamento. E mesmo onde provoca ilusões – como tantas vezes até agora,

ora cheio de bancos de areia, ora cheia de quimeras -, o fundamento poderá

ser de uma vez denunciado e eventualmente purificado somente mediante a

investigação objetiva da tendência e subjetiva da intenção (BLOCH, 2005, p.

15).

A linguagem dos sonhos é comum aos homem e à sua contradição, inclusive porque o

trabalhador dorme e sonha. Sonharia de forma distinta influenciado por uma sociedade em

que o lucro é o fim, nunca o homem. O contexto dos sonhos abre as portas para se combater o

antimarxismo, a resignação e a ausência de sonhos, conhecida pelo nome de destino, ―muito

pouco filosófico‖ por ater-se apenas ao sobreviver, sem ―apreensão do futuro como a

dimensão maior do presente‖ (BLOCH, 2006b, p. 452). Mas abre, igualmente, as portas para

a imaginação e a poesia como foram os sonhos motivados pelas pinturas nas paredes de

Pompéia, recuperados depois que a cidade foi destruída, que levaram a Roma lembranças de

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festas e de uma época esplendorosa e trouxeram consigo ―o lúdico dos sonhos‖ (BLOCH,

2006a, p. 254-5).

A paisagem dos sonhos de beleza e da sublimidade como um todo

permanece na pré-aparência estética e, como tal, continua sendo tentativa de

aperfeiçoar o mundo, sem que pereça. Uma perfeição virtual dessas, objetivo

de todo iconoclatismo e, obviamente, ela própria perfurada na arte religiosa:

isto emerge, suo genere (por seu modo peculiar), geograficamente das

passagens dos sonhos amplamente expostas da pintura, ópera e literatura.

Com frequência, são mitologicamente vestidas, camufladas, porém nunca

permanecem decididas, cerradas nisso. Porque visam a felicidade humana,

uma condição de seu espaço estar bem colocado e ter sido bem realizado, do

idílico ao que ainda é místico (BLOCH, 2006a, p. 389).

A paisagem dos sonhos, para Bloch (2006a) procura uma medida de amadurecimento

e infinitude, convergindo para um mundo não alienado. Filosoficamente, segundo Bloch

(2006a, p. 390-1), o amadurecimento e a infinitude estaria na direção daquilo que não se

―deve evitar‖ e ao que se ―deve buscar‖, isto é, caminhar na direção do primeiro pensamento

livre, o pensamento grego, tentando esboçar corretamente os anseios do mundo. Por esse

mundo, passaria o equilíbrio dos ponteiros do viver bem e do verdadeiro como simplicidade.

Destino, a Moira grega, existe em Bloch para negar os cultos pré-homéricos da noite e

da terra, para negar a mitificação dos deuses e do poder inexorável da morte. Contra a Moira,

Bloch exibe a beleza da divindade da vida, a adoração, pelos romanos, da natureza e das

colheitas e o culto ao homem, que corresponde à humanização das divindades. Prometeu, o

demiurgo civilizador, foi o único herói grego a escapar dessa onipresença da Moira e se

colocar acima dos deuses, junto dos homens. Com ele, começam as rebeliões, e o cristal da

ordem se desfaz (BLOCH, 2006b, p. 288-97).

Consequentemente, com a rebeldia o homem afasta-se mais e mais do mundo da

repetição, do ―sempre-outra-vez‖, do mundo da filosofia assentada. A esperança do novum

não mais deixará de germinar. O oposto à ordem repetitiva encontra-se na fermentação dos

pequenos sonhos diurnos em que o desejo do sonhador tende a se tornar prático. Acontece

com o sonho acordado do burguês, com o sonho do pequeno burguês proletarizado e com o

sonho do trabalhador e do não-burguês. Importa a força do sonho de uma vida sem

exploração, uma vida que deva ser ganha, não a vida do ―molusco colado à pedra que precisa

esperar por aquilo que o acaso irá lhe levar‖ (BLOCH, 2005, p. 41).

Significa estar vivo, significa algo que, do interior, quer vir à tona de quem está

desperto. Corresponde, na interpretação de Bloch: em primeiro lugar, é característico do

sonho acordado não ser opressivo, embora a realidade seja, muitas vezes, asfixiante e torne

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delirante o sonho diurno; em segundo, no sonho diurno, o ―eu‖ encontra-se desperto e não

encontra censuras, salvo os obstáculos exteriores; a terceira característica do sonho desperto é

que o sonhador não se encontra solitário como no sonho noturno, podendo influenciar e

mobilizar outros sonhadores; e, por último, o sonho diurno está aberto ao mundo, não

necessitando de qualquer escavação, qualquer correção, desconhecendo qualquer medida.

Às vezes, há uma alternância entre o sonhador e o devaneador. Por isso, Novalis,107

segundo Bloch (2005, p. 101) entendia cada sonho como ―um rasgo significativo na cortina

misteriosa que com mil dobras se insere em nosso interior‖. As dobras podem ser vistas como

imbricação entre os sonhos noturnos e diurnos, prelúdio da comunicação entre o arcaico e a

fantasia desperta, e evidência da presença do passado no futuro, do que é insuficientemente

audível e do que se encontra parcialmente encapsulado.

O correlato dessa multiplicidade de características oníricas situa-se no conceito da

consciência. E essa, no entender de Bloch (2005), é pontilhada de obscuridades, sitiadas na

fronteira do presente, também mergulhada no esquecimento ou no relativamente inconsciente.

Mas não se limitava à noção de que existisse um intercâmbio perfeito entre os sonhos

noturnos e diurnos, como se um estivesse imerso no outro, como pensava o Romantismo de

Novalis e, também, o Surrealismo e o Expressionismo. Os sonhos diurnos são preponderantes

e, geralmente, saem para ―o campo da consciência emancipadora‖ (BLOCH, 2005, p. 104).

Circulam, no espaço dos sonhos, demarcando e demolindo os movimentos de

autoilusão, formando a mediação do homem do presente e do homem do futuro (BLOCH,

2006b, p. 38-9). ―Os homens apequenam-se quando o seu propósito é apequenado; em

contrapartida, sendo um propósito maior e mais alegre, ele se torna inevitável num mundo que

se depara apenas com a escolha entre o pântano e a reconstrução enérgica‖ (BLOCH, 2005, p.

438).

A consciência é ―severa‖ (BLOCH, 2005, p. 56). Gérmen das religiões leva o ego (os

direitos do mundo interior) ao embate com o superego (o defensor do mundo exterior), está na

origem da busca do passado, das culpas, é o elemento básico da superestrutura. Indissociável

do léxico de Bloch, eleva o homem ativo à posição do homem que rompe ―os grilhões da

natureza animal e da contemplação para modelar, ao front do processo do mundo‖, ―muito

pouco refletido do ser, da matéria movida, utopicamente aberta‖ (BLOCH, 2005, p. 194).

O problema da consciência sugere que a ―esperança‖ estimula a crença em uma

―potência dormente‖ no homem; uma ―energia que paira sobre a carne da nossa consciência

107

Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (1772-1801), representante do romantismo alemão do final do

século XVIII.

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[...] a alavanca a partir da qual o mundo pode ser tecnicamente erguido dos seus gonzos‖

(BLOCH, 2006a, p. 239). Há futuro em tudo isso: Simmel referia-se à ―pressão vital como

energia do sujeito‖, Leibniz referia-se à energia que ―continuamente fermente‖ (inquietude

poussante) e Aristóteles a objetivava na forma de ―enteléquias‖ (BLOCH, 2005, p. 236-45). É

um campo de investigação muito maior do que aquele ditado pelo real.

É com especial dificuldade que o olhar interior projeta uma luz sobre si

mesmo. Aqui há uma resistência bem própria dentro da resistência geral

referente ao objeto: a vida psíquica dá uma impressão fugidia, produz uma

sombra. Quanto tempo demorou apenas para se perceber que essa vida

percebe a si mesma, que ela é, portanto, uma vida consciente. E os processos

subconscientes são denominados como tais apenas há pouco mais de 200

anos. Em razão disso, pode-se ao máximo alegar que os processos

subconscientes não são imediatamente perceptíveis, que são deduzidos a

partir de sinais, que seu conteúdo é matéria do inconsciente. Contudo, mais

difícil de entender é por que, após a descoberta do consciente e até do

subconsciente, o ainda-não-consciente passou desapercebido tanto tempo.

Pois ele não precisa ser descoberto a partir da rememoração, ele se dá de

modo imediato, no ato de pressentir excluindo o que nele sucede em termos

de conteúdo (BLOCH, 2005, p. 132).

Bloch está fazendo a distinção entre o subconsciente e o que ainda não é consciente

que precisa ser descoberto. Não se trata, pelo seu ―caráter ―flutuante, aberto e imaginativo‖ do

inconsciente, vale repetir (BLOCH, 2005, p. 132), mas de algo oculto na obscuridade humana

até hoje. Não apenas na experiência pessoal, mas coletiva. Não se subordina à consciência

existente, nascida do ―cálculo diferencial, com seu pendant na alma‖ (BLOCH, 2005, p. 133).

O clarão do novo é reflexo dessa passagem do sonhar à ação consciente e caracteriza-

se pela abertura para a vitalidade do novo. Mas é preciso atentar para a incompletude do saber

da consciência e, portanto, para a vontade de recorrer aos elementos conhecidos para se

comunicar com o que é desconhecido. Ação não vale como sonho, nem como discurso ou

pensamento. O novum está envolto na necessidade de transformar a vida para melhor. Esse é

o momento em que o sonho se legitima e se transforma em criação, só atingível na sociedade

socialista (BLOCH, 2006b, p. 248).

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4.3 A TRAGÉDIA DA MORTE E A UNIDADE INDIVIDUAL COLETIVA CHAMADA

CONTINUIDADE

Se em sua origem o sonho desejante desconhece qualquer medida, tal qual o

sonho noturno, por outro lado, ao invés dos espectros noturnos, ele tem um

alvo, e vai em sua direção.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2000, p. 100)

Sonhar com o novum é sonhar com a rebeldia. Como ilustração, Bloch recorre à

dialética hegeliana, o ser revelado por inteiro, pelo pensamento, pela ação e no discurso

(KOJÈVE, 2002, p. 421-2): o escravo que não mais tema a morte e enfrenta o senhor. Bloch

enfatiza a dialética marxista – o proletariado abolindo a si próprio pela abolição da sua

antítese, a burguesia e a propriedade privada (MARX, 1982, p. 459) –, considerando que à

burguesia da Revolução Francesa se sucederá à sociedade sem classes da Revolução

proletária. Entre um extremo e outro, Bloch não se limita ao humano concebido.

Ele quer romper os limites da dialética do ser e do proletariado em oposição à

burguesia, quer romper a lógica estabelecida e compreendida, quer mudar a estrutura do

pensamento e, portanto, a estrutura do ser. Derruba as concepções de Freud, Jung e da

filosofia anterior a Marx. Considera que a psicanálise já nasceu velha por ter surgido em meio

à classe burguesa e se voltar para a burguesia. O marxismo, ao contrário, nasceu

rigorosamente verdadeiro por entronizar a história do homem no futuro, sem senhores nem

escravos. Difere-se da filosofia anterior a Marx pelos componentes de totalidade e pela ideia

de transformações a partir da prática.

Ao escrever The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), Bloch faz um inventário do

pensamento psicanalítico e lembra que Freud ensinava que era durante os sonhos, dormindo,

que o inconsciente se tornava acessível, enquanto a voz de Eckart falava da necessidade do

homem ter acesso àquilo que estava escondido, aparentemente fora do seu alcance (BLOCH,

2000, p. 188-95).

Passando à prática, em O Princípio Esperança, Bloch procura desvendar os segredos

por trás dos sonhos humanos. Os jovens, de ―sonhos idealistas, de uma imaturidade peculiar‖,

e os sonhos da gente comum, a ―maioria é muito covarde para o mal e muito fraca para o

bem‖, são os sonhos mais frequentes (BLOCH, 2005, p. 36-7). Como também procura

desvendar, sem distinção, sonhos de homens e mulheres que podem ―enfrentar dragões‖ caso

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se sintam ameaçados, porque, diferentemente dos ―arbustos‖, não se contentam em ficar no

mesmo lugar (BLOCH, 2006b, p. 12-3).

Os sonhos imaturos acionam a mitologia do homem salvador. Para os ―tolos e

atordoados‖, aqueles que se guiam por palavras como ―ávido‖, ―conhecedor‖, ―participante‖,

―poderoso‖, ―pleno‖, aqueles que espreitam luzes no final do túnel no ―céu burguês‖, é

comum verem em Hitler a alternativa para as crises (BLOCH, 2005, p. 38). Suas paixões são

cambiantes. Há instinto fascista para a morte, em parte direcionado para a ―morte em

batalha‖, em parte pela ―falta de perspectiva da vida burguesa‖ (BLOCH, 2005, p. 53).

A dificuldade de despertar, impede que vejam o quanto se deixam enganar pelo desejo

ansioso, pela mentira, que nunca dura muito, pela ―tagarelice‖ e a ―lábia desleal‖, quando a

mudança, de verdade, exige trabalho, e ―trabalho árduo‖ (BLOCH, 2005, p, 48). A partir

disso, é que a palavra necessidade passa a ser direcionada para um alvo, que o desejar se torna

exigente, que a imaginação se torna um ideal.

Mas o que o mobiliza o personagem oculto dos sonhos individuais é a dualidade entre

a vida e a morte. Como é comum invocá-la como ―irmã do sono‖, pode ser considerada, e

tentativas não faltam nesse sentido, como um ―sono feliz‖, uma alternativa homogeneizada

para escapar às adversidades da vida. Leibniz, segundo Bloch (2006b, p. 228) comparava a

morte ao sono. Lessing108

também, só que atribuindo à alma a capacidade de entrar num novo

corpo como se reacendesse a ―tocha‖ da vontade insaciável da vida.

A linha de pensamento sobre a morte como sonho e sono muda no século XIX que

ocupa-se com o retorno à natureza, mas Hölderlin, com A Morte de Empédocles (Tod des

Empedokles) já celebrava o retorno da velha unidade entre o ser humano e a terra, como

lembra Bloch (2006b, p. 234).

A morte, em Bloch (2006b) é a não utopia. ―Cova, escuridão, podridão, vermes tinham

e têm, sempre que não são reprimidos, uma espécie de forma retroativamente

desvalorizadora‖ (BLOCH, 2006b, p. 189). O tempo dinâmico, não cìclico, diferente do

tempo passado, circular, evidencia ainda mais o problema que não se resume, em Bloch, à

uma descrição caustica: ―As mandìbulas da morte esmigalham tudo, e a goela da deterioração

come toda e qualquer teleologia; a morte é o grande expedidor do mundo orgânico e, mas

para a sua catástrofe‖ (BLOCH, 2006b, p. 190).

108

Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), expoente do Iluminismo alemão, defensor do livre pensamento e da

tolerância religiosa, em Bloch se apoia para discutir o tema da metempsicose (do grego: meta: mudança + en:

em + psiquê: alma), a transmigração da alma de um corpo para o outro, no livro III de O Princípio

Esperança.

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É por isso que Bloch condiciona a capacidade de convivência com a morte ao modelo

de continuidade da vida e estes variam com a fé nas religiões e no sentimento que cultiva as

sociedades. No capitalismo, diferente do socialismo, a única coisa que a classe burguesa tem a

oferecer seria o niilismo diante do desespero provocado pelo temor do fracasso, pela

desesperança. O que resta é a morte, alternativa ante a ausência de possibilidade de futuro.

Tratar da morte é tratar da vida. A morte não apavora Bloch (2006b), mas, sim, o

motiva para a falar dos sonhos humanos, de Dioniso, da roda da vida da Antiguidade ao Livro

dos Mortos no Egito, do cristianismo à filosofia pagã, do apocalipse bíblico à libertação

humana do destino. ―Havia no antigo Israel culto aos ancestrais e aos mortos, o que pressupõe

a fé na continuidade da vida‖, escreve Bloch (2006b, p. 208), ―isto no entanto ainda fazia

parte da magia herdada dos cananeus e não da fé piedosa‖. Havia incerteza quanto ao

julgamento dos mortos e o desejo de viver bem e muito na terra traduzia a duvida quanto à

ressurreição de todos os seres humanos desde Adão. O apocalipse, ao invés de servir à

dominação da Igreja, representava a utopia do dia do juízo final e a redenção da virtude contra

o pecado.

Se o problema da morte for ultrapassado pelo homem e não mais se associar o drama

da morte individual à morte da sociedade, as imagens do nada e do fracasso diante da morte,

os sonhos acordados ganhariam novos ares. É um erro pensar que com a mudança de postura

da sociedade diante da morte – e Bloch se refere ao medo de morrer do homem na sociedade

capitalista – a filosofia do novo não ocuparia, não sem dificuldades, a filosofia do nada e da

repetição.

E a morte deixaria de ser, para usar uma expressão de Bloch, o ―cinzel da tragédia‖,

porque o homem deixaria de cultuar os heróis e a tragédia das suas mortes, se libertaria de sua

dimensão mortal para se ver como continuidade uns dos outros, como o rio da sua foz, os

sonhos e a luz e a obscuridade (BLOCH, 2006b, p. 249). Não haveria mais comoções, não

haveria mais a pátria alegórica, como dizia Epicuro desde a Antiguidade.

A tragédia da antiguidade, obviamente, consegue passar sem o Hades e

também o campo de asfódelos dos bem-aventurados estaria nela deslocado; a

tragédia moderna não implica um céu, mesmo que mínimo. Por isso, pode

remanescer também o gênero do consolo utópico-trágico frente à morte,

após terem sido descontadas as concepções de fé de cujo non omnis

confundar ainda nele se cumpre, indubitavelmente, a receptividade na morte

para a não morte. Portanto o desaparecimento trágico, ou antes, a plenitude

da vida em que ele se dá, ao menos após um tom dourado à bandeira preta da

morte, em períodos menos transcendentes (BLOCH, 2006b, p. 254).

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No mundo contemporâneo, viver exige transcender a obscuridade da noite. Criar o

paraíso dos vivos, cultuar os mortos com a dignidade histórica que merecem, mas sem

imaginar que eles, os mortos, estão vivendo num mundo onírico, fantasioso, e que um dia

voltarão. Em Israel, citado por Bloch (2006b, p. 208-9) a angústia da morte não estava

revestida de sonhos. Povo tão imanente quanto os gregos, vivia com intensidade

―incomparavelmente maior‖, voltado para as coisas futuras, as finalidades da vida, a

continuidades das gerações.

A fé na continuidade da vida servia para diminuir as dúvidas quanto à justiça de Deus

sobre a terra, o que não significa que não se acreditasse na ressurreição. Todavia predominava

a ideia do passar bem, do empurrar o fim para diante, o ―distante mundo subterrâneo‖

(BLOCH, 2006b, p. 208). O passar bem estava associada aos princípios éticos o que os

egípcios consideravam necessário para se ter uma boa morte, mas sem que isso significasse

decifrar o hieróglifo da morte. Contra a morte, o homem nada pode fazer, salvo ter uma vida

esclarecida e dedicada à imortalidade sem imortalidade, isto é, à construção do bem comum.

4.4 UTOPIA DA VIDA E DO FUTURO SEM NEGAR O INEVITÁVEL DA MORTE

COMO RETORNO À NATUREZA

O morrer é empurrado para longe, não por se gostar tanto assim de viver,

mas também não que se gostasse de olhar ou permitir um olhar para algo

vindouro, nem mesmo nesse ponto bem pessoal.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 188)

Marx traduz na Filosofia Epicuriana que o homem sábio não pensa na morte, mas na

vida porque os epicuristas são ―lógicos‖ e enriquecem o ―espìrito‖ com conhecimento

(MARX, 1982, p. 812). São diferentes, por exemplo, dos céticos que projetam o pensamento

na ―perdição‖, o ―não ser do pensamento‖, e, em consequência, se distanciam da filosofia

prática de Epicuro, liberta de todo preconceito (MARX, 1982, p. 814). Assim, a filosofia

epicuriana e, depois, a filosofia estoica foi a ―felicidade do mundo‖ e, essa filosofia afastava o

homem da ―suprema‖ ordem dos sábios e do pensar na morte (MARX, 1982, p. 819-23). Em

Diferença entre as filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro, Marx (1982), lembra que

em Epicuro existe a diferença entre o ser ―perecìvel‖ e o ―eterno‖ e que a diferença encontra-

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se no conteúdo filosófico de cada individuo: pode-se ter medo da morte, mas ser eterno

(MARX, 1982, p. 75-5).

Bloch (2006b) retoma a discussão, traduzindo-a na ―unidade individual-coletiva da

chamada solidariedade‖ que se estende do passado ao futuro. Censura a cultura burguesa

pelas ―manias românticas do sentimento burguês individualista‖ e considera, como o Epicuro

de Marx, a ―substância‖ humana da ―consciência solidária revolucionária‖ como resultado da

mediação entre o sujeito e a natureza, de ―onde vem a morte‖ (BLOCH, 2006b, p. 257). Estar

atento ao ato de morrer, como se fosse uma ―revelação‖, em nada obstrui o ―prazer de viver‖

e a eternidade da utopia (BLOCH, 2006b, p. 259- 65).

Esse destemor diante da morte seria o ato fundador de um novo mistério: quem é na

realidade o ―humano desconhecido‖, ou seja, o ―humanum secreto ainda oculto para si

mesmo‖, o homem que com a utopia destruiria a ―ficção de um Deus criador e a hipóstase de

um Deus no céu‖, mas que mantém a distância que separa a sua superstição da sua ―latência

ainda malograda‖ (BLOCH, 2006b, p. 281-3). As observações a respeito do homem e suas

contradições, encaminham Bloch para o judaísmo e o cristianismo, que ele considera como

―as religiões mais elevadas‖ e, mais uma vez, ao conhecimento: se o conteúdo humano se

manifesta, a boa nova das religiões se concretiza e, com isso, Deus desaparece (BLOCH,

2006b).

Deixado de lado a tragédia dos mártires antigos, deixando para trás a mitologia do

além e qualquer utopia vinculada ao mito e de elucidação do destino, o elemento decisivo é o

homem como ser continuado no mundo e não o homem que ao morrer extingue com ele a

sociedade. Esse homem, que é o próprio ―eu‖, não o homem que é o ―nós‖ representa o

homem sem mãos no futuro. Bloch encontra a substância dos sonhos e vontades no homem

comunista, o homem livre que não se apresenta como ―individualista‖. Encarnação da

consciência de classe, não alimentaria panteísmos, nem fé abstrata e imagina a eternidade

como se fosse sua.

A morte do homem comunista, como sua vida, não se esgota nele: a morte é uma dor,

mas o ―herói vermelho‖ mantém uma postura ereta, sem conexões com a mitologia teológico-

humana. Sabe que sequer é um mártir, mas um ―lutador perseverante‖ que representa não uma

individualidade do gênero burguês, e sim, o ser que expressa o individual-coletivo ou a

solidariedade, que se estende, como um arco, do passado ao futuro.

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Assim sendo, os seres humanos futuros, em favor dos quais o herói assim se

sacrifica, por sua vez, terão morte bem mais simples. A sua vida não será

mais abreviada de morte violenta, foi-se a própria angústia frente à vida, que

a classe dominante causava, não mediante a guerra, por último e de modo

abrangente. Contudo, adiada como quer que seja, resta a morte natural, que

não pode ser tangida por nenhuma libertação social (BLOCH, 2006b, p.

257).

É imenso o temor da morte. Até mesmo na Arcádia e nas boas novas não hostis aos

humanos, como na Bìblia, ―a dança da morte‖ está presente, atemoriza e fomenta o mistério

da existência nas religiões. Bloch recorda que os gregos foram ―os que mais deixaram o

cadáver envelhecer, passar para a condição de sobra‖, como cita epitáfios em Pompeia, que

dizem: ―Após a morte não há nada: o ser humano é apenas aquilo que vês‖; e ―Amigo que lês

isso, vive uma vida boa, pois após a morte não há riso nem alegria‖ (BLOCH, 2006b, p. 194).

Mas, antes de entrar nas descrições da morte no mundo onírico de contornos

desejantes – ―os maus num mundo imutável, sem saìda do sonho angustiante; e os bons na

doçura sem forças, mas também sem esforço de uma vida imaginária‖ –, Bloch deixa claro,

contudo, que a noite faz parte também da vida e que não são poucas as pessoas bloqueadas no

―seu próprio Hades‖ (BLOCH, 2006b, p. 194).

A dissonância entre a prisão do Hades em vida e a morte está na existência de

alternativas para a vida. Não há lugar no mundo real para o renascimento de Dioniso,

metaforicamente estraçalhado pelos titãs, como não há lugar para que Dioniso liberte os

mortos do Hades sem que eles precisem voltar ao mundo das sombras. Como na Antiguidade

tardia, há como gritar, com medo e angústia, diante da vida, mas não há alternativas contra a

voracidade da morte. Há, sim, como escapar da angústia da vida e participar do princípio ao

fim do evento humano.

A utopia não está mais no céu da religião, mas na Terra. A morte do príncipe André

Bolkonski (Guerra e Paz de Tolstoi), gravemente ferido no campo de batalha de Austerlitz, é

a imagem do desejo de morrer como herói. A morte como destino, não como evidência de

transitoriedade. É o que Bloch exemplifica com o caráter épico dos deuses homéricos, de

―franca jovialidade‖ – Palas Atena, Zeus, Apolo, Ártemis – e, também, no desconhecimento,

por Homero, de Dioniso, que escondem, nas suas entranhas, a ―Moira cega‖, oriunda do culto

pré-homérico da noite e da terra, e o ―poder natural da morte‖ (BLOCH, 2006b, p. 291-2).

Na visão oposta, naquela que nunca existiu em nenhuma religião, a sociedade

burguesa pode matar o revolucionário, não a ―consciência solidário-revolucionária‖, aquilo

que alimenta e faz a corrente da história prosseguir, impiedosa, não se deixando apagar com o

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passar dos séculos (BLOCH, 2006b, p. 257). O homem é livre e não se deixa influenciar por

falsos messias ou falsa visionaridade, falsos feiticeiros ou pela mística da ressurreição.

Vencer o sentido sacrificial da morte, conjectura Bloch, significa ultrapassar o plano

ilusório de vê-la como redenção ou promessa de ressurreição. Simboliza tratar a vida não

como ilusão, mas como realidade, ver o espírito humano na sua grandeza. A tentativa de

compreensão do homem que se movimenta, fundamenta, em Bloch, o gérmen do ainda-não-

atingido, preenche o desconhecido instante do ser humano, reflete a eternidade, não a

provisoriedade, dos sonhos.

A morte, ―irmã do sono‖, não se torna mais a negação da utopia e de suas finalidades,

tratando-se de uma guinada no modo de encarar o lado obscuro do futuro e de discernir que a

história, como a memória da humanidade, é um todo, não só um final orgânico (BLOCH,

2006b, p. 238-9). Em cada homem, independentemente do modo de sonhar, Bloch encontra

uma ―virtude lìmpida‖, que conciliará a sua imagem difusa com a prática humana, real e

potencial e concilia sua memória com a memória de todos os outros homens, não pintando a

morte com a aparência de bravura ou simplesmente procurando negá-la (BLOCH, 2006b, p.

37). Não importa se é capitalista ou socialista, o homem sonha dissipar ―a ideologia da ilusão‖

em que é formado. E, como assevera Bloch: ―A morte não o anula, mesmo que a sua vida e as

suas aspirações tenham sido espezinhadas‖ (BLOCH, 2006b, p. 250). Pois as ideias

sobrevivem ao homem. Não morrem, são ungidas pela eternidade.

4.5 DIÁLOGOS DOS SONHOS E A CRÍTICA À PSICANÁLISE

O conteúdo do sonho noturno está oculto e dissimulado, enquanto o

conteúdo da fantasia diurna é aberto, fabulante, antecipador, e seu aspecto

latente se situa adiante.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 100)

Os sonhos, dormindo, podem ser acessórios se comparados aos sonhos acordados, mas

são indispensáveis para a imanência do ―ainda-não-consciente‖. São sonhos que denotam as

imensas possibilidades do socialismo, mas igualmente as imensas dificuldades de purificação

da sociedade, da arte de pensar e agir, da extinção das classes, do diálogo do homem com a

natureza. Não são obstáculos intransponíveis, mas cujo teor não podem ser ignorados pelo seu

conteúdo real. Não só como grito de alerta, mas como participação receptiva do homem em

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vista da história humana como satisfação das necessidades. ―O mundo não é nenhum museu e

ainda não é uma catedral: ele é um processo‖ (BLOCH, 2006b, p. 411).

O que interessa a Bloch, na crítica à psicanálise, é transpassar o limite da sociedade

burguesa de espelhar ―os sonhos diurnos como meros prelúdios dos sonhos noturnos‖

(BLOCH, 2005, p. 89). O sonhador diurno não se encontra dormindo de olhos abertos quando

traz para o cotidiano as suas fantasias. Ele precisa ser avaliado de modo específico, porque,

acordado, o homem sonha com o trivial ao engajamento, dos seus anseios ao ambiente que

vive ou deseja viver. O sonho noturno é regressivo, mas não deixa de se comunicar com os

sonhos diurnos.

Bloch (2005, p. 81), para se tornar mais claro, cita Freud: ―Os sonhos são eliminação

dos estímulos (psìquicos) perturbadores do sono pela via da satisfação alucinatória‖. O sonhar

dormindo é uma barreira que limita o saber à imobilidade, aborda o conhecimento como

acontecimento pretérito. Trata-se de uma repetição que, na esfera da vida, apresenta o que foi

como se fosse o novo, quando tudo está previamente combinado em fórmulas, imutáveis, sem

lugar fora dos espaços previamente delimitados, para a superação de conteúdos ou o

processual orientado para o objetivo de mudança.

À noite, o ser humano oprimido finalmente relaxa, tornando-se praticamente

livre. Pode recuperar-se, e pode fazê-lo porque também um trabalhador se

cansa. Obtém tempo livre após o fardo e o labor do dia, para se alimentar e

lubrificar como uma máquina. Horas livres após o trabalho bem como o

domingo significa recuperação da força de trabalho. O ser humano nunca é,

na sociedade de produção, um fim, mas sempre um meio (BLOCH, 2006b,

p. 456-7).

No sonho dormindo, nada de novo acontece, o inconsciente fala de modo cifrado, o

sonho protege o sonho e o sonhador nem mesmo compreende os simbolismos que disfarçam

seus desejos. Anda-se em círculos. Os sonhos noturnos esgotam-se no desejo. Não esgotam as

fantasias. São solitários e não proporcionam o engajamento coletivo. São sinônimos de

recordar e ocultar, encolhem em lugar de ampliar as possibilidades de mudança do mundo.

Correspondem ao sonhar desejante em que o homem comum se sacia sem angústia, sem

censuras, sem obstáculos. São sobras do dia, de um ―eu‖ enfraquecido, em que o mundo

exterior, com suas ―realidades e propósitos práticos, está bloqueado‖ (BLOCH, 2005, p. 81).

Como o ―eu‖ adulto encontra-se enfraquecido e retorna à infância, os sonhos não são

de puro desejo como os das crianças, que não conhecem censura, mas sonhos ―desfigurados e

mascarados, mostrando-se simbolicamente disfarçados‖ (BLOCH, 2005, p. 81). Nem mesmo

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aquele que sonha é capaz de decifrá-los, o que explicaria a resistência psicanalítica dos

sonhos e, segundo Bloch, o empenho de Freud para interpretar os sonhos pela sua simbologia

sexual.

No sonho diurno, é diferente. O ego competente se reporta aos demais, não cultua a

solidão de quem dorme, mantém-se atento a tudo. É um sonho de despertar. Sonha-se com a

―exterioridade de sua interioridade‖ (BLOCH, 2005, p. 81-93).

Como se sabe, a descoberta mais própria de Freud é a de que os sonhos não

são bolhas de sabão, obviamente tampouco oráculos proféticos, mas se

situam no centro entre os dois: exatamente como realização alucinatória de

desejos, como realização fictícia de uma fantasia desejante inconsciente. E o

tema sonhos de uma vida melhor inclui, parcialmente, com cuidado e

significância, também os sonhos noturnos como sonhos desejantes, também

eles são uma parcela (ainda que deslocada e não muito homogênea) no

gigantesco campo da consciência utópica (BLOCH, 2005, p. 80-1).

O sonho acordado é, para Bloch, a pulsão do autoencontro, os tempos de mudança, a

juventude do tempo. É como a música: o elemento utópico em ebulição. Como o ópio e o

haxixe, os sonhos noturnos simbolizam o afastamento radical da realidade. Refletem a

―regressão‖ e a ―ilusão projetiva‖, respectivamente (BLOCH, 2005, p. 94). Não significam

avanços, mas loucura e paranóias, porém não deixam de retratar o desejo de sonhar com um

mundo melhor. São ―corujas de fogo de uma Minerva louca, mas cheia de vontade de fazer

luzir a aurora‖ (BLOCH, 2005, p. 95).

Na literatura, os sonhos diurnos encontram moradia nos ―palácios árabes, repletos de

fadas, feitos de ouro e jaspe‖ (BLOCH, 2005, p. 95). São exagerações paranóicas, diferentes

dos sonhos de mudança, diferentes dos sonhos de uma sociedade nova. A música seria a

metáfora do despertar.109

Como que para seguir os passos dessa mistura de realidade e

fantasia, Bloch caminha pelas reminiscências da Cítara da Antiguidade e do Renascimento,

pelos jardins mágicos do gótico-sarraceno, e chega ao esplendor da ópera otimista que, como

109

A mítica flauta de Pã é um instrumento fácil de manejar, de origem pastoril, enquanto Haydn, Mozart,

Händel, Bach, Beethoven, Brahms e Wagner correspondem à ascensão da burguesia. Situam-se na percepção

do vir-a-ser, além da burguesia, mas são emblemas da pompa burguesa. Expressam a revolução do espírito.

Para eles, a música, até mesmo na morte, é composta do material da esperança, porque emerge e ganha

dimensões colossais no componente de alienação que o capitalismo procura acolher, simultaneamente, ―o

múltiplo sofrimento, os desejos e os pontos luminosos da classe oprimida‖ (BLOCH, 2006a, p. 146). A

música é o que existe de ―maior semelhança possìvel com o ser humano‖ (BLOCH, 2006b, p. 153).

Independentemente da percepção de classe, por trás da harmonia ou das desarmonias, dissonâncias e

cadências, a música, sendo na visão de Bloch a ―mina subterrânea da alma‖, identifica o homem com a

natureza (BLOCH, 2006b, p. 155). Pela filosofia da música, Bloch procura a medida humana. Sua

argumentação não é contra a expansão do desejo humano, mas contra a ambição ilimitada.

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nos espetáculos de Wagner, implica saltar da estrutura sinfônica do seu tempo para o futuro

(BLOCH, 2006a, p. 354-6).

Os sonhos diurnos e noturnos, por não se excluírem, ocupam lugar privilegiado nas

pulsões de vida blochiana. Há, em ambos, relações que não se extinguem e que se recriam na

filosofia da ação. A vida psíquica sempre está enquadrada simultaneamente pelo noturno e

pelo matinal. ―O sonho noturno se move dentro do esquecido, reprimido, enquanto o sonho

diurno se move naquilo que de fato nunca havia sido experimentado como presente‖

(BLOCH, 2005, p. 116).

O desafio da filosofia blochiana aparece, assim, conjugado na filosofia romântica

revolucionária de interligar a noite ao dia, o passado ao utópico, o ―porão do arcaico‖ e a

―fantasia desperta‖ – o Ulisses de James Joyce, ―extremamente pós-romântico e

extremamente não-romântico‖, ao Ulisses humanista de Dante (BLOCH, 2005, p. 102-3). Em

Joyce, o ―porão do inconsciente‖ do sonho noturno se integra ao sonho diurno, mas o que não

foi quitado no passado só é resolvido se iluminado pela fantasia do presente.

A elaboração prática é a ordem do dia. Os assuntos humanos estão nos sonhos diurnos.

Os tesouros do solo noturno se revelam fugazes. Não se concretizam. O corpo que dorme está

obscurecido, somente o corpo acordado pode sentir. ―Não é o utópico que capitula aqui diante

do arcaico, mas o arcaico que ocasionalmente capitula diante do utópico‖ (BLOCH, 2005, p.

104). Acrescentando ao objeto de estudo, proporcionado por Ulisses de Joyce, Bloch interliga

a música ao homem. Não apenas o homem futuro, mas ao homem presente. A música une os

homens. Preenche as imagens da afetividade, mas também da rudeza. Como os sonhos

acordados, propõe mudanças.

Todos, sonhos acordados e música, tendo a metamorfose como o elo vital, porque, se

não há metamorfose, não há mediação entre o humano e o que não é humano no homem. Não

haveria também aliança entre o homem e a natureza, nem sequer a utopia a conquistar. O

simples começo da metamorfose permite vislumbrar luminosidade no futuro: ―a concretude

entre os humanos, isto é a revolução social‖ (BLOCH, 2006a, p. 250). As metamorfoses

podem ser tão infinitas quanto o homem e seus sonhos.

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4.6 LIMITES E POSSIBILIDADES DO SONHAR ACORDADO

O olhar para a frente se torna tanto mais aguçado quanto mais claramente

se torna consciente.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 143)

No sonho desperto, as possibilidades não têm fim se o homem tiver desejos e vontade

de viver. É verdade que para viver, se o sonho for revolucionário, o homem, ao por em

marcha o processo social, não mais poderá ficar amarrado aos ―preconceitos, má consciência

e superstição‖, mas justamente por isso ele ―jamais exigirá que os sonhos para adiante fiquem

para trás‖ (BLOCH, 2006b, p. 451). Quem sonha acordado com a vida melhor, não tema a

práxis, nem a essência real do conteúdo da esperança. É esclarecedor a reprodução desta

citação de Bloch (2006b), extraída do The Spirit of Utopia:

O desejo edifica e cria coisas reais: nós somos os únicos jardineiros da mais

misteriosa das árvores a crescer. O ímpeto de tornar-se conforme consigo

mesmo demanda a alma; ela é a solução teórica para o cristal integral da

realidade renovada; ela é o espírito capaz de abstrair mudando o querer,

capaz de incrementar criativamente o pensamento, voltado com a força de

um imã na direção do futuro do mundo, que constantemente lança seu olhar

na nossa direção e que unicamente para escolha irresoluta reserva de

maneira igualmente indistinta tanto o mal quanto o bem. Trata-se de nós,

mas não sabe para onde vai; nós mesmos somos a única alavanca e o único

motor que restaram; a vida exterior e revelada para; mas a ideia nova

finalmente eclode e segue para a aventura plena, para o mundo aberto,

inacabado, cambaleante, para assim, com toda a sua força, cingida com

nosso sofrimento, com nossa intuição teimosa, com o tremendo poder da

nossa voz humana, designar Deus e não descansar antes que tenhamos

subjugado nossas sombras mais íntimas e que se tenham realizado o

cumprimento daquela noite oca, fermentadora, em torno da qual ainda estão

construídas as coisas, pessoas e obras (BLOCH, 2006b, p. 457).

O desejo é, em Bloch, o desenvolvimento dialético da possibilidade. O desvendar do

―humanum secreto, ainda oculto para si mesmo, distinto do humanum conhecido e do seu

entorno imanente pelo salto do totalmente outro‖, é a esperança mantida em aberto (BLOCH,

2006b, p. 281). É uma ideia de ―salto final‖ contida no movimento quiliastas, na utopia do

Reino, irrompendo com Gioacchino di Fiori, por isso presente na utopia social de Cristo.

Corresponde à elaboração de uma visão revolucionária da vida que ―destrói a ficção de um

Deus criador e a hipóstase de um Deus no céu‖, mas não destrói o espaço de crença no

homem como sendo este o verdadeiro Deus (BLOCH, 2006b, p. 283). O pressuposto é que o

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homem pode entusiasmar-se pelo futuro e mudar a visão da vida. Usar a consciência da

história de Deus para mudar a sua consciência.

A existência de Deus, sim, Deus de um modo geral como um ente é

superstição; fé é unicamente a voltada para o reino de Deus messiânico –

sem Deus. Em consequência disso, o ateísmo é tão pouco inimigo da utopia

religiosa que constitui o pressuposto desta; sem o ateísmo o messianismo

não teria lugar (BLOCH, 2006b, p. 283).

E assim, Bloch dedica tanta ênfase à capacidade humana de mudança que, a despeito

das dificuldades, não parece haver como refutá-la. Contudo, permanece a questão de saber

que bases existem para se acreditar que o homem possa aprender a decifrar a obscuridade do

instante e, além de compreendê-la, dedicar-se à ação transformadora. O salto do homem para

o totalmente-outro surge, então, como imagem de uma existência possível, mas que ainda não

se tornou real (BLOCH, 2006b, p. 372-3).

Nada e tudo, caos e reino, estão nos pratos da balança da área de projeção

outrora religiosa; e é o trabalho humano na história que exerce uma

influência de peso no prato do nada ou então do tudo. Sim, foram

antecipados no espaço outrora religioso não só a ordem relativa à esperança

do reino, mas também o caos que indica o caos ameaçador; e ele continua

presente no campo de projeção (BLOCH, 2006b, p. 381).

Dessa dualidade, Bloch infere que a realidade contém o suficiente de elementos

destruidores, mas ainda não uma vitória do nada. Ao contrário, ―o melhor está bem próximo,

onde não se supõe que esteja‖, faltando, isto sim, o retorno a um ponto culminante: o

entendimento pleno do ―aqui-e-agora‖ (BLOCH, 2006b, p. 383). Se o tempo e o instante

nunca estiveram tão próximos um do outro, se a eternidade e o instante nunca estiveram tão

imbricados, é porque no momento vivido se encontra o tudo fermentador.

Para Bloch (2006b), esse processo pode ser claramente discernido na história das

religiões e da união de instante e eternidade: ―Não é o tempo, mas o instante, o elemento no

tempo que não pertence a ele, que se comunica com a eternidade, que é a única medida

possìvel para a alegria plena‖ (BLOCH, 2006b, p. 394). Essa chegada ao alvo, instante-

eternidade, determinaria, concomitantemente, que sujeito e objeto teriam deixado de viver

separados, se despojando da alienação e interiorizando o humanismo real.

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4.7 O HOMEM, MAIS DO QUE UM SER NATURAL, UM SER HISTÓRICO

Um ser humano sempre pode ser mais valente, mais generoso, mais

inteligente.

Ernest Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 397)

Para Bloch, a melhoria da qualidade humana é um pressuposto permanente: o bem, se

compreendido, pode aprimorar e refinar o homem. Primeiro, porque não se deve estabelecer

um limite do gênero ―até aqui e não mais‖. O limite do ―até aqui e não mais‖ empurraria o

homem para a realidade contemplativa e imóvel, mecânica, do século XIX, característica do

pensamento de Freud, segundo Bloch (2005, p. 89), situando-o no arcaico da memória, sem

vontade de ir ―até o fim bem-sucedido‖ nos sonhos da vida melhor. Estaria fora das ações de

―longo alcance‖ e do ―irradiar‖ da "juventude dos tempos‖ das ―grandes composições da

fantasia‖ (BLOCH, 2005, p. 100). Seria um ―bloqueio histórico‖ ao clarão do novo e, mais

precisamente, um ―bloqueio social‖ diante da visão de uma barreira que não pode ser

transposta (BLOCH, 2005, p. 129).

Em paralelo a história encontra-se sempre em movimento e, por isso, o bem supremo,

definido como conceito de Deus, encontra-se sempre na linha de frente, não se tratando como

um problema real existente, sendo um problema a ser resolvido em si mesmo. Contra a

imobilidade no tempo, Bloch (2006) propõe a categoria da finalidade da vontade como

atendimento das necessidades humanas. É onde Prometeu ganha espaço e galga degraus na

utopia das finalidades humanas e da natureza.

[...] Bacon, por exemplo, na sua Nova Atlantis, não sendo um adivinho, mas

um utopista ponderado, viu um futuro espantosamente autêntico. Isto

unicamente com no seu faro, que se tornou plenamente consciente, um faro

para a tendência objetiva, para a possibilidade objetivamente real de sua

época. Pois o olhar para a frente se torna tanto mais aguçado quanto mais

claramente se torna consciente. Nesse olhar, o sonho quer ser plenamente

claro; a intuição, correta, evidente. Só quando a razão toma a palavra, a

esperança, na qual não há falsidade, recomeça a florescer. O próprio ainda-

não-consciente deve se tornar consciente quanto ao seu ato, consciente de

que é uma emergência, e ciente quanto ao conteúdo, ciente de que está

emergindo (BLOCH, 2005, p. 143-4).

A ideia da ausência de barreiras ao sonho, assim concebida, é peculiarmente

descomprometida com as palavras ocas burguesas do ―verdadeiro‖, o ―bom‖ e o ―belo‖, como

é completamente desvinculada do ―ideal‖ como ―abstração‖ e do ―imobilismo não dialético‖,

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sitiado pela ―ilusão de valor‖ (BLOCH, 2005, p. 169-70). O pensamento blochiano está

empenhado em combater aquilo que chama de ―chavões sem vida‖ em que teoria e prática se

distanciam, como se a ilha da Utopia de More não passasse de um arquétipo e o bem supremo

não precisasse coincidir com a sociedade sem classes (BLOCH, 2005, p. 172).

Não há nada que possa garantir que liberdade e sociedade venham a ser a mesma

coisa, mas a ausência de barreiras para o sonhar ao menos sugere que possa acontecer. Se,

contudo, a história humana for concebida para valorizar a função utópica do sonho, não

haverá imobilismo reacionário e continuado, mas a mobilidade dialética do ideal, a

efervescência prática a cada etapa do processo de mudanças e haverá esperança de transpor o

abismo do arcaico. Sonhos acordados são como desejos que pressentem a capacidade do

homem de mudar, se há desejo pode existir vontade e ―e força para pisar em terreno ainda não

pisado, que fez Dante dizer: ―L‘acqua che io prendo giammai non si corse‖ (―a água que eu

seguro jamais foi navegada‖) (BLOCH, 200, p. 122). A esperança de Bloch e Dante reúne,

numa mesma frase, o que se pode intuir para semear a mudança de época e juventude dos

tempos.

Em Les Âgês du Monde (2015) (Die Weltalter), Schelling escreveu citando Goethe nas

Afinidades Eletivas (Die Wahlverwandtschaften): ―Eu creio que o homem sonha unicamente

para não cessar de ver‖ (SCHELLING, 2015, p. 2587-8, tradução nossa).110

A expressividade

do sonho e do ―não cessar de ver‖ está subordinada à oposição entre a obscuridade como

sendo o retorno no tempo, sem se deter na análise da utilidade dessa prática, e o sair da

sombra da anamnese para articular o movimento entre o presente e o futuro. Apenas sonhar de

nada adianta: é preciso ter intuição, determinação, agir com esperança. O sonho não brota

espontaneamente como porta de saída para uma realidade harmoniosa, mas como função

utópica.

Todavia, pelo menos tão suspeito quanto a imaturidade (o entusiasmo) da

função utópica embrionária, é a trivialidade do filisteu apegado ao existente,

do empirista obtuso, que não explica o mundo, em suma, é a aliança nacional

em que tanto o burguês gordo quanto o pragmático superficial não só

rejeitam, mas também desprezam de vez tudo que é antecipatório. E essa

aliança nacional – por aversão a todas as forma de manifestações dos

desejos, sobretudo contra os que impulsionam para a frente – cresceu muito

ultimamente, fazendo sua a bandeira do niilismo, o que era de se esperar

(BLOCH, 2005, p. 144-5).

110

―Je crois que l‘homme rêve uniquement pour ne pas cesser de voir‖, disait Goethe.

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A aliança nacional pode ser entendia como as reações contra o socialismo e o possível

real da utopia. A visão das reações esperadas, de acordo com Bloch (2006a), ocorria porque a

―avidez do lucro‖ e ―prazer de matar‖ obscurecia a boa consciência e fazia crescer a

propaganda quanto à economia capitalista, colocando-a como se fosse a única. Bloch (2006a,

p. 150-1) prossegue oferecendo muitas visões dos interesses capitalistas, nas suas ―pulsões

egoìsticas‖ que vinham se delineando desde Adam Smith e a Sociedade das Índias Ocidentais,

iludindo com ―egoìsmo cìnico‖ manufatureiros médios. A burguesia em ascensão, além de

ocultar de si mesmo o conteúdo limitado das suas lutas, necessitava difundir a fé e a

esperança nos seus propósitos. Não se podia ainda discernir a face do homem de negócios que

se escondia por trás do ideal de direitos humanos, nem da ―abstração que caracterizava a

imagem do cidadão‖ (BLOCH, 2005, p. 151).

Nasciam os arquétipos burgueses de ilusão da sociedade. Embora seus conteúdos

fossem primeiramente ―oferecidos em representações, essencialmente nas fantasias‖, as

abstrações precisam ter a seu favor a antecipação aparentemente possìvel, o ―ainda-não-ser‖, e

foi nas contradições entre o discurso e a prática que o movimento socialista cresceu (BLOCH,

2005, p. 144). O ponto de contato entre os sonhos e a vida foi o ―consciente-ciente‖

antecipador.

Sem ele, não adianta sonhar. A fantasia seria exclusivamente regressiva. Não haveria

aquilo que Bloch (2005, p. 164) define como ―meta imaginária ideal‖, objeto do querer e

―dirigida ao ser humano como dever‖. Podem conter muita má consciência, muito

inconsciente arcaico, mas, no final, não deixam de ter o seu lado livre, o seu fascínio, as

características livres dos sonhos diurnos. Como ensinaram Aristóteles e Hegel, citados por

Bloch, essa caracterização do ideal, corporificam a ideia em um ―único fenômeno‖,

asseguram os vínculos do ideal com o real.

Nesse sentido, o ideal não é tratado como uma palavra ―insossa‖, ―oca‖. No universo

burguês é o contrário: os ideais estão ―profundamente enraizados na hipocrisia‖ porque não

há harmonia entre teoria e prática, entre o sonho e a realidade. Não é uma definição em linha

reta. Na Alemanha, como assinala Bloch (2005, p. 170), o ideal ―pairava tão acima do mundo

que nem entrava em contato com ele, a não ser no distanciamento eterno‖. Mas, em uma visão

ampla, os ideais desde o princìpio mostram ―a sua esperança em plena luz, numa abóboda que

se estende para cima‖ (BLOCH, 2005, p. 171). Tinham origens em motivações diurnas.

Queriam colher um agora que tinha chegado, que podia ser ―diáfano como o ar, como o

vento‖, mas que era ―perceptìvel‖ ou assim era possìvel imaginar (BLOCH, 2005, p. 175).

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Freud, pela referência de Bloch, considerava os sonhos diurnos sonhos de criança. Bloch

contesta:

Trata-se de uma concepção limitada e fundamentalmente falsa. É certo que

neles, ocasionalmente, podem influir reminiscências de um eu infantil

maltratado, inclusive complexos de inferioridade infantil; mas eles não

constituem seu núcleo. O portador de sonhos diurnos está pleno de vontade

consciente que permanece consciente para uma vida melhor, ainda que em

graus diferenciados, e o herói dos sonhos diurnos é sempre a pessoa adulta

(BLOCH, 2005, p. 91).

Não se trata puramente de negar Freud, mas da reinterpretação do papel dos sonhos na

vida coletiva e na vida adulta. Os sonhos despertos são mensageiros da não ilusão, produzem

calor pelo amadurecimento, não pela regressão. O que Bloch critica em Freud é a

predominância da orientação biológica, de enraizamento mecanicista, sobre a teoria social.

Não significa que Freud não evoque os fatores sociais sobre o homem, mas que se preocupa

mais com a família do que com a compreensão do sujeito histórico. Disso resultaria uma

dicotomia entre a estrutura biológica e a estrutura histórica, repetindo, a separação entre

sujeito-objeto, entre o trabalho físico e o trabalho intelectual.

Aqui o caminho se revela como função do alvo e o alvo, como substância a

caminho – caminho esse investigado em vista de suas condições, visualizado

em busca de suas aberturas. Nessas aberturas, a matéria possui uma latência

no rumo dos conteúdos reais-objetivos de sua esperança; como fim da sua

auto-alienação e da objetividade afetada por elementos estranhos, como

matéria das coisas para nós. Nesse caminho ocorre o sobrepujamento do

existente na história e no mundo, esse transcender sem transcendência que se

chama processo e sofre uma tremenda aceleração na terra mediante o

trabalho humano (BLOCH, 2005, p. 207).

O padrão geral do voltar-se para o alvo é o marxismo, a teoria-práxis na direção do

―não-mais-alienação‖ do sujeito-objeto revolucionário, portanto na direção da liberdade.

Trata-se de uma busca pelo ser-em-possibilidade, pelo avanço dialético do existente real. Uma

realidade que contém interiormente a sua própria escuridão e um horizonte exterior ―de

grande amplitude na luz do mundo‖ (BLOCH, 2005, p. 220).

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4.8 O DESINTOXICAR DO MUNDO, IMPULSO DA CONCIÊNCIA SOCIALISTA

O sonho desperto, ou seja, aberto para o mundo sabe não se abster. Ele se

recusa a se saciar ficticiamente ou ainda a espiritualizar desejos.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 97)

Quando César visitou o monumento a Alexandre, em Gades, exclamou: ―Quarenta

anos e ainda não fiz nada pela imortalidade‖ (BLOCH, 2005, p. 92). Era, no entender de

Bloch, o modelo daquilo que, utopicamente, um ser humano gostaria de ser e tornar-se. No

caso especìfico de César, envolvia o ―eu‖ desejante. Nada impede que o mesmo sonho

desperto tenha acento coletivo, como foram os sonhos de Brecht ao procurar levar ao teatro a

realidade, não a ilusão (BLOCH, 2005, p. 411).

O homem não é só produto da natureza, mas da história. Bloch não rechaça Freud por

inteiro, mas concebe que o homem, mais do que um ser social, é um ser histórico. É essa

reorientação que Bloch preconiza para a psicanálise na raiz, a mesma que reivindica para a

filosofia. A razão de tal proposição é levar o homem a ―comunicar-se com o que está para

além de si mesmo‖ (BLOCH, 2005, p. 95).

Freud, ainda segundo Bloch (2005), tangenciou a consciência no rumo da novidade,

―desfigurou a psicologia do novo‖ ao diluir na sublimação os impactos do sonho acordado.

Não se ateve ao caráter do sonho diurno de não se saciar ficticiamente, de ―ir até o fim‖

(BLOCH, 2005, p. 95).

Houve, nesse particular, uma confusão entre o que é ilusório e o que é pré-aparência.

Perdem-se, nela, os fundamentos realmente arcaicos, a saber: os arquetípicos da Idade do

Ouro, do paraíso e da esperança. Escassamente investigadas, as utopias oníricas se perdem e

são mantidas coesas pelo ideal de perfeição, pintado de acordo com as perspectivas de classes.

Não são, porém, ilusões.

A vontade de ir até o fim bem-sucedido sempre perpassa a consciência

utópica, colore essa consciência com inesquecíveis seres de contos de fadas,

e vigora ainda nos sonhos de uma vida melhor, mas a suo modo também nas

obras de arte, o que finalmente tem que ser compreendido. A fantasia de

melhoria do mundo aterrissa nelas não apenas de modo que todos os seres

humanos e coisas sejam conduzidas até ao limite de suas possibilidades, com

todas as situações esgotadas e detalhadas em sua forma. Antes, toda a grande

obra de arte, para além de sua essência manifesta, ainda foi concebida sobre

uma latência vindoura – vale dizer: sobre os conteúdos de um futuro que no

seu tempo ainda não tinha surgido. Em última análise, sobre os conteúdos de

uma situação final ainda desconhecida (BLOCH, 2005, p. 100).

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Como nas grandes obras filosóficas, essa é a fonte da ―eterna juventude‖ de obras

como a Divina Comédia e a Flauta Mágica de Mozart. Além de realista, abre janelas que

demonstram ser o sonho diurno, no mínimo, possibilidade. O sonho pode ser fantasioso, mas

quando mediado pela realidade é antecipador, ―provém da expansão do si-mesmo e do mundo

para a frente, é um querer-viver-melhor, muitas vezes, de fato, um querer-saber-melhor‖ e,

muitas vezes, a qualidade sincera dos homens presente no sonhar acordado e no sonhar

dormindo (BLOCH, 2005, p. 100).

Sonhos noturnos, sonhos diurnos. Diante deles, erguem-se os pressupostos para a

teoria e descoberta do ainda-não-consciente. Abstrai-se o andar em círculos e, com isso, o

sentido atávico e supersticioso do sonho noturno. À luz do sonho acordado, dissiparam-se o

romantismo de feição reacionária, com a percepção voltada para o mundo velho e a tendência

à rememoração.

Nenhum ser humano jamais viveu sem sonhos diurnos, mas o que importa é

saber sempre mais sobre eles e, desse modo, mantê-los direcionados de

forma clara e solícita para o que é direito. Que os sonhos diurnos tornem-se

ainda mais plenos, o que significa que eles se enriquecem justamente com o

olhar sóbrio – não no sentido da obstinação, mas no de se tornar lúcido

(BLOCH, 2005, p. 14).

O sonhar, enriquecido pela maneira efetiva de pensar, torna-se a pedra angular da

consciência utópica socialista. Justamente o oposto do sonho individual burguês. É o florescer

do ainda-não-consciente da necessidade de coincidência do sujeito-objeto-sujeito na

construção do mundo. Mas os dois lados da existência, a dicotomia sujeito-objeto e a sua

unidade, só encontram a interação se o homem histórico realizar-se na categoria da finalidade

do futuro.

Nesse caso, a filosofia será enriquecida por coisas ―jamais vistas‖, e o homem, sem

alienação, brilhará no mundo desde a infância. Essa é a base do socialismo blochiano como

visão integral da vida, visão que ele ampliou de The Spirit of Utopia (Geist der Utopia) a

Experimentum Mundi de 1975, a sua última obra, mantendo-se firme na concepção de um

sistema filosófico aberto e humanista.

Bloch sonha com a eliminação dos ornamentos do capitalismo. Sonha com o homem

se distanciando da comunidade do povo (Volksgemeinschaft) fascista e do American way of

life americano. Sonha com o impulso inteligente da consciência socialista: ―A fé passiva pode

transformar-se numa fé ciente e instigadora‖ (BLOCH, 2005, p. 432). Uma fé movida pela

boa consciência e pelo telos do bem comum, que brote do homem para o homem.

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A distância entre a fé ativa e passiva é uma questão de despertar para a evidência de

que o processo inacabado do mundo pode ser finalizado. E modelar um novo mundo, uma

consciência nova do humanismo. Por isso, Bloch não considera sequer a ideia do pré-

consciente freudiano. Para ele, pré-consciente e ainda-não-consciente são coincidentes.

Somente, o ainda-não-consciente expressa a consciência antecipadora, presentes na juventude,

nas épocas revolucionárias e imprime ―dignidade‖ à função utópica, tanto no afeto quanto na

imaginação e na ideia‖ (BLOCH, 2005, p. 114).

Bloch desejava ―desintoxicar‖111

a sociedade do que não é contemporâneo. Desejava

que o homem superasse a ausência de sonhos acordados, chamada destino, e se dedicasse ao

sonho acordado chamado Revolução. Não desejava sucumbir à desatenção para com o

instante vivido, nem ao real hipostasiado. À maneira de Goethe, Schelling e Hegel, procurava

expulsar a teoria mecânica da natureza e valoriza-la com cores das florestas, das cordilheiras,

do mar, enfim as cores do mundo. Pretendia envolver o homem com a magia dos ―rostos

humanos no chão do mundo‖, isto é, considerá-lo como o ―antidestino‖, o ―antimorte‖,

considerá-lo construtor do ―chão do ser humano‖, mas também construtor do ―seu ambiente

permanente (BLOCH, 2006b, p. 438-9).

Não mais um sonho no ar, no céu ou nas obras de arte, mas o sonho no cotidiano, no

entusiasmo e na lucidez da ação. Não mais o ainda-não-consciente que adia o sonho

socialista, mas o consciente que traz o sonho socialista para o cotidiano e lhe dá concretude na

antecipação do futuro. O suporte da utopia de Bloch é a fé no homem, o entusiasmo.

[...] para acertar o ponteiro das horas é preciso girar o ponteiro dos minutos,

e igualmente, ao inverso é preciso que o totum de um grande navio que se

encontra numa longa viagem possa ser iluminado em cada trabalho

revolucionário minucioso. Portanto, é uma atitude tão tola quanto estranha

ao marxismo tentar alavancar a realidade unicamente com a lucidez, assim

como lançar-se unicamente com o entusiasmo para cima dela; o real,

exatamente o real da tendência, é atingido somente através da constante

oscilação dos dois aspectos, unidos numa perspectiva treinada (BLOCH,

2006b, p. 454).

O sonho acordado aperfeiçoa-se, pode ser desejo e vontade, desejo e realização. Como

a matéria, é o Deus da vida, sem ser ainda o sol humano reflete luz. Diferentemente, no sonho

noturno, o ainda-não-consciente não surge, no entender de Bloch (2005), como a suprema

forma de consciência. Falta no sonho noturno o ―absoluto do querer humano‖, falta o desejo

do optimum, inerente ao homem ―desde que se acendeu o primeiro fogo sobre a terra e desde

111

Cf. ―Non-contemporaneity and intoxication‖. In: Bloch, Ernst. Heritage of our Times (1991).

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que nela se demarcou o primeiro alvo‖ (BLOCH, 2006b, p. 439). Povoado pelo que já

aconteceu, o sonho noturno não deixa espaço para o futuro, como no sonhar acordado. Sonhar

acordado é a substância da esperança.

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CAPÍTULO V

INTÉRPRETES DA UTOPIA DE ERNST BLOCH

O materialismo mecanicista, com certeza, é verdadeiro como materialismo,

isto é, como explicação do mundo a partir de si mesmo, mas não é

verdadeiro quando ensina um mundo meramente mecânico.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 328)

Ainda que Bloch tenha eliminado da utopia o conteúdo fantasioso e irracional, ainda

que tenha elevado as fronteiras do marxismo a uma concepção iluminista de crença no

homem, baseada em ações práticas, não mecanicistas, e ainda que tenha procurado elaborar

um sistema filosófico revolucionário aberto, a crítica ao pensamento blochiano parece se

perpetuar. Em uma composição histórica, trilha a via da realidade aparente, porque o

pensamento de Bloch, embora hoje envolto nas sombras do esquecimento, procurou

responder a três questões essenciais e urgentes do marxismo: a primeira, e principal, é a

questão do ainda-não-consciente, indispensável para a compreensão das razões que levam o

socialismo a não ser ainda o regime de preferência da sociedade de massas.

Uma das virtudes do conceito do ainda-não-consciente é iluminar de maneira

incomum o seguinte tema: como pensar hoje Marx e o sujeito revolucionário em um ambiente

onde as crises do capitalismo se sucedem e se aprofundam, como se o valor do trabalho, a

economia política e a filosofia da práxis estivessem saindo das páginas das Teses sobre

Feuerbach ou dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Essa articulação poderia

trazer à cena universal a ideia da emancipação do homem e marcar a ruptura entre a sociedade

burguesa e humanização socialista?

A segunda questão, não menos importante, é o candente problema da ética, sem a qual

é impossível transformar a sociedade. A ética blochiana se alimenta, mais do que dos intesses

de classe (proletária) de uma ética voltada para o futuro e que seja construída nas relações

humanas e que supere as ambiguidades e a má consciência capitalista. Também associada ao

ainda-não-consciente significa, em última análise, que o homem precisa despertar para os

outros homens porque não pode anular suas responsabilidades, nem fechar os olhos para o

significado coletivo do bem comum. Se ele tem consciência da morte, por que não poderia ter

consciência, igualmente, não utilitária que fosse, de uma extensão das relações humanas não

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alienadas? A terceira envolve o significado de um mundo sem Deus, realizado apenas pela

vontade dos homens.

Acrescente-se o tema da liberdade, que Bloch alia à supressão das fronteiras que

separam o sujeito e o objeto revolucionário, criticando-o. Mas seria uma omissão deplorável

se ao pensamento de Bloch não fossem adicionados dois temas essenciais para a atualidade: a

natureza e o tempo. A natureza pela sua presença na vida do homem e por ser o embrião da

vida futura que se desenvolve dialeticamente no ambiente da vida. O tempo por ser em Bloch,

como destaca Arno Münster (2001, p. 362) um fluxo incessante, mas descontínuo, que se

aproveitado com criatividade, pode conduzir o homem à emancipação. Por último, há o

recriar da filosofia, a ideia da antecipação concreta do socialismo a partir da Tese de número

11 de Marx sobre Feuerbach.

Bloch delineou um novo traçado histórico, a partir de Marx, para discussão da cultura

capitalista, da epistemologia materialista-dialética, da filosofia com raízes na vida e nas

pequenas coisas do cotidiano. Foi, nessa trajetória, bem recebida pelos seus contemporâneos,

a exemplo de Bertolt Brecht, Emmanuel Lévinas, Gershom Scholem, György Lukács, Karl

Mannheim, Martin Buber, Martin Jay, Michaël Löwy, Theodor Adorno, Siegfried Kracauer,

Walter Benjamin, além de pensadores como Herrmann Hess, Eric Hobsbawn, Thomas Mann,

seu filho Klaus, assim como por Eric Fromm e Jürgen Habermas.112

Essa recepção não significa ausência de críticas, discordâncias ou debates e mesmo

ironias, mas é muito provável que sua obra tenha sido alvo de controvérsias mais por ser vista

pelo seu ângulo messiânico do que pelo seu caráter revolucionário, mais pelo sentimento dos

críticos de que a utopia estaria vivendo seu aparente ocaso do que pelo caráter perene da

utopia que Bloch faz viver para sempre nesta frase de Oscar Wilde: ―Nenhum mapa do

mundo que não contenha o país da utopia, merece que se olhe para ele‖ (BLOCH, 2006b, p.

37). O interesse pela religião e o misticismo fizeram parte do amadurecimento intelectual de

Bloch, mas não impediram que a sua utopia ganhasse dimensões científicas e, muito menos,

que ele se curvasse à ―mitologia gnóstica‖ (BOLDYREV, 2014, p. 622-56).

Para Bloch, a utopia socialista não terminou e, essa realidade é posta em relevo,

associando a história com a prática marxista e a filosofia utópica, independente dos avanços

tecnológicos e sua influência na realidade social. A rigor, o marxismo foi constituído e

definido na ausência de referência filosófica ao pensamento de Marx. Plékhanov, Lênin e

Stalin não conheciam os Manuscritos de 1844 e A Ideologia Alemã, que permaneceram

112

Cf. Ernst Bloch and his Contemporaries, de Ivan Boldyrev, 2014.

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inéditos até 1932, época em que o materialismo dialético e sua proposta doutrinária se

imaginavam acabados. Também, a filosofia soviética só viria a ganhar traços definidos a

partir de 1930, uma vez que a guerra civil e a política econômica, na década que se seguiu à

Revolução, consumiu intensos debates.

Por aquela época, os militantes bolcheviques questionavam inclusive a existência de

uma filosofia marxista, e a filosofia era considerada, ―por essência, burguesa‖ (ZAPATA,

1988, p. 91-9). Era uma tese defendida, sobretudo, pela ortodoxia comunista contra a corrente

chamada dialética e que ganhou força a partir da morte de Lênin em janeiro de 1924.

Culminou com a vitória mecanicista, graças à ascensão do stalinismo, que viria a cultivar o

mito de uma filosofia ―monolìtica‖ a serviço do Estado: ―[...] não mais filosofia, mas uma

função filosófica da ideologia de Estado‖ (ZAPATA, 1988, p. 100-1).

Isto motivou um grande paradoxo: almejava-se construir uma sociedade humana, mas

sustentada apenas no conhecimento das obras econômicas e políticas de Marx.

Consequentemente, o alvo da revolução concentrou-se na luta de classes, sem considerar a

amplitude do desafio de criar um homem novo, repetindo o erro positivista de subordinar a

filosofia ao conhecimento da ciência e a esquerda, ao dogmatismo do materialismo dialético.

Bloch move-se na direção da unidade marxista e na absorção do pensamento psicanalítico

renovado pela filosofia da práxis.

Em O Sentido da Realidade, Berlin (1999), além do dilema entre a revolução e a

realidade do movimento marxista, a doutrina da unidade entre teoria e prática como forma de

medir a coerência entre o que se pensa e o que se faz, e as relações dos revolucionários entre

si, estas determinadas também pelo lugar que ocupavam no sistema produtivo, reconhece que

houve flagrante oposição entre o modelo revolucionário e a visão do progresso humano.

Saint-Simon na sua utopia ensinara ser necessário a ―eliminação das disputas‖ e a

―organização das energias humanas‖, em vista a alcançar o poder sobre a natureza, pois ―esta

não satisfaz as metas humanas‖ de uma sociedade harmoniosa, mas isto foi esquecideo

(BERLIN, 1999, p. 175).

Contra a visão racional, que estaria distante do utilitarismo, mas que se tratava de uma

utopia centralista e autoritária, o que prevaleceu foi um processo de aplicação de metas

morais e a tentativa de negar as contradições da realidade. Assim, afirmou-se a visão dos

homens mais sensíveis daquela época, como absoluto do processo, sem que os fins humanos

efetivamente desejáveis tivessem sucesso pleno. A imagem que Berlin (1999, p. 183) utiliza

para se explicar é objetiva: ―As regras que a tripulação do navio devem obedecer mudarão,

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mas a palavra do capitão e de seus oficiais, que são os únicos a conhecerem sua destinação, é

final e irrevogável, e define o que é verdadeiro e o certo.‖

A opção doutrinária em relação à opção libertária, não elimina, porém, a realidade de

que o marxismo superou a antiga moral burguesa e o papel determinante do Deus da Igreja, e

que enfrentou uma incruenta guerra civil que não só dizimou uma geração revolucionária

como impôs severas restrições à população. Mas no que pesem as cicatrizes de uma época de

juventude dos tempos, ficaram as questões quanto à natureza do sujeito revolucionário e o

papel das gerações futuras no processo revolucionário.

Em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e em Thomaz Münzer, Teólogo da

Revolução, Boldyrev encontra influências de Martin Buber e Gustav Landauer, mas Bloch

deles se afastou: de Buber, por não partilhar de sua visão sionista, que Bloch não considerava

parte de um movimento global de libertação e que entendia não possuía a visão universal do

socialismo; de Laudaeur, por não considerá-lo um utopista autêntico, mas que se limitava a

interpretar o processo histórico como uma série de ―topias‖ (BOLDYREV, 2014, p. 697-704).

Outro filosófo que teria influenciado Bloch naquele periodo inicial foi Franz

Rosenzweig, que dedicava particular importância ao instante vivido. Rosenzweig considerava

que a redenção humana viria pela iluminação do mundo, enquanto Bloch encontrava

alternativa na dissolução da parte opaca da consciência (BOLDYREV, 2014, p. 711-2).

Bloch, em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), não se refere a nenhum dos três – Buber,

Landauer e Rosenzweig -, mantendo identico silêncio em O Espírito da Utopia.

Em The Heritage of Our Times, Bloch (1991, p. 135) compara Martin Buber ao

filosófo místico Hermann Graf Keyserling (1880-1946), um ―pomposo irresponsável‖.113

Contudo, Boldyrev (2014, p. 398) revela que a filosofia existencial de Bloch foi

profundamente influenciada por Buber, modelo paradigmático, também, para intelectuais

judeus como Lukács, Benjamin, Scholem e Rosenzweig. Prolífico autor, herdeiro do

misticismo judaico, não chegou a ser um romântico. Foi caracteristico de Bloch, como em

Buber, na avaliação de Boldyrev (2014, p. 399) a exploração do choque entre o sagrado e o

profano, mas como o sagrado ―sempre em prosaico contexto‖.114

Ambos, eram intelectuais

não contemplativos, de ação.

O elo de identidade entre Bloch e Landauer estava na crítica ao marxismo tradicional

ou à corrente ―fria‖ do marxismo que ambos consideravam não suficientemente radical

113

―irresponsible windbaggery‖.

114

―often prosaic context‖.

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227

(BOLDYREV, 2014, p. 406). Para Boldyrev, a influência de Landauer sobre Bloch

caracterizava-se também na crença de que o ativismo socialista poderia mudar o mundo, o

que teria ficado claro também em Thomas Münzer, Teólogo da Revolução. Com Rosenzweig,

para Boldyrev (2014, p. 411-2), a proximidade com Bloch estava na ideia de antecipação do

futuro, também uma utopia do messianismo judaico, só que Bloch partia da ação humana. Na

visão de Boldyrev (2014), Bloch foi buscar as noções do messianismo nos livros sagrados do

judaismo e partilhava com Martin Buber o sentimento de que a redenção teria de vir pelas

mãos do homem. A origem de tais influências, que Bloch abandonou ―discretamente‖, nas

considerações de Boldyrev, estaria no esforço para integrar múltiplas religiões ao cristianismo

revolucionário.

Na sua filosofia, Bloch, para Boldyrev (2014, p. 364) procura fazer uma reconstrução

racional das religiões e do misticismo, seguindo estrita epistemologia, mas sem se deixar

influenciar no decorrer da sua obra. Surpreendia-se com a realidade do mundo, procurava

estabelecer vínculos entre a utopia do cristianismo e o judaismo. Nasceu judeu, nunca

absorveu os ritos tradicionais,115

mas foi assimilado pelo judaismo que o considerava um

intelectual judeu (BOLDYREV, 2014, p. 395). Bloch estava determinado a investigar as

ramificações do instante e sua repercussão na continuidade do processo utópico. Debruçou-se

para além da realidade dos fatos. Não queria apenas compreender o mundo da esquerda

contemporânea, mas olhar mais longe, questioná-lo, inquirindo-o a partir do passado, da

própria facticidade e das atenções que dedicava ao futuro. Por que a utopia revolucionária não

se concretizava? Quais as limitações impostas pela ontologia da realidade? Por que a utopia

não conseguia escapar ao economicismo e ao reducionismo que a aprisionava à realidade

cotidiana? Olhar para o futuro no presente era, efetivamente, construir o presente com vistas

ao futuro. Nada podia ser adiado.

115

Bloch se afirmava marxista e ateu. Condenava o que chamou de ―tradicionalismo judaista‖, e de ―deìsmo

abstrato do judaismo ortodoxo (tradicionalista)‖, tìpico das comunidades judaicas da Polônia, da Rússia e de

toda a Europa Oriental e as doutrinas dos velhos profetas de Israel, o misticismo dos hassidim (integrante do

movimento místico judaico do século XVIII que reagiam contra o estudo do Talmud) e a teologia oficial

rabínica. Perguntava-se porque a tradição judaica não admitia Jesus como líder de uma revolução ética na

Palestina durante a ocupação romana e por que, também, ignorava Jesus como ―sìmbolo de amor e da

fraternidade entre os homens‖ (MÜNSTER, 199, p. 64-5).

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Chegou a hora de um novo conceito de realidade, diferente do conceito

tacanho e enrijecido da segunda metade do século XIX, diferente do

conceito do positivismo avesso ao processo e também do seu

correspondente: o mundo ideal descompromissado da pura aparência. Um

enrijecido conceito de realidade penetrou até no marxismo, fazendo com que

ele se tornasse esquemático. Não é suficiente falar de um processo dialético,

e depois tratar a história como uma série de fatos fixos que sucedem um ao

outro ou ainda como“totalidades”fechadas. Aqui há o perigo de um

estreitamento e de uma redução da realidade, um abandono da“força

atuante e da semente”contidas neles – e isso não é mais marxismo. Ao

contrário: a fantasia concreta e o imaginário de suas antecipações mediadas

estão, eles mesmo, fermentando no processo do real e se refletem no sonho

para a frente concreto (BLOCH, 2005, p. 195-6).

Nessa determinação de questionar os elementos antecipatórios componentes da

realidade residia o sentido da dialética revolucionária. Bloch inaugurou a discussão para situar

o marxismo na corrente de transformação do mundo em Heritage of our Times (Erbschaft

dieser Zeit) e a completou com Experimentum Mundi. Percebia que a utopia estava sendo

isolada na configuração do mundo, mas não apenas pelo capitalismo. Além da distopia, do

niilismo, da ortodoxia marxista, havia resistência, notadamente, quanto à necessidade de

reconfigurar o papel do sistema produtivo, considerando que o modo de produção era figura

processual definitiva na história humana.

Da descoberta leibniziana do subconsciente, passado pela psicologia

romântica da noite e do passado primevo, até à psicanálise de Freud, [...] só

a ―aurora para trás‖ foi descrita e analisada. Acreditava-se ter sido decoberto

que todo presente está carregado de memória, carregado de passado no porão

do não-mais-consciente. Não se descobriu que, em todo presente, mesmo no

que é lembrado, há um impulso e uma interrupção, uma incubação e uma

antecipação do que ainda não veio a ser. E esse interrompido-irrompido não

ocorre no porão da consciência, mas na sua linha de frente (BLOCH, 2005,

p. 22).

Tratava-se de retomar o caminho da ação, de articular a realidade, sobretudo da

juventude, com o que ainda-não-veio-a-ser. Para Bloch (2005, p. 22) seria dessa maneira que

―o antecipatório age no campo da esperança‖, portanto passar a linha de frente da

transformação era um ato de trazer o novum para o front da vida. Que isso não estivesse

ocorrendo não deixava de ser um retorno à obscuridade do instante, mas um retorno dialético

que poderia ser considerado, como lembraria Bloch (2009, p. 254, tradução nossa) em

Atheism in Christinity (Atheismus im Christentum) uma forma de ―explorar o novo sem

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229

nenhum ceticismo‖,116

somente que a partir de uma reavalização dos caminhos percorridos.

Essas idéias de Bloch teriam sido reconhecidas pelos seus intérpretes? Como tem sido vista

sua obra?

5.1 OS IDEAIS, O REALISMO SOCIALISTA E A LUTA DE CLASSES

O caminho se revela em função do alvo e o alvo, como substância a

caminho.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 207)

O problema da interpretação blochiana é complexo e contemporâneo da crise do

marxismo. Os ideais são muitos, assim como as alternativas para concretizá-los. Contudo, em

Bloch, os ideais conduzem, se efetivos, para a prática do bem comum, e esta não pode existir

sem o socialismo e a sociedade sem classes. Qualquer que seja o trajeto a percorrer e os

desafios a superar, o futuro não pode passar ao segundo plano, nem ser esquecido ou ocultado

pelas palavras. Lukács, em sua História da Consciência de Classe (2003), trata de passagem

do utopismo para o socialismo científico pela oposição entre a ciência doutrinária e a ciência

revolucionária. A ciência revolucionária seria a verdadeira realidade social, econômica e

política que não podia se limitar aos dilemas teóricos do marxismo e suas limitações.

Considera que a consciência de classe permitiu a superação da utopia, mas não se

negava a aceitar que o caminho entre a superação e a possibilidade concreta de realização é

longo. Não implicaria o fim da utopia e nem que a ciência revolucionária não estivesse aberta

a ser discutida. Mas a questão utópica ficava para trás ante o papel do Estado como ―arma da

luta de classes‖: o realismo do socialismo concreto, sua realpolitk, não deveria abandonar o

sonho da dialética materialista (LUKÁCS, 2012, p. 77).

Era a visão leninista do processo e, em decorrência, o Estado do proletariado – o

conselho de trabalhadores, camponeses e dos soldados – figurava como antídoto contra a

desorganização. Além do mais, era a resposta socialista ao Estado burguês que buscava, a

todo o instante, manter os cidadãos, como ―átomos isolados de um todo estatal‖ (LUKÁCS,

2012, p. 81). Na biografia que escreveu sobre Lênin, no calor da realpolitik revolucionária,

acentua:

116

―explore the new, without any sort of cathechism‖.

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230

A atualidade da revolução se expressa na atualidade do problema do Estado

para o proletariado. Com isso, no entanto, o problema do próprio socialismo

é deslocado da lonjura do mero objetivo final para a proximidade de uma

questão de realidade imediata para o proletariado. Mas essa proximidade

palpável da realização do socialismo é, por sua vez, uma relação dialética e,

para o proletariado, poderia ser desastroso se essa proximidade do

socialismo fosse interpretada – de modo mecanicista – utópico – como

realização por meio de mera tomada do poder (expropriação dos capitalistas,

socialização, etc.) (LUKÁCS, 2012, p. 85).

A teoria de Luckás, de tradição marxista-leninista, visava à explicação prática da

realidade de vencer, passo a passo, os hábitos do pensamento capitalista, comum a todos os

homens, mesmo os mais esclarecidos. O capitalismo tinha racionalizado o mundo de acordo

com seu interesse e ao mesmo tempo desencadeado forças irracionais e o caminho para evitar

o caos politico seria desmontar essa máquina programada para alienar e domar as

consciências. A sua preocupação estava em conciliar as ideias marxistas com a realidade. E

comparava a realidade da época da Revolução Russa com a utopia: ―O utopismo dos

revolucionários é uma tentativa de sair do buraco, puxando os próprios cabelos, de saltar para

um mundo inteiramente novo em vez de compreender o surgimento dialético do novo a partir

do antigo‖ (LUKÁCS, 2012, p. 89).

Tal imagem, certamente, procura captar a distância em que se encontrava a filosofia

utópica da efetiva concretude da transição para o socialismo. Se o interesse coletivo do

proletariado fosse concretizado, todos os outros interesses também o seriam. A consciência

proletária seria a forma ativa de construir o futuro e, além disso, o mundo novo seria gestado

no interior da revolução. A exemplo de Bloch, procurava a totalidade humana no marxismo,

como antídoto contra a burguesia, mas Luckás (2003) acreditava que o sujeito da história, o

proletariado, se desenvolveria progressivamente como classe universal na medida em que se

superasse o dualismo sujeito-objeto e ocorresse a reapropriação da produção pelo produtor.

O pressuposto estava na pavimentação de uma época que acenava com efetiva unidade

entre sujeito e objeto, o que afastaria a possibilidade de reificação da burguesia. Mas o que

separaria Lukács de Bloch, ao lado da crítica blochiana à centralidade do dominio da

produção (2000), seria o fundamento real objetivo da política revolucionária.

Especificamente, com relação à obra de Bloch, Lukács a examina no contexto da crítica à

religião e da sua fusão com o materialismo histórico. A crítica a uma visão metafisica de um

processo não metafísico? O choque entre uma concepção romântica do processo

revolucionário com uma concepção vista como realista? Lukács cita Marx em sua crítica à

Filosofia do Direito de Hegel para solidificar sua oposição à utopia de Bloch: ―A religião é a

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realização fantástica da essência humana, visto que a essência humana não possui aqui

nenhuma realidade verdadeira‖ (LUKÁCS, 2012, p. 382-3).

O processo da religião repetia, na economia, o seu caráter alienante e, segundo

Lukács, exigia uma política real para mudá-lo. Bloch não ignorou essa dificuldade, mas

previa a necessidade de uma transformação total da realidade. Uma epistemologia autêntica

não poderia ignorar a constituição do homem, não só o operário, capaz de fazer a revolução

dos valores. Seria irresponsabilidade do pensamento utópico apontar o roteiro a seguir para

que a ética transformadora e a vontade de mudança se tornassem práxis revolucionária

universal. Não se tratava de um pensamento especulativo para salvar a filosofia da sociedade

sem classes, mas de um processo de conscientização indispensável, a fim de que o homem

participasse dos movimentos dialéticos de uma história nova. Bloch estava redescobrindo a

utopia, imprimindo-lhe concretude, Lukács relegando-a a um plano secundário de uma

interpretação tradicional.

Ao fazê-lo, Lukács se afastou das origens, dos anos de juventude, quando sonhava

como a ―utopia do futuro‖, um ―paraìso terrestre para além da sociedade burguesa e da

civilização industrial/ capitalista, uma época na qual Tolstoï seria o anunciador e Dostoiévski,

talvez o novo Homero ou Dante‖117

(LÖWY, 1986, p. 105, tradução nossa)? Certamente, não.

No passado, os idos da juventude, Lukács e Bloch sonhavam juntos, segundo recorda Löwy

(1986, p. 108): sonhavam com uma nova comunidade humana, com a Rússia mítica, com um

anticapitalismo romântico; sonhavam, e esse foi um traço das suas primeiras obras, com um

romantismo revolucionário que englobasse o idealismo ético, a política, a filosofia e a

história. O que mudou foi o horizonte ditado pelo envolvimento com a revolução.

Bloch, no sentido inverso, talvez por estar engajado na revolução de outra forma,

como filósofo, se manteria fiel à ideia de que a verdadeira gênese estava no final do processo

revolucionário. É possível que naquele instante o processo histórico não tivesse chegado ao

seu termo, embora na aparência fosse assim. Na perspectiva da história, Martin Jay (1986, p.

67, tradução nossa), irá admitir que Bloch acusou Luckás de permanecer ―muito estreitamente

cravado à realidade‖,118

o que lhe valeu a acusão contrária de se manter alheio à realidade. A

querela, de certa forma, foi premonitória: antecipou os impasses que o marxismo enfrentaria

no futuro. Um desses impasses é a sintonia ou não do marxismo com o romantismo

revolucionário. Para Löwy (1986, p. 113), em Le Romantisme Révolutionnaire de Bloch et

117

―Lukács rêve néanmoins à une utopie de l‘avenir, un paradis terrestre, une percée vers une nouvelle époque

dont Tolstoï serait l‘annonciateur et Dostoïevski peut-être le nouveau Homère ou Dante‖.

118

―être demeuré trop étroitement rivé au niveau de la réalité‖.

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Lukács, não existe contradição: e isso demonstraram Bloch e Lukács, ao romper com uma

leitura kantina, positivista ou darwiniana da obra de Marx. Uma concepção romântica da

revolução social que se projetou aos tempos atuais, contrariando a visão da ortoxia marxista.

5.2 FIM DA UTOPIA E O MARXISMO ROMÂNTICO

O pensamento audacioso é particularmente precioso quando também

conhece os limites que está dilatando. Apesar disso, há casos em que não

apenas é preciso disparar além das barreiras, mas até mesmo além do alvo,

a fim de acertá-lo.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 418)

É apoiado nessas palavras que Bloch lembra a necessidade de uma revolução na

filosofia para que a crença no homem passe a preponderar. Ele critica as posições filosóficas

individuais que, geralmente, estão erradas diante dos fatos, mas que são aceitas como

verdades. Exemplos: ―A maioria das pessoas é má‖, ―o homem é o lobo do homem‖ e

―ninguém comete voluntariamente injustiças‖. São máximas estruturadas para soarem como

verdades irrefutáveis, mas que estão muito distante de traduzir os verdadeiros movimentos do

mundo. Estes, sem dúvida, são fortemente ideológicos e envolvem ―o uso dos homens para

fins que definitivamente não são os deles‖, isto é, a desumanização do homem (BLOCH,

2006a, p. 423-4).

Seria o pensamento humanizador uma utopia? Marcuse (1969b), que nunca negou a

influência de Bloch na sua trajetória, às vésperas do movimento de maio de 1968, anunciou

―o fim da utopia‖.119

Seria o fim da possibilidade de humanização da utopia? Não se tratava

119

Cf. Marcuse falou para o Comitê Estudantil da Universidade Livre de Berlim Ocidental nos dias 10-13 de

julho de 1967 (MARCUSE, 1969b. p. 9). Ao abordar o tema de sociedades não livres, estava se referindo ao

comunismo da então URSS. Em Marxismo Soviético: análise crítica, escreveu: ―A industrialização comunista

processa-se em saltos‖, abrangendo perìodos históricos inteiros. ―As diferenças fundamentais entre a

sociedade ocidental e a soviética são esmaecidas por forte tendência à assimilação: a centralização e a

regulamentação superam a empresa individual e a autonomia; a competição é organizada e ―racionalizada‖;

há um processo de governo, de mando, do qual participam conjuntamente as burocracias políticas e

econômicas; a massa do povo é coordenada por meio da ‗mass média’, da indústria, da diversão, da

educação‖ (MARCUSE, 1969a, p. 79-80). Em lugar de abolir a sociedade de classes, inclusive o próprio

proletariado, o proletariado virou as costas para a revolução, consequentemente renunciou ao seu papel como

classe revolucionária. Recusou-se a admitir que, nos países capitalistas, o proletariado rendeu-se à tendência

da colaboração de classes, confundindo os interesses reais da revolução com os interesses imediatos do bem-

estar. O Marxismo Soviético é a metáfora ativadora do Homem Unidimensional (1964). Formado na alta

cultura alemã, expoente do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, fundado em 1924, com a proposta da

criação da Teoria Crítica da Sociedade, ao final dos anos 20 (na companhia de Adorno, Horkheimer,

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literalmente do fim, mas do recomeço, como a modificação da vontade humana para terminar

com o trabalho (intercâmbio material entre o homem e a natureza) alienado ou a alienação,

termos quase equivalentes, nas sociedades de capitalismo avançado. Para Marcuse (1969b) o

homem, como definiu Marx nas Teses sobre Feuerbach, não era senão o conjunto das

relações sociais (MARX, 2007), estando neutralizado não pelas limitações ditadas pelo terror,

mas por ―coerções polìticas‖ e a ―negação dos instintos‖ que neutralizavam as mudanças do

sistema capitalista (MARCUSE, 1969b, 27). Há, como adverte Marcuse, um ―inegável cìrculo

vicioso‖ de repetição do mesmo que exige uma saìda que não se apoie na exploração e na

opressão e elimine as formas de repressão (MARCUSE, 1969b, 111-3).

O princípio que rege o pensamento de Marcuse não é aquele da rejeição da utopia

concreta, mas da negação da alienação da sociedade capitalista pelas forças da necessidade e

das diferenças qualitativas que distinguem uma sociedade livre de uma sociedade não livre. A

pergunta que ele formula é: como transformar a sociedade tecnologicamente avançada no

rumo do socialismo? A resposta vai depender das condições históricas.

Segundo Marcuse (1969b), essas condições históricas existem, porém há impasses a

superar entre a teoria e a prática. A primeira questão a ser enfrentada é a renovação do

marxismo: estaria ultrapassado o sistema produtivo analisado por Marx? Lembra Marcuse:

quando Marx encontrava no proletariado a classe revolucionária, esta se encontrava livre das

pressões repressivas da sociedade, agora essa "autonomia" não é mais possível nos países

capitalistas desenvolvidos. "Os trabalhadores não mais representam a classe que leva em si a

negação das necessidades existentes", escreve ele. "Aliás, é esse um dos mais graves

problemas que devemos enfrentar" (MARCUSE, 1969b, p. 24-5).

É notória a relança dos fatores subjetivos na mudança: essa é uma das tarefas mais

importantes do materialismo revolucionário e ganha concretude na capacidade de

organização. "Uma das nossas tarefas é a de liberar o tipo humano que quer a revolução, que

deve consegui-la para evitar o fracasso" (MARCUSE, 1969b, p. 31). São duas frentes de luta:

a capacidade de organizar as insatisfações e, interligada à esse mesmo polo, a identificação

dos pontos de fechadura do sistema de poder.

O espaço entre a liberdade e a necessidade, entre a sociedades livre do amanhã e não

livres do presente é que determinaria o real: a racionalidade e a diminuição das horas de

trabalho não significam a libertação do homem em relação ao sistema produtivo. Libertar-se

Benjamin, e Erich Fromm), conhecia os Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx. Para além da

―dialética do senhor e do escravo‖, entendia que o processo de libertar a classe trabalhadora significava

libertar também o opressor. Assim, seus trabalhos que, como em Bloch procuram unir marxismo e

psicanálise, retratam os muitos impasses e dores da emancipação do mundo.

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do trabalho seria tornar a atividade produtiva prazerosa, como pensou Fourier, e não orientada

para o lucro, como no capitalismo.

"Acredito que uma das novas possibilidades nas quais se expressa a diferença

qualitativa entre uma sociedade livre e uma sociedade não livre consiste precisamente na

busca do reino da liberdade já no interior do trabalho e não além dele" (MARCUSE, 1969b, p.

14). Essa busca precisaria trazer para o âmago do socialismo as qualidades da sociedade livre,

não repressiva, com a liberdade e preponderância estética da sensibilidade humana e sua

convergência para a técnica, a arte, o trabalho e a política.

Equivale a saltar do conceito de utopia como negação da sociedade vigente para a

elaboração, pelo marxismo, como Marcuse (1969b, p. 22) define a "teoria crítica", para um

conceito de liberdade que fosse um "bem ainda jamais gozado pelo homem". Seria um

caminho especulativo que levasse o socialismo da ciência à utopia e não da utopia à ciência

como acreditava Engels (2005). Sendo um conceito "extra-histórico" (MARCUSE, 1969b,

15) a exigir ruptura com os padrões sociais vigentes, a utopia sofre com o estigma da

impossibilidade, como aconteceu, no passado, com o projeto comunistas no interior da

revolução francesa e o socialismo, na atualidade, nos países de capitalismo avançado.

A contrapartida é que a impossibilidade pode ser provisória, se transformando em

possibilidade, pelo conceito de ainda-não-consciente de Bloch (2005), no decorrer do

processo de mudança. O paradoxo, portanto, é que existem todas as "forças materiais e

intelectuais necessárias à realização de uma sociedade livre", mas o marxismo permanece

confinado no terreno da utopia irrealizável (MARCUSE, 1969b, 16). ―A necessidade não se

configura (ou não mais se configura) como necessidade vital em grande parte da população

dos paìses de capitalismo desenvolvido‖ (MARCUSE, 1969b, 17). O resultado é uma

sociedade repressiva, não livre, fundamentada nas premissas do lucro, da hierarquização e da

estrutura tecnológica, mas que devida as suas contradições, a progressiva concentração do

trabalho socialmente útil, "solapa os fundamentos do próprio poder" (MARCUSE, 1969b, p.

18).

Em O Capital, Marx, cita Marcuse, "observou corretamente que uma automação

completa do trabalho socialmente necessário é inconciliável com a preservação do

capitalismo" (MARCUSE, 1969b, p. 18-9). O trabalho socialmente útil ou necessário é o

trabalho alienado. Se excluído do processo ou fisicamente desaparecer, há possibilidades das

potencialidades técnicas assumirem caráter libertador e pacificador, tornando possível

transformações no mundo e novas relações humanas, sem que se remova da vida os

benefícios da técnica e da industrialização capitalista (MARCUSE, 1969b, p. 20-1). Como

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predomina a ilusão de que é possível concretizar a utopia de libertação do trabalho no

ambiente capitalista, se torna imperativo pensar, por exemplo, a psicanálise como força de

criação de um mundo melhor e libertando o homem das pressões pulsionais. Como reivindica,

Bloch (2005) com a ideia do ainda-não-consciente, a psicanálise torna-se postulado do

materialismo revolucionário.

No entanto, esse é apenas um lado da história. Soma-se o postulado político: uma

revolução libertadora exigiria do homem o pensamento crítico com relação à sociedade

contemporânea, o que implicaria em transcender a passividade das consciências. Esse é o

grande problema, no entendimento de Marcuse (1969b), com que se debate o materialismo

revolucionário. Seria a falta de consciência um obstáculo definitivo à mudança? Não. A

consciência se forma no processo. O problema seria, ainda de acordo com Marcuse (1969b),

uma clara teoria de liberdade e organização.

Marcuse (1969b) definiu a utopia como influência do pensamento de Marx de que

vivíamos a pré-história da humanidade e do combate implacável ao capitalismo. Essas

peculiaridades, continua Marcuse, foram superadas pelo ambiente de ―liberdade‖ do mundo

capitalista, inexistente no mundo socialista, o que tornava a teoria marxiana superada pelo

estágio, naquele momento, das forças produtivas. Não nega, é evidente, a alienação do

trabalho, mas não encontra, na utopia, a convergência do reino da liberdade com o reino da

necessidade. Pensava descortinar, no mundo capitalista, não um objeto, mas ―a possibilidade

de liberdade no âmbito da sociedade existente‖ (MARCUSE, 1969b, p. 22). Ao mesmo

tempo, Marcuse (2004) escreve em Razão e Revolução:

O mundo das mercadorias é um mundo ―falsificado‖ e ―mistificado‖ e a

análise crítica desse mundo deve começar por acompanhar as abstrações que

o constituem, devendo, pois, partir dessas relações abstratas para atingir o

seu conteúdo real. O segundo passo é, pois, fazer a abstração da abstração,

ou abandonar uma falsa concretude, de modo que a verdadeira concretude

possa ser restaurada (p. 269).

De acordo com isso, a dialética marxista é o absoluto da verdade, não limitando o

homem ao processo metafísico do ser, nem à imobilidade da rejeição da teoria revolucionária.

Corresponde ―à negação e destruição do existente‖ (MARCUSE, 2004, p. 242). A

objetividade daria sentido à dialética materialista, sendo incompatìvel com ―a orientação

exclusiva dos movimentos revolucionários para fins econômicos, porque todo fim econômico

tira seu sentido e conteúdo unicamente da totalidade da ordem social para a qual aquele

movimento está dirigido‖ (MARCUSE, 2004, p. 24).

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236

Envolve a negação da sociedade de classes, transformando a dialética materialista em

atitude libertária dentro do capitalismo, desvelando-se para traduzir as ambiguidades do

processo utópico, o que, em Marcuse, pode, em parte, ser conduzido pela influência

hegeliana, em parte, influenciado pela sua época. Não por coincidência, recorda que, depois

de 1840, a Alemanha optou pela filosofia conservadora, enquanto Hegel ―passava de Karl

Marx a Lênin e Moscou‖ e que sua influência morreu na Alemanha no dia em que Hitler

―subiu ao poder‖ (MARCUSE, 2004, p. 356).

Em Congédier l’utopie? de Henri Maler (1994), o fluxo crítico é contundente e aponta

para a filosofia blochiana como contradição dialética: Bloch teria sido traído pelo seu próprio

método de tentar chegar à totalidade partindo dos fragmentos de utopias inacabadas para a

utopia socialista. Nega a capacidade antecipadora da utopia e considera o socialismo

científico um fenômeno nascido na Alemanha e para alemães. Nascido da pena de Engels,

evoca Marx e se considera orgulhoso de descender de Kant, de Fichte e de Hegel, não de

Saint-Simon, Fourier e Owen.

Bloch, adverte Maler (1994, p. 250-4), proclama que as utopias parciais foram

ultrapassadas pela ciência revolucionária marxista, mas não ultrapassa o plano do retorno

fragmentário à utopia. Critica Bloch por ter insistido na utopia, retorno condenado duas vezes

por Marx: na Revolução de 1948 e na Comuna de Paris (MALER, 1994, p. 250-4). Critica-o,

também, por considerar que Bloch ―maltrata‖ as utopias de Bellamy – Looking Backward – e

de Morris – News from Nowhere. Uma por ser estatista, outra por ser romântica.

A teoria de Maler é que as duas utopias difundem o valor do marxismo, mas são

reveladoras das suas ―ambiguidades e impasses‖ (MALER, 1994, p. 253). Radicaliza a crìtica,

ao tratar das utopias parciais relativas às mulheres e jovens. Critica Bloch por considerá-las

parciais: seriam parciais por terem sido esquecidas na totalidade do modelo soviético, não por

serem manifestações parciais. A sua visão é de que as utopias acompanharão o desenrolar da

história, mas que Bloch tem o mérito de criticar a utopia como sendo meramente ciência,

além de não aceitar a exclusão da utopia pela ciência. Conclusão, o conceito de utopia

materialista é conceito comunista de utopia e se encontra fora de época (MALER, 1994, p.

253).

Jürgen Habermas (1987), que um dia foi marxista, define Bloch como ―marxista

romântico‖ ou o ―Schelling marxista‖ e, nele, encontra ―a mente do Odisseu e o espìrito do

êxodo‖, além da preponderância da fome como primeira necessidade do homem, sobre a

libido freudiana (HABERMAS, 1987, p. 61). Ele ouve na utopia de Bloch a música dos

ensinamentos de Schelling quanto à humanização da natureza e da natureza humanizar o

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socialismo. Ouve as vozes da influência da filosofia alemã, primeiro católica, depois

protestante, no messianismo cristão de Bloch e, também, a voz de Jacob Böhme na crítica ao

materialismo mecanicista na Inglaterra do século XVII e na França do século XVIII.

(HABERMAS, 1987, p. 68-70).

No final, chega à ética com pretensão de universalidade (Geltungsansprüche), mas de

cunho romântico filosófico, de impossibilidade prática. Simplificando, é uma utopia que peca

pelo excesso de utopia porque o presente não conteria os traços necessários de uma futura

antecipação socialista. Ao contrário de Lucács, Bloch e Marcuse, segundo Martin Jay (1984a,

p. 465), Habermas nunca acomodou impulsos românticos na sua visão do marxismo e a sua

filosofia sempre se direciou para a razão, mesmo que fosse a ―razão parcial‖120

que estaria no

centro da sua filosofia e das críticas ao marxismo.

Bloch não capitulou do valor real da utopia, ou seja, o humanitário-progressista.

Contra os crìticos, argumentava não existirem ―verdades eternas‖ (referência a Leibniz e as

―verités éternelles‖) e que a verdade dialética entre igualdade e não igualdade não é

necessariamente lógica, um ―cristalino-perfeito‖, mas que não desapareceu e se impôs

(BLOCH, 2006b, p. 427). Além de refletir sobre a filosofia do tempo, caberia ao filósofo

também criar alternativas. Fato é que o mundo é cambiante, mas a matéria original da utopia é

infinita, dependendo da identificação da ―imagem filosófica dos sonhos‖ com a diversidade

dos seres humanos ―em relação ao mundo e do mundo em relação a si próprio‖ (BLOCH,

2006a, p. 430).

5.3 NA UTOPIA NADA SE PERDE, APENAS A ILUSÃO SE TRANSFORMA

O que caracteriza o poder e a verdade do marxismo é justamente o fato de

ele ter dissipado a nuvem que envolvia os sonhos para a frente sem ter

apagado as colunas de fogo que neles ardiam, dando-lhe, ao contrário,

força e concretude.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 145)

A posição de Hans Jonas questiona o poder da filosofia marxista e blochiana. As

raízes de tal entendimento são plantadas na crítica ao ideal utópico de Bacon, que, na visão de

Jonas implicaria na ―dominação da natureza por meio da técnica‖ e no marxismo como

120

―partiality for reason‖.

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―executor do ideal baconiano‖ (JONAS, 2006, p. 235-9). Marxismo, nesse caso, é igual a

Ernst Bloch e à ideia de que toda a história até agora é uma pré-história e que a verdadeira

história só começaria com a emancipação do homem do capitalismo. Uma exposição mais

completa constataria que, na visão de Jonas, Marx teorizou o socialismo no alvorecer da

mecanização e que suas ideias serviriam para aquela época, não mais para atualidade, apesar

da ―revoltante‖ riqueza de poucos em detrimento da pobreza de muitos (JONAS, 2006, p.

240). Não significaria, porém, que essa contradição seja uma ―força capaz de mover a

história‖, nem justificativa para a ―irracionalidade do lucro‖ (JONAS, 2006, p. 240-2).

As relações entre o homem e a necessidade seriam mais plausíveis de suscitarem

mudança (com relação ao sistema do lucro) do que a desigualdade, mas estas independem de

teorizações. Certas forças produtivas, segundo Jonas, poderiam ser caracterizadas como

necessidades, como são os casos da indústria armamentista, da criação artificial pela demanda

de bens de consumo e os prejuízos da crescente industrialização causados à ecologia global.

No estágio em que se encontra, o capitalismo não se dispõe a enfrentar esses problemas pois

sofre do drama do ―hedonismo‖ e, ao contrário do socialismo, não se predispõe a mobilizar as

massas para questões éticas ou de sacrifìcio, com expectativas para ―uma realização futura

sustentada pelas privações presente‖ (JONAS, 2006, p. 245).

O que irá acontecer é uma zona de ―penumbra polìtica‖, mas nada garante que o

socialismo irá eliminar a motivação para o lucro e que o comunismo esteja imune ao egoísmo

regional, nem que se irá superar o culto à técnica (JONAS, 2006, p. 247-55). Contudo, para

ele, o que mais seduz na ―alma do marxismo‖ é a utopia da sociedade sem classes que seria a

sua ―tentação mais nobre‖ e por isso ―a mais perigosa‖ (JONAS, 2006, p. 256). Porque não

especifica, e não poderia ser diferente: qual será o homem do futuro, baseando-se na crença

na ―redenção‖ pela história.

Para tentar explicar o futuro, Jonas (2006, p. 259) prefere recorrer ao super-homem de

Nietzsche, que ―experimentava desprezo pelas bênçãos da igualdade socialista‖ e suas

―beatitudes coletivas‖. Nietzsche, também, considerava a sociedade transitória em relação ao

futuro, mas no que se referia ao homem. A diferença, apontada por Jonas, é que o marxismo

considera o homem fundamentalmente ―bom‖ e sua face de maldade decorria das

―circunstâncias‖ (JONAS, 2006, p. 260).

Para Nietzsche, o homem do futuro sempre existiu, com maior ou menor grau de

maldade, benevolência, coragem, genialidade ou mediocridade, sem que se precise recorrer ao

―desejo infantil‖ (igual a utopia) de querer tudo ao mesmo tempo‖ (JONAS, 2006, p. 261-2).

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O ―querer tudo‖ é explicado por Jonas (2006, p. 262-3) como a combinação da

superioridade moral dos cidadãos da sociedade sem classes com o bem-estar material. Para

ele, a palavra de ordem mundial, se o homem desejar sair da armadilha em que se envolveu

(em vez do ―crescimento‖, a desaceleração do crescimento), invoca a ―contração‖, o que se

torna mais difìcil para os ―pregadores da utopia‖ do que para os ―pragmáticos, desvinculados

de ideologias‖ (JONAS, 2006, p. 265).

Há um momento, em O Princípio Esperança, em que Bloch (2006a, p. 431) imagina

que mesmo as ideias mais não convenientes possam ser aceitas com ―leveza‖ e ―humor‖

dionisíacos como se fossem uma sinfonia de Berlioz. Mas a realidade talvez seja diferente, a

prevalecer a reflexão de Hans Jonas. A ―humanização da natureza‖, que Bloch vincula à

emancipação do trabalho humano, não passaria da ―subjugação completa da natureza pelo

homem‖ (JONAS, 2006, p. 334).

Qual seria o rosto dessa natureza? Jonas (2006) pergunta e propõe que, em lugar de

humanização, fale-se de ―abertura‖ da natureza e ―proximidade‖ com o homem, porque, para

ele, Bloch não percebe tal nuança, e esse seria o paradoxo: a natureza não utilizada pelo

homem é a ―natureza humana‖, enquanto a natureza colocada a serviço do homem é a

―natureza inumana‖ (JONAS, 2006, p. 336). A ―natureza aberta‖, para Jonas (2006), seria a

natureza da ética da responsabilidade. Por último, não encontra sentido no ―ainda não ser‖ do

existir de uma vida que o homem nunca viveu, uma utopia de eternidade no avançar do

tempo.

A simples verdade, nem gloriosa, nem deprimente, mas que precisa ser

respeitada em toda a sua inteireza é a de que o ―homem verdadeiro‖ existiu

desde sempre – com seus altos e baixos, em suas grandezas e em sua

mesquinhez, em seu gozo e em seu tormento, em sua justificativa ou em sua

culpa, ou seja, em tudo que não é separado em sua ambivalência. Tentar

eliminá-la significa querer suprimir o homem e o caráter insondável da sua

liberdade. Por causa desse caráter e da singularidade de cada situação, esse

homem será sempre novo e diferente dos demais, porém, jamais ―mais

verdadeiro‖. Tampouco poderá ser protegido dos perigos intrìnsecos que

precisamente fazem parte da sua ―verdade‖ (JONAS, 2006, p. 343).

Seriam as visões de Bloch e Hans Jonas complementares ou excludentes? O debate em

torno de Bloch é o legado da sua obra. O seu sistema de pensamento é aberto porque se

reelabora a partir das novas problemáticas que surgem. Segundo Michèle Bertrand (1986, p.

185, tradução nossa), se trata de uma questão de ―crença‖121

em Marx e Bloch. Não se refere,

121

―croyance‖.

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é evidente, a uma crença religiosa ou a um sentimento religioso. Se refere a uma crença

objetiva de ideais, objetivos e esperança. São fundamentos do mundo que podem levar o

homem adiante, como levaram no passado a esquerda aristotélica e os jovens hegelianos de

esquerda.

A materialização da ―crença‖, aludida por Michèle Bertrand, aconteceria quando o

homem investigasse Feuerbach, Marx e Bloch e constatasse que a ilusão não é uma simples

falta da conhecimento, mas que esta tira a sua força do desejo. Conhecimento e desejo se

fundiriam na tentativa de capturar a ―essência humana‖: em Feuerbach a relação com o sujeito

de conhecer, amar, desejar: em Marx uma essência abstrata, sendo parte do mundo do

homem, do Estado e da sociedade, uma essência caraterística do indíviduo isolado, explícita

nas estruturas das relações humanas; e em Bloch a essência é o homem sem os grilhões da

fantasia, o homem universal que reencontra sua força no Iluminismo e se mobiliza para se

tornar soberano.

De forma reveladora, segundo Michèle Bertrand (2006), os múltiplos traços da

essência humana podem ser encontados em Münzer, Teologo da Revolução e nascem dos

estudos místicos e religiosos de Bloch. Estão presentes no misticismo medieval (não um

misticismo ―romanesco‖, que se desenvolveu no fim do século XVI e XVII, e que em Bloch

se encontra longe de ―humilhar a razão), na filosofia de Eckhart e Gioacchino di Fiori, e nos

conceitos místicos de que Deus vive no interior do homem, da unidade entre o homem e

Deus. Encontram-se também em A Ideologia Alemã de Marx, nas relações de classe nas

contradições da tendência universalista do capital. Para Bertrand, é impossível se pensar na

emancipação do homem sem ideiais e essa hipótese não é uma idealização, mas condição de

um processo em que os indivíduos se apropriam da realidade social.

Considera que Bloch, mais do que Marx, foi quem trouxe ideias originais para a

concepção de ideais, com o conceito de utopia concreta, oposto ao socialismo científico de

Engels e ao socialismo utópico anterior a Marx. Sem ―crença‖, não há antecipação utópica

como alvo, não há o dever-ser, não há convicção do que se deve construir. Há apenas a ilusão

tão comum aos tempos atuais.

Se esse legado blochiano é ou não complementar a Jonas a realidade irá, sem dúvida,

decidir. Mas, sob o aspecto da crença, Bertrand (1986) não hesita em lembrar: segundo Bloch,

a crença no futuro renasce sem cessar. Nunca é descartada pelos homens na sua existência

concreta e nos seus projetos históricos. É o que parece confirmar o debate entre Ernst Bloch e

Theodor Adorno, quando este último pergunta o que se perdeu na utopia com o passar do

tempo e diz imaginar que as novas tecnologias demonstram a falta de renovação da utopia.

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Bloch responde com frase curta e direta: ―Nada se perdeu na utopia... As pessoas precisam

comer antes de dançar‖ (BLOCH, 1988, p. 15). O debate está no livro Utopian Function of

Art (Gesprächt mit Ernst Bloch). À parte a amizade que os unia, Bloch argumentava, ante a

questão de Adorno, que o mundo capitalista poderia comprar utopias, criar utopias baratas,

banalizar a utopia e até fazer dela uma espécie de niilismo, mas que o sonho socialista

permaneceria acordado.

Referia-se à eternidade do conceito na existência histórica do homem. O conceito de

utopia relacionava-se com os variáveis momentos da sociedade, mas só seria superado com a

sua concretização. À mutabilidade das formas da utopia, Bloch já tinha se referido ao falar do

deslocamento da ―religião para o céu‖ ante a impossibilidade de resolver os problemas do

homem na Terra (BLOCH, 2006b, p. 388). E, se Hegel admitia a distância em que o Estado se

encontrava para atingir a perfeição, Bloch não deichava de reconhecer que o mundo sem

alienação se situava num tempo indeterminado. Recorria também a Platão para reafirmar que

se o homem é ―uno‖ (verdadeiro, bom) na procura do bem comum, nada o impede também de

ser ―diverso‖ (BLOCH, 2006b, p. 404-5).

A dúvida, argumenta Bloch (2006b) surgiu com a escolástica – se o homem é regido

pela vontade ou pela razão, pela bondade ou pela verdade -, mas, de qualquer forma, a ―bem

aventurança suprema‖ (o que Platão havia denominado de ―satisfação plena) decorria da

preponderância da procura do bem comum. O bem comum seria idêntico ao sujeito da utopia

e estava no ―ápice dos ideais‖, era o ―absoluto da intencionalidade humana‖, o ―para quê

aboluto‖, ou, numa expressão popular, o ―sentido da vida‖ (BLOCH, 2006b, p. 405-6).

Bloch estava tratando do tempo ao dizer que ―nada se perdeu na utopia‖. A sua utopia

era atemporal. O sentido da esperança era um processo. O processo poderia ser retardado, mas

não se interromperia, por exemplo, com a queda do muro de Berlim e o desmembramento da

União Soviética, passadas décadas da primeira edição de O Princípio Esperança. A revolução

tenha sido negada e renegada e não faltaram, como não faltam, tentativas em secularizar

Marx, o que equivale a considerá-lo obsoleto e ultrapassado. Bloch insistia que a utopia

marxista não pode ser secularizada, porque não foi superada. Enquanto inexistir a sociedade

sem classes, essa superação não irá ocorrer pelo fato de que o homem continuará a explorar o

homem. Bloch, em O Princípio Esperança, sugere que o fim da experiência soviética

corresponde ao recomeço efetivo: o homem, não o partido, é o fundamento primeiro de uma

sociedade socialista e, consequentemente, livre. A ruptura com os valores burgueses pode ser

lenta ou rápida, depende da vontade do homem prometeico. É uma filosofia da práxis, não

uma doutrinação.

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Há, em Marx, segundo Bloch (2005), equilíbrio entre teoria e prática, as quais se

renovam mutuamente. Na filosofia blochiana, o que inexiste é qualquer possibilidade de

criação de uma sociedade universal com raízes na propriedade privada. A mudança poderá

ocorrer como resultado do sonho acordado com o futuro, corresponderá a uma nova ontologia

do ser humano. A sua ideia chave é que a estrutura capitalista repouse sobre a ilusão do lucro.

Como O Capital, The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e O Princípio Esperança

poderiam ser entendidos como grandes romances de formação para a futura juventude dos

tempos. Seus conceitos e ética revolucionária podiam ser vistos como projetados para um

tempo vindouro, como foi também a Fenomenologia do Espírito de Hegel. Simbolizam a

possibilidade, não a norma. Revelam a dialética do real e do sonho.

A utopia, como argumentou Bloch em debate com Adorno, podia ter se tornado

―difusa‖, mas esse era um ―retrato instantâneo‖ e logo haveria rebelião contra tal

―iconoclastia‖ (BLOCH, 1988, p. 11). Argumentava que a utopia era a crìtica ao presente e

que o marxismo era a forma de iluminação para que o homem antecipasse o futuro, a única

condição para viver em liberdade e em felicidade, condição em que a vida fosse completa. E

não hesitou em reafirmar que a mudança de sistema se tratava de uma questão de processo.

Confronto semelhante deu-se entre Bloch e Benjamin, só que num contexto histórico

diverso, mas com conteúdos cristalinos. Não foi num programa de debates, mas ao longo de

sucessivos encontros já que Benjamin, em ―certo sentido‖ viria a ocupar o espaço de amizade

intelectual e humana que antes Bloch dedicava a Lukács (MÜNSTER, 1997, p. 204).

Testemunha da proximidade foi a redação de Traces (Spuren) em que o estilo de Bejamin

transparece no olhar ―crìtico e benévolo‖ de Bloch para as pequenas coisas do cotidiano e na

união do anedótico ao conto de fadas, misturando sociologia, sátira e ironia (MÜNSTER,

1997, p. 204).

Ambos foram ―representantes máximos‖ do pensamento filosófico dos judeus alemães

no século XX e descendiam de famílias que assimilaram a cultura alemã; foram formados em

universidades alemãs sob a influência do hegelianismo e do kantismo, também tributários do

pensamento de Nietzsche e se sentiam atraídos pela mística alemã de Jacob Boehme, de

Eckardt, pela mística russa de Dostoiévski e se interessarm pela doutrina da cabala que estava

no ―centro da teoria do auto-encontro mìstico‖, além do romantismo alemão (MÜNSTER,

1993, p. 56; 1997, p. 124). Eram também marxistas, mas independentes e críticos, eram

pacifistas e se exilaram voluntariamente na Suiça para escapar da mobilização militar

obrigatória.

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No entanto, quando se conheceram em Berna, em 1917, Benjamin não se interessava

pelo marxismo, pelos partidos políticos, nem pelos escritos místico-utópico-revolucionários,

por exemplo, de Gustav Laudauer que muito influenciaram Bloch. Naquela época, Bloch

estava lançando O Espírito da Utopia, mas Benjamin recebeu o livro com reservas: criticou

sua dimensão ontológica na visão messiânica da história, criticou a visão blochiana da teoria

da história e as criticas de Bloch a Kant, além de considerar que Bloch foi ―precipitado‖ ao

escrever o livro (MÜNSTER, 1993, p. 59). Bloch avaliava os movimentos sociais da época

como a chegada da era messiânica por ele prevista. Benjamin não. Se mantinha indiferente.

Não tinha ―aderido‖ à visão utópica do mundo (MÜNSTER, 1993, p. 61).

Nos anos seguintes, Bloch desvinculou-se da visão místico-apocalíptica da

transformação social, fixando-se no conceito do ainda-não-ser, elaborado em O Princípio

Esperança, enquanto Benjamin caminhou para a visão apocalíptica expressa no ensaio

Passagens, em que se propõe, a partir de Paris, fazer uma história fragmentária do

materialismo do século XIX. Eram caminhos diferentes. Bloch fixava-se no olhar para a

frente e no sonho diurno, o sonhar com ―as coisas e o além das coisas‖, ―muito menos

presente‖ no pensamento de Benjamin, mesmo que com seu ―sonho do século XIX‖ Benjamin

pretendesse ―arrancar‖ aquela época das ―garras do museu do passado‖ (MÜNSTER, 1993, p.

71).

Segundo Münster (1993, p. 76), mesmo a visão do apocalipse, em Bloch, é diversa da

visão de Benjamin: Bloch acentuava ―energicamente‖ os aspectos salutares do apocalipse da

Bíblia e sobre as categorias fundamentais do Novo Testamento como ―luz‖ e ―vida‖ que

simbolizariam ―o paraìso‖. Seria um processo de ressurreição da natureza e da descoberta do

verdadeiro rosto humano.

Ao contrário, Walter Benjamin realiza, na sua própria visão da história, uma

síntese entre a visão apocalíptica da redenção, própria do messianismo

judaico, e as imagens dialéticas dos combates da humanidade, oprimida pela

emancipação, na história política e social do século XX (MÜNSTER, 1993,

p. 73).

No decorrer dos anos 20, Bloch conhece importantes aperfeiçoamentos no seu modo

de pensar o mundo: concebe a utopia da vida melhor sob o signo do devir-filosofia-do-mundo

ou devir-mundo-da-filosofia, desenvolve a categoria do ―possìvel‖, rejeita o reformismo da

real-politik da social-democracia, estuda o homem, a natureza e, como resultado desse

processo, defende a emancipação universal da humanidade.

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Benjamin, leitor apaixonado do filósofo social Louis-Auguste se deixa fascinar pelas

lutas sócias do século XIX e volta ao passado das barricadas e da Comuna de Paris.

Empenhava-se em desmistificar as lutas sociais, mas se deixa envolver pelas nuvens de

―pessimismo‖, tal como aconteceu com Blanqui que afirmou ser toda a crença no progresso

da história uma ―pseudociência‖ e ―completamente erronêa‖, alquebrado pelos maus tratos

que recebera ao longo de três décadas de prisão, depois das acusações de tramar uma revolta

armada (MÜNSTER, 1993, p. 73-6).

[...] Bloch trabalha com uma concepção mais combativa do acabamento do

processo da história, no sentido da crença nas possibilidade de concretização

das ideias utópicas na história, apesar de todas as catástrofes e triunfos

históricos do mal. Crendo nas possibilidades reais de concretizaçãoo de um

ser utópico a partir de uma realidade negativa e na humanizaçãoo final do

mundo através da ressureição da natureza‖ e do advento do Reino da

Liberdade‖ e contra o catastrofismo de um pensamento histórico, que se

deleita na contemplação das ruínas e das imagens da destruição, Bloch opõe

sua própria cosmovisão do ‗princìpio esperança‖, que é marcada por um

certo ―militantismo‖ e que exclue o que em Benjamin aparece

frequentemente como resignação, melancolia ou abandono ao ―niilismo

(MÜNSTER, 1993, p. 76-7).

Há, em Benjamin, segundo Münster, uma desilusão e ―pessimismo‖ quanto à

possibilidade de progresso da história na direção contrária à barbárie. Em Bloch, é diferente.

Bloch combate a visão ―trágica e pessimista‖ e acredita na ―concretização das ideias utópicas

na história‖ (MÜNSTER, 1993, p. 76). Essa recusa ao pessimismo é que fascina em Bloch:

ele não cede à tentação daqueles que, mesmo sendo marxistas e revolucionários, tentam

separar o poeta que vive em Bloch do sistema utópico que ele considera possível construir.

Bloch condena o pessimismo e o desespero com a mesma veemência com que recusa a

violência espontaneista, no estilo de anarco-sindicalismo de Sorel como força mobilizadora, o

que Rosa Luxemburgo já condenava como radicalmente prejudicial ao trabalhador. Foram

itinerários diferentes desde The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), que Benjamin criticou por

não ter ―nada em comum‖ com a filosofia de Bloch, mas eram ligados pela amizade.122

O que

houve em comum com o debate com Adorno foi a persistência de Bloch em defesa da visão

utópica do mundo, um ―mundo aberto‖ pleno de possibilidades de vida ainda não acontecidas.

122

Cf. Filosofia da Práxis e Utopia Concreta, de Arno Münster, 1993.

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5.4 PARA ALÉM DA LUTA DE CLASSES, A HUMANIZAÇÃO DA DIALÉTICA E O

HOMEM SEM DEUS

O espelho do reconhecimento é examinado quanto as manchas ou

irregularidades, antes de se trabalhar com ele.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 402)

Bloch olhava para o futuro quando se inclinava sobre a esquerda aristotélica, a

esquerda hegeliana e quando reinterpretava a alquimia e rompia com a visão tradicional da

magia no mundo para, simbolicamente, ater-se à ciência e suas relações com a natureza.

Considerava nessa caminhada que a verdadeira sociedade seria aquela em que o homem não

fosse considerado um ―corpo estranho‖123

e tivesse ―direito à felicidade‖,124

sem o entrave da

propriedade privada e da sociedade de classes, pois ―o olho da lei‖ é o rosto da classe

dominante (BLOCH, 2002, p. 373-5; 218). Estabelecia também uma tendência fundamental

do marxismo, que é a construção do mundo sem Deus.

Sendo diferente, palavras como Liberdade, Igualdade e Fraternidade, nucleares na

Revolução Francesa, não passariam de meros conceitos relacionais, sem que fossem efetivos

direitos do homem e dos cidadãos, sem que correspondessem ao novum da libertação sobre a

opressão (BLOCH, 2002, 210-6). Seu entusiasmo não era vazio, mas militante. A utopia, em

Bloch, era a possibilidade de falar da potencialidade humana, fundada no instante e na

perspectiva de ultrapassá-lo, exigia um mundo em que o homem fosse o senhor de si próprio.

Esse é um tema de controvérsias por causa até da substancial influência que o

cristianismo viria a ter na utopia blochiana, mais exatamente o Antigo Testamento. E,

evidentemente, da reação que a ideia de Liberdade, Igualdade e Fraternidade vem provocando

desde a Revolução Francesa e que Bloch (2002, p. 24) resume ao associar a ideia de

democracia real às palavras de Rosa Luxemburgo: ―Não existe democracia sem socialismo,

não existe socialismo sem democracia‖.125

Em Thomaz Münzer, Teólogo da Revolução, Bloch

defende a ideia de que Münzer126

era a luz contra a escuridão de Lutero, que não acreditava

123

―corps étranger‖.

124

―droit au bonheur‖.

125

―Pas de démocratie sans socialisme, pas de socialisme sans démocratie‖.

126

Bloch descobriu Münzer no final da Primeira Grande Guerra através dos estudos de Engels e Kautsky sobre

a guerra camponesa alemã (MÜNSTER, 1993, p. 66).

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no homem, era a própria visão de Moisés, como precursor do comunismo, não deixa de ter

raízes no pensamento judaico-cristão de igualdade entre os homens (BOLDYREV, 2014, p.

752-60). A ausência de Deus não significa, porém, ausência do divino: em Bloch, ―Deus é a

negação da ordem existente‖, é a escatologia de uma nova cultura, é o destino comum do

homem e do mundo (BOLDYREV, 2014, p. 32-4). Libertar-se de Deus era olhar para a Terra.

Segundo Furter (1974, p. 172), se Bloch ―na primeiro versão do Espírito da Utopia admitia

que o ateìsmo era uma ‗hipótese de trabalho‘, na versão definitiva riscou esta frase e afirma:

―O ateìsmo é uma evidência‖.

O exame da questão de Deus, que segue a interpretação de Feuerbach (―o ser humano

não foi criado à imagem de Deus, mas Deus à imagem fiel do ser humano‖ (BLOCH, 2006b,

p. 368), é realizado no capítulo 53 de O Princípio Esperança. Bloch (2006b, p, 369) salienta

que a humanidade fez de Deus as suas esperanças e o reino ―é exterioridade e não só

interioridade, é ordem e não só liberdade, é essencialmente a ordem daquela subjetividade que

não é mais afetada pela objetividade‖. É, no entender de Bloch (2006b, p. 371) a luz utópica

dos desejos que fez nascer o cristianismo e nada mais é do que a ―essência da próprio

existência humana‖. Furter (1974, p. 174) é esclarecedor: ―A revelação de ‗Deus‘ depende da

realização do homem. Na medida em que soubermos o que é o homem, seremos capazes de

afirmar o que é Deus‖. Deus projeta o homem na transcendência, mas essa transcendência não

precisa necessariamente ser celestial. Pode ser terrena e apoiar-se na própria vontade soberana

do homem.

O filosófo [Bloch] fez do Êxodo a chave da sua interpretação. O Êxodo

como rebeldia do povo escolhido sob a orentação de Moisés contra a

escravidão do Egito, é o ‗paradigma‘da Boa Notìcia, libertadora das

Escrituras. Através do ‗espìrito do Êxodo‘ se esclarecem os eventos

significativos da História Bíblica: a narração da Gênese como criação

contínua; o surgimento de um povo na História pela realização de uma

promessa feita a Abraão; a universalização da libertação pela diáspora

judaíca e pela expansão universal do cristianismo; enfim, a acumulação das

heresias, que eclodirão nas Revoluções Modernas (FURTER, 1974, p. 175).

A visão blochiana de Deus, a partir do Êxodo – cuja historicidade é confirmada pelos

narradores bíblicos – e de Moisés – um homem que conseguiu pela consciência tirar seus

contemporâneos da passividade –, explica-se pelo seu gnosticismo como sendo o

conhecimento de múltiplas religiões, o que permitiu a Bloch, de um lado, separar o Deus

redentor do Deus criador e, além disso, verificar que, no momento em que a religião cristã se

realizasse na sua perspectiva social, o homem não precisaria mais de Deus para existir.

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Como uma rebelião, o Êxodo torna-se o passo inicial para a procura da Terra

Prometida que é, igualmente, a Terra da justiça. Se a rebelião contra o faraó ganhou dimensão

na revolta camponesa liderada por Münzer e, posteriormente, com a Revolução Russa e a

ideia do socialismo universalizado, a Moisés se sucederia o messianismo que fundaria o

paraíso na terra e a figura de Cristo rebelde e martirizado.

O que no passado foi designado com o termo ‗Deus‘ não designa qualquer

fato concreto, nenhum tipo de entidade entronizada, mas um problema bem

diferente, e a possível solução para esse problema não se chama Deus, e sim

reino. Portanto, a longo prazo, as coisas aqui embaixo não se mostram tão

efêmeras como as de lá de cima. O ser humano herda os tesouros

transcendentes na medida em que se trata de tesouros e não de meras

carrancas daquilo que não se entendia. Porque, com certeza, junto com a

subserviência e a fraude senhorial, refletiu-se no além a insciência piedosa e

não só coisas concretas que realmente o são e continuarão sendo; o elemento

inconsciente mescla-se com elas (BLOCH, 2005b, p. 377).

Toda religião contém o elemento utópico e, ao mesmo tempo, a aura de santidade que

encobre as relações sociais. O Deus redentor é metafísico, o mistério do reino, o deus criador

é o ―filho do Homem‖, que em aramaìco significa o simples homem, não o gênero humano

(BLOCH, 2009a, p. 130-40). O cristianismo era, para Bloch (2009) na essência, um ateísmo.

Um cristianismo herético, que tem, em Moisés, um símbolo revolucionário. Mas o problema

estava nas fantasias que envolviam, nos primórdios, os mistérios da natureza e as ―sombras

gigantescas da insciência‖ muito diferentes dos ―tesouros‖ e ―desejos‖ humanos (BLOCH,

2006b, p. 378).

Tais particularidades desafiam as interpretações filosóficas, em especial o pensamento

positivista, niilista, relativista e historicista. Quem faz essas alusões é Manuel Ureña Pastor,

professor de metafísica da faculdade de teologia de Valência, Espanha, autor de um livro com

o sugestivo título: Ernst Bloch: un futuro sin dios? Bloch, segundo Ureña Pastor (1986, p.

573, tradução nossa), se distingue de todas as correntes do pensamento utópico por criar um

sistema em que reivindica ―a possibilidade e necessidade da metafísica, tanto em nome do

real, como em nome de um uso mais amplo da razão, como é, sem dúvida, a razão utópica,

teleológica e dialética‖.127

Nas palavras de Urenã Pastor (1986), Bloch se opõe à visão neopositivista e de todos

os positivismos (lógico, jurídico, econômico) de reduzir a filosofia a simples esclarecedora de

visões científicas, como procura na sua ontologia a responder questões kantianas básica para a

127

―la possibilidad y la necesidad de la metafísica, tanto en nombre de lo real como en nombre de un uso más

amplio de la razón, lo es sin duda la rázon utópica, tecnológica y dialéctica‖.

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vida: O que podemos conhecer? O que devemos fazer? O que podemos esperar? Questões que

Bloch (2005) formula de maneira diferente como: Quem somos? De onde viemos? Para onde

vamos? Que esperamos? O que nos espera? São frutos não de um idealismo absoluto, mas um

idealismo nascido da fusão do idealismo tradicional como o marxismo.

Emerge do desafio agnóstico kantiano, do vitalismo nietzchiano e do otimismo

militante, nas palavras de Ureña, e rechaça o marxismo mecanicista e o existencialismo

niilista, para destacar um ―marxismo dialético e humanista, integrador, e um existencialismo

totalmente alheio à estaticidade burguesa‖.128

Rastreia o futuro no presente e legitima sua

epistemologia na consciência emancipadora contrutiva do homem, evitando interpretações

relativistas da história.

Como trata de um universo vivo e a sua teleologia atravessa o real, projetando-se para

o futuro, a possibilidade de frustração não se encontra afastada. ―O núcleo do seu futuro

existe no presente e se manifesta como tendência‖:129

é um processo que não permite

relativismos, nem historicismos, segundo os quais a ―filosofia expressaria única e

simplesmente a visão da realidade e de um tempo histórico, visão que muda como Proteu,

segundo a coloração ideológica de cada época‖130

(PASTOR, 1986, p. 573).

Daí o acerto blochiano de separar cultura de ideologia, sendo a primeira a única capaz

de reproduzir os valores do homem e assegurar a manutenção do sistema vigente. O conjunto

dessas peculiaridades seriam as conquistas do sistema filosófico de Bloch, um sistema que,

segundo Ureña Pastor (1986), procura a reconciliação do interior e do exterior do homem,

identificado com o bem comum. E Deus? Estaria entre as aporias do sistema blochiano ao

tentar fundir o ateísmo materialista, a transcendência gnosiológica, a utopia abstrata, a utopia

concreta, a crítica social, além da relação entre a dialética e a teologia (PASTOR, 1986, p.

574-7).

Mas, as incoerências, as incompletudes, os problemas trazidos pelo novo, interpreta

Ureña Pastor (1986, p. 575-6), são inerentes ao pensamento de Bloch que, para ele, é

―aporético‖ por falar ao mesmo tempo do ―novum‖ e do ―agora‖ transformador como

possibilidade real, por excluir do ainda-não-consciente a religião quando esta não existe em

virtude de uma determinada conjuntura histórica ou cultural, senão que em ―virtude da

128

―un marxismo dialéctico y humanista, integrador, y un existencialismo totalmente ajeno al pessimismo de la

estaticid burguesa‖.

129

―El núcleo del ser future late en el presente y se manifiesta aquì como tendencia‖.

130

―la filosofìa expresarìaúnica y simplemente la visión que cambia, como Proteo, según el color ideológico de

cada época‖.

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estrutura mais funda do ser chamada constitutivamente o futuro‖.131

Esse o aspecto diretamente expressivo, na avaliação de Ureña: é a crítica de Bloch à

religiosidade humana. Teria ficado sem fundamento, mas Ureña Pastor não deixa de propor,

as seguintes questões: até que ponto a cultura humana, ao ver o seu autêntico rosto, seria

ateísta? Se o mundo aspira ao novo, e sendo essa aspiração consciente, relegaria a herança de

Deus ao plano de uma imagem escatológica secular? Por que Bloch em lugar de desteologizar

o mundo não propõe, sim, um retorno ao verdadeiro rosto do sentido de Deus? Observa-se,

contudo, em Uraña Pastor, a existência de uma visão revolucionária de Deus. Não um Deus

no mundo atual, mas Deus como aporia na construção do futuro, entendido por Bloch como o

―fim da alienação‖ ou, como ressalta, a necessidade do marxismo levar o cristianismo ―muito

a sério‖ para vê-lo, afinal, livre da alienação (BLOCH, 2009a, p. 251-7). Nas palavras de

Bloch:

Os degraus da escada para o céu afastaram-se da psicologia, o manual de

viagem da alma até deus foi transformado pelo primeiro profeta da mística

gótica, por Joaquim de Fiori*, num movimento da própria história, na

dinâmica do último evangelho. A humanidade inteira executa aí um

movimento – dos puros para a salvação, dos impuros para a destruição –

rumo à conformação mística com Cristo, um movimento rumo ao terceiro

reino; ela se alça acima dos reinos da lei da graça e alcança a plenitudo

intellectus. E esse estado de plenitude espiritual corresponde exatamente à

deificação em que a mística cristã envolveu seus iluminados: ela

corresponde, portanto, à comunidade de um Pentecostes universal. Ou, como

os Irmãos do Espírito Pleno, uma seita mística do tempo de Eckhart,

descreveram essa futura ou terceira era, bem no sentido de Joaquim [...]

(BLOCH, 2006b, p. 386-7)

A função de Deus ganha o sentido de união em prol do homem, porém se origina do

senso revolucionário. Deus, segundo Bloch (2006b, p. 387), deixa o ―cativeiro do mundo‖

para libetar o homem e o cristianismo assume feições ―plenamente heréticas‖. Significa,

literalmente, aos olhos de Bloch (2006b, p. 388), o mesmo alvo libertador faustiano: ―Demora

eternamente! És lindo!‖ Desloca a religião para o céu e a utopia para a terra, revigorando-a no

cerne do ser humano como ―sujeito-problema da natureza‖. O propósito não é um mundo

futuro sem Deus, mas um mundo futuro sem a ilusão de Deus. Seria a mesma concepção de

Uneña Pastor?

Nessa sequência de interpretações de Bloch, Suzana Albornoz e Antonio Rufino

Vieira não podem ser esquecidos. Albornoz (1999, p. 81-3) contribui para clarerar o conceito

de Deus em Bloch. Como referência da visão transformadora de Bloch, cita Gioachino di

131 ―virtud de la estructura más honda de su ser llamado constitutivamente al futuro‖.

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Fiori ―o pai da utopia social mais importante da idade Média‖, que na sua utopia do reino não

só pregava a abolição do Estado como da Igreja. Era a incarnação revolucionária da utopia do

cristianismo primitivo que sobreviveu no cristianismo russo. Não sobreviveu, porém, na

Igreja da Reforma luterana, nem na Igreja da América Latina que viria a separar ―cristãos de

esquerda‖ e ―católicos de direita‖, a ―igreja dos pobres‖ da ―igreja do establishment‖

(ALBORNOZ, 1999, p. 83).

Visto assim, a utopia espíritual joachimnista se prolongaria na utopia de Münzer e

formaria uma ―longa corrente‖ que se projeta nos ―novos cristianismos‖ do século XIX como

Charles Fourier e Saint-Simon, influenciando também Pierre Leroux e George Sand, até

chegar, no dizer de Albornoz (1998), aos idealistas alemães como Goethe, Novalis, Hölderlin

e Fiche, às primeiras obras de Bloch e à ideia do apocalipse. Em O Enigma da Esperança

(1999) caracteriza di Fiori como o primeiro a fazer ressurgir o espírito do cristianismo

primitivo, proclamando um terceiro reino de onde seria banido o temor aos senhores. Livre, o

homem teria ―a pretensão a ser como Deus‖ (ALBORNOZ, 1999, p. 90). Em outro ponto,

interpreta o Cristo blochiano como o anunciador da ―natureza humana dvinizada‖, como se

fosse um novo Prometeu.

Para Albornoz (1999, p. 85), a influencia de Gioachino di Fiori em Bloch tem origem

em Hegel que ―com certeza se inscreveu naquela tradição‖. O culto joachimnista à natureza

influenciou vivamente a Schelling. A lei da natureza, explica Albornoz (1999), por não fazer

distinção de classes, aparece em Gioachino di Fiori como propícia ao igualitarismo

comunista. Certamente, a afinidade de Bloch e di Fiori é semelhante àquela que Bloch cultiva

com a esquerda aristotélica: a utopia é construída pelas mãos do homem, não por Deus. As

influências do cristianismo, judaísmo, messianismo, milenarismo e das correntes utópicas

apocalíticas, assim como o sonho grego da Idade de Ouro, podem ser interpretadas como

mediadoras da histórias, mas a história por mais que tenha o pano de fundo das religiões, é

obra do homem para o homem.

Em Ética e Utopia, Albornoz (2006, p. 106) lembra com recorrência a ―ética da

transformação‖ que, na perspectiva de Bloch, é a ética para o futuro: como a matéria está em

aberto, ―é preciso dirigi-la, defini-la, escolhê-la, dar-lhe a forma desejada, transformá-la ou

pelo menos ajudar o impulso e a tendência a tomar ou mudar a forma que trazem dentro de si

como essa possibilidade que é quase destinação para o futuro‖. Mas essas caracteristas podem

ser entendidas de forma mais profunda, segundo Albornoz: é a ética de uma filosofia prática,

de ação, na direção do novum. O pressuposto teórico é a Tese 11 de Marx sobre Feuerbach.

Uma sociedade ética e transformadora, nas palavra de Albornoz (2006), estaria entre os

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melhores sonhos conscientes do homem.

Os termos ―esperança‖ e ―filosofia‖ unem Bloch à libertação dos oprimidos na

América Latina. A ligação surge em Marxismo e a Libertação de Antonio Rufino Vieira

(2010). Os fios da identidade são tecidos a partir de múltiplos pontos: o alcance universal da

utopia da esperança, a concentração das raízes da mudança na história humana e a

preocupação com a fome, fruto de um sistema onde se somam a injustiça, a alienação e a

opressão das classes populares.

A ideia da ―antecipação realista‖ do ainda-não-consciente é apropriada à realidade do

continente, segundo Rufino Vieira (2010, p. 107), e combina com o conceito de utopia

descrito por Marx nos Grundrisse: a utopia como horizonte crítico da sociedade do futuro e

plena realização da individualidade. Essa realidade, que coindiz com a Tese 11 de Marx sobre

Feuerbach, mostra a necessidade de ―re-fundar o ser‖ para recriar a filosofia (VIEIRA, 2010,

p. 67). Assim, a obra de Bloch pode ser lida não como uma nova luz para a reinterpretação da

América Latina, mas como um ―instrumento válido que auxilie o filósofo a engajar-se mais e

mais na árdua tarefa de humanização da sociedade‖ pois bucar o universal numa tarefa

especìfica ―é tarefa a ser pensada‖ (VIEIRA, 2010, p. 104-5).

A utopia é escrita com o explícito desejo de que se realize, senão já, pelo

menos num futuro. Nele indica-se que há um ―melhor possìvel‖ e não que o

―melhor é possìvel‖. Essa diferença é muito significante, pois supõe outro

tipo de abordagem acerca da utopia, como faz Ernst Bloch: a utopia não

indica um mundo-real factual imaginado, mas sim as possibilidades de

mudança, calcada na realidade presente (VIEIRA, 2010, p. 35).

Como observa Bloch, exige militância do homem revolucionário na construção de

uma nova sociedade. Não é uma abstração intelectual. O sonhar de olhos abertos com a

conquista do alimento, com o fim da miséria por um sistema que privilegia determinada

classe social e as possibilidades dialéticas do otimismo militantes, são atitudes indicativas da

utopia possível. Vieira encontra convergência nessas teses blochianas com as teses do Enrique

Dussel, expoente da filosofia da libertação latino-americana. Uma filosofia crítica, articulada

com as massas populares e militantes críticos (VIEIRA, 2010, p. 141). O importante da visão

de Vieira é que não há cisão entre o universal e o continental. E, por outro lado, a libertação e

a Filosofia da Libertação são concebidas como práxis do homem.

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Em Témoins du Futur, Pierre Bouretz (2003, p. 629, tradução nossa) define Bloch

como o precursor de ―um tempo promissor‖132

porque nega o imperativo da anamnese, liberta

o homem da condição de vìtima do passado, e se manifesta com ―fervor‖ a favor do futuro. O

que faz de Bloch diferente ―é a excepcional audácia‖133

de se perguntar o tempo inteiro, ao

pressentir a possibilidade de vitória sobre a morte, exatamente no lugar onde começa a

filosofia, no ―espanto‖, o que é o homem? (BOURETZ, 2003, p. 654, tradução nossa).

Sentindo, argumenta Bouretz, que o pensamento de Bloch, embora pareça contraditório,

apresenta ―profunda unidade‖134

e ―confiança no futuro‖.135

A unidade na obra de Bloch, à qual se refere Bouretz (2003, p. 574, tradução nossa),

está no elemento utópico que o homem ―não satisfez em nenhuma época‖136

e que Bloch

cultivou, como se fosse uma ―herança oculta‖,137

fruto de um duplo abandono: a parte do

mundo que vivia na prosperidade esqueceu a parte que não era próspera e, com isso, o

socialismo trocou a sua face humana pela face autoritária. Mas, para além dessa circunstância,

o socialismo se projeta como a preocupação verdadeira da existência.

Nesse sentido, é que Bloch associa o humanismo concreto à filosofia de Marx, na

procura de mostrar que existe, complementa Bouretz (2003), uma matéria não-humana na

obscuridade do homem e que esta é a responsável pela anamnese e pelo pensamento

caracterizado pela ausência de futuro. A sua postulação, apesar da ruptura como o judaísmo,

equivaleria a igualar os sonhos acordados às escrituras e à filosofia, segundo Bouretz (2003,

p. 577), como sendo o nome da transformação. Bloch faz isso preservando o principio da

totalidade humana, da metafisica do sujeito ético e combatendo o fenômeno moderno do

niilismo. De maneira visível, Bloch evoca o ainda-não-consciente como se fosse uma prisão

invisível do homem e confronta a predominância no mal na Terra com a existência redendora

da esperança, voltada para fins puramente humanos.

O interesse de Bouretz (2003, p. 624) pelo ainda-não-consciente em Bloch envolve a

dialética da esperança e o ―espanto‖ do homem diante da realidade que não se manifesta

* Gioachino di Fiori, o nome em italiano como temos utilizado no texto.

132

―Un temps prometteur‖.

133

―L‘exceptionnelle audace‖.

134

―profonde unité‖.

135

―Confiança Dans l‘avenir‖.

136

―qui ná ét´satisfait à aucune époque‖.

137

―heritage caché‖.

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apenas na luta de classes, não excluiu o permanente diálogo com a obra de Marx, nem a

―humanização da dialética‖. Ao tratar da consciência, a partir de Fausto de Goethe, tingida

pela obscuridade do momento, de realização ainda imatura, procura alcançar a luminosidade

da consciência contemporânea e tende a não desprezar a brutalidade, geralmente insondável,

dos acontecimentos138

(BOURETZ, 2003, p. 628). Significaria persistência da procura, por

Bloch, do Deus do Gênese, no mesmo caminho do Êxodo, que mantivesse no horizonte a

possibilidade de ―irupção da claridade na escuridão, do dia dentro da noite, do futuro dentro

do presente‖.139

Comparando Bloch a Hans Jonas, Bouretz encontra, em ambos, um ponto comum:

exercitam a compreensão das diferentes dimensões do pensamento contemporâneo, mas

condenando o niilismo triunfante. Jonas, sionista nascido no ambiente da ortodoxia judaica

alemã, formado na filosofia de Husserl, Kant e Schopenhauer, pregava a ideia de ser-no-

mundo. Uma concepção de ser universal e histórico através de um universo ético e

responsável. Era necessário assumir responsabilidades diante das futuras gerações, o que

exigiria um conhecimento não apenas do mal, mas do conhecimento do bem e por

consequência da filosofia moral (BOURETZ, 2003, p. 823).

O que separaria Hans Jonas de Ernst Bloch seria que Bloch lançou os novos

fundamentos da esperança, enquanto Jonas, que abandona todo o horizonte utópico, vislumbra

processo de ―Criação infinita‖140

em um mundo que não acredita na própria redenção

(BOURETZ, 2003, p. 628). Mas foi em Bloch que Jonas encontrou os fundamentos para o seu

ideal: uma visão positiva da experiência humana e as limitações impostas pela história para

que o homem viesse a aflorar. Jonas inverteu essas percepções, entendendo que o homem é o

que é e que o futuro pode ser positivo ou a barbárie, mas sem perder de vista a ontologia do

humano e a urgência de proteger a Criação pelo imperativo de agir com precaução

(BOURETZ, 2003, p. 841-55).

138

―la brutalité souvent insondable des événements‖.

139

―l‘irruption de la clarté dans l‘obscur, du jour dans la nuit, du futur dans le présent‖.

140

―Création infinite‖.

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5.5 A METAFÍSICA DO COTIDIANO E ECOSOCIALISMO

É fácil desejar transportar-se para longe de um lugar ruim. Mas a trilha

para sair dele é menos óbvia, ainda precisa ser aberta.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 299)

Bloch recusa interpretações intempestivas ou ditadas pelo pessimismo. Ao enigma das

catástrofes contemporâneas, sobrepõe os enigmas da construção da vida feliz. Para ele, talvez

por inspiração de Schelling e Hegel, o homem não é uma catástrofe ou um caos, é, sim,

ambíguo, complexo, necessita acreditar (BLOCH, 2006b). Existe inegável procura em discutir

o cotidiano, os fatos mais comuns, como reflexo da filosofia blochiana que são consequência

da superestrutura capitalista, quanto mais Bloch (2005, p. 30-42) procura desvendá-las e

torná-las visiveis. Elas estão no menino que sonha com a ―terra ideal‖ e descobre o ―eu‖ como

―companheiro de viagem, que na juventude se afasta e volta à casa dos pais, que acredita ou

não nos sonhos revolucionários e que na velhice percebe que os desejos estimulantes

―recuam‖ embora suas imagens permaneçam. Estão distribuídas por toda trilogia de O

Princípio Esperança.

Em um dos pontos mais tortuosos, as limitações das pulsões, Bloch argumenta assim:

―Muito pouco, infinitamente pouco foi dito até agora a respeito da fome, embora esse

aguilhão tenha um aspecto bastante original arcaico pois um ser humano sem alimento perece,

enquanto é possìvel viver sem desfrutar do amor pelo menos por algum tempo‖ (BLOCH,

2005, p. 67-8). Também é possìvel viver sem a ―satisfação da pulsão de potência‖, enquanto

o desempregado que não come é levado à situação mais arcaica da existência (BLOCH, 2005,

p. 68). O idealismo nesses pontos se torna permeável pela linguagem do ainda-não-

consciente.

Em nenhum lugar o olhar interior ilumina de forma homogênea. Economiza

luz, clareando apenas alguns espaços dentro de nós. Não tomamos

consciência daquilo que jamais é atingido pelo raio sinalizador. Aquilo que é

atingido apenas obliquamente nos é semiconsciente, em maior ou menor

grau, dependendo de nossa atenção (BLOCH, 2005, p. 115).

No livro II, depois de passar pelas utopias sociais, pela conquista da jornada de oito

horas, pelo tempo livre e o lazer, retorna ao ponto que considera mais ―singelo‖, a fome: ―A

fome força ao trabalho, mas este nos esgota da mesma maneira como a fome. O empresário

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ávido de obter lucro, não sabe o que é esse tipo de trabalho, o do servo. Os artistas e

pesquisadores tampouco o sabem, ainda que por outras razões‖ (BLOCH, 2006b, p. 438). E,

no livro III, propicia uma nova mediação do conceito do ainda-não-consciente pela religião,

pelo marxismo e pelo sonho para diante, pela lucidez e pelo entusiasmo. Novamente o

cotidiano:

Existe uma corrente que se desloca para dentro e que fica muito tempo ativa.

Quando tudo lá fora se torna mal, o ser humano que acredita perceber esse

fato nem por isso considera a si mesmo mau. Ao contrário, aos seus olhos

ele parecerá ser o único justo; talvez considere também alguns amigos, caso

não seja demasiado presunçoso (BLOCH, 2006b, p. 419).

São exemplos fragmentados de como Bloch conduz a relação dialética entre o homem

e a história, entre o homem que procura refúgio na sua subjetividade interior e o homem que

procura revolucionar a realidade. Nas mãos de Bloch, a incompletude da sociedade dá origem

a um sistema elaborado da dialética cotidiana na qual as maneiras de unir a liberdade e a

necessidade do trabalho caminham para a consciência e o sonho acordado. Por exemplo, no

final do livro III de O Princípio Esperança, Bloch (2006b, p. 439) argumenta que o bem

supremo é a forma mais qualificada da existência do ―sendo conforme a possibilidade‖,

portanto da nossa matéria. Mas associa o bem comum à integração do homem com a natureza

que ―não só constitui o chão do ser humano, mas também o seu ambiente permanente‖.

Colocar a natureza no cotidiano humano seria o topos do ―instante supremo‖, a

essência do querer. O modelo desse diálogo com a vida ocorreria em função do fim da

sociedade de classes, da sabedoria e do ocaso das ilusões que alienam o homem. Cada tema

em questão – o absoluto do querer, a utopia, a morte, o materialismo dialético, a felicidade –

se une como na música se unem os sons, o ritmo e a dança numa polifonia harmônica. São

concepções que trabalham e resumem o conceito do ainda-não-consciente, mas cuja

experiência do despertar acontece no dia a dia, é uma teoria da linguagem que se manifesta na

prática, em tudo o que o homem dá forma e consistência. Da música à literatura, da produção

à convivência com outros homens. Seria inerente ao encontro do homem consigo mesmo.

A hierarquia dos valores, inquestionável por ter seu ponto de referência no bem

supremo, de modo algum, coincide com a escadaria já pronta, na qual o ser humano pensava

encontrar os seus ideais já como realidades à medida que ia galgando docilmente os degraus.

Isto aconteceu de modo tão irremediável quanto jamais existiu na realidade objetiva: a

escadaria existe exclusivamente na utopia objetiva, na estruturação processual (BLOCH,

2006b, p. 418).

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A escadaria da utopia é que aproxima Bloch da criação de um mundo novo, mas de

um mundo onde o Deus é o homem. Não há propriamente o tempo em que isso acontecerá,

nem mesmo se o homem nas suas ambiguidades almeja ou não ser revolucionário, nem como

se dará, ou mesmo se irá ocorrer o seu despertar. O que importa, e realmente é relevate,

encontra-se, sim, no fundamento filosófico da esperança. O princípio a ser descoberto não é

mais aquele da teoria da sociedade sem classes, mas da descoberta da consciência da

necessidade dessa sociedade. Segundo Bloch (2006b, p. 383), ―o melhor está bem próximo‖ e,

por esta razão, a consumação da esperaça – a superfìcie do ―Demora eternamente! És tão

lindo‖ – brotará da multiplicidade do cotidiano.

Martin Jay (1984b), em Marxism and Totality, na perspectiva da ―visão integral da

vida‖, entende Bloch como determinado pela ―audácia‖ de expandir, de maneira totalizante,

as fronteiras do pensamento. No The Spirit of Utopia (Geist der Utopia) e no Experimentum

Mundi, Bloch desenvolveu variações do conceito de totalidade que se tornaram de especial

importância para a história do marxismo. Comparativamente a Lukács, embora ambos

tivessem aplaudido a Revolução Russa, Bloch identificou na religião um repositório de

esperanças e, também constrariamente a Luckás, recusou-se a considerar apenas um elemento

da totalidade, a produção (JAY, 1984a, p. 180).

A alma, a vontade, a liberdade, a cultura, são elementos da totalidade, assim como o

ainda-não-consciente que seria um objeto da natureza e que precisaria ser ressuscitado a partir

do legado de Schelling a Böhme, de Paracelso ao Renascimento e, também Engels quando se

referiu à dialética da natureza (JAY, 1984a, p. 180). Identificava nos Manuscritos de 1844 de

Marx, o escrito chave para da ―humanização e naturalização do homem‖ e recorria à esquerda

aristotélica (Avicenna e Averróis) para argumentar a simbologia da natureza na história

humana.

A sua tenacidade, para Jay (1984a, p. 187) estava na infinitude da totalidade humana.

Isto explicaria as reações, às vezes escandalosas, da ―ortodoxia marxista‖ e dos ideólogos do

capitalismo às teses blochianas. Jay equipara Bloch aos pais fundadores do marxismo, a

exemplo de Gramsci, Korsch e Lukács, pela sua visão integral da vida e da filosofia, sem

demarcar fronteiras entre a historia e a natureza, entre a razão e o irracional.

Nessa combinação de humanização da dialética, luminosidade da esperança e

possibilidade de criação de um futuro novo, um homem novo, a preocupação que domina a

filosofia blochiana é o homem ético capaz de colocar o outro à frente de suas necessidades.

Não é um truísmo, mas um fundamento básico da esperança que Bloch expressa como reflexo

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da consciência do dia a dia e da força das pequenas coisas.141

Para Bloch (2006, p. 374-84), a

cultura capitalista une todos, dos senhores aos servos, da Igreja à utopização de Deus, mas o

homem revolucionários rompe com essa cadeia e liberta o homem. Daí procede o papel de

Prometeu e a ―primazia da vontade ou do espìrito‖ na abolição da diferença entre o ―sofrer e

fazer‖, entre ―passividade e atividade‖, entre a ―dedicação a Deus‖e a ―libertação em relação a

Deus‖.

Em Ernst Bloch and his Contemporaries, Ivan Boldyrev (2014) interpreta o

pensamento filosófico de Bloch pelo ângulo do ainda-não-consciente e da poesia. Em

primeiro lugar, considera que a utopia de Bloch necessita de uma metafísica diferente daquela

dos antigos gregos porque seu contexto não se encontra nas razões primeiros do início da vida

humana, mas na experiência cotidiana (BOLDYREV, 2014, p. 106). Do ponto de vista do

próprio Bloch, recuperado por Ivan Boldyrev, a ideia é iluminar a obscuridade do instante

para transformá-lo, como numa pintura de Van Gogh, em algo universal.

O conceito de instante em Bloch seria o elemento das práticas sociais e da esperança

na ransformação da vida com o homem reconhecendo a si mesmo no outro e reconhecendo a

natureza. Ao contrário de Freud, Bloch, na interpretação de Boldyrev, não concebe o

insconsciente como o lugar onde se alojam os sentimentos reprimidos, mas onde vivem as

esperanças e os sonhos ainda não realizados. Se não houvesse sonhos, não haveria futuro,

nem o ainda-não-consciente.

Essa constelação de princípios seria introduzida na vida cotidiana pelas noções de

front e do novum: o front como o espaço mais avançado da vida existente, onde o instante é

vivido; e o novum seria a relação entre o instante e o futuro, tendo como alvo a transformação

da cultura. Os pontos principais das argumentações de Boldyrev são que Bloch revigora o

marxismo com a função utopia das relações sociais articuladas em The Spirit of Utopia e em

O Princípio Esperança; e impulsiona a filosofia ao considerá-la ―não apenas como relfexão

sobre o mundo, mas como prática libertadora‖.142

Esse deslocamento da metafisica das coisas

primeiras para a metafisica do cotidiano foi um caminho através do qual Schcelling inspirou a

concepção, na visão de Boldyrev (2014, p. 242), de uma tecnologia humanizada, identificada

com a natureza. Em Bloch, esse seria um dos fundamentos da filosofia utópica.

Embora Ivan Boldyrev tenha registrado que a utopia de Bloch encontra-se distante da

realização, se torna próxima por estimular o sonho como ―obra de arte‖, despertando

141

Cf. Ética e Utopia e O Enigma da Esperança, de Susana Albornoz (2006).

142

―Philosophy becomes not simply a reflection of the world, but a praxis of liberation‖.

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comunistas e antifascistas para a utopia que é o ―centro da história‖. Sendo o marxismo

movimento, o futuro não tem um caminho determinado, mas não significa que não tenha um

caminho possível. Significativo para Boldyrev (2014, p. 1207) é que Bloch reconciliou o

marxismo com o pensamento utópico através da filosofia da ação e da experiência. Não deixa

de enfatizar que Bloch tornou possível pensar o futuro, fazendo com que o olhar socialista se

volte para o ainda-não-consciente.

Stefano Zecchi (1978, p. 110), em Ernst Bloch: Utopia y Esperanza en el Comunismo,

considera Bloch o utopista da ação. Ampliou a função utópica ao cinema, ao teatro, à dança, à

medicina e à arquitetura, enfim, não se limitou a expressar seu desejo particular, mas a

associar a utopia à vontade coletiva e suas manifestações de superação de limites. Nesse

extrato, de um lado, pode-se constatar a diferença entre teorizações não mediadas como foram

as de Owen, Fourier e dos socialistas utópicos, tal é a visão de Zecchi, e de outro, as utopias

de Marx a Bloch mediadas pela necessidade que a consciência antecipadora expressa no

desejo de não se deixar ―devorar‖ pelos fatos cotidianos.

Assim, Bloch, metodicamente, produziu inúmeras rupturas no mundo do pensar

tradicional, no inventário feito por Zecchi: rompeu com a barreira da anamnese, que

considerava o principal obstáculo do processo histórico dialético; desenvolveu a mediação

entre o sujeito e o objeto, interno e externo, até fazer da utopia um objeto não ilusório,

transformando-o em vontade de ação; e, seguindo os ensinamentos marxistas, compreendeu a

divisão social do trabalho, seja ela escravagista, feudal ou capitalista, como ―elemento

constante‖ da opressão do homem pelo homem (ZECCHI, 1978, p. 111-3).

O sentido da esperança no comunismo foi muito mais adiante. ―O autêntico problema

para a filosofia da esperança de Bloch é a morte‖, escreveu Zecchi. Não resolveu o problema,

mas propôs alternativas: ―A morte ainda que seja a expressão mais tìpica da contra-utopia,

não se revela como um aspecto externo, como um convidado incômodo que pode pôr fim de

improviso ao espìrito da utopia‖ (ZECCHI, 1978, p. 245).

O que Bloch pretende não é negar o significado da morte, mais subtrair dela o

tratamento religioso, das promessas de ressurreição e da esperança em Deus que ressuscita os

mortos. Deseja situá-la, ao contrário, na estrutura do ainda-não-ser. Sonhar de olhos abertos é

uma expressão dessa consciência. Por conseguinte, em Bloch, a morte é a renúncia à utopia, a

renúncia à esperança. A morte não será negada na utopia, pois faz parte dela como processo e

transitoriedade da vida.

O que Zecchi define como incompatível com o pensamento filosófico de Bloch foi a

crítica que ele sofreu na antiga Alemanha Oriental, onde grassou a acusação dele ensinar

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filosofia marxista sem ser fiel ao marxismo. Isto aconteceu dez anos depois de ter sido

recebido com as ―honras‖ que merecia, mas o alvo era mais do que pessoal: estava na aliança

que naturalmente começava a surgir entre intelectuais e operários, depois de manifestações

contra o governo da República Democrática Alemã.143

Essas críticas, que partiram da Universidade de Leipzig, o centro político-cultura da

considerada ―nova Alemanha‖, foram as mais duras e contundentes a envolver Ernst Bloch.

No mais, as críticas derivaram do seu pensamento revolucionário, que traz para a vida a

esperança no homem rebelde, a liberdade e a gestão dos meios de produção pelos

trabalhadores. Mas é simbólico das relações da utopia com o tempo: o novo como negação do

passado, coloca o existente em questão e faz nascer uma nova consciência. Equivale dizer que

a história é um eterno novum, uma juventude em que a vida recomeça sempre, neutralizando o

retorno rememorativo.

Entre os intérpretes do legado de Bloch, Arno Münster, fiel à ideia do eterno novum,

se aproxima de um traço geralmente esquecido da obra blochiana: consciência antecipatória

quanto à utopia ecológica socialista, que Bloch não hesitou em promover quando o tema não

estava ainda presente na pauta capitalista. Münster examina a questão a partir de Droit

Naturel et Dignité Humanine (Narurrecht und menschliche Würde), o último livro que Bloch

escreveu quando vivia na RDA, em condições de total isolamento, e que complementa O

Princípio Esperança pelo enriquecimento do marxismo com a filosofia do direito natural e da

dignidade humana. Não escreveu para juristas ou juízes impregnados pelo conceito do direito

positivo e normativo. O seu propósito era criticar a filosofia conservadora da Idade Média,

com o ―direito natural relativo‖144

de Tomás de Aquino, até a sua função revolucionário nas

Luzes (Rousseau e Kant); e, igualmente, ressaltar a ―herança socialista dos direitos do

homem‖ (MÜNSTER, 2001, p. 282).145

Bloch mostrava que sem o fim da exploração não poderia existir verdadeiro direito dos

homens, mas procurava convencer que fosse pela vertente racionalista (Hobbes, Grotius),

fosse pela vertente contratualista (Rousseau), o século XVIII, particularmente com a

Revolução Francesa concretizou avanços na direção da felicidade de grande número de

pessoas. Criou uma ordem nova e enfraqueceu o conceito de liberdade burguesa, mas não

alcançou a plenitude da liberdade. O livro sobre o direito natual marca, segundo Münster

143

Cf. La herencia estalinista en una discusión político-cultural entre 1953 e 1957 en la República Democrática

Alemana, en Ernst Bloch: utopía y esperanza en el comunismo, de Stefano Zecchi (1978).

144

―droit naturel relatif‖.

145

―l‘heritage socialiste des droits de l‘homme‖.

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(2001, p. 184-5), a ruptura definitiva com o socialismo autoritário e burocratizado vigente na

RDA e na URSS e a defesa de regras éticas e humanistas na preservação dos direitos

humanos, uma ―moral de felicidade‖,146

em lugar da idolatria do Estado então em vigor nos

paìses definidos como aqueles do ―socialismo realmente existente‖.147

Essa tendência de discutir a questão da natureza foi insinuada na metafísica do ainda-

não-consciente em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e está claramente presente no Livro

II de O Princípio Esperança (p. 89-123) nas distinções entre o direito natural clássico e o

direito natural iluminista, um prol da comunidade organizada e pacífica, o outro postulando a

sociedade em abolição, mas ambos ainda nos limites do capitalismo. Um marco é a referência

que Bloch (2006a, p. 92) faz à ―força purificadora‖ dos direitos naturais do homem junto ao

idealismo religioso dos jovens nos estados americanos, em ambiente em que grassava o

despotismo, e na propagação da doutrina da liverdade na sociedade europeia, com a

mensagem de que o homem não é ―bom nem mau‖, mas que desperta para o egoísmo pela

―sociedade má‖, ―pela desigualdade das propriedades‖, ―pela segregação dos estamentos‖.

Enfim, é corrompido pelo sistema tal como Rousseau identifica no Contrato Social.

Münster volta ao tema em L’Útopie, Écologie, Écosocialisme. Reforça as evidências

de que a natureza esteve sempre presente em Bloch e que nos seus estudos pode ser mapeada

a partir do ensaio Ernst Bloch: um Schelling Marxista, título que toma emprestado de

Habermas. O interesse de Münster na definição encontra-se no fato do homem ser a mais

complexa existência da natureza, mas, igualmente, na concepção blochiana, ser a natureza a

―força motriz‖ que gera a progreção gradual do homem. A natureza é potência e a potência,

que inspirou o conceito aristotélico de dynameion, e que contem a possibilidade de futuro.

Münster medeia a relação do homem com a natureza de maneira tal que se pode

imaginar estar o homem ligado a um todo da natureza e, também, da história, mas,

independente dos seus insolúveis mistérios, tenderia a ser o prolongamento da Terra

humanizável. Por isso, Bloch, segundo Münster, imagina o paraíso humano de maneira

abrangente, sem a dicotomia homem-natureza, e não separa a Terra dos humanos. É o que fica

evidente, também no livro II de O Princípio Esperança, quando, nas utopias técnicas se

misturam vontade e natureza e Bloch (2006a), cita uma frase-chave de Marx, extraída dos

Manuscritos Económicos e Filosóficos de 1844:

146

―morale du bonheur‖.

147

―socialisme réellment existant‖.

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A essência humana da natureza somente se mostra ao ser humano social.

Porque apenas aqui existe para ele como laço, como o ser humano, como

existência para os outros e dos outros para ele; apenas aqui ela existe como

funcionamento de uma existência humana. Somente aqui se tornam humanas

suas existência natural, sua existência humana e a natureza para ele.

Portanto, a sociedade é unidade essencial perfeita dos homens com a

natureza, é a verdadeira ressurreição da natureza, é o naturalismo

implementado do ser humano e o humanismo implementado da natureza

(BLOCH, 2006a, p. 179-80).

A natureza deixa o universo burguês para ser entronizada no universo da humanidade.

Deixa a órbita capitalista para ingressar no mundo esboçada na Nova Atlântica de Bacon.

Influenciado por Schelling, Hegel e Marx, tendo a utopia tecnológica de Bacon como ponto

de partida para o humanismo científico, Bloch se exprimiu na grande trilogia O Princípio

Esperança por uma aliança do homem com a natureza em favor do bem comum universal e

da utilização de máquinas que não reproduzissem a devastação do modelo capitalista.

O conceito de utopia concreta, explica Münster (2013, p. 32-3, tradução nossa),

sintetiza a proposta de uma ―sociedade ecologista pós-capitalista, liberta do produtivismo, do

crescimento e de um pós-fordismo industrial fundo? sobre o funcionamento de grandes

máquinas industriais‖.148

Postulava Bloch que o homem, enquanto sujeito ativo, tivesse

consciência humana e promovesse a utopia de ―naturalização do homem e da humanização da

natureza‖.

Isto foi escrito em O Princípio Esperança (2005, p. 131), cerca de três décadas antes

do nascimento oficial do ―ecosocialismo‖, na França com André Gorz,149

René Dumont, na

Inglaterra com David Papper e nos Estados Unidos com Joël Kovel, além do Partido Verde

(Die Grünen), na Alemanha. Dessa maneira tomou forma um ideal transformador que

expande o curso da natureza, instaura um processo revelador de novas possibilidades,

propenso a superar, sem destruir, o hermetismo característico da natureza. Não significa que a

natureza tenha deixado de ser hermética, até porque, segundo Bloch (2005), isto só deixará de

existir quando o homem procurar conhecer o devir da natureza e se tornar consciente de que

não é o centro do mundo. Mas o portador de novas descoberta.

148

―d‘une société écologiste post-capitalista, libérée du productivisme, de la croissance et d‘úne post-fordisme

industriel fonde sur le functionnement des mégamachines industriellles‖.

149

André Gorz, nascido em Viena em 1923 e que viveu 84 anos, foi um dos fundadores doa revista Le Nouvel

Observateur e um dos primeiros teóricos críticos a perceber dupla transformação do capitalismo avançado:

em capitalismo financeiro da especulação bancária e em capitalismo cognitivo fundado sobre a

economia imaterial. Essa visão lhe permitiu prever a crise americana de 2008 e seus impactos ―nefastos‖ no

sistema financeiro internacional. Era defensor de uma economia ecológica, social e solidaria em que toda a

produção seria feita em cooperativas, unindo o ensino, experimentação e pesquisa de novos materiais,

invenção e novas técnica (MÜNSTER, 2013, p. 801- 959).

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Münster entrelaça essas ideias à repercussão do pensamento de Bloch. Traz a questão

ecológica, ao estilo da filosofia de Bloch, para o dia a dia da política européia e internacional:

a tradição reformista social-democrata orientada pelos objetivos financeiros do FMI, Banco

Mundial e o Banco Central Europeu, as altas taxas de desemprego, as frustrações das grandes

massas; defende uma produção ecológica socialista, dirigida por um governo ecosocialista e

por uma frente de esquerda; defende a desmobilização nuclear, uma agricultura ecológica e

ecocidades. Defende um momento que ultrapasse fronteiras nacionais e uma nova ordem

econômica mais justa, mais ecológica e fraternal (MÜNSTER, 2013, p. 860- 958). Lamenta

que na atualidade se fale muito de Hans Jonas e não o suficiente de Ernst Bloch, apesar do

humanismo ecológico de Jonas ser complementar ao ―otimismo militante‖ de Bloch

(MÜNSTER, 2013, p. 718). Na última página do livro, proclama: ―Ecosocialismo ou

barbárie!‖ (MÜNSTER, 2013, p. 959, tradução nossa).150

Há nessa perspectiva, a ideia, também presente em Bloch, de que o proletariado não

poderia mais ser o único sujeito da revolução socialista – como ensinou Marx no século XIX -

por força não só da amplitude da causa ecológica, mas igualmente pela automação e

robotização progressiva da produção industrial no capitalismo avançado (MÜNSTER, 2013,

p. 194-5). Uma atualidade semelhante, a despeito do precário relacionamento entre o

pensamento de Bloch e o socialismo contemporâneo, que o fundamento histórico, a sociedade

de classe, e a ideia do ainda-não-consciente não se encontra separado da realidade como se o

real pertencesse a um mundo e Bloch a outro mundo.

A filosofia em Bloch dependeria, para que seja entendida e se torne parte do mundo de

hoje, de novo aprendizado, da visão do novum nas teorias do passado e na proximidade com o

homem moderno, a exemplo do que interpreta Pierre Furter. Foi esse tipo de expansão que

Bloch pretendeu com o seu último livro, Experimentum Mundi (1975), escrito quando ele

completeu 90 anos. Caracteristico de um sistema aberto de pensamento, nele Bloch não

apenas reconhece a necessidade de consolidar a ontologia do ainda-não-consciente, exposta

em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e no Livro I de O Princípio Esperança, como se

fundamenta na mediação, no processo histórico e no tempo, um tempo não-homogêneo e

linear, mas um tempo fragmentado em que o homem, se tiver vontade, pode transformar em

possibilidade real o bem comum possível.

Um equivalente do novum seria a felicidade que Bloch procura demonstrar como

possibilidade de vida, se insurgindo contra a ideia trágica de que ―a descoberta da felicidade

150

―Ecosocialisme ou barbarie!‖

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anuncia a morte‖ (FURTER, 1974, p. 38). A felicidade marcaria um fim, mas este fim não é

uma queda, mas um começo, uma vontade de criar, intimamente ligada à esperança. Não seria

uma ruptura com o passado, sem o qual seria vazia, mas não ignoraria o futuro. Não aboliria a

infelicidade, mas esta seria uma contingência.

Furter contribuiu para recuperar a ideia revolucionária da obra de Bloch. Entendeu que

embora não fosse rigorosamente cientìfica, estava ―longe de ser um mero devaneio poético‖

(FURTER, 1974, p. 40). Além de buscar fundamentos em sua ampla cultura, de não ignorar

nenhum filósofo relevante do passado e considerar as transformações históricas, discutiu

Marx e Freud e concebeu, originalmente, o real como processo. Chama a atenção para a

―valoração‖ da ―esquerda aristotélica‖ que, segundo Bloch, procurou interpretar Aristóteles de

maneira ―progressista e moderna‖ por ter sido o primeiro filósofo a considerar o ser como

―ser em movimento‖, o real como ―processo que evoluiu‖ e que não via o homem imobilizado

na ―eternidade da criação perfeita e já acabada‖ (FURTER, 2014, p. 42).

Se a escolástica englobava o pensamento à ―direita‖, o aristotelismo, com Avicena –

que foi à raiz do pensamento de Aristóteles – guinou à ―esquerda‖, pelo seu materialismo e

dialética, como aconteceu com Hegel e a esquerda hegelina. O impulso dado por Avicena ao

pensamento de Aristóteles se propagou pela Idade Média, mas só daria o salto decisivo para

se transformar no ―humanismo integral‖ com o médico, filósofo e alquimista Paracelso e,

mais tarde, com Leibniz, ambos concentrados em pensar o homem como possibilidade de

perfeição. Foi, na concepção de Furter, uma caminhada longa, gradual, mas que anunciaria

em Bloch a conexão entre a esquerda aristotélica e a esquerda hegelina, que no final

suscitaram ―grande parte da criação de Marx e Engels‖.

Essa linha de continuidade traçada por Furter imprime dimensão ao pensamento

blochiano e, explicita ou implicitamente, revela as razões que motivaram Bloch a tratar de

maneira tão veemente, a questão do ainda-não-consciente. Uma sutiliza primordial é a sua

observação sobre a forma como Bloch analisou o fracasso da rebelião camponesa alemã e o

martírio de Münzer no contexto de uma sociedade organizada de cima para baixo, cada classe

com o seu tempo e seus mitos, consciência, atavismos, dogmas e hábitos de vida, mas que não

recusou a ideia de antecipação do futuro.

Para Furter (1974), a análise blochiana, quando trazida para o presente, golpeia a

―ideia mìtica mais constante das esquerdas‖: a ideia de ―um unidade a priori‖ das esquerdas

na ―frente única‖ ou ―partido único‖, ―ilusão otimista e idealista da convergência futura dos

movimentos‖ (FURTER, 1974, p, 50-2). O que faltava, prossegue Furter (1974) seguindo os

passos de Bloch, era uma estratégia fundada na autocrítica coletiva e pessoal, que educasse os

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militantes numa visão comum e crítica do momento histórico. É um trabalho sistemático de

pedagogia que exige tempo. À luz do pensamento crítico de Bloch se poderia repensar as

diretrizes de organização do partido por Lenin, o eclipse da República de Weimar e a

ascensão do fascismo na Alemanha.

O que Furter (2014, p. 53) almeja chegar é à observação de Bloch de que ―não pode

existir Revolução autêntica sem finalidade‖. E a finalidade encontra-se na mudança dos

valores, na negação das mudanças de aparência, na rejeição da dinâmica do niilismo. Não

basta afirmar que é ―revolução‖ tudo o que muda rapidamente; ainda é necessário que esta

mudança tenha uma certa orientação e um alvo definido. ―A pura violência mesmo

tecnológica, não é revolucionária; é anarquia a longo prazo‖ (FURTER, 1974, p. 53).

Existe uma outra maneira pela qual Bloch objetivou seu pensamento filosófico: é a

alienação (die Entfremdung) do entusiasmo. Não se abole o passado com rapidez. ―A

Revolução é só fim de um começo‖, citado por Furter (1974, p. 55). O novum exige que o

homem se liberte das malhas do passado e transforme a rebeldia em verdadeira desalienação

(Die Verfrendung), é onde estaria a ideia de que a verdadeira gênese é o fim, não o começo.

Exige a conquista da plenitude e o alvo, exige a libertação econômica e psíquica de tudo que

domina o homem. É um processo de desalienação que inibiria a reprodução do passado.

Furter vincula a utopia concreta à ―realidade transformável‖ e eleva o planejamento

concreto à categoria de ―ideia força‖ das mudanças radicais: ao contrário do utopista do

passado, a conquista do sonho futuro, exige que não haja hesitação quanto ao que precisa ser

feito, mesmo que seja exigido o recurso à violência (FURTER, 1974, p. 150). A capacidade

de decidir pela mudança, ensina Furter (1974, p. 150-1), é que definiria, na realidade, o

utopista do utópico, separando a utopia concreta, o novum que leva para a frente, da ucronia,

que volta para trás.

O problema que ameaça a filosofia de Bloch é que ―substimou os problemas novos da

necessária institucionalização da esperança num regime comunista organizado‖, isto é, não

deu ―bastante atenção‖ aos problemas de uma revolução que chegou ao poder e não concebia

uma ―revolução permanente‖ (FURTER, 1974, p. 28). Por conseguinte, não levou em conta a

indiferença revolucionária das gerações seguintes à que fez a revolução, fosse na antiga União

Soviética, fosse na China. Mas para Furter (1974, p. 152), ―a falta de realismo‖ em algumas

situação não é suficiente para que se despreze a utopia blochiana; o que importa é a

―encarnação de uma dialética antecipatória‖, isto é, ―a superação do ser pelo devir‖.

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O pensamento utópico, na sua dialética antecipadora, não só encontra

dificuldades e obstáculos, como também deve enfrentar a questão absoluta, a

‗anti-utopia‘ por excelência, a morte. Este confronto é tanto mais necessário

quanto esta ‗anti-utopia‘ reduz, ao que parece, a esperança mais

fundamental, a esperança de vida a uma total ilusão, diante do aspecto

definitivo do nada, na morte […] É o grau máximo deste momento zero que

já encontramos na análise do fundamento ontológico da esperança: ―o ainda-

não-sentido‖. O homem não pode prescindir desse confronto, mas a dialética

antecipadora lhe permite transcender, e portanto superar esta crise absoluta

(FURTER, 1974, p. 155-6).

Para Furter (1974, p. 152), a utopia blochiana não deve ser julgada pela possibilidade

de ser realizada, mas pelo ―grau de negação da realidade que contém e da sua capacidade de

despertar entusiasmo para uma mutação da situação atual‖. Há nele a ideia permanente de

combater a ―anti-utopia‖: da morte, do niilismo, da mera contemplação, do mero sonho

dormindo, da repetição do capitalismo, da ilusão das merdadorias.

Agrande inversão que começa possivelmente com Münzer e que atinge a sua

clara expressão em Karl Marx, é que a verdade da transcendência não está

além do concreto, mas aquém; que a libertação do homem, de todos os

homens e a sua realização plena não está além da política numa vida

espiritual ou estética, mas aquém: na sua maneira de conviver e de viver; que

o absoluto não está além da realidade relativa, mas aquém: no concreto

transfigurado (FURTER, 1974, p. 199).

Foi a mensagem blochiana no conjunto das sua obras. Exigia totalidade,

universalidade, e objetividade na ação, mas não permitia que se teorizasse a violência. Esta

poderia existir, como existiu em Münzer, que era um ―terno‖ e ―resplandescia de amor

fraternal‖, como existiu na Revolução Francesa e na Revolução Russa (FURTER, 1974, p.

200-1). Em Bloch o princípio do mundo novo estava na esperança e na ação transformadora

dos valores. Bloch, na visão de Furter, não viveu de ilusões: construiu um mundo e viveu da

esperança do futuro.

Não é uma impossibilidade, mas um sonho da sociedade moderna. Não é um desafio

novo, mas que o marxism clareou com a ―filosofia da praxis‖ e o entendimento das condições

materiais do homem. Passa-se a sonhar com a utopia de olhos abertos diante da necessidade

de uma nova ontologia ética e prática que contemple a visão da infinitude do que,

aparentemente, é finito no mundo atual. Mas essa talvez seja uma visão parcial e incompleta

dos desafios que cercam a atualidade do pensamento de Bloch.

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Na ótica de Pierre Furlan (1986, p. 197, tradução nossa) vive-se uma época de

―ameaça total‖,151

de um niilismo e de um facismo silencioso: a noção de totalidade se perdeu

com a rejeição dos grandes discursos – do cristianismo ao marxismo –, há problemas de

legitimação do discurso cientìfico dada à irracionalidade das razões técnicas, e ―a filosofia

renunciou a transformar um mundo mais e mais irreal‖.152

Nesse ambiente, segundo Furlan

(1985, p. 1005-6), Bloch trouxe esperança, de início valorizando a experiência prática, o que

significou rejeitar todo o sistema fechado, a ortodoxia marxista inclusive; e recusou a dialética

petrificada que fazia do futuro um esquema pré-estabelecido.

Não se limitou a essas contribuições: advertiu para a alienação social promovida pelo

capitalismo, capaz de destruir psiquicamente a humanidade, e que ameaça, na hipótese da sua

destruição, destruir também toda a humanidade. Essas ameaças nascem do próprio sistema

produtivo que, é certo, deu origem ao socialismo pelas suas infinitas constradições, mas que

se recusa a ser ultrapassado, nem que para se manter precise mergulhar o planeta no vazio

absoluto (FURLAN, 1985, p. 198). Bloch, como lembra Furlan (1985) deixou ainda nítido

que a filosofia não pode se refugiar no passado e em palavras vazias, portanto não poderia

renunciar ao seu papel transformador.

Ao investigar as coisas do cotidiano, Bloch quis deixar evidente que nada acontece por

acaso. Pode ser um grande acontecimento como a guerra, a ameaça nuclear, os nacionalismos,

o individualismo, a esperança passiva, tudo tem uma razão de ser, tem seus fundamentos e

pode ser superado de forma conveniente na vida humana. Nada que não implique em riscos,

medos ou que se limite a uma simples pesquisa de satisfação.

Em Bloch, o homem é digno de esperança e capaz de realizar-se. Ele é o demiurgo do

novum, legislador, construtor e integrante de uma sociedade que pode ser ética. É o homem

que identifica o que deve ser e o que favorece a liberdade. E a infinitude está não apenas na

não repetição do passado, mas na negação de ―uma fuga insossa e até enervante‖ da utopia

(BLOCH, 2005, p. 14). O socialismo não é o fim da história, mas o princípio. Porque, como

argumenta Bloch (1975, p. 173, tradução nossa) em Experimentum Mundi: ―Se não sabemos

ainda o que é o homem, sabemos pelo menos o que é desumano‖.153

Se o homem encontrará sua humanidade, a dialética do processo irá decidir no tempo e

na história. Vive na pré-história, mas, a julgar pela esperança em Bloch, o horizonte do ainda-

151

―la menace totale‖.

152

―la philosophie renoncerait a transformer un monde devenu de plus em plus irréel‖.

153

―weiß man noch nicht, was der Mensch ist, so weiß doch, was unmenschlich ist‖.

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não-consciente é a verdadeira utopia concreta – além de possível, semente que floresce. Fonte

do novum, pode ser visível ou invisível no cotidiano, mas não é ilusória. Existe na negação da

ditadura do capital, nas contradições do capitalismo, existe nos caminhos a serem percorridos

pela filosofia e pela psicanálise, existe nas pequenas coisas e na eternidade do sonho

socialista. A utopia concreta é o princípio do real. É tendência e latência do homem

prometeico, rebelde e revolucionário. Construtor e herdeiro do futuro, sujeito e mediador da

construção do mundo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FUTURO COMO ESPERANÇA

Somente ao se abandonar o conceito fechado e imóvel do ser surge a real

dimensão da esperança.

Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 28)

A visão da incompletude do mundo e o que o mundo pode vir a ser em oposição ao

que o mundo realmente é, propõe que Ernst Bloch escreveu, com sua obra, um vasto romance

de formação (Bildungsroman). Não como ficção, mas como realidade.154

Associam-se não ao

processo individual, que se decompõe no embate com a realidade, mas fiel ao conceito

alemão de ―humanidade‖ – Humanität, a qualidade de ser humano que se eleva, o sentimento

de pertencer a uma mesma sociedade humana.155

Lendo The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e O Princípio Esperança (Das Prinzip

Hoffnung), em especial, sob tal ótica, a associação soa inevitável. Os elementos

autobiográficos estão por toda parte: da paixão pela música e a época gótica à utopia, o

marxismo e o desbravar do ainda-não-consciente, de A noite das facas longas, nazista

(BLOCH, op. cit., p. 37-8), ao Sonho para diante, lucidez, entusiasmo e a unidade destes

(BLOCH, op. cit., p. 451-62), que combinam vontade com esperança no futuro, passando pela

longa experiência de Bloch nos Estados Unidos, descritas com acidez em A bela máscara, Ku

Klux Khan, os magazines coloridos (BLOCH, 2006b, p. 336-43). O que transpira do

pensamento de Bloch é a vontade de resgatar, interpretar e ampliar o sonho de liberdade e

protagonismo do homem na alquimia da vida.

154

No passado, a referência de Romance de Formação foi concebida por Goethe em Os anos de aprendizado de

Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters Lehrjahre), escrito entre 1794-1795. Inova com os conceitos de

possibilidade e o diálogo da individualidade com a sociedade e o seu ―estranhamento‖ com o mundo burguês.

No caminho aberto por Goethe, encontram-se Marcel Proust no livro Em busca do tempo perdido (À la

recherche du temps perdu), James Joyce em Retrato do artista quando jovem (A Portrait of the Artist as a

Young Man) e Günter Grass em O Tambor (Die Blechtrommel). No Brasil, pode-se citar José Lins do Rego

com Menino de Engenho.

155

A origem do termoHumanität encontra-se no século XV e tem suas raízes na palavra Mann, ser que é capaz

de pensar. No século XVI, passa a significar o ser humano cuja existência ultrapassa a finitude da vida em

oposição à designação de Unmensch, o homem maul, aquele que não é digno do nome homem. Marx

comiserava o homem um ser genérico, que, consciente, relacionar-se-ia com seus semelhantes como se estes

fossem a sua própria natureza (JOUSSET, 2007, p. 93-5). O humanismo alemão corresponde a uma espécie

de Aufklärung superior, uma Arcádia perdida, mas também diante dos olhos do homem, que é inerente ao

―sujeito-homem‖ no seu enfrentamento do pessimismo e do niilismo (LEQUAN, 2007, 319-34). Marx define

o humanismo, como sendo o humanismo real, o humanismo prático, enriquecido pelos hegelianos de

esquerda e os comunistas alemães que viveram em Paris. Defendido com ardor em A Sagrada Família,

equivaleria ao socialismo verdadeiro (MARX, 1982, p. 1591-648).

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É como se ele dissesse, parafraseando Schelling (Les Âges du monde), que o passado é

conhecido, que o presente da sociedade de classe e suas contradições são vividos, mas que o

futuro depende da práxis da humanidade. Não uma prática qualquer, mas uma prática que

transforme a estrutura da sociedade vigente, que se oponha ao passado de exploração do

homem pelo homem, da natureza pelo homem e que se rebele contra a repetição do mesmo.

Que procure não mais a fugacidade do momento vivido, mas o tempo de eternidade das

relações do homem com a produção e das relações dos homens entre si e com a natureza.

Uma práxis em que a filosofia reconcilie ideal e realidade, os valores coletivos e individuais,

em que a dialética revolucionária seja a chave para a crença na humanidade. Em lugar de

sonhar com a regressão, sonhar com o mundo para adiante.

Não se trata apenas de superar a força do capital e as deformações das relações de

produção, mas de metamorfosear uma cultura egoísta, de vínculos profundos com a

sociedade, que, nos dias atuais, resulta, inevitavelmente, na alienação do homem, desde as

suas atitudes e pensamentos à opressão do trabalhador e à aceitação, sem questionar, de

privilégios pelo capitalista. No caso do homem trabalhador, essa alienação reside na energia

dedicada à sobrevivência, o que corrói sua humanidade e o tempo livre que poderia dedicar ao

seu aperfeiçoamento.

O capitalista também perde sua humanidade, uma vez que se converte na

personificação do próprio capital, cultuando sua individualidade e reagindo às possibilidades

de mudança, mesmo se tiver de recorrer à obscuridade fascista. Ou, em termos da cultura

capitalista, a tendência de agir cega e inconscientemente, abstendo-se de pensar o quanto a

violência e o mal são expressões simbólicas do retorno ao passado selvagem e não humano.

Resumindo, o alvo permanente de Bloch são os valores. Não os elegeu intuitivamente,

mas a partir do pensamento de Marx e Freud. Sem configuração revolucionária dos valores,

não há horizontes para o novum. Sem ética prática, não há possibilidade de vida melhor. O

homem prometeico é acima de tudo um ser ético.

Bloch não considera a possibilidade de qualquer vínculo entre o capitalismo e o

futuro. Não considera a possibilidade de uma burguesia esclarecida (Bildungsbürgertum),

nem de reforma do capitalismo por ter esgotado o papel histórico. Por não ser normativa e

estar determinada e deixar o capitalismo confinado na história, a única utopia capaz de

libertar o homem seria a teoria e a prática marxista. Além de revolucionar as estruturas,

segundo ele, não existe um único sujeito revolucionário, a classe trabalhadora, mas múltiplos,

desde o excluído e marginalizado da vida social, estudantes e funcionários, aqueles que,

independente de classe, opõem-se ao capitalismo.

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Isto não quer dizer que Bloch tenha abandonado o conceito do trabalhador como sendo

sujeito revolucionário. Em vez disso, seu desejo é ampliar o significado do sujeito,

acompanhando as mudanças do capitalismo e com vistas ao socialismo de massas. Ele divisa

o homem e o conteúdo do mundo em mediação dialética e ao falar das relações do sujeito

revolucionário com a história, está sendo fiel à ideia de que o homem encontra-se no centro

da utopia concreta.

A apreensão dessas nuanças vêm da união do marxismo com a psicanálise e da sua

experiência pessoal desde a luta contra a ascensão do fascismo na Alemanha. A sua

concepção é de que a revolução se perpetua e, portanto, necessita eternamente do autêntico

sujeito revolucionário, o homem. Na filosofia blochiana, predomina a ideia da filosofia ativa e

da realidade cotidiana, a categoria que se refere ao mundo da vida (Lebenswelt). O problema

utópico é transposto para uma realidade atemporal, mas que se anuncia no tempo presente.

Como argumenta Bloch em Experimentum Mundi, o seu último livro em que condensa seu

pensamento filosófico, o homem pode ainda ser desconhecido, mas o que é desumano é

conhecido.

E o capitalismo é violento, ameaça destruir, psíquica e fisicamente, toda a

humanidade. O socialismo seria o futuro. Um futuro em que o homem determinaria a sua

vida, sem depender de Deus ou de senhores. O marxismo é o ponto arquimédico que iria

absorver as conquistas tecnológicas da burguesia, mas suprimirá a cultura do dinheiro e do

mercado. Representa o ponto de culminância de sucessivas utopias, e o início de um novo

começo para a humanidade.

A má consciência preponderante e a pulsão incontrolável para o lucro, até porque a

burguesia jamais terá interesse em controlá-las, conduzirão o capitalismo para a apropriação

da natureza e desumanização do homem. É o caminho para a destruição. Como o capitalismo

não pode ser aperfeiçoado, precisa ser superado. Não se trata de um princípio de extremos:

socialismo ou barbárie, mas de ordem e liberdade. Ou a ordem nasce dialeticamente da

liberdade, fundamentada no princípio da totalidade e da confiança no homem em modelar sua

história, ou, o homem permanece sublinhado à subordinação da liberdade à ordem, em

continuada repetição. Como quem não avança recua, o homem, sem o sonho acordado do

socialismo, feneceria.

Bloch não considera, é certo, o socialismo como fim, mas sim, como princípio da

história. Mas seria estéril discutir essa questão sem antes tornar o homem consciente de

acordar para a evidência de que o inimigo do socialismo não é o grande capital, mas a vontade

do próprio homem de construir a humanidade futura. É a esse salto para a frente que define

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como utopia possível. O caminho para concretizá-la pertenceria à transformação da categoria

ainda-não-consciente em consciência revolucionária.

Teoricamente, na concepção marxista, a revolução significaria o ato pelo qual a

dominação de uma classe é transferida pela violência,156

para a outra. Inclui as categorias de

―dominação‖, ―classe‖ e ―revolução proletária‖. Bloch não se revela radicalmente contrário à

violência revolucionária, mas o que considera decisivo é o acordar para o ainda-não-

consciente. Se a violência tiver de ocorrer, como aconteceu na revolta camponesa liderada por

Thomas Münzer, na Utopia de More e na Revolução de Outubro de 1917, que esta tenha um

alvo prometeico.

A questão que se coloca, para Bloch, é: o homem estaria consciente da vontade de

antecipação do futuro? Se a resposta for afirmativa, não parece estar excluído o enfrentamento

entre o espírito revolucionário e o espírito conservador. O que não parece coerente com a

filosofia blochiana é o não encontro do homem com ele próprio e a não convicção de uma

transformação global da humanidade que se estendesse continuamente por gerações e

gerações. Havendo essa convicção, preponderaria a superação das diferentes formas de

valores e da cultura vigente sob o capitalismo.

Bloch fala pela voz de Karl Marx nas Teses sobre Feuerbach. Exatamente a Tese 11,

que trata da transformação do mundo pelos filósofos. Ele estende essa responsabilidade ao

homem. Não basta a indignação ou a denúncia da ilusão capitalista. Como não basta atribuir

as fontes da ilusão aos movimentos do capital. É preciso levar para a sociedade um ideal

concreto de mudança, que seja sólido e que se desenvolva como possibilidade real.

A esperança é de saúde plena nas relações humanas. Bloch interpreta o marxismo

como o programa da libertação do homem pela interação entre a moral transformadora e o

socialismo. Esse o contexto em que ele analisa as correntes ―quente‖ e ―fria‖ do marxismo e o

motivo das suas veementes críticas à inércia da ortodoxia marxista para a qual Ulisses,

Prometeu e Fausto parecem ter a mesma falta de importância que o proletariado

revolucionário.

Nesses personagens, Bloch fundamenta a metáfora do homem astuto, o estrategista de

si mesmo – o ―polymetis‖, o que tem muita astúcia, e o ―polymachanos‖, o homem de muitas

estratégias, que Homero personifica em Ulisses, o grande artista na arte de enganar – e o

156

Münzer responsabilizava a classe dominante pela violência: ―são os próprios senhores que fazem do pobre

homem um inimigo; e se eles não querem afastar a causa da revolta, como será possível melhorar as coisas a

longo prazo?‖ Para Bloch, é um direito natural do homem resistir ao ―poder tirânico ou ditatorial‖. Thomas

Münzer, na sua revolta, estava respaldado pelo Antigo Testamento e na figura de Cristo purificada das lendas

conservadoras. Além disso, Münzer sempre agiu em conformidade com o bem e a igualdade dos homens

(MÜNSTER, 1997, p. 196-7).

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homem que acredita no homem que é o Ulisses de Dante. Personagens antagônicos e, que

terão, em Prometeu e Fausto, a simbologia do homem rebelde, encontra-se, filosoficamente,

na crítica de Bloch à história teatral do homem e à necessidade da sua transformação em

história real.

E, na fusão de Fausto com a Fenomenologia do Espírito de Hegel, emerge a

consciência do homem moderno, com as possibilidades de corrupção ou não dos seus ideais, o

choque entre o conceito de história e o tempo de agora, o Jetztzeit. É o socialismo parte do

presente ou do futuro? Qual a relação entre o socialismo e o cotidiano? Seriam as pequenas

coisas inerentes à perpetuação do bem comum? Essas são questões que remetem às perguntas

inaugurais, todas ainda sem respostas, de O Princípio Esperança: Quem somos? De onde

viemos? Para onde vamos? Que esperamos? O que nos espera?

Compreendê-las e respondê-las exigiria um movimento extenso no conteúdo do ainda-

não-consciente, contrário ao capitalismo e ao ―marxismo ortodoxo‖. O essencial parece ser a

crítica à inteligência enganadora, que ensina a nada levar a sério, salvo o benefício pessoal,

contra a inteligência que procura tudo levar a sério, que se questiona, que se transforma, que,

como Marx, procura uma forma combativa de inteligência. É a dramaticidade da crise da

cultura burguesa e seus valores com a perspectiva da confiança socialista que nasce do

movimento coletivo. Não se trata do resgate da comunidade de amigos concebida por

Aristóteles, mas de valores de crença no homem na sociedade de massas socialista.

Consciência, vontade e crença seriam uma coisa só, um único e fascinante paradigma.

Ao vincular a utopia concreta ao sonho acordado, Bloch ensaia um salto à frente no

processo revolucionário. Constrói um Bildungsroman para alertar o homem dos riscos da

repetição devastadora do nazismo e da repetição do sistema capitalista. No salto para a utopia

concreta é que se afirmariam a mudança de valores do homem e a latência da consciência

ganharia nova dinâmica, com a filosofia servindo de base para a prática de libertação. Seria

um avanço não apenas em relação às Revoluções proletárias do passado, mas em relação às

revoluções que certamente virão. O episódio mais importante da mudança estaria no retorno

do homem ao próprio homem, com a liberdade nascendo da coletividade e não mais da

individualidade egoísta.

Nesse sentido, o sol, ao qual Bloch tanto se refere, surge como metáfora da transição

do mundo incompleto para o mundo da completude. A utopia concreta e o ainda-não-

consciente seriam caminhos para esquentar e fazer aflorar as possibilidades latentes ou em

erupção no homem. Essas faces – inconsciência e consciência – pertencem ao homem. O

homem sabe que existem, mas precisa descobri-las.

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Enfim, o pressuposto do apelo à violência contra a burguesia – vale a ele retornar – é

ambíguo, mas pouco relevante. Encontra-se acondicionado na possibilidade, talvez como um

procedimento necessário em determinado momento, mas não como percurso necessariamente

revolucionário. Certamente, o que Bloch defende é uma crítica permanente ao autoritarismo

do Estado liberal e o despertar da sociedade para uma cultura filosófica libertária, pela aliança

da teoria com a práxis.157

A utopia de Bloch caracteriza-se pela fusão do necessário, do útil e do belo pela

valorização do humano. A vida, nos seus mínimos detalhes e no seu conjunto, precisa ser

feliz. A marca do humanismo está presente nas utopias passadas, não só nos seus aspectos

sociais, mas na música, na arquitetura, na medicina, na ciência, na literatura, na pintura, nas

viagens de descoberta, nas religiões, na natureza, por toda a parte onde se imponha a

necessidade de fazer o ser humano sonhar para adiante.

Não é diferente na utopia concreta. O novum encontra-se na dialética materialista da

história e no movimento progressivo do homem no rumo das possiblidades da revolução.

Como, parafraseando Mehring (2003, p. 67), se a filosofia encontrasse sua razão de existir no

homem trabalhador e o homem trabalhador encontrasse o seu saber na filosofia. Um fazendo

florescer o outro, um mesmo Dioniso-Apolo, uma mesma sabedoria e vontade como em

Ulisses de Dante.

O que Bloch propõe é uma construção consciente do homem e de uma utopia

libertária. Sensível ao desenvolvimento histórico, perfeita nos seus objetivos, mas conflitada

no seu processo. Uma utopia que lute contra a noção de destino e que comece pela saúde da

sociedade e do corpo, que torne a natureza humana uma construção coletiva e que condene as

ilusões. Que esteja associada ao princípio formativo orgânico da humanidade, aquela do

Bildung no sentido da força vital da superação dos preconceitos, da construção de uma nova

cultura e de um novo cimento unificador da humanidade e sua história.

Assim, o Bildungsroman de Ernst Bloch, como o Wilhelm Meister de Goethe, procura

despertar o homem para a sua presença na sociedade, inserção essa que é o sonhar acordado

com a autoconstrução. Os gregos criaram um sistema cultural totalizante, a paideia. Bloch

almeja criar um sistema utópico aberto, mas também totalizante, que envolva a sociedade em

157

Entre os contemporâneos de Bloch, Marcuse está bem próximo dessa ideia, com a teoria Racionalista, que

procura mostrar a faculdade do homem de ―aprender o verdadeiro, o bem e o justo‖ (MARCUSE, 1998, p.

57). Mas Marcuse, como Bloch, não exclui o recurso à violência em casos de transformações sociais que

sejam ―radicais e qualitativas‖, uma vez que ―a mudança sempre conduz ao pior‖? e faz parte da dinâmica

política: é assim desde Platão e Aristóteles, não sendo diferente na filosofia de Hobbes e Descartes, mesmo

em Kant, que se condenava à revolta contra governos estabelecidos (MARCUSE, 1998, p. 139-41).

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valores construtivos, processo pelo qual tenha raízes na linguagem, no conhecimento e na

prática filosófica transformadora.

Essas são a nascente e a foz da existência para a construção do socialismo. Não

dependem de doutrinação – porque toda doutrinação é ilusória e tem suas fronteiras numa

realidade específica –, mas de decisões por vontade da consciência. Não é uma questão

apenas de teoria, mas de prática que transforme o homem e a superestrutura que o condiciona

e multiplica a inércia ou a contemplação. Não é uma questão de indignação, mas de ação

revolucionária.

Não é, ainda, uma questão de que a utopia blochiana possa ou não ser realizada, mas,

sim, o alcance da negação de uma sociedade, a capitalista, que se perde no niilismo e nada

mais faz do que iludir o homem e prolongar o próprio fim, engendrado pelas suas

intermináveis contradições. Daí, o entendimento blochiano de que o princípio está no fim, não

no começo. O fim, na visão de Bloch, será o efetivo começo da história humana. A

concretude da esperança.

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